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Tão Longe de Sítio Nenhum

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não tentar substituir o carro tão cedo. E o filho ali <strong>de</strong>itado, a dizer: «Pois, claro, tudo<br />

bem.»<br />

Tive <strong>de</strong> ficar em casa cerca <strong>de</strong> duas semanas, porque o médico dizia que enquanto<br />

houvesse interferências na visão seria mais sensato. Era uma chatice porque nem sequer<br />

podia ler, via a imagem a dobrar, mas não me importei. Eu nem queria ler.<br />

Uma vez a Natalie apareceu, na sexta-feira seguinte ao aci<strong>de</strong>nte, acho. A mãe veio cá<br />

acima e eu disse que não queria ver ninguém. A Natalie não voltou. No fim-<strong>de</strong>-semana<br />

apareceram o Jason e o Mike e ficaram por ali a contar anedotas. Ficaram <strong>de</strong>sapontados<br />

porque eu não lhes sabia contar nada do aci<strong>de</strong>nte.<br />

Quando regressei à escola não tive qualquer problema em evitar a Natalie. Nunca fora<br />

verda<strong>de</strong>iramente fácil encontrá-la, com o horário apertado que ela tinha. Tudo o que<br />

precisava <strong>de</strong> fazer era sair tar<strong>de</strong> para o almoço e não estar às duas e meia na paragem do<br />

autocarro, e nunca mais a tornei a ver.<br />

Eu <strong>de</strong>via ser capaz <strong>de</strong> explicar porque é que me portava assim, a razão por que a não<br />

queria ver, mas não sou capaz. Acho que, parcialmente, as razões são óbvias. Estava<br />

envergonhado e intimidado. E também estava ressentido e frustrado e tudo o mais. Mas<br />

isto são raciocínios e sentimentos e eu, <strong>de</strong> facto, não raciocinava nem sentia quase nada.<br />

Nada me parecia que valesse a pena. O principal parecia-me ser evitar a dor. Não servia<br />

<strong>de</strong> nada tentar entrar em contacto. Eu estava só. Sempre estivera. Durante um tempo,<br />

com ela, conseguira fingir que não, mas estava, e finalmente tinha conseguido prová-lo,<br />

até a ela, levara-a a virar-me as costas, como todos os outros. E isso realmente não<br />

interessava. Se estava só, tudo bem, era melhor aceitar, <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> fingir. Eu era o tipo <strong>de</strong><br />

pessoa que não se encaixa neste tipo <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>. Esperar que alguém gostasse <strong>de</strong> mim<br />

era estúpido. Porque haveriam <strong>de</strong> gostar? Pelo meu gran<strong>de</strong> cérebro? O meu gran<strong>de</strong>,<br />

inteligente cérebro com a comoção? Ninguém aprecia cérebros. Cérebros são coisas<br />

muito feias. Algumas pessoas gostam <strong>de</strong>les fritos em manteiga, mas muito poucos<br />

americanos.<br />

Para mim, o único lugar agora era Thorn. Thorn não tinha um gran<strong>de</strong> governo no<br />

sentido vulgar da palavra, mas tinha algumas instituições para on<strong>de</strong> as pessoas podiam ir<br />

se quisessem. Uma <strong>de</strong>las chamava-se Escolea. Estava construída a meio da subida <strong>de</strong><br />

uma das mais altas montanhas, no centro do país. Tinha uma biblioteca colossal,<br />

laboratório, equipamento científico básico e quantida<strong>de</strong>s enormes <strong>de</strong> salas e estúdios.<br />

Qualquer pessoa podia ir para lá apren<strong>de</strong>r ou ensinar, como resultasse melhor, e<br />

trabalhar em investigação só ou em grupo, como preferisse. À noite todos se reuniam, se<br />

lhes apetecesse, num salão enorme, com várias lareiras, e falavam sobre genética,<br />

história, investigação sobre o sono, polímeros e a ida<strong>de</strong> do universo. Se a alguém não<br />

agradasse o <strong>de</strong>bate numa das lareiras, podia afastar-se e ir para junto <strong>de</strong> outra. Em Thorn<br />

as noites eram sempre frias. Lá no alto das montanhas não há nevoeiro, mas o vento<br />

sopra constantemente.<br />

Mas agora Thorn ficara para trás. Nunca mais lá voltaria. Não havia um caminho para<br />

casa. Finalmente conseguia ser realista sobre mim próprio. Tinha <strong>de</strong> terminar o liceu e<br />

<strong>de</strong>pois, no próximo ano, entrar na faculda<strong>de</strong>, e no seguinte e no outro e por aí fora.<br />

Conseguia aguentar isso. Afinal eu era bem mais forte do que pensava. Forte <strong>de</strong> mais.<br />

Homem <strong>de</strong> aço. Saíra praticamente in<strong>de</strong>mne dum carro completamente <strong>de</strong>sfeito. Não<br />

conseguia ver qualquer razão para ir em frente, acabar o liceu, fazer o curso na faculda<strong>de</strong><br />

e <strong>de</strong>pois arranjar um emprego para viver mais cinquenta anos – mas o programa parecia<br />

ser mesmo esse. Um homem <strong>de</strong> aço faz aquilo para que é programado.<br />

Não estou a <strong>de</strong>screver o que se passou como <strong>de</strong>via. O que continuo a <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> lado, o<br />

que não sei como dizer, o que nem sequer quero lembrar, é que foi horrível. Todo aquele<br />

tempo, durante semanas, <strong>de</strong> cada vez que acordava <strong>de</strong> manhã e à noite na cama, só me

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