23.04.2013 Views

Confissões do pastor - Caio Fábio

Confissões do pastor - Caio Fábio

Confissões do pastor - Caio Fábio

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

oupas serem maravilhosas, nós ainda ficávamos ali na plataforma, expostos, dançan<strong>do</strong> para<br />

meninas delirantes e suas mamães ainda bonitas e atraentes. Aqueles desfiles sempre rendiam<br />

conquistas e aventuras proibidas, às vezes durante a semana, às vezes ali mesmo, atrás de<br />

biombos e tapumes que separavam o palco <strong>do</strong>s basti<strong>do</strong>res.<br />

Carioca sempre era leva<strong>do</strong> para tu<strong>do</strong>. Não “pegava” ninguém, mas ria de nossas façanhas. Aos<br />

poucos, ele começou a se transformar no nosso guru. Sempre filosofan<strong>do</strong>, ele não cansava de nos<br />

<strong>do</strong>utrinar sobre o absur<strong>do</strong> da vida e a náusea da existência. Nos seus 26 anos, Carioca era um ser<br />

angustia<strong>do</strong>, perdi<strong>do</strong>, revolta<strong>do</strong> e profundamente suicida. Foi ele quem nos incitou a usar drogas<br />

mais pesadas e a provar o ayahuasca.<br />

No primeiro dia que ele tomou o cal<strong>do</strong> de raízes, eu fiquei incumbi<strong>do</strong> de tomar conta dele.<br />

Ele dizia que o negócio era tão forte, que se alguém não ficasse de plantão, vigian<strong>do</strong>, o maluco<br />

corria o risco de fazer algo suicida. Fiquei lá com ele. Não deu outra. Ele babou, correu, falou com<br />

o diabo, descreveu o inferno, disse que ia morrer e ficou como morto vários minutos. Depois,<br />

ressuscitou alucina<strong>do</strong>, tirou a roupa, correu nu pela praça, duelou com bandi<strong>do</strong>s imaginários,<br />

parou carros na rua e fez amor com a Lua. E eu lá, seguran<strong>do</strong> o cara como podia, com me<strong>do</strong> que<br />

ele fizesse uma loucura suicida qualquer.<br />

Vinte e quatro horas depois ele ainda estava amaluca<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong> a rebor<strong>do</strong>sa dele passasse,<br />

seria a minha vez. Como eu vi que ele tinha toma<strong>do</strong> muito e como eu jamais me submeteria a um<br />

tormento daquele de graça, tomei muito menos <strong>do</strong> que ele. Foi o suficiente apenas para ver coisas<br />

multicoloridas e para liberar as produções de meu inconsciente. Gostei das sensações, mas<br />

decidi que ayahuasca não era a minha onda. Carioca sumiu <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> que apareceu, sem<br />

dar notícias e sem deixar paradeiro. Nunca mais o vimos.<br />

Carioca foi embora, mas a fome de espiritualidade que ele tinha ficou em mim. Não só a<br />

ansiedade espiritual ficou presente, mas também um canal de sensibilidade espiritual<br />

desenvolveu-se em mim. Inicialmente, eram angústias terríveis que me acometiam ao pôr-<strong>do</strong>-sol.<br />

A mesma saudade de alguém, que me possuíra na infância, quan<strong>do</strong> eu contemplava a mangueira<br />

sagrada da casa da vovó, estava de volta, só que muitas vezes pior. Eu respirava ofegante. Fumava<br />

um cigarro atrás <strong>do</strong> outro, fumava maconha e tentava tirar a cabeça <strong>do</strong> pôr-<strong>do</strong>-sol. Mas não<br />

conseguia. Doía muito, no nervo da alma, e eu não sabia por quê.<br />

Outra manifestação de sensibilidade espiritual passou a acontecer à noite, quan<strong>do</strong> eu voltava<br />

para a pequenina casa de madeira às margens <strong>do</strong> igarapé de Manaus, na rua Sete de Dezembro.<br />

To<strong>do</strong>s as noites, quan<strong>do</strong> virava a esquina, eu ouvia nas minhas costas um zumbi<strong>do</strong>, como se<br />

alguém tivesse pega<strong>do</strong> um grande cinturão de couro e o estivesse baten<strong>do</strong> contra o poste de luz.<br />

Era um zumbi<strong>do</strong> pavoroso. Eu corria de volta na direção da esquina na tentativa de ver quem fazia<br />

aquilo, mas nunca havia ninguém lá. Eu me afastava e a coisa acontecia de novo. Eu voltava<br />

corren<strong>do</strong>, e ninguém. Todas as noites aquilo acontecia. Eu entrava em casa e a coisa continuava<br />

lá, espancan<strong>do</strong> o poste, fazen<strong>do</strong> um ruí<strong>do</strong> terrível. Às vezes, as batidas se faziam acompanhar de<br />

gemi<strong>do</strong>s, como se alguém estivesse apanhan<strong>do</strong>. Fosse o que fosse, aquilo era estranho, bizarro e<br />

maligno. Era tão forte e ao mesmo tempo tão pessoal, que eu não tinha coragem de falar com<br />

ninguém sobre o assunto.<br />

Nenhuma daquelas coisas de natureza espiritual interrompia, entretanto, o ritmo frenético<br />

de minha vida.<br />

Eu não tinha carro, mas Bete Raposo, filha de um arma<strong>do</strong>r muito rico, tinha sempre um<br />

novinho. Às vezes eu pegava o carro dela para correr pela cidade. Uma noite, a aventura quase<br />

terminou mal. Peguei o carro de Bete e fui na direção <strong>do</strong> aeroporto de Ponta Pelada, no caminho<br />

para fora da cidade.<br />

Quan<strong>do</strong> vi uma batida da polícia e uma tábua cheia de pregos estendida de ponta a ponta da

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!