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TUTELAS DE URGÊNCIA NA RECUSA DE ... - Professor Ligiera

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7. A QUESTÃO PELO PRISMA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS<br />

As decisões judiciais autorizadoras de procedimentos hemoterápicos<br />

contra a vontade do paciente têm sido freqüentemente concedidas sob a<br />

fundamentação de que, diante da colisão entre dois direitos fundamentais, de um<br />

lado a liberdade, de outro a vida, esta há que prevalecer, porquanto se trata do<br />

bem maior, indisponível.<br />

O cerne da questão, no entanto, reside no fato de que, na hipótese sub<br />

examine, tais pacientes não estão recusando tratamento médico, nem pretendem<br />

dispor da própria vida, como explicita Carmen Juanatey Dorado: “[...] não se<br />

pode qualificar de ‘suicida’ a conduta da testemunha de Jeová que, ao mesmo<br />

tempo em que se nega a que lhe pratiquem uma transfusão de sangue, está<br />

disposta a submeter-se a qualquer tratamento alternativo para continuar vivendo.<br />

Em tal hipótese, efetivamente, não se pode falar de ‘vontade de morrer’.” 46<br />

Com efeito, não há propriedade em se falar em colisão entre direitos<br />

fundamentais, até porque se tratam de direitos de um mesmo titular, que não<br />

pretende dispor de nenhum deles. Estamos, na realidade, diante daquilo que<br />

Canotilho chama de “concorrência de direitos fundamentai s”, que se dá “quando<br />

um comportamento do mesmo titular preenche os ‘pressupostos de facto’<br />

(‘Tatbestände’) de vários direitos fundamentais” 47 , e não de “colisão de direitos<br />

fundamentais”, em que “o exercício de um direito fundamental por parte do seu<br />

titular colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro<br />

titular” 48 .<br />

De qualquer modo, sendo o direito à vida e o direito à liberdade<br />

protegidos e considerados igualmente invioláveis pela Constituição Federal (CF,<br />

art. 5.º, caput), há que se buscar, sempre que possível, a conciliação de ambos.<br />

Afinal, há que se lembrar que “no direito, como na vida, a suma sabedoria reside<br />

em conciliar, tanto quanto possível, solicitações contraditórias, inspiradas em<br />

interesses opostos e igualmente valiosos, de forma que a satisfação de um deles<br />

não implique o sacrifício total do outro”. 49<br />

46 Carmen Juanatey Dorado. Derecho, suicidio y eutanasia, p. 317. Tradução livre do autor, sendo que no original assim<br />

consta: “[...] no puede calificarse de ‘suicida’ la conducta del testigo de Jehová que al mismo tiempo que se niega a que le<br />

practiquem una tranfusión de sangre está dispuesto a someterse a cualquier tratamiento alternativo para continuar viviendo.<br />

En tal hipótesis, efectivamente, no se puede hablar de ‘voluntad de morir’.”<br />

47 J.J. Gomes Canotilho. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1189.<br />

48 Ibid., p. 1191.<br />

49 José Carlos Barbosa Moreira. Efetividade do processo e técnica processual, p. 171.<br />

174<br />

Outrossim, utilizando-nos dos ensinamentos de Robert Alexy 50 sobre o<br />

princípio da necessidade e sua relação com o princípio da proporcionalidade,<br />

conforme trazidos por Suzana de Toledo Barros, podemos propor a seguinte<br />

forma de conciliação dos direitos fundamentais. Suponhamos, v.g., que um<br />

paciente portador de insuficiência renal crônica, submetido à hemodiálise,<br />

apresente-se com anemia significativa. Para a consecução do fim F (elevar o<br />

nível de hemoglobina do paciente), exigido por um direito D1 (direito à vida),<br />

existem, pelo menos, dois meios, M1 (transfusão de concentrado de hemácias) e<br />

M2 (aplicação de eritropoetina humana recombinante, hormônio sintético que<br />

estimula a medula óssea do próprio paciente a produzir mais hemácias —<br />

associada a ferro e ácido fólico) 51 , que são igualmente adequados para a<br />

consecução do fim F. O meio M2 (eritropoetina, ferro e ácido fólico) afeta<br />

menos intensamente o titular de D1, já que M1 (transfusão de sangue) restringe<br />

um outro direito seu, D2 (liberdade de consciência e de crença). Para atingir F e<br />

realizar D1 seria indiferente se eleja M1 ou M2, mas para o titular dos direitos<br />

D1 e D2 só M2 (tratamento com eritropoetina, ferro e ácido fólico) é exigível.<br />

8. CONCLUSÃO<br />

A presente pesquisa chamou-nos atenção, por um lado, quanto à<br />

recuperação de pacientes tratados com terapias sem o uso de sangue; por outro, a<br />

morte de vários pacientes transfundidos à força, contra sua própria vontade<br />

consciente. A situação apresenta-se tão mais delicada na medida em que,<br />

supostamente, a transfusão teria sido autorizada por via judicial sob o argumento<br />

de que era preciso salvar-lhes a vida, embora tais pacientes tivessem objeções<br />

unicamente ao emprego de tal procedimento terapêutico, aceitando quaisquer<br />

outros. No entanto, não obstante a realização das transfusões, tais pacientes<br />

morreram, quer em decorrência da evolução de sua enfermidade, quer como<br />

resultado das próprias reações transfusionais adversas.<br />

Tais fatos remetem-nos certamente a uma série de reflexões éticas e<br />

jurídicas acerca da validade das transfusões arbitrárias, diante da proteção<br />

constitucional não só à inviolabilidade do direito à vida, mas, igualmente, à<br />

liberdade, inclusive na projeção de liberdade religiosa, bem como da dignidade<br />

da pessoa humana, qual fundamento da República Federativa do Brasil, previsto<br />

no art. 1.º da Constituição Federal, inciso III, que deve permear a interpretação<br />

de toda a Carta Magna.<br />

50<br />

Robert Alexy. Teoría de los derechos fundamentales. Apud Suzana de Toledo Barros. O princípio da proporcionalidade e<br />

o controle de constitucionalidade de leis restritivas de direitos fundamentais, p. 80-81.<br />

51 João E. Romão Junior, Uso da eritropoetina recombinante humana no tratamento da anemia do paciente em hemodiálise:<br />

um estudo multicêntrico, p. 57-61; Der-Cherng Tarng et al., Erythropoietin hyporesponsiveness: from iron deficiency to iron<br />

overload, p. S-107-118.<br />

175

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