O Poeta Mago - Repositório Aberto da Universidade do Porto
O Poeta Mago - Repositório Aberto da Universidade do Porto
O Poeta Mago - Repositório Aberto da Universidade do Porto
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
No <strong>do</strong>cumentário “Autografia” (2004), de Miguel Gonçalves Mendes, em diversos<br />
momentos, Cesariny surge como um poeta que se afasta de uma posição socialmente<br />
convencional. Num desses momentos, Cesariny encontra-se no topo de uma espécie de<br />
esca<strong>da</strong> de metal. O mo<strong>do</strong> como esta imagem é capta<strong>da</strong>, através de um plano em que a<br />
câmara filma de baixo para cima, salienta uma figuração de poeta enquanto um ser<br />
superior, que parece estar em contacto com o céu. 92 Num outro momento, Cesariny<br />
surge num barco encalha<strong>do</strong> na costa e traz um chapéu com uma pinha, a qual parece ter<br />
a função de uma antena. Com efeito, o poeta faz um gesto sucessivo com o chapéu que<br />
parece simular uma captação e, de segui<strong>da</strong>, coloca o chapéu na cabeça. 93 Nos instantes<br />
seguintes, Cesariny reaparece ain<strong>da</strong> sob esta encenação, repetin<strong>do</strong> o mesmo gesto, o<br />
qual se segue agora de um telefonema feito a partir de um telefone que não apresenta<br />
qualquer ligação eléctrica, de onde se depreende um mo<strong>do</strong> diferente de comunicar. 94 Ao<br />
longo <strong>do</strong> <strong>do</strong>cumentário, o poeta surge ain<strong>da</strong> nu diante de diferentes projecções numa<br />
parede branca. 95 Este último acto permite que a essência <strong>da</strong> performance se revele de<br />
mo<strong>do</strong> profun<strong>do</strong>. De facto, o poeta apresenta-se despi<strong>do</strong> <strong>da</strong> sua individuali<strong>da</strong>de para<br />
permitir a inscrição de outras reali<strong>da</strong>des no seu próprio corpo. A este nível importa<br />
referir o que Cesariny diz acerca <strong>do</strong>s seus encontros amorosos com os marinheiros:<br />
Um lobo e um barco encontram-se no alto mar pela primeira vez. Nem o barco<br />
sabe o nome <strong>do</strong> lobo nem o lobo sabe o nome <strong>do</strong> barco. E dentro disso, possivelmente, o<br />
maior grau de pureza que se podia atingir. Poucas pessoas <strong>da</strong>s que eu conheci, desses<br />
encontros assim, sabiam quem eu era (...). O exterior não existia, nenhum. Éramos só<br />
duas pessoas que estávamos ali. Às vezes só depois é que se sabia o nome. Nem era<br />
importante. 96<br />
O encontro amoroso era entendi<strong>do</strong> já numa dimensão sagra<strong>da</strong>, de ‘oração’, onde<br />
a identi<strong>da</strong>de social era aboli<strong>da</strong> através <strong>da</strong> fusão com o Outro e, consequentemente, com<br />
o Universo. E é significativa a correspondência entre este testemunho de Cesariny e a<br />
temática desenvolvi<strong>da</strong> por alguns <strong>do</strong>s seus poemas de amor que explicitam esta questão,<br />
como é o caso <strong>do</strong> seguinte poema:<br />
(...)<br />
Belo tu és belo<br />
92<br />
“Autografia”, filme de Miguel Gonçalves Mendes, Lisboa, 2004, 00:18:35.<br />
93<br />
Idem, 00: 28:28.<br />
94<br />
Idem, 00: 30:28.<br />
95<br />
Idem, 00:51:05; 00:53:12; 00:58:54.<br />
96<br />
Mário Cesariny, “Autografia”, 01: 04: 10.<br />
37