TUTELAS DE URGÊNCIA NA RECUSA DE ... - Professor Ligiera
TUTELAS DE URGÊNCIA NA RECUSA DE ... - Professor Ligiera
TUTELAS DE URGÊNCIA NA RECUSA DE ... - Professor Ligiera
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Na virada do século, constatamos na literatura médica relatos sobre<br />
grandes cirurgias cardíacas 33 , neurológicas 34 , ortopédicas 35 , ginecológicas 36 e<br />
mesmo transplantes de fígado 37 , de pulmão 38 e de coração 39 feitas sem a<br />
utilização de sangue alogênico (de bancos de sangue). Antes, o progresso<br />
científico tem patrocinado a utilização de alternativas médicas às transfusões e,<br />
desse modo, permitido tais façanhas, sem prejuízos para os pacientes.<br />
6. ASPECTOS PROCESSUAIS<br />
Diante de todos os fatores apresentados, percebe-se que a complexa e<br />
intrincada problemática sub examine não pode ser considerada de modo por<br />
demais simplista. Além disso, a análise honesta, coerente e imparcial requer<br />
sejam primeiramente afastadas algumas das falsas premissas que com freqüência<br />
têm sido inadvertidamente prestigiadas na abordagem do tema.<br />
A pesquisa revelou que, no esforço de obter um autorização judicial, não<br />
raro, certos médicos têm exagerado a gravidade do quadro clínico do paciente.<br />
Em alguns dos casos investigados, muito embora fosse afirmado na petição<br />
inicial que transfundir o paciente era imprescindível para a<br />
manutenção de sua vida, tal procedimento acabou não sendo<br />
realizado, mostrando-se por fim desnecessário. O enfermo teve sua<br />
saúde restabelecida com a utilização de alternativas médicas sem<br />
33 Cristiano Nicoletti Faber et al. Tratamento cirúrgico de mixoma do coração duplamente recidivado, em paciente<br />
testemunha de Jeová: relato de caso, p. 173: “Por tratar -se de testemunha de Jeová, não recebeu sangue ou hemoderivados<br />
durante todo o tratamento cirúrgico.”<br />
34 Steven J. Schiff; Steven L. Weinstein. Use of recombinant human erythropoietin to avoid blood transfusion in a Jehovah’s<br />
witness requiring hemispherectomy, p. 600. “Despite significant anemia, the child’s hematocrit was sufficiently increased b y<br />
the use of erythropoietin so that a two-stage hemispherectomy could be performed without blood transfusion.” (Tradução<br />
livre do autor: Apesar de severa anemia, o hematócrito da criança foi satisfatoriamente elevado pelo uso de eritropoetina, de<br />
modo que uma hemisferectomia de duas etapas pôde ser feita sem o uso de transfusão de sangue.)<br />
35<br />
P. H. Wittmann; F. W. Wittmann. Total hip replacement surgery without blood transfusion in Jehovah’s Witnesses”, p.<br />
306-307. “Uncemented total hip replacement surgery w ithout blood transfusion is described in 12 Jehovah’s Witnesses and<br />
morbidity is compared with a group who each received 3 units of blood. There were no deaths and all the patients except two,<br />
one from each group, left the hospital within 3 weeks.” (Tradução livre do autor: Descrevem-se cirurgias de substituição total<br />
não-cimentada de quadril, sem transfusão de sangue, em Testemunhas de Jeová, e compara-se a morbidade com um grupo<br />
em que cada paciente recebeu 3 unidades de sangue. Não houve mortes e todos os pacientes, exceto dois, um de cada grupo,<br />
receberam alta hospitalar após 3 semanas.)<br />
36 Mostafa I. Bonakdar et al. Major gynecologic and obstetric surgery in Jehovah’s witnesses, p. 587 -590.<br />
37 O. Detry et al. Liver transplantation in a Jehovah’s witness, p. 1680.<br />
38 John V. Conte; Jonathan B. Orens. Lung transplantation in a Jehovah’s witness, p. 796 -800.<br />
39 Clay M. Burnett et al. Heart transplantation in Jehovah’s witnesses, p. 1430 -1433.<br />
170<br />
sangue. Por outro lado, nas hipóteses em que os pacientes realmente corriam<br />
risco de vida, o procedimento transfusional não foi capaz de salvá-los. Destarte,<br />
já não se pode aceitar o raciocínio simplório de que transfusão é sinônimo de<br />
vida.<br />
Perante esse quadro fático que se nos apresenta, não vemos como deixar<br />
de perscrutar sob a lupa de critérios mais rigorosos as argumentações daqueles<br />
que recorrem ao Judiciário sustentando que a transfusão de sangue é a única<br />
terapia que pode salvar a vida do paciente. Ademais, há que se ter cautela diante<br />
de declarações singelas de que o paciente encontra-se em situação de risco<br />
iminente a exigir com urgência o amparo da tutela jurisdicional. Como advertiu<br />
a ilustre magistrada Christine Santini Muriel, “no caso de recusa do paciente a<br />
respeito de recebimento de transfusão de sangue, deve em primeiro lugar ser<br />
analisada a efetiva existência da necessidade do ato.” 40<br />
Observa-se, com freqüência, por parte de alguns profissionais da área da<br />
saúde, uma tentativa de transferir para o Judiciário o risco de uma decisão<br />
eminentemente médica. Na incerteza sobre a real necessidade e eficácia da<br />
terapia transfusional, imaginam erroneamente estarem eximidos de<br />
responsabilidade pela obtenção de uma liminar judicial. Concordamos, nesse<br />
particular, com a decisão do TJRS: “Não pode o Judiciário estar fornecendo<br />
alvarás para realização de tratamentos médico-hospitalares ou cirúrgicos.<br />
Médicos e hospitais devem assumir os riscos óbvios inerentes à atividade que<br />
exercem, como o assumem todos os profissionais.” (RJTJRS 171/384)<br />
Ocorre que nosso ordenamento jurídico positivo não considera<br />
constrangimento ilegal: “I – a intervenção médica ou cirúrgica, sem o<br />
consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por<br />
iminente perigo de vida; II – a coação exercida para impedir suicídio.” (CP, art.<br />
146, § 3.º, I e II) Em consonância, determina o Código de Ética Médica: “É<br />
vedado ao médico: Art. 46. Efetuar qualquer procedimento médico sem o<br />
esclarecimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu responsável<br />
legal, salvo em iminente perigo de vida.” (CEM, Resolução CFM 1.246/88, art.<br />
46)<br />
Deste modo, a própria busca de autorização judicial, sob o argumento de que<br />
o paciente recusa o único tratamento eficaz para retirá-lo da alegada situação de<br />
iminente perigo de vida, já revela, por si mesma, a desnecessidade do provimento<br />
jurisdicional. Afinal, estivesse o paciente sob morte iminente, imediata, e recusasse<br />
a realização do único tratamento médico apto a salvá-lo, não haveria necessidade<br />
— e nem tempo hábil — para se buscar uma autorização de quem quer que fosse.<br />
Na hipótese em apreço, porém, explicita Rabinovich-Berkman:<br />
“As Testemu nhas de Jeová não buscam sua morte, nem a de seus<br />
filhos. Atualmente, a transfusão de sangue é apenas uma das muitas alternativas<br />
que estão disponíveis. As outras terapias são com freqüência muito menos<br />
perigosas, e sua aplicação é de praxe em todo o mundo desenvolvi-<br />
40 Christine Santini Muriel, Aspectos jurídicos das transfusões de sangue, p. 32.<br />
171