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amanheci<strong>do</strong> com três filhos e estávamos corren<strong>do</strong> o risco de, na hora <strong>do</strong> almoço, já termos um<br />
quarto, agora uma filha. Seria uma gravidez de três horas. “Mas e os outros filhos? Será que<br />
aceitarão? E Lukinhas, será que ele vai assimilar uma maninha que chegue tão de repente?”,<br />
foram questões que me visitaram com intensidade, mas que descartei de imediato.<br />
— Aldinha, tem uma menina morren<strong>do</strong> lá no Rio. Uma macumbeira quer criá-la dedicada<br />
aos espíritos. O que você acha da gente a<strong>do</strong>tá-la? — perguntei assim, de chofre.<br />
Alda e eu já havíamos fala<strong>do</strong> em a<strong>do</strong>ção muitas vezes. Três meses antes eu havia até mesmo<br />
dito a um casal de amigos, Dr. Benjamim e <strong>do</strong>na Nelci, para nos avisar, caso encontrassem no<br />
Hospital Evangélico alguma criança órfã. Mas jamais pensei que a coisa fosse acontecer de fato,<br />
principalmente assim, de supetão.<br />
— Se você quiser a<strong>do</strong>tar, eu estou totalmente aberta — Alda falou com extrema segurança.<br />
— Então, olha, seu Manelzinho tá in<strong>do</strong> aí te pegar pra levar lá na favela onde ela está. Dona<br />
Mariana e ele passarão aí dentro de uma hora. Fica pronta — falei sem me<strong>do</strong> de que estivéssemos<br />
toman<strong>do</strong> uma decisão errada. Ao contrário, aquela era uma decisão para a qual, naquela hora, eu<br />
não sentia nenhuma necessidade de orar ou de pedir sinais a Deus. O sinal era o fato em si.<br />
Quan<strong>do</strong> eles chegaram lá, encontraram uma garotinha inchada e com fortíssima dificuldade<br />
de respiração. Ela tinha uma hérnia umbilical muito grande, seu umbigo estava completamente<br />
para fora, e algumas feridas na cabeça. E a pobre menina estava enrolada numa camisa <strong>do</strong><br />
Flamengo, se pelo menos fosse <strong>do</strong> Botafogo, já seria bem melhor.<br />
A senhora que tomava conta dela mostrou a neném e depois perguntou:<br />
— Gostou?<br />
— Olhe, minha senhora, eu quero essa criança pra mim. Mas eu só vou levar se a senhora me<br />
disser que ela vai ser minha pra sempre. Eu vou amá-la como amo os filhos que saíram de mim. O<br />
futuro deles será o dela. O que eles tiverem, ela também terá. Mas não tem volta. A senhora tem<br />
certeza que a mãe e o pai não a querem? — perguntou Alda nervosa.<br />
— A mãe sumiu. O pai disse pra eu nem dizê pra ele o que aconteceu. Então pode levá. Se<br />
ficá aqui, morre — ela respondeu em cima da bucha.<br />
— Meu mari<strong>do</strong> é uma pessoa fácil de ser identificada, mas a senhora vai me prometer que<br />
nunca vai tentar ir atrás de nós. Certo? — insistiu Alda.<br />
— Pode levá, minha senhora. Esta criança precisa de um lar e nós não temos condições de<br />
cuidar dela — falou.<br />
Silvia e Cintia eram duas jovens que Alda e eu havíamos conheci<strong>do</strong> em São Paulo, em 1979,<br />
quan<strong>do</strong> ainda eram a<strong>do</strong>lescentes. Com a nossa mudança para o Rio, elas vieram trabalhar no<br />
projeto social da Vinde na favela. Como nosso amor por elas era muito forte e os cuida<strong>do</strong>s que<br />
lhes dispensávamos eram paternais, elas acabaram nos chaman<strong>do</strong> de “papai e mamãe”, ainda que<br />
muita gente achasse aquilo sem cabimento. Nós e elas, contu<strong>do</strong>, não dávamos a menor<br />
importância.<br />
— Papai, você não vem conhecer sua filha caçula — Silvia brincou comigo ao telefone, mas<br />
somente às quatro da tarde consegui correr para casa para ver o bebê.<br />
O esta<strong>do</strong> físico da criança era dramático.<br />
Ciro e Davi vibraram com a chegada de Juliana, como a chamamos. Lukas, entretanto, com<br />
seus <strong>do</strong>is aninhos, ficou morto de ciúmes. Ela chegou e levou o quarto e o bercinho dele, que<br />
foram pinta<strong>do</strong>s de rosa. Além disso, tomou-lhe o privilégio de ser o caçula da família.<br />
Três dias depois de estar conosco, Juliana começou a morrer. A respiração foi cessan<strong>do</strong> e o<br />
quadro se agravou. Nós a internamos com urgência.<br />
— É bronquiolite aguda — decretou Ângelo, nosso médico e amigo.