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longe. É verdade que cê quer desarmar a gente, os traficantes? — perguntou com um tom<br />
provocativo. Respondi que não era tão ingênuo assim e que sabia que os traficantes jamais<br />
entregariam todas as suas armas.<br />
— Então, qual é a tua? U quê qui cê qué? — perguntou um rapazinho negro que estava<br />
senta<strong>do</strong> no chão, intriga<strong>do</strong> com minha aparente firmeza e frieza.<br />
— Os traficantes podem iniciar um processo de diálogo com a sociedade se começarem<br />
entregan<strong>do</strong> algumas armas — disse como quem não queria nada. Aí olhei direto para ele e<br />
demonstrei que o fato dele ser traficante não me dizia nada. — A vida de vocês é burra. Tenho<br />
visto vocês morrerem to<strong>do</strong>s os dias. Quem não morre, vai pra Bangu I, o que é morte também.<br />
Por que vocês não se perguntam a quem é que a vida de vocês está sen<strong>do</strong> útil? Vocês são<br />
instrumentos úteis nas mãos de um pessoal que nunca é apanha<strong>do</strong> e que mantém essa porcaria<br />
sempre funcionan<strong>do</strong> — disse com raiva.<br />
Foi quan<strong>do</strong> ele me fez confissões seriíssimas de como o Exército era ineficaz no combate às<br />
drogas e de como a polícia estava nas mãos deles.<br />
— O Exército, a gente passa bati<strong>do</strong>, não sabem de nada. E a polícia a gente compra. Eu an<strong>do</strong><br />
com cem mil real pra dar pros homem. Não adianta. Eles prende a gente e a gente dá grana pra<br />
eles. Aí a gente sai da cana ainda na rua. É tu<strong>do</strong> podre. Os cara são pior que a gente. Também,<br />
ganhan<strong>do</strong> aquele salário miserável. Eu tenho até pena <strong>do</strong>s cara — falou o garoto da mesa, com um<br />
ar misto, onde o bandi<strong>do</strong> e o cidadão frustra<strong>do</strong> se encontravam numa síntese perversa. — Cê já<br />
ouviu falar no Nem Maluco? — perguntou em seguida.<br />
— Já, várias vezes. Ele tá sempre nos jornais. Dizem que é um rapaz bem jovem e até bonito.<br />
Mas é uma pena, pois vai morrer a qualquer momento — falei como um mensageiro de Deus. A<br />
essa altura da conversa, já desconfiava a identidade <strong>do</strong> traficante senta<strong>do</strong> na mesa, que<br />
monopolizara quase inteiramente a conversa.<br />
— Vira essa boca pra lá. Qui morrê nada — disse. — Muito prazer, Nem Maluco —<br />
complementou, estenden<strong>do</strong>-me a mão.<br />
Aí então eu fui fun<strong>do</strong>. Ven<strong>do</strong> que a máscara fora tirada, entrei com vontade. Disse que vinha<br />
acompanhan<strong>do</strong> os movimentos dele no Complexo <strong>do</strong> Alemão e que, pra mim, estava claro que, se<br />
a polícia ou o Exército não o pegassem, os rivais o pegariam.<br />
— É, podem até pegá, mas vão cumê muita bala — disse com uma gargalhada.<br />
— Que idade você tem, filho? — indaguei.<br />
— Dezenove. Parece? — ele devolveu bem-humora<strong>do</strong>.<br />
Fiquei surpreso. Tinha a idade de meu filho mais velho. Dentes lin<strong>do</strong>s. Sorriso aberto.<br />
Desinibi<strong>do</strong>. Desgraçadamente cheio de vida. Nossa conversa prosseguiu. Contei-lhes de minha<br />
conversão e falei que Jesus dava a chance de uma vida nova. Eles ouviram atentos. A seguir, disse<br />
a Nem Maluco que desejava fazer uma prece por eles. Fiz uma oração com meus olhos abertos na<br />
direção deles. Apenas estendi minha mão e liguei a conversa com eles à fala de uma oração,<br />
pedin<strong>do</strong> que Deus desse luz para que eles (especialmente Nem), não fossem apanha<strong>do</strong>s pelas<br />
“trevas totais”.<br />
Saí dali deixan<strong>do</strong>-os no mesmo lugar. Alguns repórteres chegaram nesse ínterim e ficaram<br />
queren<strong>do</strong> saber com quem eu estivera conversan<strong>do</strong>. A alma de evangelizar figuras públicas<br />
(sejam homens de bem ou bandi<strong>do</strong>s) é a total discrição. Por isto, disse apenas que eram uns<br />
“meninos da favela”.<br />
— Pastor, os outros <strong>do</strong>is são o Raimundinho e o Ronaldinho. Eles são os <strong>do</strong>nos <strong>do</strong> tráfico<br />
aqui no Dona Marta — informou-me André.<br />
Alguns poucos dias depois desse episódio, um repórter telefonou-me bem ce<strong>do</strong> para dizer<br />
que o Nem Maluco tinha si<strong>do</strong> brutalmente assassina<strong>do</strong> pelos homens <strong>do</strong> Uê naquela madrugada.