You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
Disse não com a cabeça. Ao sacudi-la, as i<strong>de</strong>ias pareceram ficar um pouco mais claras.<br />
– Estou perturbado – disse. – Tem qualquer coisa a ver com os meus pais. Chatices.<br />
Não é grave. Mas eu... eu preciso <strong>de</strong> falar. E não consigo.<br />
Parecia atordoada.<br />
– Queres um copo <strong>de</strong> leite? – perguntou.<br />
– Jantei agora mesmo.<br />
– Chá <strong>de</strong> camomila – disse ela.<br />
– Numa chávena voadora.<br />
– Sobe.<br />
– Não quero interromper-te. Olha: posso sentar-me a ouvir-te praticar? Chateava-te<br />
muito?<br />
Hesitou e <strong>de</strong>pois disse:<br />
– Não. Queres mesmo? É chato.<br />
Fomos para a cozinha e ela arranjou-me uma chávena <strong>de</strong> chá extremamente esquisito,<br />
e a seguir subimos para aquele quarto.<br />
Que quarto! Todas as pare<strong>de</strong>s da casa eram escuras e tinham um ar vazio, calmo e<br />
severo como a senhora Field, mas este quarto era ainda pior. Tinha um tapete gasto até<br />
ao fio, ou lá como se chama, <strong>de</strong> tal modo que mal se viam as cores que lá <strong>de</strong>viam ter<br />
estado, um piano <strong>de</strong> cauda, três suportes para pautas e uma ca<strong>de</strong>ira. Havia pilhas <strong>de</strong><br />
partituras <strong>de</strong>baixo das janelas. Sentei-me no tapete.<br />
– Po<strong>de</strong>s sentar-te na ca<strong>de</strong>ira – disse ela –, eu fico <strong>de</strong> pé a praticar.<br />
– Estou bem aqui.<br />
– OK – disse ela –, isto aqui é Bach. Tenho uma audição no estúdio <strong>de</strong> gravação na<br />
semana que vem.<br />
Tirou o violino <strong>de</strong> cima do piano e encaixou-o <strong>de</strong>baixo do queixo com aquele ar típico<br />
dos violinistas – só que, pelo tamanho, parecia-me mais uma viola que um violino –, passou<br />
uma resina na corda e, fixando a partitura, começou a tocar.<br />
Não foi aquilo que esperamos <strong>de</strong> um concerto. Por um lado, o quarto era tão alto e nu<br />
que tornava os sons mais altos, fortes, <strong>de</strong> tal modo que pareciam ressoar <strong>de</strong>ntro dos<br />
nossos ossos (mais tar<strong>de</strong>, explicou-me que era o sítio i<strong>de</strong>al para praticar porque assim<br />
conseguia aperceber-se da mais pequena falha). Ela fazia caretas e resmungava muito,<br />
enquanto tocava e tornava a tocar o mesmo trecho vezes sem conta. Aquela corrida<br />
estrepitosa que estava a tocar quando cheguei <strong>de</strong>ve tê-la feito <strong>de</strong>z ou quinze vezes<br />
seguidas, por vezes continuando o trecho, outras vezes voltando atrás, sempre a<br />
recomeçar. E <strong>de</strong> cada vez era ligeiramente diferente. Até que, finalmente, saiu igual duas<br />
vezes seguidas. Tinha conseguido. Logo a seguir continuou. E quando tocou todo o<br />
movimento, aquele trecho soou igual pela terceira vez. Já estava. Porreiro.<br />
Nunca antes me tinha passado pela cabeça que a música e o raciocínio têm tanto em<br />
comum. De facto, po<strong>de</strong> dizer-se que a música é um outro modo <strong>de</strong> pensar, ou talvez<br />
pensar seja uma outra forma <strong>de</strong> música.<br />
Fala-se da paciência que os cientistas têm <strong>de</strong> ter, <strong>de</strong> como o trabalho científico é<br />
noventa e nove por cento <strong>de</strong> trabalho penoso e repetitivo, rigor e garantia <strong>de</strong> processos<br />
verificáveis. E é. Tivera um óptimo professor <strong>de</strong> Biologia no ano passado, a Dra. Capswell,<br />
e tínhamos trabalhado no laboratório <strong>de</strong>pois das aulas no último período. Investigávamos<br />
as bactérias. E era exactamente aquilo que a Natalie fazia com o violino. Tudo tinha <strong>de</strong> ser<br />
perfeito. Não se sabia o que esperar, até se ter conseguido acertar: só nessa altura é que<br />
se <strong>de</strong>scobria. A Dra. Capswell e eu tentávamos confirmar uma experiência relatada na<br />
revista Science do ano anterior. Natalie tentava confirmar o que Bach havia tocado na<br />
capela <strong>de</strong> uma congregação alemã há duzentos e cinquenta anos atrás. Se o conseguisse<br />
rigorosamente, então revelava-se verda<strong>de</strong>iro. A verda<strong>de</strong>.