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O Poeta Mago - Repositório Aberto da Universidade do Porto

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e <strong>da</strong> língua. Neste momento, o corpo surgiria apenas enquanto corpo, destituí<strong>do</strong> <strong>da</strong> sua<br />

identi<strong>da</strong>de. Esta cura <strong>da</strong> ‘alma’ através <strong>do</strong> corpo demonstra, aliás, a correspondência<br />

que o pensamento primitivo estabelecia entre as enti<strong>da</strong>des mais contraditórias. Só num<br />

corpo livre de qualquer inscrição poderia nascer um novo senti<strong>do</strong>, uma nova<br />

identi<strong>da</strong>de. 102 Neste contexto, é relevante reparar que este poema volta à questão sobre a<br />

qual reflectimos relativamente ao poema “antonin artaud”, a <strong>do</strong> nome próprio enquanto<br />

uma imposição que deve ser combati<strong>da</strong> (“Despe-te de ver<strong>da</strong>des / (...) primeiro as que te<br />

impuseram eras ain<strong>da</strong> imbele / e não possuías mácula senão a de um nome estranho”).<br />

Ao longo <strong>do</strong> poema, são enumera<strong>da</strong>s, além <strong>do</strong> nome, várias “ver<strong>da</strong>des” que devem ser<br />

aban<strong>do</strong>na<strong>da</strong>s, a favor de um corpo vazio, para que uma nova identi<strong>da</strong>de nele possa ser<br />

inscrita e, segui<strong>da</strong>mente, aceder a outros níveis <strong>do</strong> cosmos. A este nível, é interessante<br />

atentar na última parte <strong>do</strong> poema, a partir <strong>do</strong>s versos “Então, meu senhor, poderemos<br />

passar / pela planície nua / o teu corpo com nuvens pelos ombros (...)”, pois é nesta fase<br />

que o xamã estabelece a ligação entre os diferentes planos cósmicos. Este poder <strong>do</strong><br />

xamã é referi<strong>do</strong> no poema “ode a outros e a maria helena vieira <strong>da</strong> silva”, onde podemos<br />

ver cita<strong>do</strong>s afirmações de Mircea Eliade, importante historia<strong>do</strong>r <strong>da</strong>s religiões:<br />

«A técnica por excelência xamânica consiste na passagem de um plano cósmico<br />

a outro. O xamã é detentor <strong>do</strong> segre<strong>do</strong> <strong>da</strong> ruptura <strong>do</strong>s níveis. Existem três grandes planos<br />

cósmicos liga<strong>do</strong>s por um eixo central, o Pilar <strong>do</strong> Céu. Este eixo passa por uma “abertura”,<br />

um “buraco”, por onde o espírito <strong>do</strong> xamã pode subir ou descer em voos celestes ou<br />

desci<strong>da</strong>s infernais.» 103<br />

Não é por casuali<strong>da</strong>de que Cesariny se interessa por Eliade e por esta questão.<br />

Através <strong>do</strong> acto poético, o poeta surrealista instaura, à semelhança <strong>do</strong> xamã, essa<br />

ruptura <strong>do</strong>s níveis, essencialmente no que respeita aos esta<strong>do</strong>s de vigília e de sonho.<br />

A projecção de uma imagem de poeta-xamã surge ain<strong>da</strong> no poema “carta <strong>do</strong><br />

xamã”. Efectivamente, além <strong>da</strong> relação explícita <strong>do</strong> título, é muito relevante, neste<br />

poema, o mo<strong>do</strong> como é trata<strong>da</strong> a linguagem:<br />

Sagani bô<br />

tangara pura<br />

kormos ama orgiski oibonkungata<br />

102 Ibidem.<br />

103 Mircea Eliade apud Mário Cesariny, poema “ode a outros e a maria helena vieira <strong>da</strong> silva”, Pena<br />

Capital, ed. cit., p. 159.<br />

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