TUTELAS DE URGÊNCIA NA RECUSA DE ... - Professor Ligiera
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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:<br />
LIGIERA, Wilson Ricardo. Tutelas de urgência na recusa de transfusão<br />
de sangue. In: ALMEIDA, Jorge Luiz de. Temas sobre tutela de<br />
urgência. São Paulo: Arte & Ciência, 2002, p. 157-179.<br />
156<br />
<strong>TUTELAS</strong> <strong>DE</strong> <strong>URGÊNCIA</strong> <strong>NA</strong> <strong>RECUSA</strong> <strong>DE</strong><br />
TRANSFUSÃO <strong>DE</strong> SANGUE<br />
1. INTRODUÇÃO<br />
1 J. E. Carreira Alvim. Medidas cautelares satisfativas, p. 32.<br />
157<br />
DR. WILSON RICARDO LIGIERA<br />
<strong>Professor</strong> de Direito<br />
Estabelece a Constituição Federal, no caput de seu art. 5.º, a<br />
“inviolabilidade do direito à vida”. No mesmo sentido, determina que “a saúde é<br />
direito de todos e dever do Estado” (CF, art. 196). Outrossim, objetivando<br />
assegurar o tratamento médico necessário para preservar a vida e a saúde dos<br />
cidadãos, observa-se hodiernamente uma ampla utilização de medidas que visam<br />
à obtenção célere do provimento jurisdicional, tais como a cautelar inominada e<br />
a antecipação da tutela.<br />
Situações peculiares que têm despertado o interesse dos doutrinadores são<br />
aquelas em que a ação judicial é utilizada não pelo paciente que busca<br />
assistência médica, mas, em vez disso, pelo próprio hospital ou Poder Público, a<br />
fim de impor ao paciente um tratamento por ele não desejado. Mencione-se a<br />
hipótese na qual, a pretexto de salvar a vida de um paciente, seja requerida uma<br />
autorização judicial para amputar-lhe uma perna contra a sua vontade. Ou, como<br />
trazido à baila por Carreira Alvim, as transfusões de sangue não autorizadas por<br />
motivos religiosos. Sobre esse tema, salienta o eminente autor: “Sempre que<br />
houver uma carga de probabilidade suficiente para convencer o julgador da<br />
verossimilhança da alegação, tem cabimento a concessão da liminar; não, se o<br />
Juiz se convence do contrário”. 1<br />
Indubitavelmente, questão de extrema delicadeza é suscitada quando<br />
a prestação jurisdicional é direcionada à proteção da vida huma-
na. A concessão de liminares inaudita altera pars tem ocorrido nesse campo,<br />
sob a justificativa de que, se da liminar depende a própria sobrevivência do<br />
direito material — in casu a vida humana — tornar-se-ia inviável um juízo de<br />
probabilidade muito rígido, sob pena de se tornar imprestável ao fim a que se<br />
destina. 2<br />
A solução, porém, não é tão simples como possa parecer. No caso da<br />
hemoterapia não desejada pelo paciente, os próprios riscos a ela associados, bem<br />
como o contínuo desenvolvimento de substitutos eficazes do sangue, devem<br />
levar-nos a reflexões mais profundas. O tema tem sido freqüentemente abordado<br />
pela doutrina, mas raramente como objeto de análise mais cuidadosa. Por sua<br />
singularidade e relevância, considerando-se não só o crescente número de<br />
ocorrências, mas também o fato de que a escolha de tratamento médico<br />
encontra-se inserida no contexto mais amplo dos direitos fundamentais do ser<br />
humano, entendemos que o assunto merece um exame mais atento, sendo<br />
escolhido como objeto de estudo no presente trabalho.<br />
2. ANÁLISE <strong>DE</strong> CASOS OCORRIDOS NO BRASIL<br />
Para melhor entendimento dos diversos aspectos envolvidos na utilização<br />
das tutelas de urgência que visam impor ao paciente um tratamento<br />
hemoterápico não consentido, fomos buscar na jurisprudência brasileira<br />
exemplos dessa ocorrência. Saliente-se, desde logo, que os casos verificados no<br />
Brasil raramente chegam aos Tribunais, sendo normalmente encerrados em<br />
primeira instância. Tratam-se de situações em que, embora sendo concedida a<br />
medida para transfundir o paciente contra sua vontade expressa, as transfusões<br />
acabam não sendo realizadas, quer por absoluta desnecessidade para a<br />
recuperação do enfermo, que tem sua saúde restabelecida por outros meios com<br />
igual ou maior eficácia, quer pela constatação da impropriedade do meio<br />
transfusional para a salvaguarda de sua vida.<br />
O primeiro caso encontrado 3 refere-se a uma ação cautelar<br />
inominada (Processo n.º 523/024.000.063.164, 7.ª Vara Criminal da<br />
2 Ibid., mesma página.<br />
3 Por questões de delimitação do presente trabalho, ativemo-nos aos casos envolvendo pacientes adultos. Evidentemente, há<br />
processos que versam sobre tratamentos de menores de idade. Tão-somente à guisa de exemplificação, mencionemos dois<br />
deles: 1) Processo n.º 018.00.008905-0, Medida cautelar inominada, 2.ª Vara Cível da Comarca de Chapecó, SC. Envolveu o<br />
menor V. H. Q. P, de 1 ano e seis meses de idade, com diagnóstico de broncopneumonia aguda. A mãe do menor, suscitando<br />
motivos religiosos, além de temores quanto a possíveis riscos de incompatibilidade sangüínea e contaminação de doenças<br />
infecto-contagiosas, solicitou o uso de terapia isenta de sangue. A instituição hospitalar, discordando da solicitação da<br />
genitora, buscou ordem judicial para proceder à transfusão sangüínea como suporte para o tratamento com antibióticos, o que<br />
foi autorizado por liminar. Todavia, a criança acabou sendo tratada sem o uso de sangue, substituindo-se essa terapia<br />
especialmente pela aplicação de eritropoetina humana recombinante (hormônio sintético que estimula a produção de glóbulos<br />
vermelhos pela medula óssea), vitaminas do complexo B e ferro, que tiveram pleno êxito em restabelecer a saúde do menor.<br />
2) Processo n.º 1.121/2000, 2.ª Vara Cível da Comarca de Jundiaí, SP. Nesta segunda ocorrência, a mesma sorte não teve a<br />
menor J. B. U. S., com 7 meses de vida, portadora de meningite bacteriana. Diante da solicitação dos pais para que sua filha<br />
fosse tratada sem a utilização de hemoderivados, o hospital ingressou com uma medida cautelar inominada de cunho<br />
satisfativo em 14 de junho de 2000, buscando autorização judicial para proceder à transfusão de sangue. No mesmo dia, a<br />
liminar foi concedida e uma transfusão de papa de hemácias (concentrado de glóbulos vermelhos) realizada. Apesar da<br />
terapia transfusional efetuada, a criança faleceu.<br />
158<br />
Comarca de Vitória, ES) 4 envolvendo uma paciente vítima de acidente<br />
automobilístico, com indicação de intervenção cirúrgica. M. L. N., com 39 anos<br />
de idade, deu entrada no nosocômio consciente e subscreveu um termo de<br />
isenção de responsabilidade para a equipe médica, declarando não aceitar<br />
“nenhuma transfusão de sangue ou de constituintes do sangue (total, glóbulos<br />
vermelhos, glóbulos brancos, plaquetas ou plasma sangüíneo)”, embora<br />
concordasse com a cirurgia e aceitasse tratamentos médicos sem o uso de<br />
sangue. Contrariando sua vontade expressa, o diretor clínico do hospital<br />
peticionou ao Judiciário, curiosamente sem se fazer representar por advogado<br />
habilitado, e requereu autorização para transfundi-la. Consta como principal<br />
fundamento do pedido: “[M. L. N.] necessita de intervenção cirúrgica<br />
(Craniotomia para drenagem de hematoma cerebral traumático extra-dural)<br />
podendo ser necessário transfusão de sangue, face ao risco de complicações per<br />
operatórias, tipo choque hipovolêmico e infecções” (sic). Em que pese a falta de<br />
precisão na indicação da terapia transfusional, foi concedida liminarmente uma<br />
autorização judicial para realizá-la. Não obstante, a cirurgia foi concretizada sem<br />
a necessidade de utilização de sangue, tendo a paciente se recuperado e recebido<br />
alta hospitalar.<br />
O segundo caso de que tomamos conhecimento retrata a situação do<br />
paciente R. E. A. D. S., com 27 anos de idade, advogado. O paciente internou-se<br />
para ser submetido a uma cirurgia visando ao tratamento de um problema<br />
intestinal chamado “Doença de Crohn”. A cirurgia foi feita com êxito sem o uso<br />
de sangue. No pós-operatório, porém, surgiu uma fístula no local da incisão que,<br />
segundo a equipe médica, precisaria ser removida por meio de novo<br />
procedimento cirúrgico, desta feita, segundo os facultativos, com a realização de<br />
transfusões. O chefe da equipe médica ingressou então com um requerimento<br />
em juízo, no qual se autorizou o procedimento por meio da antecipação da<br />
tutela, concedida inaudita altera pars. (Processo n.º 1.092/99, 4.ª Vara Cível da<br />
Comarca de Marília, SP). Inconformado com a decisão judicial, o paciente<br />
transferiu-se para outro nosocômio, onde recebeu tratamento sem a necessidade<br />
de transfusões sangüíneas, tendo boa convalescença.<br />
4 Por estranho que possa parecer, a referida ação cautelar teve o pedido de liminar apreciado pelo juiz da 7.ª Vara Criminal,<br />
que se encontrava de plantão na ocasião, e continuou tramitando naquela vara.<br />
159
Outra ocorrência, com resultado semelhante, diz respeito ao paciente<br />
R. C. G., com 50 anos de idade, internado em um hospital com o diagnóstico de<br />
varizes esofágicas e quadro de hemorragia digestiva alta, com hipotensão<br />
ortostática e taquicardia reflexa. Por motivos de convicções religiosas, o<br />
paciente solicitou tratamento médico isento de sangue. Discordando do<br />
posicionamento do paciente, o nosocômio ajuizou uma ação cautelar inominada,<br />
obtendo liminar inaudita altera pars autorizadora da hemotransfusão. Ao tomar<br />
conhecimento da decisão, o paciente abandonou o hospital, mesmo sem alta<br />
médica, partindo em busca de tratamento médico compatível com seus mais<br />
profundos ideais. Foi tratado em outra instituição hospitalar, sem a necessidade<br />
de transfusões de sangue, com recuperação plena. No mérito, a ação foi julgada<br />
improcedente, porquanto restou evidenciado que o paciente não recusava<br />
tratamento médico necessário, mas tão-somente desejava ser tratado em<br />
harmonia com seus valores pessoais. Eis alguns trechos da sentença:<br />
“Inconforma -se que um médico, quer por preconceito religioso, quer por<br />
limitação profissional, venha a juízo requerer autorização judicial para violar<br />
direitos individuais consagrados, com base em um atestado incompleto, com o<br />
claro objetivo de justificar o iminente risco de vida, tão iminente que o paciente<br />
ainda está vivo, a par de não ter sido procedida a transfusão sangüínea [...]. O<br />
direito ao tratamento há de abranger a integridade da pessoa do doente,<br />
observando-se os aspectos religiosos, jurídicos, intelectuais e físicos.” (Processo<br />
n.º 01193306956, 16.ª Vara Cível de Porto Alegre, RS). 5<br />
Desfecho diverso ocorreu com J. L. T., de 39 anos, acometida de “Lúpus<br />
Eritematoso Sistêmico”. A paciente informou ao seu médico assistente,<br />
verbalmente e por escrito, que aceitava qualquer tratamento médico, exceto<br />
hemotransfusões, invocando suas convicções religiosas. O facultativo ingressou<br />
com uma ação cautelar requerendo a concessão de liminar que autorizasse o uso<br />
da terapia objetada pela paciente, supostamente necessária para salvar-lhe a vida<br />
(Processo n.º 00100014613-8, 2.ª Vara Cível da Comarca de Natal, RN). A<br />
liminar foi concedida em 12 de outubro de 2000 pela juíza plantonista sob o<br />
fundamento de que “o Estado tem obrigação de preservar a vida das pessoas,<br />
bem supremo.” Alicerçou seu entendimento no art. 5.º, caput, da Constituição<br />
Federal, que garante “a inviolabilidade do direi to à vida”. Cumprida a liminar, a<br />
paciente evoluiu a óbito na manhã do dia 16 de outubro de 2000.<br />
Fato semelhante ocorreu com a paciente S. M. A., de 23 anos de<br />
idade, que após ser submetida a tratamento para trombose com um<br />
medicamento anticoagulante, começou a apresentar hemorragias diversas,<br />
com conseqüente anemia. Hospitalizada, solicitou terapia sem o<br />
5 O hospital interpôs apelação da decisão, à qual foi negado provimento (Apelação Cível n.º 595.000.373, julgada pela 6.ª<br />
Câmara Cível do TJRS, Rel. Des. Sérgio Gischkow Pereira, em 28.03.1995, publicado na RJTJRS 171, p. 384 et seq.).<br />
160<br />
uso de transfusões de sangue. Um dos membros de sua família, porém,<br />
ingressou em juízo, na data de 15 de agosto de 1999, requerendo alvará judicial<br />
determinando fosse procedida a transfusão (Processo n.º 1.579/99, 3.ª Vara<br />
Cível da Comarca de Presidente Prudente, SP). Deferido imediatamente o<br />
pedido e cumprida a ordem judicial, a paciente veio a falecer poucas horas<br />
depois de receber a transfusão.<br />
Encontra-se também registrado um caso envolvendo o paciente J. R. B.,<br />
de 74 anos, com insuficiência renal crônica. Submetendo-se a sessões de<br />
hemodiálise, o paciente teve queda nos seus níveis de hemoglobina. Foi<br />
internado às pressas, solicitando a utilização de quaisquer procedimentos<br />
médicos que não envolvessem o uso de sangue. A equipe médica estava<br />
decidida a agir em harmonia com a vontade do paciente, não lhe aplicando<br />
hemoderivados, quando um de seus filhos conseguiu uma liminar, determinando<br />
a transfusão. (Processo n.º 331/99, 3.ª Vara de Família da Comarca de Feira de<br />
Santana, BA). O paciente morreu logo após a realização do procedimento<br />
transfusional.<br />
Outra situação envolveu a paciente adulta A. R. H. A., internada para a<br />
realização de um parto cesariano. Após a cesárea sofreu hemorragia, motivando<br />
a equipe médica a prescrever a realização de transfusões sangüíneas, visando<br />
tratar o quadro anêmico no qual se encontrava. Consciente, requereu que lhe<br />
fossem aplicados substitutivos do sangue, pedido que não foi atendido pelo<br />
hospital. Este, ao contrário, interpôs ação cautelar inominada (Processo n.º<br />
1.327/00, 2.ª Vara Cível da Comarca de Caçapava, SP), obtendo liminar que<br />
autorizou a terapêutica transfusional. Cumprida a decisão judicial, com a<br />
administração de oito transfusões de sangue, a paciente faleceu.<br />
Situação concreta similar foi relatada pelo Juiz de Direito Artur Arnildo<br />
Ludwig, em artigo publicado na revista Direito em Debate 6 . Estando de plantão<br />
em 10 de maio de 1992, foi consultado por um médico atendente do Hospital<br />
Conceição, em Porto Alegre, RS, que indagava como proceder diante da recusa<br />
de uma paciente em receber transfusão de sangue. Tratava-se de M. C. L. F., de<br />
19 anos de idade, casada, que fora transferida para a UTI daquele nosocômio,<br />
com diagnóstico de septicemia causada por complicações decorrentes de uma<br />
operação cesariana. O magistrado pronunciou-se favoravelmente à realização da<br />
transfusão mesmo contra a vontade da paciente, na premissa de salvar-lhe a<br />
vida. Procedeu-se à transfusão de quatro unidades de concentrado de hemácias.<br />
Ainda assim, o quadro geral da paciente continuou a piorar, apresentando ela a<br />
primeira parada cárdio-respiratória em 17 de maio de 1992, e falecendo em 26<br />
de junho de 1992. 7<br />
6 Artur Arnildo Ludwig. Opor-se a transfusão de sangue, ante iminente perigo de vida, por motivos religiosos, p. 116-118.<br />
7 Comentando esse caso, Gerson Luiz Carlos Branco suscita importante questionamento referente à responsabilidade do<br />
médico “se realizada a intervenção o resultado morte ocorresse”. (Responsabilidade civil – erro médico, p. 146.) A questão<br />
não é despicienda e tampouco hipotética. De fato, a paciente morreu.<br />
161
Caso com igual desfecho encontra-se relatado por D. J. Kipper e W. S.<br />
Hossne, na revista Bioética, do Conselho Federal de Medicina, da seguinte<br />
forma: “M. P. F., 38 anos, casado, [...] Ao exame físico apresentava-se lúcido,<br />
orientado, hipocorado, taquicardíaco, porém hemodinamicamente estável,<br />
levemente dispnéico e ansioso. Os exames laboratoriais foram compatíveis com<br />
o diagnóstico de leucemia aguda. [...] Logo à admissão ao hospital, o paciente<br />
comunicou à equipe médica que era Testemunha de Jeová e, por isso, recusavase<br />
terminantemente a receber tratamento com sangue ou derivados, [...]<br />
apresentando, inclusive, documento de identificação como pertencente à referida<br />
religião. Sua posição foi apoiada por sua esposa, que também pertencia à mesma<br />
religião. Os demais familiares (sua mãe e irmãos), ao indagarem sobre a<br />
situação, posicionaram-se contrariamente ao paciente e sua esposa quanto à<br />
realização da hemotransfusão, tentando exaustivamente convencer o mesmo a<br />
submeter-se ao tratamento indicado, sem sucesso. [...] Os familiares resolveram<br />
recorrer à Justiça e conseguiram um despacho judicial autorizando o hospital a<br />
realizar a hemotransfusão [...] Por sua vez, o hospital também solicitou liminar<br />
judicial autorizando a realização dos procedimentos, após consulta ao CRM-DF.<br />
Cerca de 24 horas após a admissão, o paciente foi submetido à transfusão de<br />
plaquetas e sangue, sob efeito de sedativos. [...] A despeito das hemotransfusões<br />
realizadas, houve piora do quadro e o paciente evoluiu para óbito [...]”. 8<br />
Os casos encontrados realmente nos induzem a sérias reflexões. Em sua<br />
totalidade, os pacientes envolvidos não desejavam dispor da própria vida.<br />
Queriam viver, tanto que de forma geral buscaram socorro médico por sua<br />
própria iniciativa. Sobre o assunto, comenta o emérito professor Léo Meyer<br />
Coutinho, in verbis: “Pode ser alegado que a recusa à transfusão significa<br />
suicídio. Não é assim. A morte desejada é suicídio, a admissível sem desejá-la,<br />
não. A Testemunha de Jeová não deseja a morte, mas sim que sejam utilizados<br />
todos os meios para impedi-la, excluída a transfusão de sangue.” 9<br />
Diante disso, concordamos com Maria Celina Bodin de Moraes, quando<br />
cita o último caso relatado como exemplo de uma “situação em que a liberdade<br />
de crença deveria ser integralmente garantida”. Comentando acerca desta e d e<br />
outras questões correlatas, a autora conclui: “O respeito à pessoa humana, única<br />
em sua individualidade, mas necessariamente solidária da comunidade em que<br />
se encontra inserida, resta talvez como único princípio de coerência possível em<br />
uma democracia humanista, e que, confia-se, um dia venha a ter alcance<br />
universal.” 10 Do mesmo modo, analisando o caso relatado na revista Bioética,<br />
Maria T. M. Pacheco observou: “As decisões de tratamento de saúde<br />
envolvem muito mais do que preocupações meramente médicas. Quanto a<br />
8 Délio José Kipper; William Saad Hossne. Caso clínico, p. 97.<br />
9 Léo Meyer Coutinho. Aspectos éticos-legais do tratamento médico sem transfusão, p. 87.<br />
10 Maria Celina Bodim de Moraes. Constituição e direito civil: tendências, p. 47-63.<br />
162<br />
decisões sobre o que deve ser feito com referência ao corpo de uma pessoa, é o<br />
paciente, e não a opinião pública, a classe médica, ou algum juiz, que deve<br />
tomar a decisão altamente subjetiva, baseada em valores morais, sobre qual a<br />
forma de tratamento ‘melhor’ ou ‘certa’. Ao tomar decisões sobre tratamentos<br />
de saúde, não deve haver dúvida de que são os valores do paciente que devem<br />
determinar quais os riscos e benefícios que valem a pena ser tomados.” 11<br />
3. JURISPRUDÊNCIA INTER<strong>NA</strong>CIO<strong>NA</strong>L<br />
Após analisar uma série de casos ocorridos na Argentina, nos quais os<br />
juízes autorizaram os médicos a imporem a transfusão contra a vontade do<br />
paciente, Oscar Ernesto Garay conclui dizendo: “Só me resta destacar a<br />
futilidade destas decisões na prática. Cayetano, que podia ter sido tratado com<br />
terapias alternativas, foi transfundido à força, e ficou afetado psicologicamente.<br />
Natalia, apesar de que o juiz ordenou transfundi-la para salvar a sua vida, foi<br />
tratada com terapias alternativas, e sarou. Beatriz opôs tanta resistência que, não<br />
obstante a decisão, não conseguiram transfundi-la, e foi salva com alternativas.<br />
Olga não teve essa sorte: foi transfundida à força, e faleceu. Víctor Hugo,<br />
transfundido à força, quase morre por causa do edema pulmonar resultante.<br />
Rosa, apesar da decisão, foi operada com êxito em outro hospital, sem<br />
transfusões. Em suma, ou as decisões não serviram para nada, ou só trouxeram<br />
mais problemas.” 12<br />
Semelhante caso, conhecido como “Bahamondez”, foi levado à Suprema<br />
Corte de Justiça da Argentina. Salienta Rabinovich-Berkman 13 que, embora ao<br />
tempo do julgamento o paciente já tivesse se recuperado sem a necessidade de<br />
receber sangue, sua importância como precedente tornou-se enorme, não só pela<br />
claridade de seus conceitos, como por provir do Supremo Tribunal daquele país.<br />
Analisando o art. 19 da Lei argentina n.º 17.132, a qual impõe aos médicos o<br />
dever de respeitar a vontade do paciente quanto à sua negativa de tratar-se ou<br />
internar-se, decidiu aquele sodalício que “a estrita interpretação da mencio nada<br />
disposição legal afasta toda possibilidade de submeter uma pessoa maior e<br />
11 Délio José Kipper; William Saad Hossne (Org.). Caso clínico, p. 104.<br />
12<br />
Oscar Ernesto Garay. Código de derecho médico, p.141. Tradução livre do autor do trecho original a seguir transcrito:<br />
“Sólo me resta destacar la futilidad de estos fallos en la práctica. Cayetano, que pudo haber sido tratado con terapias<br />
alternativas, fue transfundido por la fuerza, y ha quedado afectado psicológicamente. Natalia, a pesar de que el juez ordenó<br />
transfundirla para salvar su vida, se trató con terapias alternativas, y sanó. Beatriz opuso tal resistencia que, maguer el fallo,<br />
no pudieron transfundirla, y se salvó con alternativas. Olga no tuvo esa suerte: fue transfundida por la fuerza, e igual falleció.<br />
Víctor Hugo, transfundido por la fuerza, casi muere del edema pulmonar resultante. Rosa, a pesar del fallo, fue operada<br />
exitosamente en otro sanatorio, sin transfusiones. En suma, o bien los fallos no sirvieron para nada, o bien sólo trajeron más<br />
problemas.”<br />
13 Ricardo D. Rabinovich-Berkman. Responsabilidad del médico, p. 79-80.<br />
163
capaz a qualquer intervenção em seu próprio corpo sem o seu consentimento”.<br />
Assentou adicionalmente que sob o ângulo constitucional não seria justificada<br />
uma decisão judicial que autorizasse submeter uma pessoa adulta a um<br />
tratamento de saúde contra sua vontade, quando a decisão do indivíduo tivesse<br />
sido feita com pleno discernimento e não afetasse diretamente os direitos de<br />
terceiros, concluindo que “o alicerce da norma consti tucional ‘... é a própria base<br />
da liberdade moderna, ou seja, a autonomia da consciência e a vontade pessoal,<br />
a convicção segundo a qual é exigência elementar da ética que os atos dignos de<br />
méritos se realizem fundamentados na livre e incoercível crença da pessoa nos<br />
valores que o determinam...’.” 14<br />
Conforme bem observado pela ilustre magistrada Christine Santini<br />
Muriel, “é preciso que se diga que, no caso específico dos seguidores [...]<br />
Testemunhas de Jeová, a jurisprudência internacional tem evoluído no sentido<br />
de que se respeite a vontade do paciente independentemente dos riscos dela<br />
decorrentes. Nos Estados Unidos da América, por exemplo, alguns hospitais e<br />
Cortes adotam a teoria de que qualquer paciente adulto que não seja declarado<br />
incapaz tem o direito de recusar um tratamento, não importa quão prejudicial tal<br />
recusa possa ser para sua saúde. Adota-se em regra geral naquele país a teoria da<br />
necessidade do consentimento esclarecido do paciente para a prática de<br />
intervenção médica”. 15<br />
Nesse diapasão, encontramos famosa decisão proferida pela Suprema<br />
Corte do Mississipi: “A norma do consentimento informado repousa sobre o<br />
firme alicerce do respeito deste Estado pelo direito da pessoa de estar livre de<br />
invasões corporais indesejadas, não importa quão bem-intencionadas. O<br />
consentimento informado sugere também um corolário: o paciente deve ser<br />
informado da natureza, dos meios e das prováveis conseqüências do tratamento<br />
proposto, a fim de que ele possa ‘conscientemente’ decidir o que deve fazer —<br />
uma de suas opções sendo a rejeição.” 16<br />
Similarmente, no Canadá deparamo-nos com a seguinte decisão proferida<br />
pela Corte de Apelações: “Um adulto capaz tem de modo geral<br />
14 ARGENTI<strong>NA</strong>. Suprema Corte de Justiça. Processo B. 605 XXII. “Bahamondez, Marcelo s/ medida cautelar.” Decisão de<br />
06 de abril de 1993. Traduzida para o vernáculo por Manoel Antonio Schimidt, tradutor público juramentado, matrícula na<br />
JUCESP n.º 490. Tradução n.º E-35.976/00, Livro n.º 145, 17 de novembro de 2000.<br />
15 Christine Santini Muriel. Aspectos jurídicos das transfusões de sangue, p. 32.<br />
16<br />
Especificamente sobre a motivação religiosa da recusa, assim se pronunciou a Suprema Corte do Mississipi: “Em resumo,<br />
há uma regra válida em nossa lei que proíbe a interferência do Estado, na maioria das circunstâncias, no livre exercício de<br />
religião, principalmente em ações ou conduta negativas por natureza. Essa regra é de dimensões constitucionais — estadual e<br />
federal. O direito que emana da mesma inclui o direito de uma pessoa praticar suas crenças religiosas, aderindo ao ponto de<br />
vista das Testemunhas de Jeová de que as Escrituras proíbem receber sangue de outros. Este direito é cerceado somente por<br />
considerações sobrepujantes de segurança e perigo públicos. Mattie Brown obtém direitos dessa norma, que ela aqui<br />
reivindica. Porque aquilo que ela reivindica está dentro do direito, e não tendo sido demonstrado grande e iminente perigo<br />
público, o assunto se esgota, pois neste Estado nós levamos a sério o direito ao livre exercício de religião.” (ESTADOS<br />
UNIDOS DA AMÉRICA. Suprema Corte do Mississipi. Decisão de 30 de outubro de 1985. Caso Mattie Brown. 478<br />
Southern Reporter, 2d. Series, 1986, p. 1033-1042. Traduzida do inglês para o vernáculo por Manoel Antonio Schimidt,<br />
tradutor público juramentado, matrícula na JUCESP n.º 490. Tradução n.º I-50.524/00, Livro n.º 237, 11 de setembro de<br />
2000.)<br />
164<br />
o direito de recusar um tratamento específico ou todo tratamento, ou selecionar<br />
uma forma alternativa de tratamento, ainda que a decisão possa envolver riscos<br />
tão sérios quanto a morte e possa parecer equivocada aos olhos da profissão<br />
médica ou da comunidade. Independentemente da opinião do médico, é o<br />
paciente que tem a palavra final quanto a submeter-se ao tratamento. Embora<br />
numa emergência o conceito de iminente perigo de vida possa proteger o médico<br />
que age sem consentimento, ele não está livre para desconsiderar as instruções<br />
antecipadas de um paciente.” 17<br />
No mesmo sentido, há decisão oriunda do Japão, prolatada pelo Tribunal<br />
Superior de Justiça de Tóquio: “No caso em tela, o propósito dos recorrentes de<br />
realizar uma cirurgia adequada, condizente com o padrão de serviço médico,<br />
para retirar o tumor do fígado de Misae, pode ser considerado um<br />
comportamento natural de um médico que se dedica ao trabalho de cuidar da<br />
vida e da saúde das pessoas. Porém, quando o paciente manifesta claramente a<br />
vontade de rejeitar as práticas médicas que envolvem a transfusão de sangue,<br />
pelo fato de a transfusão ir contra a sua convicção religiosa, o direito de tomar<br />
tal decisão deverá ser respeitado como um componente do direito pessoal.” 18<br />
4. OS RISCOS TRANSFUSIO<strong>NA</strong>IS<br />
Tratados de medicina em geral indicam que as hemotransfusões envolvem<br />
riscos sérios, às vezes letais, para os pacientes submetidos a tal forma de<br />
tratamento médico. A pesquisa na moderna literatura médica expõe o<br />
erro de presumir que a transfusão de sangue seja sempre uma terapia<br />
que “salva a vida”. Ela também pode reduzir a probabilidade<br />
17 CA<strong>NA</strong>DÁ. Corte de Apelação. Decisão de 30 de março de 1990. Caso Malette v. Shulman et al. Court of Appeal, Robins,<br />
Catzman and Carthy JJ.A., Ontario Reports 72 O.R. (2d) p. 417-435. Traduzida do inglês para o vernáculo por Manoel<br />
Antonio Schimidt, tradutor público juramentado, matrícula na JUCESP n.º 490. Tradução n.º I-51420/00, Livro n.º 237, 04 de<br />
setembro de 2000.<br />
18 JAPÃO. Tribunal Superior de Justiça de Tóquio. Processo n.º 1.343/97. Decisão de 09 de fevereiro de 1998. Traduzida do<br />
japonês para o vernáculo por Julia Hoçoya Sassaki, tradudora pública juramentada, matrícula na JUCESP n.º 510. Tradução<br />
n.º 24.905, Livro 112, 20 de outubro de 2000.<br />
165
de o paciente continuar vivo. 19 Em recente e conceituado trabalho científico,<br />
Hébert et al. comprovaram uma correlação direta, estatisticamente significativa,<br />
entre as transfusões sangüíneas e a mortalidade de pacientes graves internados<br />
em unidades de terapia intensiva. 20<br />
Os efeitos adversos das transfusões podem ser classificados em duas<br />
categorias: primeiro, as doenças infecciosas transmitidas pelo sangue ou por<br />
hemoderivados; segundo, as chamadas reações transfusionais, que podem ser de<br />
natureza imunológica, imediatas ou tardias, e não imunológicas, como reações<br />
febris ou reações hemolíticas.<br />
Alguns exemplos de doenças infecciosas e parasitárias, transmitidas por<br />
transfusões de sangue ou hemoderivados, que podem ser muito graves ou até<br />
mesmo fatais, são: a AIDS (sigla, em inglês, para “síndrome da<br />
imunodeficiência adquirida”, causada pelo vírus HIV), algumas formas de<br />
hepatites virais, como as causadas pelos vírus B ou C, a tripanossomíase<br />
(Doença de Chagas), a malária, a citomegalovirose e as infecções produzidas<br />
pelos vírus de Epstein-Barr, HTLV-I e HTLV-II (vírus da leucemia e linfoma de<br />
células T humano) e por outros protozoários e bactérias. 21<br />
Mollison, Engelfriet e Contreras, na consagrada obra Blood Transfusion in<br />
Clinical Medicine, declaram que “a maioria das mortes causadas por transfusão<br />
de sangue são devidas à transmissão de vírus, bactérias ou protozoários.” 22 E<br />
acrescentam: “Testes apropriados para exames sistemáticos das unidades de<br />
sangue doado estão disponíveis para a maioria dos agentes infecciosos capazes<br />
de causar significativa morbidade nos receptores; porém, a maioria dos testes<br />
não detectam todos os doadores infectados.” 23<br />
Acrescente-se à lista outros riscos e complicações relacionados com a<br />
terapêutica transfusional, tais como, erros humanos operacionais<br />
19 James Isbister, que é chefe do Departamento de Hematologia do Hospital Real de North Shore, Sídnei, Austrália, leciona<br />
que “a equação risco/benefício para as transfusões de sangue raramente é considerada de forma perita e científica como seria<br />
com as outras formas de tratamento médico. [...] A transfusão era anteriormente vista como dádiva da vida, mas as posições<br />
se inverteram e a percepção geral agora é de que [...] evitar transfusões pode ser a dádiva da vida.” No original, em inglês,<br />
lemos: “The risk/benefit equation for blood transfusion is rarely addressed in as knowledgeable and scientific a manner as it<br />
would be with other forms of medical therapy. [...] A blood transfusion was previously seen as the gift of life, but the tables<br />
have been turned and the general perception now is that [...] the avoiding of transfusion may be the gift of life.” (James<br />
Isbister. Why haven’t we learnt our lesson?, p. 139).<br />
20<br />
Paul C. Hébert et al. A multicenter, randomized, controlled clinical trial of transfusion requirements in critical care, p. 409-<br />
417.<br />
21 Nelson Hamerschlak; Jacyr Pasternak. Doenças Transmissíveis por Transfusão, p. 13-46.<br />
22<br />
P. L. Mollison; C. P. Engelfriet; Marcela Contreras. Blood transfusion in clinical medicine, p. 710. Tradução livre, sendo<br />
que no original assim consta: “Most deaths caused by blood transfusion are due to the transmission of viruses, bact eria or<br />
protozoa.”<br />
23 Ibid. Tradução livre. No original, lemos: “Tests suitable for mass screening of blood donations are available for most of the<br />
infectious agents capable of causing significant morbidity in recipients; however, most tests do not detect all infectious<br />
donors.”<br />
166<br />
(e.g., transfusão de tipagem errada do sangue) e a imunomodulação, i.e., a<br />
supressão do sistema imunológico do paciente, provocando aumento das<br />
chances de contrair infecções pós-operatórias e de recidiva de tumores.<br />
Concordemente, Roger Y. Dodd, chefe do Laboratório de Doenças<br />
Transmissíveis, da Cruz Vermelha Americana, comenta: “Atualmente, o único<br />
meio de assegurar a completa ausência de risco é evitar totalmente as<br />
transfusões.” 24<br />
5. ALTER<strong>NA</strong>TIVAS MÉDICAS ÀS TRANSFUSÕES <strong>DE</strong> SANGUE<br />
Dentre os poucos autores da área jurídica que se propuseram a enfrentar o<br />
tema acerca dos riscos transfusionais de modo mais abrangente, encontramos<br />
Artur Marques da Silva. Em brilhante artigo no qual trata da responsabilidade<br />
civil dos médicos nas transfusões de sangue, o insigne autor, após alistar uma<br />
série de perigos e complicações associadas ao uso da hemoterapia, conclui<br />
dizendo: “É incontornável que todo o esforço médico deve ser empreendido para<br />
que se evite o procedimento inseguro de uma transfusão.” 25<br />
O grande óbice para atingir-se essa meta plenamente, até algum tempo<br />
atrás, era a escassez de alternativas médicas às transfusões. Como salienta<br />
Rabinovich-Berkman: “Se a transfusão era perigosa, mas insubstituível,<br />
não havia outro remédio senão submeter-se a ela. A dicotomia<br />
apresentava-se assim: transfusão ou morte, numa situação de<br />
24<br />
Tradução livre do autor, sendo que no original assim consta: “Currently, the only way to ensure the complete absence of<br />
risk is to avoid transfusion altogether.” (R. Y. Dodd, Will blood products be free of infectious agents? p. 223-224) O autor<br />
explica adicionalmente: “A história tem mostrado que jamais é possível ser complacente com a nossa habilidade de eliminar<br />
as infecções transmitidas por transfusões. Novos desafios continuam a emergir e devem ser tratados assim que se tornam uma<br />
ameaça mensurável ou, preferivelmente, antes disso.” (Ibid., p. 230. Tradução livre. Lê-se no original: “History has shown<br />
that it is never possible to be complacent about our ability to eliminate transfusion-transmitted infection. New challenges<br />
continue to emerge and must be dealt with as, or preferably before, they become a measurable threat.”) Um exemplo do<br />
surgimento de “novos vírus” encontra -se na conceituada revista médica The New England Journal of Medicine, na qual um<br />
dos artigos (Linda E. Prestcott; Peter Simmonds. Global distribution of transfusion-transmitted virus, p. 776-777) relata a<br />
disseminação internacional de um novo vírus denominado “vírus transmitido por transfusão” (“transfusion -transmitted<br />
virus”).<br />
25 Artur Marques da Silva. Responsabilidade civil dos médicos nas transfusões de sangue, p. 120.<br />
167
estado de necessidade”. 26 No entanto, explica o mesmo autor: “[...] nas últimas<br />
décadas a ciência médica desenvolveu técnicas e tratamentos destinados a tornar<br />
possível a cirurgia e o cuidado sem sangue alogênico (de outra pessoa).” 27<br />
Em consonância com as palavras do renomado autor, no fim do século 20<br />
e início do século 21 tem-se presenciado significativo avanço científico na busca<br />
por seguras alternativas médicas às transfusões de sangue. Em 1997, líamos em<br />
mundialmente conhecida revista de notícias que “cada vez mais pacientes estão<br />
clamando por opções mais seguras e mais eficazes do que as transfusões, seja<br />
por motivos religiosos, seja pelo medo de contrair doenças” 28 .<br />
Estratégias e programas que empregam alternativas às transfusões de<br />
sangue têm tornado possível que pacientes recebam o necessário tratamento<br />
médico e cirúrgico, ao passo que se conservam intactos os valores intelectuais,<br />
morais e religiosos destes pacientes. É o que a Medicina chama de “tratar o<br />
paciente como um todo”, e não apenas o aspecto físico da sua doença 29 .<br />
Não nos cabe, neste trabalho, por sua própria natureza diversa, relacionar<br />
exaustivamente as alternativas hoje empregadas para se evitar transfusões de<br />
sangue. Registre-se apenas que num simpósio médico realizado no Canadá,<br />
em fins da década de 1990, tratou-se extensamente do assunto,<br />
relacionando-se em pormenores as alternativas às transfusões<br />
numa publicação patrocinada pelo Health Canada e pelo Canadian Blood<br />
Agency. Entre as alternativas alistadas, figuram os medicamentos<br />
26<br />
Ricardo D. Rabinovich-Berkman. Responsabilidad del médico, p. 345. Tradução livre do autor, sendo que no original<br />
assim consta: “Si la transfusión era peligrosa, pero irreemplazable, no habí a más remedio que someterse a ella. La dicotomía<br />
se presentaba así: transfusión o muerte, en una suerte de estado de necesidad.”<br />
27<br />
Ibid, p. 348. Tradução livre do autor, sendo que no original assim consta: “[...] en las últimas décadas la ciencia médica<br />
desarrolló técnicas y tratamientos destinados a hacer posible la cirugía y la atención sin sangre alogénica (de otra persona).”<br />
28 John Langone. Bloodless surgery. Time, p. 75. Tradução livre do autor. No original, assim consta: “More and more patients<br />
are clamoring for safer and more effective options than transfusions, either because of religious conviction or fear of<br />
contracting disease.”<br />
29 Edmund D. Pellegrino. La relación entre la autonomía y la integridad en la ética médica, p. 379. “La aparición del con cepto<br />
sociopolítico, legal y moral de autonomía ha influido profundamente en la ética médica. Ha cambiado el centro de la toma de<br />
decisiones del médico al paciente y reorientado la relación del médico con el paciente hacia un acto más abierto y franco, en<br />
el que se respeta más la dignidad del paciente como persona. En general, el auge de la autonomía ha protegido a los pacientes<br />
contra las flagrantes violaciones de su autonomía e integridad, tan ampliamente aceptadas como permisibles por razones<br />
éticas en el pasado.” (Tradução livre do autor: O aparecimento do conceito socio-político, legal e moral da autonomia têm<br />
influenciado profundamente a ética médica. Tem-se mudado o centro da tomada de decisões do médico para o paciente e<br />
reorientado a relação do médico com o paciente para um ato mais aberto e franco, em que se respeita mais a dignidade do<br />
paciente como pessoa. Em geral, o auge da autonomia tem protegido os pacientes contra flagrantes violações da sua<br />
autonomia e integridade, tão amplamente aceitadas como permissíveis por motivos éticos no passado.)<br />
168<br />
que estimulam o corpo do próprio paciente a produzir os diversos tipos de<br />
células sangüíneas (eritropoetina humana recombinante, fatores recombinantes<br />
de estimulação do crescimento de colônias de granulócitos e macrófagos,<br />
interleucina-11 etc.); agentes hemostáticos (ácidos aminocapróico e<br />
tranexâmico, aprotinina, agentes hemostáticos tópicos, adesivos de tecidos,<br />
vitamina K1 etc.); expansores do volume do plasma que não contêm sangue<br />
(colóides e cristalóides) e os chamados substitutos do sangue<br />
(perfluoroquímicos, hemoglobina recombinante e polimerizada etc.).<br />
Acrescente-se aos medicamentos os equipamentos e aparelhos que reduzem o<br />
sangramento ou que recuperam o sangue do próprio paciente durante a cirurgia,<br />
tais como bisturis hemostáticos, dispositivos de recuperação intra-operatória de<br />
sangue autólogo (comumente chamados “cell -savers”) e aparelhos de<br />
monitoração não invasiva de oxigênio que reduzem as perdas ocasionadas por<br />
freqüentes coletas para exames laboratoriais, entre outros. 30<br />
É significativo que muitas de tais técnicas que visam substituir a<br />
utilização da terapia transfusional não têm sido usadas apenas nos chamados<br />
países desenvolvidos, mas em todo o mundo, inclusive no nosso país. À guisa de<br />
exemplificação, relembre-se matéria pertinente escrita no jornal O Estado de<br />
São Paulo, sob o título “Crescem no País as cirurgias sem transfusão”, em que<br />
se afirma que o método pelo qual os facultativos empregam estratégias e<br />
medicamentos para evitar a transfusão de sangue estocado “está sendo adotado<br />
por um número crescente de médicos e de hospitais no Brasil. E deve tornar-se<br />
cada vez mais comum aqui no Brasil.” 31 Isso corrobora o que já fora escrito no<br />
jornal Gazeta Mercantil, sob a manchete “T écnicas simples podem descartar<br />
transfusões de sangue em cirurgias”. O artigo, de 1991, propalava que “três<br />
técnicas simples, bem articuladas num programa integrado, podem transformar<br />
em prática do passado a clássica transfusão de sangue com todos os seus riscos<br />
— e mesmo altos custos, quando se pensa em termos de saúde pública.” 32<br />
30 Hospital Information Services for Jehovah’s Witnesses. Medical Alternatives to Blood Transfusions, p. 57 -88.<br />
31 Roldão Arruda. O Estado de São Paulo, p. A10.<br />
32 Mariluce Moura. Gazeta Mercantil, p. 13.<br />
169
Na virada do século, constatamos na literatura médica relatos sobre<br />
grandes cirurgias cardíacas 33 , neurológicas 34 , ortopédicas 35 , ginecológicas 36 e<br />
mesmo transplantes de fígado 37 , de pulmão 38 e de coração 39 feitas sem a<br />
utilização de sangue alogênico (de bancos de sangue). Antes, o progresso<br />
científico tem patrocinado a utilização de alternativas médicas às transfusões e,<br />
desse modo, permitido tais façanhas, sem prejuízos para os pacientes.<br />
6. ASPECTOS PROCESSUAIS<br />
Diante de todos os fatores apresentados, percebe-se que a complexa e<br />
intrincada problemática sub examine não pode ser considerada de modo por<br />
demais simplista. Além disso, a análise honesta, coerente e imparcial requer<br />
sejam primeiramente afastadas algumas das falsas premissas que com freqüência<br />
têm sido inadvertidamente prestigiadas na abordagem do tema.<br />
A pesquisa revelou que, no esforço de obter um autorização judicial, não<br />
raro, certos médicos têm exagerado a gravidade do quadro clínico do paciente.<br />
Em alguns dos casos investigados, muito embora fosse afirmado na petição<br />
inicial que transfundir o paciente era imprescindível para a<br />
manutenção de sua vida, tal procedimento acabou não sendo<br />
realizado, mostrando-se por fim desnecessário. O enfermo teve sua<br />
saúde restabelecida com a utilização de alternativas médicas sem<br />
33 Cristiano Nicoletti Faber et al. Tratamento cirúrgico de mixoma do coração duplamente recidivado, em paciente<br />
testemunha de Jeová: relato de caso, p. 173: “Por tratar -se de testemunha de Jeová, não recebeu sangue ou hemoderivados<br />
durante todo o tratamento cirúrgico.”<br />
34 Steven J. Schiff; Steven L. Weinstein. Use of recombinant human erythropoietin to avoid blood transfusion in a Jehovah’s<br />
witness requiring hemispherectomy, p. 600. “Despite significant anemia, the child’s hematocrit was sufficiently increased b y<br />
the use of erythropoietin so that a two-stage hemispherectomy could be performed without blood transfusion.” (Tradução<br />
livre do autor: Apesar de severa anemia, o hematócrito da criança foi satisfatoriamente elevado pelo uso de eritropoetina, de<br />
modo que uma hemisferectomia de duas etapas pôde ser feita sem o uso de transfusão de sangue.)<br />
35<br />
P. H. Wittmann; F. W. Wittmann. Total hip replacement surgery without blood transfusion in Jehovah’s Witnesses”, p.<br />
306-307. “Uncemented total hip replacement surgery w ithout blood transfusion is described in 12 Jehovah’s Witnesses and<br />
morbidity is compared with a group who each received 3 units of blood. There were no deaths and all the patients except two,<br />
one from each group, left the hospital within 3 weeks.” (Tradução livre do autor: Descrevem-se cirurgias de substituição total<br />
não-cimentada de quadril, sem transfusão de sangue, em Testemunhas de Jeová, e compara-se a morbidade com um grupo<br />
em que cada paciente recebeu 3 unidades de sangue. Não houve mortes e todos os pacientes, exceto dois, um de cada grupo,<br />
receberam alta hospitalar após 3 semanas.)<br />
36 Mostafa I. Bonakdar et al. Major gynecologic and obstetric surgery in Jehovah’s witnesses, p. 587 -590.<br />
37 O. Detry et al. Liver transplantation in a Jehovah’s witness, p. 1680.<br />
38 John V. Conte; Jonathan B. Orens. Lung transplantation in a Jehovah’s witness, p. 796 -800.<br />
39 Clay M. Burnett et al. Heart transplantation in Jehovah’s witnesses, p. 1430 -1433.<br />
170<br />
sangue. Por outro lado, nas hipóteses em que os pacientes realmente corriam<br />
risco de vida, o procedimento transfusional não foi capaz de salvá-los. Destarte,<br />
já não se pode aceitar o raciocínio simplório de que transfusão é sinônimo de<br />
vida.<br />
Perante esse quadro fático que se nos apresenta, não vemos como deixar<br />
de perscrutar sob a lupa de critérios mais rigorosos as argumentações daqueles<br />
que recorrem ao Judiciário sustentando que a transfusão de sangue é a única<br />
terapia que pode salvar a vida do paciente. Ademais, há que se ter cautela diante<br />
de declarações singelas de que o paciente encontra-se em situação de risco<br />
iminente a exigir com urgência o amparo da tutela jurisdicional. Como advertiu<br />
a ilustre magistrada Christine Santini Muriel, “no caso de recusa do paciente a<br />
respeito de recebimento de transfusão de sangue, deve em primeiro lugar ser<br />
analisada a efetiva existência da necessidade do ato.” 40<br />
Observa-se, com freqüência, por parte de alguns profissionais da área da<br />
saúde, uma tentativa de transferir para o Judiciário o risco de uma decisão<br />
eminentemente médica. Na incerteza sobre a real necessidade e eficácia da<br />
terapia transfusional, imaginam erroneamente estarem eximidos de<br />
responsabilidade pela obtenção de uma liminar judicial. Concordamos, nesse<br />
particular, com a decisão do TJRS: “Não pode o Judiciário estar fornecendo<br />
alvarás para realização de tratamentos médico-hospitalares ou cirúrgicos.<br />
Médicos e hospitais devem assumir os riscos óbvios inerentes à atividade que<br />
exercem, como o assumem todos os profissionais.” (RJTJRS 171/384)<br />
Ocorre que nosso ordenamento jurídico positivo não considera<br />
constrangimento ilegal: “I – a intervenção médica ou cirúrgica, sem o<br />
consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por<br />
iminente perigo de vida; II – a coação exercida para impedir suicídio.” (CP, art.<br />
146, § 3.º, I e II) Em consonância, determina o Código de Ética Médica: “É<br />
vedado ao médico: Art. 46. Efetuar qualquer procedimento médico sem o<br />
esclarecimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu responsável<br />
legal, salvo em iminente perigo de vida.” (CEM, Resolução CFM 1.246/88, art.<br />
46)<br />
Deste modo, a própria busca de autorização judicial, sob o argumento de que<br />
o paciente recusa o único tratamento eficaz para retirá-lo da alegada situação de<br />
iminente perigo de vida, já revela, por si mesma, a desnecessidade do provimento<br />
jurisdicional. Afinal, estivesse o paciente sob morte iminente, imediata, e recusasse<br />
a realização do único tratamento médico apto a salvá-lo, não haveria necessidade<br />
— e nem tempo hábil — para se buscar uma autorização de quem quer que fosse.<br />
Na hipótese em apreço, porém, explicita Rabinovich-Berkman:<br />
“As Testemu nhas de Jeová não buscam sua morte, nem a de seus<br />
filhos. Atualmente, a transfusão de sangue é apenas uma das muitas alternativas<br />
que estão disponíveis. As outras terapias são com freqüência muito menos<br />
perigosas, e sua aplicação é de praxe em todo o mundo desenvolvi-<br />
40 Christine Santini Muriel, Aspectos jurídicos das transfusões de sangue, p. 32.<br />
171
do. As Testemunhas de Jeová somente solicitam ser submetidas a algumas<br />
dessas outras opções.” 41 Sob esse ângulo, não se está debaixo de uma questão de<br />
vida ou morte, de tratamento ou não, mas sim de escolha de tratamento.<br />
Diante desses fatores indagamos se deve o julgador admitir pedidos de<br />
autorização para transfundir um paciente contra sua vontade. Ademais, há que se<br />
questionar especialmente se tais requerimentos devem ser recebidos em sede de<br />
cautelar, vez que se tornam indiscutivelmente satisfativos. Nesse sentido, há que<br />
se perscrutar se não seria mais apropriada a utilização do instituto da<br />
antecipação da tutela; afinal, como bem expressou Luiz Guilherme Marinoni,<br />
“não é mais admissível — após a reforma do Código — que alguém pretenda<br />
propor ação (de cognição) sumária ‘satisfativa’ com base no artigo 798.” 42<br />
Verificando o juiz que a sua decisão terá cunho nitidamente satisfativo, e<br />
mais do que isso, que antecipará uma decisão de mérito, que em regra somente<br />
deveria ocorrer depois de exaurida a apreciação de toda a controvérsia, deve<br />
receber o pleito como um processo de conhecimento e avaliar o pedido liminar à<br />
luz dos requisitos estabelecidos expressamente no artigo 273, caput e inciso I,<br />
do CPC: a) existência de prova inequívoca; b) verossimilhança da alegação; e c)<br />
fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação.<br />
Quanto ao requisito da reversibilidade do provimento antecipado<br />
(CPC, art. 273, §2.º), concordamos, em parte, com Costa Machado,<br />
quando defende que “não faz nenhum se ntido admitir que em situações de<br />
tamanha gravidade a interpretação literal de um dispositivo do CPC<br />
41 Rabinovich-Berkman, Responsabilidad del médico, p. 346. Tradução livre do autor, sendo que no original assim consta:<br />
“Los Testigos de Jehová no buscan su muerte, ni la de sus hijos. Hoy, la transfusión de sangre es sólo una de las muchas<br />
alternativas que se ofrecen. Las otras terapias son a menudo mucho menos riesgosas, y su aplicación es de estilo en todo el<br />
mundo desarrollado. Los Testigos de Jehová sólo solicitan ser sometidos a algunas de esas restantes opciones.”<br />
42 Luiz Guilherme Marinoni, A antecipação da tutela, p. 124-5. No mesmo sentido é a lição de Luiz Orione Neto. Dissecando<br />
os aspectos comuns e os traços distintivos entre a tutela satisfativa e a tutela cautelar, o excelente processualista preconiza<br />
com inequívoca segurança: “Para obviar esse fenômeno das medidas cautelares satisfativas e adaptar o processo civil às<br />
exigências da nossa civilização industrializada e de massa, com autêntica multiplicação de situações de urgência, o legislador<br />
ordinário decidiu arrostá-lo sem rodeios. E o fez através das regras estabelecidas no art. 273 do Código de Processo Civil.<br />
Efetivamente, esse preceito legal veio estabelecer um divisor de águas, alterando substancialmente esse fenômeno. De ora em<br />
diante, as ações cautelares – quer nominadas, quer inominadas – se destinarão exclusivamente a salvaguardar o resultado útil<br />
e eficaz do processo principal, mantendo sua natureza conservativa e assecuratória de direitos; já as pretensões de natureza<br />
satisfativa do direito material somente poderão ser deduzidas na própria ação de conhecimento, através da técnica da tutela<br />
antecipatória”. (Luiz Orione Neto, Tratado das Medidas Cautelares, p. 163-164.)<br />
172<br />
possa ser sobreposto à vida”. 43 Por outro lado, entendemos que, exatamente por<br />
se tratar de proteção a bem de tamanha magnitude, não se pode também deixar<br />
de lado a segurança jurídica (no sentido do acerto da decisão firmada em bases<br />
probatórias sólidas), especialmente quando a experiência demonstra que tais<br />
autorizações baseadas em meras afirmações unilaterais e subjetivas têm-se<br />
revelado, no mínimo, temerárias, vez que não raro produzem mais malefícios do<br />
que benefícios. Nesse sentido, convém lembrar que “o que se entende por justiça<br />
efetiva não é necessariamente justiça mais rápida, mas sim melhor. Por isso, os<br />
procedimentos diferenciados que busquem uma maior efetividade para o<br />
processo devem respeitar os princípios do devido processo legal, sob pena de<br />
criarem maiores injustiças do que benefícios, e também sob pena de violação<br />
constitucional.” 44<br />
Fosse a transfusão sangüínea um procedimento absolutamente inócuo,<br />
talvez a questão se apresentasse como menos controvertida. O insofismável<br />
dilema, contudo, consiste em que a transfusão não é um procedimento isento de<br />
riscos. Além disso, a hemoterapia, qual ramo da medicina, não faz parte de uma<br />
ciência exata. O que constitui iminente risco de vida sob o ponto de vista de um<br />
médico, pode não passar de erro de diagnóstico para outro mais experiente. E no<br />
entanto, pela concessão de liminares inaudita altera pars, subtrai-se do paciente<br />
o direito de obter uma segunda opinião médica, e de optar por uma forma mais<br />
segura de tratamento. 45<br />
Nos casos analisados constata-se que a maioria das liminares foram<br />
concedidas sem a análise mais acurada dos fatos, e sem a verificação mais atenta<br />
de suspeitosos e inexatos documentos anexados no afã de justificar a obtenção<br />
de uma tutela de urgência. Só posteriormente percebeu-se que a falta de<br />
transfusão não constituía real e iminente perigo de vida para o paciente, o qual<br />
realmente poderia ser tratado de outra forma mais segura.<br />
Evidentemente, há situações de real emergência, em que não é possível a<br />
oitiva prévia do paciente, nem a análise mais acurada dos fatos. Ainda assim,<br />
entendemos que o magistrado não deve deferir o pedido caso tome ciência da<br />
expressa manifestação do paciente em oposição à terapia transfusional. No<br />
entanto, em deferindo a medida pleiteada, ao julgador caberá agir com<br />
redobrada cautela, determinando que antes sejam esgotados todos os outros<br />
meios disponíveis de tratamentos médicos sem sangue, e caso a transfusão seja<br />
procedida, que os médicos certifiquem-se da absoluta necessidade e segurança<br />
do procedimento.<br />
43<br />
Antônio Cláudio da Costa Machado. Tutela antecipada, p. 484.<br />
44 Luiz Henrique Boselli de Souza. A efetividade do processo e as tutelas diferenciadas, p. 137.<br />
45 Conforme destacado em artigo publicado na revista Época, “A segunda opinião dissemina -se nos consultórios do país e<br />
confirma ser a melhor garantia contra falsos diagnósticos e erros médicos”. (Daniela M endes et al., Terapia contra a dúvida,<br />
p. 152.)<br />
173
7. A QUESTÃO PELO PRISMA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS<br />
As decisões judiciais autorizadoras de procedimentos hemoterápicos<br />
contra a vontade do paciente têm sido freqüentemente concedidas sob a<br />
fundamentação de que, diante da colisão entre dois direitos fundamentais, de um<br />
lado a liberdade, de outro a vida, esta há que prevalecer, porquanto se trata do<br />
bem maior, indisponível.<br />
O cerne da questão, no entanto, reside no fato de que, na hipótese sub<br />
examine, tais pacientes não estão recusando tratamento médico, nem pretendem<br />
dispor da própria vida, como explicita Carmen Juanatey Dorado: “[...] não se<br />
pode qualificar de ‘suicida’ a conduta da testemunha de Jeová que, ao mesmo<br />
tempo em que se nega a que lhe pratiquem uma transfusão de sangue, está<br />
disposta a submeter-se a qualquer tratamento alternativo para continuar vivendo.<br />
Em tal hipótese, efetivamente, não se pode falar de ‘vontade de morrer’.” 46<br />
Com efeito, não há propriedade em se falar em colisão entre direitos<br />
fundamentais, até porque se tratam de direitos de um mesmo titular, que não<br />
pretende dispor de nenhum deles. Estamos, na realidade, diante daquilo que<br />
Canotilho chama de “concorrência de direitos fundamentai s”, que se dá “quando<br />
um comportamento do mesmo titular preenche os ‘pressupostos de facto’<br />
(‘Tatbestände’) de vários direitos fundamentais” 47 , e não de “colisão de direitos<br />
fundamentais”, em que “o exercício de um direito fundamental por parte do seu<br />
titular colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro<br />
titular” 48 .<br />
De qualquer modo, sendo o direito à vida e o direito à liberdade<br />
protegidos e considerados igualmente invioláveis pela Constituição Federal (CF,<br />
art. 5.º, caput), há que se buscar, sempre que possível, a conciliação de ambos.<br />
Afinal, há que se lembrar que “no direito, como na vida, a suma sabedoria reside<br />
em conciliar, tanto quanto possível, solicitações contraditórias, inspiradas em<br />
interesses opostos e igualmente valiosos, de forma que a satisfação de um deles<br />
não implique o sacrifício total do outro”. 49<br />
46 Carmen Juanatey Dorado. Derecho, suicidio y eutanasia, p. 317. Tradução livre do autor, sendo que no original assim<br />
consta: “[...] no puede calificarse de ‘suicida’ la conducta del testigo de Jehová que al mismo tiempo que se niega a que le<br />
practiquem una tranfusión de sangre está dispuesto a someterse a cualquier tratamiento alternativo para continuar viviendo.<br />
En tal hipótesis, efectivamente, no se puede hablar de ‘voluntad de morir’.”<br />
47 J.J. Gomes Canotilho. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 1189.<br />
48 Ibid., p. 1191.<br />
49 José Carlos Barbosa Moreira. Efetividade do processo e técnica processual, p. 171.<br />
174<br />
Outrossim, utilizando-nos dos ensinamentos de Robert Alexy 50 sobre o<br />
princípio da necessidade e sua relação com o princípio da proporcionalidade,<br />
conforme trazidos por Suzana de Toledo Barros, podemos propor a seguinte<br />
forma de conciliação dos direitos fundamentais. Suponhamos, v.g., que um<br />
paciente portador de insuficiência renal crônica, submetido à hemodiálise,<br />
apresente-se com anemia significativa. Para a consecução do fim F (elevar o<br />
nível de hemoglobina do paciente), exigido por um direito D1 (direito à vida),<br />
existem, pelo menos, dois meios, M1 (transfusão de concentrado de hemácias) e<br />
M2 (aplicação de eritropoetina humana recombinante, hormônio sintético que<br />
estimula a medula óssea do próprio paciente a produzir mais hemácias —<br />
associada a ferro e ácido fólico) 51 , que são igualmente adequados para a<br />
consecução do fim F. O meio M2 (eritropoetina, ferro e ácido fólico) afeta<br />
menos intensamente o titular de D1, já que M1 (transfusão de sangue) restringe<br />
um outro direito seu, D2 (liberdade de consciência e de crença). Para atingir F e<br />
realizar D1 seria indiferente se eleja M1 ou M2, mas para o titular dos direitos<br />
D1 e D2 só M2 (tratamento com eritropoetina, ferro e ácido fólico) é exigível.<br />
8. CONCLUSÃO<br />
A presente pesquisa chamou-nos atenção, por um lado, quanto à<br />
recuperação de pacientes tratados com terapias sem o uso de sangue; por outro, a<br />
morte de vários pacientes transfundidos à força, contra sua própria vontade<br />
consciente. A situação apresenta-se tão mais delicada na medida em que,<br />
supostamente, a transfusão teria sido autorizada por via judicial sob o argumento<br />
de que era preciso salvar-lhes a vida, embora tais pacientes tivessem objeções<br />
unicamente ao emprego de tal procedimento terapêutico, aceitando quaisquer<br />
outros. No entanto, não obstante a realização das transfusões, tais pacientes<br />
morreram, quer em decorrência da evolução de sua enfermidade, quer como<br />
resultado das próprias reações transfusionais adversas.<br />
Tais fatos remetem-nos certamente a uma série de reflexões éticas e<br />
jurídicas acerca da validade das transfusões arbitrárias, diante da proteção<br />
constitucional não só à inviolabilidade do direito à vida, mas, igualmente, à<br />
liberdade, inclusive na projeção de liberdade religiosa, bem como da dignidade<br />
da pessoa humana, qual fundamento da República Federativa do Brasil, previsto<br />
no art. 1.º da Constituição Federal, inciso III, que deve permear a interpretação<br />
de toda a Carta Magna.<br />
50<br />
Robert Alexy. Teoría de los derechos fundamentales. Apud Suzana de Toledo Barros. O princípio da proporcionalidade e<br />
o controle de constitucionalidade de leis restritivas de direitos fundamentais, p. 80-81.<br />
51 João E. Romão Junior, Uso da eritropoetina recombinante humana no tratamento da anemia do paciente em hemodiálise:<br />
um estudo multicêntrico, p. 57-61; Der-Cherng Tarng et al., Erythropoietin hyporesponsiveness: from iron deficiency to iron<br />
overload, p. S-107-118.<br />
175
O respeitado professor de Medicina Legal, Genival Veloso França,<br />
preconizava em seu livro Direito Médico que, em situações de iminente risco de<br />
vida, o médico deveria realizar a transfusão mesmo contra a vontade do<br />
paciente. 52 Mais recentemente, porém, advertiu com a seguinte ressalva: “D eve<br />
o médico entender, nos casos das Testemunhas de Jeová, que em muitas<br />
ocasiões o sangue pode ser substituído por outros fluidos ou até não ser usado e,<br />
por isso, poderá desenvolver uma forma de tratamento que não sacrifique sua<br />
vida nem avilte sua dignidade. Não esquecer ainda que esses adeptos não<br />
abriram mão da vida e não desacreditam na medicina, mas tão-só, em face de<br />
sua crença religiosa, solicitam abster-se de sangue ”. 53 Nesse sentido, indagamos<br />
se já não é chegada a hora do Judiciário brasileiro, bem como da classe médica<br />
como um todo, reverem igualmente seu posicionamento. Afinal, como bem<br />
observado pelo ilustre professor de bioética Elio Sgreccia, “é preciso ter sempre<br />
presente que a vida e a saúde são confiadas prioritariamente à responsabilidade<br />
do paciente e que o médico não tem sobre o paciente outros direitos superiores<br />
ao que o próprio paciente tem a respeito de si mesmo.” 54<br />
52 Genival Veloso de França, Direito médico, p. 205-208.<br />
53 Idem, Medicina legal, p. 149.<br />
54 Elio Sgreccia, Manual de bioética, p. 161.<br />
176<br />
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