14.06.2013 Views

Tão Longe de Sítio Nenhum

Tão Longe de Sítio Nenhum

Tão Longe de Sítio Nenhum

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

algum namorado? e o que é que ela planeia fazer acerca dos rapazes no meio dos seus<br />

outros planos?, e nunca conseguia arranjar coragem para lhe perguntar fosse o que<br />

fosse. O mais próximo que consegui, quando estávamos a passear o Orville, no parque, foi<br />

dizer:<br />

– Achas que as pessoas conseguem combinar o amor com uma carreira?<br />

Saiu-me e ficou a pairar no ar como um fantasma. Soou tal e qual uma daquelas<br />

perguntas que se fazem na crónica feminina. Natalie respon<strong>de</strong>u:<br />

– É claro, evi<strong>de</strong>ntemente que conseguem! – E <strong>de</strong>itou-me um olhar extremamente<br />

esquisito. Nessa altura, Orville encontrou no caminho um dogue alemão e tentava matá-lo<br />

e comê-lo. Quando aquilo acabou, tínhamos esquecido a pergunta estúpida, mas eu<br />

continuei a sentir-me solene e soturno. Quase a chegar a casa, a Natalie perguntou com<br />

uma espécie <strong>de</strong> nostalgia na voz:<br />

– Porque é que nunca mais voltaste a fazer macaquices?<br />

Senti-me picado. A sério. Quando entrei em casa vinha pior que estragado. Eu a querer<br />

agarrar <strong>de</strong> repente esta miúda nos braços, beijá-la e dizer-lhe «Amo-te!», e ela o que quer<br />

<strong>de</strong> mim é que eu an<strong>de</strong> aos pinotes com uma casca <strong>de</strong> banana na mão, à caça das moscas<br />

que lá possam estar!<br />

Analisei-me profunda e seriamente. Estava zangado com ela por se mostrar tão<br />

amigável e natural e recor<strong>de</strong>i atentamente o modo como o seu cabelo ficava quando ela o<br />

tinha acabado <strong>de</strong> lavar e estava macio e solto, a textura da sua pele, que era branca e<br />

muito fina.<br />

Rapidamente estava a encará-la como era <strong>de</strong> facto, a fêmea misteriosa, a beleza cruel,<br />

a apetecida e intocável <strong>de</strong>usa, tudo o que quiserem. E então, em vez da minha primeira,<br />

melhor e única verda<strong>de</strong>ira amiga, ela era qualquer coisa que eu <strong>de</strong>sejava e odiava. Odiava<br />

porque <strong>de</strong>sejava. Desejava porque odiava.<br />

Em Fevereiro tornámos a ir à praia.<br />

Há sempre uma semana por altura das comemorações do nascimento <strong>de</strong> Washington<br />

que é fantástica. Pára <strong>de</strong> chover. O sol aquece. Os rebentos começam a aparecer nas<br />

árvores e surgem as primeiras flores. É a primeira semana da Primavera e, em vários<br />

aspectos, a melhor, porque é a primeira e tão curta.<br />

Po<strong>de</strong>-se contar com ela e planeá-la com antecedência. Consegui convencê-la a<br />

arranjar substituto na escola e a adiar as suas aulas, para po<strong>de</strong>rmos ir no sábado até à<br />

Praia <strong>de</strong> Ja<strong>de</strong>. Se o pai <strong>de</strong>la fizesse ondas, não me ralava nada.<br />

Ela que se <strong>de</strong>senvencilhasse. Éramos adultos e ela teria <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r a viver sem a sua<br />

bênção a cada hora. Estava pronto para lhe dizer tudo isto, se ela mencionasse o pai, mas<br />

não o fez. Não me pareceu muito entusiasmada com o passeio, mas acho que sentiu que<br />

eu queria ir e por isso fez-me a vonta<strong>de</strong>, como uma amiga.<br />

Quando, cerca das onze da manhã, chegámos à praia, a maré estava baixa e nela<br />

chapinhavam algumas pessoas procurando mariscos. Desta vez levávamos calções por<br />

<strong>de</strong>baixo das jeans e voltámos a brincar com as ondas, mas foi diferente. Havia um<br />

nevoeiro baixo sobre a areia, nem espesso nem frio, só uma espécie <strong>de</strong> luz difusa, como<br />

se o ar fosse feito <strong>de</strong> madrepérola, as ondas eram mansas e rebentavam lentamente,<br />

curvando-se sobre si mesmas em longas linhas azul-esver<strong>de</strong>adas, sonhadoras, rítmicas e<br />

hipnóticas. Não ficámos juntos, foi cada um para seu lado, chapinhando na rebentação.<br />

Quando olhei, a Natalie estava longe, andando lentamente sobre espuma, esparrinhando<br />

água. Andava ligeiramente curvada, as mãos nos bolsos, e parecia muito pequenina e<br />

frágil, entre a praia enevoada e o enevoado mar.<br />

Os apanhadores <strong>de</strong> marisco foram-se embora quando a maré começou a subir. Cerca<br />

<strong>de</strong> uma hora <strong>de</strong>pois, vagarosamente, a Natalie voltou. Tinha o cabelo todo emaranhado e<br />

fungava constantemente. O ar do mar fazia-lhe pingar o nariz e nós não tínhamos trazido

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!