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Confissões do pastor - Caio Fábio

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que quan<strong>do</strong> eu falava, to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> parava para ouvir. E aquela era uma relação estranha,<br />

profundamente sedutora. Angustiava-me pela responsabilidade de estar falan<strong>do</strong> em nome de<br />

Deus, mas fascinava-me por perceber o embevecimento das pessoas frente ao discurso.<br />

O fogo daquela experiência não era profun<strong>do</strong> e muito menos dura<strong>do</strong>uro. Aliás, eu diria que<br />

era “avivamento espiritual de fogo de palha”. Como a atitude <strong>do</strong> grupo era muito pentecostal —<br />

concentrada na possibilidade de que <strong>do</strong>ns sobrenaturais, como o falar em outras línguas e as<br />

profecias, se manifestassem em nosso meio — e como nós to<strong>do</strong>s éramos muito imaturos, não<br />

demorou muito para que aparecessem uns espertalhões se fazen<strong>do</strong> de profetas, dan<strong>do</strong><br />

mensagens espirituais para as gatinhas e falan<strong>do</strong> em nome de Deus sobre quem deveria namorar<br />

quem. “Meus servos, hoje estou aqui para revelar para a minha serva que aquele que se declarou a<br />

ela é o jovem puro e crente que eu tenho reserva<strong>do</strong> para ela. Portanto, minha serva, assim diz o<br />

Senhor: Não tenha me<strong>do</strong>”, falava o cara em nome <strong>do</strong> Altíssimo.<br />

Declarações como essa começaram a acontecer com freqüência, e eu via que era pura<br />

armação. Ora, esse tipo de coisa era inconcebível mesmo para mim, que não era nenhum<br />

exemplo de pureza. Eu podia admitir qualquer molecagem ou safadeza fora daquele contexto.<br />

Mas esse negócio de dar cantada nas meninas em nome de Deus me enojava. Eu achava os caras<br />

frouxos, sem peito para ir à luta em nome deles mesmos, e que por isso evocavam um desígnio<br />

divino que obrigava as meninas a os aceitarem.<br />

Não dava. O Atum, Zé Bumbum, Marcinho e os outros eram muito mais honestos. Botavam a<br />

cara para fora e assumiam quem eram e o que faziam. Dei o fora dali.<br />

Como Jesus já havia predito, uma casa vazia e ornamentada é um atrativo mais que especial<br />

para seus antigos mora<strong>do</strong>res. Por isto, com meu aban<strong>do</strong>no interior da fé, cresceram dentro de<br />

mim diversos sentimentos estranhos. Eram desejos de toda sorte, que provocavam em mim<br />

paixões incontroláveis. Eu queria comer a vida por onde quer que ela pudesse ser experimentada,<br />

provada e saboreada. As drogas voltaram com força nova e minhas resistências em relação a tentar<br />

evitar o uso sistemático delas desapareceram completamente.<br />

Naqueles dias, o único amigo careta que eu tinha era o Téo, filho mais novo <strong>do</strong> reveren<strong>do</strong>. “É<br />

careta, mas é gente boa”, eu justificava a minha amizade com ele para um grupo cada vez maior<br />

de amigos malucões. Além de ser gente boa, Téo e os irmãos — Cecé, Lucilia e Lúcio — tinham<br />

em casa uma tremenda coleção de discos importa<strong>do</strong>s. Nós ficávamos ali no quarto de Téo<br />

ouvin<strong>do</strong> Jimmi Hendrix, Janis Joplin, Joe Coker, The Beatles, The Rolling Stones, Crosby, Still,<br />

Nash & Young e muitos outros até que nossas almas ficassem carregadas com a loucura <strong>do</strong>s<br />

tempos. Depois eu saía dali, dava uma namoradinha, e me entregava à loucura até não haver mais<br />

ninguém para falar bobeira comigo na rua.<br />

Os dias passavam sem alterações maiores que as loucuras de cada esquina e o frenético papo<br />

com os amigos de viagem e fantasia. Entretanto, o que meus pais não podiam avaliar em<br />

profundidade é que eu já não era quem eles supunham que eu ainda fosse. O garoto <strong>do</strong> quintal da<br />

vovó tinha mergulha<strong>do</strong> em águas de profunda angústia. Somente alguns anos mais tarde eu<br />

aprenderia que aquelas experiências de a<strong>do</strong>lescente um dia haveriam de me colocar no vale da<br />

sombra da morte e semeariam em mim uma <strong>do</strong>r que não escolhe idade para machucar.

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