A medida do olhar: objetividade e autoria na ... - Monitorando
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ROGÉRIO CHRISTOFOLETTI<br />
A <strong>medida</strong> <strong>do</strong> <strong>olhar</strong>:<br />
<strong>objetividade</strong> e <strong>autoria</strong><br />
<strong>na</strong> reportagem<br />
Tese apresentada à Área de<br />
Concentração: Jor<strong>na</strong>lismo e Editoração<br />
da Escola de Comunicações e Artes da<br />
Universidade de São Paulo, como<br />
exigência parcial para obtenção <strong>do</strong><br />
Título de Doutor em Ciências da<br />
Comunicação, sob orientação da Profª<br />
Drª Cremilda Celeste de Araújo Medi<strong>na</strong>.<br />
São Paulo<br />
2004
DEFESA DA TESE A MEDIDA DO OLHAR – OBJETIVIDADE E<br />
AUTORIA NA REPORTAGEM, DE ROGÉRIO CHRISTOFOLETTI<br />
2<br />
BANCA JULGADORA<br />
____________________________________<br />
____________________________________<br />
____________________________________<br />
____________________________________<br />
____________________________________<br />
PROFª DRª CREMILDA C.A. MEDINA<br />
ORIENTADORA<br />
SÃO PAULO (SP), ______ DE _____________ DE 2004.
Para<br />
minha mãe Marlene,<br />
minha mulher A<strong>na</strong> e<br />
meu filho Vinicius,<br />
a quem tento impressio<strong>na</strong>r. Sempre.<br />
3
Quero registrar meu reconhecimento<br />
4<br />
AGRADECIMENTOS<br />
À Universidade <strong>do</strong> Vale <strong>do</strong> Itajaí (UNIVALI) pela<br />
concessão de uma bolsa de estu<strong>do</strong>s e pelo<br />
afastamento integral de minhas funções,<br />
fundamentais para a conclusão desta pesquisa no<br />
tempo em que ela se realizou;<br />
À professora Cremilda Medi<strong>na</strong>, minha bússola nesta<br />
caminhada, minha referência maior neste trajeto;<br />
A Josenil<strong>do</strong> Guerra, Patrícia Patrício e Edélcio<br />
Mostaço, gentis e atentos interlocutores durante a<br />
escritura desta tese;<br />
Ao meu irmão Rodrigo Christofoletti, leitor mais sagaz<br />
e bem-humora<strong>do</strong> destas pági<strong>na</strong>s;<br />
Aos colegas <strong>do</strong> Núcleo de Epistemologia <strong>do</strong><br />
Jor<strong>na</strong>lismo (NEJ/ECA) pelos conselhos e idéias<br />
trocadas ao longo de nossas sempre proveitosas<br />
reuniões;<br />
Ao Paulo César Bontempi, o meu mais eficiente<br />
apoio operacio<strong>na</strong>l <strong>na</strong> Escola de Comunicações e<br />
Artes da USP;<br />
A Manoel Gonçalves Corrêa, amigo e mestre, meu<br />
anfitrião em muitas tardes paulista<strong>na</strong>s;<br />
A Jefferson Bittencourt e Gláucia Grígolo, amigos<br />
que não faltaram nos últimos minutos desta tese;<br />
A Ricar<strong>do</strong> Laux, queri<strong>do</strong> sogro a quem devo apoio<br />
afetivo e logístico;<br />
Aos meus companheiros <strong>do</strong> Sindicato <strong>do</strong>s Jor<strong>na</strong>listas<br />
de Santa Catari<strong>na</strong>, especialmente Silvio e Lucia<strong>na</strong>,<br />
que cobriram minhas ausências em momentos<br />
cruciais deste processo;<br />
E a minha amada A<strong>na</strong>, que respirou esta tese<br />
comigo por pelo menos <strong>do</strong>is anos.
RESUMO<br />
O <strong>olhar</strong> está entre os sujeitos e os objetos, preenchen<strong>do</strong> a distância<br />
entre esses extremos <strong>na</strong> relação <strong>do</strong> conhecimento, onde o próprio<br />
Jor<strong>na</strong>lismo se inscreve. A partir <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>olhar</strong>, reflito sobre um <strong>do</strong>s<br />
pilares sobre os quais o Jor<strong>na</strong>lismo se edificou: a <strong>objetividade</strong>. Num<br />
paradigma de crise, o Jor<strong>na</strong>lismo questio<strong>na</strong> esse conceito, e aprofun<strong>do</strong><br />
tal discussão, alargan<strong>do</strong> seu foco para o exercício da subjetividade <strong>na</strong><br />
reportagem. Concentro esforços <strong>na</strong> conceituação <strong>do</strong> que vem a ser<br />
uma <strong>autoria</strong> em jor<strong>na</strong>lismo e enumero as principais condições para o<br />
seu efetivo exercício <strong>na</strong> reportagem. Esse mapeamento é<br />
acompanha<strong>do</strong> da apresentação de uma experiência que fiz como<br />
repórter em busca de inscrição de uma <strong>autoria</strong> jor<strong>na</strong>lística. Tanto a<br />
reflexão teórica quanto a pesquisa-experiência atuam num processo<br />
que busca a desautomatização das práticas jor<strong>na</strong>lísticas,<br />
desmistifican<strong>do</strong> as gramáticas da área e apontan<strong>do</strong> para novos<br />
procedimentos <strong>na</strong> apuração das informações e <strong>na</strong> escritura <strong>do</strong>s textos.<br />
PALAVRAS-CHAVE<br />
OBJETIVIDADE – AUTORIA – TEXTO – JORNALISMO – OLHAR<br />
ABSTRACT<br />
The glance is in between subjects and objects, fullfilling the distance<br />
between these terms at a knowledge relation, where Jour<strong>na</strong>lism itself<br />
inscribes. From the glance’s a<strong>na</strong>lysis, I reflect about one of the basis in<br />
which Jour<strong>na</strong>lism built itself: objectivity. At a crisis paradigm, Jour<strong>na</strong>lism<br />
questions this concept, and I deepen this discussion, widening its focus<br />
to the exercise of subjectivity in newspaper reporting. I concentrate<br />
efforts at the definition of what comes to be autorship in jour<strong>na</strong>lism and<br />
enumerate the main condition for its effective exercise in newspaper<br />
reporting. This cartography is followed by the presentation of an<br />
experience I have <strong>do</strong>ne as a reporter searching for a jour<strong>na</strong>listic<br />
autorship criterion. Theoric reflection acts as much as experienceresearch<br />
at a process that looks after a non automation of jour<strong>na</strong>listic<br />
practices, those of which will unmystify grammar rules of the area and<br />
point out to new procedures relating the checking of information and<br />
text writing.<br />
KEYWORDS<br />
Objectivity – Autorship – Text – Jour<strong>na</strong>lism – The glance<br />
5
SUMÁRIO<br />
INTRODUÇÃO<br />
Crise de Paradigmas <strong>na</strong> Ciência – Paradigma de crise no<br />
Jor<strong>na</strong>lismo: p. 08<br />
1.O OLHAR<br />
1.1 O <strong>olhar</strong> é uma leitura <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>: p. 14<br />
1.2 O <strong>olhar</strong> como processo e relação: p. 18<br />
1.3 O <strong>olhar</strong> jor<strong>na</strong>lístico: p. 27<br />
1.3.1 O Jor<strong>na</strong>lismo como campo de saber, fazer e ser: p. 29<br />
1.3.2 O conhecimento jor<strong>na</strong>lístico: p. 32<br />
1.3.3 A constituição <strong>do</strong> <strong>olhar</strong> no Jor<strong>na</strong>lismo: p. 34<br />
1.3.4 Jor<strong>na</strong>lismo e os senti<strong>do</strong>s humanos: p. 43<br />
1.4 O <strong>olhar</strong> estabelece sujeitos e objetos: p. 49<br />
2. OBJETIVIDADE<br />
2.1 Uma idéia em cinco séculos: p. 53<br />
2.1.1 O conceito <strong>na</strong> filosofia: p. 55<br />
2.1.2 O conceito <strong>na</strong> ciência: p. 60<br />
2.1.3 Como o Jor<strong>na</strong>lismo emprega a idéia: p. 64<br />
2.2 Peque<strong>na</strong> História da Objetividade no Jor<strong>na</strong>lismo: p. 68<br />
2.3 Resguardan<strong>do</strong> a <strong>objetividade</strong>: p. 72<br />
2.3.1 Imperativo ético da atividade: p. 72<br />
2.3.2 Uma meta para o mito: p. 77<br />
2.4 A <strong>objetividade</strong> questio<strong>na</strong>da: p. 81<br />
2.4.1 Uma categoria mitificada: p. 84<br />
2.4.2 O ritual profissio<strong>na</strong>l e os interesses incidentes: p. 88<br />
2.4.3 Objetividade como efeito de discurso: p. 93<br />
3. ENTRE A DÚVIDA E A INCERTEZA<br />
3.1 Descartes, a dúvida e o méto<strong>do</strong>: p. 100<br />
3.1.1 Jor<strong>na</strong>lismo e cartesianismo: p. 104<br />
3.2 Heisenberg e a incerteza: p. 110<br />
3.3.O Jor<strong>na</strong>lismo entre a dúvida e a incerteza: p. 114<br />
4. SUBJETIVIDADE<br />
4.1 Apontamentos sobre o sujeito: p. 119<br />
4.2 Consciência, atesta<strong>do</strong> <strong>do</strong> sujeito: p. 124<br />
4.3 Subjetividade <strong>na</strong> atividade jor<strong>na</strong>lística: p. 128<br />
4.4 Assi<strong>na</strong>tura: marca <strong>do</strong> sujeito: p. 132<br />
6
5. AUTORIA<br />
5.1 Uma genealogia <strong>do</strong> autor no Ocidente: p. 137<br />
5.1.1 Digressão jurídica: a <strong>autoria</strong> como direito: p. 143<br />
5.1.2 Retorno à genealogia: p. 145<br />
5.2 Reconhecimento <strong>do</strong> sujeito e afirmação <strong>do</strong> singular: p. 149<br />
5.3 A função autor: p. 152<br />
5.4 Autoria como exercício de estilo: p. 159<br />
5.5 Estilo e Autoria no Jor<strong>na</strong>lismo: p. 165<br />
5.6 A <strong>na</strong>rrativa da contemporaneidade: p. 174<br />
5. 7 Condições para uma <strong>autoria</strong> <strong>na</strong> reportagem: p. 178<br />
6. EM BUSCA DE UMA AUTORIA NA REPORTAGEM<br />
6.1 O pesquisa<strong>do</strong>r como cobaia: p. 199<br />
6.2 O ambiente <strong>do</strong> laboratório e as condições <strong>do</strong> repórter: p. 205<br />
6.2.1 As revistas: p. 206<br />
6.2.2 A roti<strong>na</strong> <strong>do</strong> repórter: p. 211<br />
6.2.3 O recorte: p. 214<br />
6.3 As tentativas de inscrição de uma assi<strong>na</strong>tura: p. 217<br />
6.4 O que os editores têm a dizer: p. 258<br />
CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
Um jor<strong>na</strong>lismo com impressões digitais: p. 264<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
p. 269<br />
ANEXOS<br />
As reportagens a<strong>na</strong>lisadas: p. 275<br />
7
INTRODUÇÃO<br />
Crise de paradigmas <strong>na</strong> Ciência<br />
Paradigma de crise no Jor<strong>na</strong>lismo<br />
8<br />
“Na verdade, nós redefinimos a função da ciência<br />
como a descoberta de leis que nos permitirão predizer<br />
os eventos dentro <strong>do</strong>s limites impostos<br />
pelo princípio da incerteza”<br />
Stephen Hawking – físico inglês<br />
“O Jor<strong>na</strong>lismo, tal como está disposto nos<br />
meios de comunicação atuais, pratica ao<br />
mesmo tempo técnicas de informação<br />
e desinformação”<br />
Leão Serva – jor<strong>na</strong>lista brasileiro<br />
O<br />
s planetas e o sol giravam em torno da Terra até que um polonês<br />
perturbou a ordem <strong>do</strong> sistema. Era a primeira metade <strong>do</strong> século XVI, e<br />
Nicolau Copérnico concluía o volume De revolutionibus orbium<br />
caelestium, onde apresentava a teoria segun<strong>do</strong> a qual a Terra dava uma volta diária em<br />
torno de si e uma volta anual ao re<strong>do</strong>r <strong>do</strong> sol. O modelo colocava por terra a idéia de<br />
que o planeta era o centro <strong>do</strong> universo, tese que vigorava há 1300 anos pelo menos.<br />
Mais <strong>do</strong> que avançar nos estu<strong>do</strong>s astronômicos de então, a intervenção de Copérnico<br />
desencadeou uma revolução <strong>na</strong> ciência, <strong>na</strong> filosofia e <strong>na</strong> religião. O deslocamento da<br />
Terra <strong>do</strong> centro <strong>do</strong> universo propiciava pensar num outro papel e importância <strong>do</strong><br />
homem <strong>na</strong> <strong>na</strong>tureza e acabava por questio<strong>na</strong>r alguns <strong>do</strong>gmas da Igreja.<br />
Trezentos anos depois, viriam outros <strong>do</strong>is graves golpes <strong>na</strong>s certezas huma<strong>na</strong>s<br />
no Ocidente: o homem deixava de ser o centro da <strong>na</strong>tureza e da História. No século<br />
XIX, o cientista inglês Charles Darwin e o filósofo alemão Karl Marx vão soterrar essas<br />
idéias ao afirmar que o homem é resulta<strong>do</strong> de leis e processos evolutivos que incidem<br />
sobre todas as espécies vivas e que existem outras variáveis que determi<strong>na</strong>m os<br />
caminhos e descaminhos da trajetória huma<strong>na</strong>.
Se, como escreveu Nietzsche, Deus está morto; se a terra é só mais um planeta<br />
perdi<strong>do</strong> no espaço a reboque de uma estrela finita; se o homem não <strong>do</strong>mi<strong>na</strong> o reino<br />
animal, só resta mesmo não ser ele o centro de si mesmo. Pois não faltou muito para que<br />
alguém apontasse isso. Em 1900, o psiquiatra e neurologista austríaco Sigmund Freud<br />
publica A interpretação <strong>do</strong>s sonhos, obra que i<strong>na</strong>ugura o campo da Psicanálise, onde o<br />
sujeito não é monolítico e centra<strong>do</strong>, e o inconsciente tem papel decisivo <strong>na</strong>s ações<br />
huma<strong>na</strong>s.<br />
Os golpes <strong>na</strong> estabilidade da racio<strong>na</strong>lidade ocidental continuam. Contemporâneo<br />
a Freud, o físico alemão Albert Einstein formula, <strong>na</strong> primeira década <strong>do</strong> século XX,<br />
algumas bases da sua Teoria da Relatividade, tese que vai provocar nova reviravolta não<br />
ape<strong>na</strong>s no mun<strong>do</strong> científico, mas também <strong>na</strong> filosofia e cultura mundiais. Com a nova<br />
teoria, acontece uma profunda renovação científica, que altera algumas idéias básicas da<br />
física clássica, oferecen<strong>do</strong> explicação coerente e unificada para grande número de<br />
fenômenos da <strong>na</strong>tureza. Com a Teoria da Relatividade, espaço e tempo são variáveis<br />
relativas, massa pode se converter em energia e um objeto com velocidade próxima à da<br />
luz sofre aumento de sua massa, ao passo em que o espaço se contrai e o tempo se<br />
dilata.<br />
Pelos estu<strong>do</strong>s em física quântica, passa-se a perceber que não existe nenhum<br />
fenômeno totalmente objetivo, quer dizer, independente <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> seu observa<strong>do</strong>r. A<br />
incerteza cresce em 1926, quan<strong>do</strong> o físico alemão Werner Heinsenberg enuncia o<br />
Princípio da Indetermi<strong>na</strong>ção, de acor<strong>do</strong> com o qual é impossível medir,<br />
simultaneamente e com absoluta precisão, a posição e a velocidade de uma partícula de<br />
átomo. A tese produz rachaduras graves no sonho de uma ciência determinista: afi<strong>na</strong>l,<br />
se não é possível medir o esta<strong>do</strong> atual <strong>do</strong> universo, que dirá prever eventos futuros sem<br />
erros.<br />
9
Um brevíssimo percurso pela história da ciência mostra como as mentalidades se<br />
modificaram nos últimos quinhentos anos, tempo que não significa quase <strong>na</strong>da no<br />
perío<strong>do</strong> de permanência <strong>do</strong> homem sobre a Terra. Os últimos acontecimentos<br />
fragilizaram o modelo monolítico de saber científico, deslocan<strong>do</strong> a atenção para<br />
aspectos como a complexidade, a incerteza e a descontinuidade. Se tempos atrás a<br />
ciência consoli<strong>do</strong>u-se enquanto saber hegemônico <strong>na</strong> explicação <strong>do</strong>s fenômenos da<br />
<strong>na</strong>tureza, orientan<strong>do</strong>, inclusive, a trajetória de desenvolvimento social em muitos pontos<br />
<strong>do</strong> planeta, atualmente, a ciência disputa espaço e preferência com outros saberes. É o<br />
que se pode chamar de crise <strong>do</strong> paradigma científico: tem-se a consciência de que o<br />
conhecimento científico não é o mais coerente de to<strong>do</strong>s, nem oferece as únicas respostas<br />
aos problemas da humanidade.<br />
Não é o descarte da ciência, mas o questio<strong>na</strong>mento da sua onipotência. O<br />
cidadão comum continua acreditan<strong>do</strong> no desenvolvimento científico e tecnológico, mas<br />
ao mesmo tempo não deixa de consultar a astrologia diariamente, prossegue<br />
alimentan<strong>do</strong> sua mitologia particular e não se desvencilha <strong>do</strong>s seus vínculos religiosos.<br />
De maneira direta, não é a ciência que está em crise, mas a ciência como se<br />
construiu e se apresentou nos últimos séculos: meto<strong>do</strong>logicamente determinista,<br />
pretensamente absolutista, excludentemente ocidental, para<strong>do</strong>xalmente <strong>do</strong>gmática. O<br />
que vive uma crise de paradigma é a ciência filha da Razão surgida no século XVII<br />
como um méto<strong>do</strong> de conhecimento funda<strong>do</strong> <strong>na</strong> lógica e no cálculo. Para René<br />
Descartes, a razão é o poder de bem julgar e discernir o verdadeiro <strong>do</strong> falso. É em torno<br />
dela que o conceito moderno de homem (e de sujeito) vai ser desenha<strong>do</strong>, sustenta<strong>do</strong><br />
pela idéia de consciência. Com um novo homem sobre a Terra, é preciso desenvolver<br />
um percurso que lhe permita <strong>do</strong>mi<strong>na</strong>r a <strong>na</strong>tureza e alcançar uma condição mais dig<strong>na</strong> no<br />
reino animal.<br />
10
Da razão, decorrem os conceitos de racio<strong>na</strong>lização e racio<strong>na</strong>lidade, que vão ser<br />
alicerces para os esforços da tecnologia e da ciência. A racio<strong>na</strong>lidade é a adequação<br />
entre uma coerência lógica e uma determi<strong>na</strong>da realidade empírica. A racio<strong>na</strong>lização, por<br />
sua vez, é o conjunto de práticas que vai tor<strong>na</strong>r viável uma racio<strong>na</strong>lidade. Desta forma,<br />
resulta uma conseqüência fácil: <strong>na</strong> ciência, a <strong>objetividade</strong> vai ser uma das condições de<br />
sustentação <strong>do</strong> processo de racio<strong>na</strong>lização. A <strong>objetividade</strong> estará ligada ao que se<br />
entende por mun<strong>do</strong> objetivo, ou mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s esta<strong>do</strong>s de coisa da<strong>do</strong>s no espaço-tempo. O<br />
mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s fatos. A <strong>objetividade</strong> é a faculdade de tor<strong>na</strong>r uma situação, um ser ou uma<br />
coisa objetos. Tu<strong>do</strong> aquilo que o sujeito não reconhece como uma extensão de si é<br />
entendi<strong>do</strong> como objeto, uma exterioridade, uma alteridade.<br />
A <strong>objetividade</strong> vai servir a ciência durante muitos anos, tempo em que a<br />
<strong>na</strong>tureza será observada a uma distância segura. Deus não estará por perto, e a<br />
perspectiva e as condições íntimas <strong>do</strong> observa<strong>do</strong>r serão ignoradas. Quan<strong>do</strong> o objeto é<br />
uma bactéria ou uma molécula gasosa, to<strong>do</strong>s sobrevivem relativamente ilesos neste<br />
distanciamento. Mas e quan<strong>do</strong> se observa a psique huma<strong>na</strong> ou um ecossistema urbano,<br />
objetos em que o homem – e até mesmo o observa<strong>do</strong>r – está envolvi<strong>do</strong>? O que vai<br />
determi<strong>na</strong>r a distância e as fronteiras entre o sujeito e o objeto?<br />
O surgimento das ciências huma<strong>na</strong>s vai colocar este impasse epistemológico,<br />
trazen<strong>do</strong> à to<strong>na</strong> a discussão sobre a meto<strong>do</strong>logia <strong>na</strong> pesquisa e sobre a própria definição<br />
de <strong>objetividade</strong>. Embora isso ocorra, em diversos campos <strong>do</strong> conhecimento, um certo<br />
culto à <strong>objetividade</strong> permanecerá, já que ela estaria intimamente ligada à observação<br />
direta <strong>do</strong>s fenômenos e, portanto, mais próxima deles. No exercício <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo,<br />
mesmo apesar <strong>do</strong> intenso debate que suscita, a <strong>objetividade</strong> se mantém como uma<br />
categoria de suporte da atividade jor<strong>na</strong>lística. Pelo menos é o que defendem muitos<br />
autores e profissio<strong>na</strong>is, e é o que professam empresas e instituições.<br />
11
As gramáticas <strong>do</strong> ramo orientam para que o jor<strong>na</strong>lista reporte os fatos de forma<br />
objetiva e direta, desapaixo<strong>na</strong>damente. Há que se perceber que o Jor<strong>na</strong>lismo se inspira<br />
<strong>na</strong> ciência para construir seu modelo de representação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Isto é, o Jor<strong>na</strong>lismo<br />
vai se inscrever numa tradição <strong>na</strong>rrativa que tenta ser o reflexo <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, e nesta<br />
perspectiva, a reportagem <strong>do</strong>s fatos precisa atender a critérios rigorosos de observação e<br />
de descrição. Assim, no Jor<strong>na</strong>lismo, tal como <strong>na</strong> ciência, a <strong>objetividade</strong> vai ser uma<br />
condição que liga os sujeitos a acontecimentos e a fenômenos. Como essas ligações são<br />
distintas, diferentes também são as formas de constituição <strong>do</strong> efeito de <strong>objetividade</strong>.<br />
Um produto <strong>do</strong> capitalismo, a atividade jor<strong>na</strong>lística vai se desenvolver sob o<br />
signo da modernização industrial e da racio<strong>na</strong>lização produtiva. Dessa forma, surte<br />
<strong>na</strong>tural que venha se espelhar <strong>na</strong> ciência para determi<strong>na</strong>r alguns <strong>do</strong>s seus<br />
procedimentos. Apegar-se à <strong>objetividade</strong> pode ser entendi<strong>do</strong> como condição necessária<br />
para a construção de uma credibilidade, por exemplo.<br />
Mas a exemplo <strong>do</strong> saber científico, o Jor<strong>na</strong>lismo também sente os tremores de<br />
contestação das suas bases. O desenvolvimento das ciências da linguagem facilitou o<br />
entendimento e a dissemi<strong>na</strong>ção de explicações que denunciavam o mito da neutralidade<br />
das palavras. Então, a cada formulação de frase, o jor<strong>na</strong>lista não poderia desviar-se da<br />
escolha <strong>na</strong>da objetiva <strong>do</strong> vocabulário que usaria no relato <strong>do</strong> fato. Segun<strong>do</strong> algumas<br />
correntes lingüísticas, incidiriam neste processo - mesmo que involuntariamente –<br />
aspectos ideológicos e <strong>do</strong> inconsciente psíquico.<br />
Uma outra impossibilidade ajuda a mi<strong>na</strong>r a <strong>objetividade</strong> jor<strong>na</strong>lística: o<br />
profissio<strong>na</strong>l precisa estar próximo <strong>do</strong> fato o suficiente para apreendê-lo, mas ao passo<br />
que faz isso, deixa de estar alheio, isola<strong>do</strong> <strong>do</strong> acontecimento. A ce<strong>na</strong> se contami<strong>na</strong> com<br />
a presença <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista, permite distorções da realidade.<br />
12
A <strong>objetividade</strong> no Jor<strong>na</strong>lismo sofre ainda com a possibilidade <strong>do</strong> engajamento<br />
ideológico-sentimental <strong>do</strong> profissio<strong>na</strong>l em alguns assuntos, e com as relações<br />
promíscuas entre as empresas jor<strong>na</strong>lísticas (cada vez menos auto-suficientes) e os<br />
poderes político e econômico-fi<strong>na</strong>nceiro.<br />
Se a ciência vive uma crise de paradigmas, o Jor<strong>na</strong>lismo padece sob um<br />
paradigma de crises. Objetividade, imparcialidade, veracidade e honestidade são todas<br />
colocadas em xeque. Em não raros momentos, ao invés de informar, o Jor<strong>na</strong>lismo<br />
desinforma. Seja pela saturação ou redução de da<strong>do</strong>s, seja pela distorção ou<br />
apagamento. São postos em dúvida até mesmo a suficiência e a fidelidade <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo<br />
enquanto forma de representação <strong>do</strong>s fatos contemporâneos.<br />
As incertezas da ciência fomentam mudanças <strong>na</strong> visão de mun<strong>do</strong> hegemônica<br />
<strong>na</strong>s sociedades. No Jor<strong>na</strong>lismo, a crise de paradigmas ajuda a provocar um ambiente de<br />
análise das bases <strong>do</strong> conhecimento jor<strong>na</strong>lístico como mo<strong>do</strong> de saber, de fazer e de ser.<br />
Tanto no Jor<strong>na</strong>lismo, como em qualquer campo de atuação huma<strong>na</strong>, antes de se<br />
lançar ao objeto, é preciso refletir sobre a forma de sua observação. O que define um<br />
objeto é o <strong>olhar</strong> que se dispensa a ele. É o <strong>olhar</strong> – este processo que tateia a superfície<br />
das coisas e das idéias – quem estabelece o sujeito e o objeto nos extremos da<br />
observação. É o <strong>olhar</strong> – este raio invisível que dá visibilidade a tu<strong>do</strong> – quem inscreve<br />
uma consciência num ponto e uma alteridade no outro. Entre os <strong>do</strong>is, o mun<strong>do</strong> e a vida,<br />
contami<strong>na</strong><strong>do</strong>s de senti<strong>do</strong>s.<br />
13
CAPÍTULO 1<br />
O <strong>olhar</strong><br />
1.1 O <strong>olhar</strong> é uma leitura <strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
14<br />
“O que permite ao homem reconciliar-se com a infância<br />
e alcançar o permanente <strong>na</strong>scimento da verdade<br />
é esta ingenuidade clara, distante e aberta <strong>do</strong> <strong>olhar</strong>.<br />
(...) O discurso <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> passa por olhos abertos,<br />
e abertos a cada instante como que pela primeira vez.”<br />
Michel Foucault – O <strong>na</strong>scimento da clínica<br />
stu<strong>do</strong>s psicofisiológicos atestam que 80% das informações que nos chegam <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong> nos vêm pelos olhos 1 E<br />
. Nosso universo de conhecimento é<br />
pre<strong>do</strong>mi<strong>na</strong>ntemente visual, preenchi<strong>do</strong> de cores, nitidez e contorno. Nossos<br />
olhos são radares particulares, atentos ao movimento <strong>do</strong>s corpos, alertas a mudanças no<br />
ambiente. Mas <strong>olhar</strong> é muito mais <strong>do</strong> que ver.<br />
Olhar é fitar, mirar, contemplar. É sondar, cuidar e ponderar. Admirar, julgar,<br />
estudar. Olhar é apreender o mun<strong>do</strong>, as coisas, as pessoas e suas circunstâncias e<br />
considerá-las, guardá-las de alguma forma nos escaninhos da memória. Olhar é encarar,<br />
pesquisar, exami<strong>na</strong>r. Olhar é observar, atentar, considerar. E reparar, procurar, enxergar.<br />
Mas também ver, procurar ver, conectar-se com o objeto da sua visão. Olhar é lançar-se<br />
ao mun<strong>do</strong> e significá-lo, perceber seus senti<strong>do</strong>s plurais. Para além de um fenômeno<br />
físico, <strong>olhar</strong> é captar, receber, ler o mun<strong>do</strong>. Lançar um <strong>olhar</strong> é deter-se sobre algo. Não<br />
perder de olho é preocupar-se, cuidar.<br />
Na sua dimensão total, o <strong>olhar</strong> está próximo <strong>do</strong> entender, <strong>do</strong> saber, <strong>do</strong> conhecer.<br />
Desta forma, não é demais dizer que um <strong>olhar</strong> é uma forma de compreensão, um<br />
ensaio de racio<strong>na</strong>lidade e sensibilidade.<br />
Os diversos <strong>olhar</strong>es, as mais distintas maneiras de se projetar para as coisas,<br />
si<strong>na</strong>lizam modalidades de apreensão <strong>do</strong>s planos <strong>do</strong> real. Por isso, os campos <strong>do</strong> saber<br />
1 A estatística é de D. Morris, em Magie du corps, cita<strong>do</strong> por Alain Brossard (1992).
não interpretam os fenômenos igualmente; as explicações não coincidem, não se<br />
cobrem. A maneira pela qual deitamos olhos sobre os objetos influencia<br />
incontor<strong>na</strong>velmente nossa visão, nossa compreensão das coisas. A variedade destes<br />
<strong>olhar</strong>es leva à pluralidade <strong>do</strong>s saberes, das ciências, das relações que o humano<br />
estabelece com seus pares e o meio que o cerca.<br />
Cercar um <strong>olhar</strong>, determi<strong>na</strong>r como ele se compõe, em que premissas se apóia é<br />
apresentar uma racio<strong>na</strong>lidade, um campo de saber, uma epistéme. Assim, o <strong>olhar</strong> clínico<br />
<strong>do</strong> médico é um contato com o corpo <strong>do</strong> paciente, o <strong>olhar</strong> atento <strong>do</strong> mecânico é uma<br />
prospecção <strong>do</strong>s defeitos no motor <strong>do</strong> automóvel. E como se pode ver, um <strong>olhar</strong><br />
especializa<strong>do</strong> é um processo de produção de subjetividades em série. Sujeitos são<br />
também engendra<strong>do</strong>s conforme as regras <strong>do</strong> <strong>olhar</strong>, da leitura <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Um mo<strong>do</strong> de<br />
<strong>olhar</strong> – vigiar, por exemplo – ajuda a “fazer” um sujeito – o segurança – diferente <strong>do</strong><br />
astrônomo ou <strong>do</strong> <strong>na</strong>vega<strong>do</strong>r, que dispõem de mecanismos distintos de ação<br />
contemplativa. No caso deles, há mais prospecção que contemplação.<br />
O olho é o espelho <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, mas também é a janela da alma – já disse<br />
Leo<strong>na</strong>r<strong>do</strong> Da Vinci. Ver o exterior é constituir-se como vidente no universo <strong>do</strong> visível,<br />
engendran<strong>do</strong> uma relação complexa e complementar: sujeito-objeto.<br />
Esta relação tor<strong>na</strong>-se ainda mais problemática quan<strong>do</strong> o sujeito tem que<br />
descrever para outrem o que viu, interpretar o que enxergou. Dessa forma, jor<strong>na</strong>listas<br />
convivem diariamente com este desafio, e emprestam seus <strong>olhar</strong>es aos consumi<strong>do</strong>res de<br />
informação. É uma tele-visão <strong>do</strong> local onde os fatos acontecem. Os meios de<br />
comunicação funcio<strong>na</strong>m como extensões <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s <strong>do</strong> homem comum. Jor<strong>na</strong>listas<br />
repassam ao público suas visões <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Momentaneamente, este público suspende<br />
seu próprio <strong>olhar</strong> para absorver uma outra luz que pode lhe ajudar a compreender mais o<br />
15
mun<strong>do</strong>. Depois da leitura <strong>do</strong>s jor<strong>na</strong>is, a vida se reconfigura, e, de repente, passa a fazer<br />
senti<strong>do</strong>.<br />
Não é exagera<strong>do</strong> dizer que o <strong>olhar</strong> atrai especial atenção de pensa<strong>do</strong>res e artistas<br />
desde os tempos mais remotos. Entre os antigos, não são poucos os mitos em que o<br />
<strong>olhar</strong> tem lugar privilegia<strong>do</strong>: são os olhos vítreos da Medusa que transformam a to<strong>do</strong>s<br />
em estátuas de pedra, é a visão profética de Cassandra, é a proibição às filhas de Ló para<br />
que não se voltem para as ruí<strong>na</strong>s de So<strong>do</strong>ma e Gomorra. Mesmo Édipo, quan<strong>do</strong> conhece<br />
a verdade de seus crimes, cega os próprios olhos, disposto a não enxergar mais <strong>na</strong>da, a<br />
não saber de mais <strong>na</strong>da. É neste senti<strong>do</strong>, entre tantos, que o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>olhar</strong> <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista<br />
me interessa: <strong>na</strong> <strong>medida</strong> em que ver e saber, enxergar e conhecer têm proximidade,<br />
parentesco.<br />
É <strong>na</strong> <strong>medida</strong> em que um <strong>olhar</strong> delimita uma forma de compreensão, uma<br />
tradução <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, que se pode empreender uma pesquisa acerca deste <strong>olhar</strong>. Fechan<strong>do</strong><br />
o foco sobre os jor<strong>na</strong>listas – sua categorização profissio<strong>na</strong>l e sua <strong>na</strong>tureza social -, este<br />
<strong>olhar</strong> ganha importância-chave, já que a inserção destes sujeitos no mun<strong>do</strong> depende das<br />
relações que estabelecem com as coisas e fatos que o cercam. Quan<strong>do</strong> os jor<strong>na</strong>listas<br />
lançam seus <strong>olhar</strong>es, captam as atmosferas <strong>do</strong>s acontecimentos, eles percebem os<br />
processos e orde<strong>na</strong>m (pelo menos momentânea e aparentemente) o caos local. Mais que<br />
isso. Por meio <strong>do</strong>s <strong>olhar</strong>es lança<strong>do</strong>s, jor<strong>na</strong>listas concebem as figuras da alteridade<br />
(público e fontes de informação), reconfiguram suas próprias identidades (sua posição<br />
social, sua condição de representante de tal empresa, etc.) e mapeiam a história e a<br />
geografia das relações <strong>do</strong> cotidiano.<br />
Tratar desse <strong>olhar</strong> clínico é apontar os condicio<strong>na</strong>mentos, os vínculos, as<br />
dependências, os valores de fun<strong>do</strong> que compõem a maneira deste profissio<strong>na</strong>l se<br />
constituir enquanto tal. Estudar este <strong>olhar</strong> é ensaiar uma epistemologia <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s<br />
16
destes trabalha<strong>do</strong>res <strong>na</strong>s suas práticas cotidia<strong>na</strong>s. Operar <strong>na</strong> observação desta relação –<br />
o <strong>olhar</strong> – é tracejar um campo de ação, de saber, de constituição específica. É operar <strong>na</strong><br />
delimitação de um quadrante <strong>na</strong> epistemologia <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo.<br />
Assim, para o jor<strong>na</strong>lista, o <strong>olhar</strong> é a encruzilhada entre os conhecimentos<br />
técnicos da captação da informação e da conversão <strong>do</strong> fato em notícia, <strong>do</strong>s valores<br />
éticos que dão base à sua conduta, e <strong>do</strong>s cuida<strong>do</strong>s e preocupações estéticas próprios das<br />
linguagens em que apresenta seus produtos informativos. Em outros termos, penso que<br />
uma epistemologia <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo reúne pontes que interligam Técnica, Ética e Estética.<br />
O <strong>olhar</strong> imprime tu<strong>do</strong> isso. É o <strong>olhar</strong> crítico, curioso, cético; é o <strong>olhar</strong> clínico,<br />
preocupa<strong>do</strong>, compromissa<strong>do</strong>, crônico.<br />
A construção de um <strong>olhar</strong> se apóia num pré-construí<strong>do</strong>, num discurso sustenta<strong>do</strong><br />
por indícios, regras de conduta técnica e ética: assim, espera-se que o jor<strong>na</strong>lista tenha<br />
um <strong>olhar</strong> crítico, busque “a verdade acima de tu<strong>do</strong>”, ouça “os diversos la<strong>do</strong>s da<br />
questão”, seja “objetivo e imparcial”.<br />
Um <strong>olhar</strong> específico para o jor<strong>na</strong>lista reserva-lhe uma identidade própria, <strong>na</strong><br />
<strong>medida</strong> em que contribui para a produção de subjetividades e para a consolidação de um<br />
padrão de subjetivação. Um <strong>olhar</strong> de jor<strong>na</strong>lista está apoia<strong>do</strong> num discurso singular,<br />
criva<strong>do</strong> de valores, de normas, de recomendações, o que desencadeia certas práticas.<br />
Audálio Dantas (1998) lembra a definição <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista Acácio Ramos sobre a<br />
própria profissão: “repórteres são pessoas que perguntam”. Para além disso, é preciso<br />
lembrar que jor<strong>na</strong>listas são pessoas que lêem o mun<strong>do</strong>. E tal operação, demandada por<br />
um <strong>olhar</strong> aguça<strong>do</strong> e atento, chama a nossa atenção para uma problematização <strong>do</strong><br />
conceito de leitura, <strong>na</strong> dimensão epistemológica que proponho para esta pesquisa. Que<br />
leitura é esta que o jor<strong>na</strong>lista faz da vida e <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>? Seu <strong>olhar</strong> – premeditadamente<br />
crítico – orienta uma leitura diferenciada <strong>do</strong>s fatos?<br />
17
1.2 O <strong>olhar</strong> como processo e relação<br />
18<br />
“Até quanto posso entender, nós conhecemos o mun<strong>do</strong><br />
porque as partículas <strong>do</strong>s objetos ferem os nossos olhos.”<br />
John Locke, filósofo inglês<br />
Apesar de forte e profundamente influencia<strong>do</strong>ra, a intuição de um <strong>olhar</strong><br />
específico <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista não é suficiente para atestar sua real existência. É preciso buscar<br />
este <strong>olhar</strong>, verificar onde se configura, de que forma e sob quais condições. Mas antes<br />
disso ainda, seria necessário averiguar como o conceito de <strong>olhar</strong> é problematiza<strong>do</strong> em<br />
outros campos de saber, exteriores ao Jor<strong>na</strong>lismo.<br />
De forma geral, o <strong>olhar</strong> é estuda<strong>do</strong> pela Psicologia por diversas correntes 2 , mas<br />
três áreas são destacáveis: a Psicofisiologia, que se preocupa com o olho e a visão, a<br />
Psicologia Cognitiva, que se concentra <strong>na</strong> percepção visual, e a Psicologia Social, atenta<br />
ao <strong>olhar</strong> <strong>na</strong>s interações sociais. Em La psychologie du regard – de la perception visuelle<br />
aux regards, Alain Brossard distingue os conceitos: visão é a estrutura neuro-fisiológica<br />
desta modalidade sensorial; percepção visual reúne os processos psicológicos<br />
individuais de recepção, tratamento e integração das estimulações visuais; e por fim,<br />
<strong>olhar</strong> encerra as condutas visuais observáveis numa situação de interação social,<br />
compreenden<strong>do</strong> <strong>do</strong>is ou mais indivíduos.<br />
Visan<strong>do</strong> contemplar as perspectivas individual e social, Brossard concebe o<br />
<strong>olhar</strong> como uma função sócio-cognitiva, o que permite, por exemplo, que <strong>na</strong>s interações<br />
sociais, a criança adquira novas ferramentas cognitivas. Assim, o <strong>olhar</strong> possibilita que o<br />
indivíduo se oriente por ele e edifique seus pensamentos e atos. “Perceber é uma noção<br />
epistêmica que reúne importantes afinidades com a de conhecer. Se se imputa a algum<br />
conhecimento de um esta<strong>do</strong> de coisas, ela implica que este esta<strong>do</strong> de coisas exista<br />
2 Não há unidade entre as vertentes psicológicas que estudam o <strong>olhar</strong> ou um fio condutor que as ligue,<br />
mesmo diante <strong>do</strong> grande volume de estu<strong>do</strong>s <strong>na</strong> área. As abordagens são modulares, e uma noção de<br />
conjunto pode ser buscada <strong>na</strong> interface entre estas perspectivas.
ealmente” (op.cit.: 59). Para alguns autores, a percepção é uma fonte de conhecimento<br />
a posteriori, que pode reunir uma relação entre um objeto, o sujeito percebente, e uma<br />
proposição por contraste a uma relação de <strong>do</strong>is objetos. Assim, para além de mero<br />
fenômeno físico de incidência da luz <strong>na</strong> estrutura ótica, o <strong>olhar</strong> é uma forma de<br />
apreensão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, um tipo especial de conhecimento, que cruza objeto, sujeito e<br />
contexto de observação.<br />
Para Gaiarsa (2000), o fato de cada nervo ótico ser forma<strong>do</strong> por um milhão de<br />
fibras nervosas, enquanto os nervos acústicos não têm mais de 30 mil cada, se deve à<br />
necessidade de maior sensibilidade de que a visão como modalidade sensorial precisa<br />
ser <strong>do</strong>tada. “Os olhos são os maiores espiões <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. São <strong>do</strong>is mas funcio<strong>na</strong>m como<br />
se fossem um só” (op.cit.: 14). O <strong>olhar</strong> é a busca, “nosso radar mais fino e sempre<br />
inquieto” (132), o que tor<strong>na</strong> a linha <strong>do</strong> <strong>olhar</strong> “a direção mais importante <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>”,<br />
afi<strong>na</strong>l, o “traço que vai <strong>do</strong> olho ao objeto não marca só a direção <strong>do</strong> desejo; marca<br />
também o caminho” (138).<br />
Mais uma vez, a relação pura e estática entre sujeito e objeto é dissolvida. É o<br />
<strong>olhar</strong>, sua direção, intensidade, duração e atenção, que determi<strong>na</strong>m quem é sujeito e<br />
quem é objeto. Isso porque preenche a distância entre esses pólos dinâmicos, seja com<br />
senti<strong>do</strong>s ou interrogações.<br />
***<br />
Em muitos momentos, o trabalho <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista se assemelha ao de um<br />
antropólogo: ele é um profissio<strong>na</strong>l envia<strong>do</strong> a um contexto social que precisa ser<br />
observa<strong>do</strong>, entendi<strong>do</strong>, e traduzi<strong>do</strong> para outros contextos. O cientista chega à aldeia<br />
isolada, faz contato, estuda hábitos e culturas, e depois retor<strong>na</strong> com uma sistematização<br />
19
das informações que colheu. O jor<strong>na</strong>lista vai cobrir um fato, interage com os envolvi<strong>do</strong>s<br />
no acontecimento, coleta da<strong>do</strong>s, e volta à redação para orde<strong>na</strong>r seu material. Em ambos<br />
os casos, acontece o mergulho numa realidade para sua interpretação posterior. Nos <strong>do</strong>is<br />
exemplos – seguin<strong>do</strong> meto<strong>do</strong>logias próprias -, um <strong>olhar</strong> é lança<strong>do</strong> <strong>na</strong> tentativa de<br />
apreensão e compreensão de fenômenos.<br />
Para Sérgio Car<strong>do</strong>so (1992), o etnólogo tem um <strong>olhar</strong> viajante. Há ligações entre<br />
<strong>olhar</strong> e viajar, <strong>na</strong> <strong>medida</strong> em que, estan<strong>do</strong> em outros lugares, encontra-se com o novo,<br />
com o estrangeiro, com o estranho. O <strong>olhar</strong> estabelece a distância entre as instâncias <strong>do</strong><br />
eu e <strong>do</strong> outro. É por isso que <strong>olhar</strong> vai além de ver. Este último, em geral, significa o<br />
vidente numa perspectiva discreta, passiva, que “espelha e registra, reflete e grava”.<br />
Com o <strong>olhar</strong> é diferente. Ele remete, de imediato, à atividade e às<br />
virtudes <strong>do</strong> sujeito, e atesta a cada passo nesta ação a espessura da<br />
sua interioridade. Ele perscruta e investiga, indaga a partir e para<br />
além <strong>do</strong> visto, e parece origi<strong>na</strong>r-se sempre da necessidade de ‘ver<br />
de novo’(ou ver o novo), como intento de ‘<strong>olhar</strong> bem’. Por isso é<br />
sempre direcio<strong>na</strong><strong>do</strong> e atento, tenso e alerta no seu impulso inquiri<strong>do</strong>r.<br />
(348)<br />
Neste senti<strong>do</strong>, é entre o ver e o <strong>olhar</strong> que a própria configuração <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> se<br />
transforma, define Car<strong>do</strong>so. A força <strong>do</strong> <strong>olhar</strong> é também não descansar imóvel sobre a<br />
paisagem extensa <strong>do</strong> espaço, pois o olho se apega às descontinuidades, às diferenças, às<br />
irregularidades, à alteridade. É por isso que o <strong>olhar</strong> não acumula, mas procura. Para o<br />
autor, o <strong>olhar</strong> pensa e pode ser visto como a visão feita interrogação.<br />
Ainda dentro da Antropologia, há outras problematizações acerca <strong>do</strong> <strong>olhar</strong>.<br />
Discipli<strong>na</strong>rmente, há até uma Antropologia Visual, que se municia de instrumentos para<br />
fazer uma leitura ótica de certas realidades. A máqui<strong>na</strong> fotográfica, por exemplo, serve<br />
de suporte e os signos apreensíveis pelo senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>olhar</strong> despertam <strong>do</strong> contexto para<br />
auxiliar o cientista a interpretá-lo. Mas perseguir tais caminhos pode se mostrar<br />
dificultoso, conforme atesta Collier Jr. (1973:1):<br />
20
Aprender a observar visualmente, ver uma cultura em to<strong>do</strong>s os seus<br />
complexos detalhes, pode ser uma tarefa de muito empenho para o<br />
pesquisa<strong>do</strong>r. A <strong>na</strong>tureza fragmentada da vida moder<strong>na</strong> tor<strong>na</strong> difícil o<br />
ajustamento à visão global. A capacidade de visão de conjunto <strong>do</strong><br />
observa<strong>do</strong>r depende da proporção de envolvimento dele em<br />
relação ao seu meio ambiente. Nós, modernos, nos afastamos de um<br />
relacio<strong>na</strong>mento muito envolvente com o ambiente que nos<br />
circunda, pois comumente lidamos ape<strong>na</strong>s com partes desse<br />
esquema de grande amplitude.<br />
O autor explica que, em geral, o desenvolvimento cultural foi orienta<strong>do</strong> para<br />
<strong>do</strong>mi<strong>na</strong>r a <strong>na</strong>tureza pela tecnologia, o que provocou a organização de funções<br />
fragmentadas. Collier Jr. admite que em certas áreas específicas, o homem é um a<strong>na</strong>lista<br />
visual bastante perspicaz, principalmente no que tange ao campo de trabalho: o<br />
radiologista pode diagnosticar uma tuberculose através <strong>do</strong> raio X e o bacteriologista<br />
pode reconhecer os bacilos pelo microscópio. Mas são <strong>olhar</strong>es exclusivos,<br />
compartimenta<strong>do</strong>s, recorta<strong>do</strong>s. “Somente podemos considerar-nos os mais acura<strong>do</strong>s<br />
observa<strong>do</strong>res <strong>na</strong> história huma<strong>na</strong> se considerarmos a soma total de nossas<br />
especializações”.<br />
O isolamento desses <strong>olhar</strong>es – chama<strong>do</strong> pelo autor de cegueira pessoal - está<br />
diretamente liga<strong>do</strong> à orientação positivista, mecanicista das sociedades urba<strong>na</strong>s<br />
contemporâneas. “Aprendemos a ver ape<strong>na</strong>s o que praticamente precisamos ver.<br />
Atravessamos nossos dias com viseiras, observan<strong>do</strong> somente uma fração <strong>do</strong> que nos<br />
rodeia. E quan<strong>do</strong> observamos criticamente, é quase sempre com o auxílio de alguma<br />
tecnologia” (op.cit.: 3). Há uma <strong>do</strong>mesticação <strong>do</strong> <strong>olhar</strong> 3 .<br />
No caso específico <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo, a mecânica <strong>do</strong> <strong>olhar</strong> não é mediatizada por<br />
instrumentos tecnológicos, já que recorre a uma série de comportamentos, de ações<br />
huma<strong>na</strong>s, que são comuns a to<strong>do</strong>s, mas levadas a um grau de especialização que motiva<br />
3 A <strong>do</strong>mesticação <strong>do</strong> <strong>olhar</strong> vai ao encontro ao que aponta o artista plástico inglês David Hockneyn (1937).<br />
Ícone da Pop Art, sua arte si<strong>na</strong>liza para um <strong>olhar</strong> atravessa<strong>do</strong> pela linguagem, pelo simbólico. Para além de<br />
suas já célebres pinturas de pisci<strong>na</strong>s, são os trabalhos fotográficos <strong>do</strong>s anos 80 que enfatizam essa hipótese:<br />
com sua lente, Hockney capta um objeto num enquadramento que privilegie a parte e não o to<strong>do</strong>. Em<br />
21
a excelência no seu funcio<strong>na</strong>mento. Isto é, outros profissio<strong>na</strong>is vêem o mun<strong>do</strong>, assistem<br />
aos fatos, mas não trei<strong>na</strong>ram seus olhos para enxergar certos aspectos que são<br />
importantes para os jor<strong>na</strong>listas. O jor<strong>na</strong>lista não precisa de um telescópio ou de um<br />
microscópio especial para atuar profissio<strong>na</strong>lmente, mas de um <strong>olhar</strong> educa<strong>do</strong>,<br />
<strong>do</strong>mestica<strong>do</strong>, trei<strong>na</strong><strong>do</strong>. Entretanto, precisa de uma técnica de ver, de um conjunto de<br />
procedimentos que o capacite a observar as ce<strong>na</strong>s de uma forma precisa.<br />
Neste senti<strong>do</strong>, o <strong>olhar</strong> <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista se aproxima de uma tecnologia. Os antigos<br />
gregos chamavam de tecnologia o trata<strong>do</strong> sobre uma arte, conjunto de conhecimentos e<br />
princípios científicos que se aplicavam a determi<strong>na</strong><strong>do</strong> ramo de atividade. Uma<br />
tecnologia é um feixe de técnicas, um coletivo de saberes, uma filosofia de ação. Se o<br />
<strong>olhar</strong> <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista encerra procedimentos próprios no trabalho e determi<strong>na</strong> processos de<br />
entendimento <strong>do</strong>s fatos que cobre, este <strong>olhar</strong> pode ser qualifica<strong>do</strong> como uma tecnologia.<br />
***<br />
Mas para além de qualquer instrumentalidade que se possa impingir ao <strong>olhar</strong>, é<br />
preciso alargar o entendimento de como ele vem sen<strong>do</strong> refleti<strong>do</strong> pelo pensamento<br />
ocidental. Talvez a forma mais saliente <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s filosóficos sobre o <strong>olhar</strong> seja a<br />
fenomenológica 4 . Merleau-Ponty vai se debruçar sobre a questão <strong>na</strong> metade <strong>do</strong> século<br />
20. Para o pensa<strong>do</strong>r, os olhos de carne são mais <strong>do</strong> que meros “receptores para as luzes,<br />
para as cores e para as linhas”. Os olhos “são computa<strong>do</strong>res <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, que têm o <strong>do</strong>m<br />
<strong>do</strong> visível como se diz que o homem inspira<strong>do</strong> tem o <strong>do</strong>m das línguas” (1980: 90).<br />
seguida, ele faz as composições com as polaroids tiradas, como quem monta um quebra-cabeças. A<br />
percepção é selvagem.<br />
4 O programa desta corrente filosófica ajuda a amparar algumas preocupações sobre o <strong>olhar</strong>. A<br />
fenomenologia, por definição, é o estu<strong>do</strong> das essências, e não tenta compreender o homem e o mun<strong>do</strong><br />
senão a partir de sua factidade. Segun<strong>do</strong> Merleau-Ponty no prefácio de Fenomenologia da Percepção,<br />
“trata-se, então, de descrever, não de explicar ou a<strong>na</strong>lisar”. Um fenômeno se apresenta ao mun<strong>do</strong>, e neste<br />
momento, mostra-se. Cabe ao homem – e aí entra o <strong>olhar</strong> -, captar sua essência.<br />
22
Assim, atraí<strong>do</strong> pelas incertezas da visibilidade e da invisibilidade, Merleau-<br />
Ponty projeta em seus escritos as bases de uma busca <strong>do</strong> espírito e <strong>do</strong> ser, pela matriz <strong>do</strong><br />
<strong>olhar</strong>. Desse mo<strong>do</strong>, o processo da visão não se resume a uma modalidade de<br />
pensamento ou de presença, de constituição de lugar; mas sim “o meio que me é da<strong>do</strong><br />
de estar ausente de mim mesmo, de assistir de dentro a fissão <strong>do</strong> Ser, só no termo da<br />
qual eu me fecho sobre mim” (108). A visão funcio<strong>na</strong> como o encontro de to<strong>do</strong>s os<br />
aspectos <strong>do</strong> Ser. Mas ver é entrar num universo de seres que se mostram. Com isso,<br />
<strong>olhar</strong> um objeto é vir habitá-lo e dali apreender todas as coisas<br />
segun<strong>do</strong> a face que elas voltam para ele. Mas, <strong>na</strong> <strong>medida</strong> em que<br />
também as vejo, elas permanecem moradas abertas ao meu <strong>olhar</strong><br />
e, situa<strong>do</strong> virtualmente nelas, percebo sob diferentes ângulos o<br />
objeto central de minha visão atual. (1999:105)<br />
Olhar e ver não são a mesma coisa. A simples visão supõe e expõe um campo de<br />
significações; o <strong>olhar</strong> as procura, seguin<strong>do</strong> a trilha <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>. O pensamento não é<br />
conjunto de enuncia<strong>do</strong>s, mas afastamentos determi<strong>na</strong><strong>do</strong>s no interior <strong>do</strong> Ser. Marile<strong>na</strong><br />
Chaui (1992) esclarece que, <strong>na</strong> leitura de uma filosofia da visão, os conceitos não<br />
podem ser vistos como representações fechadas, mas pontos de convergência, de<br />
generalidade; e as idéias funcio<strong>na</strong>riam como eixo de equivalências, fios provisórios para<br />
o estabelecimento <strong>do</strong>s entendimentos. O <strong>olhar</strong> aponta para um pensar generoso, “que,<br />
entran<strong>do</strong> em si, sai de si pelo pensamento de outrem que o apanha e o prossegue. O<br />
<strong>olhar</strong>, identidade <strong>do</strong> sair e <strong>do</strong> entrar em si, é a definição mesma <strong>do</strong> espírito” (63).<br />
Para Alfre<strong>do</strong> Bosi (1992), uma teoria completa <strong>do</strong> <strong>olhar</strong> poderia coincidir com<br />
outras duas teorias, uma <strong>do</strong> conhecimento e outra, da expressão. Os gregos têm <strong>na</strong> sua<br />
língua uma forte vinculação entre ver e conhecer. Mas esta coincidência entre <strong>olhar</strong> e<br />
conhecer não é direta, já que o homem dispõe de outros senti<strong>do</strong>s que atuam neste<br />
processo <strong>do</strong> ver e <strong>do</strong> ter em mente. Vincular a percepção visual com os estímulos<br />
capta<strong>do</strong>s pelos outros senti<strong>do</strong>s é um <strong>do</strong>s temas básicos para uma fenomenologia <strong>do</strong><br />
23
corpo. “O <strong>olhar</strong> não está isola<strong>do</strong>, o <strong>olhar</strong> está enraiza<strong>do</strong> <strong>na</strong> corporeidade, enquanto<br />
sensibilidade e enquanto motricidade” (66). Bosi adverte que gregos e romanos<br />
heleniza<strong>do</strong>s percebiam duas dimensões no <strong>olhar</strong>: a receptiva e a ativa. Ao mesmo tempo<br />
em que recebemos os estímulos visuais <strong>do</strong> exterior, direcio<strong>na</strong>mos nossos fachos de luz<br />
para as coisas, os fatos. Penso que o <strong>olhar</strong> é ativo, determi<strong>na</strong><strong>do</strong>, preciso, enquanto que a<br />
visão concerne o aspecto passivo que os antigos percebiam. Assim, o <strong>olhar</strong> requer<br />
vontade, desejo de saber, busca.<br />
É Sartre (1943) quem diz que o <strong>olhar</strong> não é só uma luz que conhece, mas uma<br />
força que penetra no ser olha<strong>do</strong>, tocan<strong>do</strong>-o, ferin<strong>do</strong>-o, tiran<strong>do</strong> a sua liberdade, jogan<strong>do</strong>-o<br />
para o <strong>na</strong>da. Assim, <strong>olhar</strong> e ser olha<strong>do</strong>, atividade e passividade – as duas dimensões <strong>do</strong><br />
ato de <strong>olhar</strong> - constituem um campo de forças onde saber e poder se misturam. O que<br />
nos leva a pensar também <strong>na</strong> perspectiva <strong>do</strong> objeto <strong>do</strong> <strong>olhar</strong>, no Outro que identificamos<br />
com nosso facho de luz, com nosso foco. Para Sartre, este <strong>olhar</strong> <strong>do</strong> outro sobre a minha<br />
pessoa não dá conta numa absorção da imagem total. Nem a minha visão consegue essa<br />
definição. A perspectiva <strong>do</strong> <strong>olhar</strong>-outro escorre <strong>na</strong> minha; e “a minha perspectiva<br />
desliza espontaneamente <strong>na</strong> <strong>do</strong> outro e, juntas, são recolhidas em um único mun<strong>do</strong> onde<br />
to<strong>do</strong>s participamos como sujeitos anônimos da percepção”.<br />
Destacan<strong>do</strong> alguns aspectos, temos que o <strong>olhar</strong> é uma relação, auxilian<strong>do</strong> <strong>na</strong><br />
interação e <strong>na</strong> cognição; o projetar de um <strong>olhar</strong> marca as figuras de sujeito e<br />
objeto, <strong>na</strong> <strong>medida</strong> em que se coloca entre elas; depois, até pode dissolvê-las,<br />
chaman<strong>do</strong> a atenção para o percurso que as liga; o <strong>olhar</strong> vai além da visão, pois é a<br />
visão que procura, que interroga; o <strong>olhar</strong> é um ponto de contato, conhecimento e<br />
reconhecimento da alteridade; o <strong>olhar</strong> reúne percepção sensorial e interpretação<br />
simbólica; é leitura e é apreensão; é assim um gesto que constrói, gesto de leitura..<br />
24
Em O <strong>na</strong>scimento da clínica, Michel Foucault empreende um minucioso estu<strong>do</strong><br />
sobre um <strong>olhar</strong> específico, o <strong>do</strong> médico, <strong>na</strong> passagem <strong>do</strong> século XVIII para XIX <strong>na</strong><br />
França. Um <strong>olhar</strong> ativo, direcio<strong>na</strong><strong>do</strong>, único. O surgimento da medici<strong>na</strong> moder<strong>na</strong> se dá<br />
com a instituição de um novo <strong>olhar</strong> que os profissio<strong>na</strong>is lançam sobre os corpos <strong>do</strong>s<br />
enfermos, enxergan<strong>do</strong> de outra forma a <strong>do</strong>ença, ven<strong>do</strong> novos sintomas, observan<strong>do</strong><br />
comportamentos até então desconsidera<strong>do</strong>s. A experiência clínica e a fundação de um<br />
<strong>olhar</strong> determi<strong>na</strong>rão novas práticas, novas compreensões <strong>do</strong>s fenômenos: “O olho tor<strong>na</strong>-<br />
se o depositário e a fonte da clareza; tem o poder de trazer à luz uma verdade que ele só<br />
recebe à <strong>medida</strong> que lhe deu à luz” (1998: XI-XII).<br />
Foucault afirma que existe um trabalho da medici<strong>na</strong> para alcançar sua condição,<br />
mas por um caminho em que ela deve apagar cada um de seus<br />
passos, desde que atinja seu fim, neutralizan<strong>do</strong> não somente os casos<br />
em que se apóia, mas sua própria intervenção. Daí a estranha<br />
característica <strong>do</strong> <strong>olhar</strong> médico; ele é toma<strong>do</strong> em uma espiral<br />
indefinida: dirige-se ao que há de visível <strong>na</strong> <strong>do</strong>ença, mas a partir <strong>do</strong><br />
<strong>do</strong>ente, que oculta este visível, mostran<strong>do</strong>-o; conseqüentemente,<br />
para conhecer, ele deve reconhecer. E este <strong>olhar</strong>, progredin<strong>do</strong>,<br />
recua, visto que só atinge a verdade da <strong>do</strong>ença, deixan<strong>do</strong>-a vencêlo,<br />
esquivan<strong>do</strong>-se e permitin<strong>do</strong> ao próprio mal realizar, em seus<br />
fenômenos, sua <strong>na</strong>tureza. (8)<br />
É um <strong>olhar</strong> clínico: atento, qualitativo, com sutil percepção, sensível,<br />
direcio<strong>na</strong><strong>do</strong>, que não descarta o essencial. Parcialmente, Foucault formula uma<br />
definição para este <strong>olhar</strong> clínico:<br />
Um ato perceptivo subentendi<strong>do</strong> por uma lógica das operações; é<br />
a<strong>na</strong>lítico, porque reconstitui a gênese da composição; mas está<br />
isento de toda intervenção, <strong>na</strong> <strong>medida</strong> em que esta gênese <strong>na</strong>da<br />
mais é <strong>do</strong> que a sintaxe da linguagem que falam as próprias coisas<br />
em um silêncio originário. O <strong>olhar</strong> da observação e as coisas que ele<br />
percebe se comunicam por um mesmo Logos, que é, em um caso,<br />
gênese <strong>do</strong>s conjuntos e, no outro, lógica das operações. (123)<br />
Se antes os relatos médicos eram rechea<strong>do</strong>s de explicações míticas, fantasiosas,<br />
em poucas décadas, as descrições patológicas revestem-se de minúcias que garantem<br />
25
uma maior visibilidade das moléstias, tor<strong>na</strong>n<strong>do</strong>-as mais verossímeis. A experiência<br />
clínica e a mudança <strong>na</strong> estrutura hospitalar possibilitam este novo <strong>olhar</strong>, dan<strong>do</strong> espaço<br />
para o aparecimento de uma outra medici<strong>na</strong>. O <strong>olhar</strong> <strong>do</strong> clínico vai se assemelhar à<br />
reflexão <strong>do</strong> filósofo <strong>na</strong> <strong>medida</strong> em que ambos buscarão alcançar uma estrutura de<br />
<strong>objetividade</strong>. As formas de visibilidade no ambiente médico vão mudar e aí, “o <strong>olhar</strong> se<br />
realizará em sua verdade própria e terá acesso à verdade das coisas”, permitin<strong>do</strong> uma<br />
“reorganização epistemológica da <strong>do</strong>ença, em que os limites <strong>do</strong> visível e <strong>do</strong> invisível<br />
seguem novo plano”.<br />
É bem verdade que o <strong>olhar</strong> não é o único senti<strong>do</strong> manifesto nesta operação. O<br />
tato e a audição ajudaram a compor uma triangulação sensorial indispensável para a<br />
percepção a<strong>na</strong>tômico-clínica. Entretanto, a tríade mantém-se sob o signo <strong>do</strong>mi<strong>na</strong>nte <strong>do</strong><br />
visível 5 . Na leitura de Foucault, a instituição de um novo <strong>olhar</strong> é sintoma de uma nova<br />
medici<strong>na</strong>, aquela que contém a experiência clínica, que se sustenta em outras bases<br />
epistemológicas. Fazen<strong>do</strong> um paralelo com o Jor<strong>na</strong>lismo, também se pode refletir sobre<br />
o <strong>olhar</strong> que este campo lança sobre seus objetos. Tal como <strong>na</strong> medici<strong>na</strong>, existe um <strong>olhar</strong><br />
clínico para os fatos, para as ce<strong>na</strong>s, para o mun<strong>do</strong>. Enquanto o médico se preocupa com<br />
o diagnóstico da <strong>do</strong>ença, à procura das causas para o mal <strong>do</strong> paciente, o jor<strong>na</strong>lista<br />
observa a vida em busca de fatos noticiáveis, que precisem ser reconta<strong>do</strong>s, transmiti<strong>do</strong>s<br />
ao público. Como o <strong>olhar</strong> clínico, o <strong>olhar</strong> jor<strong>na</strong>lístico também procura, interroga, escava<br />
a superfície pretensamente homogênea <strong>do</strong> tempo. Assim como é pretensamente direto e<br />
transparente o seu facho. Entre o sujeito e os objetos, bem <strong>na</strong> <strong>medida</strong> <strong>do</strong> <strong>olhar</strong>,<br />
repousam a opacidade, a resistência e a incerteza.<br />
5 Giles Deleuze disse certa vez que Foucault tinha paixão pelo ato de ver. Entre os franceses, ele não é único.<br />
Há ainda Derrida, Barthes, Merleau-Ponty, Sartre, Baudelaire, Valéry, Appoli<strong>na</strong>ire, Robbe-Grillet, entre outros.<br />
Fraize-Pereira (1995) esclarece que, no caso de Foucault, o interesse pelo <strong>olhar</strong> vem da fenomenologia de<br />
Merleau-Ponty e da ontologia de Heidegger, além da psicanálise existencial de Binswanger.<br />
26
1.3 O <strong>olhar</strong> jor<strong>na</strong>lístico<br />
“En effet les regards variant en fréquence, dureé et direction<br />
pour un même individu placé dans des contexts situationnels différents,<br />
mas aussi pour plusiers individus placés dans une même situation”<br />
Alain Brossard – La psychologie du regard<br />
Por uma lei da física newtonia<strong>na</strong>, <strong>do</strong>is corpos não podem ocupar um mesmo<br />
lugar no espaço, fato que traz como conseqüência, por exemplo, a impossibilidade de<br />
duas pessoas terem a mesma visão de um objeto. Mesmo se postadas la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong>, suas<br />
perspectivas serão ligeiramente distintas, e é bem possível que, se estes indivíduos se<br />
alter<strong>na</strong>rem no ponto de vista, suas visões não sejam as mesmas. Esta formulação<br />
impede, então, a existência de um <strong>olhar</strong> comum?<br />
Fisiologicamente, sim. Mas filosoficamente, há uma brecha. Isto é, cada<br />
observa<strong>do</strong>r tem seu par de olhos que captam as imagens <strong>do</strong>s objetos ilumi<strong>na</strong><strong>do</strong>s,<br />
identifican<strong>do</strong>-os cada um em seu cérebro. Porém, pode-se considerar que um <strong>olhar</strong> seja<br />
também uma maneira de ler o mun<strong>do</strong>, uma forma de entendê-lo, de se colocar como<br />
observa<strong>do</strong>r. Assim, se os <strong>do</strong>is indivíduos <strong>do</strong> exemplo seguem as mesmas diretrizes<br />
ideológicas ou religiosas, se foram educa<strong>do</strong>s <strong>na</strong>s mesmas matrizes de pensamento, se<br />
acreditam em valores morais comuns, etc., eles podem enxergar a vida sob um mesmo<br />
prisma, como se usassem óculos semelhantes. Assim, os indivíduos podem alcançar<br />
condições semelhantes de visibilidade e observação, soman<strong>do</strong>-se a isso fatores<br />
individuais como acuidade visual, por exemplo.<br />
Embora pareça um tanto determinista, os diversos modelos de representação –<br />
científico, ideológico, simbólico, religioso... – grosseiramente funcio<strong>na</strong>m como<br />
corre<strong>do</strong>res que levam as pessoas a várias janelas, de onde se olha para o mun<strong>do</strong>. Seguir<br />
uma crença ou repetir os procedimentos de uma mesma formação profissio<strong>na</strong>l podem<br />
redundar numa mesma perspectiva de leitura <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> (e por conseguinte, de ação<br />
nele) para diferentes indivíduos.<br />
27
No caso profissio<strong>na</strong>l, a formação não se limita só ao adestramento técnico, mas<br />
passa também pela construção de um saber específico e pelo processo de um<br />
assujeitamento comum. Desta forma, ao longo da etapa formativa, uma profissão vai se<br />
apresentar como o entrelaçamento de campos característicos de saber, fazer e ser. Esta<br />
convergência fortalece um <strong>olhar</strong> específico.<br />
28
1.3.1 O Jor<strong>na</strong>lismo como campo de saber, fazer e ser<br />
O Jor<strong>na</strong>lismo é uma atividade profissio<strong>na</strong>l relativamente recente se se considerar<br />
que seus primódios remetem ao século XVII 6 . A invenção da imprensa por Gutenberg<br />
em 1456 possibilitou condições tecnológicas que redundaram no surgimento de um<br />
sistema, que mais tarde seria chama<strong>do</strong> de mediático.<br />
Historicamente, contam-se trezentos anos das primeiras manifestações próximas<br />
ao Jor<strong>na</strong>lismo como o conhecemos hoje 7 . Neste curto perío<strong>do</strong>, ele foi se constituin<strong>do</strong><br />
enquanto campo específico de fazer (consolidan<strong>do</strong> uma técnica), de saber (estruturan<strong>do</strong><br />
uma teoria) e de ser (constituin<strong>do</strong> uma ética).<br />
De acor<strong>do</strong> com Didier Hussen e Olivier Robert (1991:162), toda profissão<br />
encoraja um certo conformismo e com o Jor<strong>na</strong>lismo não é diferente. “Fazer carreira<br />
supõe um respeito às regras estabelecidas”. Assim, a fixação destes parâmetros vai<br />
auxiliar <strong>na</strong> demarcação de um ofício próprio, preenchen<strong>do</strong> com um espírito comum o<br />
conjunto das atividades profissio<strong>na</strong>is.<br />
No manual Jor<strong>na</strong>lismo para principiantes, Natalício Norberto (1978:13) define<br />
a profissão como o “ofício de escrever, publicar ou dirigir um jor<strong>na</strong>l, departamento de<br />
notícia de emissora de rádio ou de televisão, ou uma assessoria de comunicação social”.<br />
Para o autor, a área demanda <strong>do</strong>s profissio<strong>na</strong>is nela envolvi<strong>do</strong>s certas qualidades e<br />
qualificações que vão da vocação ao conhecimento técnico (“saber ler e escrever e<br />
outros atributos indispensáveis como saber outras línguas”), passan<strong>do</strong> por <strong>do</strong>tes físicos<br />
(“boa saúde, bons músculos e bons nervos”) e mentais (“o jor<strong>na</strong>lista precisa de algo<br />
mais que a inteligência”, “o repórter deve ser responsável, persistente, sincero,<br />
imparcial”). Outro atributo mencio<strong>na</strong><strong>do</strong> é o que chama de “senso de notícia”:<br />
6 Apesar de a primeira folha periódica impressa sob processo tipográfico – a Relatio Historica – ter si<strong>do</strong><br />
lançada em 1583, com publicação semestral, só a partir <strong>do</strong> século XVII surgem os primeiros jor<strong>na</strong>is diários:<br />
The Tatler (1709-1711) e The Spectator (1711-1712), ambos <strong>na</strong> Grã-Bretanha.<br />
29
Assim como o cozinheiro sabe escolher os ingredientes ou um bom<br />
tempero, também o Repórter deve ser capaz de distinguir entre os<br />
fatos realmente aproveitáveis e aqueles de pouco ou nenhum valor.<br />
O ‘faro’ jor<strong>na</strong>lístico é tão importante para o Repórter como a água<br />
para o peixe. O senso da notícia ajuda o Repórter a:<br />
a) Perceber onde está a notícia<br />
b) Reconhecer a notícia, onde quer que se encontre<br />
c) Selecio<strong>na</strong>r o ponto de interesse da história, a fim de apresentá-lo<br />
no início da redação. (27-28)<br />
Esta percepção ou reconhecimento <strong>do</strong> noticiável está vincula<strong>do</strong> estreitamente a<br />
um certo <strong>olhar</strong> específico <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo. Mas os atributos relega<strong>do</strong>s ao jor<strong>na</strong>lista<br />
profissio<strong>na</strong>l podem ser complementa<strong>do</strong>s por outros autores.<br />
Luiz Amaral (1982:29-30), por exemplo, define o jor<strong>na</strong>lista como “o homem que<br />
faz a notícia; quem a descobre, apura, escreve e divulga seca, comentada ou<br />
interpretada. Seu trabalho consiste em formar, informar, reformar, ensi<strong>na</strong>r, divertir”. O<br />
estudioso ressalta que, embora as circunstâncias possam ser diferenciadas, “as<br />
qualidades profundas que se lhe exigem são as mesmas”. Isto é, o jor<strong>na</strong>lista precisa ter<br />
vocação, viver em esta<strong>do</strong> de curiosidade e ter iniciativa.<br />
Além de curiosidade, para Spencer Crump (1974), o indivíduo que se dedica ao<br />
Jor<strong>na</strong>lismo precisa alimentar um senso de responsabilidade, ter flexibilidade para<br />
trabalhar em equipe, gostar de jor<strong>na</strong>is, ter vários campos de interesse e senso de<br />
empatia, e contar com habilidade para expor idéias, conhecimentos de ortografia e<br />
pontuação.<br />
Julian Harris, Kelly Lester e Stanley Johnson (1965: 9-10) têm uma visão menos<br />
determinista <strong>do</strong> profissio<strong>na</strong>l: ele não <strong>na</strong>sce jor<strong>na</strong>lista, tor<strong>na</strong>-se. A maioria <strong>do</strong>s atributos<br />
para o sucesso de um repórter é adquirida: curiosidade insaciável, perso<strong>na</strong>lidade flexível<br />
e social, disposição para passar por muitas experiências, temperamento para trabalhar<br />
7 No Brasil, a imprensa só completará <strong>do</strong>is séculos de existência em 2008 por ocasião <strong>do</strong>s 200 anos de<br />
surgimento <strong>do</strong> Correio Braziliense, que curiosamente era edita<strong>do</strong> em Londres.<br />
30
sob pressão de prazos e uma tolerância que permita observação de pessoas e eventos.<br />
Ambição, senso, determi<strong>na</strong>ção e autodiscipli<strong>na</strong> também auxiliam.<br />
John Hohenberg (1982:5) lembra que no início <strong>do</strong> século XX cabia ao repórter o<br />
papel de registrar objetivamente os fatos. Apesar disso, alguns jor<strong>na</strong>listas extrapolavam<br />
o padrão estenográfico e se aprofundavam em acontecimentos, propician<strong>do</strong> denúncias,<br />
revelações e acontecimentos importantes <strong>do</strong> ponto de vista <strong>do</strong> interesse público 8 . Com<br />
isso, “longe de se conformar com um vago padrão de <strong>objetividade</strong>, o jor<strong>na</strong>lista verifica<br />
que, muitas vezes, a avaliação das notícias obedece a critérios subjetivos. E, dada a<br />
condição huma<strong>na</strong>, não poderia ser de outra forma”, conclui o autor.<br />
8 O Jor<strong>na</strong>lismo norte-americano cunhou uma expressão para estes jor<strong>na</strong>listas investigativos: “muckrakers”,<br />
isto é, fuça<strong>do</strong>res de lixo. De acor<strong>do</strong> com Hohenberg, “foram eles que expuseram a decadência das<br />
cidades, as máqui<strong>na</strong>s administrativas corruptas, a desapiedada busca de lucro pelos grandes monopólios<br />
industriais, as tragédias huma<strong>na</strong>s <strong>do</strong> trabalho escravo, a exploração de crianças (...) Esses exemplos<br />
pioneiros de Jor<strong>na</strong>lismo a serviço da comunidade e reportagens de investigação deixaram marca profunda<br />
no tipo de Jor<strong>na</strong>lismo hoje pratica<strong>do</strong>”.<br />
31
1.3.2 O conhecimento jor<strong>na</strong>lístico<br />
Se o Jor<strong>na</strong>lismo é uma prática, o desenvolvimento de seus procedimentos<br />
técnicos possibilitou, ao longo <strong>do</strong>s anos, a emergência de um campo teórico que o<br />
balizasse. Com o tempo, foi surgin<strong>do</strong> uma teoria que sustentasse o Jor<strong>na</strong>lismo.<br />
De acor<strong>do</strong> com Juan Beneyto (1965:15-6), o Jor<strong>na</strong>lismo reflete um fazer liga<strong>do</strong> a<br />
uma profissão, mas não só isso: “El periodismo es, evidentemente, u<strong>na</strong> técnica, como<br />
todas las actividades profesio<strong>na</strong>lizadas lo son en gra<strong>do</strong> mayor o menor, pero constituye<br />
también, com creciente relieve, u<strong>na</strong> cultura”. O conhecimento jor<strong>na</strong>lístico é um “saber<br />
alerta<strong>do</strong>”, já que o jor<strong>na</strong>lista é alguém que está prepara<strong>do</strong> para dar conta <strong>do</strong>s fatos. E<br />
sem homem alerta, defende, não há jor<strong>na</strong>lista:<br />
De novo, o <strong>olhar</strong>...<br />
Sin esta apititud, las cuartillas mejor escritas no deben lograr la luz da<br />
la Prensa, y ciertamente se han de perder muchas imágenes y<br />
muchos metros de reportaje fílmico porque los fotógrafos de las<br />
revistas ilustradas o los cámaras del noticiario o de la televisión no<br />
han sabi<strong>do</strong> ‘ver periodísticamente’ lo que tenían delante de sus ojos.<br />
(47)<br />
Na esteira da consideração sobre um conhecimento específico no Jor<strong>na</strong>lismo,<br />
Eduar<strong>do</strong> Meditsch (1992:20) argumenta que se há uma produção de saber diferente da<br />
produzida pela ciência, o Jor<strong>na</strong>lismo tem importância social muito maior <strong>do</strong> que se vem<br />
atribuin<strong>do</strong> a ele. O autor sugere, então, que por meio <strong>do</strong> conhecimento de mun<strong>do</strong><br />
produzi<strong>do</strong> pelo Jor<strong>na</strong>lismo, o sujeito possa encontrar vestígios para o entendimento da<br />
crescente irracio<strong>na</strong>lidade da civilização racio<strong>na</strong>l e científica, por exemplo.<br />
Segun<strong>do</strong> Meditsch, to<strong>do</strong> conhecimento social (inclusive o Jor<strong>na</strong>lismo) acarreta<br />
em certa perspectiva <strong>do</strong> tempo histórico, <strong>do</strong> contexto social. Como estas esferas estão<br />
em constante mobilidade, o Jor<strong>na</strong>lismo puramente objetivo é rechaça<strong>do</strong>.<br />
32
Isso não acontece por motivos de ordem psicológica, como dizem os<br />
manuais. Não é porque o indivíduo está psicologicamente envolvi<strong>do</strong><br />
com o fato, mas porque toda a forma de conhecimento pressupõe<br />
também um posicio<strong>na</strong>mento <strong>do</strong> sujeito diante <strong>do</strong> objeto. Essa é a<br />
razão mais profunda, porque o próprio Jor<strong>na</strong>lismo implica uma visão<br />
ideológica, implica um posicio<strong>na</strong>mento ético e político sobre a<br />
realidade. (31-2)<br />
O posicio<strong>na</strong>mento de Meditsch se aproxima bem das formulações de Javier Del<br />
Rey Morato (1988), para quem se pode pensar numa filosofia da atualidade e daí<br />
considerar que a atualidade é uma ideologia. Conforme aponta, a atualidade é a nossa<br />
circunstância, nossa cultura, nossa sensibilidade. E o critério para tal realidade é o<br />
universo gera<strong>do</strong> pelos meios de comunicação. É por meio deles que o cidadão<br />
contemporâneo se situa no tempo e no espaço, dimensio<strong>na</strong> alguns de seus valores,<br />
assenta sua racio<strong>na</strong>lidade. A partir disso se permite dizer que a mídia constrói nossa<br />
consciência de atualidade, que oferece as condições de nossa experiência de mun<strong>do</strong> para<br />
além de nossos senti<strong>do</strong>s.<br />
Desta forma, a atualidade é uma ideologia, uma ideologia acontecimental:<br />
Es la actualidad como hábito y como cultura, como sensibilidad y<br />
mo<strong>do</strong> de instalarse en el tiempo y en el espacio – mo<strong>do</strong> de<br />
habérselas com ellos – la que no sólo admite, sino promocio<strong>na</strong> y<br />
privilegia el que los acontecimientos idiosincráticos sean reduci<strong>do</strong>s al<br />
común denomi<strong>na</strong><strong>do</strong>r del ‘human interest’ y de la espectacularidad.<br />
(67)<br />
O sujeito receptor, sob a torrente de informação e parâmetros de real, é quem<br />
confere uma ordem ao mun<strong>do</strong>, mas para isso, precisa estar sintoniza<strong>do</strong> numa mesma<br />
freqüência <strong>do</strong>s meios de comunicação. Comungar a mesma ideologia acontecimental.<br />
Para Morato (idem:82), se a ciência persegue a <strong>objetividade</strong> e se a arte a subjetividade, o<br />
Jor<strong>na</strong>lismo apela para a criação de um lugar de mun<strong>do</strong>, observa<strong>do</strong> por meio de uma<br />
tecnologia – o tipo e a <strong>na</strong>tureza <strong>do</strong> veículo de comunicação - e de uma ideologia – a<br />
atualidade.<br />
33
1.3.3 A constituição <strong>do</strong> <strong>olhar</strong> no Jor<strong>na</strong>lismo<br />
Entre jor<strong>na</strong>listas, embora se comente muito sobre um possível faro para a<br />
notícia, é possível também ouvir coisas <strong>do</strong> tipo: “Jor<strong>na</strong>lismo não é pra qualquer um. É<br />
preciso ter olho pra coisa!”. Desconta<strong>do</strong>s os exageros e entendi<strong>do</strong> que a exclusividade<br />
se estende para outras tantas (senão todas as) profissões, não se pode ignorar a idéia que<br />
está por trás desse enuncia<strong>do</strong>: o Jor<strong>na</strong>lismo tem uma especialidade que exige, de quem o<br />
exerce, esforços com que outros profissio<strong>na</strong>is não se preocupam. Um breve inventário<br />
das falas de eminentes repórteres aponta justamente para uma confirmação desta idéia.<br />
Relatan<strong>do</strong> seus 35 anos de correspondente de guerra, Peter Arnett (1994) usa<br />
diversas vezes expressões <strong>do</strong> tipo “aprendi a escrever ape<strong>na</strong>s o que vi” ou que sua<br />
função é “dizer ape<strong>na</strong>s o que vê”. Estas declarações ganham maior contorno quan<strong>do</strong>, <strong>na</strong><br />
pági<strong>na</strong> 307, cita uma carta à sua base em Nova Iorque: “Preten<strong>do</strong> continuar a contar a<br />
guerra como ela é ...”.<br />
Na esteira <strong>do</strong>s casos profissio<strong>na</strong>is, seguem-se mais alguns. Certa vez, ao ser<br />
questio<strong>na</strong><strong>do</strong> sobre o que era necessário para ser jor<strong>na</strong>lista, Samuel Wainer respondeu<br />
que era preciso mergulhar realmente <strong>na</strong> vida para poder transmiti-la. Mas, além disso,<br />
um jor<strong>na</strong>lista precisa saber ver. “E saber ver é só viven<strong>do</strong>. Muitas vezes no mesmo lugar<br />
em que há três pessoas, acontece algo e só o jor<strong>na</strong>lista vê” 9 . O cronista Lourenço<br />
Diaféria reforça a idéia, descreven<strong>do</strong> o jor<strong>na</strong>lista como aquele que tem a capacidade “de<br />
ver as coisas como os outros não vêem” 10 . Esta capacidade ou esta necessidade<br />
profissio<strong>na</strong>l converge no senso comum que circula pela categoria de que é necessário<br />
estar alerta, atento aos si<strong>na</strong>is <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />
Clóvis Rossi ajuda a desenhar este <strong>olhar</strong> diferencia<strong>do</strong> <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista ao relatar sua<br />
experiência como correspondente inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l em meio aos conflitos <strong>na</strong> Faixa de Gaza:<br />
9 Apud Medi<strong>na</strong> (1982:190).<br />
34
A primeira viagem (1987) foi a passeio (...) Saí com a sensação de ter<br />
anda<strong>do</strong> sobre um barril de pólvora, prestes a explodir, mas não me<br />
atrevi a escrever <strong>na</strong>da a respeito, porque, como turista, podia ter-me<br />
deixa<strong>do</strong> iludir por aparências. Mas ficou um desejo enorme de voltar,<br />
de ver mais de perto, de avaliar melhor tu<strong>do</strong> aquilo. (1999:177)<br />
Isto é, o cidadão comum, o turista, olha para o mun<strong>do</strong> de forma passiva,<br />
receptiva, enquanto que o repórter afia seus instrumentos para ler a vida de forma mais<br />
aguda. Não isenta de miragens e distorções, mas com um <strong>olhar</strong> que procura, que caça.<br />
Mesmo que sejam ape<strong>na</strong>s fantasmas.<br />
Rossi justifica constantemente sua opção pelo Jor<strong>na</strong>lismo por este permitir-lhe<br />
“ser testemunha ocular da história <strong>do</strong> meu tempo”. A expressão – cara ao Jor<strong>na</strong>lismo<br />
brasileiro por ter se decanta<strong>do</strong> no bojo de um paradigma, O Repórter Esso – reúne forte<br />
carga de verossimilhança. Afi<strong>na</strong>l, ver a História é estar diante dela no seu<br />
acontecimento, testemunhan<strong>do</strong>-a com os próprios olhos 11 <strong>na</strong> tentativa de absorver os<br />
fatos <strong>na</strong> sua integridade. Desta crença resulta a ilusão de que o <strong>olhar</strong> é transparente,<br />
perfeito, que a ele chegam os objetos sem distorções, sem embaçamentos. Esquece-se<br />
que o que vêm aos olhos são imagens das coisas e não as próprias. A opacidade é<br />
constitutiva <strong>do</strong> <strong>olhar</strong>, e o jor<strong>na</strong>lista não pode se desviar disso.<br />
O jor<strong>na</strong>lista Audálio Dantas diz que uma das exigências <strong>do</strong> ofício <strong>do</strong> repórter é<br />
ter “coragem para ver”, e depois dela, a coragem para contar o que se viu:<br />
De um bom repórter, desses que vão além das prescrições <strong>do</strong>s<br />
manuais da redação ou das receitas da pauta diária, exige-se muito<br />
mais. Ao contrário daqueles macaquinhos chineses, eles têm de ver,<br />
ouvir e contar – de preferência contar bem, em texto de qualidade.<br />
(1998:10)<br />
O inventário discursivo sobre o <strong>olhar</strong> <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista continua:<br />
10 Segun<strong>do</strong> Ribeiro (1994:204).<br />
11 O Jor<strong>na</strong>lismo adquire dimensões de crônica histórica, como se pode ver no artigo de Clóvis Rossi <strong>na</strong><br />
Playboy de abril de 1984: Eu vi a Argenti<strong>na</strong> mudar.<br />
35
Ainda hoje, sempre que posso, volto à reportagem. O desafio de<br />
perseguir a informação pelos labirintos onde ela tenta esconder-se, a<br />
astúcia <strong>na</strong> formulação das perguntas, o olho vigilante em busca <strong>do</strong>s<br />
detalhes despreza<strong>do</strong>s, enfim, a guerra da inteligência contra a<br />
mentira, tu<strong>do</strong> isso faz da reportagem a fasci<strong>na</strong>nte aventura que ela<br />
deve ser.<br />
Mauro Santaya<strong>na</strong>, IN: Dantas (1998:168)<br />
Lugar de repórter é <strong>na</strong> rua, costuma-se dizer <strong>na</strong> Redação. Mas para<br />
sê-lo de fato é preciso mais, é preciso saber ver. Ten<strong>do</strong> o <strong>olhar</strong>, podese<br />
ser repórter sen<strong>do</strong> músico, escreven<strong>do</strong> livro, fazen<strong>do</strong> filme, poema<br />
ou pintura. Uma das reportagens mais contundentes sobre os horrores<br />
da Guerra Civil Espanhola foi um quadro em preto-e-branco,<br />
Guernica, de Picasso.<br />
Zuenir Ventura, IN: Nogueira (s/d:108)<br />
O bom repórter político, aliás, sabe sempre para onde o vento está<br />
sopran<strong>do</strong>, mesmo nos momentos de calmaria absoluta, como<br />
quan<strong>do</strong>, por exemplo, as flores <strong>do</strong> recesso brotam <strong>do</strong> cerra<strong>do</strong> ári<strong>do</strong><br />
<strong>na</strong>s férias que os políticos se dão (quan<strong>do</strong> não se pagam a si mesmos<br />
para trabalhar) no inverno ou no verão. Quan<strong>do</strong> o assunto é política,<br />
convém saber ler <strong>na</strong>s entrelinhas escondidas entre a ponta da língua<br />
(normalmente esconden<strong>do</strong> alguma bolsa de veneno) e o canino<br />
mais próximo.<br />
José Nêumanne Pinto, IN: Nogueira (idem: 51)<br />
Embora se possa pensar que este acervo de idéias semelhantes seja um evento<br />
recente no Jor<strong>na</strong>lismo local, o fato é que, em muitos momentos, o papel da imprensa foi<br />
se consolidan<strong>do</strong> sobre a idéia de que jor<strong>na</strong>listas têm uma missão a cumprir frente a seu<br />
público. Numa famosa conferência de 1920, Rui Barbosa manifesta o que considera este<br />
dever:<br />
A imprensa é a vista da Nação. Por ela é que a Nação acompanha<br />
o que lhe passa ao perto e ao longe, enxerga o que lhe malfazem,<br />
devassa o que lhe ocultam e tramam, colhe o que lhe sonegam, ou<br />
roubam, percebe onde lhe alvejam, ou no<strong>do</strong>am, mede o que lhe<br />
cerceiam, ou destroem, vela pelo que lhe interessa, e se acautela <strong>do</strong><br />
que a ameaça. Sem vista mal se vive. Vida sem vista é vida no<br />
escuro, vida <strong>na</strong> soledade, vida no me<strong>do</strong>, morte em vida (...) Já lhe<br />
não era pouco ser o órgão visual da <strong>na</strong>ção. Mas a imprensa, entre os<br />
povos livres, não é só o instrumento da vista, não é unicamente o<br />
aparelho <strong>do</strong> ver, a serventia de um só senti<strong>do</strong>. Participa, nesses<br />
organismos coletivos, de quase todas as funções vitais. Barbosa<br />
(1990: 37)<br />
36
O Jor<strong>na</strong>lismo enquanto atividade que revela os acontecimentos para o grande<br />
público, e o jor<strong>na</strong>lista enquanto profissio<strong>na</strong>l que detém um <strong>olhar</strong> atento a estes fatos são<br />
duas idéias que se combi<strong>na</strong>m nos fragmentos discursivos elenca<strong>do</strong>s até aqui. No que<br />
tange à esfera <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista, uma discussão ganha vulto, a de uma identidade comum<br />
àqueles que exercem esta atividade.<br />
Frente ao estu<strong>do</strong> da identidade profissio<strong>na</strong>l <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista, encontramos raros<br />
trabalhos científicos produzi<strong>do</strong>s no país, mas que servem de <strong>medida</strong> para a colocação <strong>do</strong><br />
problema. É o caso, por exemplo, de Travancas (1993), que parte da premissa de que<br />
haja realmente uma identidade particular neste profissio<strong>na</strong>l. Conforme atesta, a<br />
profissão é tão importante para quem a desempenha que delineia para estes uma<br />
“identidade particular”. A partir <strong>do</strong> conceito de identidade social, conseqüência direta<br />
de papel social e da sua construção, a autora acredita que o papel profissio<strong>na</strong>l para os<br />
jor<strong>na</strong>listas ocupa um lugar privilegia<strong>do</strong> em suas histórias de vida, mesmo apesar <strong>do</strong>s<br />
demais papéis a serem desempenha<strong>do</strong>s. “O ser jor<strong>na</strong>lista contami<strong>na</strong> os demais papéis,<br />
ainda que de forma diferenciada” (101-102) 12 . Assim, a identidade <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista se<br />
forma a partir da profissão, mas resulta algo além <strong>do</strong> que o seu mero exercício.<br />
Expandin<strong>do</strong> os limites, a autora, neste ponto, faz referência ao fato de algumas<br />
carreiras significarem bem mais <strong>do</strong> que uma atividade ou emprego <strong>na</strong> vida de seus<br />
profissio<strong>na</strong>is, provocan<strong>do</strong> “um envolvimento que resultará num estilo de vida e numa<br />
visão de mun<strong>do</strong> específicos”(108). Estas tais ocupações – e o jor<strong>na</strong>lista é uma delas -<br />
têm exigi<strong>do</strong> de seus membros um sentimento de adesão, de compromisso que marcará<br />
suas trajetórias <strong>na</strong> carreira, em meio à categoria, aos pares profissio<strong>na</strong>is. Esta adesão –<br />
este é o termo de Travancas – “surge como expressão de suas individualidades”,<br />
12 Outro estu<strong>do</strong> da condição jor<strong>na</strong>lística, o de Cremilda Medi<strong>na</strong> (1982), já apontava esta tendência: “Tor<strong>na</strong>se<br />
difícil dividir as características <strong>do</strong> profissio<strong>na</strong>l assumi<strong>do</strong> entre aptidões de perso<strong>na</strong>lidade e simples técnicas<br />
de trei<strong>na</strong>mento no ofício. Tanto uma como outros são visíveis e podem ser catalogadas no estu<strong>do</strong> direto <strong>do</strong><br />
desempenho diário, mas, se para efeitos de análise, pode-se apontá-los isoladamente, <strong>na</strong> realidade formam<br />
um feixe indissociável que nem os psicólogos sociais ainda desvendaram” (24).<br />
37
marcan<strong>do</strong> fortemente a conduta prática destes profissio<strong>na</strong>is, sua compreensão de mun<strong>do</strong><br />
e as formas de reação aos estímulos da vida cotidia<strong>na</strong>. Condição que nos permite pensar,<br />
por extensão, que esta visão de mun<strong>do</strong>, esta adesão sejam traços constituintes nos<br />
processos de confecção de indivíduos-jor<strong>na</strong>listas, sen<strong>do</strong> também responsável pelas<br />
práticas que colhemos <strong>na</strong> contemporaneidade das mídias.<br />
Se existe um <strong>olhar</strong> de jor<strong>na</strong>lista, uma forma de esses profissio<strong>na</strong>is se dirigirem<br />
aos seus objetos, este <strong>olhar</strong> é particularmente importante para a formação de sua<br />
identidade de jor<strong>na</strong>lista, porque ajuda a configurar a alteridade e a individualidade<br />
pessoal.<br />
Identidade que é um terreno complexo e pantanoso, onde convivem velhos mitos<br />
cultiva<strong>do</strong>s <strong>na</strong>s redações e novos titãs, engendra<strong>do</strong>s nos gabinetes, <strong>na</strong>s gerências e nos<br />
departamentos de engenharia e recursos humanos. Ribeiro (1994) se debruça sobre a<br />
modernização pela qual <strong>do</strong>is grandes jor<strong>na</strong>is brasileiros passaram nos últimos anos – a<br />
Folha de S.Paulo e O Esta<strong>do</strong> de S.Paulo – e as conseqüências destes processos para os<br />
jor<strong>na</strong>listas, <strong>na</strong> ponta da escala industrial produtiva da mídia. O título de seu trabalho é<br />
sugestivo - Sempre alerta - clara remissão a um <strong>do</strong>s valores <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo, estar atento<br />
a tu<strong>do</strong> a toda hora.<br />
Vigora nos veículos da grande imprensa uma peculiar onisciência, de<br />
tipo seletivo, em que o jor<strong>na</strong>l e seus repórteres pretendem saber<br />
tu<strong>do</strong>. Não em senti<strong>do</strong> absoluto, mas trata-se de saber tu<strong>do</strong> o que é<br />
importante. Esse conhecimento universal deriva de uma onipresença,<br />
também seletiva, e que abarca cada jor<strong>na</strong>lista, suas fontes, cada<br />
empresa de notícias e o conjunto da imprensa.(125)<br />
Assim, reforçan<strong>do</strong> o dito, mitos românticos da profissão cedem espaço a uma<br />
nova mitologia, agora gerencial, administrativa, de modernização, sob a lógica de<br />
merca<strong>do</strong>. Os manuais criam não ape<strong>na</strong>s regras de estilo e redação, mas também<br />
condicio<strong>na</strong>m como se deve ver o mun<strong>do</strong>. De que parte, de que forma, sob quais<br />
aspectos. O que passa a ser importante, publicável, identificável como notícia.<br />
38
Estar sempre alerta é lançar um <strong>olhar</strong> sagaz, penetrante e apura<strong>do</strong>. É enxergar<br />
<strong>na</strong>s ce<strong>na</strong>s mais prosaicas algum descompasso que mereça menção. É ver no lixo<br />
matéria-prima para o noticiário. É antever os passos da fonte de informação suspeita. É<br />
se deixar levar por miragens também, vultos e sombras. É prever o que fazer <strong>na</strong> edição<br />
seguinte. É configurar o mun<strong>do</strong> e seus acontecimentos nos minutos que o telejor<strong>na</strong>l<br />
dispõe ou espremê-los <strong>na</strong> largura de algumas colu<strong>na</strong>s de pági<strong>na</strong>. Ser jor<strong>na</strong>lista, então, é<br />
lançar um <strong>olhar</strong> para o mun<strong>do</strong>, compreendê-lo, organizá-lo em manchetes e traduzi-lo<br />
rápida e claramente.<br />
Ribeiro (op.cit.) estabelece uma relação próxima de análise <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo<br />
enquanto profissão e a religião, <strong>na</strong>s suas estruturas, funcio<strong>na</strong>mentos, hierarquias e<br />
orde<strong>na</strong>mentos. Alguns valores <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo – tal qual <strong>na</strong> religião – tor<strong>na</strong>m-se <strong>do</strong>gmas,<br />
indiscutíveis. E estar sempre alerta é um deles. O que permite o autor, lá pelas tantas,<br />
questio<strong>na</strong>r-se se o Jor<strong>na</strong>lismo é uma forma de sacerdócio. Ou, reformulan<strong>do</strong>,<br />
poderíamos indagar: ficar ven<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> 24 horas por dia de uma forma determi<strong>na</strong>da é<br />
agir como se estivesse numa religião? É ver a vida, as contingências e as pessoas por<br />
um prisma redutor, compressor da realidade, normatizar? Vamos um pouco mais longe:<br />
Enxergar assim é ver em profundidade? É observar com amplidão? Ter uma visão geral,<br />
panorâmica, é ter o melhor ponto de vista?<br />
A questão da identidade se equilibra também nos mitos que ajudam a construir<br />
um ramo profissio<strong>na</strong>l. Nas crônicas <strong>do</strong> repórter Pedro Bial (1996), o correspondente<br />
inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l acaba citan<strong>do</strong> algumas dessas expressões que envolvem os jor<strong>na</strong>listas:<br />
“repórteres vivem de carne huma<strong>na</strong>”, são “vicia<strong>do</strong>s em perigo”, e “repórteres podem ser<br />
advoga<strong>do</strong>s de causas perdidas, padres confessores, carrascos, redentores. Têm noites de<br />
médicos e dias de coveiros. Alguns diriam abutres. Mas, como dizem os tiras, ‘alguém<br />
tem de fazer o trabalho sujo’”<br />
39
O <strong>olhar</strong> é uma forma de apreensão da realidade, provoca uma compreensão <strong>do</strong>s<br />
fenômenos, reúne um conjunto de procedimentos práticos e expressa um traço da<br />
identidade <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista. Mas não existe uma homogeneidade neste <strong>olhar</strong>, uma<br />
perenidade em todas as suas manifestações. Apesar de exercerem o Jor<strong>na</strong>lismo, o<br />
correspondente inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, o repórter investigativo, o jor<strong>na</strong>lista que trabalha <strong>na</strong>s<br />
editorias de Geral e de Comportamento tem suas especificidades no ofício de enxergar<br />
notícias. Setoristas vêem com mais rigor que os jor<strong>na</strong>listas generalistas, porque o foco –<br />
para usar um termo da óptica – é mais preciso, mais recorta<strong>do</strong>.<br />
Um exemplo das diferenças no <strong>olhar</strong> <strong>na</strong> imprensa <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l é Ricar<strong>do</strong> Kotscho,<br />
que já se autodefiniu como o repórter <strong>do</strong> pipoqueiro: “Enquanto to<strong>do</strong>s cobriam o palco,<br />
eu ficava pela platéia, dan<strong>do</strong> uma espiada nos basti<strong>do</strong>res” (IN: Dimenstein & Kotscho,<br />
1990: 68). A atenção para fatos periféricos, geralmente considera<strong>do</strong>s acessórios, a<br />
preocupação com as histórias <strong>do</strong>s anônimos envolvi<strong>do</strong>s, tu<strong>do</strong> isso faz <strong>do</strong> <strong>olhar</strong> deste<br />
repórter uma janela no Jor<strong>na</strong>lismo burocrático.<br />
É Kotscho (1986) quem mesmo diz que o indivíduo que trabalha <strong>na</strong> área precisa<br />
ter alma de repórter: “o repórter deve estar sempre livre de qualquer preconceito,<br />
qualquer idéia pré-fixada pela pauta ou por ele mesmo. É a sua sensibilidade que vai<br />
determi<strong>na</strong>r o enfoque da matéria” (42).<br />
Talvez alma de repórter, esta sensibilidade para o fato noticiável, seja um outro<br />
nome para o que venho tentan<strong>do</strong> desenhar aqui como <strong>olhar</strong> no Jor<strong>na</strong>lismo. É preciso, no<br />
entanto, polir melhor esta expressão. Existe um <strong>olhar</strong> clínico, especial, particular <strong>na</strong><br />
apreensão <strong>do</strong>s estímulos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Esta modalidade distinta de compreensão provoca<br />
uma série de ações e reações daqueles que olham. Diante disso, é possível que não<br />
exista um <strong>olhar</strong> de jor<strong>na</strong>lista, mas sim um <strong>olhar</strong> <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo, um <strong>olhar</strong> jor<strong>na</strong>lístico.<br />
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A expressão <strong>olhar</strong> de jor<strong>na</strong>lista pode ser um problema, já que assi<strong>na</strong>la algum<br />
traço determinista <strong>na</strong> profissão: para ser jor<strong>na</strong>lista, é necessário que se tenha tal <strong>olhar</strong>,<br />
tal <strong>na</strong>tureza. O equívoco se revela quan<strong>do</strong> uma pergunta simples é feita: Quem não tem<br />
estes olhos, então, não é jor<strong>na</strong>lista?<br />
A solução parece ser substituir a expressão origi<strong>na</strong>l por “<strong>olhar</strong> jor<strong>na</strong>lístico”, tal<br />
como “<strong>olhar</strong> clínico”, “<strong>olhar</strong> cinematográfico”. Aí sim, parece ter-se chega<strong>do</strong> a um<br />
ponto menos incômo<strong>do</strong>. Dessa forma, o “<strong>olhar</strong> jor<strong>na</strong>lístico” compreenderia um<br />
conjunto de procedimentos de apreensão da realidade e seus elementos, o que<br />
ajuda a desenhar traços de uma identidade funcio<strong>na</strong>l no campo social <strong>do</strong> trabalho.<br />
É um feixe de comportamentos operacio<strong>na</strong>is, um amontoa<strong>do</strong> de padrões de<br />
resposta aos estímulos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, preciso <strong>na</strong> sua vocação de busca, mas não livre<br />
de erros, perdas de foco e embaçamentos. Imperfeito, o <strong>olhar</strong> jor<strong>na</strong>lístico é menos<br />
evidente e transparente quanto se almeja; é mais complexo <strong>do</strong> que se imagi<strong>na</strong>.<br />
Se se pode caracterizar alguém pela <strong>na</strong>tureza das funções que desempenha,<br />
jor<strong>na</strong>listas são pessoas que executam certas atividades comuns. Para estes trabalha<strong>do</strong>res,<br />
a apreensão da realidade é fundamental, imprescindível para a manutenção de seu devir<br />
profissio<strong>na</strong>l. Para estes trabalha<strong>do</strong>res, tu<strong>do</strong> o que cerca os procedimentos desta<br />
apreensão deve, de alguma forma, incidir sobre os demais comportamentos, as demais<br />
ações (ou reações ao mun<strong>do</strong>). A a<strong>do</strong>ção da expressão “<strong>olhar</strong> jor<strong>na</strong>lístico” se mostra<br />
mais pacifica<strong>do</strong>ra, neste senti<strong>do</strong>, e mais precisa <strong>na</strong> definição. Isto <strong>na</strong> <strong>medida</strong> em que<br />
aponta para um <strong>olhar</strong> que é próprio, vincula<strong>do</strong> ao campo jor<strong>na</strong>lístico.<br />
Aban<strong>do</strong><strong>na</strong>n<strong>do</strong> uma lógica perigosamente determinista, é preciso ter claro que o<br />
<strong>olhar</strong> jor<strong>na</strong>lístico é um produto social cria<strong>do</strong> dentro e fora da profissão. Isto é,<br />
inicialmente, com o surgimento das gramáticas jor<strong>na</strong>lísticas, alguns elementos foram<br />
lança<strong>do</strong>s, dan<strong>do</strong> contorno e formato visível ao perfil <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r. Luiz Beltrão (1992)<br />
41
afirma que o Jor<strong>na</strong>lismo tem seis caracteres fundamentais: atualidade, variedade,<br />
interpretação, periodicidade, popularidade e promoção. O <strong>olhar</strong> jor<strong>na</strong>lístico é motiva<strong>do</strong><br />
por muitos destes aspectos e funcio<strong>na</strong> sob eles. O repórter sai para a cobertura em busca<br />
da novidade, tentan<strong>do</strong> atualizar conhecimentos que ele e o público já têm sobre o fato...<br />
Mas o <strong>olhar</strong> jor<strong>na</strong>lístico leva em conta também expectativas que o público<br />
consumi<strong>do</strong>r de informação manifesta. Por isso, este produto social também se alimenta<br />
de outras fontes exteriores ao seu campo específico de formação e atuação.<br />
Este <strong>olhar</strong> tem lá os seus critérios, suas regras de funcio<strong>na</strong>mento. Um <strong>olhar</strong><br />
rigoroso, seletivo, abrangente, aprofunda<strong>do</strong>, obceca<strong>do</strong>. Um <strong>olhar</strong> rechea<strong>do</strong> daquilo que<br />
Luiz Beltrão (op.cit.) chamou de curiosidade comunicativa:<br />
O primeiro atributo <strong>do</strong> autêntico jor<strong>na</strong>lista é a curiosidade<br />
comunicativa, que difere da curiosidade pura e simples porque se<br />
reveste de um insopitável desejo de passar adiante a informação<br />
obtida ou o fato testemunha<strong>do</strong>, ajuntan<strong>do</strong>-lhe da<strong>do</strong>s novos e<br />
comentários. Diante de uma ocorrência, o homem comum pára,<br />
informa-se e segue o seu caminho, indiferente, se tal fato não lhe diz<br />
respeito imediato; o intelectual e o cientista igualmente param,<br />
informam-se e prosseguem, quan<strong>do</strong> muito retiran<strong>do</strong> dela algumas<br />
inferências particulares ligadas à sua ordem cultural; o jor<strong>na</strong>lista age<br />
diferentemente. A sua parada é mais longa ou mais intensa; a<br />
informação que colhe é mais completa e tem aplicação imediata<br />
porque ele lhe dá forma, julga-a, pesa-a, não em função <strong>do</strong>s seus<br />
próprios interesses, mas da sociedade de que se sente receptor e<br />
transmissor. Neste senti<strong>do</strong> é que o jor<strong>na</strong>lista é aquele ‘órgão<br />
constante e vivo de informação’. Para ele, o fato tem um senti<strong>do</strong><br />
que é preciso captar, definir, situar, comparar com outros, classificálo<br />
pela sua maior ou menor importância e, fi<strong>na</strong>lmente, exprimi-lo,<br />
divulgá-lo, comunicá-lo. (148)<br />
Mas o <strong>olhar</strong> jor<strong>na</strong>lístico se preocupa em extrair <strong>do</strong> fato seus elementos<br />
essenciais, os aspectos que mais contribuem para a <strong>na</strong>rrativa <strong>do</strong> contemporâneo, caráter<br />
que Beltrão batizou de “fecundidade jor<strong>na</strong>lística”:<br />
A fecundidade jor<strong>na</strong>lística já foi conceituada por um escritor chileno,<br />
Andres Siegfried, com as seguintes palavras: ‘(o jor<strong>na</strong>lista) deve <strong>olhar</strong>,<br />
escrever, evocar... tem-se a impressão de que exami<strong>na</strong> o mun<strong>do</strong>...<br />
com um olho novo; é um memorialista mas é também um sociólogo,<br />
incli<strong>na</strong><strong>do</strong> ante a sociedade em que vive, acumulan<strong>do</strong> observações<br />
curiosas que serão aproveitadas pelos filósofos para deduzir leis’.<br />
42
1.3.4 Jor<strong>na</strong>lismo e senti<strong>do</strong>s humanos<br />
Em seu último livro, Roland Barthes se detém sobre a fotografia e como ela se<br />
apresenta pessoalmente a ele. A câmara clara é um livro deliberadamente subjetivo e<br />
tenta lançar luzes sobre o ato e a arte de apreender imagens. A exemplo de outras obras,<br />
Barthes faz aqui certos deslocamentos preciosos para o entendimento <strong>do</strong> processo<br />
fotográfico, não no seu viés técnico, mas no simbólico. Assim, para o autor, o órgão <strong>do</strong><br />
fotógrafo não é o olho, mas seu de<strong>do</strong>, e a vidência deste sujeito não consiste no ver, mas<br />
no estar lá (1984: 30 e 76). O <strong>olhar</strong> se revela como algo “virtualmente louco”, já que é<br />
simultaneamente efeito de verdade e de loucura. O <strong>olhar</strong> fotográfico<br />
tem algo de para<strong>do</strong>xal, que às vezes encontramos <strong>na</strong> vida (...)<br />
Diríamos que a Fotografia separa a atenção da percepção, e liberta<br />
ape<strong>na</strong>s a primeira, todavia impossível sem a segunda (...) uma<br />
mirada sem alvo. No entanto, é esse movimento escandaloso que<br />
produz a mais rara qualidade de um ar. Eis o para<strong>do</strong>xo: como se<br />
pode ter o ar inteligente sem pensar em <strong>na</strong>da de inteligente, quan<strong>do</strong><br />
se olha esse pedaço de baquelita negra? É que o <strong>olhar</strong>, ao fazer a<br />
economia da visão, parece reti<strong>do</strong> por algo interior (164-167).<br />
Difícil dizer o que vem a ser esta matéria interior. Mas, com Barthes,<br />
percebemos que a análise <strong>do</strong> <strong>olhar</strong> não se apóia ape<strong>na</strong>s nos mecanismos de<br />
funcio<strong>na</strong>mento <strong>do</strong>s órgãos da visão 13 . É previsível que uma análise <strong>do</strong> <strong>olhar</strong> se<br />
circunscreva ao senti<strong>do</strong> da visão. É recorrente que se apóie o julgamento da vida e <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong> <strong>na</strong>s imagens que captamos, até porque a civilização contemporânea construiu-se<br />
muito à base de uma cognição vidente, de modelos de representação visíveis, de<br />
pressupostos filosóficos que vinculam o real ao verificável pelos olhos.<br />
13 Étienne Samain (2000) afirma que não seria demais pensar em Barthes como um antropólogo, com seu<br />
agu<strong>do</strong> <strong>olhar</strong> sobre o mun<strong>do</strong>, as pessoas e os seus fatos. Um antropólogo visual: “Barthes levanta um<br />
problema cognitivo e epistemológico sério. Existem atrás e dentro das matrizes imagéticas – fotográfica,<br />
cinematográfica, videográfica, informática -, lógicas, operações cognitivas, posturas filosóficas, visões e<br />
apreensões singulares <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, que temos ainda que descobrir e pôr à luz” (48)<br />
43
No Jor<strong>na</strong>lismo, isso, constantemente, é leva<strong>do</strong> às últimas conseqüências. César<br />
Tralli (2001:22) conta que, numa reportagem sobre uma meni<strong>na</strong> que supostamente<br />
chorava lágrimas de cristal, só acreditou no fato ao assistir a uma demonstração da<br />
a<strong>do</strong>lescente. Tomada de ceticismo, a equipe de televisão queria desmascarar a farsa:<br />
“Afi<strong>na</strong>l, obrigação de repórter é desconfiar sempre de tu<strong>do</strong> e de to<strong>do</strong>s. Questio<strong>na</strong>r-se a<br />
to<strong>do</strong> instante sobre o que vê, ouve e apura... Porém, mesmo sen<strong>do</strong> fiel à cartilha <strong>do</strong> bom<br />
repórter, só mais tarde eu iria descobrir que fora traí<strong>do</strong> pelos meus próprios olhos”.<br />
Neste caso, o <strong>olhar</strong> não bastou.<br />
Fer<strong>na</strong>ndes (1998:37) revela que o dramaturgo Jorge Andrade comparava o<br />
jor<strong>na</strong>lista à figura mitológica judaica <strong>do</strong> demônio Asmodeu, aquele que espia dentro <strong>do</strong>s<br />
outros e de tu<strong>do</strong> o que está oculto.<br />
Tal qual um Asmodeu moderno, o repórter ao escrever seus textos,<br />
reporta os acontecimentos como processo de revelação de suas<br />
raízes. Um movimento de abrir portas, ver as pessoas por dentro e<br />
mostrar o resulta<strong>do</strong> ao mun<strong>do</strong>”. De acor<strong>do</strong> com a autora, a postura<br />
<strong>do</strong> repórter Asmodeu “implica <strong>na</strong> possibilidade de assimilar o outro<br />
mo<strong>do</strong> de ‘ver’, espreitar a realidade, a partir <strong>do</strong> próprio olho” (179).<br />
Como que se reforçasse o dito, o próprio Jorge Andrade, no romance-biografia<br />
Labirinto, vai afirmar: “Ver coisas, ver pessoas <strong>na</strong> sua diversidade, ver, rever, ver,<br />
rever. O olho arma<strong>do</strong> me dava e continua a me dar força para a vida” (1978:60).<br />
É comum que se reflita sobre o entendimento com base <strong>na</strong> visão que temos de<br />
tu<strong>do</strong>, mas é preciso entender que o <strong>olhar</strong> pode se guiar também pelas demais<br />
sensibilidades huma<strong>na</strong>s. Pode-se dizer – embora pareça contraditório – que o <strong>olhar</strong> não<br />
se limita à visão. Ele vai mais longe, pois articula conjuntamente os demais senti<strong>do</strong>s.<br />
Esquadrinhar um mo<strong>do</strong> de ver é importante, fundamental. Mas ele é insuficiente<br />
para realizar um Jor<strong>na</strong>lismo orgânico, apoia<strong>do</strong> pelas demais extensões <strong>do</strong> homem, seus<br />
outros senti<strong>do</strong>s. To<strong>do</strong>s eles devem estar aguça<strong>do</strong>s, sob controle e com perfeito manejo.<br />
To<strong>do</strong>s os senti<strong>do</strong>s no seu maior grau de acuidade, dispostos a responder, ágeis <strong>na</strong><br />
44
condução <strong>do</strong>s impulsos, precisos <strong>na</strong> identificação das causas de seus alertas. A visão<br />
tem que ser abrangente e penetrante, poden<strong>do</strong> rasgar o espaço, chegar aos objetos,<br />
retor<strong>na</strong>n<strong>do</strong> com a sua indelével imagem, a mais nítida possível. A audição deve ser<br />
aguda, delicada, <strong>na</strong> possibilidade de pinçar as palavras e os sons <strong>na</strong> sua inteireza. Fino<br />
deve ser o faro, limpo de incertezas, captan<strong>do</strong> a atmosfera das ce<strong>na</strong>s e das pessoas,<br />
desvian<strong>do</strong>-se das artificialidades. O toque deve ser ameno e perscruta<strong>do</strong>r, tateante da<br />
<strong>na</strong>tureza das coisas, <strong>do</strong> seu volume, espessura, temperatura e rugosidade. As papilas<br />
gustativas, por sua vez, estarão preenchidas com intensa memória e precisão, com<br />
clareza e certeza no paladar.<br />
O <strong>olhar</strong> jor<strong>na</strong>lístico não pode se estreitar a ser ape<strong>na</strong>s o <strong>olhar</strong>, a visão. É<br />
necessário recorrer a uma epistemologia <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s, uma compreensão de que estas<br />
células de apreensão de signos funcionem combi<strong>na</strong>das, articuladas. É importante frisar<br />
que não estou atrás de uma percepção integral, totalizante, com a qual me perderia <strong>na</strong><br />
armadilha determinista. Mas sim enfatizo a necessidade de conjugar os senti<strong>do</strong>s<br />
humanos para ampliar a captação <strong>do</strong>s estímulos externos e facilitar a conexão sujeito-<br />
objeto, tão necessária nos processos cognitivos. Com isso, o <strong>olhar</strong> jor<strong>na</strong>lístico não se<br />
estrutura ape<strong>na</strong>s <strong>na</strong> visão, mas ganha também com as informações que os demais<br />
senti<strong>do</strong>s recolhem <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />
Dessa forma, uma epistemologia <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s prevê como se configuram os<br />
saberes próprios <strong>do</strong> campo jor<strong>na</strong>lístico, condicio<strong>na</strong><strong>do</strong>s pela construção de uma visão<br />
específica, media<strong>do</strong>s por to<strong>do</strong>s os senti<strong>do</strong>s. Tal visão ímpar não pode estar associada<br />
ape<strong>na</strong>s ao senti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s olhos, mas ampara<strong>do</strong> pelos demais, <strong>na</strong> consolidação de uma<br />
sensibilidade trei<strong>na</strong>da para a apreensão <strong>do</strong> que pode ser noticiável. To<strong>do</strong>s os senti<strong>do</strong>s<br />
estão presentes <strong>na</strong> lida cotidia<strong>na</strong>: ouvir bem e captar as palavras impronunciáveis são<br />
fundamentais para o trabalho jor<strong>na</strong>lístico; farejar os fatos, seguir os o<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s<br />
45
acontecimentos, também é necessário para o profissio<strong>na</strong>l; bem como apalpar a<br />
consistência das informações e saborear (provar) as versões. Já se disse que um bom<br />
jor<strong>na</strong>lista deve contar as histórias com o corpo inteiro 14 ...<br />
Assim, é possível operar com conhecimentos de diversas origens,<br />
complementares de início, redundantes em algumas vezes, mas nunca descartáveis. Luis<br />
Carlos Restrepo chama isso de “cognição afetiva”, diálogo entre os diversos senti<strong>do</strong>s<br />
humanos, alargan<strong>do</strong> a razão, abrin<strong>do</strong> espaço para o coração e a sensibilidade. O<br />
intelecto não se mantém sozinho, é preciso um resgate da emoção, <strong>do</strong> sentimento.<br />
O interdito que separa a intelecção da afetividade parece ter sua<br />
origem em que, frente a uma percepção mediada pelo tato, gosto<br />
ou olfato, o Ocidente preferiu o conhecimento <strong>do</strong>s exteroreceptores,<br />
ou receptores à distância, como são a vista e o ouvi<strong>do</strong>. Nossa cultura<br />
é uma cultura audiovisual. (2000: 32)<br />
Entre os povos mais antigos, as referências a experiências sensoriais mediadas<br />
pelo olfato e pelo tato são mais numerosas, e tidas como sinônimos de sabe<strong>do</strong>ria,<br />
perícia, aguda percepção. Hoje em dia, a percepção das pessoas é largamente visual, ou<br />
audiovisual. É evidente que há neste hábito uma marca profunda deixada pelos meios de<br />
comunicação, majoritariamente auditivos e visuais.<br />
Mas a simples conexão <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s não basta para o surgimento e consolidação<br />
de um Jor<strong>na</strong>lismo orgânico. É preciso que as extensões <strong>do</strong> homem estejam preparadas,<br />
afi<strong>na</strong>das, sensíveis aos mais sutis estímulos. Denis Diderot (1979) mostra-nos tal<br />
importância, ao dissertar sobre a condição de um cego de <strong>na</strong>scença <strong>na</strong> iminência de uma<br />
cirurgia para a retirada de cataratas. Embora o filósofo, em alguns momentos, pareça<br />
estar elogian<strong>do</strong> aqueles que não vêem em detrimento <strong>do</strong>s que enxergam, <strong>na</strong> verdade,<br />
critica o <strong>olhar</strong> que não vê.<br />
14 Para José Hamilton Ribeiro, uma das condições objetivas <strong>do</strong> repórter é “ter os senti<strong>do</strong>s aguça<strong>do</strong>s”: “Melhor<br />
é confiar mesmo nos olhos, sem desprezar o que vem pela audição, talvez elaboran<strong>do</strong> assim: o que se diz<br />
convém registrar como versão; o fato mesmo depende de mais observação. E olho aberto. Olho aberto<br />
para o mun<strong>do</strong>” (Dantas: 1998, 114).<br />
46
O nosso cego se dirige pelo ruí<strong>do</strong> e pela voz tão seguramente que<br />
não duvi<strong>do</strong> que um tal exercício tor<strong>na</strong>sse os cegos muito destros e<br />
muito perigosos. (6)<br />
Se alguma vez um filósofo cego e sur<strong>do</strong> de <strong>na</strong>scença fizer um<br />
homem à imitação <strong>do</strong> de Descartes, ouso assegurar-vos, senhora,<br />
que colocará a alma <strong>na</strong> ponta <strong>do</strong>s de<strong>do</strong>s; pois é dali que lhe vêm as<br />
principais sensações, e to<strong>do</strong>s os conhecimentos. (10)<br />
Diderot chama a atenção para uma educação <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s. Assim, é preciso<br />
educar o <strong>olhar</strong>, educar os ouvi<strong>do</strong>s, sensibilizar as pontas <strong>do</strong>s de<strong>do</strong>s para tatear melhor...<br />
Um senti<strong>do</strong> pode ajudar o outro a se aperfeiçoar, aumentan<strong>do</strong> sua acuidade, sua<br />
habilidade, mas não há dependência essencial de suas funções, embora sirvam-se<br />
complementarmente.<br />
Num trecho de A Caver<strong>na</strong> 15 , José Saramago descreve o trabalho de um velho<br />
escultor sobre a argila. Seus de<strong>do</strong>s experientes tocam a matéria bruta com intensa<br />
sensibilidade, como se vissem o barro de perto, como se <strong>na</strong>s suas pontas estivesse seu<br />
cérebro. A passagem é ilustrativa disso que vejo como uma conjugação <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s<br />
para uma compreensão de algo maior.<br />
Quan<strong>do</strong> me remeto a um <strong>olhar</strong> clínico <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo, quero me referir a uma<br />
maneira particular de receber o mun<strong>do</strong>, compreendê-lo e demandar ações de resposta.<br />
Um <strong>olhar</strong> é um entendimento, e não ape<strong>na</strong>s a captação de uma imagem pelos faróis<br />
<strong>do</strong>s olhos. Este <strong>olhar</strong> não se resume a uma visão, mas também tem o suporte <strong>do</strong>s<br />
demais senti<strong>do</strong>s humanos, já que esta profissão depende deles no seu dia-a-dia 16 . O<br />
<strong>olhar</strong> jor<strong>na</strong>lístico é um complexo sensorial que articula os cinco senti<strong>do</strong>s humanos<br />
<strong>na</strong> busca de senti<strong>do</strong>s (significa<strong>do</strong>s) apreensíveis. Incompleto por <strong>na</strong>tureza e<br />
imperfeito por definição, este <strong>olhar</strong> enfrenta resistências e sombras para tocar a<br />
superfície das ce<strong>na</strong>s e das coisas, e interpretar nelas senti<strong>do</strong>s. O jor<strong>na</strong>lista vive entre<br />
15 São Paulo: Cia das Letras, 2000.<br />
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seus semelhantes, deve relatar o seu tempo, os acontecimentos que tomam lugar nele,<br />
por isso fica impossível eximir-se da apreensão da realidade pelos senti<strong>do</strong>s. A vida lhe<br />
chega também pelos ouvi<strong>do</strong>s, pelas <strong>na</strong>ri<strong>na</strong>s, no contato com a pele, sobre a língua.<br />
Em alguns ramos <strong>do</strong> campo <strong>do</strong> trabalho, certos senti<strong>do</strong>s são mais prementes.<br />
Para o fonoaudiólogo, o músico e o psica<strong>na</strong>lista, a escuta é fundamental, ponto de<br />
partida de muitas ações 17 . Para o escultor, para o massagista e para o telegrafista, reside<br />
no tato esta importância primeira. O astrônomo e o vigilante centram sua atenção <strong>na</strong><br />
visão, enquanto que o cozinheiro a combi<strong>na</strong> com o paladar, o olfato e o tato. Mecânicos<br />
e médicos equilibram-se nos senti<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s olhos, <strong>do</strong>s ouvi<strong>do</strong>s e das mãos. Jor<strong>na</strong>listas se<br />
assemelham a esses profissio<strong>na</strong>is, já que necessitam lançar mão de mais recursos de<br />
leitura da realidade.<br />
Ao dissertar sobre o processo comunicativo e os senti<strong>do</strong>s humanos, não posso<br />
deixar de citar Marshall McLuhan (1969), para quem os meios de comunicação<br />
funcio<strong>na</strong>m como extensões <strong>do</strong> corpo humano. Assim, os veículos (TV, Rádio, etc.)<br />
configuram um sistema nervoso prolonga<strong>do</strong>, por meio <strong>do</strong> qual o homem capta, sente,<br />
tem consciência de seu lugar e fato presentes.<br />
Se a metáfora se mostra verdadeira, isto é, se o cidadão tem a sua noção de<br />
atualidade por meio <strong>do</strong>s muitos meios (ou senti<strong>do</strong>s prolonga<strong>do</strong>s), <strong>na</strong>da mais <strong>na</strong>tural que<br />
isso se verifique também numa escala micro. Quer dizer, a apreensão <strong>do</strong> real (ou <strong>do</strong> que<br />
chamamos disso) deve ser mediada não ape<strong>na</strong>s pela visão, mas por to<strong>do</strong>s os senti<strong>do</strong>s<br />
humanos disponíveis. Daí a importância de uma epistemologia <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s. Na prática<br />
jor<strong>na</strong>lística, ela precisa ser proposta e colocada em prática neste senti<strong>do</strong>. Ou melhor,<br />
nestes senti<strong>do</strong>s.<br />
16 Note este trecho de Wainer (1987:106): “Mas [Chateaubriand] tinha faro de repórter, sabia onde estavam<br />
os assuntos efetivamente importantes. (...) Graças a esse faro, eu pude <strong>olhar</strong> com meus próprios olhos o<br />
<strong>na</strong>scimento <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de Israel”.<br />
17 Imagine, por exemplo, como seria hoje a história <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s da psique huma<strong>na</strong> se Freud não tivesse se<br />
preocupa<strong>do</strong> em ouvir suas pacientes histéricas...<br />
48
1.4 O <strong>olhar</strong> estabelece sujeitos e objetos<br />
“A reportagem é sempre uma ação transitiva; e o repórter, o seu sujeito,<br />
o que vai atrás <strong>do</strong> objeto, transitan<strong>do</strong> de um lugar para o outro.<br />
É o contato imediato em primeiro grau com to<strong>do</strong>s os senti<strong>do</strong>s:<br />
é o <strong>olhar</strong>, o paladar, o olfato, o tato e a audição de quem não pode ver,<br />
gostar, cheirar, tocar e ouvir o acontecimento. O resto é vicário e virtual”<br />
Zuenir Ventura, jor<strong>na</strong>lista brasileiro<br />
Um <strong>olhar</strong> é o que preenche a distância entre um corpo e outro. Numa ponta, a da<br />
origem, resta um sujeito. No outro extremo, fica o objeto deste <strong>olhar</strong>, coisa perscrutada,<br />
ce<strong>na</strong> recortada das demais seqüências <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Na outra ponta, pode estar também<br />
outro sujeito, mas se ele é o foco de um <strong>olhar</strong>, está objetiva<strong>do</strong>, mira<strong>do</strong>.<br />
O <strong>olhar</strong> é aquele processo que estabelece sujeitos e objetos, que dimensio<strong>na</strong><br />
relações. O <strong>olhar</strong> é o tato da distância, da longitude: ele toca tu<strong>do</strong>, até mesmo aquilo que<br />
os de<strong>do</strong>s ainda não alcançam. Ele enquadra a realidade, numa tentativa de organizá-la,<br />
de conservá-la num campo de visão próximo <strong>do</strong> entendimento. Ele cerca as ce<strong>na</strong>s, as<br />
situações, os corpos que ali habitam ou que, simplesmente, por lá passam. O lançamento<br />
de um <strong>olhar</strong> é uma ação <strong>do</strong> sujeito, pois tem <strong>na</strong> sua <strong>medida</strong> de existência a<br />
pressuposição de alguém que vê algo, que se coloca <strong>na</strong> posição de vidente, observa<strong>do</strong>r.<br />
O <strong>olhar</strong> só pára quan<strong>do</strong> encontra um objeto. Pára, mas não estacio<strong>na</strong>. Detém-se num<br />
instante para reconhecimento superficial, escanean<strong>do</strong> o objeto, colhen<strong>do</strong> informações<br />
para o processamento subjetivo. O <strong>olhar</strong> bate e volta. Rechea<strong>do</strong>. Transforma<strong>do</strong>.<br />
Um corpo (vivo ou morto), uma ce<strong>na</strong> (estática ou em movimento), uma<br />
seqüência de movimentos (lenta ou ligeira), um acontecimento (relevante ou<br />
desimportante) são objetos, coisas apreensíveis pelo <strong>olhar</strong>. A operação <strong>do</strong> <strong>olhar</strong> pode se<br />
dar entre sujeitos que se entreolham, que se encontram. Mas o <strong>olhar</strong> é um vetor, com<br />
ponto de partida e lugar de chegada. Não está livre de desvios ou de errâncias, pois faz<br />
parte de um universo repleto de incertezas. O <strong>olhar</strong> é uma mira, uma flechada, um raio.<br />
O <strong>olhar</strong> laça o mun<strong>do</strong> para o observa<strong>do</strong>r, e transforma, muitas vezes, sujeitos em objetos<br />
49
desta visão. A fotografia imita o <strong>olhar</strong> humano nesta mesma conversão, mas o faz com<br />
maior ênfase: pois congela o momento, corporifica a ce<strong>na</strong>, coisifica os sujeitos, tiran<strong>do</strong><br />
a sua dimensão viva e consciente.<br />
Michel Foucault (1980) já disse que o <strong>olhar</strong> clínico tem uma propriedade<br />
para<strong>do</strong>xal de ouvir uma linguagem no instante em que percebe um espetáculo. A<br />
fotografia é um <strong>olhar</strong> com córneas mecânicas, preocupa<strong>do</strong> com o alargamento <strong>do</strong><br />
presente, com a sua distensão.<br />
Dois processos – um físico e outro químico – permitem o registro <strong>do</strong> instante, a<br />
permanência histórica de um segun<strong>do</strong>. Primeiro, a luz ilumi<strong>na</strong> os corpos e permite que<br />
sejam refleti<strong>do</strong>s numa superfície receptora. Depois, uma solução de nitrato de prata –<br />
quimicamente sensível à incidência de luz – reage num suporte plástico (o filme)<br />
gravan<strong>do</strong> os corpos capta<strong>do</strong>s pela lente. É o desenvolvimento tecnológico que<br />
possibilita a manutenção de um instante. E a história da fotografia, de alguma forma,<br />
acaba perturban<strong>do</strong> a forma huma<strong>na</strong> de ver 18 : ela “é capaz de ver tu<strong>do</strong> - a verdadeira<br />
reti<strong>na</strong> <strong>do</strong> cientista, segun<strong>do</strong> o astrônomo Jules Jansen –, ela é <strong>do</strong>tada de uma missão<br />
<strong>do</strong>cumentária” (idem: 28, volume 2), ferramenta ideal para um inventário <strong>do</strong> planeta.<br />
Assim, ao se deparar com retratos de Henri Cartier-Bresson, por exemplo, pode-<br />
se dizer que é perceptível ali uma certa mania de ver, de “restabelecer um senti<strong>do</strong> que<br />
escapa pela metade, de encontrar oportu<strong>na</strong>mente <strong>na</strong> ocultação <strong>do</strong> <strong>olhar</strong>, numa figura<br />
anônima e imprecisa, um retorno a sua própria inquietude” (idem: 16, volume 3). Ou<br />
ainda que o fotojor<strong>na</strong>lismo de Robert Capa é “uma maneira de viver e uma forma de<br />
escritura, mais incisiva que um relato, uma instintiva ‘prolongação <strong>do</strong> espírito e <strong>do</strong><br />
coração’” (idem: 24, volume 3). A fotografia é a manutenção <strong>do</strong> ver, leitura <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />
18 Conforme Robert Delpne e Michel Frizot no volume 1, pági<strong>na</strong> 5, da coleção Histoire de Voir (1989)<br />
50
O homem é um ser que produz e se alimenta de senti<strong>do</strong>s. Ao longo de sua<br />
existência, consome-se significan<strong>do</strong> os fatos e ressignifican<strong>do</strong> a si mesmo. Explicar os<br />
acontecimentos, compreender o mun<strong>do</strong>, nomear as coisas, ler a vida, todas estas ações<br />
são iniciativas de produção e preenchimento de senti<strong>do</strong>s. Um <strong>olhar</strong> é uma etapa <strong>do</strong><br />
processo de preenchimento e fixação de senti<strong>do</strong>s.<br />
Por meio <strong>do</strong> movimento da leitura – considerada aqui uma ação ampla e<br />
profunda dissemi<strong>na</strong>da nos afazeres humanos -, o <strong>olhar</strong> manifesta-se como uma iniciativa<br />
de criação e multiplicação de senti<strong>do</strong>s. A leitura é a decodificação de signos e sua<br />
atribuição de senti<strong>do</strong>s e significa<strong>do</strong>s nos contextos. Então, ler – tal como escrever,<br />
pintar ou compor - é produzir senti<strong>do</strong>s.<br />
O Jor<strong>na</strong>lismo é uma atividade que, destacadamente, opera sobre o campo da<br />
significação, pois lê o mun<strong>do</strong>, interpreta o que nele vê <strong>na</strong> tentativa de traduzir este<br />
esta<strong>do</strong> de coisas para outras pessoas. Para Maurice Mouillaud (1997:38), produzir<br />
informação é destacar, trazer à to<strong>na</strong>, permitir uma visibilidade, colocar a ponto de se<br />
perceber. Assim,<br />
o pôr em visibilidade não constitui ape<strong>na</strong>s um ser ou um fazer; não é<br />
simplesmente infinitivo, contém modalidades <strong>do</strong> poder e <strong>do</strong> dever.<br />
Indica um possível, um duplo senti<strong>do</strong> da capacidade e da<br />
autorização. A informação é o que é possível e o que é legítimo<br />
mostrar, mas também o que devemos saber, o que está marca<strong>do</strong><br />
para ser percebi<strong>do</strong>.<br />
O jor<strong>na</strong>lista coloca em evidência, dá visibilidade ao fato, mas antes disso, ele<br />
precisa enxergá-lo, reconhecê-lo no oceano de informações descartáveis e relevantes. O<br />
<strong>olhar</strong> jor<strong>na</strong>lístico deve operar sobre esta extensão em busca <strong>do</strong> que pode mesmo vir à<br />
to<strong>na</strong>, e permanecer <strong>na</strong> superfície 19 .<br />
19 Uma passagem das memórias de Samuel Wainer (1987) si<strong>na</strong>liza o peso da<strong>do</strong> ao <strong>olhar</strong> jor<strong>na</strong>lístico no<br />
exercício profissio<strong>na</strong>l: “Para um jovem profissio<strong>na</strong>l, <strong>na</strong>da poderia haver de mais emocio<strong>na</strong>nte que ver a<br />
História acontecen<strong>do</strong> diante <strong>do</strong>s próprios olhos. (...) Circulei com olhos de jovem repórter por aquela Europa<br />
devastada pela guerra”. Alexandre GARCIA (1990) estende o raciocínio para outros senti<strong>do</strong>s humanos: “Só<br />
me vali <strong>do</strong> que vi, ouvi, senti, toquei e cheirei.”<br />
51
Este ler-o-mun<strong>do</strong> carrega consigo o peso da responsabilidade, o que acarreta<br />
comprometimentos éticos 20 . A presença <strong>do</strong> <strong>olhar</strong> pressupõe uma subjetividade ativa, que<br />
dispara o <strong>olhar</strong> para o exterior. No campo jor<strong>na</strong>lístico, mais cara que a subjetividade é a<br />
<strong>objetividade</strong>, esta faculdade de tor<strong>na</strong>r tu<strong>do</strong> o que o <strong>olhar</strong> toca em coisa, objeto.<br />
20 De forma alegórica, José Saramago (1995) mostra isso no seu Ensaio sobre a cegueira, quan<strong>do</strong> coloca<br />
alguém que enxerga perfeitamente no meio de uma multidão de cegos. A mulher <strong>do</strong> oftalmologista – ironia!<br />
– convive com os acometi<strong>do</strong>s pela “treva branca”. Só ela vê, mas ninguém sabe disso. Mesmo assim, ela<br />
guia sua vida por uma “responsabilidade de ter olhos quan<strong>do</strong> os outros os perderam”.<br />
52
CAPÍTULO 2<br />
A <strong>objetividade</strong><br />
2.1 Uma idéia em cinco séculos<br />
“...isso que a você parece uma bacia de barbeiro,<br />
para mim é o elmo de Manbrino, e a outro parecerá outra coisa...”<br />
Miguel de Cervantes - O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha<br />
A<br />
gu<strong>do</strong>s, os olhos seguem o vulto pela relva. Dom Quixote avista um cavaleiro<br />
portan<strong>do</strong> o almeja<strong>do</strong> elmo de Manbrino, reluzin<strong>do</strong> a ouro. O fidalgo orde<strong>na</strong><br />
que se defenda e, num átimo, investe sobre o oponente que sequer esboça<br />
reação. Quan<strong>do</strong> o cavaleiro se levanta <strong>do</strong> chão não se mostra tão vultoso quanto antes: é<br />
ape<strong>na</strong>s o que sobrou de um simples barbeiro. Dom Quixote toma-lhe o elmo e segue seu<br />
caminho, ignoran<strong>do</strong> as objeções de Sancho Pança. Mais tarde, numa taver<strong>na</strong> – que o<br />
fidalgo julga ser um castelo – Dom Quixote discute com o escudeiro e outros<br />
acompanhantes. Eles teimam em dizer que o elmo não passa de uma bacia de barbeiro,<br />
mas – sagaz – o fidalgo adverte que ali <strong>na</strong>quele castelo, tu<strong>do</strong> se dá de forma<br />
encantatória e to<strong>do</strong>s se deixam confundir por ilusões.<br />
Se um pedaço retorci<strong>do</strong> de metal pode ser ao mesmo tempo um admirável<br />
capacete e um recipiente ordinário, um conceito como o de <strong>objetividade</strong> pode se<br />
sustentar nesta ambigüidade? Onde mora a <strong>objetividade</strong> quan<strong>do</strong> as visões se<br />
multiplicam, e com elas os objetos vistos?<br />
O trecho da obra de Cervantes ilustra com clareza o problema que se tem diante<br />
<strong>do</strong>s olhos: A <strong>objetividade</strong> é possível? Como ela se dá? Em que nível? Sob quais<br />
condições? Quem a exerce? E no que ela se apóia para vigorar?<br />
É evidente que o problema da <strong>objetividade</strong> não é recente, mas o que se percebe é<br />
que nos últimos cinco séculos a sua discussão não só se alargou como também ganhou<br />
profundidade no meio daqueles que se aventuram a enfrentá-la. Muito arbitrariamente,<br />
53
pode-se eleger como um marco desta temática a edição de O discurso <strong>do</strong> méto<strong>do</strong>, de<br />
René Descartes, em 1637.<br />
Este é um marco que se pode denomi<strong>na</strong>r como pré-histórico às discussões<br />
recentes sobre a <strong>objetividade</strong>, já que a obra cartesia<strong>na</strong>, <strong>na</strong> verdade, lança bases para o<br />
que se pode chamar de uma filosofia da consciência 21 . Numa alegoria, pode-se pensar<br />
que uma seta disparada pelo filósofo francês vem atravessan<strong>do</strong> os séculos, trazen<strong>do</strong><br />
amarrada a si uma longa linha de incertezas e indefinições. O fio, flexível por <strong>na</strong>tureza,<br />
resiste ao tempo, às mudanças <strong>do</strong> clima e à tentação <strong>do</strong>s homens em querer arrebentá-lo,<br />
deixan<strong>do</strong> a tradição <strong>na</strong>s brumas <strong>do</strong> esquecimento. Do marco estabeleci<strong>do</strong> até o ponto de<br />
onde se fala contemporaneamente, a flecha viaja cortan<strong>do</strong> os séculos XVII, XVIII, XIX,<br />
XX e XXI. E o desafio que proponho agora é que tomemos como guia a linha amarrada<br />
à seta, numa imitação de Teseu. Com este alegórico fio de Ariadne <strong>na</strong>s mãos,<br />
retrocedamos em busca de pistas de como foram assenta<strong>do</strong>s os conceitos liga<strong>do</strong>s à<br />
<strong>objetividade</strong>. O labirinto, os moinhos de vento e to<strong>do</strong> tipo de miragem fazem parte <strong>do</strong><br />
caminho.<br />
21 Na <strong>medida</strong> em que fica clara a distinção entre a consciência pensante e a extensão, podemos falar de<br />
sujeito e objeto, e de suas relações resultantes.<br />
54
2.1.1 O conceito <strong>na</strong> filosofia<br />
55<br />
“Objetividade é a ilusão de que as observações<br />
podem ser feitas sem um observa<strong>do</strong>r”<br />
Heinz von Foerster, cientista austríaco<br />
Em meio à busca de um conceito, resulta quase impossível ignorar as menções e<br />
as significações que este adquire em dicionários e glossários já reconheci<strong>do</strong>s 22 .<br />
Portanto, marcan<strong>do</strong> passo no caminho já percorri<strong>do</strong> por Abbag<strong>na</strong>no (2000:723), o termo<br />
“objeto” surge <strong>na</strong> filosofia lá pelo século XIII, <strong>na</strong>s mãos <strong>do</strong>s pensa<strong>do</strong>res escolásticos. E<br />
seu conceito se refere ao elemento de qualquer operação que leve em conta atividade ou<br />
passividade. Nestas equações, o sujeito é sempre o agente, o elemento ativo, restan<strong>do</strong> ao<br />
objeto uma <strong>na</strong>tureza passiva, terceira. Assim, <strong>na</strong> acepção generalizada, um objeto é uma<br />
coisa, algo: “é o fim a que se tende, a coisa que se deseja, a qualidade ou a realidade<br />
percebida, a imagem da fantasia, o significa<strong>do</strong> expresso ou o conceito pensa<strong>do</strong>. A<br />
pessoa é o objeto de amor ou de ódio, de estima, de consideração ou de estu<strong>do</strong>”<br />
(op.cit.). Dessa forma, até mesmo o eu, o sujeito, pode ser um objeto!<br />
Nos processos cognitivos, o objeto <strong>do</strong> conhecimento pode ser uma idéia<br />
(conforme quis Berkeley), pode ser um fenômeno (como para Kant) ou mesmo uma<br />
representação (segun<strong>do</strong> frisou Schopenhauer). A tentativa e a intenção de conhecer, as<br />
etapas <strong>do</strong> conhecimento colocam sujeitos e objetos frente a frente, fican<strong>do</strong> visíveis suas<br />
condições de atividade ou passividade. Segun<strong>do</strong> se entende, a ação parece constituir o<br />
limite de distinção de papéis entre sujeitos e objetos...<br />
Ainda segun<strong>do</strong> Abbag<strong>na</strong>no, <strong>objetividade</strong> é o<br />
caráter da consideração que procura ver o objeto como ele é, não<br />
levan<strong>do</strong> em conta as preferências ou os interesses de quem o<br />
considera, mas ape<strong>na</strong>s procedimentos intersubjetivos de<br />
averiguação e aferição. Neste significa<strong>do</strong>, a Objetividade é um ideal<br />
de que a pesquisa científica se aproxima à <strong>medida</strong> que dispõe de<br />
técnicas convenientes (721).<br />
22 Muito rapidamente, percorro aqui corre<strong>do</strong>res trilha<strong>do</strong>s por autores que consideram a distinção clara entre<br />
<strong>objetividade</strong> e subjetividade. É uma escolha meto<strong>do</strong>lógica. Há pensa<strong>do</strong>res como Bachelard, Canguilhen e<br />
Lecour, para quem essa oposição é clivada e problematizada, alcançan<strong>do</strong> novos contornos, mas eles não<br />
se enquadram <strong>na</strong> opção que fiz para esta tese.
Lalande (1999:747) complementa dizen<strong>do</strong> que a <strong>objetividade</strong> é a característica<br />
<strong>do</strong> que é objetivo, especialmente “atitude, disposição de espírito daquele que ‘vê as<br />
coisas como elas são’, que não as deforma nem por estreiteza de espírito nem por<br />
parcialidade”. Mas o que é objetivo?<br />
O termo “objetivo” é usa<strong>do</strong> em diversas acepções: refere-se àquilo que é<br />
independente <strong>do</strong> sujeito, que é externo em relação à consciência ou pensamento e àquilo<br />
que é váli<strong>do</strong> para to<strong>do</strong>s. É a partir de Kant que estes senti<strong>do</strong>s se configuram, já que é o<br />
filósofo alemão quem determi<strong>na</strong> que o objeto <strong>do</strong> conhecimento é real ou empiricamente<br />
da<strong>do</strong>. Assim, algo objetivo é algo empiricamente real, isto é, existe enquanto<br />
consciência comum e vale para to<strong>do</strong>s os sujeitos pensantes, não só para um deles.<br />
Então, em síntese, objetivo se opõe a subjetivo, está fora de uma consciência particular<br />
e tem validade universal. O que significa dizer que não depende de preferências e<br />
avaliações pessoais, juízos e gostos particulares. Objetivo para Kant é o próprio<br />
fundamento <strong>do</strong> acor<strong>do</strong> <strong>do</strong>s espíritos, é aquilo que é em si no nosso espírito e em<br />
qualquer outro.<br />
Diante <strong>do</strong>s diversos senti<strong>do</strong>s para o termo “objetivo”, Lalande (op.cit: 753)<br />
propõe que se utilize ape<strong>na</strong>s o significa<strong>do</strong> que aponta a oposição entre subjetivo e<br />
objetivo nos termos de particularidade e universalidade. Isto é, objetivos são as idéias e<br />
conceitos váli<strong>do</strong>s para to<strong>do</strong>s os sujeitos e não ape<strong>na</strong>s para um. “Esta oposição é precisa,<br />
central, conforme ao uso <strong>do</strong>s historia<strong>do</strong>res e cientistas; ela permite distinguir o subjetivo<br />
<strong>do</strong> objetivo, <strong>na</strong> maior parte <strong>do</strong>s casos, por um critério experiencial incontesta<strong>do</strong>”. Para o<br />
autor, esta acepção <strong>do</strong> termo contém ainda – mesmo que em potência, virtualmente -<br />
“tu<strong>do</strong> o que há de sóli<strong>do</strong> <strong>na</strong>s outras distinções às quais estas palavras foram aplicadas”.<br />
Essa validação universal é que pode garantir que uma coisa, um conceito ou uma<br />
afirmação sejam objetivos e não subjetivos. Isto é, a <strong>objetividade</strong> <strong>na</strong>sce de um consenso<br />
56
de subjetividades. A <strong>objetividade</strong> vem <strong>do</strong> atesta<strong>do</strong> comum de diversos pontos de vista, o<br />
que permite pensar que o objetivo é uma homogeneização <strong>do</strong> coletivo de visões<br />
particulares. Por trás disso está o entendimento de que a coisa, o conceito e/ou a<br />
afirmação precisam ser verifica<strong>do</strong>s, comprova<strong>do</strong>s por outros sujeitos, haven<strong>do</strong> um<br />
embate de opiniões e de <strong>olhar</strong>es, conforme afirmam Aranha & Martins (1986). São estas<br />
autoras, aliás, que lembram que é fácil confundir os termos “particular” e “subjetivo”,<br />
toman<strong>do</strong>-os como sinônimos. A despeito disso, elas esclarecem:<br />
Quan<strong>do</strong> dizemos particular ou geral, referimo-nos ao objeto que<br />
conhecemos e se o consideramos em parte ou <strong>na</strong> totalidade.<br />
Quan<strong>do</strong> dizemos subjetivo ou objetivo, referimo-nos ao ponto de<br />
vista <strong>do</strong> sujeito que conhece e que, num caso, se acha centra<strong>do</strong> em<br />
si próprio e, em outro caso, está descentra<strong>do</strong> (97).<br />
Com isso, temos também que a <strong>objetividade</strong> aspira à generalidade, a um senso<br />
plural, coletivo, váli<strong>do</strong> para to<strong>do</strong>s. Seguin<strong>do</strong> esse parâmetro, como é mesmo possível<br />
simultaneamente algo ser para uns um elmo <strong>do</strong>ura<strong>do</strong> e para outros uma bacia de<br />
barbeiro? Objetividade rima com ambigüidade, mas a primeira não suporta a segunda,<br />
não sobrevive no mesmo ambiente.<br />
Na atualidade, rompen<strong>do</strong> com a dicotomia <strong>objetividade</strong>-subjetividade, Richard<br />
Rorty si<strong>na</strong>liza com outra oposição: <strong>objetividade</strong> X solidariedade 23 . Segun<strong>do</strong> ele, há duas<br />
formas de os indivíduos reflexivos darem senti<strong>do</strong>s às suas vidas: contribuin<strong>do</strong> para a sua<br />
comunidade ou descreven<strong>do</strong>-se a si mesmos como estan<strong>do</strong> em relação imediata com a<br />
realidade não-huma<strong>na</strong>. Num la<strong>do</strong>, tem-se a solidariedade, noutro, a <strong>objetividade</strong>.<br />
A tradição da cultura ocidental, centrada <strong>na</strong> noção de busca pela<br />
verdade, a tradição que corre desde os filósofos gregos e atravessa<br />
o Iluminismo, é o exemplo mais claro da tentativa de encontrar um<br />
senti<strong>do</strong> para a existência a partir <strong>do</strong> aban<strong>do</strong>no da solidariedade em<br />
direção à <strong>objetividade</strong>. A idéia de verdade como algo que<br />
persuade por sua própria causa, não por ser boa para nós, ou para<br />
uma comunidade real ou imaginária, é o tema central dessa<br />
tradição. (1997:37-8)<br />
57
Segun<strong>do</strong> Rorty, desde Platão a concepção de investigação racio<strong>na</strong>l consiste<br />
tor<strong>na</strong>r visíveis as coisas a que não se tem acesso. Isso porque, para o grego, há um<br />
descolamento entre aparência e realidade, conhecimento e opinião. Este postula<strong>do</strong>,<br />
prossegue Rorty, evoluiu no Iluminismo sedimentan<strong>do</strong> a a<strong>do</strong>ção <strong>do</strong> cientista físico<br />
newtoniano como modelo de intelectual. “Nós somos os herdeiros dessa tradição<br />
objetivista, centrada <strong>na</strong> assunção de que nós precisamos nos manter fora de nossa<br />
sociedade, o tempo que for necessário, para exami<strong>na</strong>-la sob a luz de algo que a<br />
transcenda” (38).<br />
Para reforçar sua dicotomia, Rorty denomi<strong>na</strong> de “realistas” os que querem<br />
fundar a solidariedade <strong>na</strong> <strong>objetividade</strong>, pois “têm de construir a verdade como<br />
correspondência à realidade”; e de “pragmáticos” os que desejam reduzir a <strong>objetividade</strong><br />
à solidariedade 24 , pois se apóiam numa atitude mais prática e utilitarista. Se a verdade<br />
ou a racio<strong>na</strong>lidade dispõem de uma <strong>na</strong>tureza intrínseca, esta é uma questão ligada<br />
intimamente com a descrição que o próprio homem faz dele, esclarece o autor. Se esta<br />
descrição se faz a partir da relação com a <strong>na</strong>tureza huma<strong>na</strong> ou com um coletivo<br />
particular de indivíduos. Na síntese <strong>do</strong> autor: se o que se deseja é <strong>objetividade</strong> ou<br />
solidariedade.<br />
Para os pragmatistas, a verdade não é uma correspondência com a realidade, mas<br />
um si<strong>na</strong>l de aprovação para crenças bem justificadas. Os realistas não entendem este<br />
divórcio (verdade-realidade), o que fez com que seus opositores intelectuais fossem<br />
tacha<strong>do</strong>s de “relativistas”. Rorty vem ao seu próprio socorro e defende a tese de que o<br />
pragmático só pode ser critica<strong>do</strong> por seu etnocentrismo e não por seu relativismo. O<br />
principal argumento que move os pragmáticos contra os partidários <strong>do</strong> realismo<br />
23 “A distinção entre o objetivo e o subjetivo foi desig<strong>na</strong>da paralelamente à distinção entre fato e valor, de<br />
mo<strong>do</strong> que o valor objetivo soa tão vagamente mitológico quanto um cavalo ala<strong>do</strong>” (cd. Rorty: 1997,56)<br />
24 Rorty se insere nesta ala. É preciso que se tenha a clareza de que o autor renomeia de “pragmáticos” os<br />
“relativistas”. Para um exame mais detalha<strong>do</strong> da questão, ler o artigo Objetividade ou Solidariedade? Do<br />
58
objetivista é que “o mo<strong>do</strong> tradicio<strong>na</strong>l ocidental metafísico-epistemológico de cristalizar<br />
nossos hábitos simplesmente não está mais se efetivan<strong>do</strong>, não está cumprin<strong>do</strong> sua<br />
tarefa”.<br />
Voltan<strong>do</strong>-se para a construção <strong>do</strong> conhecimento humano, o filósofo norte-<br />
americano denuncia o que considera alguns mal entendi<strong>do</strong>s. O primeiro deles é a<br />
identificação comum de que buscar uma verdade objetiva é usar a razão, e por isso, as<br />
ciências <strong>na</strong>turais sejam consideradas modelos de racio<strong>na</strong>lidade. Segun<strong>do</strong>: ter este<br />
parâmetro de racio<strong>na</strong>lidade requer que se pense em metodismo, em apego aos rigores<br />
meto<strong>do</strong>lógicos. Com isso, tomam-se como sinônimos os termos “racio<strong>na</strong>l”, “objetivo”e<br />
“científico”. Rorty reage a isso, explican<strong>do</strong> que os pragmáticos substituem questões<br />
como “a <strong>objetividade</strong> <strong>do</strong>s valores” por questões práticas sobre a conveniência (ou não)<br />
da conservação desses valores, por exemplo.<br />
Ainda para os pragmáticos, a investigação – científica, inclusive - consiste <strong>na</strong><br />
“obtenção de uma mistura apropriada de concordância não-forçada com discordância<br />
tolerante (onde o que conta como apropria<strong>do</strong> está determi<strong>na</strong><strong>do</strong> no interior dessa esfera<br />
por tentativa e erro)” (63). Ligeiramente otimista, Richard Rorty acredita que, se<br />
houvesse uma adesão aos pressupostos pragmatistas, muito possivelmente dissolveriam-<br />
se as fronteiras entre as ciências, fazen<strong>do</strong> com que o cientista modificasse também o seu<br />
papel e com que o meio científico fosse mais leal às comunidades. Neste senti<strong>do</strong>, a<br />
<strong>objetividade</strong> seria deixada de la<strong>do</strong> e seria fundada uma ciência solidária.<br />
ciência...<br />
Uma visão como essa estimula uma breve discussão <strong>do</strong> lugar da <strong>objetividade</strong> <strong>na</strong><br />
primeiro tomo <strong>do</strong>s escritos filosóficos <strong>do</strong> autor publica<strong>do</strong> no Brasil: Objetivismo, relativismo e verdade (Rio de<br />
Janeiro: Relume-Dumará, 1997). Kuhn, Foucault, Feyerabend podem também ser considera<strong>do</strong>s “relativistas”.<br />
59
2.1.2 O conceito <strong>na</strong> ciência<br />
“Duas idéias foram freqüentemente utilizadas para tor<strong>na</strong>r<br />
intelectualmente respeitável a expansão ocidental:<br />
a idéia de Razão e a idéia de Objetividade.<br />
Dizer de um méto<strong>do</strong> ou de um ponto de vista que é objetivo<br />
(objetivamente verdadeiro), significa pretender que seja váli<strong>do</strong><br />
independentemente das expectativas, das idéias,<br />
das atitudes e das esperanças huma<strong>na</strong>s.”<br />
Paul Feyerabend – Adeus à razão<br />
Historicamente, são contemporâneas as raízes que instituíram a razão, o sujeito e<br />
o méto<strong>do</strong> científico. Elas datam <strong>do</strong> século XVII, principalmente a partir de Descartes,<br />
Bacon, Galileu e Newton, e desde a Antigüidade a meto<strong>do</strong>logia da busca pelo<br />
conhecimento não sofria tantas e tão profundas modificações. Com estes autores, a<br />
razão recebe contornos bem defini<strong>do</strong>s, o fazer científico a<strong>do</strong>ta regras para a sua<br />
execução, o homem – sujeito no universo – coloca-se no centro da criação, a<br />
matemática passa a ser a linguagem cujos caracteres preenchem o livro da <strong>na</strong>tureza e a<br />
física assume, definitivamente, o matriarca<strong>do</strong> das ciências.<br />
A <strong>objetividade</strong>, a imparcialidade, o rigor <strong>na</strong> análise <strong>do</strong>s elementos, a necessidade<br />
da comprovação das hipóteses, a compreensão global e profunda <strong>do</strong>s fenômenos<br />
tor<strong>na</strong>m-se ferramentas preciosas e indescartáveis <strong>na</strong>s mãos e mentes habili<strong>do</strong>sas de<br />
quem faz ciência.<br />
De forma positiva 25 (e por que não dizer impositiva), o conhecimento se alastra,<br />
chegan<strong>do</strong> a todas as manifestações huma<strong>na</strong>s e a (quase) to<strong>do</strong>s os confins geográficos.<br />
De maneira geral, a humanidade experimenta expressivos e incontestáveis avanços<br />
tecnológicos, o que redunda numa melhora da qualidade de vida, <strong>na</strong>s redefinições das<br />
percepções sobre o tempo e sobre o espaço, num alargamento da vida média huma<strong>na</strong> e<br />
em mais conforto pessoal. Os avanços tecnológicos propiciam também maior alcance<br />
nos resulta<strong>do</strong>s bélicos, mais vulnerabilidade huma<strong>na</strong> frente à máqui<strong>na</strong> e não<br />
25 Na acepção <strong>do</strong> positivismo.<br />
60
necessariamente numa divisão equânime das conquistas científicas entre as diferentes<br />
populações no planeta.<br />
Durante séculos, certezas foram construídas sobre os alicerces <strong>do</strong> conhecimento<br />
acumula<strong>do</strong>. Estruturas poderosas se edificaram sobre os saberes engendra<strong>do</strong>s por<br />
homens e mulheres <strong>na</strong>s mais diferentes latitudes. Mas de uns tempos para cá, vêm sen<strong>do</strong><br />
percebi<strong>do</strong>s alguns sintomas de que algo não corria totalmente bem: embora a ciência se<br />
desenvolvesse, muitos <strong>do</strong>s seus frutos não eram reverti<strong>do</strong>s para toda a humanidade,<br />
destino daqueles esforços. Mais ainda: alguns <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s colhi<strong>do</strong>s não traziam<br />
ape<strong>na</strong>s benefícios à vida huma<strong>na</strong>. O projeto iluminista parecia fali<strong>do</strong>...<br />
Aranha & Martins afirmam que as ciências <strong>na</strong>turais “aspiram à <strong>objetividade</strong>, que<br />
consiste <strong>na</strong> descentração <strong>do</strong> eu no processo de conhecer: <strong>na</strong> capacidade de lançar<br />
hipóteses verificáveis por to<strong>do</strong>s, fornecen<strong>do</strong> instrumentos de controle; e <strong>na</strong> descentração<br />
das emoções e da própria subjetividade <strong>do</strong> cientista” (1986: 187). Mas as próprias<br />
autoras se flagram, questio<strong>na</strong>n<strong>do</strong>: O que acontece quan<strong>do</strong> o sujeito <strong>do</strong> conhecimento é<br />
da mesma <strong>na</strong>tureza <strong>do</strong> objeto conheci<strong>do</strong>? (Como estudar a felicidade, o me<strong>do</strong>, as<br />
emoções huma<strong>na</strong>s se são humanos os pesquisa<strong>do</strong>res? De que forma pode-se colocar os<br />
cientistas mergulha<strong>do</strong>s nos ambientes que configuram seus objetos de estu<strong>do</strong>?) Neste<br />
caso, o propala<strong>do</strong> descentramento <strong>do</strong> eu pode não vir a acontecer, o que compromete<br />
algum pilar importante da equação racio<strong>na</strong>lista.<br />
Entretanto, as fraturas <strong>na</strong> concepção da ciência e <strong>do</strong> conhecimento se dão de<br />
outras formas também. Como, por exemplo, quan<strong>do</strong> os modelos científicos da<strong>do</strong>s como<br />
totalizantes e universais não dão conta de certos fenômenos 26 ou quan<strong>do</strong> as regras<br />
constituintes <strong>do</strong> modelo vigente são contraditas 27 . Num primeiro momento, estes<br />
26 A insuficiência da mecânica de Newton abriu brecha para o surgimento da teoria da relatividade e da<br />
física quântica...<br />
27 É o caso <strong>do</strong> princípio da incerteza de Heisenberg que se contrapõe à exatidão e mesmo <strong>do</strong> princípio da<br />
complementaridade de Bohr, que tor<strong>na</strong> mais ambígua ainda a teoria quântica.<br />
61
questio<strong>na</strong>mentos se mostram mais como trincas, mas depois adquirem aspecto de<br />
fissuras que podem comprometer a estrutura geral <strong>do</strong> edifício. Acaba-se configuran<strong>do</strong><br />
um ambiente de crise de paradigmas, para se usar uma expressão kuhnia<strong>na</strong>.<br />
Nestas condições, Hilton Japiassú (1996) faz duros ataques ao momento atual da<br />
ciência, onde enxerga uma crise da razão e <strong>do</strong> saber objetivo. Em termos concretos,<br />
propõe que se renuncie à herança iluminista de absolutização da razão para que se possa<br />
vislumbrar a possibilidade de uma ciência universal. Tal renúncia implica <strong>na</strong> negação<br />
<strong>do</strong> cientificismo e <strong>do</strong> reducionismo, num comportamento crítico e autocrítico da<br />
racio<strong>na</strong>lidade científica e no estabelecimento de um diálogo com outras formas de saber<br />
e outros valores culturais. A tomada destas atitudes faz repensar conceitos como o de<br />
<strong>objetividade</strong> e força uma mudança de postura <strong>do</strong> próprio cientista frente ao seu ofício.<br />
Desde Descartes e Kant, passan<strong>do</strong> por numerosos outros filósofos,<br />
sempre acreditamos que o ‘mun<strong>do</strong> interior’ <strong>do</strong> observa<strong>do</strong>r era<br />
inteiramente independente da realidade física. Assim sen<strong>do</strong>, para<br />
melhor se abordar o segun<strong>do</strong>, era preciso submeter o primeiro a um<br />
controle, a uma neutralização radical. Tal ‘realismo científico’,<br />
excluin<strong>do</strong> qualquer possibilidade de interferências psíquicas, místicas<br />
ou irracio<strong>na</strong>is, <strong>do</strong>minou o pensamento físico até bem pouco tempo.<br />
Nas últimas décadas, muitos cientistas vêm afirman<strong>do</strong> que um<br />
elemento fundamental novo deve ser leva<strong>do</strong> em conta <strong>na</strong>s relações<br />
<strong>do</strong> sujeito com o objeto: a consciência <strong>do</strong> observa<strong>do</strong>r. O dualismo<br />
cartesiano é recusa<strong>do</strong>. (12)<br />
O rechaço, segun<strong>do</strong> Japiassú, estender-se-ia para toda a ciência e a técnica por<br />
aqueles que nelas perderam a fé. Um certo desencantamento da razão desperta o<br />
irracio<strong>na</strong>lismo que se revela <strong>na</strong> forma de movimento anticiência e de relativismo<br />
epistemológico, completa o pensa<strong>do</strong>r brasileiro. A saída: uma razão aberta.<br />
Mais flexível diante da crise de paradigmas científicos, o ganha<strong>do</strong>r <strong>do</strong> prêmio<br />
Nobel de Química em 1977, Ilya Prigogine, mostra-se menos cético: “O futuro não é<br />
da<strong>do</strong>. Vivemos o fim das certezas. Será isto uma derrota <strong>do</strong> espírito humano? Estou<br />
convenci<strong>do</strong> <strong>do</strong> contrário” (1996:193). Para ele, as explicações científicas estão muito<br />
62
localizadas em suas épocas, por isso, encara com <strong>na</strong>turalidade o determinismo científico<br />
de certas eras. Atualmente, isso já não é mais aceitável, porém a ciência mantém uma<br />
posição estratégica <strong>na</strong> construção de uma nova coerência huma<strong>na</strong>.<br />
Segun<strong>do</strong> Prigogine, a ciência é um empreendimento coletivo, e a solução de um<br />
problema científico deve satisfazer exigências e critérios rigorosos para ser aceito pela<br />
comunidade pesquisa<strong>do</strong>ra e mesmo pelas sociedades. O rigor e a seriedade não<br />
elimi<strong>na</strong>m a criatividade, frisa o químico russo, ape<strong>na</strong>s desafiam o seu exercício <strong>na</strong> busca<br />
huma<strong>na</strong> pelo conhecimento. A ciência se preocupa com regras explicativas <strong>do</strong><br />
funcio<strong>na</strong>mento <strong>do</strong> universo, apesar delas não gover<strong>na</strong>rem o mun<strong>do</strong>, afirma. Tampouco<br />
ele é regi<strong>do</strong> pelo acaso.<br />
O acaso puro é tanto uma negação da realidade e de nossa<br />
exigência de compreender o mun<strong>do</strong> quanto o determinismo o é. O<br />
que procuramos construir é um caminho estreito entre essas duas<br />
concepções que levam igualmente à alie<strong>na</strong>ção, a de um mun<strong>do</strong><br />
regi<strong>do</strong> por leis que não deixam nenhum lugar para a novidade, e a<br />
de um mun<strong>do</strong> absur<strong>do</strong>, acausal, onde <strong>na</strong>da pode ser previsto nem<br />
descrito em termos gerais. (197-8)<br />
A posição <strong>do</strong> químico não resolve a questão, mas pontua uma <strong>na</strong>tureza e um<br />
destino bem distintos para a ciência.<br />
63
2.1.3 Como o Jor<strong>na</strong>lismo emprega a idéia<br />
64<br />
“Até onde o repórter tem de ser objetivo<br />
perante a fonte de informação? Repeti,<br />
não sei quantas cente<strong>na</strong>s de vezes,<br />
que a <strong>objetividade</strong> jor<strong>na</strong>lística é uma balela<br />
mas aproximar-se dela é dever <strong>do</strong> profissio<strong>na</strong>l”<br />
Caio Túlio Costa - O Relógio de Pascal<br />
Atividade profissio<strong>na</strong>l que se infiltra <strong>na</strong>s demais esferas huma<strong>na</strong>s, o Jor<strong>na</strong>lismo<br />
tem como um <strong>do</strong>s seus pilares de sustentação o <strong>do</strong>gma da <strong>objetividade</strong>. Estabeleci<strong>do</strong><br />
como um padrão técnico de conduta ou como imperativo ético, a <strong>objetividade</strong> se revela<br />
como um <strong>do</strong>s nós constituintes da profissão, sen<strong>do</strong>, inclusive, questio<strong>na</strong>da. (A exemplo<br />
<strong>do</strong> que acontece com outros aspectos).<br />
De maneira geral, no Jor<strong>na</strong>lismo, o conceito de <strong>objetividade</strong> não destoa <strong>do</strong>s<br />
senti<strong>do</strong>s usa<strong>do</strong>s em outras áreas. São ape<strong>na</strong>s as condições de articulação entre<br />
jor<strong>na</strong>listas e fatos, ce<strong>na</strong>s e perso<strong>na</strong>gens que vão determi<strong>na</strong>r uma constituição exclusiva<br />
de <strong>objetividade</strong>, a jor<strong>na</strong>lística. Para os profissio<strong>na</strong>is da informação, ser objetivo é<br />
informar sem emoções, é mostrar-se desapaixo<strong>na</strong><strong>do</strong> no relato <strong>do</strong>s fatos, é empregar<br />
citações diretas; jor<strong>na</strong>listicamente, ser objetivo é citar fontes contraditórias, buscar a<br />
pluralidade e tentar selecio<strong>na</strong>r palavras neutras para descrever o contexto. Portanto,<br />
requer distanciamento das pessoas, das circunstâncias que compõem o fato, das versões<br />
a ele ligadas. Requer não envolvimento com as partes, proximidade e engajamento.<br />
Pressupõe equilíbrio, dispensa a parcialidade no relato, espera o mínimo contato<br />
possível com os objetos <strong>do</strong> relato. Desta forma, devem ficar muito bem nítidas e<br />
estabelecidas as fronteiras que separam comentários e opiniões <strong>do</strong>s relatos informativos,<br />
pretendi<strong>do</strong>s com isenção de qualquer traço de subjetividade.<br />
O discurso que dá base e legitimidade a este padrão de conduta muito se<br />
aproxima <strong>do</strong> campo científico <strong>na</strong> área da saúde: o jor<strong>na</strong>lista não pode se contami<strong>na</strong>r<br />
com as versões que dão conta <strong>do</strong> fato. Deve descrevê-lo, assepticamente, de forma a não
se contagiar com os humores latentes no acontecimento. O contágio, a contami<strong>na</strong>ção<br />
podem influenciar no esta<strong>do</strong> geral <strong>do</strong> ambiente, perturban<strong>do</strong> sua ordem, alteran<strong>do</strong> a<br />
ordem comum <strong>do</strong>s acontecimentos. A lógica, grosso mo<strong>do</strong>, é essa.<br />
Seguin<strong>do</strong> esta orientação, Michael Kunczik (1997:230) completa que esta<br />
<strong>objetividade</strong> faz com que os textos jor<strong>na</strong>lísticos objetivos possam “ser identifica<strong>do</strong>s por<br />
suas qualidades de precisão, interesse, verificação, veracidade e neutralidade”. É de se<br />
perceber que os critérios se assemelham muito aos usa<strong>do</strong>s no mun<strong>do</strong> científico,<br />
principalmente quanto à condição de verificabilidade, de precisão e de veracidade. Isso<br />
deixa evidente um parentesco, mesmo que distante, mas absolutamente consciente entre<br />
as duas áreas. O Jor<strong>na</strong>lismo quer traduzir o mun<strong>do</strong> e seus fatos às pessoas, e para ser<br />
crível é necessário que corresponda às expectativas de fidelidade <strong>na</strong>rrativa que o público<br />
nutre por ele. Como a mulher de César, ao Jor<strong>na</strong>lismo não basta ser honesto ape<strong>na</strong>s (ou<br />
fiel, verdadeiro), mas é preciso ainda que pareça, mostre-se da mesma forma...<br />
Embora nos aprofundemos nestas raízes posteriormente, uma hipótese desta<br />
obrigatoriedade (ser objetivo) encontra gênese no que Walter Lippman escreveu em seu<br />
clássico Public Opinion, em 1922: a atividade jor<strong>na</strong>lística atingiu um patamar em que é<br />
absolutamente fundamental o testemunho objetivo. Por trás deste imperativo, está a<br />
idéia de que, se apresentada de maneira isenta e desapaixo<strong>na</strong>da, a informação motiva o<br />
público a formar suas próprias opiniões. Mas isso é mesmo possível? Redatores,<br />
repórteres e editores conseguem dar relatos objetivos <strong>do</strong>s fatos? Existem palavras<br />
neutras que podem ser empregadas em certos contextos a fim de homogeneizar versões?<br />
Consegue-se oferecer coberturas totalmente isentas para o público? Os questio<strong>na</strong>mentos<br />
são muitos, cada vez mais freqüentes e rui<strong>do</strong>sos 28 .<br />
28 Kunczik (op.cit.) cita uma pesquisa feita <strong>na</strong> então Alemanha Ocidental que demonstra que os jor<strong>na</strong>listas<br />
que trabalham <strong>na</strong>s redações ou <strong>na</strong>s ruas afirmam ser impossíveis reportagens objetivas. Como contraponto,<br />
chefes de redação enfatizam a necessidade da <strong>objetividade</strong>. “Pode-se supor que quanto maior for a<br />
distância entre uma pessoa e seu trabalho jor<strong>na</strong>lístico diário, maior será sua tendência a se iludir quanto à<br />
possibilidade de uma reportagem objetiva”, conclui o autor. O teórico alemão mencio<strong>na</strong> outra pesquisa<br />
65
Nas redações brasileiras, o conceito não só é discuti<strong>do</strong>, como também<br />
normatiza<strong>do</strong>. Nos quatro principais manuais de estilo, as gramáticas jor<strong>na</strong>lísticas, a<br />
<strong>objetividade</strong> é mencio<strong>na</strong>da, definida e tem seus tentáculos medi<strong>do</strong>s. Patrícia Patrício<br />
(2002) fez um levantamento das ocorrências <strong>do</strong> conceito nestes manuais e observou as<br />
contradições irreconciliáveis neles contidas. Sem contar a divergência entre os<br />
entendimentos <strong>do</strong>s diversos grupos de comunicação para o conceito. Em O Globo, por<br />
exemplo, o relato deve ser “absolutamente isento” mesmo o jor<strong>na</strong>l reconhecen<strong>do</strong> que a<br />
isenção não pode ser absoluta; no manual de O Esta<strong>do</strong> de S.Paulo, entende-se que a<br />
interpretação passa pela subjetividade, mas apesar disso, o jor<strong>na</strong>lista deve ter um<br />
“respeito religioso à verdade”; nos veículos da Editora Abril, é pedi<strong>do</strong> o relato de uma<br />
verdade estetizada e o estilo deve ter como marca o “bom senso”, o “bom gosto” (mais<br />
objetivo impossível!); a Folha de S.Paulo prega o apartidarismo, a neutralidade, a<br />
<strong>objetividade</strong> e o pluralismo, <strong>na</strong>quilo que convencionou chamar de “ouvir o outro la<strong>do</strong>”.<br />
Observadas as distâncias de la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong>, fica a impressão de intensa nebulosidade<br />
quanto ao conceito, a sua aplicabilidade e a sua eficácia. Li<strong>do</strong>s em conjunto, os manuais<br />
mais confundem que esclarecem.<br />
No Jor<strong>na</strong>lismo, a <strong>objetividade</strong> se apresenta não só como padrão técnico de<br />
conduta e como imperativo ético, mas também enquanto mistificação. Neste caso, pelas<br />
mãos e línguas <strong>do</strong>s que desacreditam <strong>na</strong> viabilidade de uma <strong>objetividade</strong> ple<strong>na</strong> no<br />
exercício da profissão. Elcias Lustosa (1996) é um <strong>do</strong>s exemplos dessa vertente. Sua<br />
crítica é voltada à imparcialidade, que julga impossível de ser obtida <strong>na</strong> <strong>medida</strong> em que<br />
o Jor<strong>na</strong>lismo é uma atividade huma<strong>na</strong>, que selecio<strong>na</strong> fatos, relata acontecimentos de<br />
uma dada perspectiva. Assim, embora se pregue a isenção, ela não se verifica <strong>na</strong> prática,<br />
o que provoca um descolamento entre discurso profissio<strong>na</strong>l e ação cotidia<strong>na</strong>.<br />
onde ape<strong>na</strong>s um terço <strong>do</strong>s trainees e redatores de jor<strong>na</strong>is consideravam que conseguiam ter em “seu<br />
trabalho diário informações objetivas e isentas de valores” (228)<br />
66
Apesar <strong>do</strong> propósito e <strong>do</strong> compromisso de alguns jor<strong>na</strong>listas, a<br />
imparcialidade e a impessoalidade jamais ocorreram efetivamente<br />
no Jor<strong>na</strong>lismo. (...) A notícia é pois uma versão de um fenômeno<br />
social, não a tradução objetiva, imparcial e descomprometida de<br />
um fato. (21)<br />
Com isso, a imparcialidade – viga de sustentação da <strong>objetividade</strong> – não passaria<br />
de retórica, castelo de areia erodi<strong>do</strong> diariamente <strong>na</strong>s redações de to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>. Tal<br />
discurso serviria para preservar os interesses e a sobrevivência <strong>do</strong>s próprios veículos de<br />
comunicação, segun<strong>do</strong> Lustosa.<br />
O debate sobre a viabilidade ou não da <strong>objetividade</strong> jor<strong>na</strong>lística é fundamental<br />
para o percurso deste trabalho. No entanto, antes disso, é preciso entender sob quais<br />
circunstâncias histórico-sociais a <strong>objetividade</strong> foi introjetada como elemento de base <strong>na</strong><br />
constituição <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo e <strong>do</strong> discurso que lhe dá sustentação.<br />
67
2.2 Peque<strong>na</strong> história da <strong>objetividade</strong> no Jor<strong>na</strong>lismo<br />
“A questão da <strong>objetividade</strong> <strong>na</strong>sce, portanto, com o próprio Jor<strong>na</strong>lismo”<br />
José Marques de Melo – Apontamentos sobre temas de comunicação<br />
A <strong>objetividade</strong> jor<strong>na</strong>lística é uma instituição origi<strong>na</strong>riamente norte-america<strong>na</strong>. É<br />
nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, no interior das redações <strong>do</strong>s principais veículos, que surge o<br />
conceito no fi<strong>na</strong>l <strong>do</strong> século XIX. Segun<strong>do</strong> alguns relatos, a prerrogativa <strong>na</strong>sce como<br />
contraposição a uma vertente que vinha crescen<strong>do</strong> demasiadamente rápi<strong>do</strong> e ameaçan<strong>do</strong><br />
o projeto jor<strong>na</strong>lístico. Assim, a <strong>objetividade</strong> ganha corpo no Jor<strong>na</strong>lismo para afastar o<br />
noticiário sensacio<strong>na</strong>lista e um imper<strong>do</strong>ável ama<strong>do</strong>rismo. Os cronistas da época<br />
desenham a <strong>objetividade</strong> como uma <strong>medida</strong> extrema, um estabelecimento de um padrão<br />
técnico que pudesse salvar o Jor<strong>na</strong>lismo como indústria, instituição e negócio.<br />
Influente e expansivo, o Jor<strong>na</strong>lismo norte-americano conseguiu exportar o<br />
conceito, que chegou ao Brasil e às redações mais remotas <strong>do</strong> globo. Entretanto, esta<br />
construção simbólica não se fez de uma hora para outra. Conforme lembra Amaral<br />
(1996), as primeiras discussões sobre imparcialidade e equilíbrio como elementos de<br />
uma ética profissio<strong>na</strong>l no Jor<strong>na</strong>lismo começam em mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século XIX, embora o<br />
termo só venha a ser emprega<strong>do</strong> depois da 1ª Guerra Mundial. Para o autor, quatro<br />
acontecimentos contribuíram inevitavelmente para a a<strong>do</strong>ção definitiva <strong>do</strong> princípio da<br />
<strong>objetividade</strong> no meio jor<strong>na</strong>lístico: o advento das agências de notícias – o que exigiu<br />
padronização de estilos <strong>na</strong>rrativos -, o desenvolvimento industrial – que auxiliou<br />
tecnologicamente o desenvolvimento <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo como métier – as duas guerras<br />
mundiais – que mudaram o panorama <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e a configuração <strong>do</strong> seu entendimento<br />
– e o surgimento da publicidade e das relações públicas – o que provocou a necessidade<br />
de definir muito claramente o que era jor<strong>na</strong>lístico e o que deixava de sê-lo.<br />
Devi<strong>do</strong> à multiplicidade de seus clientes, as agências noticiosas precisaram<br />
buscar maior grau de imparcialidade no serviço presta<strong>do</strong>, até mesmo para não ferir<br />
68
suscetibilidades. Esta preocupação é tão enfatizada <strong>na</strong> Associated Press que há quem<br />
atribua à agência a criação <strong>do</strong> conceito de <strong>objetividade</strong> <strong>na</strong> área. Depois da ascensão <strong>do</strong>s<br />
<strong>na</strong>zistas <strong>na</strong> Alemanha, os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s chegam a receber muitos artistas, esportistas,<br />
cientistas e intelectuais. Entre outros lugares, as universidades fervilham de discussão,<br />
ao passo que muitas áreas se desenvolvem impulsio<strong>na</strong>das pelos estu<strong>do</strong>s e pesquisas. É o<br />
caso das ciências da comunicação, onde o termo <strong>objetividade</strong> passa a ser usa<strong>do</strong>.<br />
No fi<strong>na</strong>l da década de 40, a importação da fórmula textual <strong>do</strong> lead e da função<br />
<strong>do</strong> copy-desk faz com que a atividade jor<strong>na</strong>lística se altere completamente <strong>na</strong>s redações.<br />
Além disso, as reformulações ajudam a implantar o conceito no país.<br />
Acontece, porém, que essa grande mudança no Jor<strong>na</strong>lismo<br />
brasileiro não foi muito além da valorização da notícia e de sua<br />
construção. Ficou sobretu<strong>do</strong> <strong>na</strong> forma. O conteú<strong>do</strong> continuou o<br />
mesmo, sem a mostra de um esforço maior de isenção,<br />
imparcialidade, eqüidade, como se fazia notar, bem ou mal, a<br />
imprensa america<strong>na</strong>. (Amaral: 1996, 75)<br />
A questão da <strong>objetividade</strong> só viria a ser realmente discutida, muito mais tarde,<br />
inclusive por um <strong>do</strong>s responsáveis pelas grandes modificações <strong>na</strong> imprensa em mea<strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong> século passa<strong>do</strong>, o jor<strong>na</strong>lista carioca Alberto Dines, <strong>na</strong> seção “Jor<strong>na</strong>l <strong>do</strong>s Jor<strong>na</strong>is”, que<br />
fazia crítica de mídia <strong>na</strong> Folha de S.Paulo.<br />
Se surgiu como um importante contraponto ao sensacio<strong>na</strong>lismo e a um<br />
desconfortável subjetivismo <strong>do</strong>s empresários da mídia de então, a <strong>objetividade</strong> tem sua<br />
origem estreitamente ligada à própria definição da atividade de informar 29 . Os primeiros<br />
esforços <strong>do</strong>s jor<strong>na</strong>listas em definir suas ocupações, buscan<strong>do</strong> assim uma identidade<br />
comum, datam das últimas duas décadas <strong>do</strong> século XIX. Foi por esta época que se<br />
começou a dizer que jor<strong>na</strong>listas tinham uma vocação independente, o que ajudaria a<br />
plantar a semente da futura <strong>objetividade</strong>.<br />
69
Schudson (1978) encaixa entre 1920 e 1930 o surgimento da noção até hoje<br />
vigente de <strong>objetividade</strong> jor<strong>na</strong>lística. Naquela época, segun<strong>do</strong> o autor, repórteres e<br />
editores perceberam como havia elementos subjetivos no trabalho de outros<br />
profissio<strong>na</strong>is da comunicação, mais especificamente de relações públicas e de<br />
propaganda. Era necessário demarcar território. Esta determi<strong>na</strong>ção histórica é<br />
questionável, mas sabe-se que o processo de cristalização da <strong>objetividade</strong> como padrão<br />
técnico e como imperativo ético da profissão durou três ou quatro décadas. O mun<strong>do</strong><br />
passou por um segun<strong>do</strong> conflito bélico de proporções mundiais, assistiu a um<br />
realinhamento de forças militares e tecnológicas e suspirou intranqüilo em meio a uma<br />
polaridade ideológica, econômica e militar. A Guerra Fria fez cerrar os dentes de la<strong>do</strong> a<br />
la<strong>do</strong> <strong>do</strong> planeta, e a <strong>objetividade</strong> foi se infiltran<strong>do</strong> <strong>na</strong>s redações, estabelecen<strong>do</strong>-se cada<br />
vez mais no comportamento e <strong>na</strong> formação <strong>do</strong>s jor<strong>na</strong>listas.<br />
Ainda de acor<strong>do</strong> com Schudson (op.cit.), o governo norte-americano foi<br />
aumentan<strong>do</strong> cada vez mais a sua intervenção no processo de produção das notícias,<br />
passan<strong>do</strong> a se preocupar efetivamente com o gerenciamento das informações ao longo<br />
<strong>do</strong> século. Isso fez com que começasse a surgir uma reação silenciosa <strong>na</strong>s redações:<br />
redatores, editores e repórteres ficaram incomoda<strong>do</strong>s e ressenti<strong>do</strong>s com a política de<br />
contra-informação e sigilo <strong>do</strong> governo. A <strong>objetividade</strong> passou a ser desafiada, explica<br />
Chad Raphael 30 , já que era identificada com a aquiescência aos ditames <strong>do</strong>s relações<br />
públicas militares, com excessiva submissão aos segre<strong>do</strong>s <strong>do</strong> governo e com os abusos<br />
<strong>do</strong> governo no fi<strong>na</strong>l <strong>do</strong>s anos 60 e começo <strong>do</strong>s 70 31 .<br />
29 Bethânia Mariani (1998) detém-se neste aspecto para, inclusive, questio<strong>na</strong>r conceitos como os de<br />
“verdade” e “informação”, tão sedimenta<strong>do</strong>s no Jor<strong>na</strong>lismo.<br />
30 Professor de comunicação da Santa Clara University, <strong>na</strong> Califórnia. A citação se refere ao material usa<strong>do</strong><br />
nos cursos de Raphael, acessa<strong>do</strong>s em 3 de março de 2003, e disponíveis no endereço<br />
http://codesign.scu.edu/chad/147/objectivity1.html<br />
31 Os protestos contra a Guerra <strong>do</strong> Vietnã, o questio<strong>na</strong>mento popular da política inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l norteamerica<strong>na</strong><br />
e a derrapada de Richard Nixon atuam como catalisa<strong>do</strong>res nesta reação.<br />
70
Este questio<strong>na</strong>mento da <strong>objetividade</strong> jor<strong>na</strong>lística, pelo menos sob a visão <strong>do</strong><br />
merca<strong>do</strong> norte-americano (o que nos motiva a pensar que possa ser extensivo em níveis<br />
globais, dada a sua influência), é justifica<strong>do</strong> por <strong>do</strong>is fatores, de acor<strong>do</strong> com Raphael:<br />
Primeiro, os jor<strong>na</strong>listas estariam responden<strong>do</strong> à intervenção gover<strong>na</strong>mental e ao seu<br />
desejo de gerenciamento das informações; Segun<strong>do</strong>, surgem outros formatos<br />
jor<strong>na</strong>lísticos – como o Jor<strong>na</strong>lismo investigativo, o new jour<strong>na</strong>lism e um crescimento da<br />
interpretação <strong>na</strong>s reportagens - , que abrem novas sendas <strong>na</strong> selva social. O autor revela<br />
uma visão bem política <strong>do</strong> processo: não basta que se a<strong>na</strong>lise a rejeição parcial da<br />
<strong>objetividade</strong> pelos jor<strong>na</strong>listas desde 1960 sob o viés da comunidade profissio<strong>na</strong>l. É<br />
preciso ainda se compreender este fenômeno <strong>na</strong> sua interface com os desafios de uma<br />
maior política de entendimento global.<br />
71
2.3 Resguardan<strong>do</strong> a <strong>objetividade</strong><br />
"Ser objetivo é expulsar as coisas da própria cabeça<br />
e devolvê-las ao mun<strong>do</strong> de onde vieram. Foi esse<br />
o exemplo de Copérnico e tantos outros (...) Não existe<br />
<strong>objetividade</strong> dada. O erro está em procurá-la <strong>na</strong><br />
sinceridade ou no esforço quan<strong>do</strong> ela só pode estar<br />
em um méto<strong>do</strong>. (...) As coisas ou já são objetivas ou ainda vão ser”<br />
Otávio Frias Filho - Antimanual de Jor<strong>na</strong>lismo<br />
Folha de S.Paulo, 18 de novembro de 1984<br />
O astuto Polonius coçou o queixo, intriga<strong>do</strong>. Em seguida, diante da majestade <strong>na</strong><br />
sala <strong>do</strong> trono, solenizou: “É loucura, mas revela méto<strong>do</strong>!” Furtiva, a ce<strong>na</strong> de Hamlet<br />
aponta para o lugar da racio<strong>na</strong>lização já <strong>na</strong>quela época: até mesmo a insanidade tem lá<br />
suas regras de funcio<strong>na</strong>mento, seus processos internos. O Jor<strong>na</strong>lismo – que em muitos<br />
de seus momentos mais se aparenta à desrazão (basta acompanhar o fechamento de um<br />
jor<strong>na</strong>l) – também se apóia em méto<strong>do</strong>s, dispõe de suas cartilhas. A <strong>objetividade</strong> é um<br />
capítulo importante, convoca<strong>do</strong> de forma recorrente <strong>na</strong> afirmação da atividade<br />
jor<strong>na</strong>lística. Sua escritura seguiu diversas caligrafias. A seguir, algumas delas.<br />
2.3.1 Imperativo ético da atividade<br />
“Uma realidade completamente independente <strong>do</strong> espírito<br />
que a concebe, a vê ou a sente é uma impossibilidade.<br />
Um mun<strong>do</strong> tão exterior, se chegasse a existir,<br />
seria para nós sempre i<strong>na</strong>cessível. Mas aquilo a que<br />
chamamos a realidade objetiva é, em última análise,<br />
o que é comum a vários seres pensantes, e poderia ser comum a to<strong>do</strong>s”<br />
Henri Poincaré - O valor da ciência<br />
Para além de um padrão <strong>na</strong> conduta profissio<strong>na</strong>l, a <strong>objetividade</strong> se mostra no<br />
Jor<strong>na</strong>lismo como um imperativo ético, um chamamento deontológico. Visto dessa<br />
maneira, o conceito funcio<strong>na</strong> como princípio, valor que orienta a postura <strong>do</strong>s jor<strong>na</strong>listas<br />
diante <strong>do</strong>s desafios cotidianos de seu ofício. Para atuar corretamente <strong>na</strong> área, é preciso<br />
então se fazer conduzir com correção e <strong>objetividade</strong>, buscan<strong>do</strong> relatar os fatos de<br />
maneira desapaixo<strong>na</strong>da, medin<strong>do</strong> a proximidade com as fontes e com o contexto<br />
retrata<strong>do</strong>; é necessário calibrar o tom <strong>do</strong>s discursos, equilibrar a presença e ênfase das<br />
72
diversas versões, absten<strong>do</strong>-se de tomar parti<strong>do</strong>. Assim, sob esta orientação, ser objetivo<br />
é adequa<strong>do</strong> e próprio <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista; ajuda a definir a categoria profissio<strong>na</strong>l, garante a<br />
qualidade <strong>do</strong> serviço presta<strong>do</strong>, assegura o profissio<strong>na</strong>lismo no exercício da<br />
comunicação.<br />
Para Josenil<strong>do</strong> Guerra (1998), a <strong>objetividade</strong> se coloca como o imperativo ético<br />
fundante <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo. Isto porque o que se espera <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo é que relate os<br />
acontecimentos da maneira mais fiel ao que se deram. A <strong>objetividade</strong> seria a condição<br />
para que o Jor<strong>na</strong>lismo viesse a cumprir o que se desti<strong>na</strong>, já que se entende <strong>objetividade</strong><br />
como correspondência entre fato e relato. Segun<strong>do</strong> o autor, a <strong>objetividade</strong> funcio<strong>na</strong><br />
como propriedade que permite ao discurso (<strong>na</strong>s suas mais diversas formas) refletir a<br />
realidade. O que provoca uma conclusão, entre outras: a <strong>objetividade</strong> é um <strong>do</strong>s critérios<br />
de qualidade mais importantes <strong>na</strong> prática jor<strong>na</strong>lística. A sua ausência permite que se<br />
critique a conduta e a competência <strong>do</strong>s profissio<strong>na</strong>is <strong>do</strong> ramo. O autor passa por três<br />
perspectivas diferentes de encarar o Jor<strong>na</strong>lismo e a notícia, ten<strong>do</strong> em vista a questão da<br />
<strong>objetividade</strong>: realismo – onde a notícia reflete a realidade dada e a <strong>objetividade</strong> é<br />
possível -, construcionismo – onde a notícia não pode refletir a realidade, já que esta é<br />
uma produção social e não existe independente de um sujeito histórico – e subjetivismo<br />
– onde a realidade é pensada a partir da interpretação que os indivíduos têm dela e só<br />
existe a partir desta interpretação.<br />
Diante <strong>do</strong> que se apresenta, Guerra (op.cit.) opta pela visão realista. Para ele,<br />
“por maiores limitações que apresente <strong>do</strong> ponto de vista de sua sustentação teórica, [o<br />
realismo] teve o mérito de reconhecer essa nova experiência que a sociedade foi capaz<br />
de produzir e desenvolver. Essa experiência tem de ser assumida” (135). Ainda<br />
seguin<strong>do</strong> os passos <strong>do</strong> autor, a <strong>objetividade</strong> “pode ser reavaliada, revista, relativizada,<br />
reconsiderada, mas não pode ser simplesmente descartada” (136). A fundamentação<br />
73
ealista até pode ser negada, mas isso não implica que aconteça o mesmo com o<br />
conceito de <strong>objetividade</strong>, defende o autor. Rechaçar esta condição é di<strong>na</strong>mitar uma das<br />
bases que sustentam o Jor<strong>na</strong>lismo com o conhecemos, e isso não é admiti<strong>do</strong> por Guerra.<br />
É preciso que se entenda o ponto de vista <strong>do</strong> autor. Não é a <strong>objetividade</strong> que<br />
legitima o discurso da imprensa, da mídia, mas o vínculo que se cria entre o Jor<strong>na</strong>lismo<br />
e o público a partir <strong>do</strong> imperativo ético fundante. Desta forma, a <strong>objetividade</strong> é ape<strong>na</strong>s<br />
uma tentativa de justificar o vínculo entre quem faz Jor<strong>na</strong>lismo e quem consome.<br />
(...) quan<strong>do</strong> se toma a <strong>objetividade</strong> como um pressuposto possível, a<br />
<strong>objetividade</strong> intencio<strong>na</strong>da pelo jor<strong>na</strong>lista se converte <strong>na</strong> sua<br />
contrapartida para a realização <strong>do</strong> imperativo ético fundante de sua<br />
prática profissio<strong>na</strong>l: tese aqui defendida. (173)<br />
É relevante, no entanto, perceber que a <strong>objetividade</strong> é uma condição alcançável<br />
graças a um ato subjetivo, pois, conforme aponta, a <strong>objetividade</strong> se dá mediante o<br />
cumprimento de três prescrições meto<strong>do</strong>lógicas: a intenção <strong>do</strong> repórter, o rigor <strong>na</strong><br />
realização <strong>do</strong>s procedimentos usa<strong>do</strong>s <strong>na</strong> apreensão <strong>do</strong>s fatos e a redação da notícia.<br />
Note-se, então, que a <strong>objetividade</strong> depende de uma decisão de sujeito, de um ato<br />
subjetivo, <strong>na</strong>sce <strong>na</strong> subjetividade. “Primeiramente, para se conseguir a <strong>objetividade</strong> há,<br />
antes de tu<strong>do</strong>, a intenção de se querer atingi-la” (op.cit.:33).<br />
A <strong>objetividade</strong> se configura como “imperativo ético fundante” <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo, e<br />
é nesta esfera que se marca a distinção entre o Jor<strong>na</strong>lismo e outros gêneros discursivos,<br />
como a ficção (cf. p.168). Para o autor, ser objetivo é o que reveste de jor<strong>na</strong>lístico textos<br />
e falas, produtos e representações. O Jor<strong>na</strong>lismo se define por uma ética e não por uma<br />
técnica.<br />
Neste senti<strong>do</strong>, neutralidade e imparcialidade não são sinônimos de <strong>objetividade</strong>,<br />
embora sejam conceitos estreitamente liga<strong>do</strong>s. Ao contrário da última, as duas primeiras<br />
não são características da notícia propriamente dita. A neutralidade seria uma condição<br />
74
experimentável pelo profissio<strong>na</strong>l ou pela empresa jor<strong>na</strong>lística. E depois de saciada esta<br />
condição, aí sim, ambos podem mostrar-se imparciais no relato <strong>do</strong> fato, segun<strong>do</strong> Guerra.<br />
Negar simplesmente esses conceitos, como fazem subjetivistas e<br />
construcionistas, significa abrir mão de um referencial ético a partir<br />
<strong>do</strong> que a imprensa deve se pautar, para que contemple o pluralismo<br />
das sociedades democráticas, por exemplo. Na <strong>medida</strong> que esses<br />
conceitos passam a ser considera<strong>do</strong>s, num âmbito específico de<br />
relações e situações <strong>na</strong>s quais eles efetivamente fazem senti<strong>do</strong>,<br />
tor<strong>na</strong>m-se importantes critérios de avaliação <strong>do</strong> trabalho jor<strong>na</strong>lístico<br />
e de orientação para os próprios profissio<strong>na</strong>is.” (op.cit.:169)<br />
A distinção é importante para esta pesquisa e para o percurso que se está<br />
fazen<strong>do</strong>, mesmo que seja questio<strong>na</strong><strong>do</strong> o apego a um conceito que não encontra<br />
sustentação total <strong>na</strong> vida prática. Como um repórter pode ser totalmente objetivo no<br />
relato de uma guerra, por exemplo, quan<strong>do</strong> é acometi<strong>do</strong> por me<strong>do</strong>s? Como sustentar<br />
esta postura quan<strong>do</strong> a proximidade <strong>do</strong> fato não nos impede de nos contami<strong>na</strong>rmos por<br />
ele?<br />
Na academia ou <strong>na</strong>s redações, a <strong>objetividade</strong> enquanto imperativo ético <strong>do</strong><br />
Jor<strong>na</strong>lismo, volta e meia, é reafirma<strong>do</strong>.<br />
Em 2001, mal fazia um mês <strong>do</strong>s atenta<strong>do</strong>s ao World Trade Center nos Esta<strong>do</strong>s<br />
Uni<strong>do</strong>s, uma influente voz <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo norte-americano se levantava para pedir o<br />
retorno da <strong>objetividade</strong> nos jor<strong>na</strong>is e emissoras de televisão <strong>do</strong> país. Walther Cronkite,<br />
um <strong>do</strong>s mais famosos e dura<strong>do</strong>uros âncoras da TV norte-america<strong>na</strong>, afirmou em<br />
entrevista à Folha de S.Paulo que era preciso que a mídia recuperasse a <strong>objetividade</strong> 32 :<br />
"Os que se dizem patriotas devem entender que esse sentimento não implica<br />
necessariamente elogiar todas as decisões oficiais. Também pode ser expresso com<br />
32 A entrevista foi concedida a Marcio Aith e publicada <strong>na</strong> edição <strong>do</strong>minical de 7 de outubro de 2001.<br />
75
divergência", queixava-se o veterano jor<strong>na</strong>lista de 86 anos 33 . De acor<strong>do</strong> com Cronkite,<br />
logo após o ocorri<strong>do</strong>, a mídia local patrocinou um “show aberto de patriotismo,<br />
compreensível no início”: “Eu mesmo não contive minha emoção ao relatar a morte <strong>do</strong><br />
presidente Kennedy, em 1963”, lembrou. Entretanto, após a comoção geral, era<br />
fundamental que a “frieza e a independência” voltassem a freqüentar as redações, frisou.<br />
A postura de Cronkite revela o que o conceito de <strong>objetividade</strong> traz no seu bojo:<br />
distanciamento, frieza, independência, ausência de emoções ou equilíbrio <strong>na</strong> expressão<br />
dessas paixões. É possível <strong>do</strong>mi<strong>na</strong>r o emocio<strong>na</strong>l totalmente? Um jor<strong>na</strong>lista consegue se<br />
manter frio e distante frente às ce<strong>na</strong>s mais brutais, aos perso<strong>na</strong>gens mais apaixo<strong>na</strong>ntes?<br />
Talvez esta postura se coloque mais como uma meta, um desejo, um ideal de postura. E<br />
a <strong>objetividade</strong>, neste cenário, converta-se mais em mito <strong>do</strong> que em realidade.<br />
33 Curioso é que Cronkite soube <strong>do</strong> ataque às torres gêmeas quan<strong>do</strong> voltava ao hotel, vin<strong>do</strong> de uma<br />
palestra sobre <strong>objetividade</strong> jor<strong>na</strong>lística que fizera em Florença, <strong>na</strong> Itália.<br />
76
2.3.2 Uma meta para o mito<br />
77<br />
“Objectivity is a method of understanding”<br />
Thomas Nagel – A view from nowhere<br />
Se aparenta um mito ou pilastra de sustentação <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo, a <strong>objetividade</strong><br />
parece estar ligada intimamente à própria definição da atividade jor<strong>na</strong>lística. A reflexão<br />
sobre a possibilidade de produzir relatos fiéis aos acontecimentos diz diretamente ao<br />
cerne <strong>do</strong> que se espera <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo no contexto social. A separação formal entre o ato<br />
de reportar e o de opi<strong>na</strong>r trata efetivamente de quão este compromisso de fidelidade<br />
pode ser cumpri<strong>do</strong>, diariamente, independente de geografia e de condições exter<strong>na</strong>s.<br />
Logo após a Revolução Francesa, sedimenta-se <strong>na</strong> sociedade francesa um<br />
conjunto de práticas jor<strong>na</strong>lísticas que vão dissemi<strong>na</strong>r muito mais opiniões e comentários<br />
<strong>do</strong> que propriamente crônicas <strong>do</strong>s acontecimentos. É uma imprensa mais política,<br />
entusiasta, engajada, diferente da que se propaga <strong>na</strong> Inglaterra, mais apegada aos<br />
relatos. Lá, os profissio<strong>na</strong>is da área começam a focar seus interesses <strong>na</strong> difusão de<br />
notícias, precárias, é verdade, e muito diferentes das que concebemos hoje. Mas estes<br />
esforços vão redundar, décadas mais tarde, <strong>na</strong> consolidação de um conceito de<br />
<strong>objetividade</strong>. Noção que sofre hoje constantes questio<strong>na</strong>mentos <strong>na</strong> sua base de<br />
fundamentação e mesmo <strong>na</strong> sua efetividade prática.<br />
Marques de Melo (1985) chega a dizer que nos dias atuais a <strong>objetividade</strong> se<br />
coloca muito mais numa dimensão mítica, muito embora seja uma questão que<br />
acompanhe o Jor<strong>na</strong>lismo desde a sua gênese. A raiz deste debate contemporâneo estaria<br />
numa “<strong>do</strong>utri<strong>na</strong> de responsabilidade” pregada pelo Jor<strong>na</strong>lismo norte-americano.<br />
Impôs-se o sensacio<strong>na</strong>lismo como diretriz nortea<strong>do</strong>ra <strong>do</strong><br />
funcio<strong>na</strong>mento <strong>do</strong>s grandes jor<strong>na</strong>is, que competiam entre si <strong>na</strong><br />
conquista <strong>do</strong>s leitores. Os princípios éticos mais elementares,<br />
prescreven<strong>do</strong> a conduta <strong>do</strong>s cidadãos numa sociedade purita<strong>na</strong><br />
como a norte-america<strong>na</strong>, foram deixa<strong>do</strong>s de la<strong>do</strong>. Ocorreu então<br />
que, <strong>do</strong> ponto de vista jor<strong>na</strong>lístico, a fidedignidade <strong>do</strong>s fatos deixou<br />
de ser o referencial para a difusão das notícias.(11)
A <strong>do</strong>utri<strong>na</strong> surge como reação das empresas <strong>na</strong> defesa de uma especificidade de<br />
serviço presta<strong>do</strong> e mesmo de um merca<strong>do</strong> a ser explora<strong>do</strong>. Mais <strong>do</strong> que isso, o culto da<br />
<strong>objetividade</strong>, conforme o autor, vai favorecer o processo de racio<strong>na</strong>lização da atividade<br />
jor<strong>na</strong>lística que está mergulhada numa fase industrial. É preciso instituir uma roti<strong>na</strong><br />
diária que coadune as diversas etapas <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo: apuração <strong>do</strong>s fatos, checagem,<br />
redação <strong>do</strong>s textos, edição <strong>do</strong> material, impressão e reprodução massiva e distribuição.<br />
As jor<strong>na</strong>das de trabalho precisam ser mais bem divididas e gerenciadas, o fechamento<br />
das edições dá uma nova dimensão no cotidiano das incipientes e ainda desorganizadas<br />
redações. Ferramentas, equipamentos e máqui<strong>na</strong>s evoluem e ditam novo ritmo a<br />
redatores e repórteres. Tanto que é preciso que se normatize os diversos estilos de<br />
redação buscan<strong>do</strong> mais clareza, um texto menos prolixo, de maior alcance de leitura.<br />
Com o tempo, o que era compromisso ético reconfigura-se enquanto <strong>do</strong>utri<strong>na</strong>,<br />
fórmula de trabalho, receituário operacio<strong>na</strong>l, norma. A <strong>objetividade</strong> encontra outro<br />
sinônimo: síntese. Ser objetivo no Jor<strong>na</strong>lismo tor<strong>na</strong>-se captar o máximo de informações<br />
possível, dar-lhes um tratamento em que possam ser repassadas da forma mais direta.<br />
A “<strong>do</strong>utri<strong>na</strong> da <strong>objetividade</strong>” é transcrita nos manuais de redação e de estilo, <strong>na</strong>s<br />
instruções normativas e executivas das <strong>na</strong>scentes corporações de mídia. Entretanto,<br />
Marques de Melo (op.cit:14) pontua que “além de tolher a criatividade <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista, o<br />
culto da <strong>objetividade</strong> (...) significou a diminuição da sua capacidade de aferir a<br />
realidade”. Isso porque o responsável por este referencial – o pauteiro – inevitavelmente<br />
refletiria a orientação da empresa, fazen<strong>do</strong> com que a <strong>objetividade</strong> se dissolvesse <strong>na</strong><br />
afirmação de uma subjetividade patro<strong>na</strong>l. Para o autor, esta condição facilitaria para que<br />
a recusa ao conceito de <strong>objetividade</strong> se espalhasse dentro da própria categoria<br />
jor<strong>na</strong>lística. Repórteres e redatores reagiriam à homogeneização, à estandardização <strong>do</strong>s<br />
processos e práticas correntes. A <strong>objetividade</strong> é relegada à categoria de mito, segun<strong>do</strong><br />
78
Marques de Melo. E é preciso dar uma meta ao mito: retomar a questão significa<br />
resgatar o senti<strong>do</strong> ético da profissão, já que deixar as coisas como estão ape<strong>na</strong>s ajuda a<br />
perenizar as distorções atuais.<br />
A discussão da questão da <strong>objetividade</strong>, hoje, passa<br />
necessariamente pela compreensão <strong>do</strong> direito à informação. Mais<br />
ainda: pela sua defesa como prerrogativa democrática. E a<br />
informação entrelaça as duas vertentes <strong>do</strong> relato jor<strong>na</strong>lístico: a<br />
descrição <strong>do</strong>s fatos (informação objetiva: veraz, comprovável,<br />
confiável) e a sua interpretação (informação opi<strong>na</strong>tiva: a<strong>na</strong>lítica,<br />
valorativa, orienta<strong>do</strong>ra). A <strong>objetividade</strong> jor<strong>na</strong>lística converte-se<br />
novamente à sua dimensão ética. Na <strong>medida</strong> em que o jor<strong>na</strong>lista<br />
assume o papel de agente social, responsável pela observação da<br />
realidade, ele se tor<strong>na</strong> media<strong>do</strong>r entre os fatos de interesse público e<br />
a cidadania. (17)<br />
Para o autor, o debate não está ultrapassa<strong>do</strong>, extemporâneo. A <strong>objetividade</strong><br />
pressupõe pluralidade de observação e de relato. Isto é, espera-se mais fontes de<br />
informações, mais versões, mais ca<strong>na</strong>is de difusão, mais pontos de recepção das<br />
informações. Para se exercer esta <strong>objetividade</strong> jor<strong>na</strong>lística <strong>na</strong>s sociedades democráticas<br />
é preciso ouvir estas vozes divergentes, cobrir os pontos cegos, dar vazão ao plural e ao<br />
diverso. O jor<strong>na</strong>lista terá que sustentar seu trabalho <strong>na</strong> veracidade, <strong>na</strong> clareza e <strong>na</strong><br />
credibilidade. Ao público, cabe a arbitragem deste processo, escolhen<strong>do</strong> entre um jor<strong>na</strong>l<br />
e outro, acolhen<strong>do</strong> uma versão em detrimento de outra que julga menos correta e útil.<br />
Colocada desta forma, a <strong>objetividade</strong> jor<strong>na</strong>lística “deixa de ser <strong>do</strong>gma e se tor<strong>na</strong> utopia.<br />
E como tal pode servir como dí<strong>na</strong>mo das sociedades democráticas, tor<strong>na</strong>n<strong>do</strong>-se<br />
transparentes, visíveis <strong>na</strong>s suas contradições, abertas à intervenção da cidadania”<br />
(op.cit.:19).<br />
Entretanto, o que Marques de Melo chama de mito não coincide com o conceito<br />
<strong>na</strong> formulação de autoridades no assunto, como o teórico romeno Mircea Eliade.<br />
Conforme ele, mito é uma <strong>na</strong>rrativa explicativa, relato de surgimento de algo, atesta<strong>do</strong><br />
de ancestralidade.<br />
79
O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento<br />
ocorri<strong>do</strong> no tempo primordial, o tempo fabuloso <strong>do</strong> princípio. (...) é<br />
sempre, portanto, a <strong>na</strong>rrativa de uma criação: ele relata de que<br />
mo<strong>do</strong> algo foi produzi<strong>do</strong> e começou a ser. O mito fala ape<strong>na</strong>s <strong>do</strong><br />
que realmente ocorreu, <strong>do</strong> que se manifestou ple<strong>na</strong>mente. (1986:11)<br />
Seguin<strong>do</strong> os passos de Eliade, o mito da <strong>objetividade</strong> não passa de mistificação<br />
no campo profissio<strong>na</strong>l, de <strong>do</strong>utri<strong>na</strong> que revela uma mística, uma idealização de<br />
condutas. Voltaremos a isso mais a seguir.<br />
Mais inflexível que Marques de Melo, Arceli<strong>na</strong> Hele<strong>na</strong> Publio Dias (1985)<br />
sequer reconhece a presença de uma <strong>objetividade</strong> no Jor<strong>na</strong>lismo. Para a pesquisa<strong>do</strong>ra,<br />
de forma prática, ela não se mostra <strong>na</strong> produção atual, fato que provoca uma indagação:<br />
é a <strong>objetividade</strong> um “mito” ou uma meta? Uma resposta é arriscada <strong>na</strong> direção <strong>do</strong><br />
último, mais desejável para a autora. Isso porque o lugar da utopia, <strong>do</strong> alcançável,<br />
reserva a possibilidade de um exercício – mesmo que distante – da <strong>objetividade</strong>. Assim,<br />
a <strong>objetividade</strong> deve ser perseguida como um princípio ético.<br />
É uma função inquestionável <strong>do</strong>s meios de comunicação de massa,<br />
numa sociedade como a nossa, informar e formar a opinião pública.<br />
Este princípio ético liga<strong>do</strong> à função inquestionável de formar e<br />
informar a opinião pública deve nortear nossa atividade, como<br />
professores, pesquisa<strong>do</strong>res e <strong>na</strong> prática cotidia<strong>na</strong> <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo. O<br />
princípio ético da <strong>objetividade</strong> da informação jor<strong>na</strong>lística está<br />
intimamente liga<strong>do</strong> aos fins dessa atividade. (25)<br />
Marcadamente idealista, a posição frisa que a idéia de uma <strong>objetividade</strong> total e<br />
ple<strong>na</strong> não existe, e que é necessário desmistificar isso. Embora pareça para<strong>do</strong>xal, é<br />
fundamental, no entanto, que se busque a verdade <strong>do</strong>s fatos, que se corra atrás das<br />
informações que possam dar base a um relato. A preocupação ética move os<br />
profissio<strong>na</strong>is, dá orientação ativa ao seu exercício jor<strong>na</strong>lístico, confere objetivos claros<br />
para a função no contexto social.<br />
80
2.4 A <strong>objetividade</strong> questio<strong>na</strong>da<br />
“A mecânica de Newton partia da hipótese segun<strong>do</strong><br />
a qual podemos descrever o mun<strong>do</strong> sem falar de<br />
Deus ou de nós mesmos. As ciências experimentais não<br />
se contentam em descrever e em explicar a Natureza;<br />
elas constituem uma parte da interação entre a Natureza e nós.<br />
Trata-se de uma possibilidade que tor<strong>na</strong> impossível<br />
a separação entre o universo e o Eu.”<br />
Werner Heisenberg – Física e Filosofia<br />
Basicamente, há duas vertentes que servem de viga de sustentação da<br />
<strong>objetividade</strong> dentro <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo. A primeira tem <strong>na</strong> <strong>objetividade</strong> o imperativo ético<br />
que funda a atividade jor<strong>na</strong>lística, a segunda reconhece que é preciso buscar a<br />
<strong>objetividade</strong> para manter um compromisso ético. Nota-se que ambas têm uma linha de<br />
parentesco comum <strong>na</strong> deontologia e que acabam por se complementar <strong>na</strong> <strong>medida</strong> em<br />
que se entende que o dever de informar (e bem informar implicaria em ser objetivo) e o<br />
direito à informação (ter o relato fiel ao fato) são condições necessárias para o bom<br />
andamento <strong>do</strong> fenômeno comunicacio<strong>na</strong>l. O Jor<strong>na</strong>lismo estaria se cumprin<strong>do</strong> assim.<br />
Mas, por contraste, quais são os argumentos que balizam os questio<strong>na</strong>mentos à<br />
existência da <strong>objetividade</strong>? Que raciocínios põem em xeque sua viabilidade e sua<br />
integridade?<br />
De maneira geral, aqueles que questio<strong>na</strong>m a <strong>objetividade</strong> têm em mente que é<br />
impossível fazer um relato exatamente fiel ao fato, já que a interferência <strong>do</strong> <strong>na</strong>rra<strong>do</strong>r é<br />
inerente ao próprio processo de comunicação. Por menos que se queira intervir, não se<br />
pode deixar de escolher uma palavra em detrimento da outra, não se pode deixar de<br />
selecio<strong>na</strong>r uma matéria para abrir um telejor<strong>na</strong>l, não se pode deixar de descartar uma<br />
notícia para que outra entre.<br />
Fer<strong>na</strong>n<strong>do</strong> Resende (2002) localiza a questão <strong>na</strong> superfície <strong>do</strong> texto:<br />
81
A pretensa <strong>objetividade</strong> jor<strong>na</strong>lística, entretanto, só encontra recursos<br />
no mesmo lugar em que o discurso literário pretende a literariedade:<br />
<strong>na</strong> unilateralidade <strong>do</strong> discurso, <strong>na</strong> intransitividade da palavra. O<br />
discurso jor<strong>na</strong>lístico, se a<strong>na</strong>lisa<strong>do</strong> meramente sob esse ângulo,<br />
facilmente traveste-se de objetivo, diferencian<strong>do</strong>-se daqueles<br />
chama<strong>do</strong>s subjetivos. Porém, não há como pensar a linguagem<br />
jor<strong>na</strong>lística tão-somente sob uma rígida perspectiva <strong>do</strong> contexto<br />
factual no qual ela se processa. Ainda que esse contexto não fosse<br />
ele próprio flui<strong>do</strong>, que nele não coubessem tipos varia<strong>do</strong>s de<br />
manifestações verbais, visuais e outras, o discurso jor<strong>na</strong>lístico não se<br />
constitui da palavra objetiva, sem <strong>do</strong>bras, mas, como qualquer outro,<br />
de universos sígnicos que, ad infinitum, representam e significam. O<br />
texto jor<strong>na</strong>lístico, inseri<strong>do</strong> nesse campo maior, mais que componente<br />
de um ato lingüístico, tor<strong>na</strong>-se parte de um ato semiótico. (75)<br />
Assim, por maior distância que o repórter queira estabelecer entre a sua posição<br />
e a <strong>do</strong> fato, não se consegue resguardar total isenção, ausência de contato. O próprio<br />
relato já seria uma intervenção <strong>na</strong> <strong>medida</strong> em que o repórter recorta um fato dentro da<br />
realidade e o remonta num outro momento, configuran<strong>do</strong> novos contextos que<br />
influenciam, inclusive, outros acontecimentos reais. Diante da impossibilidade, o ideal é<br />
que o jor<strong>na</strong>lista se aproxime o máximo possível <strong>do</strong> fato e de sua verdade 34 .<br />
Embora atentem contra a <strong>objetividade</strong>, diversos pensa<strong>do</strong>res reconhecem a<br />
importância <strong>do</strong> conceito, mesmo que sob o rótulo de “mito” ou de paradigma.<br />
Especificamente sobre este último, tratam <strong>do</strong> declínio de um paradigma.<br />
Robert Hackett (1999), por exemplo, afirma ser preferível a <strong>objetividade</strong><br />
orto<strong>do</strong>xa ao propagandismo delibera<strong>do</strong> <strong>do</strong>s jor<strong>na</strong>listas <strong>do</strong> século XIX. Mas só isso não<br />
basta. “Já não nos podemos limitar a pressupor a possibilidade de comunicação<br />
imparcial, de notícias objectivas e independentes acerca de um alega<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> político<br />
e social exterior” (op.cit.: 127). Se é comum opor <strong>objetividade</strong> a parcialidade, o autor<br />
recomenda que se substitua parcialidade pelo conceito de “orientação estruturada”.<br />
34 Conforme Peter Krieg (1995:125): Segun<strong>do</strong> isto o jor<strong>na</strong>lista é alguém incessantemente em busca da<br />
realidade e assim da verdade”<br />
82
Ao aban<strong>do</strong><strong>na</strong>r a noção de comunicação imparcial, podemos evitar<br />
ser afasta<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s nossos propósitos pela busca de padrões de<br />
equilíbrio e imparcialidade. (...) É evidente que a mudança da<br />
‘parcialidade’ para a ‘ideologia’ nos estu<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s media não é<br />
qualquer garantia contra a ingenuidade ou a trivialidade. Contu<strong>do</strong>,<br />
parece ser importante se quisermos compreender suficientemente os<br />
papéis políticos <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo. (128-9)<br />
Note-se que o problema da <strong>objetividade</strong> não é resolvi<strong>do</strong>, mas serve de trampolim<br />
para discussões muito relevantes no trabalho cotidiano jor<strong>na</strong>lístico. Debates como o que<br />
vincula o exercício da <strong>objetividade</strong> como um pré-requisito da competência profissio<strong>na</strong>l.<br />
Sylvia Moretzsohn (2001, 2002) enfoca esta dicotomia assi<strong>na</strong>lan<strong>do</strong> pontos interessantes.<br />
Por exemplo, para a autora, o paradigma da <strong>objetividade</strong> sobrevive porque os meios de<br />
comunicação “mascaram o processo de construção social que permitiria perceber a<br />
intermediação discursiva entre sujeito e realidade através da linguagem”. A defesa da<br />
<strong>objetividade</strong> se sustentaria por esta funcio<strong>na</strong>r como mecanismo de controle contra a<br />
manipulação, arrisca.<br />
Insistin<strong>do</strong> em buscar a verdade (mesmo que seu relato, inevitavelmente, não<br />
reflita exatamente o fato) ou alimentan<strong>do</strong> parentescos que garantam a sua sobrevivência,<br />
de uma forma ou de outra, a <strong>objetividade</strong> assume dimensão de mito, de padrão mais<br />
simbólico que concreto. Como isso se configura?<br />
83
2.4.1 Uma categoria mitificada<br />
84<br />
“O mito é uma fala”<br />
Roland Barthes – Mitologias<br />
Já se disse aqui que a <strong>objetividade</strong> é entendida por muitos <strong>olhar</strong>es como um<br />
mito, mesmo embora a desig<strong>na</strong>ção mais apropriada seja mesmo mistificação. O retorno<br />
a este ponto se faz necessário para salientar como isso se configura entre os jor<strong>na</strong>listas e<br />
por quem não compõe a comunidade profissio<strong>na</strong>l, mas a acompanha de perto.<br />
No fi<strong>na</strong>l <strong>do</strong> inverno de 2001, em Campo Grande (MS), durante o XXIV<br />
Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação da Intercom 35 , o professor Antonio<br />
Hohlfeldt (PUC-RS) apresentou da<strong>do</strong>s parciais de uma pesquisa que coordenou sobre a<br />
percepção da <strong>objetividade</strong> jor<strong>na</strong>lística. O estu<strong>do</strong> levava em conta livros sobre o assunto,<br />
entrevistas com renoma<strong>do</strong>s profissio<strong>na</strong>is e os mais importantes manuais de Jor<strong>na</strong>lismo<br />
<strong>do</strong> país. Num primeiro momento, foram anotadas as mais lembradas categorias <strong>do</strong><br />
Jor<strong>na</strong>lismo entre 21 autores <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is e estrangeiros e entre 13 jor<strong>na</strong>listas. A mais<br />
mencio<strong>na</strong>da foi a <strong>objetividade</strong>. Em seguida, Hohlfeldt cruzou os resulta<strong>do</strong>s com as<br />
menções nos oito principais manuais de redação e estilo no merca<strong>do</strong>, o que reforçou a<br />
presença da categoria e revelou sua ambigüidade entre as fontes consultadas.<br />
O pesquisa<strong>do</strong>r reconhece que a a<strong>do</strong>ção de tal meto<strong>do</strong>logia não permite que se<br />
trace conclusão tão definitiva sobre a importância da <strong>objetividade</strong> no imaginário<br />
jor<strong>na</strong>lístico, entretanto, salienta que a incidência maciça <strong>na</strong>s obras e nos depoimentos<br />
colhi<strong>do</strong>s chama a atenção. E mais: cada vez mais, os manuais – pedagógicos ou de<br />
redação – questio<strong>na</strong>m a sua viabilidade. A situação registrada <strong>na</strong> pesquisa 36 esboça um<br />
cenário curioso de ambigüidade: de um la<strong>do</strong>, os jor<strong>na</strong>listas ainda preservam a imagem e<br />
o conceito que têm da <strong>objetividade</strong>, “mitifican<strong>do</strong>-a”, e de outro, a academia e outras<br />
camadas sociais desvalorizam-<strong>na</strong>, relativizan<strong>do</strong> seu alcance e poder. A <strong>objetividade</strong><br />
35 Sociedade Brasileira de Estu<strong>do</strong>s Interdiscipli<strong>na</strong>res da Comunicação.
emerge <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> como uma “categoria mitificada”, distante ainda de sua total<br />
compreensão enquanto parte constituinte <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo e como fenômeno aparente.<br />
Um ano depois da apresentação de Hohlfeldt, agora em Salva<strong>do</strong>r (BA) <strong>na</strong> 25ª<br />
edição <strong>do</strong> Congresso da Intercom, a professora Regi<strong>na</strong> Glória Nunes Andrade (UERJ)<br />
mostrou como se configura uma visão que também pode ser lida como mitificada 37 .<br />
Desta vez, trabalha-se com a neutralidade, freqüentemente remetida à <strong>objetividade</strong>, e o<br />
viés de análise é psica<strong>na</strong>lítico, articulan<strong>do</strong>-se com a mídia e a formação da opinião<br />
pública. De início, a pesquisa<strong>do</strong>ra recorre a Lacan, lembran<strong>do</strong> que se o inconsciente é<br />
estrutura<strong>do</strong> como uma linguagem e se, para significar, é necessário passar pelos três<br />
registros – real, simbólico, imaginário -, a neutralidade está distante da psique<br />
huma<strong>na</strong> 38 . Estas condições fazem com que fique cada vez mais evidente o caráter<br />
subjetivo nos processos psicológicos, reduzin<strong>do</strong> <strong>na</strong> mesma proporção a neutralidade.<br />
Enfocan<strong>do</strong> a opinião pública, a pesquisa<strong>do</strong>ra afirma que as questões relativas à<br />
neutralidade não encontram maior sustentação <strong>na</strong>s teorias da comunicação quan<strong>do</strong> se<br />
a<strong>na</strong>lisa o la<strong>do</strong> <strong>do</strong> receptor da informação. A neutralidade pode ser atribuída ao emissor<br />
da notícia, mas não é uma exigência teórica prática da comunicação seja em qualquer<br />
<strong>do</strong>s níveis <strong>do</strong> processo.<br />
A bem da verdade, a diferença <strong>do</strong>s registros da realidade, para o<br />
mito está no abismo das referências <strong>do</strong>s fatos ocorri<strong>do</strong>s para os fatos<br />
imaginários. Se considerarmos a importância <strong>do</strong>s meios de<br />
divulgação, das novas normas da informática, da comunicação<br />
eletrônica face à neutralidade, estaremos diante de fatos novos. O<br />
mais evidente de to<strong>do</strong>s, constitui-se a partir de um <strong>olhar</strong> diferencia<strong>do</strong><br />
frente aos fatos ocorri<strong>do</strong>s, que chegam através da imagem o que<br />
favorecerá o aparecimento de novos pressupostos da comunicação.<br />
(2002:119)<br />
36 Mais detalhes podem ser conferi<strong>do</strong>s no texto integral, disponível nos a<strong>na</strong>is <strong>do</strong> XXIV Congresso da Intercom.<br />
37 Além de constar <strong>do</strong>s a<strong>na</strong>is <strong>do</strong> evento, o texto foi publica<strong>do</strong> em Hohlfeldt & Barbosa (2002).<br />
38 Note-se que, mesmo dentro <strong>do</strong> próprio trabalho <strong>do</strong> psica<strong>na</strong>lista, a neutralidade se coloca como uma<br />
recomendação técnica, como separação <strong>do</strong>s méto<strong>do</strong>s de sugestão frente ao paciente, conforme<br />
escreveu Freud. Neutralidade é entendida como <strong>medida</strong> de intervenção no atendimento clínico.<br />
85
A neutralidade – e por extensão a <strong>objetividade</strong> – traduz-se enquanto mito,<br />
enquanto fala que funcio<strong>na</strong> num contexto imaginário específico. O tom inconclusivo de<br />
Andrade deixa aberta a ferida de desconfiança sobre a neutralidade no processo de<br />
comunicação: <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>do</strong> receptor, ela não encontra pouso tranqüilo; <strong>do</strong> <strong>do</strong> emissor, não<br />
requer necessariamente propulsão para vôo. De acor<strong>do</strong> com a autora, é melhor se ater<br />
aos estu<strong>do</strong>s de Freud sobre o comportamento de grupo (instinto gregário e opinião<br />
pública parecem ter muito em comum, intui-se) e àqueles que buscam a articulação <strong>do</strong>s<br />
conteú<strong>do</strong>s latentes (inconscientes) e manifestos <strong>na</strong>s mensagens informativas.<br />
Se não há uma resposta para a neutralidade junto ao receptor, há a sensação<br />
incômoda de que esta neutralidade não é um manto que cobre to<strong>do</strong> o processo de<br />
comunicação. A ferida continua aberta. E o que é considera<strong>do</strong> mitificação pode ser li<strong>do</strong><br />
como mistificação, engano, burla.<br />
O colombiano Javier Darío Restrepo (2001) aponta a encruzilhada em que situa<br />
a <strong>objetividade</strong>: é uma pretensão tão des<strong>medida</strong> como a de aprisio<strong>na</strong>r o reflexo das águas<br />
de um rio, mas ao mesmo tempo é a garantia que o leitor busca para poder acreditar nos<br />
relatos jor<strong>na</strong>lísticos.<br />
O autor, experiente profissio<strong>na</strong>l que hoje se dedica ao trabalho de ombudsman<br />
<strong>na</strong> imprensa colombia<strong>na</strong>, lembra que o princípio da <strong>objetividade</strong> está presente <strong>na</strong><br />
totalidade <strong>do</strong>s códigos deontológicos em diversas partes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e que está prescrito<br />
<strong>na</strong>s gramáticas jor<strong>na</strong>lísticas. Entretanto, esta presença indisfarçável não garante a<br />
existência efetiva da <strong>objetividade</strong> no trabalho de repórteres e redatores. A <strong>objetividade</strong><br />
não se dá por decreto. E isso permite que se conclua que, <strong>na</strong> <strong>do</strong>utri<strong>na</strong> da <strong>objetividade</strong>, há<br />
mais teoria que prática. A fala se sobrepõe à ação: há um discurso sobre a <strong>objetividade</strong><br />
que ajuda a constituir o Jor<strong>na</strong>lismo. E isso permite que, durante muito tempo, a<br />
discussão sobre a <strong>objetividade</strong> jor<strong>na</strong>lística tenha funcio<strong>na</strong><strong>do</strong> como um “sofisma de<br />
86
distração” que impediu enxergar o papel da informação no contexto de construção da<br />
democracia. O cidadão livre é um produto <strong>do</strong> poder democrático, e para ser realmente<br />
livre, precisa se alimentar de informação livre, enfatiza Restrepo.<br />
Mas o que assegura esta condição de liberdade? Um relato objetivo é totalmente<br />
livre de intervenções subjetivas? E o autor pergunta: Para preservar a <strong>objetividade</strong> deve<br />
desaparecer o jor<strong>na</strong>lista?<br />
87
2.4.2 O ritual profissio<strong>na</strong>l e os interesses incidentes<br />
88<br />
“Os jor<strong>na</strong>is da manhã e da tarde mentiram com lealdade”<br />
Jorge Luis Borges – A velha dama<br />
Em muitos autores, o modelo que se sustenta no paradigma da <strong>objetividade</strong> mais<br />
lembra um Jor<strong>na</strong>lismo sem jor<strong>na</strong>listas; um Jor<strong>na</strong>lismo onde os fatos falam por si<br />
mesmos, onde as circunstâncias contam, sozinhas, os acontecimentos, apresentan<strong>do</strong><br />
seus perso<strong>na</strong>gens e os cenários onde contrace<strong>na</strong>m. A <strong>objetividade</strong> – como se vem<br />
discutin<strong>do</strong> desde então <strong>na</strong> profissão – pressupõe ausência de emoções, nulidade de<br />
julgamentos, equilíbrio <strong>na</strong> costura das versões. A <strong>objetividade</strong> como instituição<br />
jor<strong>na</strong>lística emerge da submersão <strong>do</strong>s indivíduos que praticam o Jor<strong>na</strong>lismo. A<br />
<strong>objetividade</strong> se dá quan<strong>do</strong> um manto espesso de homogeneidade se espalha pelo<br />
coletivo. A <strong>objetividade</strong> acontece quan<strong>do</strong> o sujeito não se manifesta, quan<strong>do</strong><br />
desaparece, poderíamos continuar.<br />
Repete-se a questão de Javier Restrepo: para preservar a <strong>objetividade</strong> deve<br />
desaparecer o jor<strong>na</strong>lista? Talvez sim. Mas inverten<strong>do</strong> a lógica, é possível ainda admitir<br />
que a <strong>objetividade</strong> funcione como um conjunto de práticas que trabalham tecnicamente<br />
para a ocultação <strong>do</strong>s interesses incidentes no processo comunicacio<strong>na</strong>l. É o que defende<br />
Alice Mitika Koshyiama (1985):<br />
Fazer os leitores acreditarem que se procura ser imparcial e objetivo,<br />
deixan<strong>do</strong> a eles a escolha da afirmação mais verossímil, é um mo<strong>do</strong><br />
da empresa jor<strong>na</strong>lística manter como seu público consumi<strong>do</strong>r<br />
aqueles leitores que divergem da orientação editorial da<br />
publicação. Alinhar como realidades possíveis a <strong>objetividade</strong> e a<br />
imparcialidade é uma defesa prévia contra os que venham a acusar<br />
uma publicação de ser partidária e tendenciosa. Aí, vemos a<br />
colocação da <strong>objetividade</strong> enquanto problema técnico; é a fuga<br />
da discussão da atividade jor<strong>na</strong>lística como questão política. (45)<br />
Querer evitar ou se desviar de uma visão mais política é uma forma de ocultar os<br />
interesses que incidem <strong>na</strong> produção e <strong>na</strong> circulação das notícias. Isso porque o processo<br />
jor<strong>na</strong>lístico não é ape<strong>na</strong>s técnico, mas também político. Optar por um enfoque numa
cobertura em detrimento de outro não é tão somente um procedimento técnico. Elaborar<br />
uma manchete é uma operação que traz em si elementos muito subjetivos como valores<br />
políticos e estratégias de incentivo à leitura da reportagem.<br />
A pesquisa<strong>do</strong>ra lembra ainda que as experiências históricas <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> e <strong>do</strong><br />
presente <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo oferecem “frágil respal<strong>do</strong>” para que se cultive a <strong>objetividade</strong>,<br />
para que se acredite que se pode fazer Jor<strong>na</strong>lismo imparcial. Até mesmo os critérios de<br />
noticiabilidade não seriam lá muito irrefutáveis diante de um questio<strong>na</strong>mento. Isto<br />
provoca uma perigosa fissura dentro da atividade. Como dizer que se pode praticar um<br />
Jor<strong>na</strong>lismo objetivo se “a definição <strong>do</strong> que é uma notícia publicável depende de várias<br />
avaliações de interesses e fins visa<strong>do</strong>s pelas publicações”? E como ir adiante <strong>na</strong> crença<br />
da isenção se nesse processo “se envolvem profissio<strong>na</strong>is sujeitos a to<strong>do</strong>s os tipos de<br />
condicio<strong>na</strong>mentos”?<br />
Uma saída é enxergar a <strong>objetividade</strong> não como algo a se exercer, mas como uma<br />
estratégia a se colocar em curso. Assim, de acor<strong>do</strong> com a autora, a <strong>objetividade</strong> se opera<br />
em nome da ocultação técnica <strong>do</strong>s interesses que recaem sobre a produção e difusão das<br />
notícias. Evocar a <strong>objetividade</strong> e puxar o cobertor até esconder a cabeça, para que não<br />
se enxergue o corpo ali estira<strong>do</strong>.<br />
Se até então havíamos entendi<strong>do</strong> a <strong>objetividade</strong> como mistificação, como<br />
imperativo ético, como compromisso para resguardar a profissão, como meta, agora ela<br />
se apresenta como estratégia, como atitude deliberada, disfarce.<br />
Mais fun<strong>do</strong> nisso, Gaye Tuchman (1999) faz um sobrevôo antropológico sobre a<br />
selva da <strong>objetividade</strong>. É evidente que esta prerrogativa não é ape<strong>na</strong>s assumida por<br />
jor<strong>na</strong>listas – cientistas sociais, médicos e advoga<strong>do</strong>s também o fazem -, mas para os<br />
profissio<strong>na</strong>is da comunicação a <strong>objetividade</strong> atua como anteparo entre a categoria e seus<br />
críticos. Assim, quan<strong>do</strong> questio<strong>na</strong><strong>do</strong>s sobre seus procedimentos, “os jor<strong>na</strong>listas invocam<br />
89
a sua objectividade quase <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> que um camponês mediterrânico põe um<br />
colar de alhos à volta <strong>do</strong> pescoço para afastar os espíritos malignos”, compara a autora<br />
(op.cit.: 75).<br />
A <strong>objetividade</strong> se traveste de ritual estratégico, orienta<strong>do</strong> para defender o<br />
profissio<strong>na</strong>l de críticas e questio<strong>na</strong>mentos. Com isso, diante de uma interpelação, um<br />
repórter recorre a uma noção operacio<strong>na</strong>l ou mesmo a algo que aponte para critérios e<br />
procedimentos técnicos que o livrem de sua intervenção pessoal, erro acidental ou<br />
parcialidades inconvenientes.<br />
A hipótese de Gaye Tuchman bebe <strong>na</strong> fonte de Everett Hughes, que em seu Men<br />
and their work, de 1964, dizia que as profissões desenvolvem procedimentos<br />
ritualiza<strong>do</strong>s para se protegerem de críticas. Para resistir às pressões exter<strong>na</strong>s, às<br />
cobranças pelo cumprimento de prazos e dar nova dimensão aos seus afazeres, os<br />
jor<strong>na</strong>listas defenderiam a normatização de atividades para dar conta <strong>do</strong>s fatos. O<br />
raciocínio é simples: fazer um relato objetivo orienta a conduta <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista, volta os<br />
esforços para os resulta<strong>do</strong>s espera<strong>do</strong>s, cristaliza uma prática profissio<strong>na</strong>l, define um<br />
perfil de Jor<strong>na</strong>lismo e ainda evita processos judiciais por calúnia, injúria ou difamação.<br />
Segun<strong>do</strong> a autora, além da verificação/apuração <strong>do</strong>s fatos, há mais quatro<br />
procedimentos que auxiliam o jor<strong>na</strong>lista a efetivar o que chama de <strong>objetividade</strong>:<br />
• a apresentação de possibilidades conflituais;<br />
• a apresentação de provas auxiliares;<br />
• uso judicioso de aspas;<br />
• e a estruturação da informação numa seqüência apropriada.<br />
Além destes procedimentos, um outro - a separação entre conteú<strong>do</strong>s noticiosos e<br />
conteú<strong>do</strong>s opi<strong>na</strong>tivos – ajudaria tanto o jor<strong>na</strong>lista quanto o público a definir o que é um<br />
90
elato jor<strong>na</strong>listicamente objetivo. Na prática cotidia<strong>na</strong>, quan<strong>do</strong> há dúvida sobre os<br />
critérios de noticiabilidade, repórteres e editores invocam seu “news judgement”,<br />
defini<strong>do</strong> “experiência e senso comum que lhe permitam atribuir aos ‘factos’ o valor de<br />
‘importantes’ e ‘interessantes’” (op.cit.:85). Os profissio<strong>na</strong>is atribuem a esse “news<br />
judgement” a qualidade de conhecimento sagra<strong>do</strong>, como se constituísse numa<br />
capacidade secreta diferencia<strong>do</strong>ra das demais pessoas. (Seria possível ver aqui o <strong>olhar</strong><br />
jor<strong>na</strong>lístico de que tratamos no capítulo anterior?). Gaye Tuchman critica essa<br />
percepção, já que observa ali uma contradição inter<strong>na</strong> que inviabiliza o conceito:<br />
A experiência organizacio<strong>na</strong>l <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista o predispõe contra<br />
hipóteses que contrariam as suas expectativas preexistentes. Do<br />
ponto de vista <strong>do</strong>s jor<strong>na</strong>listas, as suas experiências com outras<br />
organizações durante um perío<strong>do</strong> de tempo validam o seu news<br />
judgement e podem ser reduzi<strong>do</strong>s ao ‘senso comum’. Por ‘senso<br />
comum’ os jor<strong>na</strong>listas entendem o que a maioria deles considera<br />
como verdadeiro, ou da<strong>do</strong> como adquiri<strong>do</strong>. (87)<br />
Desta forma, a autora tenta desconstruir a noção, <strong>na</strong> <strong>medida</strong> em que expõe que<br />
os julgamentos sobre a noticiabilidade de um acontecimento não seriam lá muito<br />
diferentes <strong>do</strong>s critérios utiliza<strong>do</strong>s por profissio<strong>na</strong>is não-jor<strong>na</strong>listas.<br />
A reivindicação <strong>do</strong> news judgement se enquadraria no rol <strong>do</strong>s atributos formais<br />
que dão envergadura ao Jor<strong>na</strong>lismo – e também consolidam a idéia de <strong>objetividade</strong> -,<br />
mas que <strong>na</strong> verdade não passariam de estratégias de defesa de críticas profissio<strong>na</strong>is. De<br />
um la<strong>do</strong>, os jor<strong>na</strong>listas oferecem “provas” de que fazem distinção entre o que relatam e<br />
o que pensam, de que apresentam versões diferentes de uma mesma realidade, de que<br />
separam cuida<strong>do</strong>samente os fatos das opiniões. Mas embora tais procedimentos possam<br />
fornecer demonstrações de uma tentativa de atingir a <strong>objetividade</strong>, “não se pode dizer<br />
que a consigam alcançar”, frisa Tuchman.<br />
91
Para ela, ao contrário, esses procedimentos constituem um convite à percepção<br />
seletiva; eles insistem “erradamente” <strong>na</strong> idéia de que os fatos falam por si; constituem<br />
um instrumento de descrédito e um meio <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista fazer passar a sua opinião; e<br />
iludem o público ao sugerir que a matéria a<strong>na</strong>lítica é convincente, equilibrada ou<br />
definitiva. Em suma, a <strong>objetividade</strong> no Jor<strong>na</strong>lismo se coloca como um ritual estratégico<br />
que preserva o profissio<strong>na</strong>l de críticas à qualidade de seu trabalho, de questio<strong>na</strong>mentos a<br />
sua legitimidade, de acusações de parcialidade em uma cobertura.<br />
92
2.4.3 Objetividade como efeito de discurso<br />
"As pessoas não param de confundir com notícias o que lêem nos jor<strong>na</strong>is"<br />
A. J. Liebing, jor<strong>na</strong>lista norte-americano (1904-1963)<br />
93<br />
“Nada é mentira, nem tu<strong>do</strong> é verdade: de omissões<br />
em edições se constrói uma realidade de ficções”<br />
Patrícia Patrício – Tiran<strong>do</strong> o manual <strong>do</strong> automático<br />
Já se disse aqui que, em termos de <strong>objetividade</strong> jor<strong>na</strong>lística, a fala sobrepõe-se à<br />
ação. Isto é, o discurso estabelece condições para que práticas se consolidem, e se<br />
disseminem no mun<strong>do</strong> social <strong>do</strong> trabalho. Isso porque o discurso não ape<strong>na</strong>s reflete o<br />
mun<strong>do</strong> e seus elementos, mas também porque o discurso refrate a realidade, crian<strong>do</strong><br />
cenários e conceitos, cristalizan<strong>do</strong> entendimentos e visões. Desta forma, pode-se pensar<br />
em universos paralelos que se tocam, que se entrecruzam crian<strong>do</strong> zo<strong>na</strong>s em que a<br />
realidade <strong>do</strong> discurso vale tanto a realidade das coisas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> (que até poderíamos<br />
chamar de real-real). O Jor<strong>na</strong>lismo é uma atividade social envolven<strong>do</strong> um complexo<br />
tecnológico que tor<strong>na</strong> mais evidente a porosidade <strong>do</strong>s limites entre essas realidades: o<br />
que se lê nos jor<strong>na</strong>is ou se vê <strong>na</strong> TV é toma<strong>do</strong> como o acontecimento em si; os discursos<br />
veicula<strong>do</strong>s nos meios de comunicação alcançam estatuto de verdades <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />
A <strong>objetividade</strong> é uma condição que dá sustentação ao Jor<strong>na</strong>lismo como prática.<br />
Reescrevo o enuncia<strong>do</strong>: A <strong>objetividade</strong> falada – o que se diz dela – ajuda a suportar o<br />
Jor<strong>na</strong>lismo no mun<strong>do</strong> social. Desde os tempos de consolidação da atividade jor<strong>na</strong>lística,<br />
a <strong>objetividade</strong> recheia o discurso de constituição, definição e inserção social <strong>do</strong><br />
Jor<strong>na</strong>lismo. Isso não pode ser ignora<strong>do</strong>.<br />
A exemplo <strong>do</strong>s demais, o discurso jor<strong>na</strong>lístico tem suas regras de<br />
funcio<strong>na</strong>mento. Essas normas não só ajudam a fundar o Jor<strong>na</strong>lismo como prática<br />
discursiva como também contribuem para a conseqüente cristalização de suas práticas<br />
sociais. Bethânia Mariani (1998) diagnostica que esse discurso jor<strong>na</strong>lístico é um tipo de
“discurso sobre”, uma espécie de discurso que se ocupa de objetos, de alteridades. Neste<br />
senti<strong>do</strong>,<br />
um efeito imediato <strong>do</strong> falar sobre é tor<strong>na</strong>r objeto aquilo sobre o que<br />
se fala. Por esse viés, o sujeito enuncia<strong>do</strong>r produz um efeito de<br />
distanciamento – o jor<strong>na</strong>lista projeta a imagem de um observa<strong>do</strong>r<br />
imparcial – e marca uma diferença com relação ao que é fala<strong>do</strong>,<br />
poden<strong>do</strong>, desta forma, formular juízos de valor, emitir opiniões etc.,<br />
justamente porque não se ‘envolveu’ com a questão (p.60).<br />
Então, é <strong>na</strong> superfície <strong>do</strong> texto que se tor<strong>na</strong>m possíveis as condições para alguma<br />
<strong>objetividade</strong> jor<strong>na</strong>lística. É <strong>na</strong> costura <strong>do</strong> texto, <strong>na</strong> amarração das falas e descrições que<br />
se cria um efeito de <strong>objetividade</strong>, uma sensação de que os fatos falam por si mesmos.<br />
No funcio<strong>na</strong>mento jor<strong>na</strong>lístico, o profissio<strong>na</strong>l opera de uma forma que se apóia num<br />
apagamento de sujeito <strong>na</strong>rra<strong>do</strong>r. Isto é, o jor<strong>na</strong>lista reúne as informações que julga<br />
necessárias para que as reapresente em forma de notícia, gênero que tenta se legitimar<br />
por trazer a leitura fiel <strong>do</strong>s acontecimentos. O distanciamento que o discurso da<br />
<strong>objetividade</strong> propõe propicia uma dupla ilusão: o jor<strong>na</strong>lista se ilude pensan<strong>do</strong> que está<br />
distante <strong>do</strong> objeto e que pode ser imparcial, deixan<strong>do</strong> o fato falar por si mesmo; e o<br />
público se ilude toman<strong>do</strong> como um fiel reflexo <strong>do</strong> fato o relato ofereci<strong>do</strong> 39 .<br />
A ilusão se dá com base <strong>na</strong> consideração que o Jor<strong>na</strong>lismo leva ao público um<br />
relato literal <strong>do</strong> aconteci<strong>do</strong>. Como se fosse possível o jor<strong>na</strong>lista apreender a essência <strong>do</strong><br />
real e repassá-la ao leitor sem perigo de contami<strong>na</strong>ção. Ocorre que ao tomar contato<br />
com o fato – seja por meio de depoimentos de quem o presenciou ou viveu, seja por<br />
meio de sua observação direta -, o jor<strong>na</strong>lista reconfigura os elementos que dele fazem<br />
parte, interferin<strong>do</strong> <strong>na</strong> sua integridade. O jor<strong>na</strong>lista não ape<strong>na</strong>s apreende o<br />
acontecimento; ele o lê, o compreende. E a leitura é um processo complexo de<br />
39 O jor<strong>na</strong>lista se ilude ainda pensan<strong>do</strong> que <strong>do</strong>mi<strong>na</strong> o fato relata<strong>do</strong> só porque acumulou consigo algumas<br />
versões a ele referentes. O Jor<strong>na</strong>lismo pode mesmo esgotar a exploração de um acontecimento?<br />
94
interpretação, é um gesto não só de entendimento puro, mas também de construção de<br />
senti<strong>do</strong>s que podem ser inscritos numa ordem simbólica admissível.<br />
Um conheci<strong>do</strong> diagrama mostra que o real não chega ao imaginário sem passar<br />
pelo simbólico. Isto é, não se pode apanhar fragmentos da realidade e lançá-las ao<br />
público sem que essas fagulhas passem pela linguagem. E é aí que os efeitos são<br />
cria<strong>do</strong>s. Ao escolher uma palavra em detrimento de outra, ao optar pela primazia de<br />
uma fala, quem escreve entra em ce<strong>na</strong>, atua, suja as próprias mãos. E isso não é mera<br />
prerrogativa <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista. Não. Essa inevitabilidade está no próprio funcio<strong>na</strong>mento da<br />
língua, está inscrita <strong>na</strong> sua forma de operação. As palavras não são neutras, carregam<br />
cargas semânticas; um relato é resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> ato de reportar partin<strong>do</strong> de um determi<strong>na</strong><strong>do</strong><br />
ponto de vista; verossimilhança e veracidade não são as mesmas coisas; literalidade e<br />
<strong>objetividade</strong> são efeitos de discurso, efeitos que vigoram em enuncia<strong>do</strong>s, textos e falas.<br />
A <strong>objetividade</strong> jor<strong>na</strong>lística é um efeito que serve para referendar o discurso de<br />
sustentação <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo enquanto prática social. A <strong>objetividade</strong>, desde o momento em<br />
que o Jor<strong>na</strong>lismo fortalece suas bases no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho, funcio<strong>na</strong> como uma<br />
exigência para o seu exercício. A <strong>objetividade</strong> está inscrita <strong>na</strong> ordem <strong>do</strong> discurso<br />
jor<strong>na</strong>lístico.<br />
A ordem <strong>do</strong> discurso jor<strong>na</strong>lístico, com seu sistema de exclusões e<br />
limites, marcada por um tipo de relação com a verdade a com a<br />
informação (ou melhor, com a verdade-da-informação), está<br />
relacio<strong>na</strong>da por um la<strong>do</strong> com a ilusão referencial da linguagem e,<br />
por outro, com seu próprio processo histórico de constituição. Isto<br />
quer dizer que no discurso jor<strong>na</strong>lístico, como tal, já se tem uma<br />
memória da própria instituição da imprensa agin<strong>do</strong> <strong>na</strong> produção das<br />
notícias. Memória que atua como um ‘filtro’ <strong>na</strong> significação das<br />
notícias e, conseqüentemente, no mo<strong>do</strong> como o mun<strong>do</strong> é<br />
significa<strong>do</strong>. (cf. Mariane, 1998. p. 67)<br />
O texto – e aqui se consideram os textos verbais e os não-verbais – é o local<br />
onde o efeito de <strong>objetividade</strong> pode vigorar, onde ele pode ter seu regime de vigência. O<br />
que significa dizer que a <strong>objetividade</strong> jor<strong>na</strong>lística só pode ser possível <strong>na</strong> órbita <strong>do</strong><br />
95
discurso, no raio de sua influência e vigor. Repito: pode ser possível. Como é um efeito,<br />
a <strong>objetividade</strong> pode funcio<strong>na</strong>r ou não, marcar-se ou não.<br />
Pensan<strong>do</strong> <strong>na</strong>s etapas <strong>do</strong> fazer jor<strong>na</strong>lístico, a <strong>objetividade</strong> só pode se dar no<br />
estágio de tessitura <strong>do</strong> texto, e não <strong>na</strong> apuração das informações, por exemplo. Na coleta<br />
<strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s, o jor<strong>na</strong>lista não pode se apagar, ele está ali, junto à fonte de informação,<br />
toman<strong>do</strong> seu depoimento, estimulan<strong>do</strong> sua fala, reunin<strong>do</strong> versões. Aqui, um ponto que<br />
não pode ser alija<strong>do</strong> da discussão: o Jor<strong>na</strong>lismo trabalha com versões e não verdades.<br />
Cotidia<strong>na</strong>mente, <strong>na</strong>s redações, nos estúdios e <strong>na</strong>s ruas, repórteres manipulam 40 versões,<br />
misturam falas e pontos-de-vistas. Lidam com versões que se pretendem verdades. O<br />
Jor<strong>na</strong>lismo se ocupa de referendar verdades, fixar conceitos, estabelecer ditos e fatos.<br />
Mas não se pode tratar <strong>do</strong> conceito de verdade sem vinculá-lo ao de poder, afirma<br />
Michel Foucault (1984, p.12).<br />
O importante, creio, é que a verdade não existe fora <strong>do</strong> poder ou<br />
sem poder (...) A verdade é deste mun<strong>do</strong>; ela é produzida nele<br />
graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamenta<strong>do</strong>s<br />
de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política<br />
geral’ de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz<br />
funcio<strong>na</strong>r como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que<br />
permitem distinguir os enuncia<strong>do</strong>s verdadeiros <strong>do</strong>s falsos, a maneira<br />
como se sancio<strong>na</strong> uns e outros; as técnicas e os procedimentos que<br />
são valoriza<strong>do</strong>s para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles<br />
que têm o encargo de dizer o que funcio<strong>na</strong> como verdadeiro.<br />
Não se encontra a verdade, como se ela estivesse oculta, escondida. A verdade é<br />
construída, costurada; é consensual entre aqueles que detêm a prerrogativa de a<br />
definirem; é conveniente e é plural. Ela é uma direção de senti<strong>do</strong>, uma si<strong>na</strong>lização de<br />
entendimento e compreensão. Trata-se da sua imposição como algo literal,<br />
incontestável, i<strong>na</strong>diável, incontornável. A operação que ocorre é a imposição de uma<br />
versão em detrimento de outras – atenden<strong>do</strong> a certos critérios que chamamos de<br />
40 Uso o verbo “manipular” <strong>na</strong> sua acepção primeira, a de trabalhar com as mãos, de manejar, tratar<br />
manualmente. O termo tem origem entre os romanos e se referia às atividades de alguns solda<strong>do</strong>s que se<br />
ocupavam de ostentar os manípulos, hastes e pavilhões com símbolos <strong>do</strong> Império.<br />
96
veracidade e verossimilhança, fidelidade e realidade, por exemplo. Por isso, a verdade é<br />
histórico-social e não essencial, <strong>na</strong>tural ou literal. E no percurso de fixação de uma<br />
verdade, o efeito de <strong>objetividade</strong> é crucial no exercício jor<strong>na</strong>lístico porque oferece<br />
alicerces para este estabelecimento. O Jor<strong>na</strong>lismo possibilita e permite 41 a circulação de<br />
certos senti<strong>do</strong>s, ratifica verdades convenientes e possíveis, cristaliza relatos <strong>do</strong>s<br />
acontecimentos e perfis de perso<strong>na</strong>gens, dan<strong>do</strong> a eles contornos defini<strong>do</strong>s e tangíveis.<br />
Então, a verdade não existe? Não da forma como se a pronuncia, com uma<br />
inicial maiúscula e no singular; não da maneira como se a define: como um acha<strong>do</strong>, uma<br />
meta ou tesouro; não da forma como se a quer: tangível, factual, inconteste. Ber<strong>na</strong>rd<br />
Cequilini, em seu Éloge de la variante (1989), assi<strong>na</strong>la que não há senão versões, e que<br />
convivemos com essas versões. Para a maioria <strong>do</strong>s jor<strong>na</strong>listas, um enuncia<strong>do</strong> como este<br />
é um golpe mortal para a profissão, sua identidade e a história que se quer manter dela.<br />
Se a coragem é um valor importante no exercício jor<strong>na</strong>lístico, enfrentar uma resistência<br />
como essa me parece fundamental. Mesmo que essa coragem mais pareça atrevimento<br />
irresponsável, devaneio quixotesco.<br />
***<br />
Sob uma luz diáfa<strong>na</strong>, o fidalgo Dom Quixote olhou bem para os companheiros<br />
que lhe acompanhavam <strong>na</strong> venda e percebeu que eles não estavam de acor<strong>do</strong> quanto à<br />
<strong>na</strong>tureza de seu elmo e quanto ao ambiente que habitavam. Por um segun<strong>do</strong> entendeu<br />
que só mesmo um tipo de encantamento poderia iludi-los fazen<strong>do</strong> pensar que se tratava<br />
de uma bacia de barbeiro e de uma modesta venda. Mas eram o elmo de Manbrino e um<br />
castelo, insistiu em silêncio para si mesmo, como se quisesse reforçar seu<br />
41 Possibilita, pois dá condições materiais para que esses enuncia<strong>do</strong>s se difundam; permite porque está<br />
numa das instâncias de seu aparente controle.<br />
97
convencimento. Só mesmo artimanhas de feiticeiros poderiam provocar aquelas<br />
miragens...<br />
A <strong>objetividade</strong> não permite concomitância, ambigüidades. Impossível ser<br />
objetivo sob o teto de uma venda onde imperam muitas visões, onde o real não se<br />
manifesta da mesma forma para to<strong>do</strong>s. Na taver<strong>na</strong> <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo, o Cavaleiro da Triste<br />
Figura perceberia muitos encantamentos embaçan<strong>do</strong> os <strong>olhar</strong>es <strong>do</strong>s que se acotovelam<br />
no balcão. A <strong>objetividade</strong> jor<strong>na</strong>lística se mostra para uns como o elmo de Manbrino –<br />
que veste seu possui<strong>do</strong>r de pompa e dignidade; para outros, ela mais parece um pedaço<br />
de metal retorci<strong>do</strong> que de <strong>na</strong>da serve além de ocupar espaço <strong>na</strong> fronte <strong>do</strong>s que a<br />
ostentam; e para terceiros como um adereço importante que está perdi<strong>do</strong> em algum<br />
ponto, mas que deve ser busca<strong>do</strong> para justificar a honra de seus detentores.<br />
Mas vultos e visões mais confundem que explicam. Miragens corrompem nossos<br />
<strong>olhar</strong>es. Como atravessar as distâncias sem se deixar iludir, cain<strong>do</strong> no desvio e no<br />
engano? Como evitar ser guia<strong>do</strong> pela errância? Entre a pergunta e a resposta, é preciso<br />
prosseguir, enfrentan<strong>do</strong> os caminhos e o que neles aparecer. Mesmo que sejam<br />
fantasmas e ilusões de óptica. A <strong>objetividade</strong> está inscrita <strong>na</strong> ordem <strong>do</strong> discurso<br />
jor<strong>na</strong>lístico, e mais importante que descobrir se ela existe ou não é saber como ela<br />
funcio<strong>na</strong>. A questão da <strong>objetividade</strong> jor<strong>na</strong>lística - já pudemos sentir - repousa entre a<br />
dúvida e a incerteza.<br />
98
CAPÍTULO 3<br />
Entre a dúvida e a incerteza<br />
99<br />
“Se não vir <strong>na</strong>s suas mãos as feridas <strong>do</strong>s pregos,<br />
e se não puser nelas meu de<strong>do</strong> e não colocar minha mão<br />
no seu la<strong>do</strong>, não acreditarei”<br />
Evangelho de João, Cap. 20, Vers. 25<br />
U<br />
m <strong>do</strong>s episódios mais conheci<strong>do</strong>s quan<strong>do</strong> o tema é dúvida, a incredulidade <strong>do</strong><br />
Tomé bíblico ganhou dimensão de substantivo. Assim, quan<strong>do</strong> lhe dizem que<br />
seu mestre ressuscitara, o apóstolo rechaça a hipótese, admitin<strong>do</strong>-a ape<strong>na</strong>s se<br />
constatada pela visão e pelo tato, senti<strong>do</strong>s auxiliares da sua razão. Só tocan<strong>do</strong> e ven<strong>do</strong> o<br />
corpo à sua frente, o homem simples que vivia como pesca<strong>do</strong>r confiaria no retorno de<br />
Jesus à vida. O traço humano mais evidente da passagem de Tomé pelos quatro<br />
evangelhos – a dúvida – cristaliza-se em um estigma, e o discípulo passa a ser<br />
conheci<strong>do</strong> como o “incrédulo”, o santo <strong>do</strong> “ver para crer”.<br />
Similar ao episódio é a suspeita <strong>do</strong>s guardas frente à aparição de um vulto <strong>na</strong>s<br />
cercanias <strong>do</strong> castelo de Elsinor, em Hamlet, de William Shakespeare. Estupefatos, os<br />
solda<strong>do</strong>s não crêem no que se mostra a eles mais de uma vez. O príncipe da Di<strong>na</strong>marca<br />
também duvida, até que o fantasma de seu pai aparece e lhe conta a verdade sobre sua<br />
morte.<br />
Nas duas histórias, aquilo que é difícil de aceitar como verdadeiro, como crível,<br />
ganha corpo sob uma forma sobre<strong>na</strong>tural: é um anjo ou uma visão, é um espírito ou um<br />
fantasma. Entidades que burlam as regras da <strong>na</strong>tureza e que se colocam no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s<br />
vivos e das aparências para trazer revelações, denúncias. Nos <strong>do</strong>is casos - e em muitos<br />
outros -, a dúvida é a chancela da verdade; a condição de legitimação de uma suspeita; o<br />
elemento que vai sustentar a assertiva, já que a coloca em prova: num primeiro<br />
momento, a dúvida reforça a desconfiança, mas depois, serve de etapa probatória da<br />
verdade. Se a afirmação sobrevive ao teste da dúvida, <strong>do</strong> questio<strong>na</strong>mento, ela ganha
contornos de verossimilhança, passaporte para um perfil de veracidade 42 . A dúvida é<br />
capital para quem busca certezas. A instabilidade <strong>do</strong> questio<strong>na</strong>mento e a angústia da<br />
incerteza parecem funcio<strong>na</strong>r como estágios de um ritual, de um processo de encontro<br />
das verdades. É preciso passar por eles até se alcançar o conforto, a calmaria da certeza.<br />
Para cientistas, filósofos ou mesmo jor<strong>na</strong>listas, certas certezas são fundamentais.<br />
Neste senti<strong>do</strong>, a dúvida tem papel importante em suas buscas cotidia<strong>na</strong>s. Para observar<br />
como isso se dá, é preciso, no entanto, percorrer alguns caminhos ancestrais, a começar<br />
pelo trilha<strong>do</strong> por Descartes nos séculos XVI e XVII.<br />
3.1 Descartes, a dúvida e o méto<strong>do</strong><br />
100<br />
“Os acha<strong>do</strong>s mais valiosos são os méto<strong>do</strong>s”<br />
Friedrich W. Nietzsche, filósofo alemão<br />
Os historia<strong>do</strong>res da filosofia demarcam que a escola <strong>do</strong> racio<strong>na</strong>lismo <strong>na</strong>sce com<br />
Descartes. Isto é, o estabelecimento de uma conduta huma<strong>na</strong> e de sua estruturação em<br />
pensamento apoiadas <strong>na</strong> razão surge a partir das idéias deste francês <strong>na</strong>sci<strong>do</strong> no fi<strong>na</strong>l <strong>do</strong><br />
Século <strong>do</strong>s Descobrimentos. Mas, para além <strong>do</strong> que possamos imagi<strong>na</strong>r hoje, este é um<br />
tempo não só de euforia econômica e de descobertas marítimas, mas de forte opressão<br />
da Inquisição. E embora “a razão constitua cada homem”, a Igreja é quem sempre tem<br />
razão...<br />
Sociável e inteligente, Descartes freqüenta as cortes e as rodas intelectuais onde<br />
se discutem as idéias de Galileu e Pascal, que estremecerão as cúpulas de igrejas e<br />
governos. Com níti<strong>do</strong> talento matemático, Descartes se dedica a estu<strong>do</strong>s da área, mas<br />
aventura-se (com êxito) <strong>na</strong> Óptica e Biologia, contribuin<strong>do</strong> com seus insights e modelos<br />
explicativos. Alguns que se mantêm até hoje, conforme se pode ver <strong>na</strong>s neurociências.<br />
42 Funcio<strong>na</strong> assim também <strong>na</strong>s discussões da filosofia da ciência. Principalmente no caso da crítica de Karl<br />
Popper aos critérios de verificação científica <strong>do</strong>s empiristas lógicos <strong>do</strong> Círculo de Vie<strong>na</strong>, no começo <strong>do</strong><br />
século XX. A eles, Popper opõe princípios que apontam para a refutabilidade de uma teoria científica.
O filósofo será o primeiro a defender o conceito dual de corpo e mente, propon<strong>do</strong> um<br />
lugar para ela. As bases cartesia<strong>na</strong>s vão nos permitir quatro séculos depois discutir<br />
noções como consciência, emoções e ações voluntárias, por exemplo 43 ...<br />
Em 1619, Descartes passa um inverno aquartela<strong>do</strong> em Ulm, Neuburgo, onde<br />
acaba se relacio<strong>na</strong>n<strong>do</strong> com o matemático Johannes Faulhaber, que já havia publica<strong>do</strong><br />
obras relacio<strong>na</strong>das à aritmética e à Ordem Rosa-Cruz. Para Stephen Gaukroger, que<br />
escreveu o que chamou de biografia intelectual de Descartes, este encontro “marcou o<br />
início de sua teoria geral <strong>do</strong> ‘méto<strong>do</strong>’” (1999:145).<br />
É a partir daí que o filósofo francês passa a trabalhar <strong>na</strong>s Regulae ad<br />
directionum ingenii (Regras para a direção <strong>do</strong> espírito), que só seriam mesmo<br />
publicadas após a sua morte. Na verdade, elas não foram redigidas para que fossem<br />
editadas, embora o tivessem si<strong>do</strong> ape<strong>na</strong>s em 1684, em holandês. Entretanto, mesmo que<br />
o público não tivesse ti<strong>do</strong> acesso às regras, seu autor já estruturava seu pensamento num<br />
corpo coerente de pensamentos: as regras primavam pela unidade <strong>do</strong> conhecimento,<br />
alertavam para a necessidade de um méto<strong>do</strong> para dirigir as ações huma<strong>na</strong>s, e<br />
explicitavam as etapas desse méto<strong>do</strong>. Segun<strong>do</strong> elas, assuntos complexos deveriam ser<br />
decompostos em outros mais simples, e depois separa<strong>do</strong>s em absolutos e relativos,<br />
comparan<strong>do</strong>-os 44 .<br />
43 Muito influente atualmente, o neurologista português António Damásio vai se apegar ao dualismo<br />
psicofísico cartesiano para apontar ali um deslize <strong>do</strong> filósofo francês: “É esse o erro de Descartes: a<br />
separação abissal entre o corpo e a mente, entre a substância corporal, infinitamente divisível, com volume,<br />
com dimensões e com um funcio<strong>na</strong>mento mecânico, de um la<strong>do</strong>, e a substância mental, indivisível, sem<br />
volume, sem dimensões e intangível, de outro; a sugestão de que o raciocínio, o juízo moral e o sofrimento<br />
adveniente da <strong>do</strong>r física ou agitação emocio<strong>na</strong>l poderiam existir independentemente <strong>do</strong> corpo.<br />
Especificamente: a separação das operações mais refi<strong>na</strong>das da mente, para um la<strong>do</strong>, e da estrutura e<br />
funcio<strong>na</strong>mento <strong>do</strong> organismo biológico, para o outro” (1998:280). Segun<strong>do</strong> Damásio, a compreensão da<br />
mente huma<strong>na</strong> depende da a<strong>do</strong>ção de uma perspectiva <strong>do</strong> organismo: “Não só a mente tem de passar<br />
de um cogitum não físico para o <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> teci<strong>do</strong> biológico, como deve também ser relacio<strong>na</strong>da com<br />
to<strong>do</strong> o organismo que possui cérebro e corpo integra<strong>do</strong>s e que se encontra ple<strong>na</strong>mente interativo com um<br />
meio ambiente físico e social” (op.cit.:282)<br />
44 Mesmo nesta brevíssima apresentação das Regras para a direção <strong>do</strong> espírito, é fácil observar como há<br />
um paralelo entre a filosofia cartesia<strong>na</strong> e o modus operandi <strong>do</strong>s exames a<strong>na</strong>tômicos. Este parentesco pode<br />
ser explica<strong>do</strong> pelo fato de o próprio Descartes ter estuda<strong>do</strong> e pesquisa<strong>do</strong> fisiologia. Para o pensa<strong>do</strong>r<br />
francês, a<strong>na</strong>lisar é esmiuçar, dissecar questões...<br />
101
É interessante perceber como a questão <strong>do</strong> méto<strong>do</strong> envolve Descartes, a tal<br />
ponto de colocar em segun<strong>do</strong> plano estu<strong>do</strong>s e pesquisas que deveriam ser figuras de<br />
proa em sua produção, principalmente <strong>na</strong> década de 30 <strong>do</strong> século XVII. Na primavera<br />
de 1635, o autor passa a trabalhar no Discours de la Méthode, que deveria ser um<br />
prefácio a outros <strong>do</strong>is ensaios: Dioptrique, um trata<strong>do</strong> prático para construção de<br />
instrumentos ópticos, e Météors, obra composta por discursos acerca <strong>do</strong>s fenômenos<br />
meteorológicos. O prefácio ganhou corpo e acabou absorven<strong>do</strong> os trabalhos<br />
precedentes, que se tor<strong>na</strong>ram acessórios. Mais ainda: o Discurso <strong>do</strong> Méto<strong>do</strong> se<br />
transformou <strong>na</strong> obra mais importante de Descartes e <strong>na</strong> pedra de fundação <strong>do</strong> que se<br />
pode chamar hoje de filosofia da consciência.<br />
A importância da incursão de um méto<strong>do</strong> precisa ser dimensio<strong>na</strong>da no seu<br />
contexto histórico. O século XVII ainda respira as névoas <strong>do</strong> obscurantismo europeu, a<br />
Igreja <strong>do</strong>mi<strong>na</strong> a civilização ocidental, dan<strong>do</strong> a ela sua conformação e base. Em termos<br />
paradigmáticos, a grande influência meto<strong>do</strong>lógica ainda era Aristóteles, passa<strong>do</strong>s já <strong>do</strong>is<br />
mil anos 45 . É neste cenário que se deve considerar o peso da pedra que Descartes atira<br />
sobre o lago <strong>do</strong> pensamento humano.<br />
Dentro <strong>do</strong> universo cartesiano, nenhuma crença resiste ao processo de dúvida. O<br />
questio<strong>na</strong>mento é o motor, o primeiro toque. Descartes vê no ato de duvidar uma outra<br />
ação: pensar. Para ele, a consciência está no ato <strong>do</strong> pensamento. Para ele, não é possível<br />
separar a prática de um ato de consciência de ter consciência propriamente. Aí, sim,<br />
chega-se a algo indubitável. E como toda ação pressupõe um agente, temos aí o<br />
<strong>na</strong>scimento <strong>do</strong> sujeito da consciência. Para Raul Landin Filho (1996), a descoberta da<br />
indubitabilidade <strong>do</strong> enuncia<strong>do</strong> “Eu penso” e, por extensão, “o reconhecimento da<br />
45 Gaukroger (op.cit.) conta que a contribuição meto<strong>do</strong>lógica de Francis Bacon não é ignorada nem<br />
mesmo por Descartes nesta discussão. Entretanto, Aristóteles é um autor com mais vulto e permanência <strong>do</strong><br />
que o contemporâneo racio<strong>na</strong>lista...<br />
102
prioridade <strong>do</strong>s atos mentais sobre os atos que envolvem o corpo ou os objetos externos à<br />
mente é um <strong>do</strong>s mais importantes lega<strong>do</strong>s da filosofia cartesia<strong>na</strong>”.<br />
É a partir da dúvida que os objetos e as realidades vão se configurar no prisma<br />
cartesiano. Quan<strong>do</strong> se pensa e se pensa que se está pensan<strong>do</strong> algo, temos ali uma<br />
consciência pensante, uma unidade chamada sujeito. Tu<strong>do</strong> o que está exterior a ela é<br />
extensão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, objeto. Para investigar cada um deles, absorvê-los ou descartá-los,<br />
é preciso duvidar, pôr-se a questio<strong>na</strong>r. O apego a um méto<strong>do</strong> como este dá a segurança<br />
que os racio<strong>na</strong>listas precisam. Se o méto<strong>do</strong> não dá solução de tu<strong>do</strong>, ele pelo menos<br />
ajuda a encontrá-la.<br />
103
3.1.1 Jor<strong>na</strong>lismo e cartesianismo<br />
“Comentei com um veterano jor<strong>na</strong>lista, que já cobria o Congresso<br />
desde os tempos em que a capital era no Rio de Janeiro, que estava<br />
senta<strong>do</strong> ao meu la<strong>do</strong>: ‘Como esses se<strong>na</strong><strong>do</strong>res têm cara de bobos’.<br />
Sorrin<strong>do</strong>, complacente, ele aconselhou: ‘Já que você vai trabalhar em<br />
Brasília, é melhor que saiba de uma coisa:o mais bobo deles conserta um<br />
relógio no escuro. E com luvas de box’”.<br />
Gilberto Dimenstein – As armadilhas <strong>do</strong> poder<br />
O Jor<strong>na</strong>lismo busca certezas. O relato <strong>do</strong>s acontecimentos mais importantes de<br />
uma comunidade precisa ter uma correspondência clara com o que se pode considerar<br />
como a real ocorrência <strong>do</strong>s fatos. Não se admite um descolamento entre o informe e a<br />
situação relatada. O Jor<strong>na</strong>lismo existe para dar conta <strong>do</strong> real, conter o que de mais<br />
importante aconteceu, mostrar o que é relevante, denunciar o que está encoberto,<br />
organizar – de certo mo<strong>do</strong> – o caos sígnico onde homens e mulheres estão mergulha<strong>do</strong>s.<br />
Jor<strong>na</strong>lismo se apóia em <strong>na</strong>rrativas cotidia<strong>na</strong>s, que se diferenciam das encontradas <strong>na</strong><br />
literatura pelo seu estatuto de veracidade. Isto é, as histórias que nos chegam pelos<br />
jor<strong>na</strong>listas devem estar lastreadas a verdades. Ou por porções bem generosas delas.<br />
O estilo <strong>do</strong> texto jor<strong>na</strong>lístico pode ter certo parentesco com o <strong>do</strong> conto, da<br />
crônica ou mesmo <strong>do</strong>s romances. A construção <strong>do</strong>s perso<strong>na</strong>gens pode flertar com as<br />
técnicas usadas pelos escritores, mas a essência <strong>do</strong>s relatos jor<strong>na</strong>lísticos não admite<br />
ficção. Se isso ocorrer, houve contami<strong>na</strong>ção, e o teor jor<strong>na</strong>lístico <strong>do</strong> relato se dissolveu<br />
<strong>na</strong>s tramas da <strong>na</strong>rrativa.<br />
Este apego à verdade tem evidente inspiração nos campos da ciência e <strong>do</strong>s<br />
saberes totalizantes. A preocupação de cientistas de verificar a confiabilidade de certas<br />
teorias, de tentar explicar fenômenos com modelos, de testar hipóteses até chegar a<br />
formular regras físicas de funcio<strong>na</strong>mento <strong>do</strong> universo é reeditada no Jor<strong>na</strong>lismo. Numa<br />
escala menor, é claro, e com outros estatutos de rigor meto<strong>do</strong>lógico. Jor<strong>na</strong>listas se<br />
preocupam em verificar a autenticidade de certas versões dadas por suas fontes de<br />
informação; tentam explicar acontecimentos, muitas vezes, apoia<strong>do</strong>s em diagnósticos de<br />
104
especialistas; retor<strong>na</strong>m a alguns assuntos e instigam os envolvi<strong>do</strong>s para se certificar que<br />
tais relatos foram os mais fiéis à realidade.<br />
Tal como historia<strong>do</strong>res, arqueólogos e geólogos, jor<strong>na</strong>listas preocupam-se com a<br />
reconstituição de certos cenários e episódios aconteci<strong>do</strong>s no passa<strong>do</strong>. Voltam às fontes,<br />
recorrem a <strong>do</strong>cumentos, perseguem vestígios, confrontam versões, observam<br />
discrepâncias. Cercam-se de certezas para refazer a situação enquanto relato. Como<br />
quem monta um quebra-cabeças, jor<strong>na</strong>listas se ocupam de encontrar peças que possam<br />
se encaixar e que permitam uma visão mais abrangente <strong>do</strong> to<strong>do</strong> (ou da parte que mais<br />
interessa). O problema é que nem sempre temos acesso a todas as peças – ou até mesmo<br />
às mais importantes. Outro impasse é que não é sempre que o monta<strong>do</strong>r encontra<br />
condições (profissio<strong>na</strong>is, operacio<strong>na</strong>is, de competência, de interesse) para se debruçar<br />
sobre aquele jogo. Sobram peças embaralhadas e um desenho incompleto...<br />
O vínculo umbilical com a busca da verdade é um traço <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo <strong>na</strong> sua<br />
definição hegemônica atual. Mas subjaz nesta procura uma outra semente: a dúvida. O<br />
questio<strong>na</strong>mento permeia a atividade cotidia<strong>na</strong> <strong>do</strong>s profissio<strong>na</strong>is, seja sob a forma das<br />
perguntas em uma entrevista, seja sob a mais ba<strong>na</strong>l abordagem de um repórter.<br />
Jor<strong>na</strong>listas são pessoas que perguntam, que tentam saber coisas, que buscam da<strong>do</strong>s para<br />
transmiti-los adiante. A dúvida está entranhada <strong>na</strong> roti<strong>na</strong> das redações, impressa <strong>na</strong>s<br />
paredes <strong>do</strong>s estúdios, tatuada no bloco de anotação que repousa no bolso <strong>do</strong> repórter.<br />
Esta assertiva mais parece uma ba<strong>na</strong>lidade para quem acompanha o fazer<br />
jor<strong>na</strong>lístico, mas é fundamental que se a compreenda como uma questão de méto<strong>do</strong>. No<br />
Jor<strong>na</strong>lismo, a dúvida orienta os demais procedimentos meto<strong>do</strong>lógicos. Neste senti<strong>do</strong>,<br />
não é exagero admitir que o Jor<strong>na</strong>lismo bebe em fontes cartesia<strong>na</strong>s para se constituir<br />
enquanto campo autônomo de fazer, ser e compreender a realidade.<br />
105
Mas o méto<strong>do</strong> no Jor<strong>na</strong>lismo é algo recente. O Jor<strong>na</strong>lismo só surge como técnica<br />
<strong>na</strong> virada <strong>do</strong> século XIX para o XX. A expansão capitalista permite que se desenvolva<br />
nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s e em alguns países da Europa uma indústria <strong>do</strong>s jor<strong>na</strong>is, coletivo<br />
que vai precisar se estruturar para atender à crescente demanda por informações <strong>na</strong><br />
sociedade industrial contemporânea.<br />
Tais modificações vão se dar tanto nos aspectos fabris – com o desenvolvimento<br />
de novas máqui<strong>na</strong>s e equipamentos e uma reengenharia <strong>na</strong>s plantas <strong>do</strong>s parques gráficos<br />
– quanto nos relativos à participação huma<strong>na</strong> no processo produtivo. Assim, implanta-se<br />
<strong>na</strong>s redações um sistema fordista-taylorista 46 , padroniza-se uma série de procedimentos<br />
<strong>na</strong> confecção das notícias e <strong>na</strong> logística de sua distribuição 47 , estabelece-se uma roti<strong>na</strong><br />
operacio<strong>na</strong>l (com horários de fechamento em conformidade com a capacidade de<br />
produção da gráfica), definem-se linhas editoriais e estruturas básicas para o texto<br />
jor<strong>na</strong>lístico.<br />
As linhas editoriais tor<strong>na</strong>m-se guias internos das empresas e, mais tarde, vão<br />
redundar em manuais de redação e estilo, que si<strong>na</strong>lizam como se pratica Jor<strong>na</strong>lismo<br />
<strong>na</strong>queles veículos. O lead é desenvolvi<strong>do</strong> e se impõe como padrão de organização das<br />
informações num relato escrito. Alguns padrões de conduta vão se cristalizan<strong>do</strong> entre os<br />
jor<strong>na</strong>listas e isso ajuda <strong>na</strong> definição de um ethos profissio<strong>na</strong>l, no desenho de um perfil<br />
mínimo deste trabalha<strong>do</strong>r. Os valores morais e éticos vão emergin<strong>do</strong>: o apego à<br />
verdade, a defesa da liberdade de expressão, a preocupação com a correção da<br />
informação, uma atitude perene de desconfiança, um senso crítico frente ao mun<strong>do</strong> e às<br />
pessoas, o compromisso com a fiscalização <strong>do</strong>s poderes, a independência editorial, um<br />
contínuo questio<strong>na</strong>mento sobre as versões e sobre os fatos...<br />
46 Caracteriza<strong>do</strong> pela segmentação de funções, onde cada indivíduo se ocupa de uma tarefa específica, e<br />
o conjunto <strong>do</strong>s profissio<strong>na</strong>is forma uma linha de montagem industrial. A idéia que se tem <strong>na</strong> base disso é a<br />
de que alguém pode executar melhor uma determi<strong>na</strong>da função se ficar concentra<strong>do</strong> nela. Se todas as<br />
peças da engre<strong>na</strong>gem funcio<strong>na</strong>rem, a máqui<strong>na</strong> toda opera bem.<br />
47 As agências inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is de notícia são os resulta<strong>do</strong>s mais bem acaba<strong>do</strong>s disso.<br />
106
Esses valores morais vão des<strong>do</strong>brar certos procedimentos, como a checagem –<br />
muitas vezes exaustiva - das informações, a confrontação de versões e a investigação<br />
jor<strong>na</strong>lística. Em to<strong>do</strong>s eles, está difusa a dúvida, a indagação sobre a veracidade e a<br />
sustentação real de falas e acontecimentos.<br />
(Entretanto, alguém pode perguntar: só porque o Jor<strong>na</strong>lismo se apóia <strong>na</strong> dúvida,<br />
ele deve ser considera<strong>do</strong> tributário <strong>do</strong> cartesianismo? O Jor<strong>na</strong>lismo é cartesiano ape<strong>na</strong>s<br />
por que duvida?)<br />
São muitas as correspondências entre as leis cartesia<strong>na</strong>s para bem conduzir um<br />
espírito (ou uma mente) e as regras para se exercer bem o Jor<strong>na</strong>lismo (ou de uma forma<br />
próxima da ideal). No Discurso <strong>do</strong> Méto<strong>do</strong>, Descartes aponta que assim como um<br />
Esta<strong>do</strong> se gover<strong>na</strong> bem com poucas leis, ele se impunha a observância de quatro<br />
preceitos em seu percurso filosófico (cf.: 1977:35):<br />
• Não receber como verdadeira qualquer coisa que ele não conhecesse<br />
evidentemente como tal;<br />
• Dividir cada dificuldade que exami<strong>na</strong>sse em tantas parcelas mais fáceis a<br />
fim de resolvê-las;<br />
• Conduzir o pensamento por uma ordem crescente de dificuldade,<br />
partin<strong>do</strong> <strong>do</strong>s elementos mais simples até os mais complexos;<br />
• Fazer revisões gerais e retor<strong>na</strong>r a certos pontos diversas vezes para se<br />
certificar de que <strong>na</strong>da ficou para trás.<br />
As gramáticas jor<strong>na</strong>lísticas têm forte acento cartesiano <strong>na</strong> <strong>medida</strong> em que<br />
orientam os profissio<strong>na</strong>is a:<br />
• Não aceitarem versões sem as checar devidamente, sempre duvidan<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
óbvio e cercan<strong>do</strong>-se de provas ou indícios que as sustentem;<br />
107
• Sistematizar as informações coletadas, agrupan<strong>do</strong> campos de da<strong>do</strong>s<br />
relativos a certos assuntos, forman<strong>do</strong> assim retrancas de textos ou blocos<br />
de interesse;<br />
• Hierarquizar as informações, trazen<strong>do</strong> de imediato os da<strong>do</strong>s mais<br />
essenciais, mais importantes e des<strong>do</strong>bran<strong>do</strong> os detalhes acessórios e mais<br />
aprofunda<strong>do</strong>s depois, <strong>na</strong> autêntica estrutura de pirâmide invertida;<br />
• Cuidar para que <strong>na</strong>da de relevante no assunto deixe de ser trata<strong>do</strong> <strong>na</strong><br />
matéria.<br />
O que se percebe, além da clara correspondência entre as diretrizes de um la<strong>do</strong> e<br />
outro, é a condução <strong>do</strong> processo de busca da verdade em nome da clareza, da nitidez e<br />
da distinção de cada parte <strong>do</strong> to<strong>do</strong> a ser apreensível.<br />
Tanto no méto<strong>do</strong> cartesiano quanto no <strong>do</strong>s jor<strong>na</strong>listas, decomposição e de síntese<br />
estão a serviço da melhor compreensão de uma idéia ou uma história. Em ambos, o<br />
encadeamento das informações (simples e complexas) se organiza para melhor<br />
transmitir um conteú<strong>do</strong>, e repassá-lo sem uma veracidade suspeita. A dúvida é o<br />
princípio <strong>do</strong> trabalho, mas não pode ser um <strong>do</strong>s dividen<strong>do</strong>s da busca.<br />
Tanto no Jor<strong>na</strong>lismo como <strong>na</strong>s Regulae ad directionum ingenii (Regras para a<br />
direção <strong>do</strong> espírito) de Descartes, a intuição tem o seu papel, mas sempre a sua atuação<br />
se dá a serviço <strong>do</strong> trabalho racio<strong>na</strong>l de encontro da verdade, da informação fidedig<strong>na</strong>, da<br />
melhor maneira de se contar como algo aconteceu. Jor<strong>na</strong>listas e filósofos têm feeling,<br />
têm faro, intuem sobre determi<strong>na</strong><strong>do</strong>s casos ou questões. Mas intuir é cismar, é operar<br />
sobre o imaginável, é indagar e, portanto, agir numa sucessão de pensamentos e<br />
organizações racio<strong>na</strong>is desses objetos. Na Regra 10 das Regulae, o pensa<strong>do</strong>r francês<br />
critica a tentativa de se descobrir verdades por meio de silogismos, o que seria exercer<br />
108
mais a dedução <strong>do</strong> que testar hipóteses e chegar à essência <strong>do</strong> que se busca. No<br />
Jor<strong>na</strong>lismo, deduzir, muitas vezes, significa pré-julgar, definir razões sem ao menos<br />
verificá-las, o que também é uma prática condenável, sen<strong>do</strong> rechaçada pela categoria.<br />
Diante disso, não é demais considerar o Jor<strong>na</strong>lismo como um sig<strong>na</strong>tário <strong>do</strong><br />
cartesianismo. O Jor<strong>na</strong>lismo <strong>na</strong>sceu e se desenvolveu no rastro <strong>do</strong> capitalismo, cresceu<br />
alimenta<strong>do</strong> pela forma de vida das sociedades industriais, fortaleceu-se com a<br />
organização positivista <strong>do</strong>s saberes e amadureceu com a implementação de uma<br />
racio<strong>na</strong>lidade moder<strong>na</strong>. A raiz cartesia<strong>na</strong>, portanto, não lhe é um far<strong>do</strong>, é um traço<br />
constitutivo da sua <strong>na</strong>tureza.<br />
109
3.2 Heisenberg e a incerteza<br />
110<br />
“E agora, José?<br />
A festa acabou,<br />
a luz apagou,<br />
o povo sumiu,<br />
a noite esfriou,<br />
e agora, José?”<br />
Carlos Drummond de Andrade – José<br />
Se a dúvida era uma noção cara a Descartes no século XVII, trezentos anos mais<br />
tarde, ela vai permanecer no centro <strong>do</strong> debate intelectual. Mas com uma nova roupagem,<br />
sob um sinônimo mais elegante e num campo mais defini<strong>do</strong>: a Física. Em 1926, Werner<br />
Heisenberg arrepia os cabelos das mentes mais brilhantes da ciência mundial com o seu<br />
Princípio da Incerteza. Na tentativa de cobrir lacu<strong>na</strong>s <strong>na</strong> Teoria Quântica, a explicação<br />
pretendia dar conta da velocidade e da localização de um elétron num átomo.<br />
Segun<strong>do</strong> o princípio, quan<strong>do</strong> se observa um átomo, não é possível determi<strong>na</strong>r<br />
onde está e a quanto viaja um elétron em sua órbita. Sabe-se que ele está lá, que se<br />
move ao re<strong>do</strong>r de um núcleo forma<strong>do</strong> por outras partículas, mas, em escala subatômica,<br />
é incerto assi<strong>na</strong>lar tais valores. “O fato de existirem limitações dessa ordem, impostas<br />
pela própria teoria à <strong>medida</strong> de, por exemplo, posições e momentos de partículas<br />
perturbou profundamente Einstein”, afirma Jeremy Bernstein (1991:158). Curioso é que<br />
o próprio Heisenberg relatou ter ti<strong>do</strong> inspiração para formular o Princípio da Incerteza a<br />
partir de uma conversa que teve com Albert Einstein <strong>na</strong> metade <strong>do</strong>s anos 20.<br />
Heisenberg ainda achava que ‘Einstein sustentava as concepções<br />
positivistas preconizadas por Mach – a idéia de que todas as<br />
quantidades que integram uma teoria física devem ter ‘definições<br />
operacio<strong>na</strong>is’, em termos de instrumentos de <strong>medida</strong> – que<br />
caracterizaram a análise conducente à teoria especial’. Não se dera<br />
conta de que Einstein havia aban<strong>do</strong><strong>na</strong><strong>do</strong> essa posição muitos anos<br />
antes, quan<strong>do</strong> procurava formulação fi<strong>na</strong>l para a teoria da<br />
gravitação. Assim, grande foi o espanto de Heisenberg, quan<strong>do</strong><br />
Einstein indagou: ‘Mas você acredita seriamente que só magnitudes<br />
observáveis devem integrar uma teoria física?’ (Bernstein, idem)
Heisenberg respondeu que o próprio Einstein havia racioci<strong>na</strong><strong>do</strong> daquela forma a<br />
respeito da relatividade anos antes. Mais especificamente sobre a <strong>na</strong>tureza <strong>do</strong> tempo e a<br />
impossibilidade de existir um tempo absoluto, já que ele seria inobservável. Em sua<br />
autobiografia, Heisenberg reproduz a resposta que teria provoca<strong>do</strong> um clarão em seu<br />
cérebro, abrin<strong>do</strong> caminho para a solução <strong>do</strong> Princípio da Incerteza:<br />
É possível que eu tenha usa<strong>do</strong> esse tipo de raciocínio – admitiu<br />
Einstein -, mas ele é absur<strong>do</strong>, de qualquer maneira. Talvez eu possa<br />
expressá-lo de maneira mais diplomática, dizen<strong>do</strong> que é<br />
heuristicamente útil ter em mente o que de fato se observou. Mas,<br />
em princípio, é um grande erro tentar fundamentar uma teoria<br />
ape<strong>na</strong>s <strong>na</strong>s grandezas observáveis. Na realidade, dá-se exatamente<br />
o inverso. É a teoria que decide o que podemos observar. (1996:78)<br />
Numa certa madrugada de 1926, Heisenberg tornou a se lembrar da frase que<br />
invertia os pólos de seu pensamento até então. Para ele, um cientista que investigava os<br />
movimentos da <strong>na</strong>tureza, as <strong>medida</strong>s é que davam as certezas. As <strong>medida</strong>s é que<br />
ajudavam a explicar os fenômenos com convicção. Em outras palavras, o méto<strong>do</strong><br />
produzia a certeza, a verdade, solucio<strong>na</strong>va problemas. Tal como Descartes, trezentos<br />
anos antes! Mas se para o filósofo francês a dúvida deu sustentação ao méto<strong>do</strong>, para o<br />
físico alemão, o méto<strong>do</strong> mostrava-se insuficiente para dar a certeza.<br />
Cientista com disposição atlética, Heisenberg quis caminhar <strong>na</strong>quela madrugada<br />
pelo Parque Faelled, em Copenhague. Precisava pensar sobre tu<strong>do</strong> aquilo. Mentalmente,<br />
passou a revisar cada um <strong>do</strong>s passos <strong>do</strong>s testes que fazia no laboratório, onde tentava<br />
observar a trajetória de elétrons numa câmara de nuvem. Num da<strong>do</strong> momento, fez-se a<br />
pergunta: A mecânica quântica pode representar o fato de um elétron estar<br />
aproximadamente num lugar e a uma certa velocidade? (É importante perceber que<br />
Heisenberg disse “aproximadamente”. Isto é, com certa imprecisão, sem valores<br />
absolutos, com algum grau de certeza, mas não toda. Eis a incerteza!) Horas depois, de<br />
111
volta ao laboratório, Heisenberg debruçou-se sobre cálculos que logo atestaram que era<br />
possível se chegar a uma proposição que lhe servisse 48 .<br />
A fórmula era a ponte necessária entre as observações da câmara de nuvem e a<br />
linguagem matemática da física quântica. É claro que ainda faltava provar que qualquer<br />
experimento estaria de acor<strong>do</strong> com o Princípio da Incerteza, mas isso era uma segunda<br />
etapa. Afi<strong>na</strong>l, Einstein não disse que a teoria é quem decide o que se deve observar?<br />
Para a física quântica, as partículas subatômicas não obedecem às leis da física<br />
clássica. Elétrons, por exemplo, podem existir como duas coisas diferentes: ten<strong>do</strong><br />
aspecto de matéria e de energia. Nesta nova Física 49 , a luz é partícula e é onda, já que<br />
tem freqüência e se propaga em ondas e é formada por ondas-partículas, isto é, quanta.<br />
Essa ambigüidade da Teoria Quântica perturba a lógica linear e monolítica da Física<br />
clássica, o que ainda provoca atritos entre os pesquisa<strong>do</strong>res.<br />
No caso específico de Heisenberg, sua proposição deixa evidente que nem<br />
mesmo as <strong>medida</strong>s podiam assegurar certeza total em níveis subatômicos. Por exemplo,<br />
elétrons são partículas tão minúsculas que<br />
independentemente de como se tentava aferir seu comportamento,<br />
a forma de efetuar a medição afetava esse comportamento. Caso<br />
se lançasse luz sobre um elétron, de mo<strong>do</strong> a se poder ‘vê-lo’, isso<br />
inevitavelmente o colocava fora de curso, afetan<strong>do</strong> sua velocidade<br />
ou sua posição. (cf. Strathern, 1999, p.74)<br />
A instabilidade provocada pelos avanços da Teoria Quântica incomo<strong>do</strong>u até<br />
mesmo Einstein, o mais notório <strong>do</strong>s cientistas numa época de revoluções <strong>na</strong> área. “Deus<br />
não joga da<strong>do</strong>s!”, repetia a quem teimasse atestar a validade <strong>do</strong> Princípio da Incerteza.<br />
Não poderia ser diferente. Ele passara a vida investigan<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> objetivo com<br />
coorde<strong>na</strong>das de tempo e espaço, segun<strong>do</strong> leis exatas que ignoravam a existência e<br />
48 A expressão seria: o produto das incertezas <strong>do</strong>s valores da posição e <strong>do</strong> momento não pode ser inferior à<br />
112
interferência huma<strong>na</strong>. Desde que Galileu disse que o livro da <strong>na</strong>tureza fora escrito em<br />
caracteres matemáticos, tinha-se como certo que esta linguagem representava o mun<strong>do</strong><br />
objetivo e isso permitir aos físicos fazer afirmações sobre o futuro comportamento desse<br />
mun<strong>do</strong>. Agora, dentro <strong>do</strong> átomo, “esse mun<strong>do</strong> objetivo <strong>do</strong> tempo e <strong>do</strong> espaço nem<br />
sequer existia, e os símbolos matemáticos da física teórica referiam-se a possibilidades,<br />
e não a fatos” (Heisenberg, 1996: 98).<br />
Esta discussão – que parece intrínseca aos embates epistemológicos da Física –<br />
envolve, <strong>na</strong> verdade, muito mais terreno. Tem relação com <strong>objetividade</strong>, certezas e<br />
verdades de um la<strong>do</strong>; e com instabilidade, dúvida e subjetividade, de outro.<br />
O advento <strong>do</strong> Princípio da Incerteza é ape<strong>na</strong>s a ponta visível de um iceberg de<br />
crises paradigmáticas. Abaixo dela está uma montanha de questio<strong>na</strong>mentos a certezas<br />
antes i<strong>na</strong>baláveis, que logo virão à to<strong>na</strong>. O anúncio de Heisenberg provoca uma fissura<br />
perigosa no colosso das certezas universais porque revela a fragilidade destas<br />
convicções. Por essa trinca, pode-se entrever insegurança, instabilidade, desconforto.<br />
Permanece uma sensação desagradável parecida com uma vertigem, que traz consigo<br />
falta de discernimento, inexatidão, imprecisão.<br />
constante de Planck, ou um quantum de ação.<br />
49 Nova em relação à mecânica newtonia<strong>na</strong>, hegemônica desde o século XVII.<br />
113
3.3 O Jor<strong>na</strong>lismo entre a dúvida e a incerteza<br />
114<br />
"Às vezes, a única coisa verdadeira num jor<strong>na</strong>l é a data"<br />
Luís Fer<strong>na</strong>n<strong>do</strong> Veríssimo, escritor brasileiro<br />
Um <strong>do</strong>s cânones <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo é a exatidão das informações, a correção <strong>do</strong>s<br />
relatos, a fidelidade <strong>do</strong> informe com o aconteci<strong>do</strong>. O mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo (sua função<br />
social, sua justificativa ética e boa parte de seus procedimentos técnicos) se sustenta <strong>na</strong><br />
crença e nos esforços <strong>do</strong>s profissio<strong>na</strong>is para reportar com precisão. Esta atividade<br />
moder<strong>na</strong> se expandiu no mun<strong>do</strong> e consoli<strong>do</strong>u-se enquanto campo autônomo <strong>na</strong> esfera<br />
pública à base <strong>do</strong> compromisso <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista com a verdade e com seus detalhes.<br />
Imagi<strong>na</strong>r o Jor<strong>na</strong>lismo como uma máqui<strong>na</strong> distribui<strong>do</strong>ra de incertezas e ambigüidades é<br />
mesmo muito difícil para o imaginário popular. Que dirá para quem está diretamente<br />
liga<strong>do</strong> à reflexão e à manutenção desse valor?<br />
Tal como os paradigmas científicos, as bases <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo também sofreram<br />
abalos no último século. Sua habilidade em relatar objetivamente os fatos é questio<strong>na</strong>da;<br />
pairam dúvidas sobre sua capacidade de manter isenção editorial frente a pressões<br />
políticas e de merca<strong>do</strong>; e mesmo o próprio conceito de verdade – com o qual o<br />
Jor<strong>na</strong>lismo trabalha – é, hoje, desacredita<strong>do</strong>. Com pilares desgasta<strong>do</strong>s, o Jor<strong>na</strong>lismo se<br />
vê diante de quatro cenários distintos, mas que têm correlação mútua:<br />
• O perigo de um fracasso enquanto ideal de função. Com a crise <strong>do</strong>s<br />
valores que o formam, o Jor<strong>na</strong>lismo corre o risco de não satisfazer a seus<br />
imperativos éticos e de não funcio<strong>na</strong>r como espera<strong>do</strong>. Se repórteres não<br />
relatam os fatos com a veracidade anunciada e se a imprecisão toma<br />
conta de suas <strong>na</strong>rrativas, qual a sua função numa sociedade ansiosa por<br />
informação?
• A proximidade de uma grave crise de confiança. Há décadas, crescem<br />
e se dissemi<strong>na</strong>m as críticas aos veículos de comunicação e aos<br />
profissio<strong>na</strong>is envolvi<strong>do</strong>s no processo informativo. Este é um sintoma<br />
claro de que algo não vai bem. Com o aprofundamento <strong>na</strong>s indagações<br />
sobre os valores que servem de base para o Jor<strong>na</strong>lismo, a tendência desta<br />
crise se tor<strong>na</strong>r crônica é mais real. Como conviver com as pressões e<br />
expectativas de um público cada vez mais ciente de seus direitos à<br />
informação e mais conhece<strong>do</strong>r <strong>do</strong> funcio<strong>na</strong>mento <strong>do</strong> circo da mídia?<br />
• A emergência de mudanças estruturais e de revisão de paradigmas.<br />
A decorrência <strong>na</strong>tural de uma situação constante de cobrança é a tomada<br />
de atitudes mais concretas. Neste senti<strong>do</strong>, repórteres, redatores e editores<br />
devem se sentir insta<strong>do</strong>s a mudar, buscan<strong>do</strong> novos procedimentos,<br />
estabelecen<strong>do</strong> outras roti<strong>na</strong>s de trabalho e mesmo rediscutin<strong>do</strong> padrões<br />
deontológicos.<br />
• O temor de uma convivência com elementos estranhos à sua gênese,<br />
mas que já contami<strong>na</strong>m seus alicerces. Se a velocidade e o processo de<br />
acumulação <strong>do</strong>s acontecimentos atropelar o poder de agluti<strong>na</strong>ção da<br />
categoria e inviabilizar muitas das mudanças pretendidas, o cenário é<br />
desalenta<strong>do</strong>r. Além de precisar se adaptar a novas condições, os<br />
profissio<strong>na</strong>is da área terão ainda que se habituar a práticas que já<br />
corroem as fronteiras de delimitação <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo: a cada vez mais<br />
freqüente confusão entre informação e entretenimento, a ditadura <strong>do</strong>s<br />
dispositivos de medição da audiência, a prevalência das leis de merca<strong>do</strong><br />
115
como regula<strong>do</strong>ras de litígios, o embaçamento <strong>do</strong> limite entre Jor<strong>na</strong>lismo<br />
e Publicidade...<br />
Qualquer que seja o cenário a ser enfrenta<strong>do</strong> pelo Jor<strong>na</strong>lismo, uma condição é<br />
subjacente: valores como <strong>objetividade</strong> e verdade precisam ser reavalia<strong>do</strong>s. Não há como<br />
contor<strong>na</strong>r o impasse. O Jor<strong>na</strong>lismo precisa enfrentar a discussão sobre sua relação como<br />
media<strong>do</strong>r social, repensan<strong>do</strong> o que é um relato preciso, o que significa reportar fatos<br />
com <strong>objetividade</strong>. Se o Jor<strong>na</strong>lismo se ocupa de certezas, e se as indagações acerca da<br />
participação da subjetividade emergem com força crescente, não mergulhar nesta busca<br />
pode comprometer ainda mais a função desse campo profissio<strong>na</strong>l. Se até mesmo os<br />
cientistas vêm mergulhan<strong>do</strong> nestas escuras águas, por que jor<strong>na</strong>listas – que sempre se<br />
espelharam nos primeiros para definir méto<strong>do</strong> e conduta – iriam se esgueirar?<br />
Heisenberg, de novo ele, reflete sobre a <strong>do</strong>se de subjetivismo presente em suas<br />
contribuições à Física. Segun<strong>do</strong> ele, a teoria não contém características subjetivas<br />
genuí<strong>na</strong>s. Mas ela começa<br />
pela divisão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> em ‘objeto’ e o resto <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e, também,<br />
<strong>do</strong> fato de que, pelo menos para o ‘resto <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>’, utilizamos<br />
conceitos clássicos em nossa descrição. Essa divisão é arbitrária e,<br />
historicamente, uma conseqüência direta <strong>do</strong> méto<strong>do</strong> científico; a<br />
utilização de conceitos clássicos é, afi<strong>na</strong>l, uma conseqüência da<br />
maneira geral de o ser humano pensar. Mas isso já constitui uma<br />
referência a nós mesmos e isso <strong>na</strong> <strong>medida</strong> em que nossa descrição<br />
não é completamente objetiva. (1999: 82)<br />
A divisão entre subjetivo e objetivo, portanto, parece ser mais complexa <strong>do</strong> que<br />
se supõe, acredita o físico alemão. As fronteiras que separam os <strong>do</strong>is latifúndios<br />
parecem mais porosas, crivadas de entradas e saídas, através das quais acontece uma<br />
mútua contami<strong>na</strong>ção. De acor<strong>do</strong> com o mesmo Heisenberg (op.cit.: 112-113), a divisão<br />
cartesia<strong>na</strong> sobre o pensamento humano “dificilmente poderá ser exagerada”, e é<br />
116
justamente o que se deve criticar. Ele prossegue, lembran<strong>do</strong> que, segun<strong>do</strong> a<br />
interpretação <strong>do</strong>s cientistas que como ele trabalhavam em Copenhague, é possível falar<br />
de Teoria Quântica sem se mencio<strong>na</strong>r como indivíduo, embora não se possa ignorar que<br />
a ciência é feita por pessoas, que trazem consigo traços de subjetividade.<br />
A ciência <strong>na</strong>tural não se restringe simplesmente a descrever e<br />
explicar a Natureza; ela resulta da interação entre nós mesmos e a<br />
Natureza, e propicia uma descrição que é revelada pelo nosso<br />
méto<strong>do</strong> de questio<strong>na</strong>r. Essa foi uma possibilidade que não poderia<br />
ter ocorri<strong>do</strong> a Descartes, mas que tor<strong>na</strong> impossível uma separação<br />
bem nítida entre o mun<strong>do</strong> e o ‘Eu’. (op.cit.:115)<br />
Já se disse aqui que o Jor<strong>na</strong>lismo tem raízes cartesia<strong>na</strong>s, e que esta condição<br />
ajuda a dar os traços distintivos de sua <strong>na</strong>tureza. Já se disse também que há uma crise de<br />
paradigmas <strong>na</strong> ciência e no próprio Jor<strong>na</strong>lismo, o que provoca inquietações de la<strong>do</strong> a<br />
la<strong>do</strong>. Afirmou-se ainda que as contribuições de Descartes funcio<strong>na</strong>m como fundações<br />
para a construção moder<strong>na</strong> <strong>do</strong> pensamento ocidental. Ao mesmo tempo, apontou-se para<br />
a necessidade de viver a crise de valores e de perceber que, mesmo <strong>na</strong> ciência, saídas<br />
estão sen<strong>do</strong> buscadas. O Princípio da Incerteza é um exemplo da engenhosidade <strong>do</strong><br />
raciocínio humano e uma forma de como pontes entre razão e empirismo podem ser<br />
construídas.<br />
No percurso reflexivo desta tese, quan<strong>do</strong> me debruço sobre a <strong>objetividade</strong> no<br />
Jor<strong>na</strong>lismo e a <strong>autoria</strong> <strong>na</strong> reportagem, proponho não descartar Descartes, mas enraizar<br />
Heinserbeg. Como o Tomé bíblico, alimento minhas suspeitas com perguntas. Até<br />
chegar às respostas – se não definitivas, pelo menos mais acalenta<strong>do</strong>ras -, será preciso<br />
duvidar mais e mais, pois este é o motor da busca <strong>do</strong> conhecimento. Entretanto, com<br />
uma tolerância maior no convívio com a incerteza.<br />
117
CAPÍTULO 4<br />
Subjetividade<br />
“O indivíduo, a meu ver, está <strong>na</strong> encruzilhada de múltiplos componentes<br />
de subjetividade. Entre esses componentes, alguns são inconscientes”<br />
Félix Guattari – Cartografias <strong>do</strong> Desejo<br />
N<br />
ão é <strong>na</strong>da confortável viver numa realidade fragmentada, onde incidem<br />
muitas forças de diversos la<strong>do</strong>s, onde a visibilidade é prejudicada pela<br />
inflação de signos, e a estabilidade é mais retórica <strong>do</strong> que vivenciável. É<br />
num mun<strong>do</strong> como esse que sobrevivem os sujeitos contemporâneos. É neste cenário que<br />
jor<strong>na</strong>listas e historia<strong>do</strong>res tentam dar conta <strong>do</strong> tempo e de seus componentes, buscam<br />
orde<strong>na</strong>r os fatos e dar senti<strong>do</strong> ao que lhes cerca.<br />
Tanto em uma atividade como em outra, são esperadas <strong>objetividade</strong> e isenção,<br />
fidelidade no relato <strong>do</strong>s acontecimentos e apego à veracidade <strong>na</strong>rrativa. No caso<br />
específico <strong>do</strong>s jor<strong>na</strong>listas, alardeia-se que ser objetivo é prerrogativa técnica e<br />
compromisso ético. Entretanto, essa <strong>objetividade</strong> funcio<strong>na</strong> como negação <strong>do</strong> sujeito<br />
<strong>na</strong>rra<strong>do</strong>r, como tentativa de apagamento <strong>do</strong> indivíduo, como catalisa<strong>do</strong>r para que o fato<br />
fale por si mesmo, que se apresente sem intermediários.<br />
Apesar de to<strong>do</strong> esforço nesse senti<strong>do</strong>, o Jor<strong>na</strong>lismo é feito por sujeitos, por<br />
jor<strong>na</strong>listas que se emocio<strong>na</strong>m, que se envolvem com os acontecimentos e seus<br />
perso<strong>na</strong>gens e que erram. Pensar a <strong>objetividade</strong> jor<strong>na</strong>lística requer certas reflexões sobre<br />
o que se convencionou chamar de sujeito. O que é que define as fronteiras entre o que<br />
alguém é e o que deixa de ser? Esses limites são flexíveis ou há um núcleo rígi<strong>do</strong> que<br />
possa ser o centro <strong>do</strong> sujeito? Todas as atividades de uma pessoa são subjetivas? É<br />
possível contar de maneira objetiva uma história <strong>do</strong> sujeito? Sujeito é algo ou é uma<br />
função a ser exercida? É um processo de estabelecimento de identidade em meio ao<br />
mosaico de coisas que existem?<br />
118
4.1 Apontamentos sobre o sujeito<br />
119<br />
“Meu nome não aparecia, lógico, eu desde<br />
sempre estive desti<strong>na</strong><strong>do</strong> à sombra...”<br />
Chico Buarque – Budapeste<br />
Partimos aqui de um conceito genérico de subjetividade. Isto é, tu<strong>do</strong> aquilo que<br />
se refere ao sujeito, ao caráter pessoal, e que, por isso, é arbitrário, relativo, parcial e de<br />
ordem afetiva. O subjetivo se opõe ao que é objetivo. Seguin<strong>do</strong> Kant, subjetivo é o que<br />
provém de estruturas <strong>do</strong> entendimento humano, a priori; subjetivo se contrapõe às<br />
“coisas em si”; subjetivo é o que, no sujeito, depende de sua sensibilidade, ao contrário<br />
das exigências universais da razão. O conceito de subjetividade está mais próximo <strong>do</strong>s<br />
de individualidade, de pessoalidade, de perso<strong>na</strong>lidade, de particularidade.<br />
Dito isso, pode-se ver com mais nitidez o esgarçamento que uma crise provoca:<br />
o sujeito já não é mais o mesmo. Desde que esse conceito surgiu <strong>na</strong> história <strong>do</strong><br />
pensamento ocidental – <strong>na</strong> Grécia antiga – até os dias atuais, houve sucessivos<br />
deslocamentos de senti<strong>do</strong>, fazen<strong>do</strong> com que o entendimento humano sobre sua própria<br />
<strong>na</strong>tureza se alterasse também. De imediato, é necessário ter claro que o sujeito é uma<br />
construção huma<strong>na</strong>, fruto das condições históricas que o cercam, resulta<strong>do</strong> de<br />
motivações individuais e de injunções sociais. Portanto, o sujeito é um conceito, uma<br />
idéia fixada que define certo objeto. Essa consideração já estremeceria muitos planos já<br />
que embaralha numa mesma frase sujeito e objeto, diluin<strong>do</strong> as divisas entre um e outro<br />
termo da equação <strong>do</strong> conhecimento.<br />
Mas o sujeito é uma forma encontrada pelo homem para desig<strong>na</strong>r uma unidade,<br />
uma singularidade em meio a coletivos. Na afirmação de um sujeito, temos a<br />
si<strong>na</strong>lização de um alguém, o contorno de um indivíduo...<br />
Atenden<strong>do</strong> a escolhas meto<strong>do</strong>lógicas – que não deixam de ser subjetivas,<br />
embora sempre se escorem em justificativas objetivistas -, faremos uma breve remissão
histórica <strong>do</strong> conceito de sujeito desde os séculos XVII e XVIII, a partir de René<br />
Descartes. A definição deste recorte já si<strong>na</strong>liza considerar o que se convencionou<br />
chamar sujeito moderno. É, portanto, esse sujeito e suas mutações que estão em<br />
discussão aqui.<br />
Desta forma, o sujeito moderno surge no pensamento ocidental nos contornos<br />
cartesianos: ele é o sujeito <strong>do</strong> pensamento, da reflexão. É racio<strong>na</strong>l, a<strong>na</strong>lítico, mental.<br />
Define-se por contraste. Isto é, o sujeito é a parte pensante e se diferencia <strong>do</strong> resto da<br />
matéria por esse mesmo caráter. Este sujeito cartesiano irá marcar uma nova forma de<br />
individualismo <strong>na</strong> sociedade. Não que <strong>na</strong>quela época já não existissem indivíduos. A<br />
mudança significativa se dá <strong>na</strong>s formas de uma nova concepção <strong>do</strong> homem no cenário<br />
da vida: como sujeito <strong>do</strong> pensamento, o indivíduo marca sua posição de maneira<br />
relativamente autônoma, independente <strong>do</strong>s suportes que antes a tradição e as estruturas<br />
vigentes cediam. O sujeito é agente, é ponto de partida, é força que atua <strong>na</strong>s tramas <strong>do</strong><br />
pensamento. Com este conceito, o papel <strong>do</strong> homem é mais ativo, e vai prepará-lo para<br />
os desafios <strong>do</strong> Iluminismo <strong>na</strong>s próximas décadas.<br />
O sujeito cartesiano é uno, indivisível, singular. É um passaporte imprescindível<br />
para o Humanismo crescente no mun<strong>do</strong> europeu. O conceito auxilia o homem a orde<strong>na</strong>r<br />
suas idéias e o coloca numa posição de entendimento sobre as demais coisas. Isso o<br />
credencia a <strong>do</strong>mi<strong>na</strong>r a <strong>na</strong>tureza e o universo físico. O sujeito cartesiano ajuda a fundar o<br />
sujeito moderno numa condição em que Deus não está mais no centro <strong>do</strong> universo, em<br />
que o ceticismo é uma cicatriz de <strong>na</strong>scimento. A certidão de paternidade <strong>do</strong> sujeito<br />
cartesiano não deve trazer ape<strong>na</strong>s o pensa<strong>do</strong>r francês como seu titular, mas também<br />
lembrar as contribuições de John Locke, de David Hume e de Immanuel Kant. O sujeito<br />
moderno <strong>na</strong>sce como o sujeito <strong>do</strong> conhecimento. Emancipação, iluminismo e autonomia<br />
120
estão <strong>na</strong> ordem <strong>do</strong> dia. Libertação de tu<strong>do</strong> o que oprimia a humanização <strong>do</strong> sujeito antes<br />
<strong>do</strong> século XVII.<br />
À <strong>medida</strong> que a sociedade se tor<strong>na</strong> mais e mais complexa, a vida das pessoas<br />
assume uma perspectiva mais social. O indivíduo moderno, sujeito, não abdica de sua<br />
condição singular, mas passa a perceber sua condição de parte de um coletivo maior.<br />
Com isso, volta sua cabeça para uma concepção mais social <strong>do</strong> sujeito. O cidadão<br />
comum passa a se enxergar mais nitidamente no meio das estruturas da sociedade<br />
moder<strong>na</strong>. A organização <strong>do</strong>s saberes e sua classificação como ciências sociais, nos<br />
séculos XVIII e XIX, é fator que dá grande visibilidade a esta faceta mais social <strong>do</strong><br />
sujeito.<br />
Entram em ce<strong>na</strong> a Sociologia, que ressalta as tramas e relações entre os grupos, a<br />
Economia, que revela os mecanismos de evolução das sociedades, a Historiografia, que<br />
ajuda a conferir senti<strong>do</strong>s aos fatos, a Filosofia, com seu acento menos metafísico e mais<br />
materialista, e a Psicologia, que sublinha regras <strong>do</strong> funcio<strong>na</strong>mento identitário. Desfilam<br />
pelo pensamento ocidental figuras como Max Weber, Adam Smith, Karl Marx, Émile<br />
Durkheim, Friedrich Hegel, cérebros mais enreda<strong>do</strong>s pelos nós <strong>do</strong> cotidiano, das<br />
classes, das origens e das grandes estruturas.<br />
Nas ciências <strong>na</strong>turais, a Teoria Evolucionista, de Charles Darwin, surge como<br />
importante evento que contribui para este entendimento. O homem é biologiza<strong>do</strong>,<br />
coloca<strong>do</strong> ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> macaco e da tatura<strong>na</strong> no reino animal.<br />
O sujeito moderno deixa de ser ape<strong>na</strong>s a marca da individualidade, e absorve<br />
também a interface <strong>do</strong> humano com seus pares. A identidade se dá não só pelo<br />
reconhecimento de si mesmo, mas ainda pela relação com o outro.<br />
No século XX, novos tremores chacoalham o conceito de sujeito moderno. O<br />
sujeito social vai se dissolven<strong>do</strong>, ruin<strong>do</strong> a cada martelada conceitual, e mostran<strong>do</strong>-se<br />
121
cada vez fragmenta<strong>do</strong>, estilhaça<strong>do</strong>. Stuart Hall (2001) explica que o avanço tecnológico,<br />
o aumento da complexidade da vida social, a ramificação <strong>do</strong>s pontos de referência<br />
huma<strong>na</strong>, o esfacelamento das fronteiras, a mundialização <strong>do</strong>s merca<strong>do</strong>s e das culturas, a<br />
derrocada de algumas utopias, e o progresso científico e histórico contribuíram para o<br />
descentramento <strong>do</strong> sujeito nestes tempos de modernidade tardia. Para o autor,<br />
especialmente cinco fatores acentuaram esse deslocamento <strong>na</strong> direção de um<br />
esfacelamento da identidade huma<strong>na</strong>:<br />
• A descoberta <strong>do</strong> inconsciente por Freud;<br />
• A proposição de Saussure de que a língua é um código social, um<br />
sistema coletivo e não individual;<br />
• A releitura <strong>do</strong>s escritos de Marx nos anos 60;<br />
• A interferência de Michel Foucault em seus estu<strong>do</strong>s sobre o exercício <strong>do</strong>s<br />
poderes em escalas microscópicas, discipli<strong>na</strong>res, que podem se dar tanto<br />
no discurso quanto em práticas não discursivas;<br />
• E por último, o movimento feminista.<br />
Com isso, o sujeito moderno perde seu centro, confunde-se com seus espectros.<br />
Os escritos de Louis Althusser, Jacques Lacan, Jacques Derrida, Michel<br />
Foucault, Gilles Deleuze e <strong>do</strong>s principais nomes <strong>do</strong> Estruturalismo, <strong>do</strong> Pós-<br />
estruturalismo, e <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s culturais colocam mais lenha <strong>na</strong> fogueira que consome<br />
uma identidade como porto seguro, impermeável, rígida e impenetrável 50 . O sujeito<br />
freudiano já se des<strong>do</strong>bra, tem projeções; em algumas pági<strong>na</strong>s, não se fala mais em<br />
50 Foucault vai encarar o tema da constituição <strong>do</strong> sujeito como nenhum de seus pares. “A chave para a<br />
compreensão da individualidade moder<strong>na</strong> (dócil e útil) no pensamento de Foucault está em se partir da<br />
noção de sujeito enquanto produção das relações de poder e saber e <strong>na</strong> identificação de tais relações. O<br />
sujeito não é da<strong>do</strong> definitivamente <strong>na</strong> história, mas constitui-se no interior dela. Não pode mais ser visto<br />
122
sujeito, mas em assujeitamentos, em agenciamentos coletivos. O humano se perde em si<br />
mesmo. Não mais um centro para o sujeito, nem uma universalidade. Fora de si, a<br />
identidade cultural também sofre abalos com o hibridismo, a diluição de fronteiras<br />
<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is e os impactos tecnológicos. Para aqueles que procuram um terreno estável<br />
para pisar, Stuart Hall (op.cit.: 97) não tem boas notícias:<br />
A globalização não parece estar produzin<strong>do</strong> nem o triunfo <strong>do</strong><br />
“global” nem a persistência, em sua velha forma <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lista, <strong>do</strong><br />
“local”. Os deslocamentos ou os desvios da globalização mostramse,<br />
afi<strong>na</strong>l, mais varia<strong>do</strong>s e mais contraditórios <strong>do</strong> que sugerem seus<br />
protagonistas ou seus oponentes. Entretanto, isto também sugere<br />
que, embora alimentada, sob muitos aspectos, pelo Ocidente, a<br />
globalização pode acabar sen<strong>do</strong> parte daquele lento e desigual,<br />
mas continua<strong>do</strong> descentramento <strong>do</strong> Ocidente.<br />
Essa sucessão de descentramentos dá uma nítida visão da crise pela qual o<br />
conceito de sujeito moderno passa atualmente. O sujeito contemporâneo não é mais<br />
ponto de equilíbrio, nem a calmaria incólume aos temporais que cercam o ser humano.<br />
Funcio<strong>na</strong> mais como ponto de dispersão identitária <strong>do</strong> que como ponto de convergência.<br />
É mais motivo de preocupação e nebulosidade; inspira mais questio<strong>na</strong>mentos <strong>do</strong> que<br />
respostas. Parece oferecer mais condições para o indivíduo atual se perder.<br />
Se este sujeito está em crise, que dirá de seu pólo complementar (o objeto) no<br />
processo de conhecimento? Se eles se definem por contraste, por oposição, por<br />
alteridade, onde termi<strong>na</strong> um e começa o outro? O sujeito contemporâneo, este sujeito<br />
que habita uma modernidade tardia, uma pós-modernidade, significa a morte <strong>do</strong> sujeito,<br />
conforme prognosticaram alguns apocalípticos? Se o sujeito, hoje, é um emaranha<strong>do</strong> de<br />
desejos, ideologias, fantasmas e substratos sociais, onde reside a consciência? Cabe<br />
ainda falar de consciência num ambiente tão pantanoso?<br />
como o núcleo de to<strong>do</strong> conhecimento e a fonte de manifestação da liberdade e de eclosão da verdade.<br />
Ao contrário, antes de origem e fonte, o sujeito é produto e efeito.” (Fonseca, 1995: p.75)<br />
123
4.2 Consciência: atesta<strong>do</strong> <strong>do</strong> sujeito<br />
124<br />
“A consciência <strong>do</strong> escritor é a matriz da sua arte,<br />
e ele paga um preço especial quan<strong>do</strong> a sacrifica”<br />
Howard Fast, escritor norte-americano<br />
“...tu<strong>do</strong> o que inventamos, seja o que for,<br />
de normas éticas e jurídicas<br />
a música e literatura, ciência e tecnologia,<br />
é diretamente determi<strong>na</strong><strong>do</strong> ou inspira<strong>do</strong><br />
pelas revelações da existência que a<br />
consciência nos proporcio<strong>na</strong>”<br />
António Damásio, neurologista português<br />
Não é raro que celebridades sem traquejo para as letras procurem profissio<strong>na</strong>is<br />
experientes no ramo para escrever suas autobiografias. Estes jor<strong>na</strong>listas ou escritores<br />
alugam seus de<strong>do</strong>s e sua inteligência para dar contornos visíveis aos fatos que mais<br />
marcaram a vida ou a trajetória desses famosos. Chama<strong>do</strong>s de ghost writers, esses<br />
escritores praticamente fazem to<strong>do</strong> o trabalho de escritura dessas autobiografias, mas se<br />
esgueiram discretos quan<strong>do</strong> é o momento de assumir a <strong>autoria</strong> <strong>do</strong> trabalho. No alto da<br />
capa, figura solene o nome da celebridade contratante que se exibe <strong>na</strong> condição de<br />
revela<strong>do</strong>ra de seus segre<strong>do</strong>s mais íntimos. Conscientes dessa condição, os ghost writers<br />
aceitam a renúncia da <strong>autoria</strong> e saem de ce<strong>na</strong>, <strong>na</strong> maioria das vezes, com o propósito de<br />
manter segre<strong>do</strong> sobre esse contrato.<br />
O perso<strong>na</strong>gem central <strong>do</strong> romance Budapeste, de Chico Buarque, é um desses<br />
profissio<strong>na</strong>is. O versátil José Costa se gaba de suas habilidades estilísticas que o<br />
permitem escrever de teses acadêmicas a discursos políticos, passan<strong>do</strong> por artigos de<br />
fun<strong>do</strong> e biografias. Esses exercícios de estilo são o ganha-pão <strong>do</strong> perso<strong>na</strong>gem que<br />
mantém inclusive uma empresa presta<strong>do</strong>ra desse serviço. Mas embora o perso<strong>na</strong>gem se<br />
movimente com tanta desenvoltura entre as letras, fica evidente ao leitor que há um<br />
constante desconforto nessa não-apropriação <strong>do</strong>s textos por parte de José Costa. Quan<strong>do</strong><br />
um romance escrito por ele, mas assi<strong>na</strong><strong>do</strong> por um cliente, faz extremo sucesso no<br />
merca<strong>do</strong> editorial, o ghost writer parece estar sentin<strong>do</strong> remorso de suas práticas, ciúme
da obra ou mesmo inveja <strong>do</strong> desconheci<strong>do</strong>. No emaranha<strong>do</strong> das palavras, o leitor se<br />
perde com as versões e detalhes da trama, ape<strong>na</strong>s se orientan<strong>do</strong> pelo que diz José Costa.<br />
É a consciência <strong>do</strong> perso<strong>na</strong>gem que guia o leitor pelo romance. Só ela certifica que o<br />
ghost writer tenha mesmo escrito aquele rui<strong>do</strong>so livro e que ele seja ele mesmo.<br />
Apesar de o sujeito moderno estar em crise, não se pode renunciar ao conceito.<br />
Para além de argumentos racio<strong>na</strong>is que o sustentem, há ainda um sentimento pessoal e<br />
intransferível que garante a to<strong>do</strong>s a existência <strong>do</strong> sujeito. De alguma forma, to<strong>do</strong>s têm<br />
uma sensação de que são alguém, de que estão vivos. A isso comumente se chama de<br />
consciência, consciência de si mesmo e <strong>do</strong> momento que se vive. Embora haja um<br />
ambiente de fragmentação <strong>na</strong>quilo que chamamos de sujeito e a clivagem seja a<br />
configuração básica, a consciência parece assumir um papel mais rígi<strong>do</strong> e defini<strong>do</strong> –<br />
embora ainda nebuloso – no processo identitário.<br />
A divisão proposta por Descartes – entre matéria pensante e extensão – i<strong>na</strong>ugura<br />
a filosofia da consciência, mas atualmente é a neurologia quem oferece contribuições<br />
mais palpáveis para a compreensão <strong>do</strong> que é ser. Pesquisa<strong>do</strong>res como o português<br />
António Damásio apóiam-se em diagnósticos de enfermidades nervosas para arriscar<br />
modelos de funcio<strong>na</strong>mento não ape<strong>na</strong>s <strong>do</strong> cérebro, mas também da mente e de suas<br />
extensões. Os pensamentos, as idéias e as emoções teriam padrões identificáveis e<br />
estariam associa<strong>do</strong>s a um sistema estrutura<strong>do</strong> logicamente.<br />
No esquema cognitivo, Damásio (2002) vê de um la<strong>do</strong> o organismo e de outro os<br />
objetos. A consciência se manifesta dentro <strong>do</strong> primeiro e alcança os demais, bem como<br />
apreende o próprio organismo. Isto é, a pessoa é consciente de si mesma e daquilo que a<br />
cerca e a afeta. Neste senti<strong>do</strong>, a consciência é um fenômeno totalmente priva<strong>do</strong>,<br />
exclusivo, de primeira pessoa. A consciência está intimamente ligada à mente, e<br />
125
imbricadas - mente e consciência - vinculam-se a comportamentos que podem ser<br />
observa<strong>do</strong>s por terceiras pessoas. Assim, “a consciência consiste em construir um<br />
conhecimento sobre <strong>do</strong>is fatos: um organismo está empenha<strong>do</strong> em relacio<strong>na</strong>r-se com<br />
algum objeto, e o objeto nessa relação causa uma mudança no organismo” (op.cit.:38).<br />
Conforme o neurologista, o cérebro humano mapeia não só o organismo e os<br />
objetos, mas também suas relações. A consciência é fundamental nesse senti<strong>do</strong>. Aliás,<br />
ela é vital para a geração de imagens orienta<strong>do</strong>ras que guiem as ações <strong>do</strong>s sujeitos. Isso<br />
faz com que esses organismos prossigam com maior capacidade de sobrevivência no<br />
reino da <strong>na</strong>tureza.<br />
Minha teoria é que nos tor<strong>na</strong>mos conscientes quan<strong>do</strong> os mecanismos<br />
de representação <strong>do</strong> organismo exibem um tipo específico de<br />
conhecimento sem palavras – o conhecimento de que o próprio<br />
esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> organismo foi altera<strong>do</strong> por um objeto – e quan<strong>do</strong> esse<br />
conhecimento ocorre juntamente com a representação realçada de<br />
um objeto. O senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> self no ato de conhecer um objeto é uma<br />
infusão de conhecimento novo, cria<strong>do</strong> continuamente dentro <strong>do</strong><br />
cérebro contan<strong>do</strong> que os ‘objetos’, realmente presentes ou<br />
evoca<strong>do</strong>s, interajam com o organismo e o levem a mudar. (idem: 45)<br />
Contrarian<strong>do</strong> o senso comum de que a consciência seria um processo<br />
eminentemente racio<strong>na</strong>l, António Damásio afirma que ela começa com um sentimento.<br />
Um sentimento de conhecer. A consciência confere a sensação de ser uma espécie de<br />
padrão construí<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong>s si<strong>na</strong>is não-verbais <strong>do</strong>s esta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> corpo. São os senti<strong>do</strong>s<br />
que estão em ação, como sensores de dentro e de fora <strong>do</strong> organismo. Damásio arrisca:<br />
“Talvez seja por essa razão que a misteriosa fonte de nossa perspectiva mental de<br />
primeira pessoa (...) se revela ao organismo de uma forma que é ao mesmo tempo<br />
intensa e indefinível, inequívoca e vaga” (idem: 394).<br />
A consciência se coloca como um processo complexo, um fenômeno mental que<br />
envolve sentimentos e sensações não-verbais. É uma experiência única e indescritível;<br />
comum a to<strong>do</strong>s, mas pessoal e diferente de todas as outras. Funcio<strong>na</strong> como um atesta<strong>do</strong><br />
126
<strong>do</strong> sujeito, como uma certificação de que se é alguém, que se vocaliza um EU só seu. A<br />
consciência parece ser um porto seguro, um fio de certeza no mar das incertezas. Ter<br />
consciência é ter <strong>do</strong>mínio; estar consciente é apoiar-se em saberes seguros e empíricos.<br />
É um exercício de subjetividade.<br />
Na contemporaneidade, o sujeito é cliva<strong>do</strong>, fragmenta<strong>do</strong>, mas a consciência se<br />
mostra como um ponto mais defini<strong>do</strong>. A consciência se coloca como um conhecimento<br />
de si mesmo, <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong>s limites pessoais. A consciência se configura igualmente <strong>na</strong><br />
interface com o outro: ter consciência é exibir uma certa habilidade ética de perceber as<br />
pessoas e as situações, e de relacio<strong>na</strong>r-se com elas. A consciência confere nitidez à<br />
subjetividade huma<strong>na</strong> e, por contraste, ajuda a visualizar a alteridade.<br />
Em tempos pós-modernos, quan<strong>do</strong> o sujeito é coloca<strong>do</strong> em xeque, a consciência<br />
– pelo menos enquanto conceito cognitivo – parece se manter firme, i<strong>na</strong>balável. Talvez<br />
porque a conheçamos menos <strong>do</strong> que gostaríamos. Talvez porque não desfrutemos de<br />
tanta consciência nesse terreno...<br />
127
4.3 Subjetividade <strong>na</strong> atividade jor<strong>na</strong>lística<br />
128<br />
“Nada existe mais prejudicial para a individualidade<br />
<strong>do</strong> que cumprir as promessas, a não ser que dizer a<br />
verdade seja ainda mais desastroso para ela”<br />
Oscar Wilde, escritor irlandês<br />
No Jor<strong>na</strong>lismo, a marca <strong>do</strong> profissio<strong>na</strong>l enquanto sujeito sofre restrições claras.<br />
Não é sempre que se pode ser sujeito, que é permiti<strong>do</strong> exercer e manifestar uma<br />
subjetividade <strong>na</strong> atividade jor<strong>na</strong>lística. Há regras rígidas que delimitam essa aparição,<br />
que condicio<strong>na</strong>m esse exercício, que fixam até onde o sujeito pode ir e a partir de onde<br />
os objetos (os fatos) tomam a frente.<br />
Durante to<strong>do</strong> o século XX, o Jor<strong>na</strong>lismo se colocou como uma atividade social<br />
de <strong>na</strong>rração, tradução e compreensão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Desta forma, os profissio<strong>na</strong>is da área<br />
submeteram-se a um abrangente código de conduta que orientava seu trabalho para a<br />
transmissão de estratos da realidade para a sociedade em geral. Segun<strong>do</strong> as gramáticas<br />
jor<strong>na</strong>lísticas, os profissio<strong>na</strong>is deveriam deixar suas mesas <strong>na</strong> redação e cair no mun<strong>do</strong><br />
em busca de histórias. Mergulha<strong>do</strong>s <strong>na</strong> realidade, os jor<strong>na</strong>listas teriam acesso aos fatos,<br />
aos acontecimentos, aos protagonistas dessas ações e às condições sócio-históricas que<br />
lhe serviam de cenário. Os jor<strong>na</strong>listas apanhariam esses fragmentos da realidade,<br />
retor<strong>na</strong>riam aos seus tecla<strong>do</strong>s e reconstituiriam esses recortes para posterior divulgação.<br />
O trabalho jor<strong>na</strong>lístico consistiria então da observação <strong>do</strong> real, da seleção <strong>do</strong> que era<br />
mais relevante, e da retransmissão <strong>na</strong>rrativa <strong>do</strong> que captaram para uma massa de<br />
consumi<strong>do</strong>res de informação.<br />
Entretanto, entre uma coisa e outra, terceiras acontecem. E isso porque a redação<br />
– como local de trabalho – não está apartada <strong>do</strong> cal<strong>do</strong> da realidade; faz parte dela e os<br />
seus freqüenta<strong>do</strong>res não estão assepticamente isola<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s fatos da vida; depois porque<br />
os profissio<strong>na</strong>is interferem – mesmo que não queiram – <strong>na</strong> matéria-prima das notícias,
já que fazem recortes e reconfiguram os acontecimentos segun<strong>do</strong> outras regras, as da<br />
empresa, <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> e da sociedade de consumo.<br />
O jor<strong>na</strong>lista “suja as mãos” toda vez que faz seu trabalho. E aproveitan<strong>do</strong> a<br />
metáfora, o jor<strong>na</strong>lista precisa afundar as mãos no lago para ter acesso a alguns fatos.<br />
Quan<strong>do</strong> faz isso, fica mais próximo deles, mas altera a superfície calma da água,<br />
provocan<strong>do</strong> peque<strong>na</strong>s marolas, turvan<strong>do</strong> a sua limpidez. Mais que isso: também<br />
encharca os braços e empapa as mangas da camisa. Mesmo diante dessa condição<br />
inexorável, camadas influentes da categoria insistem <strong>na</strong> <strong>objetividade</strong>, <strong>na</strong> neutralidade,<br />
<strong>na</strong> imparcialidade.<br />
Este esta<strong>do</strong> esquizofrênico que paira sobre as redações, além de desorientar os<br />
seus habitantes, mantém um rol de regras, procedimentos e roti<strong>na</strong>s que cerceiam a<br />
subjetividade <strong>na</strong>s práticas jor<strong>na</strong>lísticas. Vigora um pacto entre os profissio<strong>na</strong>is: a notícia<br />
vem primeiro, e se for preciso, deve-se apagar quem a está dan<strong>do</strong>, quem a produziu. Isto<br />
é, o jor<strong>na</strong>lista deve aparecer pouco, renunciar a qualquer exibicionismo, calar-se<br />
enquanto sujeito-autor e produtor <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s que redundam <strong>na</strong> notícia.<br />
Assim, as gramáticas jor<strong>na</strong>lísticas padronizam os textos, dan<strong>do</strong> indicações de<br />
como os relatos devem ser produzi<strong>do</strong>s, seguin<strong>do</strong> a que critérios de relevâncias e que<br />
ordem descritiva. Se por um la<strong>do</strong> a normatização <strong>do</strong>s estilos atende às exigências<br />
industriais de fechamento das edições e confere um padrão para os produtos, por outro<br />
ela homogeneíza as diferentes produções, pasteuriza, formata e reduz. O leitor, o<br />
ouvinte, o telespecta<strong>do</strong>r e o inter<strong>na</strong>uta, to<strong>do</strong>s eles ficam priva<strong>do</strong>s da diversidade de<br />
estu<strong>do</strong>s, própria de uma redação composta por múltiplos profissio<strong>na</strong>is. O Jor<strong>na</strong>lismo,<br />
como prática profissio<strong>na</strong>l, vê nessas limitações outros impasses para um maior<br />
experimentalismo, para inovações semióticas ou mesmo ousadias técnicas. O<br />
129
Jor<strong>na</strong>lismo se imobiliza, retarda seus movimentos, silencia os espasmos <strong>na</strong>turais de uma<br />
atividade tão intensa e nervosa.<br />
A padronização <strong>do</strong>s estilos, o estabelecimento de procedimentos, a<br />
hierarquização das funções profissio<strong>na</strong>is, a divisão de tarefas e sua articulação em série<br />
foram processos funda<strong>do</strong>res de uma roti<strong>na</strong> moder<strong>na</strong> no Jor<strong>na</strong>lismo, preparan<strong>do</strong> esse<br />
campo para as sociedades mais complexas e pulsantes a partir <strong>do</strong> século XX. Não é<br />
possível negar a importância dessas propostas no contexto de desenvolvimento humano,<br />
autêntico projeto iluminista. Entretanto, não há dificuldade em enxergar que a utopia <strong>do</strong><br />
esclarecimento não se confirmou como hegemônica, e que o programa não se cumpriu.<br />
Essas derrotas, por outro la<strong>do</strong>, fortalecem os alicerces de uma crítica a este formato de<br />
desenvolvimento, à sociedade como a compreendemos hoje e, por extensão, ao<br />
Jor<strong>na</strong>lismo, sua expressão mais rui<strong>do</strong>sa.<br />
Quan<strong>do</strong> veículos de comunicação alardeiam que produzem um Jor<strong>na</strong>lismo<br />
imparcial, que seus relatos são rechea<strong>do</strong>s de <strong>objetividade</strong>, que seus produtos são<br />
independentes e fiéis à verdade, ape<strong>na</strong>s exibem as vigas abaladas de um edifício que<br />
inspira intranqüilidade. Afi<strong>na</strong>l, ser imparcial é não ter parti<strong>do</strong> e falar a partir de lugar<br />
nenhum; trabalhar com <strong>objetividade</strong> é abafar qualquer traço <strong>do</strong>s sujeitos que respondem<br />
por aqueles produtos; ser independente é gozar de ple<strong>na</strong> autonomia, estan<strong>do</strong> descola<strong>do</strong><br />
de qualquer relação com outros atores sociais; e ser verdadeiro comporta mais<br />
questio<strong>na</strong>mentos que afirmações.<br />
Se no discurso a mídia é imparcial, objetiva, independente e verdadeira, <strong>na</strong>s suas<br />
práticas cotidia<strong>na</strong>s ela mantém relações car<strong>na</strong>is com parcelas da sociedade; ela se<br />
sustenta em critérios que atendem à subjetividade de alguns de seus controla<strong>do</strong>res; ela é<br />
patroci<strong>na</strong>da ora por grupos econômicos ora por elites políticas; ela oculta, distorce,<br />
omite e mente propositada ou i<strong>na</strong>dvertidamente. O descolamento entre discurso e<br />
130
prática provoca distorções que comprometem a qualidade <strong>do</strong>s seus produtos, corroem<br />
sua credibilidade e questio<strong>na</strong>m a sua legitimidade social, além de instaurar-lhe uma<br />
crise existencial.<br />
A questão <strong>do</strong> apagamento <strong>do</strong> sujeito no Jor<strong>na</strong>lismo não é a principal ferida <strong>do</strong><br />
organismo, mas se mostra como um sintoma bem evidente desse mal estar. Enfrentar<br />
essa questão é também trabalhar por um Jor<strong>na</strong>lismo mais coerente e mais transparente.<br />
131
4.4 Assi<strong>na</strong>tura: a marca <strong>do</strong> sujeito<br />
132<br />
“Assi<strong>na</strong>r um texto é como assi<strong>na</strong>r um cheque:<br />
a matéria também tem que ter fun<strong>do</strong>”<br />
Sérgio Villas Boas - O estilo magazine<br />
“Três assi<strong>na</strong>turas sempre inspiram confiança,<br />
até se a pessoa for um agiota”<br />
Oscar Wilde, escritor irlandês<br />
A evidência mais clara da subjetividade no Jor<strong>na</strong>lismo é a assi<strong>na</strong>tura <strong>do</strong><br />
profissio<strong>na</strong>l sobre o fruto <strong>do</strong> seu trabalho. Reportagens, artigos, imagens, ilustrações,<br />
locuções e fotografias são unidades concretas resultantes da atividade jor<strong>na</strong>lística. E,<br />
para além de dar os devi<strong>do</strong>s créditos, a assi<strong>na</strong>tura marca a presença e a atuação de<br />
alguém <strong>na</strong>queles terrenos. A assi<strong>na</strong>tura revela ao grande público que aquelas peças<br />
resultaram <strong>do</strong> trabalho das pessoas nomi<strong>na</strong>das, a quem se lhes atribui a <strong>autoria</strong>. De<br />
forma ilustrativa, se a complexa questão da <strong>autoria</strong> fosse comparada a um iceberg, a<br />
assi<strong>na</strong>tura poderia lhe servir de ponta, o aspecto mais agu<strong>do</strong> e visível <strong>do</strong> problema.<br />
A assi<strong>na</strong>tura de um produto 51 é uma forma de reconhecimento, um signo de<br />
titularidade, uma maneira de pertencimento. Por isso, a <strong>autoria</strong> não está dissociada das<br />
discussões legais advindas de direitos morais e patrimoniais da obra. Ser autor de algo é<br />
mais <strong>do</strong> que responder por ele ou tê-lo inicia<strong>do</strong>.<br />
Depois de iniciada a era de Gutenberg, a assi<strong>na</strong>tura ganha mais peso e<br />
consistência. Isso porque, ao assi<strong>na</strong>r um texto, seu autor fixa uma forma definitiva que<br />
pode ser reproduzida à exaustão pelos processos técnicos. A assi<strong>na</strong>tura garante a<br />
paternidade, congela a versão bem acabada e chancela a permissão para a sua ampla<br />
difusão. A assi<strong>na</strong>tura se converte <strong>na</strong> mais evidente forma canônica de fixação de um<br />
discurso, de um texto.<br />
51 Chamo de produto to<strong>do</strong> resulta<strong>do</strong> de uma produção, to<strong>do</strong> substrato <strong>do</strong> trabalho.
No Jor<strong>na</strong>lismo, não há uma prescrição exata <strong>do</strong>s critérios que levem à assi<strong>na</strong>tura<br />
de uma obra 52 . Entretanto, certos procedimentos são reproduzi<strong>do</strong>s simultaneamente por<br />
diferentes empresas jor<strong>na</strong>lísticas e se repetem em diversas latitudes, dan<strong>do</strong> uma<br />
sensação de uma orientação básica e generalista para o assunto. No entanto, deve-se<br />
enfatizar que não há uma política clara e definida para a assi<strong>na</strong>tura no Jor<strong>na</strong>lismo, e os<br />
profissio<strong>na</strong>is e suas obras se regem por costumes da categoria, por normas editoriais e<br />
tendências de merca<strong>do</strong> que se cristalizam.<br />
Na vigência de um acor<strong>do</strong> tácito, o que se percebe em geral é que:<br />
• Colunistas e articulistas de meios impressos sempre assi<strong>na</strong>m o material que<br />
produzem. Eles são os titulares de seções fixas e de colu<strong>na</strong>s de especialidades;<br />
• Fotógrafos, ilustra<strong>do</strong>res e chargistas também recebem créditos visíveis por seus<br />
trabalhos <strong>na</strong>s publicações que os editam. Algumas exceções se notam quan<strong>do</strong><br />
agências noticiosas vendem fotografias para outros veículos e esses deixam de<br />
creditar o material aos profissio<strong>na</strong>is, nomi<strong>na</strong>n<strong>do</strong> ape<strong>na</strong>s quem o forneceu;<br />
• Repórteres de vídeo assi<strong>na</strong>m suas matérias exibin<strong>do</strong>-se no início ou desfecho, ou<br />
ainda através de locuções em off ou por legendas no vídeo;<br />
• Na área gráfica, são raros os exemplos em que se dá aos profissio<strong>na</strong>is o<br />
reconhecimento visível de seus trabalhos 53 ;<br />
• Na internet, a assi<strong>na</strong>tura de obra jor<strong>na</strong>lística é prática pouco usual e sem<br />
qualquer normatização, o que redunda num ambiente selvagem onde se<br />
dissemi<strong>na</strong>m práticas como o plágio, o tráfico mundial de textos e imagens, o uso<br />
52 Entenda-se aqui obra jor<strong>na</strong>lística como qualquer peça resultante <strong>do</strong> trabalho <strong>na</strong> área e que contenha<br />
uma unidade formal e estrutural coerente. Artigos, textos, fotos, charges, ilustrações, matérias para TV, rádio<br />
ou internet, projetos gráficos, reportagens ou imagens geradas são obras jor<strong>na</strong>lísticas. Títulos, chamadas e<br />
legendas, por exemplo, não chegam a essa condição por serem unidades constituintes de peças maiores e<br />
mais bem acabadas. Voltarei à discussão sobre o conceito de obra jor<strong>na</strong>lística mais adiante.<br />
53 Uma exceção dig<strong>na</strong> de nota é a revista Superinteressante, da Editora Abril, que assi<strong>na</strong> as reportagens mais<br />
importantes da edição dan<strong>do</strong> créditos ao repórter de texto e ao “designer” da matéria, enfatizan<strong>do</strong> a<br />
relevância <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is discursos (verbal e não-verbal) e sua complementação harmônica <strong>na</strong> leitura. Mesmo no<br />
expediente da publicação, a eqüidade <strong>na</strong> importância é marcada: logo após o Diretor de Redação vem o<br />
Diretor de Arte.<br />
133
indevi<strong>do</strong> e não autoriza<strong>do</strong> de material autoral, e mesmo a republicação de<br />
conteú<strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lístico por empresas <strong>do</strong> ramo sem as devidas compensações<br />
fi<strong>na</strong>nceiras aos seus autores;<br />
• Autores de textos para meios impressos podem ter seus nomes credita<strong>do</strong>s no<br />
cabeçalho de suas produções (ou no rodapé) ou ainda manterem-se anônimos.<br />
Neste caso em particular, o que se percebe é que, em muitas redações, a<br />
assi<strong>na</strong>tura de um texto é considerada uma distinção ao jor<strong>na</strong>lista, uma deferência ou<br />
prêmio que ateste os méritos <strong>do</strong> profissio<strong>na</strong>l ou <strong>do</strong> seu trabalho. As cúpulas editoriais<br />
<strong>do</strong>s veículos costumam ater-se a critérios não tão claros para decidir quan<strong>do</strong> um texto<br />
deve ou não ser assi<strong>na</strong><strong>do</strong>. Entre esses critérios, leva-se em conta a qualidade da peça<br />
produzida, se a reportagem traz informações exclusivas ou um tratamento inédito <strong>do</strong>s<br />
fatos, considera-se ainda a experiência <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista e sua trajetória pessoal – é a<br />
assi<strong>na</strong>tura funcio<strong>na</strong>n<strong>do</strong> como dispositivo retroalimenta<strong>do</strong>r da credibilidade profissio<strong>na</strong>l<br />
-, e o destaque que a matéria tem dentro da edição a que pertence. Isto é, ter chamada <strong>na</strong><br />
capa ou ser uma das manchetes são fatores que pesam quan<strong>do</strong> o que se discute é a<br />
assi<strong>na</strong>tura ou não <strong>do</strong> material.<br />
Na assi<strong>na</strong>tura <strong>do</strong> trabalho jor<strong>na</strong>lístico, percebo cinco formas de sua ocorrência:<br />
• Primeiro como prática que credita a alguém o produto que seu trabalho realizou. A<br />
assi<strong>na</strong>tura se assemelha a uma impressão digital <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista sobre sua produção;<br />
• Segun<strong>do</strong>: a assi<strong>na</strong>tura funcio<strong>na</strong> como dispositivo de revelação ao público<br />
consumi<strong>do</strong>r que sujeito (ou sujeitos) está relacio<strong>na</strong><strong>do</strong> ao produto fi<strong>na</strong>l;<br />
• A assi<strong>na</strong>tura atua como instrumento de responsabilização <strong>do</strong> autor frente a<br />
possíveis conseqüências da difusão de sua obra. Um texto assi<strong>na</strong><strong>do</strong>, por exemplo,<br />
134
ajuda a identificar com mais facilidade quem pode ser responsabiliza<strong>do</strong><br />
juridicamente por danos ou lesões;<br />
• A assi<strong>na</strong>tura funcio<strong>na</strong> como dispositivo retroalimenta<strong>do</strong>r da credibilidade<br />
profissio<strong>na</strong>l. Isto é: jor<strong>na</strong>listas famosos têm seus textos assi<strong>na</strong><strong>do</strong>s mais<br />
freqüentemente <strong>do</strong> que os demais porque, além de seus próprios méritos, essa<br />
prática confere prestígio à publicação onde veiculam suas produções;<br />
• A assi<strong>na</strong>tura é meta, e não prática cotidia<strong>na</strong>. Assim, editores consideram-<strong>na</strong> um<br />
prêmio, uma distinção. Essa postura é uma maneira de a empresa jor<strong>na</strong>lística<br />
oprimir o jor<strong>na</strong>lista <strong>na</strong> <strong>medida</strong> em que acirra um ambiente de competição inter<strong>na</strong> e<br />
permite à chefia estabelecer níveis no reportaria<strong>do</strong> que funcio<strong>na</strong>m como sistemas de<br />
controle social.<br />
Estas cinco formas de ocorrência auxiliam <strong>na</strong> reflexão sobre a assi<strong>na</strong>tura <strong>do</strong><br />
trabalho jor<strong>na</strong>lístico. Uma ou duas delas podem acontecer simultaneamente <strong>na</strong> mesma<br />
empresa, outras podem se dar em outros momentos. Não há um regime fixo de sua<br />
incidência, e as condições de trabalho, impostas pelas empresas (e pelo merca<strong>do</strong>), e a<br />
disposição <strong>do</strong>s profissio<strong>na</strong>is em aceitá-las são determi<strong>na</strong>ntes para o seu sucesso.<br />
Entretanto, como já se disse no início desta seção, a assi<strong>na</strong>tura é só a ponta<br />
visível <strong>do</strong> iceberg da <strong>autoria</strong>. Assi<strong>na</strong>r um texto não garante que alguém seja autor dele.<br />
Isto é, assumir a responsabilidade pela produção de algum produto jor<strong>na</strong>lístico não é o<br />
mesmo que exercer a <strong>autoria</strong> sobre ele. Um autor vai além da representação gráfica de<br />
um nome associa<strong>do</strong> a uma produção. Para ser autor, não basta assi<strong>na</strong>r.<br />
135
CAPÍTULO 5<br />
Autoria<br />
“PAI: Estamos aqui à procura de um autor.<br />
DIRETOR: De um autor? Que autor?<br />
PAI: Qualquer um”<br />
Luigi Pirandello – Seis perso<strong>na</strong>gens à procura de um autor<br />
A<br />
ce<strong>na</strong> é inusitada: atores e atrizes ensaiam com o diretor, e de repente seis<br />
estranhos entram <strong>na</strong> sala, dizen<strong>do</strong>-se perso<strong>na</strong>gens sem autor. Angustia<strong>do</strong>s,<br />
eles querem viver, mas foram desperdiça<strong>do</strong>s, e por isso, vagam em busca de<br />
uma peça que os absorva. O enre<strong>do</strong> foi escrito por Pirandello em 1920 e logo se tornou<br />
um clássico <strong>do</strong> teatro. Para além de um texto que reflita sobre o mun<strong>do</strong> e a magia <strong>do</strong>s<br />
espetáculos, Seis perso<strong>na</strong>gens à procura de um autor convida a pensar a criação e o ato<br />
cria<strong>do</strong>r. O convite continua oportuno, até porque há pelo menos 35 anos, ouve-se falar<br />
da “morte <strong>do</strong> autor” e desde então muito se fez pela sua desaparição.<br />
Imediatamente após os perso<strong>na</strong>gens interromperem o ensaio, o Diretor informa:<br />
“Mas aqui não há nenhum autor. Não estamos ensaian<strong>do</strong> nenhuma peça nova”. Agitada,<br />
a Enteada sobe a escadinha <strong>do</strong> palco e retruca: “Melhor assim, então! Nós poderemos<br />
ser a sua nova peça”. Mesmo como um autêntico fragmento de ficção, o trecho da peça<br />
é revela<strong>do</strong>r de <strong>do</strong>is aspectos característicos da figura <strong>do</strong> autor <strong>na</strong> contemporaneidade: o<br />
autor tem uma função característica (só deve estar ali quan<strong>do</strong> um novo espetáculo<br />
estiver começan<strong>do</strong>) e o autor exerce uma autoridade (<strong>na</strong> ausência dele, perso<strong>na</strong>gens,<br />
atores e Diretor podem fazer o que quiserem).<br />
Tanto <strong>na</strong>s artes cênicas quanto <strong>na</strong>s demais expressões literárias, o autor tem o<br />
seu lugar no processo de produção da obra. O mesmo se dá <strong>na</strong>s artes plásticas, no<br />
cinema, <strong>na</strong> fotografia, nos quadrinhos, no crime e no Jor<strong>na</strong>lismo. O autor é um ponto<br />
nodal <strong>na</strong> reflexão sobre a criação, sobre o exercício de um estilo, sobre a manifestação<br />
136
de uma subjetividade. No que tange a prática da reportagem, a <strong>autoria</strong> envolve ainda<br />
extensas discussões acerca <strong>do</strong>s procedimentos técnicos no Jor<strong>na</strong>lismo, debates sobre<br />
questões estéticas e mesmo descartes e renovações em compromissos éticos.<br />
É o que discutiremos no decorrer deste capítulo.<br />
5.1 Uma genealogia <strong>do</strong> autor no Ocidente<br />
“Como fazer para derrotar não os autores, mas a função <strong>do</strong> autor,<br />
a idéia de que atrás de cada livro há alguém que garante que a<br />
verdade daquele mun<strong>do</strong> de fantasmas e ficções pelo simples fato<br />
de nele ter investi<strong>do</strong> sua própria verdade, de ter se identifica<strong>do</strong><br />
com essa construção de palavras?”<br />
Ítalo Calvino – Se um viajante numa noite de inverno<br />
Embora sejam usa<strong>do</strong>s com freqüência, os conceitos de “<strong>autoria</strong>” e de “autor” são<br />
construções sociais que se cristalizaram há pouco tempo, praticamente nos últimos <strong>do</strong>is<br />
séculos. O autor, por exemplo, é um perso<strong>na</strong>gem moderno, fruto da emancipação <strong>do</strong><br />
sujeito, da evolução tecnológica e da fundação de idéias que sustentam as utopias<br />
contemporâneas. Entretanto, para compreender os conceitos de “autor” e “<strong>autoria</strong>”, é<br />
fundamental acompanhar o surgimento dessas noções e o desenvolvimento de suas<br />
<strong>na</strong>turezas no mun<strong>do</strong> ocidental. É muito possível que o percurso tenha si<strong>do</strong> semelhante<br />
no Oriente, já que os conceitos, hoje, parecem universaliza<strong>do</strong>s.<br />
Na Grécia antiga, não havia autores. A <strong>autoria</strong> não tinha um lugar e qualquer<br />
autoridade de criação ema<strong>na</strong>va <strong>do</strong>s deuses. Mesmo <strong>na</strong> Idade Média, a legitimidade e a<br />
autoridade <strong>do</strong> autor não existem ainda, e só vão surgir para valer a partir da<br />
industrialização da literatura nos séculos seguintes.<br />
Entre os gregos, nem mesmo os poetas respondiam autoralmente por seus<br />
versos. Eles atribuíam as criações às musas, que entoavam as frases e as estrofes. Foi<br />
assim com Homero, por exemplo, tanto <strong>na</strong> Odisséia quanto no início de sua Ilíada:<br />
“Canta-me, ó deusa, <strong>do</strong> peleio Aquiles...”. Assim, as musas sopram as palavras nos<br />
137
ouvi<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s poetas, elas cantam os feitos que os poetas ape<strong>na</strong>s redigem para registro.<br />
Nesta época, o entendimento é de que atua nos poetas uma onisciência divi<strong>na</strong>, vigora<br />
neles as vozes das musas e <strong>do</strong>s deuses. É a partir dessa compreensão que se forma a<br />
idéia de inspiração: o poeta escreve sob a inspiração das musas e só sob esse esta<strong>do</strong>.<br />
Como se estivesse num transe, o poeta verseja, cria, escreve. Na Grécia antiga, o poeta<br />
tem uma ligação especial com as esferas divi<strong>na</strong>s, tem um ca<strong>na</strong>l de comunicação com os<br />
deuses. Criar não é um ato mundano, é próprio <strong>do</strong>s deuses. Então, para criar, o poeta<br />
precisa estar conecta<strong>do</strong> com o mun<strong>do</strong> divino. Criar é um <strong>do</strong>m, um prêmio <strong>do</strong>s deuses,<br />
uma faculdade especial concedida pelo supremo 54 .<br />
Mesmo que Heró<strong>do</strong>to use “Eu” em trechos da História, não se manifesta ali uma<br />
<strong>autoria</strong> para os antigos gregos. O entendimento é de que o artifício da primeira pessoa<br />
<strong>do</strong> singular seja um recurso para que os fatos se contem, sejam apresenta<strong>do</strong>s, desfilem<br />
diante <strong>do</strong>s olhos <strong>do</strong>s leitores. O “Eu” marca o testemunho, a voz pretensamente muda de<br />
quem viu os acontecimentos, de quem ouviu os relatos de outras bocas.<br />
Na Idade Média, vigora uma nova conjuntura: a estrutura <strong>do</strong> poder <strong>na</strong> Europa é<br />
distinta das cidades-esta<strong>do</strong> gregas, a Igreja impõe o monoteísmo e controla o<br />
conhecimento, os valores morais e éticos são apoia<strong>do</strong>s nos princípios cristãos. No<br />
interior <strong>do</strong>s mosteiros, os textos da Antigüidade são guarda<strong>do</strong>s e cataloga<strong>do</strong>s. Versões<br />
muito castigadas pelo tempo são copiadas pelos monges com a intenção de resguardar<br />
as obras em suportes mais duráveis. De maneira geral, o autor ainda não existe. Os<br />
textos são marca<strong>do</strong>s pela glosa, pelo comentário, pela escrita coletiva e continuista. A<br />
idéia é dar continuidade ao que foi escrito anteriormente. Com isso, os autores<br />
permanecem anônimos ou, em alguns casos, são desig<strong>na</strong><strong>do</strong>s por prenomes e topônimos.<br />
Umberto Eco, no seu romance O nome da rosa, mantém essa tradição batizan<strong>do</strong> seus<br />
54 Ainda hoje permanece forte em algumas camadas sociais a idéia de que só se escreve bem se “o autor<br />
estiver inspira<strong>do</strong>”. A inspiração é como um sopro, bafo divino que provoca perda momentânea da razão,<br />
138
perso<strong>na</strong>gens principais como Guilherme de Baskerville e Adso de Melk, cujos nomes<br />
vêm segui<strong>do</strong>s da origem <strong>do</strong>s religiosos.<br />
Na Idade Média, vigora a exegese e o comentário. Isso porque o termo “auctor”<br />
desig<strong>na</strong>va não quem escrevia, mas quem tinha autoridade, quem era respeita<strong>do</strong>. A<br />
palavra traria consigo a tradição <strong>do</strong> aumentar (<strong>do</strong> latim, augere) bem como <strong>do</strong> agir<br />
(agere). Neste senti<strong>do</strong>, um texto de auctor detém auctoritas, e por isso, é uma sentença<br />
dig<strong>na</strong> de imitação. Para ser auctor é preciso ter autoridade, estar autoriza<strong>do</strong>, o que<br />
significa estar em conformidade com a verdade cristã. Para ter a autoridade dig<strong>na</strong> de um<br />
auctor, são necessárias autenticidade nos textos e sintonia com o poder central. Com<br />
isso, não é qualquer um que pode ser um auctor. Geralmente, é quem reúne os valores<br />
necessários para tal, quem traz consigo uma tradição e quem goza de respeito.<br />
O conjunto de auctores acaba forman<strong>do</strong> um cânon, uma orientação. Seguin<strong>do</strong><br />
essa diretriz, o ensino da gramática <strong>na</strong> Idade Média vai se apoiar <strong>na</strong> ciência <strong>do</strong> bem<br />
falar, fundada <strong>na</strong> explicação dada pelos autores. Entre os séculos XI e XII, o gramático<br />
Conrad de Hirsau dirá que o auctor é aquele que, com sua pe<strong>na</strong>, amplia, aumenta os<br />
ditos e escritos <strong>do</strong>s antigos. A afirmação está <strong>na</strong> letra <strong>do</strong>s dicionários latinos, onde<br />
“auctore” é quem acrescenta, quem faz aumentar 55 .<br />
Os textos, àquela época, traziam prólogos com comentários. Neles, havia uma<br />
explicação <strong>do</strong> autor logo no início, segui<strong>do</strong> por notas ao conjunto <strong>do</strong> texto, antes das<br />
explicações em detalhe. Foram esses comentários introdutórios que permitiram a<br />
emergência silenciosa de uma noção de autor nos séculos XII e XIII <strong>na</strong> Europa. Foi a<br />
conforme afirmou Sócrates no diálogo platônico Íon.<br />
55 O lingüista Émile Benveniste (1995) contesta tal origem, dizen<strong>do</strong> ser insuficientes e pouco convincentes os<br />
argumentos de Conrad de Hirsau. Para mais informações, ver O Vocabulário das Instituições In<strong>do</strong>-Européias,<br />
tradução de Denise Bottmann, 2 volume, Campi<strong>na</strong>s: Editora da Unicamp.<br />
139
partir desta prática que se obteve condições para um descolamento <strong>do</strong> individual sobre o<br />
coletivo, permitin<strong>do</strong> o esboço <strong>do</strong> que se tor<strong>na</strong>ria um exercício de <strong>autoria</strong> em textos 56 .<br />
A tradição <strong>do</strong> pensamento grego antigo ainda influencia os cérebros medievais.<br />
É Aristóteles quem trará a discussão para um terreno mais propício para o surgimento<br />
<strong>do</strong> conceito de <strong>autoria</strong>. O interessante é que não será a Poética quem vai possibilitar<br />
isso, mas sim a Física, obra não tanto sobre estética, mas acerca <strong>do</strong>s movimentos. No<br />
século XIII, a teoria aristotélica da causalidade dá novos contornos às faculdades<br />
huma<strong>na</strong>s, ao estilo, e à própria estrutura <strong>do</strong>s escritos. Diante <strong>do</strong> que o filósofo definiu<br />
como causas material, formal, eficiente e fi<strong>na</strong>l, a Escolástica muda o seu <strong>olhar</strong> para com<br />
as Sagradas Escrituras. Antes, o senti<strong>do</strong> estava oculto <strong>na</strong> profundidade <strong>do</strong> texto bíblico.<br />
Agora, cada profeta, cada autor de um <strong>do</strong>s livros forma<strong>do</strong>res da Bíblia expressará no<br />
senti<strong>do</strong> literal a palavra de Deus. Mas cada um a sua maneira. Assim, o Evangelho de<br />
João traz uma parte da verdade, o de Lucas, outra, e assim por diante 57 .<br />
De uma certa maneira, Aristóteles convida os escolásticos a revisarem os papéis<br />
<strong>do</strong> autor divino (Deus) e <strong>do</strong>s autores humanos (os profetas e apóstolos) nos textos<br />
sagra<strong>do</strong>s 58 . Assim, começam a ser enxerga<strong>do</strong>s numa obra os atributos e as qualidades<br />
literárias <strong>do</strong> autor, independentes das imperfeições de quem assi<strong>na</strong>va os escritos. Neste<br />
descolamento, vai surgin<strong>do</strong> a figura o autor. Muito possivelmente, o primeiro a ser<br />
trata<strong>do</strong> no senti<strong>do</strong> moderno de autor pelos comenta<strong>do</strong>res é Dante Alighieri, no século<br />
XIV. A Divi<strong>na</strong> Comédia - obra monumental, autêntica, semi<strong>na</strong>l e com grande poder de<br />
influência – vai projetar o nome de quem estava diretamente associa<strong>do</strong> à sua criação.<br />
56 Curioso é notar que, no século XII, um <strong>do</strong>s tipos de prólogo trazia sete questões dan<strong>do</strong> conta das<br />
circunstâncias em que o texto apresenta<strong>do</strong> teria si<strong>do</strong> escrito. Assim, o prólogo si<strong>na</strong>lizava QUEM havia escrito<br />
o texto, O QUE era ele, PORQUE teria si<strong>do</strong> elabora<strong>do</strong>, DE QUE FORMA isso teria aconteci<strong>do</strong>, QUANDO e<br />
ONDE, e POR QUAIS MEIOS teria si<strong>do</strong> formula<strong>do</strong>. Não estaria ali uma proto-idéia <strong>do</strong> lead jormalístico?<br />
57 O quinto evangelho, o de Tomé, ficou de fora da compilação de livros que resultou <strong>na</strong> Bíblia. Seguin<strong>do</strong> as<br />
regras <strong>do</strong> regime de <strong>autoria</strong> medieval, muito possivelmente, o autor não alcançou autoridade suficiente<br />
para ser reconheci<strong>do</strong> o seu valor como tal e impedin<strong>do</strong> o relato de integrar a obra.<br />
58 Note-se que para ser autor de livros que componham a Bíblia será quase uma condição ter uma<br />
comunicação direta com Deus – ser profeta – ou ainda ser testemunha fiel <strong>do</strong>s fatos – ser apóstolo de Jesus<br />
Cristo. É o regime de <strong>autoria</strong> possível <strong>na</strong> época...<br />
140
Os conceitos de “<strong>autoria</strong>” e “autor” passam a se moldar com mais precisão nos<br />
séculos seguintes. Elogio da loucura (1509), de Erasmo de Roterdam, O Príncipe<br />
(1513), de Nicolai Machiavelli, e a Utopia (1516), de Thomas Morus, ajudam a<br />
pavimentar terrenos firmes para o autor caminhar. Nas artes, as presenças de Leo<strong>na</strong>r<strong>do</strong><br />
Da Vinci (1452-1519) e Michelangelo (1475-1564) dão a visibilidade necessária ao<br />
valor individual humano. Montaigne vem com seus Ensaios (1580), Camões cruza os<br />
mares com Os lusíadas (1572) e Cervantes rasga as Campi<strong>na</strong>s com Don Quixote de la<br />
Mancha (1605). Nos palcos, Christopher Marlowe (1564-1593) e William Shakespeare<br />
(1564-1616) dão contornos ao novo sujeito humano que emerge das trevas medievais.<br />
O <strong>na</strong>scimento das noções de “literatura” e de “escritor” vai se dar aos poucos,<br />
por um longo perío<strong>do</strong> de cem anos, entre 1750 e 1850. O Re<strong>na</strong>scimento abre as portas<br />
para o autor, para o artista, para o cria<strong>do</strong>r. Mas os avanços tecnológicos que vão<br />
redundar <strong>na</strong> invenção da imprensa vão catapultar esses conceitos. A massa de letra<strong>do</strong>s<br />
aumenta, as traduções se desenvolvem, o merca<strong>do</strong> literário aparece, o ofício se<br />
profissio<strong>na</strong>liza e se dissemi<strong>na</strong> <strong>na</strong>s principais cidades <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />
No século XVII, autor era toda e qualquer pessoa que produzisse algo, seja um<br />
texto ou um crime. O autor é aquele que faz uma obra criativa. Continua sen<strong>do</strong> – como<br />
<strong>na</strong> velha Idade Média – uma autoridade, mas confere a certificação de seu valor são as<br />
instituições literárias. Assim, só o redator cujos escritos são reconheci<strong>do</strong>s por essas<br />
entidades é que pode ser da<strong>do</strong> como autor. O escritor como uma função social é um<br />
advento muito mais recente, data<strong>do</strong> <strong>do</strong> século XIX.<br />
A possibilidade de reproduzir um escrito praticamente ao infinito e facilidade<br />
para uma circulação planetária trazem preocupações inéditas aos autores. Como<br />
controlar os ganhos daquelas transações? Como acompanhar a recepção de uma obra<br />
pelo público? Como garantir aos autores os dividen<strong>do</strong>s de seu trabalho intelectual?<br />
141
O Iluminismo consagrou o indivíduo, projetou a importância da individualização<br />
das idéias e fez <strong>na</strong>scer noções filosóficas que sustentassem um direito de autor, uma<br />
propriedade intelectual, um reconhecimento de <strong>autoria</strong>. Esses acréscimos tor<strong>na</strong>vam mais<br />
complexas as noções de “autor” e de “<strong>autoria</strong>”...<br />
142
5.1.1 Digressão jurídica: a <strong>autoria</strong> como direito<br />
“Independentemente <strong>do</strong>s direitos patrimoniais <strong>do</strong> autor,<br />
e inclusive depois da cessão destes direitos, o autor<br />
conservará o direito de reivindicar a paternidade da obra<br />
e de se opor a qualquer deformação, mutilação ou outra<br />
modificação da mesma ou a qualquer atenta<strong>do</strong> à mesma<br />
que cause prejuízo a sua honra ou a sua reputação”<br />
Artigo 6º - Convenção de Ber<strong>na</strong> para a proteção das<br />
obras literárias e artísticas. 1886, revisada em 1971<br />
Com o desenvolvimento da indústria gráfica, a preocupação com o controle <strong>do</strong>s<br />
dividen<strong>do</strong>s <strong>do</strong> autor cresceu <strong>na</strong> proporção inversa da dificuldade de reproduzir as obras.<br />
Com os tipos móveis, os impressores ganharam mais agilidade <strong>na</strong> composição das<br />
matrizes e as provas saíam das ofici<strong>na</strong>s muito mais velozmente. A forma escrita se<br />
estabeleceu e se espalhou, obrigan<strong>do</strong> a massa iletrada a converter-se ao novo cre<strong>do</strong> e<br />
colocan<strong>do</strong> a proteção jurídica <strong>do</strong> direito autoral como uma necessidade social.<br />
Em 1709, os ingleses promulgam a primeira lei formal sobre o tema: o<br />
Coypright Act. Na França, em 1777, as proteções ao direito <strong>do</strong> autor já constam das<br />
Ordens <strong>do</strong> Conselho <strong>do</strong> Rei. E no Novo Mun<strong>do</strong>, os recém-funda<strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s<br />
inscrevem preocupações análogas tanto <strong>na</strong> Constituição de 1783 quanto no Federal<br />
Coypright Act, de 1790. No Brasil, a primeira menção jurídica sobre o tema data de<br />
1831, quan<strong>do</strong> da tipificação <strong>do</strong> delito de contrafação (falsificação).<br />
Em to<strong>do</strong>s esses casos, o objetivo era garantir os rendimentos fi<strong>na</strong>nceiros<br />
advin<strong>do</strong>s da exploração da obra, asseguran<strong>do</strong> o direito <strong>do</strong> autor beneficiar-se com a sua<br />
reprodução. Daí o termo “copyright”, direito de cópia. O que estava em jogo era a<br />
proteção <strong>do</strong>s direitos patrimoniais sobre a obra.<br />
A garantia <strong>do</strong>s direitos imateriais surge <strong>na</strong> Alemanha já no século XIX como<br />
parte <strong>do</strong> direito de perso<strong>na</strong>lidade. Com isso, <strong>na</strong> <strong>do</strong>utri<strong>na</strong> <strong>do</strong> Direito, ficam evidentes<br />
duas vertentes sobre o terreno autoral: a que protege a obra contra reproduções não-<br />
143
autorizadas (commom law, de família anglo-saxã) e a que protege a obra como criação<br />
<strong>do</strong> espírito (droit d’auteur, de família romano-germânica).<br />
Essas duas vertentes acabam se mostran<strong>do</strong> como aspectos complementares no<br />
direito autoral:<br />
• O moral, que assegura ao cria<strong>do</strong>r o controle à menção <strong>do</strong> seu nome <strong>na</strong><br />
divulgação da obra e o respeito à sua integridade, além <strong>do</strong>s direitos de modificá-<br />
la ou de retirá-la de circulação;<br />
• O patrimonial, que regula a utilização econômica da obra, preven<strong>do</strong> pagamento<br />
ao autor pela circulação e exploração da criação.<br />
Neste senti<strong>do</strong>, o direito autoral visa proteger as obras intelectuais por sua<br />
origi<strong>na</strong>lidade (no que se refere à sua forma exter<strong>na</strong>) ou por sua criatividade (no que se<br />
refere à sua forma inter<strong>na</strong>). Henrique Galdeman (1997: 36) explica que as idéias em si<br />
não são protegidas, mas sim suas formas de expressão: “O que se protege não é a<br />
novidade contida numa obra, mas tão-somente a origi<strong>na</strong>lidade de sua forma de<br />
expressão”. Quan<strong>do</strong> criadas em serviços profissio<strong>na</strong>is ou seguin<strong>do</strong> deveres funcio<strong>na</strong>is<br />
(contratos de prestação ou mesmo encomendas), as obras pertencem geralmente aos<br />
contratantes. Em ocasiões semelhantes – e o Jor<strong>na</strong>lismo pode ser uma delas -, o contrato<br />
deve trazer expresso a quem pertence a obra para evitar transtornos com os dividen<strong>do</strong>s.<br />
Bastante evoluí<strong>do</strong> mundialmente, o direito autoral já conta com códigos<br />
específicos <strong>na</strong> maioria <strong>do</strong>s países e com trata<strong>do</strong>s e convenções inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is que<br />
arbitram sobre o tema em situações de litígio. Tal como em outras áreas <strong>do</strong><br />
conhecimento humano, a Estética também se beneficiou com o aperfeiçoamento <strong>do</strong><br />
Direito: hoje, os conceitos de “autor” e “<strong>autoria</strong>” são mais complexos também por conta<br />
das evoluções no campo jurídico.<br />
144
5.1.2 Retorno à genealogia<br />
145<br />
“O autor desig<strong>na</strong> a necessidade de uma epistemologia<br />
e de uma ética da leitura; o autor é o nome de uma<br />
norma para a interpretação”<br />
M. Antoine Compagnon, crítico francês<br />
O desenvolvimento da indústria gráfica e o Iluminismo ajudaram a sedimentar<br />
novos padrões <strong>na</strong> difusão das idéias por meio da palavra escrita. Aliás, a forma escrita<br />
acabou por exigir um processo de identificação <strong>do</strong> texto e <strong>do</strong> seu titular. Regi<strong>na</strong><br />
Zilberman (2001) intui que a assi<strong>na</strong>tura <strong>do</strong>s primeiros textos não tenha se da<strong>do</strong> por<br />
iniciativa <strong>do</strong>s seus autores, mas sim para atender às solicitações <strong>do</strong>s leitores.<br />
Mesmo que questionável, a hipótese chama a atenção para a figura <strong>do</strong> leitor no<br />
processo de constituição <strong>do</strong> autor. O trabalho de Zilberman se preocupa não ape<strong>na</strong>s com<br />
a constituição <strong>do</strong> autor, mas também com a sua reificação. Segun<strong>do</strong> sustenta, quan<strong>do</strong> o<br />
autor se alie<strong>na</strong> <strong>do</strong> texto contribui para o ocultamento de sua subjetividade, franco<br />
processo de coisificação.<br />
Por outro la<strong>do</strong>, a assunção de uma obra literária é a afirmação de um direito de<br />
propriedade intelectual. E, neste senti<strong>do</strong>, a garantia desse reconhecimento é uma<br />
conquista <strong>do</strong>s escritores que venceram outros perso<strong>na</strong>gens da indústria gráfica neste<br />
litígio: inicialmente, os tipógrafos europeus consideravam-se os <strong>do</strong>nos <strong>do</strong>s produtos que<br />
vendiam; depois foi a vez de editores e livreiros reivindicarem tal propriedade.<br />
Com a vitória <strong>do</strong>s autores, e o reconhecimento de sua autoridade cria<strong>do</strong>ra sobre<br />
a obra, difunde-se uma certa figura <strong>do</strong> autor.<br />
Refletin<strong>do</strong> sobre uma suposta extinção <strong>do</strong> objeto livro, Zilberman (2000)<br />
pondera a supervalorização <strong>do</strong> autor no mun<strong>do</strong> da escrita:
Não surpreende que, por decorrência, se tenha hipertrofia<strong>do</strong> a<br />
noção de autor, que passa a constituir o elemento mais valoriza<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong> sistema literário, obscurecen<strong>do</strong>, como se apontou em capítulos<br />
anteriores, a importância <strong>do</strong> leitor. Quan<strong>do</strong> Roland Barthes, num de<br />
seus ensaios, decreta “a morte <strong>do</strong> autor”, talvez tenha em mente<br />
minimizar a importância dessa figura, tanto mais que ele propõe<br />
substituí-la pela <strong>do</strong> leitor, defini<strong>do</strong> como “o espaço mesmo onde se<br />
inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que é<br />
feita a escritura”. O autor, contu<strong>do</strong>, não se entrega tão facilmente:<br />
não ape<strong>na</strong>s a morte detectada por Barthes é simbólica e virtual,<br />
como não se anulam os direitos de propriedade conquista<strong>do</strong>s por<br />
ele, mesmo depois de seu falecimento real.<br />
A hipertrofia <strong>do</strong> autor é muito conveniente para o sistema <strong>na</strong> <strong>medida</strong> em que<br />
ajuda a ocultar “a materialidade <strong>do</strong> produto que o difunde, encobrin<strong>do</strong> ao mesmo tempo<br />
o sistema econômico que o sustenta” (112).<br />
Em 1968 59 , Barthes publica o artigo “A morte <strong>do</strong> autor”, quan<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> da<br />
escrita degusta (rumi<strong>na</strong> e digere) algumas das mais ousadas experiências literárias no<br />
tocante à figura <strong>do</strong> <strong>na</strong>rra<strong>do</strong>r, <strong>do</strong> autor. Mallarmé, Valéry e Proust já haviam passa<strong>do</strong><br />
pelos olhos <strong>do</strong>s leitores, depositan<strong>do</strong> <strong>na</strong> língua, <strong>na</strong> palavra, o peso da criação. Eram<br />
autores despreocupa<strong>do</strong>s com a própria visibilidade. Importava o código escrito, que, de<br />
tanto funcio<strong>na</strong>r, implodia em imagens, signos, senti<strong>do</strong>s e sensações. Catalisan<strong>do</strong> um<br />
certo movimento orquestra<strong>do</strong> de apagamento <strong>do</strong> autor, o avanço nos estu<strong>do</strong>s da<br />
Lingüística – principalmente os estruturalistas e pós-estruturalistas – atraiu os holofotes<br />
para a maqui<strong>na</strong>ria da linguagem, como se ela estivesse dissociada <strong>do</strong>s sujeitos que a<br />
usam (e são constituí<strong>do</strong>s por ela).<br />
Neste contexto, a morte <strong>do</strong> autor se apoiava numa oposição a uma crítica<br />
tradicio<strong>na</strong>l (aquela que endeusava o autor) e a uma clara adesão à vanguarda literária<br />
(que apagava, anulava, dissolvia o autor). Barthes se contrapôs a uma ala da Crítica e<br />
abriu os braços para o Noveau Roman.<br />
59 O texto será publica<strong>do</strong> no Brasil vinte anos depois no volume O rumor da língua, pela Editora Brasiliense.<br />
146
Para Barthes (1988), o protagonismo <strong>do</strong> processo é exerci<strong>do</strong> pela escritura que<br />
efetua a “destruição de toda voz, de toda origem”. A partir <strong>do</strong> momento em que algo é<br />
relata<strong>do</strong>, conta<strong>do</strong>, ocorreria um desligamento, o autor sucumbiria e a escritura<br />
começaria. Ela se constitui numa espécie de neutro, “esse oblíquo aonde foge o nosso<br />
sujeito, o branco-e-preto onde vem se perder toda identidade, a começar pela <strong>do</strong> corpo<br />
que escreve” (65).<br />
Barthes recorre à ciência para reforçar seus argumentos. Segun<strong>do</strong> ele, a<br />
Lingüística mostra que a enunciação é um processo vazio, que funcio<strong>na</strong> independente<br />
<strong>do</strong> preenchimento da figura <strong>do</strong> interlocutor:<br />
Lingüisticamente, o autor nunca é mais <strong>do</strong> que aquele que escreve,<br />
assim como “eu” outra coisa não é senão aquele que diz “eu”: a<br />
linguagem conhece um “sujeito”, não uma “pessoa”, e esse sujeito,<br />
vazio fora da enunciação que o define, basta para “sustentar” a<br />
linguagem, isto é, para exauri-la. (67)<br />
Diante disso, e frente às vanguardas literárias, Barthes afirma que o afastamento<br />
<strong>do</strong> autor não é ape<strong>na</strong>s um acontecimento ou uma ação <strong>na</strong> escritura. Isso modifica<br />
radicalmente o texto <strong>na</strong> contemporaneidade. Assim, só existe um tempo, o momento da<br />
enunciação. O escritor moderno <strong>na</strong>sce no mesmo instante em que aparece o texto.<br />
Para Barthes, dar ao texto um autor é impor-lhe uma trava, fechar sua escritura,<br />
algo muito conveniente para o crítico que quer decifrar o texto <strong>na</strong> <strong>medida</strong> em que<br />
encontra o autor.<br />
A alter<strong>na</strong>tiva proposta é a escritura múltipla, onde se oferecem senti<strong>do</strong>s<br />
ininterruptamente. Só se desvenda a integralidade da escritura pela consciência de que<br />
um texto é um teci<strong>do</strong> forma<strong>do</strong> de escrituras múltiplas, de entradas e saídas, de tramas e<br />
frouxidões. Mas existe um ponto onde esse rizoma se reúne<br />
147
... e esse lugar não é o autor, como se disse até o presente, é o leitor:<br />
o leitor é o espaço mesmo onde se inscrevem, sem que nenhuma se<br />
perca, todas as citações de que é feita uma escritura; a unidade <strong>do</strong><br />
texto não está em sua origem, mas no seu destino, mas esse destino<br />
não pode mais ser pessoal: o leitor é um homem sem história, sem<br />
biografia, sem psicologia; ele é ape<strong>na</strong>s esse alguém que mantém<br />
reuni<strong>do</strong>s em um único campo to<strong>do</strong>s os traços de que é constituí<strong>do</strong> o<br />
escrito. (...) para devolver à escritura o seu futuro, é preciso inverter o<br />
mito: o <strong>na</strong>scimento <strong>do</strong> leitor deve pagar-se com a morte <strong>do</strong> Autor.<br />
(70)<br />
Portanto, a morte <strong>do</strong> autor não é ape<strong>na</strong>s um crime ordinário provoca<strong>do</strong> por<br />
Roland Barthes no fi<strong>na</strong>l <strong>do</strong>s anos 60 <strong>do</strong> século XX. Barthes não é o responsável pelo<br />
assassi<strong>na</strong>to <strong>do</strong> autor, mas quem aponta e revela o cadáver da vítima. Mas o teórico<br />
francês não é também só uma testemunha <strong>do</strong> homicídio, mas cúmplice <strong>do</strong> delito <strong>na</strong><br />
<strong>medida</strong> em que o celebra em favor <strong>do</strong> leitor. Nesta alegoria crimi<strong>na</strong>l e literária, Barthes<br />
poderia ser arrola<strong>do</strong> ao processo não como mais uma peça no desvendamento <strong>do</strong> crime,<br />
mas como co-autor. As evidências indicam que o autor foi morto em defesa <strong>do</strong> leitor.<br />
Como evidência não é prova e como o processo não foi concluí<strong>do</strong> até então, a discussão<br />
também está longe de termi<strong>na</strong>r.<br />
148
5.2 Reconhecimento <strong>do</strong> sujeito e afirmação <strong>do</strong> singular<br />
“...é que eu não sou propriamente um autor defunto<br />
mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço”<br />
Macha<strong>do</strong> de Assis – Memórias Póstumas de Brás Cubas<br />
Se o assunto é a morte <strong>do</strong> autor, <strong>na</strong>da mais oportuno <strong>do</strong> que começar pelas<br />
palavras de um defunto-autor ou mesmo pelas de um autor que já deixou de viver. Seja<br />
o Brás Cubas, de Macha<strong>do</strong>, seja Italo Calvino, que, entre tantos títulos, escreveu Se um<br />
viajante numa noite de inverno. Edita<strong>do</strong> em 1979, o romance é uma obra de engenharia<br />
<strong>na</strong>rrativa que desterritorializa a leitura, confere novos contornos aos papéis <strong>do</strong> autor e<br />
<strong>do</strong> leitor e resignifica a arte <strong>do</strong> romance. Nele, os perso<strong>na</strong>gens estão to<strong>do</strong>s liga<strong>do</strong>s ao<br />
campo da palavra escrita: são leitores ávi<strong>do</strong>s por termi<strong>na</strong>r a leitura de romances, um<br />
velho editor preocupa<strong>do</strong> com as erratas e as encader<strong>na</strong>ções, um escritor difuso, um<br />
artista plástico que esculpi livros, um tradutor-falsário... Mas, além disso, em termos<br />
literários, há um exercício contumaz de apagamento <strong>do</strong> autor. O próprio Calvino explica<br />
o seu trabalho:<br />
tentar escrever romances ‘apócrifos’, isto é, aqueles que imagino<br />
tenham si<strong>do</strong> escritos por um autor que não sou eu e que não existe,<br />
foi tarefa levada ao extremo em Se um viajante numa noite de<br />
inverno. Trata-se de um romance sobre o prazer de ler romances; o<br />
protagonista é o Leitor, que por dez vezes recomeça a ler um livro<br />
que, em razão de vicissitudes alheias a sua vontade, ele não<br />
consegue termi<strong>na</strong>r 60 .<br />
Com isso, quem se dá ao trabalho de passar pelas pági<strong>na</strong>s de Se um viajante...,<br />
acaba por se tor<strong>na</strong>r o centro da história, confundin<strong>do</strong>-se com o Leitor-perso<strong>na</strong>gem e<br />
com ele peregri<strong>na</strong>n<strong>do</strong> para concluir a leitura. Tal empreitada reforça o objetivo de<br />
Calvino de construir ali um objeto literário onde não deixe suas impressões digitais, em<br />
torno <strong>do</strong> qual não se vejam suas pegadas. Tal ofício é leva<strong>do</strong> tão a sério que o romance<br />
se desconstrói de trechos em trechos, reconstruin<strong>do</strong>-se em seguida, desprenden<strong>do</strong> novos<br />
149
fios <strong>na</strong>rrativos que precisam ser puxa<strong>do</strong>s. Em da<strong>do</strong> momento, o confuso livreiro<br />
Cavedag<strong>na</strong> mostra ao leitor um parágrafo de um certo escrito:<br />
Que importa o nome <strong>do</strong> autor <strong>na</strong> capa? Vamos nos transportar pela<br />
imagi<strong>na</strong>ção para daqui a três mil anos. Sabe-se lá quais livros de<br />
nossa época terão sobrevivi<strong>do</strong> e quais autores ainda serão<br />
lembra<strong>do</strong>s. Haverá livros que continuarão célebres, mas que serão<br />
considera<strong>do</strong>s obras anônimas, como é para nós a epopéia de<br />
Gilgamesh; haverá autores cujo nome permanecerá célebre, mas<br />
<strong>do</strong>s quais não restará nenhuma obra, como é o caso de Sócrates; ou<br />
talvez to<strong>do</strong>s os livros remanescentes sejam atribuí<strong>do</strong>s a um único e<br />
misterioso autor, como Homero. 61<br />
Se um viajante... serve de aperitivo, mas Calvino também morreu e não pode<br />
mais alimentar o debate. É necessário buscar outras lombadas <strong>na</strong> estante.<br />
Em uma delas, onde se lê John Caughie, eu encontro um artigo de Edward<br />
Buscombe que diz que a teoria <strong>do</strong> autor <strong>na</strong>sceu como uma política <strong>do</strong>s autores. “A<br />
política, como indica a escolha <strong>do</strong> termo, foi polêmica no intento e significava definir<br />
uma atitude para o cinema e para o curso da ação” (1981: 22). Ah! Mas ele se refere ao<br />
cinema, à Política <strong>do</strong>s Autores, lançada por François Truffaut num texto publica<strong>do</strong> <strong>na</strong><br />
edição 31 <strong>do</strong>s Cahiers du Cinema nos agita<strong>do</strong>s anos 60 62 . De qualquer forma, não se<br />
pode ignorar que até mesmo os cineastas passaram a discutir estética e criação seguin<strong>do</strong><br />
a <strong>medida</strong> da <strong>autoria</strong>. A provocação de Truffaut causou discussão mundial ten<strong>do</strong> as<br />
pági<strong>na</strong>s <strong>do</strong>s Cahiers como are<strong>na</strong> principal. A idéia de uma política, de uma atitude<br />
estética deliberada dividia os profissio<strong>na</strong>is entre autores e filma<strong>do</strong>res, entre quem fazia<br />
cinema e quem estava imerso <strong>na</strong> indústria <strong>do</strong> cinema...<br />
Deixo Truffaut e o cinema de la<strong>do</strong> e esbarro no estu<strong>do</strong> que Lisandro Nogueira<br />
(2002) fez sobre a teledramaturgia brasileira, mais especificamente sobre Gilberto<br />
60 A justificativa foi transcrita no apêndice ao romance, mas sua primeira aparição se dá no Nuovi Quaderni<br />
Italiani, publica<strong>do</strong> como o artigo “Il libro, i libri”, em Buenos Aires,1984.<br />
61 Calvino (2002: 105)<br />
62 O artigo foi intitula<strong>do</strong> “Une certaine tendance du cinéma français” e atacava certas produções francesas<br />
tachan<strong>do</strong>-as de literárias e não cinematográficas. Para Truffaut, um verdadeiro filme de autor traz algo<br />
genui<strong>na</strong>mente pessoal <strong>do</strong> seu realiza<strong>do</strong>r <strong>na</strong> obra, e o material apresenta<strong>do</strong> ao público é uma expressão da<br />
perso<strong>na</strong>lidade <strong>do</strong> cineasta.<br />
150
Braga. O volume que tenho <strong>na</strong>s mãos descreve as condições que caracterizam a<br />
produção de telenovelas, tor<strong>na</strong>n<strong>do</strong>-a o produto audiovisual mais comercializa<strong>do</strong> e<br />
rentável <strong>do</strong> país. Produzidas em escala industrial, as telenovelas alcançam orçamentos<br />
vultosos, contam com elencos estelares e um exército de técnicos e produtores. São<br />
exportadas para deze<strong>na</strong>s de países e tal sucesso não impede o exercício de uma <strong>autoria</strong>.<br />
Aliás, no Brasil, ao contrário <strong>do</strong> que acontece no cinema, são muito mais conheci<strong>do</strong>s os<br />
autores das telenovelas <strong>do</strong> que os seus diretores... A tensão permanece: de um la<strong>do</strong>, os<br />
que sepultam o autor, cuspin<strong>do</strong> sobre sua lápide fria; de outro, quem celebra a <strong>autoria</strong>,<br />
quem afirma a necessidade da assi<strong>na</strong>tura. Como no romance de Ítalo Calvino, a cada<br />
livro que apanho, não chego ao fi<strong>na</strong>l da história. Cada título me aponta caminhos por<br />
onde me perco e me confun<strong>do</strong>. Preciso de um guia, de uma bússola...<br />
151
5.3 A função autor<br />
“Este é o labirinto de Creta. Este é o labirinto de Creta<br />
cujo centro foi o Minotauro. Este é o labirinto de Creta<br />
cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um<br />
touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se<br />
perderam tantas gerações. Este é o labirinto de Creta cujo<br />
centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro<br />
com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam<br />
tantas gerações como Maria Kodama e eu nos perdemos.<br />
Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro, que<br />
Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em<br />
cuja rede de pedra se perderam tantas gerações como Maria<br />
Kodama e eu nos perdemos <strong>na</strong>quela manhã e continuamos<br />
perdi<strong>do</strong>s no tempo, esse outro labirinto”.<br />
Jorge Luis Borges – O Labirinto<br />
Para não se perder pelos corre<strong>do</strong>res <strong>do</strong> labirinto <strong>do</strong> Minotauro, Teseu usou o fio<br />
de Ariadne. Foi com ele preso nos de<strong>do</strong>s de uma mão que o guerreiro pôde deixar a<br />
estrutura, deixan<strong>do</strong> para trás o monstro derrota<strong>do</strong>. Jorge Luis Borges gostava muito de<br />
labirintos e sempre que podia os encaixava <strong>na</strong>s paredes de suas histórias. Na epígrafe<br />
acima, o escritor desfia as frases para atravessar a perdição. Michel Foucault gostava de<br />
Borges e o lembrou no início de um livro seu. Cito também o argentino no começo<br />
desta seção. E uso Foucault para me orientar no labirinto conceitual em que me meti.<br />
Depois que Barthes anunciou a morte <strong>do</strong> autor, esse ocaso tornou-se objeto de<br />
debates nos principais círculos críticos e literários. Uma resposta à altura <strong>do</strong> texto de<br />
1968 chegará já no ano seguinte, quan<strong>do</strong> da publicação de uma conferência dada por<br />
Michel Foucault intitulada “O que é um autor?” 63 .<br />
A intenção <strong>do</strong> pensa<strong>do</strong>r francês – ele mesmo dirá (2001: 294) - era investigar o<br />
que havia por baixo <strong>do</strong> apagamento <strong>do</strong> autor. Isto é, o que poderia ser visto com o<br />
anúncio da morte <strong>do</strong> autor. A partir desse questio<strong>na</strong>mento, Foucault vai pensar sobre<br />
que papel o autor exercia <strong>na</strong> literatura, sob que condições ele o fazia e que regras<br />
atuavam nesse terreno. A resposta passa pela consideração de que há uma função autor,<br />
63 A primeira publicação da conferência acontece no Bulletin de la Societé Française de Philosophie nº 3, de<br />
julho-setembro de 1969, pp. 73-104. Já <strong>na</strong> década de 70, Foucault reapresentará essa mesma fala <strong>na</strong><br />
Universidade de Búfalo (EUA), acrescida de comentários, o que será publica<strong>do</strong> em 1979. No Brasil, o texto só<br />
152
e que esta é uma das especificações possíveis de uma entidade múltipla como o sujeito.<br />
Dessa forma, para Foucault, não basta ape<strong>na</strong>s alardear que o autor morreu, mas sim<br />
identificar o espaço vago com essa desaparição e observar o que resta ali. Esse percurso<br />
obriga a refletir sobre as noções de “obra” e mesmo de “unidade” que a obra deve<br />
conter sob o mesmo nome de autor. O que caracteriza uma obra? O que faz com que<br />
certos escritos possam ser encaixa<strong>do</strong>s numa mesma rubrica? Anotações em cantos de<br />
pági<strong>na</strong> podem ser consideradas como romances ou ensaios? Não se nega o interesse que<br />
esses escritos ordinários podem despertar – Foucault cita notas de lavanderia de<br />
Nietzsche, por exemplo -, mas seu status de obra. Michel Foucault chama a atenção<br />
para o fato de que há diferenças sensíveis entre os escritos e que a <strong>autoria</strong> nem sempre<br />
se manifesta neles, fato que leva a pensar numa <strong>autoria</strong> como função <strong>do</strong> sujeito. Neste<br />
senti<strong>do</strong>, chega a pensar que o próprio nome <strong>do</strong> autor não é exatamente um nome próprio<br />
como os demais. Ele não ape<strong>na</strong>s um elemento num discurso - como um complemento<br />
ou um sujeito-, mas tem uma função classificatória: a partir dele se pode reagrupar<br />
textos, traçar características comuns, delimita-se um campo próprio para o autor. O<br />
nome <strong>do</strong> autor funcio<strong>na</strong> para<br />
caracterizar um certo mo<strong>do</strong> de ser <strong>do</strong> discurso: para um discurso, o<br />
fato de haver um nome de autor, o fato de que se possa dizer ‘isso<br />
foi escrito por tal pessoa’, ou ‘tal pessoa é o autor disso’, indica que<br />
esse discurso não é uma palavra cotidia<strong>na</strong>, indiferente, uma palavra<br />
que se afasta, que flutua e passa, uma palavra imediatamente<br />
consumível, mas que se trata de uma palavra que deve ser recebida<br />
de uma certa maneira e que deve, em uma dada cultura, receber<br />
um certo status.<br />
Chegar-se-ia fi<strong>na</strong>lmente à idéia de que o nome <strong>do</strong> autor não passa,<br />
como o nome próprio, <strong>do</strong> interior de um discurso ao indivíduo real e<br />
exterior que o produziu, mas que ele corre, de qualquer maneira, aos<br />
limites <strong>do</strong>s textos, que ele os recorta, segue suas arestas, manifesta o<br />
mo<strong>do</strong> de ser ou, pelo menos, que ele o caracteriza. Ele manifesta a<br />
ocorrência de um certo conjunto <strong>do</strong> discurso, e refere-se ao status<br />
desse discurso no interior de uma sociedade e de uma cultura. O<br />
nome <strong>do</strong> autor não está localiza<strong>do</strong> no esta<strong>do</strong> civil <strong>do</strong>s homens, não<br />
está localiza<strong>do</strong> <strong>na</strong> ficção da obra, mas <strong>na</strong> ruptura que instaura um<br />
chegará às estantes em 2001 no terceiro volume <strong>do</strong>s Ditos & Escritos de Michel Foucault, com organização<br />
de textos de Manoel Barros da Motta. As referências a este texto seguem a versão brasileira.<br />
153
certo grupo de discursos e seu mo<strong>do</strong> singular de ser.<br />
Conseqüentemente, poder-se-ia dizer que há, em uma civilização<br />
como a nossa, um certo número de discursos que são provi<strong>do</strong>s da<br />
função ‘autor’, enquanto outros são dela desprovi<strong>do</strong>s. Uma carta<br />
particular pode ter um sig<strong>na</strong>tário, ela não tem autor; um contrato<br />
pode ter um fia<strong>do</strong>r, ele não tem um autor. Um texto anônimo que se<br />
lê <strong>na</strong> rua em uma parede terá um redator, não terá um autor. A<br />
função autor é, portanto, característica <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> de existência, de<br />
circulação e de funcio<strong>na</strong>mento de certos discursos no interior de<br />
uma sociedade. (op.cit.: 273-4)<br />
(A longa citação se justifica não só para evocar o sotaque foucaultiano, mas<br />
ainda para fazer valer a função autor, <strong>na</strong> <strong>medida</strong> em que permite a emersão <strong>do</strong> nome <strong>do</strong><br />
autor <strong>na</strong> superfície <strong>do</strong> texto. À <strong>medida</strong> que convoco o próprio autor para vocalizar o que<br />
escreveu, dão-se condições para que o nome <strong>do</strong> pensa<strong>do</strong>r revista-se de novos contornos.<br />
A exemplo <strong>do</strong> funcio<strong>na</strong>mento que ele mesmo diagnosticou).<br />
Não ape<strong>na</strong>s <strong>na</strong> literatura, mas também em outros campos, o nome <strong>do</strong> autor pesa.<br />
Como uma grife, uma chancela, o nome não traduz ape<strong>na</strong>s quem responde por aqueles<br />
escritos. No Jor<strong>na</strong>lismo, um texto de Paulo Francis não é ape<strong>na</strong>s um conjunto bem<br />
articula<strong>do</strong> de mordacidade, virulência e polêmica. É um texto de Paulo Francis. No<br />
Jor<strong>na</strong>lismo, uma reportagem de Joel Silveira não é uma matéria ordinária. É um<br />
trabalho que tem a rubrica <strong>do</strong> legendário repórter. Da mesma forma, um quadro pinta<strong>do</strong><br />
por Pablo Picasso é um Picasso, uma foto tirada por Sebastião Salga<strong>do</strong> alcança<br />
notoriedade não ape<strong>na</strong>s pela sua qualidade técnica, mas também pela história recente<br />
que traz em seu bojo. Assim, o nome <strong>do</strong> autor deixa de ser complemento e tor<strong>na</strong>-se<br />
substantivo: o livro é um Rubem Fonseca, o poema é um Drummond, o romance é um<br />
Proust, a tela é um Matisse...<br />
É curioso lembrar que o nome <strong>do</strong> autor passa a ter mais visibilidade para que o<br />
cria<strong>do</strong>r seja puni<strong>do</strong>. Quer dizer, a assi<strong>na</strong>tura <strong>do</strong> autor vai possibilitar que as instituições<br />
identifiquem o indivíduo para que possam responsabilizá-lo por virtuais danos ou<br />
154
transgressões. A assi<strong>na</strong>tura é como uma impressão digital, traço da identidade. A<br />
metáfora da impressão digital não é gratuita já que se trata aqui de crimi<strong>na</strong>lização ou<br />
responsabilização pe<strong>na</strong>l por produtos de criação autoral. Diante disso, Foucault teria<br />
nisso mais uma confirmação de sua hipótese sobre o caráter discipli<strong>na</strong>r das sociedades.<br />
Essa tendência se mantém até hoje 64 .<br />
Para Foucault, é possível reconhecer no autor quatro componentes distintos que<br />
fazem-no exercer a função de <strong>autoria</strong>:<br />
• Os produtos de criação – textos, obras de arte, etc - são objetos de sua<br />
apropriação. Ao estampar seu nome neles, o autor faz operar formas de<br />
pertencimento sobre tais objetos;<br />
• Não se exerce a função autor de maneira idêntica e constante em to<strong>do</strong>s os<br />
discursos. Não há uniformidade nesse exercício, e tu<strong>do</strong> depende das épocas e das<br />
modalidades <strong>do</strong>s objetos de criação;<br />
• A função autor não se forma espontaneamente tal qual a atribuição de um texto a<br />
uma pessoa. Ela é resulta<strong>do</strong> de uma operação complexa que constrói um certo<br />
ser de razão que chamamos de autor. Para Foucault, o que faz de um indivíduo<br />
um autor (ou o que no indivíduo é desig<strong>na</strong><strong>do</strong> como autor) é a “projeção, em<br />
termos sempre mais ou menos psicologizantes, <strong>do</strong> tratamento que se dá aos<br />
textos, das aproximações que se operam, <strong>do</strong>s traços que se estabelecem como<br />
pertinentes, das continuidades que se admitem ou das exclusões que se<br />
praticam” (op.cit.:276-7). O autor é um ponto de reunião e dispersão, um vórtice<br />
onde se estabelecem coerências criativas;<br />
64 Tal orientação é tão introjetada no sujeito contemporâneo que o mesmo Foucault chegaria a dizer que o<br />
anonimato literário é insuportável para os leitores, sen<strong>do</strong> aceito ape<strong>na</strong>s como jogo, enigma (op.cit.:276)<br />
155
• Não se deve buscar o autor <strong>na</strong> pessoa <strong>do</strong> escritor, <strong>do</strong> artista ou <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista. Eles<br />
nem sempre coincidem, e a função autor se efetua “<strong>na</strong> própria cisão – nessa<br />
divisão e nessa distância (op.cit.: 279). To<strong>do</strong>s os discursos e produtos onde<br />
opera a função autor contêm essa pluralidade de egos. Seria enganoso buscar<br />
razões <strong>na</strong> pessoa <strong>do</strong> dramaturgo para justificar as razões <strong>do</strong> texto da peça, por<br />
exemplo. Essa correspondência pode se dar ou não. A <strong>autoria</strong> não remete tão<br />
somente a um indivíduo real, mas pode estar vinculada ao mesmo tempo a várias<br />
posições-sujeitos que diferentes indivíduos podem vir a preencher.<br />
É necessário ressaltar que, com a determi<strong>na</strong>ção <strong>do</strong> que é e de como opera a<br />
função autor, Michel Foucault oferece contribuições importantíssimas para o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
sujeito contemporâneo. Isso porque reforça o seu caráter múltiplo, cliva<strong>do</strong>, dinâmico.<br />
Ser autor é uma dimensão possível <strong>na</strong>s tantas que ser sujeito comporta.<br />
Assim, o autor é o que vai poder explicar numa obra modificações, desvios,<br />
transformações ocorridas entre um produto e outro.<br />
O autor é, igualmente, o princípio de uma certa unidade de escrita –<br />
todas as diferenças deven<strong>do</strong> ser reduzidas ao menos pelos princípios<br />
da evolução, da maturação ou da influência. O autor é ainda o que<br />
permite superar as contradições que podem se desencadear em<br />
uma série de textos: ali deve haver – em um certo nível <strong>do</strong><br />
pensamento ou <strong>do</strong> seu desejo, de sua consciência ou <strong>do</strong> seu<br />
inconsciente – um ponto a partir <strong>do</strong> qual as contradições se<br />
resolvem, os elementos incompatíveis se encadean<strong>do</strong> fi<strong>na</strong>lmente uns<br />
aos outros ou se organizan<strong>do</strong> em torno de uma contradição<br />
fundamental ou originária. O autor, enfim, é um certo foco de<br />
expressão que, sob formas mais ou menos acabadas, manifesta-se<br />
da mesma maneira, e com o mesmo valor, em obras, rascunhos,<br />
cartas, fragmentos etc. (op.cit.: 278)<br />
Para Foucault, com a função autor em ce<strong>na</strong>, compreende-se um pouco melhor a<br />
<strong>na</strong>tureza multifacetada <strong>do</strong> sujeito contemporâneo e suas relações com os diversos<br />
discursos. Deixa-se de perguntar como a liberdade de alguém pode incidir nos objetos<br />
156
(nos textos e obras) para questio<strong>na</strong>r de que formas o sujeito aparece <strong>na</strong> ordem <strong>do</strong>s<br />
discursos, que papéis ocupa nos textos. “Trata-se, em suma, de retirar <strong>do</strong> sujeito (ou <strong>do</strong><br />
seu substituto) seu papel de fundamento originário, e de a<strong>na</strong>lisá-lo como uma função<br />
variável e complexa <strong>do</strong> discurso”, sintetiza o pensa<strong>do</strong>r (287).<br />
Em dezembro de 1970, Foucault voltaria a falar das relações entre sujeitos e<br />
discursos em sua aula i<strong>na</strong>ugural no Collège de France, intitulada “A ordem <strong>do</strong><br />
discurso”. Segun<strong>do</strong> ele, em toda sociedade, a produção <strong>do</strong>s discursos é controlada,<br />
organizada, selecio<strong>na</strong>da e redistribuída atenden<strong>do</strong> a uma rigorosa e complexa lógica de<br />
controle. Entre os procedimentos incidentes, estariam técnicas de exclusão e de<br />
rarefação. O autor seria um desses princípios que atuariam <strong>na</strong> produção discursiva. Não<br />
a pessoa que escreve, pinta ou cria, mas o autor “como princípio de agrupamento <strong>do</strong><br />
discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência”<br />
(2001:26); o autor como alguém que “dá à inquietante linguagem da ficção suas<br />
unidades, seus nós de coerência, sua inserção no real” (28).<br />
Foucault tor<strong>na</strong> a dizer que não se trata de negar o indivíduo que executa as<br />
operações físicas e mecânicas de escrever, desenhar ou criar; seu foco está <strong>na</strong> função<br />
autor que essa pessoa permite funcio<strong>na</strong>r a cada momento.<br />
To<strong>do</strong> esse jogo de diferenças é prescrito pela função <strong>do</strong> autor, tal<br />
como a recebe de sua época ou tal como ele, por sua vez, a<br />
modifica. Pois embora possa modificar a imagem tradicio<strong>na</strong>l que se<br />
faz de um autor, será a partir de uma nova posição <strong>do</strong> autor que<br />
recortará, em tu<strong>do</strong> o que poderia ter dito, em tu<strong>do</strong> o que diz to<strong>do</strong>s<br />
os dias, a to<strong>do</strong> momento, o perfil ainda trêmulo de sua obra. (idem:<br />
29)<br />
Na literatura, <strong>na</strong>s artes, no Jor<strong>na</strong>lismo, o autor não é um corpo, um rosto ou uma<br />
voz; é, sim, uma posição ocupada em tantas que o sujeito pode firmar. Aliás, tem-se<br />
claro aqui que o sujeito é um lugar, uma instância, uma posição discursiva. A noção de<br />
autor opera como função da de sujeito, e responde pela organização <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s e por<br />
157
uma certa unidade de textos e discursos, o que provoca o efeito de continuidade <strong>do</strong><br />
sujeito. Conforme frisa Eni Orlandi, a função autor não se limita a um pequeno conjunto<br />
de produtores origi<strong>na</strong>is de linguagem. “Para nós, a função autor se realiza toda vez que<br />
o produtor da linguagem se representa <strong>na</strong> origem, produzin<strong>do</strong> um texto com unidade,<br />
coerência, progressão, não-contradição e fim” (1996: 68).<br />
Ainda segun<strong>do</strong> Orlandi, a posição de autor se constrói à <strong>medida</strong> que se funda um<br />
lugar de interpretação defini<strong>do</strong> pela relação com o outro e com os demais discursos que<br />
podem ser correlacio<strong>na</strong><strong>do</strong>s. No fi<strong>na</strong>l das contas, a <strong>autoria</strong> constrói e é construída pela<br />
interpretação simultaneamente. Na terminologia da tradição francesa da Análise <strong>do</strong><br />
Discurso 65 , o autor surge graças a um efeito-leitor. Isto é, o autor se produz através d<br />
“possibilidade de um gesto de interpretação que lhe corresponde e que vem ‘de fora’. O<br />
lugar <strong>do</strong> autor é determi<strong>na</strong><strong>do</strong> pelo lugar da interpretação. O efeito-leitor representa, para<br />
o autor, sua exterioridade constitutiva (memória <strong>do</strong> dizer, repetição histórica)”<br />
(op.cit.:74-5).<br />
Com isso posto, o sistema de escrita e leitura – ou de criação e recepção – fica<br />
mais dinâmico, com lugares bem defini<strong>do</strong>s e com uma estrutura menos hierárquica. Isto<br />
é, o autor não é o centro <strong>do</strong> sistema, como queriam influentes camadas da crítica e da<br />
produção artística. Nem mesmo o leitor assume o centro, a despeito <strong>do</strong> que pregou<br />
Roland Barthes. Leitor e autor são posições ocupáveis, igualmente relevantes no<br />
processo comunicativo, mutuamente influenciáveis, interdependentes e complementares<br />
<strong>na</strong>s suas constituições.<br />
65 Matriz conceitual e operativa <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s lingüísticos a qual Eni Orlandi se filia. Surgida em 1969 a partir de<br />
estu<strong>do</strong>s de Michel Pêcheux, teve continuidade com pesquisa<strong>do</strong>res como Françoise Gadet, Denise Maldidier,<br />
Paul Henry, Silvain Auroux, Régine Robin e Jacqueline Authier-Revuz. No Brasil, além de Orlandi, destacam-se<br />
Pedro de Souza, Freda Indursky, Mônica Zoppi-Fonta<strong>na</strong>, Sírio Possenti e Solange Galo.<br />
158
5.4 Autoria como exercício de estilo<br />
159<br />
“O estilo é o próprio homem”<br />
George de Buffon, <strong>na</strong>turalista francês<br />
“Agora, sim, você está pronto para devorar as primeiras<br />
linhas da primeira pági<strong>na</strong>. Está prepara<strong>do</strong> para reconhecer<br />
o inconfundível estilo <strong>do</strong> autor. Não, você não o está reconhecen<strong>do</strong>.<br />
Mas, pensan<strong>do</strong> bem, quem afirmou que este autor tem estilo<br />
inconfundível? Pelo contrário: sabe-se que é um autor que muda muito<br />
de um livro para outro. E é justamente nessas mudanças que se pode reconhecê-lo”<br />
Ítalo Calvino – Se um viajante numa noite de inverno<br />
Fazer valer a função autor não é ape<strong>na</strong>s ceder o nome para que ele carimbe a<br />
lombada de um livro e dê ao escrito uma paternidade. A <strong>autoria</strong> deve revelar um estilo.<br />
O exercício <strong>do</strong> estilo, de um semblante para o texto pode se constituir num <strong>do</strong>s<br />
procedimentos necessários para marcar uma <strong>autoria</strong>, seja <strong>na</strong> arte ou no Jor<strong>na</strong>lismo.<br />
Mas o estilo no cotidiano jor<strong>na</strong>lístico é diferente <strong>do</strong> <strong>na</strong> literatura, por exemplo, já<br />
que contém muito mais limita<strong>do</strong>res técnicos e estéticos. Para exercer um estilo <strong>na</strong><br />
reportagem, o profissio<strong>na</strong>l parece ter um espaço mais estreito, com menos margem de<br />
manobras textuais, dadas as condições em que se inscreve o Jor<strong>na</strong>lismo como prática<br />
social. Entretanto, o que se toma aqui por estilo?<br />
Erik Nils Enkvist (1974) aborda o estilo como escolha e desvio. O estilo opera<br />
enquanto escolha em três níveis: <strong>na</strong> gramática, em termos estilísticos e em termos não-<br />
estilísticos. Isto é, quan<strong>do</strong> se escreve, a escolha de uma construção gramatical em<br />
detrimento de outra ajuda a marcar um estilo de texto. Claro que há limitações neste<br />
primeiro nível, principalmente quanto às regras da língua, a correção de seu uso e<br />
aplicação, bem como a inteligibilidade <strong>do</strong>s enuncia<strong>do</strong>s que se quer lançar adiante.<br />
Mas se é fácil identificar tais opções <strong>na</strong> superfície da língua, <strong>na</strong> sua pele<br />
gramatical, <strong>na</strong>s outras camadas, resulta mais complica<strong>do</strong>, adverte o próprio Enkvist.<br />
Mesmo assim, ele arrisca uma distinção: à primeira vista, uma escolha estilística se dé<br />
entre “coisas que dificilmente significam o mesmo, ao passo que escolha não estilística
envolve seleção entre significa<strong>do</strong>s diferentes” (op.cit.: 34). Assim, para dizer o mesmo,<br />
o escritor pode lançar mão de diversos recursos que dêem conta <strong>do</strong> que pretende. “Não<br />
sabia que tu tinhas tantos motivos para não fazê-lo” pode ser dito como “Ignorava que<br />
havia razões para tal”, por exemplo, ou qualquer outra glosa.<br />
A primeira tentação que se pode sucumbir agora é considerar que ter um estilo é<br />
falar um dialeto próprio. Entretanto, entender o estilo como expressão tão somente<br />
individual reserva pelo menos o problema de que alguns traços aponta<strong>do</strong>s como<br />
estilísticos nem sempre são totalmente individuais, e sim coletivos, compartilha<strong>do</strong>s por<br />
grupos. São jargões, gírias ou terminologias técnicas, incorporadas pelo indivíduo.<br />
Desta forma, identificar um estilo tor<strong>na</strong>-se uma tarefa mais trabalhosa <strong>do</strong> que se<br />
supõe inicialmente. Enkvist estabelece que, para isso, deve-se organizar um conjunto de<br />
obras que sirvam de referência para se encontrar a norma da qual um certo texto difere.<br />
Por comparação, pode-se observar o que é expressão individual, estilo propriamente<br />
dito e seguimento de padrão textual.<br />
Toda análise estilística baseia-se fundamentalmente <strong>na</strong> comparação<br />
de um texto a uma norma contextualmente relacio<strong>na</strong>da. Tais normas<br />
podem ser explicitamente circunscritas ou permanecerem<br />
implicitamente encerradas <strong>na</strong> experiência pretérita <strong>do</strong> falante,<br />
escritor ou crítico literário. Uma referência ao contexto tor<strong>na</strong> possível<br />
a definição de uma norma sem referência inicial ao estilo, que ainda<br />
permanece desconhecida a essa altura <strong>do</strong> processo. O presente<br />
enfoque, portanto, evita a circularidade inerente a algumas teorias<br />
de estilo. Os itens lingüísticos dependentes <strong>do</strong> contexto funcio<strong>na</strong>m<br />
como marca<strong>do</strong>res de estilo. Marca<strong>do</strong>res de estilo que ocorram no<br />
mesmo texto formam uma série estilística para esse contexto. Uma<br />
série estilística partilhada por um grande número de textos<br />
contextualmente correlacio<strong>na</strong><strong>do</strong>s forma série estilística maior, que<br />
ocorre dentro de uma escala contextual maior. Os marca<strong>do</strong>res de<br />
estilo consistem em tendências estatísticas ou em itens mutuamente<br />
exclusivos. (op.cit.:71)<br />
Assim, o estilo é desvio, é aquilo que se destaca <strong>do</strong> homogêneo, é diferença.<br />
Contraria o padrão, fazen<strong>do</strong> viger parte de suas regras constituintes. Isto é, um escritor<br />
precisa submeter-se a certos elementos defini<strong>do</strong>res <strong>do</strong> conto para, <strong>na</strong> escritura da<br />
160
história, poder imprimir aquilo que lhe é peculiar, particular, próprio, diferencian<strong>do</strong>-se<br />
<strong>do</strong>s demais contistas. Em “Some effects of motivation as sttyle of encoding” 66 , Charles<br />
Osgood define estilo como “o desvio de um indivíduo de normas para situações em que<br />
ele esteja codifica<strong>do</strong> estan<strong>do</strong> esses desvios <strong>na</strong>s propriedades estatísticas daqueles traços<br />
estruturais para os quais exista algum grau de escolha no seu código”. Seguin<strong>do</strong> esse<br />
entendimento, um jor<strong>na</strong>lista só empreende um estilo <strong>na</strong> <strong>medida</strong> em que encontra<br />
espaços preciosos dentro da estrutura da reportagem para reportar os fatos de uma<br />
maneira característica, sensivelmente diferente da maneira usada por seus colegas. Seu<br />
texto não deixa de ser jor<strong>na</strong>lístico, não ignora seu compromisso de informar, não<br />
contraria a preponderância da fidelidade aos acontecimentos. Mas reporta de uma forma<br />
distinta, diferenciada.<br />
José Lemos Monteiro (1991:12) vai insistir no fato de que todas as acepções <strong>do</strong><br />
termo estilo 67 convergem para o plano da linguagem. É nela que o estilo se realiza. Em<br />
última instância, ele seria “uma forma peculiar de encarar a linguagem com uma<br />
fi<strong>na</strong>lidade expressiva”. Atender a essa fi<strong>na</strong>lidade é, nos dizeres de José G. Herculano de<br />
Carvalho 68 - lançar mão de um conjunto de características formais adequan<strong>do</strong> o<br />
instrumento lingüístico aos propósitos para os quais o texto foi produzi<strong>do</strong>. Com isso,<br />
fica mais claro que ter um estilo não é ape<strong>na</strong>s dizer o que se quer, da forma que bem<br />
entender. Mas, sim, inscrever-se numa ordem <strong>do</strong> discurso, submeter-se a algumas<br />
regras, fazer determi<strong>na</strong>das escolhas de forma, de maneira a afastar-se da norma. É <strong>na</strong><br />
tensão entre atender a norma e se distanciar dela – não perden<strong>do</strong> de vista a adequação<br />
<strong>do</strong> texto à ocasião e ao propósito que lhe deu origem - que se consegue marcar um<br />
estilo, deixar marcas. Vou mais longe: deixar impressões digitais. Quer dizer,<br />
66 Artigo publica<strong>do</strong> em Style in Language e cita<strong>do</strong> por Enkvist à p. 40 da obra que nos serve de referência.<br />
67 Estilo pode ser entendi<strong>do</strong> como elemento idiossincrático (um conjunto de traços próprios da<br />
perso<strong>na</strong>lidade de quem escreve), como técnica expositiva (tu<strong>do</strong> aquilo que ajudaria a tor<strong>na</strong>r o texto<br />
reconhecível e pertencente a alguém) ou como realização literária (execução universal de uma expressão<br />
particular).<br />
161
empreender um estilo é uma manifestação <strong>do</strong> singular, <strong>do</strong> individual, <strong>do</strong> pessoal. É uma<br />
evidência da subjetividade. No Jor<strong>na</strong>lismo, o estilo <strong>do</strong> repórter segue <strong>na</strong> contramão da<br />
<strong>objetividade</strong>, debate-se com o estilo perpetra<strong>do</strong> pelos manuais de redação, que<br />
padronizam e normatizam. O estilo é a peculiaridade <strong>do</strong> conta<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s fatos, a voz de<br />
quem reporta o acontecimento, o sotaque da testemunha da História.<br />
Othon M. Garcia (1985: 103) dirá que o estilo é “tu<strong>do</strong> aquilo que individualiza<br />
obra criada pelo homem, como resulta<strong>do</strong> de um esforço mental, de uma elaboração <strong>do</strong><br />
espírito, traduzi<strong>do</strong> em idéias, imagens ou formas concretas”. No Jor<strong>na</strong>lismo, “a procura<br />
da ênfase através da posição das palavras no texto, nos títulos ou manchetes, constitui<br />
preocupação constante de redatores e repórteres” (op.cit.:265). Mas o estilo jor<strong>na</strong>lístico<br />
não se restringe ape<strong>na</strong>s à fixação de uma sintaxe ou <strong>na</strong> sobrevalorização da clareza<br />
como elemento textual. Na próxima seção, trato disso com mais atenção, mas antes é<br />
necessário alinhavar alguns pontos.<br />
Se o estilo revela um caráter para o texto, é preciso ter em mente que ele pode<br />
ser um des<strong>do</strong>bramento <strong>do</strong> caráter <strong>do</strong> escritor. Ele pode ser. Não necessariamente é. Não<br />
há um compromisso inescapável de sê-lo, mas pode se contagiar pelo autor. O estilo é<br />
uma expressão <strong>do</strong> pessoal, <strong>do</strong> particular, por essa razão é o oposto de qualquer arroubo<br />
de <strong>objetividade</strong> ou neutralidade. Nas ciências e no Jor<strong>na</strong>lismo, essa distinção alcança<br />
bastante relevância porque constitui um franco golpe contra um <strong>do</strong>s pilares mais caros<br />
de suas constituições. Golpeia, mas não derruba. Trinca, provoca fissuras.<br />
Estilo não é o mesmo que <strong>autoria</strong>, mas um subconjunto dela. O estilo é uma<br />
condição de existência da <strong>autoria</strong>, sua forma mais bem acabada de visibilidade e<br />
evidência. Um estilo é um <strong>olhar</strong> manifesto no texto, <strong>na</strong> fotografia, <strong>na</strong>s artes. É um eco<br />
<strong>do</strong> sujeito, resto de uma voz que ecoa e que por vezes se perde. A <strong>autoria</strong> é mais que o<br />
estilo; é o exercício de um estilo. Isto é, para ser autor, é preciso fazer operar um estilo,<br />
68 Teoria da linguagem: <strong>na</strong>tureza <strong>do</strong> fenômeno lingüístico e análise das línguas. Coimbra: Atlântida, 1973<br />
162
fazer funcio<strong>na</strong>r um semblante, um aspecto só seu. Por isso, insisto <strong>na</strong> expressão exercer<br />
um estilo. Porque é um empreendimento, uma iniciativa, uma ação deliberada, resulta<strong>do</strong><br />
de uma vontade, de desejos.<br />
Se o sujeito contemporâneo não é centra<strong>do</strong>, nem é mesmo a origem <strong>do</strong> que fala e<br />
escreve; se ele é uma posição de discurso; se ele é dinâmico e multifaceta<strong>do</strong>, habita<strong>do</strong><br />
por fantasmas; e se a <strong>autoria</strong> lhe é uma função, o estilo é um exercício, uma operação<br />
constituinte dela. O estilo é um gesto consciente de que se pode ser único, de que se<br />
pode ser distinto <strong>do</strong>s demais. Tem correspondência com o sujeito a quem é reconheci<strong>do</strong><br />
porque é resulta<strong>do</strong> de muitas de suas ações.<br />
Escrevi há pouco que o estilo não é o mesmo que a <strong>autoria</strong>, mas um subconjunto<br />
dela. O que significa dizer também que o estilo é a forma como a <strong>autoria</strong> se apresenta,<br />
como se mostra a sua estética e a sua interface gráfica, visual. O que aparenta ser um<br />
elemento único a quem dirige um <strong>olhar</strong> ao produto, seja ele um texto, uma reportagem,<br />
uma obra de arte. Que isso não nos confunda e faça crer que o estilo é uma aura. Pois<br />
não o é. O estilo é um rastro visível, sondável da passagem de um sujeito por alguma<br />
forma de expressão artística ou comunicacio<strong>na</strong>l. Por isso, é que é preciso entender o<br />
estilo como um exercício, uma atitude, enfim, algo a se exercer. Para ser autor, é<br />
necessário marcar um estilo, deixar traços <strong>do</strong> que podem vir a se tor<strong>na</strong>r marcas para<br />
novos padrões. Assim, no Jor<strong>na</strong>lismo, para ser autor <strong>na</strong> reportagem, é preciso que haja<br />
uma preocupação em contar os fatos de maneira não-automatizada, com margens que<br />
permitam reportar os acontecimentos a despeito de qualquer clausura que um manual de<br />
redação de empresa possa impor. Na reportagem, a <strong>autoria</strong> restitui os sujeitos no<br />
processo de comunicação: primeiro porque compreende o leitor como uma instância de<br />
alteridade-complementaridade <strong>na</strong> definição da identidade discursiva de quem escreve;<br />
depois porque resgata o autor como jor<strong>na</strong>lista, <strong>na</strong>rra<strong>do</strong>r da contemporaneidade.<br />
163
Se o sujeito fosse um rosto, a função autor seria seu reflexo no espelho, uma<br />
imagem projetada. Esta superfície de vidro e prata que reflete o rosto é imperfeita, sofre<br />
ação de elementos exteriores e deforma, duplica, contorce a imagem <strong>do</strong> rosto. A função<br />
é uma projeção <strong>do</strong> rosto, um des<strong>do</strong>bramento daquela fisionomia. O rosto também se<br />
move, mobiliza músculos, quase nunca é o mesmo. Avançan<strong>do</strong> <strong>na</strong> metáfora, perceber o<br />
estilo é ver como a imagem refletida no espelho se penteia diante de si. Isto é, o estilo é<br />
como se mostra o pentear, como a mão se comporta, como os cabelos caem para o la<strong>do</strong>.<br />
Mas e o espelho, o que ele é <strong>na</strong> metáfora? O espelho é o texto, a obra onde se vê a<br />
<strong>autoria</strong> e o estilo, onde eles se imprimem.<br />
164
5.5 Estilo e Autoria no Jor<strong>na</strong>lismo<br />
“... este é o momento (<strong>na</strong> história da cultura ocidental)<br />
em que aqueles que buscam a realização por meio <strong>do</strong> papel<br />
não são ape<strong>na</strong>s indivíduos isola<strong>do</strong>s, mas também coletividades:<br />
seminários de estu<strong>do</strong>, grupos operacio<strong>na</strong>is, equipes de pesquisa,<br />
como se o trabalho intelectual fosse demasia<strong>do</strong> desola<strong>do</strong>r<br />
para ser enfrenta<strong>do</strong> solitariamente. A figura <strong>do</strong> autor se tornou plural<br />
e se desloca sempre em grupo, porque ninguém pode<br />
ser delega<strong>do</strong> a representar ninguém...”<br />
Ítalo Calvino – Se um viajante numa noite de inverno<br />
“O autor tem autoridade e o leitor precisa dele não como uma<br />
pessoa, como o outro, como um herói, mas como um princípio<br />
ao qual cumpre adequar-se(...) O autor deve ser compreendi<strong>do</strong>,<br />
acima de tu<strong>do</strong>, a partir <strong>do</strong> acontecimento da obra, em sua<br />
qualidade de participante, de guia autoriza<strong>do</strong> pelo leitor”<br />
Mikhail Bakhtin – Estética da criação verbal<br />
Certamente, é mais fácil identificar <strong>na</strong> literatura ou <strong>na</strong>s artes um estilo, um rosto.<br />
No Jor<strong>na</strong>lismo, uma atividade técnico-profissio<strong>na</strong>l, há menos espaço para manifestações<br />
da subjetividade, graças a alguns <strong>do</strong>s conceitos que se cristalizaram com o tempo e o<br />
aumento da complexidade <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lístico. É evidente que em colu<strong>na</strong>s de jor<strong>na</strong>l e<br />
revista, em programas perso<strong>na</strong>liza<strong>do</strong>s de radiodifusão ou em espaços opi<strong>na</strong>tivos –<br />
inclusive as charges -, fica mais níti<strong>do</strong> perceber as marcas de uma perso<strong>na</strong>lidade, de<br />
uma certa subjetividade. Entretanto, <strong>na</strong> maioria <strong>do</strong>s produtos jor<strong>na</strong>lísticos ofereci<strong>do</strong>s ao<br />
público, existe uma tentativa deliberada de calar os sujeitos que reportam em detrimento<br />
de uma suposta possibilidade de os fatos falarem por si mesmos. Nas redações, nos<br />
estúdios e <strong>na</strong>s ruas, o repórter deve desaparecer em nome da notícia. Para isso, criaram-<br />
se procedimentos técnicos, justificativas éticas e mesmo desculpas estéticas para a busca<br />
<strong>do</strong> que se convencionou chamar de <strong>objetividade</strong> jor<strong>na</strong>lística. Assim, desenvolveu-se o<br />
Jor<strong>na</strong>lismo <strong>na</strong>s grandes praças mundiais – e por extensão, o brasileiro.<br />
Os apóstolos dessa orientação têm razão quan<strong>do</strong> afirmam que a notícia é mais<br />
importante <strong>do</strong> que seu <strong>na</strong>rra<strong>do</strong>r. Entretanto, não se pode esconder o fato de que notícias<br />
são relatos sobre coisas, situações e pessoas feitos por pessoas inseridas em contextos<br />
históricos. Mais: não se pode ignorar que Jor<strong>na</strong>lismo e comunicação são atividades e<br />
165
processos sociais, envolven<strong>do</strong> sujeitos históricos. Esse argumento isola<strong>do</strong> já traria boa<br />
carga de munição num debate acerca da <strong>objetividade</strong>, mas prefiro não retor<strong>na</strong>r às<br />
discussões <strong>do</strong> Capítulo 2. Interessa agora mapear como o estilo é entendi<strong>do</strong> no<br />
Jor<strong>na</strong>lismo, como se manifesta e sob quais circunstâncias permite a inscrição de uma<br />
<strong>autoria</strong> <strong>na</strong> reportagem.<br />
A primeira parada obrigatória é o ensaio de Alceu Amoroso Lima onde se<br />
ilumi<strong>na</strong> o Jor<strong>na</strong>lismo como gênero literário distinto de seus parentes e contraparentes da<br />
literatura. Um gênero literário “é um tipo de construção estética determi<strong>na</strong>da por um<br />
conjunto de disposições interiores em que se distribuem as obras segun<strong>do</strong> as suas<br />
afinidades intrínsecas e extrínsecas” (1990:33). O Jor<strong>na</strong>lismo reuniria um conjunto de<br />
aspectos de uma constituição única o que o credenciaria a uma condição de gênero<br />
específico. O primeiro traço de distinção <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo é o apego pela informação,<br />
afirma o ensaísta. A formação da opinião pública, a atualidade e a <strong>objetividade</strong> seriam<br />
outras características desse gênero.<br />
A <strong>objetividade</strong> é outro traço <strong>na</strong>tural <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo, como gênero<br />
literário. O importante é manter o contato com o fato. Tu<strong>do</strong> mais<br />
deriva daí: a informação <strong>do</strong> fato; a informação pelo fato; a<br />
atualidade <strong>do</strong> fato; o estilo determi<strong>na</strong><strong>do</strong> pelo fato. O fato, o<br />
acontecimento é a <strong>medida</strong> <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista (op.cit.: 65).<br />
Entenda-se, então, <strong>objetividade</strong> como foco nos objetos, <strong>na</strong>s coisas, <strong>na</strong>s situações<br />
exteriores ao <strong>na</strong>rra<strong>do</strong>r. A <strong>objetividade</strong> de Alceu Amoroso Lima é uma preocupação <strong>do</strong><br />
profissio<strong>na</strong>l que tem por devir repassar à sociedade o que acontece no mun<strong>do</strong>. Tal<br />
<strong>objetividade</strong> junto às demais qualidades já mencio<strong>na</strong>das determi<strong>na</strong>riam os elementos<br />
forma<strong>do</strong>res de um estilo jor<strong>na</strong>lístico, dirá o autor. Este é condição prelimi<strong>na</strong>r para um<br />
estilo <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista. Entretanto, o profissio<strong>na</strong>l deve atender ao primeiro para que possa<br />
manifestar o segun<strong>do</strong>. Para Amoroso Lima, o estilo é conseqüência e não causa, e<br />
melhora à <strong>medida</strong> que deixa o plano consciente para um “substrato da perso<strong>na</strong>lidade”.<br />
166
Logo, o estilo é um mo<strong>do</strong> de ser e não algo em si mesmo. A concepção tem acento<br />
<strong>na</strong>turalista, quase biológica, pode-se perceber.<br />
Numa oposição ao beletrismo ou mesmo às experimentações literárias, o estilo<br />
jor<strong>na</strong>lístico estaria fortemente marca<strong>do</strong> por um sotaque coloquial, cotidiano, comum.<br />
O estilo comum precede o estilo próprio. É uma preparação para<br />
aquele. E é uma das justificativas da existência de gêneros literários e<br />
não de sua fusão num gênero único (...) É o estilo comum que exige<br />
<strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista precisão de termos (...) O verbo preciso será sempre a<br />
exigência comum <strong>do</strong> estilo jor<strong>na</strong>lístico. É preciso que a palavra<br />
corresponda ao fato e seja o mais transparente possível,<br />
precisamente para revelar e não esconder o fato (...) Mas um<br />
jor<strong>na</strong>lista, mesmo que o seu objeto seja impreciso, tem de ser preciso<br />
em seu estilo (...) A concisão é uma conseqüência da precisão. O<br />
mo<strong>do</strong> melhor de ser preciso é ser conciso: empregar o menor<br />
número de palavras, embora sempre as palavras mais adequadas.<br />
Não é qualidade específica <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista. Mas o é <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo<br />
(idem: 68).<br />
Assim, o estilo jor<strong>na</strong>lístico está a serviço <strong>do</strong> compromisso de informar. Para<br />
Amoroso Lima, o bom profissio<strong>na</strong>l escreve rápi<strong>do</strong> – porque deve se ater ao<br />
acontecimento <strong>do</strong> dia -, escreve com precisão e de maneira concisa – para informar com<br />
exatidão -, <strong>na</strong>rra com clareza – porque precisa dissemi<strong>na</strong>r a informação ao máximo - e<br />
forma a opinião pública com honestidade.<br />
Resumin<strong>do</strong>: o estilo jor<strong>na</strong>lístico se pauta por rapidez, concisão, clareza, exatidão<br />
e cultura geral, atributos racio<strong>na</strong>is que conformam a atividade sob o que o autor chama<br />
de “têmpera intelectualista”. O jor<strong>na</strong>lista dissipa a confusão <strong>na</strong> <strong>medida</strong> em que traz a<br />
informação; coloca ordem no caos informativo; ele organiza os fatos em manchetes por<br />
sua relevância e alcance, ineditismo e atualidade.<br />
O Jor<strong>na</strong>lismo é uma atividade racio<strong>na</strong>l, que permite o sentimento, mas determi<strong>na</strong><br />
que a inteligência <strong>do</strong>mine a emoção (69-70). Mas como disse o autor, o estilo comum é<br />
condição que antecede o exercício de um estilo pessoal:<br />
167
Se o estilo comum <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo exige certas condições intrínsecas e<br />
rigorosas, já o estilo próprio admite, como sempre, a máxima<br />
liberdade. Preenchidas as condições comuns – precisão, concisão,<br />
clareza, cultura – então a liberdade, em vez de ser condicio<strong>na</strong>da<br />
pelo gênero, é uma exigência dele mesmo e da condição <strong>do</strong><br />
próprio jor<strong>na</strong>lista, que é um artista como outro qualquer. Essa<br />
característica <strong>do</strong> estilo próprio passa então a ser a própria afirmação<br />
da perso<strong>na</strong>lidade, aquilo que faz com que um jor<strong>na</strong>lista seja<br />
diferente <strong>do</strong> outro e constitua o seu mun<strong>do</strong> à parte, o seu estilo<br />
próprio. (...)<br />
A afirmação da perso<strong>na</strong>lidade pelo estilo é, pois, a exigência<br />
máxima <strong>do</strong> verdadeiro jor<strong>na</strong>lista. E, neste terreno, cada qual é o seu<br />
próprio guia. Se o jor<strong>na</strong>lista, preocupa<strong>do</strong> demais com o estilo comum<br />
da profissão, deixar <strong>na</strong> sombra o seu estilo próprio, terá falha<strong>do</strong>,<br />
como falhará aquele que sacrificar o comum ao próprio. Um não<br />
entrará, sequer, no recinto. O outro, dele sairá... (71-72)<br />
É <strong>na</strong> satisfação <strong>do</strong> estilo comum <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo que o repórter encontra espaço e<br />
condições para manifestar sua maneira de reportar os acontecimentos. Insisto aqui:<br />
referimo-nos até então à reportagem, ao material noticioso e não ao opi<strong>na</strong>tivo. Como as<br />
modalidades textuais <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo opi<strong>na</strong>tivo são a expressão de pontos de vista<br />
pessoais ou coletivos, como elas se concentram <strong>na</strong> tomada de parti<strong>do</strong>s e <strong>na</strong> difusão de<br />
idéias (em detrimento de relatos de fatos), o exercício <strong>do</strong> estilo no Jor<strong>na</strong>lismo opi<strong>na</strong>tivo<br />
segue outras regras que não me interessam neste estu<strong>do</strong>. Trata-se aqui ape<strong>na</strong>s da <strong>autoria</strong><br />
e <strong>do</strong> exercício <strong>do</strong> estilo <strong>na</strong> reportagem jor<strong>na</strong>lística.<br />
Para Juarez Bahia, a reportagem “só se esgota no des<strong>do</strong>bramento, <strong>na</strong><br />
pormenorização, no amplo relato <strong>do</strong>s fatos. O salto da notícia para a reportagem se dá<br />
no momento em que é preciso ir além da notificação” (1990:49). Assim, é <strong>na</strong><br />
reportagem que o ato de <strong>na</strong>rrar irá encontrar no sujeito <strong>na</strong>rra<strong>do</strong>r a sua sustentação maior,<br />
o suporte que vai dar ao relato a força, o envolvimento e o alcance das grandes histórias.<br />
O detalhamento das situações, os questio<strong>na</strong>mentos pertinentes e a interpretação dão ao<br />
texto “uma nova dimensão <strong>na</strong>rrativa e ética”.<br />
Na reportagem e no Jor<strong>na</strong>lismo, estilo se remete à forma de escrita, mas também<br />
ao mo<strong>do</strong> de ser <strong>do</strong> veículo de comunicação, lembra Bahia. Estariam em jogo, então, não<br />
168
ape<strong>na</strong>s a linguagem, a perso<strong>na</strong>lidade, o ritmo <strong>do</strong>s textos e as técnicas redacio<strong>na</strong>is, mas<br />
também a angulação das matérias, o lugar de onde se fala. Incidem também aspectos<br />
idiossincráticos, corporativos, ideológicos e influências histórico-contextuais. O estilo<br />
assume um papel diferente <strong>do</strong> desempenha<strong>do</strong> <strong>na</strong> literatura: no Jor<strong>na</strong>lismo, não é uma<br />
qualidade, mas uma necessidade, uma condição para tor<strong>na</strong>r os textos mais legíveis, mais<br />
compreensíveis e – por que não? – mais agradáveis. Por essa razão, o estilo jor<strong>na</strong>lístico<br />
estabelece pontes ligan<strong>do</strong>-se a outros estilos, como o literário, por exemplo. Entretanto,<br />
o estilo jor<strong>na</strong>lístico é próprio<br />
não por ser origi<strong>na</strong>l, e sim por ser a linguagem prática da notícia. Ao<br />
contrário <strong>do</strong> livro e da literatura – no seu senti<strong>do</strong> clássico -, o<br />
Jor<strong>na</strong>lismo não é campo de prova para teorias de estilo. O estilo<br />
jor<strong>na</strong>lístico tem uma dinâmica própria, que é a da linguagem<br />
comum das pessoas adaptada ou traduzida segun<strong>do</strong> normas de<br />
redação que não violam o seu significa<strong>do</strong>. Assim, o lead – que se<br />
insere <strong>na</strong>s mudanças que ocorrem <strong>na</strong> comunicação coletiva desde<br />
a II Guerra Mundial – não exclui definitivamente o <strong>na</strong>riz-de-cera, a<br />
introdução ou a apresentação da matéria. (...) Como padrão de<br />
linguagem, o estilo jor<strong>na</strong>lístico se aperfeiçoa beneficia<strong>do</strong> pela<br />
energia e di<strong>na</strong>mismo <strong>do</strong>s meios, e mais rapidamente que o estilo<br />
literário, por exemplo. (op.cit.: 83)<br />
Na compreensão de Juarez Bahia, os veículos não devem aprisio<strong>na</strong>r os<br />
repórteres em camisas-de-força estilísticas, mas as restrições editoriais se justificariam<br />
nos casos de abusos da linguagem, vícios e imprecisões que comprometam o produto<br />
jor<strong>na</strong>lístico. “A racio<strong>na</strong>lização e a padronização no estilo <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo <strong>na</strong>da mais<br />
representam que uma orde<strong>na</strong>ção de critérios básicos, sem os quais práticas rotineiras da<br />
informação ficariam confusas, redundantes ou rui<strong>do</strong>sas” (idem: 84-5). As normas<br />
fixadas para a redação têm por objetivo alcançar uma unidade no produto polifônico,<br />
garantir legibilidade aos textos e dar ao veículo uma identidade discursiva.<br />
Poder-se-ia até concordar com as prescrições <strong>do</strong> autor caso as empresas<br />
jor<strong>na</strong>lísticas – pelo menos as maiores no merca<strong>do</strong> brasileiro – mantivessem essas<br />
preocupações no foco de seus manuais. E caso os resulta<strong>do</strong>s da eficácia dessas novas<br />
169
gramáticas jor<strong>na</strong>lísticas não sacrificassem a diversidade textual e não tolhessem a<br />
criatividade <strong>do</strong>s <strong>na</strong>rra<strong>do</strong>res. O que se percebe <strong>na</strong>s últimas duas décadas é que o texto<br />
jor<strong>na</strong>lístico <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l automatizou-se, encolhen<strong>do</strong> em conteú<strong>do</strong> e empobrecen<strong>do</strong> <strong>na</strong><br />
diversidade de sua forma de apresentação.<br />
Uma olhadela nos manuais de redação e estilo mostra que eles não ape<strong>na</strong>s<br />
orientam procedimentos internos e unificam a grafia de expressões, mas tentam<br />
padronizar os textos, sugan<strong>do</strong>-lhes a identidade, cobrin<strong>do</strong>-nos com um manto de<br />
homogeneidade 69 . Uma edição de Veja, por exemplo, pode ser lida como se fosse escrita<br />
por um único redator <strong>do</strong> início ao fim. Claros prejuízos à qualidade <strong>do</strong> texto, já que a<br />
polifonia constituinte <strong>do</strong> discurso jor<strong>na</strong>lístico se esvai, a origi<strong>na</strong>lidade é cerceada e até<br />
mesmo o prazer da leitura pode ser sufoca<strong>do</strong>.<br />
Apesar dessas conseqüências, a sétima edição <strong>do</strong> Novo Manual da Redação, da<br />
Folha de S.Paulo, por exemplo, coloca-se como a mais flexível já editada e com menos<br />
prescritivismos. Mesmo assim, segue os passos da<strong>do</strong>s em seu surgimento em 1984,<br />
trazen<strong>do</strong> não só regras de estilo, mas uma “uma concepção de jor<strong>na</strong>l” (1992:7). A<br />
flexibilidade alardeada pode ser observada, por exemplo, no verbete Objetividade. Se<br />
nos anos 80, o manual orientava que os repórteres da Folha perseguissem a <strong>objetividade</strong><br />
em seus textos, agora, o volume é enfático em negar sua existência (op.cit.:19).<br />
O manual <strong>do</strong> concorrente - O Esta<strong>do</strong> de S.Paulo – nega que sua função seja<br />
tolher a criatividade <strong>do</strong>s jor<strong>na</strong>listas ou aplicar-lhes impedimentos. “Seu objetivo é claro:<br />
definir princípios que tornem uniforme a edição <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>l” (1990:11), tratan<strong>do</strong> de “todas<br />
as questões de estilo consideradas fundamentais para a obtenção de um texto elegante e<br />
correto”, alertan<strong>do</strong> para “formas pobres ou viciosas de redação”, “redundâncias<br />
69 Jacira Werle Rodrigues (2003) afirma que são poucas as orientações específicas para a reportagem<br />
enquanto gênero. “A grande maioria das normas refletem ditames universais <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lismo, adapta<strong>do</strong>s ao<br />
linguajar, aos termos de cada manual” (p.106). Em seu estu<strong>do</strong>, ela verifica que é possível, mesmo no<br />
jor<strong>na</strong>lismo diário, empreender construções autorais nos textos jor<strong>na</strong>lísticos.<br />
170
compromete<strong>do</strong>ras” e “modismos absolutamente descartáveis” (op.cit.:83). Correção é<br />
um aspecto relativamente fácil de ser aferi<strong>do</strong> no texto, mas elegância é algo de fácil e<br />
imediata apreensão por to<strong>do</strong>s? Em outras palavras: é possível regulamentar a elegância<br />
textual ou essa credencial é subjetiva e, portanto, exterior a qualquer manual de estilo?<br />
[Nas revistas da Editora Abril, o mesmo problema pode ser identifica<strong>do</strong>. No manual da<br />
empresa (1990), “um texto não precisa de muito mais <strong>do</strong> que isso para ser li<strong>do</strong> com<br />
prazer”: clareza <strong>na</strong> linguagem, precisão <strong>na</strong>s informações e bom gosto. Que critérios<br />
palpáveis determi<strong>na</strong>m se um texto tem bom gosto ou não?]<br />
Luiz Garcia (1992), que organizou o manual de O Globo, lembra que os<br />
primeiros trabalhos brasileiros dessa <strong>na</strong>tureza surgiram nos anos 50 no Rio de Janeiro.<br />
Muito inspira<strong>do</strong>s nos style books norte-americanos, esses primeiros manuais chegaram<br />
às redações <strong>do</strong> Diário Carioca e da Tribu<strong>na</strong> da Imprensa pelas mãos de <strong>do</strong>is jor<strong>na</strong>listas<br />
muito preocupa<strong>do</strong>s com a modernização (leia-se racio<strong>na</strong>lização) <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo local:<br />
Pompeu de Souza e Carlos Lacerda, respectivamente. Passa<strong>do</strong> meio século, os manuais<br />
se multiplicaram <strong>na</strong>s estantes, não se limitaram ape<strong>na</strong>s às redações e migraram também<br />
para as livrarias, e o prescritivismo não só aumentou como também a arrogância <strong>na</strong><br />
avaliação de seus papéis. O manual da Zero Hora, por exemplo, não dita ape<strong>na</strong>s regras<br />
de redação e de estilo, mas também de ética jor<strong>na</strong>lística. Nas orientações para a escrita,<br />
extensivas a to<strong>do</strong>s os jor<strong>na</strong>is <strong>do</strong> Grupo RBS, o estilo <strong>do</strong>s textos deve se pautar pela<br />
elegância (mais uma vez?) e precisão. Não ape<strong>na</strong>s um conjunto de regras, o manual<br />
alcança status de obra de referência: “Os capítulos reserva<strong>do</strong>s a normas de redação e<br />
estilo não substituem o dicionário. Mas talvez sejam seu perfeito complemento”, afirma<br />
entusiasticamente Augusto Nunes <strong>na</strong> apresentação <strong>do</strong> livro (1994: 9).<br />
Embora haja um descolamento entre o que Juarez Bahia preconizou sobre os<br />
manuais e a realidade que eles ensejam, as preocupações <strong>do</strong> autor permanecem: os<br />
171
manuais das empresas não devem servir de camisas-de-força, mas são úteis <strong>na</strong><br />
unificação de alguns padrões gráficos e editoriais de jor<strong>na</strong>is e revistas. Mas note-se:<br />
padrões são diferentes de fórmulas. Os primeiros orientam, diferentes das fórmulas que<br />
formatam, determi<strong>na</strong>m, fecham-se enquanto únicos valores em vigor.<br />
Juarez Bahia voltará à questão para dizer que, enquanto uma representação que<br />
se pretende fiel à realidade, o estilo <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo está mais para uma literatura não-<br />
ficcio<strong>na</strong>l <strong>do</strong> que literatura no senti<strong>do</strong> clássico:<br />
Não é a supra-realidade que interessa ao Jor<strong>na</strong>lismo, e sim a<br />
precisão verificável. Portanto, o que compõe a linguagem <strong>do</strong><br />
Jor<strong>na</strong>lismo como cultura de massa é o precisável, o avaliável, o<br />
níti<strong>do</strong>, o referenciável, o concreto sobre o abstrato, o direto sobre o<br />
figura<strong>do</strong>, a ênfase <strong>do</strong> fato e <strong>do</strong> ato sobre a metáfora e da repetição.<br />
Essa precedência <strong>do</strong> real sobre o supra-real está no estilo <strong>do</strong><br />
Jor<strong>na</strong>lismo, no seu espírito (1990:91).<br />
Tal qual os manuais de redação e estilo, o lead é cria<strong>do</strong> para oferecer um padrão<br />
racio<strong>na</strong>l das informações que precisam ser repassadas. É um sistema que funcio<strong>na</strong> <strong>na</strong>s<br />
notícias breves, nos anúncios mais imediatos. Entretanto, esvazia-se quan<strong>do</strong> o relato vai<br />
além <strong>do</strong> comunica<strong>do</strong> <strong>do</strong> acontecimento ou é insuficiente quan<strong>do</strong> a história carece de<br />
uma <strong>na</strong>rrativa mais complexa, mais imagi<strong>na</strong>tiva e origi<strong>na</strong>l. O lead é útil, mas deve ser<br />
encara<strong>do</strong> como padrão e não fórmula. Serve a alguns propósitos, assim como <strong>na</strong>riz de<br />
cera serve a outros. São formas de textualidade, recursos que podem ser lança<strong>do</strong>s no<br />
texto se adequa<strong>do</strong>s à ocasião e se não corrompi<strong>do</strong>s em seu uso. “O estilo de notícia mais<br />
livre <strong>do</strong> que o lead não exclui seriedade, densidade e relevância”, escreveu Bahia<br />
(op.cit.: 91). Renunciar a um em detrimento <strong>do</strong> outro é uma questão de adequação, de<br />
eficiência, de bom funcio<strong>na</strong>mento textual. Enfim, uma questão de estilo.<br />
Voltamos à temática da escolha. O estilo como escolha e como desvio da norma.<br />
Se ele é, então, uma expressão individual, no Jor<strong>na</strong>lismo, também carrega as<br />
características de um veículo de comunicação e os elementos de uma tradição textual.<br />
172
Segun<strong>do</strong> Sérgio Villas Boas, no Jor<strong>na</strong>lismo, estilo é o homem, mas também o veículo.<br />
Cada jor<strong>na</strong>l ou revista tem lá “o seu estilo, seu mo<strong>do</strong> de ser, sua linguagem. Não raro,<br />
esta linguagem é definida pelo tipo de leitor que se quer atingir” (1996:39).<br />
Dito isso, é trazi<strong>do</strong> à ce<strong>na</strong> mais uma vez o leitor, o público, o sujeito que está <strong>na</strong><br />
ponta da cadeia informativa. Volta à ce<strong>na</strong> o sujeito que consome informação, o que nos<br />
faz lembrar que o processo comunicativo é feito por sujeitos e não meramente por<br />
manuais ou corporações midiáticas, leads ou normas editoriais. A comunicação, e em<br />
especial o Jor<strong>na</strong>lismo, envolve sujeitos que consomem informações e sujeitos que as<br />
produzem e as dissemi<strong>na</strong>m. Por mais que se tente, não é possível fazer desaparecer os<br />
sujeitos dessa equação. Por <strong>na</strong>tureza, a atividade é huma<strong>na</strong> e não pode prescindir <strong>do</strong>s<br />
elos que a compõem. A cada tentativa de matar o autor, mais o estilo se afirma como<br />
um eco da voz <strong>do</strong> cria<strong>do</strong>r. Não só <strong>na</strong> literatura, mas também no Jor<strong>na</strong>lismo. Há tempos<br />
se alardeia o fim da grande reportagem, mas ela resiste, mantém-se como um gênero<br />
nobre, embora com espaços menos generosos que décadas atrás. Mesmo assim, continua<br />
despertan<strong>do</strong> o interesse <strong>do</strong> público e de valiosa parte <strong>do</strong>s jor<strong>na</strong>listas. Mesmo apesar da<br />
crise anunciada, a reportagem sobrevive até mesmo nos setores mais conserva<strong>do</strong>res da<br />
mídia. Pensar a <strong>autoria</strong> <strong>na</strong> reportagem é refletir sobre as condições em que se faz<br />
Jor<strong>na</strong>lismo atualmente; é aferir como se constituem hoje o Jor<strong>na</strong>lismo e a profissão de<br />
repórter; é, de alguma maneira, não aceitar passivamente o desaparecimento <strong>do</strong> sujeito<br />
numa atividade essencialmente huma<strong>na</strong>.<br />
173
5. 6 A <strong>na</strong>rrativa da contemporaneidade<br />
“As redações são laboratórios assépticos para <strong>na</strong>vegantes solidários,<br />
onde parece mais fácil comunicar-se com os fenômenos siderais<br />
<strong>do</strong> que com o coração <strong>do</strong>s leitores. A desumanização é galopante"<br />
Gabriel García Márquez, escritor e jor<strong>na</strong>lista colombiano<br />
“Há uma padronização absolutamente i<strong>na</strong>ceitável. Tu<strong>do</strong> é igual,<br />
as variações são mínimas. Falta perso<strong>na</strong>lidade. Cada matéria<br />
deve ter o seu espírito. (...) Acho que é preciso uma nova reforma.<br />
A que fiz transformou-se em fórmula e automatizou-se "<br />
Pompeu de Souza,introdutor <strong>do</strong> lead no Jor<strong>na</strong>lismo brasileiro<br />
As tentativas de apagamento <strong>do</strong> sujeito no Jor<strong>na</strong>lismo funcio<strong>na</strong>m como sintoma<br />
de um amplo processo de desumanização contemporânea. A pretexto da pressa e <strong>do</strong><br />
pouco tempo, os indivíduos estabelecem vínculos frágeis em suas relações, priorizam as<br />
demandas pessoais e esquivam-se de projetos solidários e coletivos. Nos hospitais, os<br />
pacientes são números anota<strong>do</strong>s nos prontuários médicos; <strong>na</strong>s repartições publicas, são<br />
senhas de atendimento; nos exames vestibulares, são números de inscrição; <strong>na</strong>s<br />
redações, poucas vezes, as pessoas são algo mais <strong>do</strong> que cifras e estatísticas.<br />
Para retomar o percurso que contemple o humano, a <strong>na</strong>rrativa mudar. E deve<br />
insistir no “compromisso com o humano ser”, afirma Dimas Künsch. Com isso,<br />
a renúncia à reportagem, por parte da imprensa de qualquer<br />
tamanho, representa a resposta o menos adequada possível aos<br />
desafios impostos pela necessidade de uma visão de mun<strong>do</strong> e de<br />
uma epistemologia aberta à complexidade aos encantos e mistérios<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Dentro e fora <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo. A vida e o mun<strong>do</strong> não se<br />
cansam de mostrar que não cabem em, nem suportam, uma<br />
pirâmide invertida. (2000:294)<br />
Precisa mudar a <strong>na</strong>rrativa e, antes dela, a mediação. Cremilda Medi<strong>na</strong> insiste no<br />
que denomi<strong>na</strong> Epistemologia Pragmática, terreno de compreensão que articula<br />
realidade huma<strong>na</strong> e meio ambiente humaniza<strong>do</strong>. “Quan<strong>do</strong> um saber especializa<strong>do</strong> se dá<br />
conta das condições sociais e huma<strong>na</strong>s em que este saber se realiza, não há como evitar<br />
a crise de degenerescência e a conseqüente ruptura com a gramática construída em torno<br />
das técnicas e das tecnologias assépticas” (1994:179). A crise com o pré-estabeleci<strong>do</strong><br />
174
esulta numa nova consciência que respeita e cruza não só os saberes<br />
institucio<strong>na</strong>liza<strong>do</strong>s, como também os conhecimentos cotidianos, míticos, artísticos e<br />
religiosos. Assim, a Ciência deixa o centro <strong>do</strong> saber humano e se desloca para um pátio<br />
mais amplo onde se relacio<strong>na</strong> com outros saberes. O jor<strong>na</strong>lista que cobre eventos<br />
científicos deixa de fazer divulgação para operar a relação entre diversidade de<br />
conhecimentos existentes. O saber se assume plural provocan<strong>do</strong> novas mediações.<br />
Caminho <strong>na</strong>tural se considerarmos o jor<strong>na</strong>lista um produtor de senti<strong>do</strong>s atuante<br />
<strong>na</strong> malha cultural da sociedade, como já definiu Medi<strong>na</strong> (1991:193). Nesta condição, o<br />
media<strong>do</strong>r-produtor de senti<strong>do</strong>s age como um “sujeito em relação com os sujeitos-fontes<br />
de informação e os sujeitos frui<strong>do</strong>res de informação” (196). Esta reconfiguração desloca<br />
o jor<strong>na</strong>lista da posição de força primeira da produção de senti<strong>do</strong>s para um lugar que se<br />
assemelha a um nó da teia informativa. Uma Epistemologia Pragmática corrói a<br />
estrutura estratificada que impõe pautas e <strong>na</strong>rrativas, dan<strong>do</strong> espaço para uma disposição<br />
mais democrática, respeita<strong>do</strong>ra da diferença, relacio<strong>na</strong><strong>do</strong>ra. A monologia é substituída<br />
pela dialogia. Deixamos o esquema arborescente para assumir o rizomático 70 .<br />
A escolha demanda um retorno reflexivo à <strong>na</strong>rrativa. Medi<strong>na</strong> lembra que uma<br />
definição simples é a de que <strong>na</strong>rrativa é “uma das respostas huma<strong>na</strong>s diante <strong>do</strong> caos”.<br />
Dotada da capacidade de produzir senti<strong>do</strong>s, ao <strong>na</strong>rrar o mun<strong>do</strong>, a<br />
inteligência huma<strong>na</strong> organiza o caos em um cosmos. O que se diz da<br />
realidade constitui outra realidade, a simbólica. Sem essa produção<br />
cultural – a <strong>na</strong>rrativa – o humano ser não se expressa, não se afirma<br />
perante a desorganização e as inviabilidades da vida. Mais <strong>do</strong> que<br />
talento de alguns, poder <strong>na</strong>rrar é uma necessidade vital. (...) Ao se<br />
dizer, o autor se assi<strong>na</strong> como humano com perso<strong>na</strong>lidade; ao<br />
desejar contar a história social da atualidade, o jor<strong>na</strong>lista cria uma<br />
marca media<strong>do</strong>ra que articula as histórias fragmentadas; ao traçar a<br />
poética intimista, que aflora <strong>do</strong> seu e <strong>do</strong> inconsciente <strong>do</strong>s<br />
contemporâneos, o artista conta a história <strong>do</strong>s desejos. Da<br />
perspectiva individual, sociocomunicacio<strong>na</strong>l ou artística, a produção<br />
simbólica oxige<strong>na</strong> os impasses <strong>do</strong> caos, da entropia, das<br />
desesperanças, e sonha com um cosmos dinâmico, emancipatório<br />
(2003:47-48)<br />
175
Para ultrapassar os escaninhos classifica<strong>do</strong>res da sociedade pós-moder<strong>na</strong>, só<br />
mesmo tecen<strong>do</strong> uma <strong>na</strong>rrativa contemporânea que se alimente <strong>na</strong> mediação e <strong>na</strong> <strong>autoria</strong>.<br />
A assi<strong>na</strong>tura <strong>do</strong> autor atesta o pertencimento da obra, mas também denuncia em tom de<br />
sussurro um lugar cultural de fala. O autor (o repórter) <strong>na</strong>rra mergulha<strong>do</strong> no cal<strong>do</strong><br />
cultural de seu tempo. Quan<strong>do</strong> lança seus relatos encontra <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> leitores também<br />
autores. “O que parece fragmenta<strong>do</strong> pode ser reteci<strong>do</strong> <strong>na</strong> comunicação social”, conclui<br />
Medi<strong>na</strong> (op.cit.:143).<br />
Como <strong>na</strong>rrar é a questão, adverte Fer<strong>na</strong>n<strong>do</strong> Resende (2002), já que é no texto<br />
que a mediação se processa. A preocupação é com o que chama de “<strong>na</strong>rrativas<br />
jor<strong>na</strong>lísticas demasiadamente atrofiadas” – textos saí<strong>do</strong>s de formas, reducionistas,<br />
resulta<strong>do</strong>s de uma prática reduzida à técnica. Para Resende, refletir sobre a <strong>na</strong>rrativa é<br />
encarar o ato jor<strong>na</strong>lístico como prática discursiva, o que permite pensar o Jor<strong>na</strong>lismo<br />
como um campo, onde sujeitos <strong>na</strong>rram a outros sujeitos. É justamente o oposto <strong>do</strong> que<br />
propôs a construção histórica <strong>do</strong> discurso jor<strong>na</strong>lístico, que suprimia a figura <strong>do</strong> <strong>na</strong>rra<strong>do</strong>r.<br />
Prevalece o sujeito da enunciação (que já nem mais sabe se é<br />
jor<strong>na</strong>lista ou a empresa em que trabalha), alguém que escreve, mas<br />
não fala. Como no romance realista <strong>do</strong> século XVIII, em que o autor<br />
“comporta-se, por vezes, como um deus sem corpo e sem culto e<br />
autoritariamente exige fé no seu testemunho”. Nas <strong>na</strong>rrativas<br />
jor<strong>na</strong>lísticas traçadas pelo texto das lógicas, somos priva<strong>do</strong>s <strong>do</strong><br />
contato com o sujeito <strong>do</strong> enuncia<strong>do</strong>. Como mostra a história <strong>do</strong><br />
romance, esse fator impõe a condição de se aceitar a onisciência<br />
<strong>do</strong> sujeito da enunciação, o que, no caso <strong>do</strong> discurso jor<strong>na</strong>lístico, é<br />
uma imposição raramente possível de se acatar, devi<strong>do</strong> mesmo às<br />
questões ideológicas e políticas amplamente vistas e estudadas no<br />
campo <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo. A privação cria o para<strong>do</strong>xo: como acreditar<br />
<strong>na</strong> onisciência de quem, <strong>na</strong> verdade, é destituí<strong>do</strong> da fala?<br />
Se há <strong>na</strong>rrativas atrofiadas no Jor<strong>na</strong>lismo, também existem as que Resende<br />
qualifica de “resistência”. Esses relatos servem de “provas” de que o <strong>na</strong>rra<strong>do</strong>r-jor<strong>na</strong>lista<br />
“é um lugar possível através <strong>do</strong> qual se pode pensar <strong>na</strong> existência de jor<strong>na</strong>listas (reais)<br />
70 Empresto a metáfora <strong>do</strong>s mil platôs de Deleuze & Guattari (1995).<br />
176
que possam e saibam construir <strong>na</strong>rrativas”. Esse <strong>na</strong>rra<strong>do</strong>r que abre mão das fórmulas<br />
para <strong>na</strong>rrar numa outra perspectiva é o que me interessa aqui. Ele não só lança um <strong>olhar</strong><br />
diferencia<strong>do</strong> para o fato, mas também recebe sua imagem e tece-lhe uma trama com<br />
novos pontos e nós. Como se faz um autor no Jor<strong>na</strong>lismo? De que maneira a <strong>autoria</strong> se<br />
manifesta <strong>na</strong> reportagem? Em que circunstâncias a <strong>na</strong>rrativa da contemporaneidade se<br />
efetiva? Estas são questões que passo a perseguir agora.<br />
177
5.7 Condições para uma <strong>autoria</strong> <strong>na</strong> reportagem<br />
“Como eu escreveria bem se não existisse!<br />
Se entre a folha branca e a efervescência das palavras<br />
e das histórias que tomam forma e se desvanecem sem que<br />
ninguém as escreva não se interpusesse o incômo<strong>do</strong> tabique<br />
que é minha pessoa! O estilo, o gosto, a filosofia, a subjetividade<br />
, a formação cultural, a experiência de vida, a psicologia, o talento,<br />
os truques <strong>do</strong> ofício: to<strong>do</strong>s os elementos que tor<strong>na</strong>m reconhecível<br />
como meu aquilo que escrevo me parecem uma jaula<br />
que limita minhas possibilidades. Se eu fosse ape<strong>na</strong>s uma mão decepada<br />
que empunha a pe<strong>na</strong> e escreve... Mas o que moveria essa mão?”<br />
Ítalo Calvino – Se um viajante numa noite de inverno<br />
A <strong>autoria</strong> é uma função da posição de sujeito. Quer dizer, não há um sujeito<br />
centra<strong>do</strong>, monolítico, bem como a figura <strong>do</strong> autor não corresponde necessariamente à da<br />
pessoa cujo nome assi<strong>na</strong> a obra. Mais <strong>do</strong> que uma coisa em si, o sujeito é uma posição<br />
de discurso a ser ocupada, um lugar de onde se diz (se escreve) algo. Como há<br />
movimento <strong>na</strong>s mais diversas discursividades, os sujeitos são posições dinâmicas,<br />
móveis, desloca<strong>do</strong>ras. Uma das funções ativas <strong>na</strong> condição de sujeito é a de autor, de<br />
cria<strong>do</strong>r. Assim, para ser autor, é necessário mobilizar uma série de elementos que<br />
propiciem os requisitos necessários – internos e externos ao sujeito – para ser trata<strong>do</strong> e<br />
entendi<strong>do</strong> como autor.<br />
No Jor<strong>na</strong>lismo, as condições para o exercício de uma <strong>autoria</strong> não são as mesmas<br />
para a literatura ou qualquer outra atividade. Isso porque o Jor<strong>na</strong>lismo dispõe de uma<br />
<strong>na</strong>tureza própria, de características, valores e conceitos constituintes que o tor<strong>na</strong>m algo<br />
distinto de qualquer outro campo de entendimento, atuação e tradução da realidade.<br />
Entretanto, tal como <strong>na</strong> literatura, a <strong>autoria</strong> surge no Jor<strong>na</strong>lismo (e assim se<br />
mantém) como uma instância jurídica, um conjunto articula<strong>do</strong> para a identificação e<br />
responsabilização <strong>do</strong>s pontos de partida de certos textos. Assim, quan<strong>do</strong> alguém assi<strong>na</strong><br />
um livro ou uma matéria de jor<strong>na</strong>l, a sociedade tem a evidência de quem deve responder<br />
por possíveis conseqüências da divulgação daquelas idéias, conceitos, versões. Ao<br />
nomi<strong>na</strong>r o autor, tem-se não ape<strong>na</strong>s o reconhecimento de sua condição de fonte da obra,<br />
mas também a si<strong>na</strong>lização de quem deve receber posteriores contestações e queixas. A<br />
178
assi<strong>na</strong>tura é reconhecimento, é atribuição, mas também traz o ônus da responsabilidade<br />
sobre a obra.<br />
Uma metáfora sempre foi exaustivamente usada quan<strong>do</strong> o assunto é <strong>autoria</strong>: o<br />
autor tem a paternidade da obra, e como tal, deve zelar por seu fruto filial, deve se<br />
responsabilizar por ele. O autor arca com as conseqüências de sua criação. Sejam<br />
dividen<strong>do</strong>s da exploração <strong>do</strong> objeto cria<strong>do</strong> ou sanções e pe<strong>na</strong>lidades advindas da ampla<br />
difusão de algo ofensivo. No Jor<strong>na</strong>lismo, a preocupação com a repercussão da<br />
divulgação de certos textos ou imagens é sempre manifestada, surtin<strong>do</strong> inclusive em<br />
reprimendas judiciais ao veículo de comunicação ou mesmo aos profissio<strong>na</strong>is<br />
envolvi<strong>do</strong>s. Assim, uma primeira característica da <strong>autoria</strong> no Jor<strong>na</strong>lismo: ela é<br />
entendida primeiro como indica<strong>do</strong>r de responsabilidades. Um texto assi<strong>na</strong><strong>do</strong><br />
identifica com mais facilidade sobre quem devem recair cobranças e compensações<br />
sobre prováveis litígios.<br />
É evidente que – diferente de outras atividades de criação intelectual – o<br />
Jor<strong>na</strong>lismo é um campo de trabalho coletivo. Uma reportagem <strong>na</strong>sce pelo esforço de<br />
diversos profissio<strong>na</strong>is, <strong>do</strong> pauteiro ao editor, passan<strong>do</strong> por repórteres, redatores,<br />
ilustra<strong>do</strong>res, fotógrafos e diagrama<strong>do</strong>res. O resulta<strong>do</strong> fi<strong>na</strong>l é um complexo mosaico da<br />
interferência de distintos sujeitos, em maior ou menor escala. Entretanto, convencionou-<br />
se o entendimento de que a paternidade da reportagem é <strong>do</strong> repórter ou <strong>do</strong> redator com<br />
quem dividiu a tessitura <strong>do</strong> texto. A <strong>na</strong>tureza complexa e coletiva <strong>do</strong> trabalho<br />
jor<strong>na</strong>lístico dificulta a clara identificação de quem realmente é o autor da reportagem.<br />
Em 1995, um ano antes de morrer, Perseu Abramo já manifestava preocupação com o<br />
tema: “É tão grande a variedade de fatores e circunstâncias presentes <strong>na</strong> atividade<br />
jor<strong>na</strong>lística que a ple<strong>na</strong> e cristali<strong>na</strong> identificação da <strong>autoria</strong> <strong>do</strong> que é divulga<strong>do</strong> constitui<br />
a exceção, não a regra” (1997: 331).<br />
179
Para a<strong>na</strong>lisar a questão, Abramo exorta que é preciso levar em conta as<br />
diferenças entre o Jor<strong>na</strong>lismo impresso e o feito para radiodifusão; que é necessário<br />
atentar para as condições e o alcance da empresa para qual se está trabalhan<strong>do</strong> e mesmo<br />
os méto<strong>do</strong>s que caracterizam o processo produtivo dentro da empresa. Para tanto,<br />
Abramo faz uma criteriosa descrição das alterações que o produto jor<strong>na</strong>lístico sofre<br />
dentro <strong>do</strong> processo que antecede a sua publicização. Apesar <strong>do</strong>s empecilhos inerentes à<br />
função, não se deve usar o caráter coletivo e difuso como “biombo para escamotear ou<br />
dissolver responsabilidades pessoais e individuais”, reitera (op.cit.: 334). É<br />
precisamente neste trecho que se percebe que a grande preocupação de Perseu Abramo<br />
é a da responsabilidade pessoal sobre o trabalho jor<strong>na</strong>lístico e suas implicações jurídicas<br />
e éticas. Atento às tensões entre capital e trabalho, Abramo defende a tese da<br />
responsabilidade pessoal no trabalho jor<strong>na</strong>lístico a despeito da responsabilidade<br />
sucessiva, que vigora atualmente nos andamentos processuais.<br />
A <strong>autoria</strong>, então, é vista como um sistema de identificação e responsabilização.<br />
A assi<strong>na</strong>tura da reportagem não é a garantia <strong>do</strong> direito i<strong>na</strong>lienável <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista-autor de<br />
ter seu trabalho reconheci<strong>do</strong>. Pode funcio<strong>na</strong>r mais como denúncia, como delação de<br />
quem deve assumir os riscos <strong>do</strong> que foi escrito abaixo 71 .<br />
Uma segunda característica da <strong>autoria</strong> jor<strong>na</strong>lística é que ela se dá não <strong>na</strong> criação<br />
intensiva, maciça, totalizante, como <strong>na</strong> literatura. Na ficção, o autor cria perso<strong>na</strong>gens,<br />
situações, contextos, conflitos, cenários, profundidades psicológicas, sentimentos e<br />
pensamentos. Se assim quiser, <strong>na</strong>da escapa ao autor <strong>na</strong> trama. Ele tem o seu <strong>do</strong>mínio,<br />
seu alcance é ilimita<strong>do</strong>, o tempo é conta<strong>do</strong> pelos seus ponteiros. No Jor<strong>na</strong>lismo, os<br />
compromissos são mais rígi<strong>do</strong>s e o controle não é total. Por conta de suas atribuições<br />
71 Não estou eximin<strong>do</strong> a responsabilidade <strong>do</strong> autor sobre a obra. Pelo contrário: reafirmo isso. Porém, a<br />
<strong>autoria</strong> não acarreta ape<strong>na</strong>s ônus pelo seu exercício. E o que se percebe é que esta dimensão – a da<br />
responsabilização – se mostra hipertrofiada em detrimento da que vê <strong>na</strong> <strong>autoria</strong> um reconhecimento,<br />
atribuição de paternidade criativa. O assento jurídico da <strong>autoria</strong> é reforça<strong>do</strong> inclusive no inciso IV <strong>do</strong> artigo<br />
5º da Constituição Federal: “é livre a manifestação <strong>do</strong> pensamento, sen<strong>do</strong> veda<strong>do</strong> o anonimato”.<br />
180
sociais, o jor<strong>na</strong>lista se ocupa de relatar acontecimentos, <strong>na</strong>rrar fatos mais proximamente<br />
de como eles se deram. Não deve fazer ficção, pois o Jor<strong>na</strong>lismo mantém um<br />
comprometimento mais firme com o que se convencio<strong>na</strong> entender por verdade factual.<br />
Neste senti<strong>do</strong>, o jor<strong>na</strong>lista faz uma antificção, e tenta apreender o real, tocar o fato e<br />
traduzi-lo da maneira mais clara, fiel e confiável ao seu público. O jor<strong>na</strong>lista atua como<br />
media<strong>do</strong>r entre os acontecimentos noticiáveis e os cidadãos que se interessam por<br />
aqueles relatos.<br />
Neste senti<strong>do</strong>, a <strong>autoria</strong> no Jor<strong>na</strong>lismo se dá <strong>na</strong> mediação, <strong>na</strong>s complexas<br />
operações profissio<strong>na</strong>is de destacar elementos e versões importantes para a <strong>na</strong>rração <strong>do</strong><br />
fato e <strong>na</strong> sua costura coerente, cujo resulta<strong>do</strong> possibilite uma leitura daquele fragmento<br />
de realidade. O repórter vai às ruas, colhe depoimentos e se cerca de condições que<br />
atestem a ocorrência <strong>do</strong> fato. Apura, checa as informações, confronta falas, selecio<strong>na</strong> o<br />
que julga indispensável para o entendimento geral da situação e tece uma trama que dê<br />
conta dela. Na <strong>medida</strong> <strong>do</strong> possível. É justamente aí, nesta mediação, que se dá a <strong>autoria</strong>.<br />
Em alguns casos, essa <strong>autoria</strong> fica mais nítida, mais aparente; em outros, não salta aos<br />
senti<strong>do</strong>s. O que vai diferenciar uma matéria “mais autoral” <strong>do</strong> que outra é a emergência<br />
mais clara de índices da mediação: sejam marcas discursivas próprias de um sujeito<br />
(pronomes, elementos estruturantes de uma certa formação discursiva, etc.), seja a<br />
impressão de um estilo de escrita (sustenta<strong>do</strong> por algumas construções frasais ou<br />
recorren<strong>do</strong> a outros recursos estilísticos) ou ainda outras formas de identificação, que<br />
veremos a seguir. De maneira grosseira, poderíamos dizer que o jor<strong>na</strong>lista pode se<br />
colocar mais ou menos numa reportagem, dependen<strong>do</strong> da autonomia que tenha em seu<br />
trabalho, da adequação aos objetivos que conduziram a elaboração daquela matéria, <strong>do</strong><br />
contexto histórico-social. Se <strong>na</strong> literatura a criação é uma atitude poética, no Jor<strong>na</strong>lismo,<br />
181
o ato cria<strong>do</strong>r é diminuto, sutil, criva<strong>do</strong> e subsistente <strong>na</strong> mediação de que o profissio<strong>na</strong>l<br />
se ocupa para transmitir da melhor maneira a informação.<br />
Essas limitações a que o profissio<strong>na</strong>l se submete acabam atingin<strong>do</strong> também a<br />
própria configuração da <strong>autoria</strong> como tal. Isto é, se a <strong>autoria</strong> depende de um exercício<br />
de estilo, no caso <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo, serão precisos <strong>do</strong>is estilos: um que atenda às demandas<br />
<strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo em si e outro que possa ser atribuí<strong>do</strong> àquele autor em especial. Eis mais<br />
uma característica da <strong>autoria</strong> no Jor<strong>na</strong>lismo: para ser autor <strong>na</strong> reportagem, é<br />
necessário atender a <strong>do</strong>is estilos, um estrutural <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo e outro, pessoal.<br />
Assim, o autor segue as orientações que as gramáticas jor<strong>na</strong>lísticas indicam para se<br />
fazer um texto de reportagem e, paralelamente, insere elementos que lhe são próprios,<br />
singulares. Como se a mediação ocorresse em <strong>do</strong>is estágios, um mais amplo e outro<br />
mais profun<strong>do</strong>.<br />
Os compromissos advin<strong>do</strong>s da função social jor<strong>na</strong>lística e as conseqüentes<br />
limitações à criação no texto fazem com que o repórter não se descuide <strong>do</strong> fato por<br />
esmero <strong>do</strong> estilo, da forma. Não. Na atividade jor<strong>na</strong>lística, tem preponderância o estilo<br />
jor<strong>na</strong>lístico sobre o pessoal. É necessário que o repórter atenda ao primeiro para que<br />
possa permitir a emergência <strong>do</strong> segun<strong>do</strong>. Assim, <strong>na</strong> <strong>autoria</strong> jor<strong>na</strong>lística, o exercício <strong>do</strong><br />
estilo não se desvia de seu objeto (<strong>na</strong>rrar), mas sutilmente permite uma revelação <strong>do</strong> seu<br />
<strong>na</strong>rra<strong>do</strong>r, o jor<strong>na</strong>lista-autor. Por conseguinte, a <strong>autoria</strong> jor<strong>na</strong>lística se dá num ponto<br />
periférico, no estágio de exercício <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> estilo, o pessoal, não no primeiro, já<br />
que este é plano de imanência <strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa jor<strong>na</strong>lística.<br />
É curioso observar que a marcação de um estilo em terreno jor<strong>na</strong>lístico fez com<br />
que muitos pensassem que o que se estava fazen<strong>do</strong> era literatura e não reportagem. Em<br />
determi<strong>na</strong><strong>do</strong>s casos, a escrita é tão esmerada que tor<strong>na</strong> embaçadas as fronteiras entre um<br />
182
país e outro. Os limites podem estar confusos, mas mesmo que sejam porosos, eles<br />
existem. A tentação de considerar textos jor<strong>na</strong>lísticos bem escritos e com estilo como<br />
literatura parece ser uma forma de reacomodar cada esfera: deixar o Jor<strong>na</strong>lismo com<br />
uma suposta frieza no relato e dar à literatura tu<strong>do</strong> aquilo que não se confirma no<br />
minifúndio das reportagens 72 . Contribuem para esse embaralhamento os muitos casos de<br />
dupla militância, onde jor<strong>na</strong>listas tor<strong>na</strong>ram-se escritores e onde grandes autores da<br />
literatura foram forja<strong>do</strong>s <strong>na</strong>s redações 73 . Nesta tese, estou tratan<strong>do</strong> o estilo jor<strong>na</strong>lístico<br />
<strong>na</strong> sua forma no texto escrito, no conjunto de características estilísticas visíveis <strong>na</strong><br />
superfície textual, e não <strong>na</strong>s técnicas de apuração, por exemplo. Quer dizer, o estilo no<br />
Jor<strong>na</strong>lismo poderia ser observa<strong>do</strong> também <strong>na</strong> etapa de investigação e coleta das<br />
informações. Para destacar estilos <strong>na</strong>s técnicas de apuração, poderíamos recorrer ao<br />
Gonzo Jour<strong>na</strong>lism, de Hunter S. Thompson, que transcende o ato de <strong>na</strong>rrar e mescla o<br />
próprio <strong>na</strong>rra<strong>do</strong>r ao seu processo 74 (inclusive altera<strong>do</strong> pelo uso e abuso de drogas), ou<br />
mesmo ao estilo <strong>do</strong> alemão Günter Wallraff, que faz <strong>do</strong> disfarce seu passaporte para a<br />
notícia 75 .<br />
Mas se o assunto é <strong>autoria</strong>, um termo da equação não pode ser ignora<strong>do</strong>: a obra.<br />
Sim, porque, afi<strong>na</strong>l, há autor sem obra? Não. Um autor só se credencia enquanto tal se é<br />
público o resulta<strong>do</strong> de sua criação, seja um quadro, um livro ou um crime. Existe<br />
homicídio sem cadáver? Há assassi<strong>na</strong>to sem vítima?<br />
72 Dois exemplos ape<strong>na</strong>s: em As religiões <strong>do</strong> Rio, João <strong>do</strong> Rio não é o cronista, mas o repórter que, numa<br />
intensa série de reportagens publicada <strong>na</strong> Gazeta de Notícias em 1904, faz um inventário da fé <strong>na</strong> então<br />
capital da República. Classifica<strong>do</strong> como obra literária, ensaística e até sociológica, Os sertões é escrita a<br />
partir <strong>do</strong> trabalho <strong>do</strong> correspondente Euclides da Cunha para o jor<strong>na</strong>l O Esta<strong>do</strong> de S.Paulo.<br />
73 Alguns escritores que foram jor<strong>na</strong>listas: Edgar Allan Poe, Walt Whitman, Mark Twain, Jack Lon<strong>do</strong>n, Sinclair<br />
Lewis, Edmund Wilson, Ernest Hemingway, Gabriel García Márquez, John Reed, Ro<strong>do</strong>lfo Walsh, José<br />
Saramago, Carlos Heitor Cony, Antonio Calla<strong>do</strong>, Eric Nepumeno, e a lista vai longe. Uma saborosa discussão<br />
sobre o tema pode ser encontrada em “Quanto a literatura America<strong>na</strong> deve ao bom Jor<strong>na</strong>lismo”, artigo de<br />
Luiz Carlos Lisboa <strong>na</strong> revista Jor<strong>na</strong>l <strong>do</strong>s Jor<strong>na</strong>is, nº 7, outubro de 1999, pp.17 a 19.<br />
74 No Brasil, há um segui<strong>do</strong>r desta corrente: Arthur Veríssimo, da revista Trip, que vai muito além <strong>do</strong> que<br />
freqüentemente iria um repórter convencio<strong>na</strong>l.<br />
75 Foi assim que o repórter se infiltrou no Bild Zeitung para denunciar a invenção de notícias em Fábrica de<br />
Mentiras; e foi assim que passou <strong>do</strong>is anos como o turco Ali Sinirlioglu, operário em situação degradante de<br />
183
Neste senti<strong>do</strong>, para se definir o que é um autor no Jor<strong>na</strong>lismo, é preciso tor<strong>na</strong>r<br />
claro o que é uma obra neste campo, como se forma a sua unidade e o que determi<strong>na</strong> a<br />
sua coesão. Deten<strong>do</strong>-se no terreno artístico, Michel Guérin (1995) estabelece uma<br />
distinção entre obra e trabalho, opon<strong>do</strong> os <strong>do</strong>is termos. Para ele, a obra, entre outros<br />
atributos, tem nobreza, é uma atividade desinteressada <strong>do</strong> espírito, diferentemente <strong>do</strong><br />
embrutecimento que cerca o trabalho. É claro que a obra também custa trabalho, mas<br />
nem to<strong>do</strong> trabalho se conclui como obra. Eles não são sinônimos, mas mantêm<br />
parentescos interessantes. O trabalho esgota as forças <strong>do</strong> homem. A obra imortaliza o<br />
homem <strong>na</strong> <strong>medida</strong> em que interioriza o trabalho. “Se em certos pontos, a obra enquanto<br />
tal se opõe ao trabalho, em outros aspectos ela vem a se confundir com ele. Existe<br />
trabalho <strong>na</strong> obra; existe um trabalho da obra” (op.cit.: 24).<br />
No Jor<strong>na</strong>lismo, fica fácil distinguir que o trabalho preenche a roti<strong>na</strong> ordinária <strong>do</strong><br />
repórter e só mesmo uma parcela <strong>do</strong>s seus resulta<strong>do</strong>s – textos, imagens, senti<strong>do</strong>s – vai<br />
se converter em obra. As numerosas atividades diárias de coleta de da<strong>do</strong>s, entrevistas,<br />
edições e escrituras, escolhas e descartes, hierarquizações e organizações de materiais<br />
fazem parte <strong>do</strong> trabalho jor<strong>na</strong>lístico. Não são as obras dele. Os frutos, os produtos<br />
resultantes – um <strong>do</strong>cumentário, uma reportagem, um artigo, um conjunto de fotos, entre<br />
outros -, esses sim, podem ser considera<strong>do</strong>s obras jor<strong>na</strong>lísticas. Isso se funcio<strong>na</strong>rem<br />
como peças que constituam unidades mais ou menos delimitadas e se satisfizerem<br />
expectativas jor<strong>na</strong>lísticas. Explican<strong>do</strong> melhor: embora atenda a demandas jor<strong>na</strong>lísticas,<br />
um bloco de notícias não constitui uma unidade porque é parte integrante de um to<strong>do</strong><br />
mais coeso e coerente que é a edição inteira <strong>do</strong> telejor<strong>na</strong>l ou <strong>do</strong> radiojor<strong>na</strong>l. Assim, este<br />
segmento não pode ser considera<strong>do</strong> uma obra, uma peça em si. Uma fotografia pode ser<br />
entendida como uma obra jor<strong>na</strong>lística bem como um conjunto de fotos seguin<strong>do</strong> uma<br />
sobrevivência, de discrimi<strong>na</strong>ção e humilhação huma<strong>na</strong> em Cabeça de Turco (ambos os títulos lança<strong>do</strong>s no<br />
Brasil pela Editora Globo).<br />
184
mesma temática numa dada cobertura. O mesmo se aplica a uma reportagem isolada e a<br />
série que forma com suas suítes. É por essa razão que escrevi há pouco que as obras<br />
devem se comportar como “peças que constituam unidades mais ou menos delimitadas”.<br />
Intentan<strong>do</strong> descrever o direito autoral no Jor<strong>na</strong>lismo, Manoel Joaquim Pereira<br />
<strong>do</strong>s Santos vai perseguir uma conceituação de obra jor<strong>na</strong>lística:<br />
É a coexistência <strong>do</strong>s quatro caracteres fundamentais <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo,<br />
ou sejam, a atualidade, a universalidade, a oportunidade e a difusão<br />
coletiva, que caracteriza a obra jor<strong>na</strong>lística como tal, distinguin<strong>do</strong>-a<br />
das demais modalidades de comunicação coletiva, e das diversas<br />
formas de transmissão de informações. (...) Desta constatação<br />
decorre que nem toda produção intelectual constante de um<br />
veículo, onde pre<strong>do</strong>mi<strong>na</strong>ntemente são transmitidas mensagens<br />
jor<strong>na</strong>lísticas, constitui uma obra jor<strong>na</strong>lística. Como tal será<br />
considerada ape<strong>na</strong>s aquela em que concorrem os quatro atributos<br />
básicos acima mencio<strong>na</strong><strong>do</strong>s. (1981:8)<br />
Aten<strong>do</strong>-se aos conceitos da área, Santos ainda dirá que a obra jor<strong>na</strong>lística é<br />
factual, “já que tem nos fatos sua condicio<strong>na</strong>nte, distinta da obra de ficção, onde atua a<br />
imagi<strong>na</strong>ção <strong>do</strong> autor” (op.cit.:173).<br />
É necessário perceber ainda que a obra jor<strong>na</strong>lística – para além de ter estatuto de<br />
unidade e de submeter-se às gramáticas jor<strong>na</strong>lísticas – não transborda em si qualquer<br />
aura sacralizante como <strong>na</strong>s obras de arte. São reportagens, fotos, charges, programas<br />
jor<strong>na</strong>lísticos, ape<strong>na</strong>s. Quan<strong>do</strong> deixam de sê-los para se tor<strong>na</strong>rem fetiches – como a<br />
edição de Realidade que traz a reportagem de José Hamilton Ribeiro sobre a Guerra <strong>do</strong><br />
Vietnã, por exemplo -, convertem-se em algo a mais <strong>do</strong> que uma obra jor<strong>na</strong>lística,<br />
alcançan<strong>do</strong> status de um clássico <strong>do</strong> gênero, operação que não me interessa aqui.<br />
A obra jor<strong>na</strong>lística, então, não sobrevive da própria sacralização, e não necessita<br />
de um tempo maior de permanência. Como o Jor<strong>na</strong>lismo vive o tempo de maneira muito<br />
imediata e opera reiteradamente em atualização, a perenidade não importa para a obra<br />
jor<strong>na</strong>lística. Seu tempo é extremamente perecível, sua vida é volátil, de frágil duração.<br />
185
Uma <strong>autoria</strong> no Jor<strong>na</strong>lismo depende de uma compreensão diferenciada da obra 76 :<br />
ela é mais ordinária, não é cercada de aura, sua permanência é ínfima.<br />
Para exercer uma <strong>autoria</strong> é necessário reunir em si alguma legitimidade,<br />
características que autorizem o indivíduo a apresentar-se <strong>na</strong> qualidade de autor,<br />
destacan<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> relevo comum <strong>do</strong> anonimato. Do ponto de vista <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista, essa<br />
legitimidade é a primeira condição a ser satisfeita para uma efetiva vivência<br />
autoral <strong>na</strong> reportagem. Isto é, no momento em que o repórter atende a essa condição –<br />
legitimidade – demarca-se um lugar institucio<strong>na</strong>l a partir <strong>do</strong> qual se pode <strong>na</strong>rrar, de<br />
onde se pode reportar os fatos. Esse lugar institucio<strong>na</strong>l é a instância de onde se diz, de<br />
que ponto se conta os acontecimentos. Dessa forma, para termos uma <strong>autoria</strong> <strong>na</strong><br />
<strong>na</strong>rrativa da contemporaneidade, é preciso um lugar de fala, um ponto de partida <strong>do</strong><br />
discurso.<br />
A legitimidade vai poder assi<strong>na</strong>lar no jor<strong>na</strong>lista uma qualidade de <strong>na</strong>rra<strong>do</strong>r e um<br />
vínculo institucio<strong>na</strong>l no campo <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo. Assim, para ser autor, é necessário ser<br />
jor<strong>na</strong>lista, repórter e estar desempenhan<strong>do</strong> tal função profissio<strong>na</strong>l para algum veículo de<br />
comunicação ou qualquer forma de difusão pública <strong>do</strong> objeto <strong>na</strong>rrável: sou o repórter da<br />
revista Veja, ele é o jor<strong>na</strong>lista <strong>do</strong> The Times, etc...<br />
A condição da legitimidade de um autor só é saciada em <strong>do</strong>is momentos:<br />
primeiramente quan<strong>do</strong> o <strong>na</strong>rra<strong>do</strong>r se manifesta como jor<strong>na</strong>lista <strong>na</strong> qualidade de repórter<br />
<strong>do</strong> acontecimento; e depois quan<strong>do</strong> vincula a sua atividade a um veículo, entidade,<br />
empresa ou empreitada jor<strong>na</strong>lística. O primeiro momento coloca o <strong>na</strong>rra<strong>do</strong>r numa<br />
posição social específica, esperada e autorizada a <strong>na</strong>rrar: a <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista. O segun<strong>do</strong><br />
76 Uma distinção é necessária. Foucault vincula a obra ao autor, enquanto que Eni Orlandi atrela a obra ao<br />
escritor e o texto ao autor. Segun<strong>do</strong> Orlandi, não se pode tomar como sinônimos os termos e essa razão já<br />
instauraria a necessidade de uma distinção. Enten<strong>do</strong> a justificativa, mas não tenho a preocupação de<br />
preservar o conceito de obra, com a aura que lhe competiria, a exemplo de Orlandi. Penso que o caráter<br />
ordinário <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo ajuda a flexibilizar essa noção, e é sobre esses patamares que trabalho aqui.<br />
186
momento é igualmente importante porque ele evidencia a intenção e o objetivo de dar<br />
publicidade ao fato, de difundi-lo publicamente. Essa dissemi<strong>na</strong>ção – o ato de tor<strong>na</strong>r<br />
comum, público – é uma essencial característica da obra jor<strong>na</strong>lística e <strong>do</strong> próprio<br />
processo jor<strong>na</strong>lístico.<br />
A necessidade de atender a esses <strong>do</strong>is momentos – o lugar profissio<strong>na</strong>l e o<br />
institucio<strong>na</strong>l – satisfazem a primeira condição da <strong>autoria</strong> <strong>na</strong> reportagem, a que confere<br />
legitimidade ao <strong>na</strong>rra<strong>do</strong>r. De forma prática, quan<strong>do</strong> se lê uma matéria num jor<strong>na</strong>l ou um<br />
livro-reportagem, e se tem a identificação de um jor<strong>na</strong>lista àquilo vincula<strong>do</strong>, temos a<br />
fundação de um ponto legítimo de <strong>na</strong>rrativa jor<strong>na</strong>lística, um lugar de onde se pode (e se<br />
aceita) <strong>na</strong>rrar.<br />
Em 11 de abril de 2001, os leitores <strong>do</strong> caderno Cotidiano da Folha de S.Paulo<br />
depararam-se com um texto diferente em meio às notas que estão acostuma<strong>do</strong>s a<br />
encontrar <strong>na</strong>quela seção de geral: a matéria contava quem era e como vivia o pedreiro<br />
anônimo que teria subi<strong>do</strong> numa torre de alta tensão no interior paulista para sabotar o<br />
sistema energético. Na matéria, o repórter faz uma breve descrição da situação,<br />
revelan<strong>do</strong> que o perso<strong>na</strong>gem era um suicida potencial, depois de perder o emprego e a<br />
<strong>na</strong>morada, e que não atentava contra o serviço público, apesar de ainda estar preso por<br />
isso – artigo 265 <strong>do</strong> Código Pe<strong>na</strong>l. O repórter viajou a Sorocaba para entrevistar o<br />
pedreiro e os demais envolvi<strong>do</strong>s no caso, mas <strong>na</strong>da teria extraí<strong>do</strong> <strong>do</strong>s seus depoentes se<br />
não se apresentasse enquanto repórter e não dissesse a que empresa jor<strong>na</strong>lística estava<br />
vincula<strong>do</strong>.<br />
O leitor, por sua vez, não aceitaria aquele relato como jor<strong>na</strong>lístico se não o<br />
tivesse li<strong>do</strong> num órgão de imprensa, se não tivesse encontra<strong>do</strong> aquela <strong>na</strong>rrativa <strong>na</strong>s<br />
pági<strong>na</strong>s de noticiário e se não lesse logo abaixo <strong>do</strong> título “Ricar<strong>do</strong> Kotscho – Especial<br />
para a Folha”. Esses índices é que ajudaram a credenciar tal texto como um relato<br />
187
jor<strong>na</strong>lístico, descreven<strong>do</strong> certo fato, sen<strong>do</strong> legítimo <strong>na</strong>rra<strong>do</strong>r daquela situação. Eles é<br />
que conferiram legitimidade à reportagem.<br />
É evidente que não ape<strong>na</strong>s isso tor<strong>na</strong> a matéria um relato de autor. No caso, o<br />
texto envolvente, o enlace fi<strong>na</strong>l e to<strong>do</strong> o <strong>olhar</strong> dilacerante que Kotscho dirige ao<br />
perso<strong>na</strong>gem engendram uma arquitetura discursiva diferente <strong>na</strong> pági<strong>na</strong>, distinta <strong>na</strong>quele<br />
mar de notas breves e superficiais. A qualidade <strong>do</strong> texto e a perspectiva da <strong>na</strong>rração dão<br />
forma a uma outra condição necessária para a <strong>autoria</strong>: a capacidade.<br />
Enquanto a legitimidade é algo que está funda<strong>do</strong> <strong>na</strong> lei, <strong>na</strong> razão ou <strong>na</strong> justiça, a<br />
capacidade é uma habilidade, uma aptidão. Atributos que se revelam no exercício de um<br />
estilo <strong>na</strong>s reportagens, pela origi<strong>na</strong>lidade, singularidade ou autenticidade que se<br />
desempenha nos textos. A capacidade é uma segunda condição necessária para a<br />
<strong>autoria</strong>, já que vai si<strong>na</strong>lizar elementos para além de um lugar autoriza<strong>do</strong> de fala. Assim,<br />
se o repórter demarca um ponto de partida <strong>do</strong> discurso jor<strong>na</strong>lístico, ele aí sim pode<br />
colocar uma voz, um timbre àquelas frases. Escrever um texto mais elabora<strong>do</strong> ou não,<br />
estruturar de maneira criativa a matéria, lançar mão de recursos de outros gêneros<br />
textuais, enfim, tu<strong>do</strong> isso e o que mais se inventar está a cargo <strong>do</strong> repórter, depende<br />
dele, de sua capacidade.<br />
A capacidade é uma condição para a <strong>autoria</strong> que privilegia a diferença e não a<br />
repetição. Em termos estilísticos, o relato <strong>do</strong> repórter irá se diferenciar <strong>do</strong>s seus<br />
concorrentes e semelhantes, buscan<strong>do</strong> uma angulação nova, uma abordagem distinta,<br />
um encadeamento outro. É importante frisar que a diferença aqui é <strong>na</strong> forma, no<br />
envolvimento e no tratamento das unidades informativas, e não propriamente no<br />
conteú<strong>do</strong>. Isto é, não se espera um furo jor<strong>na</strong>lístico, mas um novo texto sobre o mesmo<br />
fato conta<strong>do</strong> por outros <strong>na</strong>rra<strong>do</strong>res.<br />
188
Para além de carecer de legitimidade, a <strong>autoria</strong> no Jor<strong>na</strong>lismo pode se<br />
apoiar ainda <strong>na</strong> capacidade/competência de bem <strong>na</strong>rrar, de seduzir os leitores,<br />
envolvê-los e convencê-los com os relatos apresenta<strong>do</strong>s.<br />
Um exemplo no telejor<strong>na</strong>lismo brasileiro: em fevereiro de 2001, o repórter<br />
William Waack foi a Palmeira <strong>do</strong>s Índios, pequeno município alagoano que teve como<br />
prefeito por <strong>do</strong>is anos o escritor Graciliano Ramos. Além de tentar resolver os<br />
problemas de sua administração, o prefeito produzia extensos relatórios para o<br />
gover<strong>na</strong><strong>do</strong>r, refletin<strong>do</strong> sobre a sua condição, suas dificuldades e a própria <strong>na</strong>tureza da<br />
gover<strong>na</strong>nça pública. Bem capacita<strong>do</strong>, Waack vai exercer sua <strong>autoria</strong> <strong>na</strong> reportagem<br />
quan<strong>do</strong> pega esses <strong>do</strong>cumentos e faz um paralelo entre as preocupações <strong>do</strong> prefeito<br />
Graciliano com as imposições da atual Lei de Responsabilidade Fiscal. Passa<strong>do</strong>s setenta<br />
anos entre uma coisa e outra, o repórter costura os assuntos durante um bloco inteiro <strong>do</strong><br />
Jor<strong>na</strong>l Nacio<strong>na</strong>l num dia de sema<strong>na</strong> ordinário. O tema não é gratuito, ele está <strong>na</strong> pauta<br />
<strong>do</strong> noticiário brasileiro, mas a abordagem é que faz a diferença, que deixa uma<br />
assi<strong>na</strong>tura, imprime marcas que são as da <strong>autoria</strong>.<br />
Num artigo apresenta<strong>do</strong> durante o Congresso da Associación Latinoamerica<strong>na</strong><br />
de Investiga<strong>do</strong>res de la Comunicación (Alaic) em abril de 2000, em Santiago (Chile), a<br />
pesquisa<strong>do</strong>ra Roseméri Laurin<strong>do</strong> vai se preocupar com a rarefação da <strong>autoria</strong> no<br />
Jor<strong>na</strong>lismo brasileiro. Sob o título “Noção de <strong>autoria</strong> no Jor<strong>na</strong>lismo esvai-se com<br />
determinismo <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s”, o trabalho se refere a uma pesquisa maior que enfocou o<br />
desempenho de alguns jor<strong>na</strong>listas e suas condições de produção profissio<strong>na</strong>l durante a<br />
cobertura <strong>do</strong>s fatos que culmi<strong>na</strong>ram com o afastamento de Fer<strong>na</strong>n<strong>do</strong> Collor da<br />
presidência da república. O trabalho <strong>do</strong> repórter Bob Fer<strong>na</strong>ndes, <strong>na</strong> época <strong>na</strong> revista Isto<br />
É, mereceu atenção da pesquisa<strong>do</strong>ra porque foi diferencia<strong>do</strong> em comparação ao de seus<br />
colegas de trabalho.<br />
189
Essa capacidade de costurar as informações, de elaborar textos diferencia<strong>do</strong>s, de<br />
mostrar outros la<strong>do</strong>s e outros ângulos é si<strong>na</strong>l de amadurecimento, segun<strong>do</strong> a<br />
pesquisa<strong>do</strong>ra. Ela considera um “apagamento <strong>do</strong> sujeito como mecanismo de<br />
desresponsabilização <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista”, mas pode haver algo mais ali:<br />
No Jor<strong>na</strong>lismo esta consideração poderia apresentar outros<br />
contornos (...), pois o repórter abraça ou não sua condição de<br />
sujeito, independentemente da realidade da inscrição desse<br />
estatuto. Não que a <strong>autoria</strong> seja exclusiva condição de<br />
responsabilidade, mas pode revelar certo grau de maioridade.<br />
Como se quem assi<strong>na</strong>sse o texto ‘se mostrasse’ ou ‘desejasse’ ser<br />
mais responsável por aquilo que escreve. Outros permaneceriam<br />
escondi<strong>do</strong>s sob anonimato, evidencian<strong>do</strong> uma <strong>autoria</strong> difusa.<br />
(2000:11)<br />
Essa disposição depende de uma certa autonomia de ação <strong>do</strong> repórter, condição<br />
confortável, mas nem sempre existente 77 . É trabalhan<strong>do</strong> com autonomia que o jor<strong>na</strong>lista<br />
consegue ter uma margem um pouco maior de manobra para operar textos mais<br />
pessoais, exercen<strong>do</strong> um estilo mais próprio. Como já disse anteriormente, isso não o<br />
exime de satisfazer o que se convencionou chamar de estilo jor<strong>na</strong>lístico. Não. O repórter<br />
deve atendê-lo alcançan<strong>do</strong> assim condições extras para deixar suas digitais autorais <strong>na</strong><br />
reportagem. Autoria requer certo grau de autonomia <strong>do</strong> repórter. Isso pode ser<br />
consegui<strong>do</strong> com a passagem <strong>do</strong> tempo de atuação <strong>do</strong> profissio<strong>na</strong>l, com o aumento <strong>do</strong><br />
grau de confiança <strong>do</strong>s superiores hierárquicos, com a apresentação de um trabalho de<br />
qualidade que atenda às expectativas da empresa e que se traduza em maior gradiente de<br />
liberdade de ação <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista.<br />
De maneira geral, o que se percebe é que os jor<strong>na</strong>listas que atuam como autores<br />
parecem se inscrever num outro setor <strong>do</strong> reportaria<strong>do</strong>, que inclusive aparenta ser uma<br />
77 Deusa Maria de Souza (1999) discute o regime de autonomia <strong>do</strong> autor de livros didáticos. Segun<strong>do</strong> afirma,<br />
tal <strong>autoria</strong> “está associada, pre<strong>do</strong>mi<strong>na</strong>ntemente, ao sujeito escritor, considera<strong>do</strong> autor desde que sua<br />
autoridade seja legitimada pela editora que o valida.” (28). De acor<strong>do</strong> com a pesquisa<strong>do</strong>ra, a <strong>autoria</strong> no<br />
livro didático estaria ligada ao que chama de “ilusão de <strong>autoria</strong>”. Assim, o autor “é destituí<strong>do</strong> de autonomia,<br />
190
célula de privilegia<strong>do</strong>s. Em boa parte <strong>do</strong>s casos, são os chama<strong>do</strong>s repórteres especiais,<br />
alguns nomes mais conheci<strong>do</strong>s <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> ou estrelas da profissão. Entretanto, esse<br />
diagnóstico não está totalmente certo. Há casos de repórteres mais anônimos que<br />
conseguem fazer um trabalho autoral em termos de reportagem, desvian<strong>do</strong>-se das<br />
dificuldades diárias e abrin<strong>do</strong> espaços para que seus colegas passem a atuar de forma<br />
mais pró-ativa. Veremos um desses casos mais adiante.<br />
A autonomia é uma credencial conquistável, importante para a efetivação de um<br />
ambiente onde possam conviver jor<strong>na</strong>listas-autores. Essa credencial pode ser obtida<br />
inclusive por lances de ousadia que se dão não só <strong>na</strong> superfície <strong>do</strong> texto, mas também<br />
nos procedimentos de coleta e apuração das informações. Um exemplo recente <strong>na</strong><br />
imprensa brasileira é Arthur Veríssimo, repórter da revista Trip. Suas matérias se<br />
diferenciam não ape<strong>na</strong>s pelos temas aborda<strong>do</strong>s, mas também pela condução <strong>do</strong>s<br />
assuntos e pela própria forma de como o repórter se envolve <strong>na</strong>s situações descritas. Os<br />
textos são sempre bem-humora<strong>do</strong>s e fazem questão de evidenciar a presença <strong>do</strong><br />
<strong>na</strong>rra<strong>do</strong>r, seja pelo uso de marcas discursivas (como o uso da primeira pessoa ou a<br />
intervenção direta <strong>do</strong> repórter <strong>na</strong> fala das fontes) ou mesmo pela conversão <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista<br />
em perso<strong>na</strong>gem da reportagem. Essas características acabam dan<strong>do</strong> contornos autorais<br />
ao trabalho de Arthur Veríssimo.<br />
Na Trip nº 86, de fevereiro de 2001, por exemplo, o repórter vai à Holanda para<br />
cobrir a 13ª Hight Times Can<strong>na</strong>bis Cup, o campeo<strong>na</strong>to mundial da maconha que<br />
acontece em Amsterdã. Sob o título “No car<strong>na</strong>val da can<strong>na</strong>bis”, a matéria traz o<br />
jor<strong>na</strong>lista acompanhan<strong>do</strong>, de um ponto a outro da cidade, as provas da competição. Na<br />
pági<strong>na</strong> de abertura, logo abaixo de uma foto que reúne o repórter e um <strong>do</strong>s participantes,<br />
uma irônica legenda dá o tom de Veríssimo: “Sempre circunspecto em sua busca pela<br />
pois, para existir no interior <strong>do</strong> aparato editorial, precisa estar em conformidade com seus padrões, além de<br />
ter de ocupar o ‘lugar’ que lhe cabe, ou seja, o de fazer concessões” (31).<br />
191
<strong>objetividade</strong> jor<strong>na</strong>lística, característica que lhe é i<strong>na</strong>ta, Arthur abraça o eminente<br />
congressista Ali Babá, o homem das 40 bongadas, orgulhoso de sua plantinha <strong>na</strong><br />
abertura da Can<strong>na</strong>bis Cup”. Nos créditos da matéria, o repórter assi<strong>na</strong> como Arthur<br />
“Cheech & Chong” Veríssimo em alusão à dupla de atores cômicos Cheech Marin &<br />
Tommy Chong que ficou conhecida por filmes como “Queiman<strong>do</strong> tu<strong>do</strong>” e por uma<br />
postura de apologia à maconha. A postura <strong>do</strong> repórter <strong>na</strong> matéria é típica <strong>do</strong> Gonzo<br />
Jour<strong>na</strong>lism, surgi<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong> trabalho de Hunter S. Thompson, que não só conta o que<br />
vê, mas se envolve pessoalmente com o objeto <strong>na</strong>rrável. O humor delibera<strong>do</strong> 78 , a ironia<br />
grosseira, a atitude assumida de “aparecer” <strong>na</strong> matéria e a encar<strong>na</strong>ção de um<br />
perso<strong>na</strong>gem <strong>na</strong> história são elementos que evidenciam uma <strong>autoria</strong> <strong>na</strong>s matérias de<br />
Arthur Veríssimo.<br />
A brincadeira com o próprio nome é um recurso freqüentemente usa<strong>do</strong> pelo<br />
jor<strong>na</strong>lista. Na edição 102 da revista, de julho de 2002, ele assi<strong>na</strong> a matéria “Bat<br />
Macumba” com o pai-de-santo Bita <strong>do</strong> Barão como Arthur Veríssimo de Ogum. Em<br />
abril de 2003, no número 111 da Trip, ele é Arthur “Pica-Pau” Veríssimo <strong>na</strong> reportagem<br />
“Pau de índio”, em que mostra o ritual <strong>do</strong>s habitantes da ilha in<strong>do</strong>nésia de Papua de<br />
amarrar os próprios pênis em lanças. Antes disso, em setembro de 2002 (Trip nº 104), o<br />
repórter não só se assi<strong>na</strong> diferente - Arthur “ThuThu” Veríssimo – como cede parte <strong>do</strong><br />
nome para o título da matéria sobre tatuagens tribais em Borneo: “Tattoo Veríssimo”.<br />
É evidente que esse exemplo não é o único a atestar o exercício de uma <strong>autoria</strong><br />
<strong>na</strong> reportagem da imprensa brasileira. Entretanto, a sua menção mostra que a <strong>autoria</strong><br />
pode se dar em publicações menos massivas e mais dirigidas – a Trip é voltada para um<br />
público mais jovem – e que a <strong>autoria</strong> não se dá ape<strong>na</strong>s <strong>na</strong> construção de um bom texto<br />
78 O humor aparece não só em forma de gags, mas também como trocadilhos. Na edição da Trip de nº 107,<br />
de dezembro de 2002, o título da reportagem em caixa alta cria um jogo de palavras sonoro: ARTHUR<br />
PROCURA SERGUEI. A linha de apoio reforça o auto-deboche: “Um encontro histórico. Frente a frente a<br />
Dercy Gonçalves <strong>do</strong> Rock e o Bozó <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo. Tire as crianças da sala. E não tente fazer isso em casa”<br />
192
ou <strong>na</strong> profundidade de uma investigação jor<strong>na</strong>lística. O caso de Arthur Veríssimo realça<br />
muito mais a ousadia <strong>do</strong> repórter <strong>do</strong> que propriamente a sua perícia jor<strong>na</strong>lística. Sua<br />
postura despreocupada com a <strong>objetividade</strong> e a isenção pode até ser reprovada pelos<br />
gramáticos <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo, mas a perso<strong>na</strong>lidade e a criatividade de suas reportagens não<br />
podem ser ignoradas. O caso Veríssimo é um exemplo que ratifica o fato de que a<br />
<strong>autoria</strong> <strong>na</strong> reportagem não só depende de autonomia por parte <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista como<br />
também de certa <strong>do</strong>se de ousadia em sua prática.<br />
Para se efetivar, a <strong>autoria</strong> no Jor<strong>na</strong>lismo deve ser constituída à base de duas<br />
condições. A primeira é a legitimidade, que atesta os lugares de fala institucio<strong>na</strong>l e<br />
profissio<strong>na</strong>l <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista. A segunda condição pode ser a capacidade, que certifica<br />
habilidades ou aptidão para bem <strong>na</strong>rrar, ou ainda uma outra: a autoridade, que é<br />
atribuída a alguém por um ou mais fatores que o colocam em vantagem.<br />
Se a primeira condição legitima o <strong>na</strong>rra<strong>do</strong>r, e a capacidade atesta sua habilidade<br />
para tanto, a autoridade credencia a fala <strong>do</strong> repórter <strong>na</strong> <strong>medida</strong> em que ele ocupa uma<br />
posição privilegiada de discurso. Não se dá ouvi<strong>do</strong>s àquele que não respeitamos, que<br />
não reconhecemos como sujeito autoriza<strong>do</strong> a dizer, com autoridade para tal. Em pelo<br />
menos duas ocasiões da prática jor<strong>na</strong>lística o repórter se reveste de uma autoridade de<br />
fala que o distancia de seus colegas: <strong>na</strong> qualidade de especialista ou <strong>na</strong> de testemunha<br />
<strong>do</strong> fato.<br />
O primeiro caso pode ser vivi<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> o jor<strong>na</strong>lista <strong>do</strong>mi<strong>na</strong> um não tão<br />
conheci<strong>do</strong> idioma numa viagem inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l ou quan<strong>do</strong> tem conhecimentos técnicos<br />
sóli<strong>do</strong>s que o igualam a sua fonte de informação, por exemplo. Com isso, o repórter não<br />
ape<strong>na</strong>s <strong>na</strong>rra o que ouve, mas também entende o comentário de escárnio <strong>do</strong> premiê<br />
sueco frente a diplomatas de outros países, detalhe que dá novo contexto para as<br />
declarações oficiais. Com isso, o repórter pode inclusive corrigir ou desmentir sua fonte<br />
193
de informação, desmascaran<strong>do</strong> sua fala com argumentos e minúcias técnicas. Esses <strong>do</strong>is<br />
exemplos ajudam a visualizar situações em que o jor<strong>na</strong>lista não é ape<strong>na</strong>s uma voz que<br />
conta, mas configura também um timbre com autoridade e que deve ser ouvi<strong>do</strong>.<br />
Legitima<strong>do</strong> e autoriza<strong>do</strong>, o repórter tem fortes condições para efetivar ali uma <strong>autoria</strong><br />
em seu trabalho.<br />
Um segun<strong>do</strong> caso que coloca o profissio<strong>na</strong>l num patamar diferencia<strong>do</strong> de<br />
autoridade de fala é o lugar <strong>do</strong> testemunho. Nele, o jor<strong>na</strong>lista é especta<strong>do</strong>r privilegia<strong>do</strong>,<br />
testemunha ocular de um acontecimento e por isso está autoriza<strong>do</strong> a dizer o que captou<br />
com seus senti<strong>do</strong>s. Ele é o nosso homem lá no ponto de emergência <strong>do</strong> fato, pronto para<br />
relatar, e nós ficamos aqui prontos para ouvi-lo. Porque consideramos aquela voz<br />
legítima e autorizada, calamo-nos e o jor<strong>na</strong>lista passa a <strong>na</strong>rrar.<br />
Em alguns episódios, essa condição de autoridade é tão acatada pela comunidade<br />
discursiva – jor<strong>na</strong>listas e público – que a voz autorizada se descola das demais<br />
alcançan<strong>do</strong> um nível diferente de to<strong>do</strong>s. Foi o que aconteceu em 1991, quan<strong>do</strong> Peter<br />
Arnett subiu ao terraço <strong>do</strong> Hotel al-Rashid em Bagdá para fazer as transmissões<br />
televisivas da Guerra <strong>do</strong> Golfo para a CNN. Foi o que aconteceu com as reportagens de<br />
Sérgio Dávila e Juca Varella para a Folha de S.Paulo em março de 2003 durante a<br />
invasão anglo-america<strong>na</strong> ao Iraque. Os repórteres eram os únicos da imprensa brasileira<br />
a acompanhar o início da guerra no centro <strong>do</strong>s bombardeios.<br />
A força <strong>do</strong> relato abaixo 79 dá a exata <strong>medida</strong> da autoridade <strong>do</strong> seu <strong>na</strong>rra<strong>do</strong>r:<br />
A seqüência é de uma roti<strong>na</strong> assusta<strong>do</strong>ra e de uma lógica<br />
insuportável, emprestada <strong>do</strong>s trovões e <strong>do</strong>s raios. Primeiro, um clarão<br />
que deixa toda a cidade ilumi<strong>na</strong>da, acompanha<strong>do</strong> da saraivada da<br />
bateria antiaérea, que pode muito pouco contra ele.<br />
Então, uma grande explosão – o maior e mais inesquecível som já<br />
ouvi<strong>do</strong> pelo repórter até hoje -, seguida <strong>do</strong> deslocamento de ar<br />
correspondente, que vem e volta com quase a mesma intensidade.<br />
Pequeno silêncio. Um fogo começa a subir ao céu em grandes<br />
línguas. Cede ape<strong>na</strong>s para a fumaça preta, espessa.<br />
79 “Som <strong>do</strong> ‘Big One’ é inesquecível” – Folha de S.Paulo, 22 de março de 2003, p. A15<br />
194
Por fim, o grande silêncio insuportável, só quebra<strong>do</strong> pela próxima<br />
seqüência, idêntica.<br />
Foi assim o primeiro dia <strong>do</strong> “Big One”, a mãe de to<strong>do</strong>s os ataques,<br />
que começou <strong>na</strong> noite de ontem e promete deixar Bagdá de<br />
joelhos. Nem bem nos acalmávamos de uma explosão, vinha outra<br />
ainda maior, em lugar diferente. Enquanto escrevo este texto, são<br />
sete os lugares identifica<strong>do</strong>s como atingi<strong>do</strong>s. Confi<strong>na</strong><strong>do</strong>s no hotel, os<br />
colegas mudamos de quartos em busca da melhor visão, enquanto<br />
outros correm para abrigos antibombas.<br />
Desta vez, o deslocamento de ar <strong>do</strong>s bombardeios, um deles entre<br />
500 e 1000 metros <strong>do</strong> local em que estamos, quebra vidros no<br />
caminho e deixa os cachorros e as pombas desespera<strong>do</strong>s, aqueles<br />
corren<strong>do</strong> no meio das ruas vazias, estas voan<strong>do</strong> até o topo <strong>do</strong>s<br />
edifícios, como se a <strong>medida</strong> realmente fosse dar mais segurança.<br />
Duas mulheres, uma vestida de preto e outra de branco, ganham as<br />
calçadas rezan<strong>do</strong> alto e mexen<strong>do</strong> a cabeça. Alarmes de carro<br />
dispara<strong>do</strong>s vão e voltam...<br />
Clarão, explosão<br />
Durante o primeiro estouro, passa<strong>do</strong> o susto inicial, o repórter Juca<br />
Varella lembra de colocarmos os coletes antibalas e os capacetes.<br />
Nos corre<strong>do</strong>res, encontramos outros jor<strong>na</strong>listas que fizeram o mesmo.<br />
Logo, somos obriga<strong>do</strong>s a entrar de volta no quarto e trancar as<br />
portas: oficiais da polícia secreta de Saddam Hussein, que ficam 24<br />
horas por dia no saguão, começam a invadir alguns apartamentos<br />
selecio<strong>na</strong><strong>do</strong>s ao acaso e levar embora câmeras fotográficas e de TV<br />
com imagens <strong>do</strong>s ataques.<br />
Fazem isso no quarto ao la<strong>do</strong> e no da frente. Batem <strong>na</strong> nossa porta.<br />
De luzes apagadas, ficamos quietos. Mais três tentativas, e desistem.<br />
Lá fora, no alto, acaba de passar o que parece ser um caça, o<br />
primeiro desde que o conflito começou, não sabemos se de<br />
bandeira iraquia<strong>na</strong> ou norte-america<strong>na</strong>. Soa bem próximo e o<br />
barulho e o clarão (e o me<strong>do</strong>) levam o repórter ao chão. Depois que<br />
some no horizonte, o suposto avião deixa um rastro claro que<br />
demora para ir embora.<br />
Temos de ir. São 22h50 e acaba de passar o segun<strong>do</strong> caça. Começa<br />
então a nova seqüência: clarão, explosão...<br />
Frente a um texto como o acima – transcrito <strong>na</strong> íntegra -, questões<br />
jor<strong>na</strong>listicamente relevantes como precisão, isenção e <strong>objetividade</strong> perdem-se diante da<br />
intensidade viva da <strong>na</strong>rrativa <strong>do</strong> testemunho. Assim, pouco importa se o repórter diz não<br />
saber se o jato é invasor ou não; pouco interessa se o jor<strong>na</strong>lista se mantém frio – não, ele<br />
deixa escapar que está com me<strong>do</strong>. Vale mais descrever em termos imagináveis para o<br />
leitor o que se sente quan<strong>do</strong> um ataque daqueles se dá sobre a cidade. Quais são os sons,<br />
as imagens, as reações das pessoas e animais frente aquilo. Cabe até fazer peque<strong>na</strong>s<br />
confissões, como a de que o barulho da explosão foi o maior já ouvi<strong>do</strong> até então pelo<br />
195
epórter. Esses elementos dão outro tom ao texto: o caráter autoral, de relato de uma<br />
experiência pessoal que pode ser partilhada com os leitores 80 .<br />
Na reportagem, a autoridade é uma condição que ajuda a credenciar o<br />
discurso <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista, abrin<strong>do</strong> brechas para a efetivação de uma <strong>autoria</strong>. Ela pode<br />
se apresentar tanto por um lugar de especialidade ou de testemunho. Mas como a<br />
capacidade, a autoridade é uma segunda condição a ser atendida para um exercício<br />
autoral <strong>na</strong> reportagem. São necessárias duas condições pessoais para que um<br />
repórter possa se inscrever enquanto autor. A primeira – a legitimidade – sempre<br />
deve ser satisfeita. Num segun<strong>do</strong> momento, o profissio<strong>na</strong>l e a circunstância vão<br />
determi<strong>na</strong>r que segunda condição será atendida: a que atesta a capacidade e<br />
competência <strong>do</strong> repórter de bem <strong>na</strong>rrar ou a que dá a sua voz um timbre<br />
autoriza<strong>do</strong> a <strong>na</strong>rrar.<br />
De maneira resumida, o que se percebe é que o regime que regula a <strong>autoria</strong> no<br />
Jor<strong>na</strong>lismo se assenta em algumas regras que estão condicio<strong>na</strong>das à própria <strong>na</strong>tureza de<br />
constituição <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo enquanto prática social. Uma atividade prática coletiva, o<br />
Jor<strong>na</strong>lismo é um campo onde nem sempre a <strong>autoria</strong> é discernível. Como reflete os fatos<br />
(ou tenta fazê-lo), e eles não têm <strong>do</strong>no, pode-se falar em <strong>autoria</strong> jor<strong>na</strong>lística quan<strong>do</strong><br />
preenchidas algumas condições de exercício de estilo e reposicio<strong>na</strong>mento <strong>do</strong> sujeito <strong>do</strong><br />
discurso jor<strong>na</strong>lístico.<br />
Neste senti<strong>do</strong>, a <strong>autoria</strong> funcio<strong>na</strong> primeiro como indica<strong>do</strong>r de responsabilidades.<br />
Ela se dá <strong>na</strong> mediação e não <strong>na</strong> criação livre como <strong>na</strong> literatura. Para ser autor <strong>na</strong><br />
reportagem, é necessário atender a <strong>do</strong>is estilos, um estrutural <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo e outro,<br />
mais pessoal. A <strong>autoria</strong> jor<strong>na</strong>lística se dá num ponto periférico, no estágio de exercício<br />
80 Na cobertura da guerra <strong>do</strong> Iraque, além de oferecer o noticiário edita<strong>do</strong> das agências inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is de<br />
notícia em generosas pági<strong>na</strong>s de seus principais cadernos, a Folha de S.Paulo trazia textos e fotos da dupla<br />
de repórteres e um “Diário de Bagdá”, pági<strong>na</strong> especial encimada por fotos <strong>do</strong>s jor<strong>na</strong>listas vesti<strong>do</strong>s para a<br />
guerra com reportagens que traduziam o cotidiano <strong>do</strong> país em meio ao conflito. Despretensiosamente<br />
196
<strong>do</strong> segun<strong>do</strong> estilo, o pessoal, não no primeiro, já que este é plano de imanência <strong>na</strong><br />
<strong>na</strong>rrativa jor<strong>na</strong>lística. Uma <strong>autoria</strong> no Jor<strong>na</strong>lismo depende também de uma compreensão<br />
diferenciada da obra jor<strong>na</strong>lística.<br />
São necessárias duas condições pessoais para que um repórter possa ser autor. A<br />
primeira – a legitimidade – sempre deve ser satisfeita, pois é a que funda o lugar<br />
institucio<strong>na</strong>l de fala. Num segun<strong>do</strong> momento, o profissio<strong>na</strong>l e a circunstância vão<br />
determi<strong>na</strong>r que segunda condição será atendida: a que atesta a capacidade <strong>do</strong> repórter de<br />
bem <strong>na</strong>rrar ou a que dá a sua voz um timbre autoriza<strong>do</strong> a <strong>na</strong>rrar.<br />
No Jor<strong>na</strong>lismo contemporâneo, é possível exercer uma <strong>autoria</strong> em estruturas<br />
jor<strong>na</strong>lísticas cada vez mais hierarquizadas, industrializadas e complexas <strong>na</strong> <strong>medida</strong> em<br />
que se constroem condições de autonomia <strong>do</strong> repórter e o profissio<strong>na</strong>l alimenta sua<br />
atuação com <strong>do</strong>ses de ousadia e consciência de sua função social. A margem de<br />
manobra é estreita, e muitos profissio<strong>na</strong>is ou não enxergam o espaço em que podem se<br />
movimentar ou preferem não correr riscos de frustrar seus intentos.<br />
Ser autor é - antes de tu<strong>do</strong> - uma função a ser encar<strong>na</strong>da e por isso depende de<br />
vontade e de ação. A diferença entre jor<strong>na</strong>lista e jor<strong>na</strong>lista-autor parece ser semelhante à<br />
existente entre escritor e escrivão.<br />
objetivas, as matérias eram perfis de anônimos, repercussões diretas da guerra à vida social e econômica<br />
<strong>do</strong>s iraquianos e notas breves que davam conta da confusão e desinformação rei<strong>na</strong>ntes em Bagdá.<br />
197
CAPÍTULO 6<br />
Em busca de uma <strong>autoria</strong> <strong>na</strong> reportagem<br />
198<br />
“A transgressão é um gesto relativo ao limite: é aí,<br />
<strong>na</strong> tênue espessura da linha, que se manifesta o fulgor<br />
da sua passagem, mas talvez também sua trajetória <strong>na</strong><br />
totalidade, sua própria origem. A linha que ela cruza<br />
poderia também ser to<strong>do</strong> o seu espaço”<br />
Michel Foucault – Prefácio à Transgressão<br />
A<br />
<strong>autoria</strong> no Jor<strong>na</strong>lismo é uma questão que envolve o exercício de um estilo<br />
que vai além <strong>do</strong> institucio<strong>na</strong>l, <strong>do</strong> consagra<strong>do</strong> pelas regras jor<strong>na</strong>lísticas. Para<br />
ser autor <strong>na</strong> reportagem, é necessário não só seguir as normas <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo,<br />
mas também imprimir um estilo pessoal, deixar marcas, impressões digitais. A <strong>autoria</strong><br />
no Jor<strong>na</strong>lismo pressupõe exercício consciente da subjetividade.<br />
Esta tese trata não ape<strong>na</strong>s de Jor<strong>na</strong>lismo, mas de sujeitos-jor<strong>na</strong>listas, daqueles<br />
que exercem a profissão tentan<strong>do</strong> se desautomatizar das gramáticas (<strong>do</strong>gmáticas),<br />
buscan<strong>do</strong> uma prática criativa no ato de reportar. Se a projeção de qualquer traço de<br />
subjetividade é tão polêmica <strong>na</strong> escritura de textos informativos, não é menos discutível,<br />
num trabalho científico, empregar o EU e debruçar-se sobre a própria produção para<br />
investigar aspectos <strong>do</strong> tema proposto.<br />
Eu faço isso <strong>na</strong>s pági<strong>na</strong>s a seguir.<br />
E penso que – para manter a coerência - não poderia ser diferente. Se minha<br />
preocupação maior aqui foi delimitar as condições para uma <strong>autoria</strong> <strong>na</strong> reportagem, esta<br />
tese não poderia limitar-se aos aspectos teóricos <strong>do</strong> assunto: é necessário ainda destacar<br />
um caso que exemplifique as tentativas desta inscrição. Nenhum laboratório seria mais<br />
oportuno <strong>do</strong> que minha própria experiência de repórter. Afi<strong>na</strong>l, ao fazer de mim mesmo<br />
a cobaia desta tese, poderia testar minhas convicções sobre a <strong>autoria</strong> e, de alguma<br />
forma, contribuir para a reflexão sobre o tema. A opção de fazer um laboratório de si<br />
mesmo pode ser discutível, mas não é ilegítimo ou inváli<strong>do</strong>.
Esta tese explora o terreno da <strong>autoria</strong>, expressão marcada da subjetividade, e não<br />
há aqui nenhum temor em empregar a primeira pessoa <strong>do</strong> singular. Escolher a mim<br />
mesmo como campo de provas atende a um propósito: articular teoria e prática. Isto é,<br />
não só refletir sobre a <strong>autoria</strong>, mas aproveitar o ensejo da pesquisa para realizar<br />
experimentações acerca das condições que possibilitem textos com marcas autorais no<br />
Jor<strong>na</strong>lismo. Aí a legitimidade da opção.<br />
Por outro la<strong>do</strong>, não há receio também de que a investigação se perca em<br />
subjetivismos. O caso de que trataremos a seguir é um exemplo, uma experiência que<br />
ilustra as proposições <strong>do</strong> capítulo anterior. Se elas se aplicam a mim, podem ser<br />
reproduzi<strong>do</strong>s por outros atores em outros ambientes e em condições semelhantes. Aí a<br />
validade de minha escolha.<br />
Que a validade, a legitimidade e a consistência de meu raciocínio saldem o alto<br />
tributo que hão de me cobrar por mais esta transgressão aos ditames científicos.<br />
6.1 O pesquisa<strong>do</strong>r como cobaia<br />
199<br />
“Usarei a mim mesmo como autor de <strong>do</strong>is romances<br />
(e, portanto, como cobaia) para a<strong>na</strong>lisar casos em que<br />
se verificou uma dessas duas possibilidades”<br />
Umberto Eco – Os limites da interpretação<br />
Sou jor<strong>na</strong>lista desde 1991, há treze anos, portanto. De lá para cá, atuei em<br />
jor<strong>na</strong>is e revistas, bem como em assessorias de imprensa. Passei pelas editorias de<br />
Cultura, Polícia, Política, Geral e Economia. Trabalhei para órgãos de imprensa <strong>do</strong><br />
interior de São Paulo, <strong>do</strong> Paraná e de Santa Catari<strong>na</strong>. Fui revisor, repórter, free-lancer e<br />
editor, mas me considero mesmo um rato de redação. Há cinco anos, divi<strong>do</strong>-me entre a<br />
reportagem e a <strong>do</strong>cência, experiências tão distantes quanto complementares. Na<br />
Universidade <strong>do</strong> Vale <strong>do</strong> Itajaí (Univali), em Santa Catari<strong>na</strong>, respon<strong>do</strong> pelas discipli<strong>na</strong>s<br />
de Legislação e Ética em Jor<strong>na</strong>lismo e Técnica de Reportagem, Entrevista e Pesquisa
Jor<strong>na</strong>lística, mas já ministrei as de Redação Jor<strong>na</strong>lística VII, Estética e Cultura de<br />
Massa, e Teoria e Méto<strong>do</strong> de Pesquisa.<br />
Na Univali, coordeno ainda um site de análise e crítica da imprensa local, o<br />
Monitor de Mídia (http://www.cehcom.univali.br/monitordemidia), projeto<br />
inicia<strong>do</strong> em agosto de 2001. Junto às revistas Fluxo e Carga & Cia, ambas editadas<br />
pela Foco Editorial em Curitiba (PR), sou repórter especial, encarrega<strong>do</strong> de enviar<br />
reportagens sobre transporte, logística e infra-estrutura. É <strong>na</strong> produção de algumas<br />
destas matérias que tentei alargar os limites para a impressão de uma <strong>autoria</strong>, como<br />
veremos a seguir.<br />
Além desses afazeres, aten<strong>do</strong> pela vice-presidência <strong>do</strong> Sindicato <strong>do</strong>s Jor<strong>na</strong>listas<br />
de Santa Catari<strong>na</strong> e “cometo” alguns textos teatrais, por meio de minha participação <strong>na</strong><br />
Perso<strong>na</strong> Cia de Teatro, de Florianópolis (SC). Já foram monta<strong>do</strong>s “Toda Vontade Mora<br />
Num Útero” (2001), “F.” (2001-2002), “Chata, Fria e Sem Recheio” (2002) e “Castelo<br />
de Cartas” (2004); estão em fase de produção “Urano Quer Mudar” e “O Escultor”,<br />
todas com previsão de estréia em 2004.<br />
(Mas por que essas informações interessam? Porque ajudam a apresentar o<br />
repórter, resumem sua trajetória e evidenciam alguns de seus assuntos de interesse.<br />
Essas podem ser pistas que si<strong>na</strong>lizem os esforços para a inscrição de uma <strong>autoria</strong>).<br />
Na academia, a área preponderante de meus trabalhos é a da Ética Jor<strong>na</strong>lística.<br />
Meus interesses acerca <strong>do</strong> assunto já renderam artigos opi<strong>na</strong>tivos, trabalhos científicos e<br />
um livro que se concentra sobre as preocupações com os desvios éticos no esta<strong>do</strong> em<br />
que milito: Monitores de Mídia – como o jor<strong>na</strong>lismo catarinense percebe seus deslizes<br />
éticos (Editoras da UFSC e Univali, 2003).<br />
200
Na política sindical, minhas maiores preocupações estão <strong>na</strong>s condições de<br />
trabalho <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista, sua condição social e a <strong>na</strong>tureza de sua formação. Isto é, como<br />
se pode ser jor<strong>na</strong>lista hoje no Brasil, numa conjuntura social desigual, num merca<strong>do</strong> de<br />
Comunicações em crise, num ambiente de homogeneização das culturas e de<br />
desinteresse pelas iniciativas de emancipação.<br />
No teatro, diversas vezes, não consegui fugir de histórias onde os perso<strong>na</strong>gens<br />
lutam para se definir enquanto sujeitos de suas ações. Em “Toda Vontade Mora Num<br />
Útero” 81 , duas prisioneiras aguardam a transferência para um novo presídio e, para<br />
administrar seus desejos e não enlouquecer, criam novas perso<strong>na</strong>lidades, duplican<strong>do</strong>-se.<br />
A subjetividade se clivava, distendia-se num mesmo corpo. Na segunda montagem,<br />
“F” 82 , decidi reunir vontades e subjetividades distintas. As gêmeas siamesas Maria e<br />
Glauss dão car<strong>na</strong>dura a esse desejo criativo. Em “Castelo de Cartas” 83 , um perso<strong>na</strong>gem<br />
se apossa <strong>do</strong> nome, da vontade e até mesmo da voz de sua esposa, mas ela tenta resistir.<br />
Em “Urano Quer Mudar” 84 , um homem estimula sua amada a deixar uma tradição para<br />
viver sua vida, desprendida de qualquer maldição ou si<strong>na</strong>. Em to<strong>do</strong>s esses casos, uma<br />
temática se repete, se reedita: a da afirmação <strong>do</strong> individual, <strong>do</strong> sujeito.<br />
Seria demais dizer que ca<strong>na</strong>lizei esses vetores (a ética jor<strong>na</strong>lística, a preocupação<br />
com as condições de trabalho <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista e a afirmação <strong>do</strong> sujeito) para a minha<br />
produção de repórter nos últimos anos em Carga & Cia e Fluxo. Não se deve afirmar<br />
isso, mas também não se pode ignorar que estes aspectos estão liga<strong>do</strong>s ao meu fazer<br />
81 Com A<strong>na</strong>maria Vincenzi e Maria da Graça Albino. Direção de Maria Paula Bonilha. A peça teve curtas<br />
temporadas no SESC-Florianópolis e <strong>na</strong> Udesc em agosto e setembro de 2001, além de ter si<strong>do</strong> selecio<strong>na</strong>da<br />
para a Mostra Paralela <strong>do</strong> Festival Nacio<strong>na</strong>l de Teatro Is<strong>na</strong>rd Azeve<strong>do</strong>.<br />
82<br />
No elenco, Igor Lima, Gláucia Grígolo, Maria Paula Bonilha e Malcon Jean Bauer. Direção de Jefferson<br />
Bittencourt. A produção circulou por 13 cidades catarinenses, teve curta temporada em São Paulo e foi a<br />
festivais em Pindamonhangaba, Blume<strong>na</strong>u, Passo Fun<strong>do</strong> e Curitiba. Conquistou oito prêmios e foi vista por<br />
mais de 3 mil especta<strong>do</strong>res.<br />
83<br />
Com Malcon Jean Bauer, Gláucia Grígolo e Igor Lima. Direção de Jefferson Bittencourt. O espetáculo<br />
estreou <strong>na</strong> Mostra de Teatro de Passo Fun<strong>do</strong> (RS) em maio deste ano.<br />
84<br />
Protagonizam Paula Braun e Fábio Hostert. Direção de Pepe Sedrez. Estréia em julho durante o Festival<br />
Universitário de Teatro de Blume<strong>na</strong>u. Em 2003, o texto teve leitura dramática de Margarida Baird e José<br />
Ro<strong>na</strong>l<strong>do</strong> Faleiro no mesmo evento.<br />
201
jor<strong>na</strong>lístico, já que não posso cindir-me quan<strong>do</strong> vou para a prática cotidia<strong>na</strong>. Como<br />
sujeito multifaceta<strong>do</strong>, sou o mosaico que contempla essas perso<strong>na</strong>s e outras mais. Os<br />
vetores de interesse podem não ter determi<strong>na</strong><strong>do</strong> minha forma de escrever<br />
jor<strong>na</strong>listicamente, mas têm grande chance de me influenciarem nesses momentos. É<br />
preciso admitir operações mentais inconscientes, acasos e incertezas no complexo<br />
processo de criação e escritura. Nem tu<strong>do</strong> é claro e transparente. Nem tu<strong>do</strong> está sob<br />
controle e é visível.<br />
Em termos meto<strong>do</strong>lógicos, esta tese pode ser classificada como uma pesquisa-<br />
experiência inserida numa epistemologia pragmática, pois pretende delinear o que<br />
constitui os fenômenos <strong>do</strong> <strong>olhar</strong> e da <strong>autoria</strong> <strong>na</strong> reportagem, ten<strong>do</strong> como base também<br />
experiências de convívio <strong>do</strong> próprio pesquisa<strong>do</strong>r. Assim, a tese se preocupa com a<br />
descrição, o registro, a análise e a interpretação <strong>do</strong>s processos atuais, vinculan<strong>do</strong>-os<br />
sempre com a prática profissio<strong>na</strong>l exercida em ambiente profissio<strong>na</strong>l.<br />
Num primeiro momento, realizei um mergulho <strong>na</strong> bibliografia sobre Jor<strong>na</strong>lismo<br />
(sua constituição e seus procedimentos operacio<strong>na</strong>is), sobre Epistemologia (as questões<br />
da <strong>objetividade</strong> e da subjetividade no processo de constituição <strong>do</strong> conhecimento) e sobre<br />
Autoria (principalmente a constituição dela e questões colaterais como a <strong>do</strong> estilo). A<br />
seguir, a<strong>na</strong>lisarei parte da minha experiência como repórter em duas revistas de<br />
circulação dirigida, editadas <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lmente. As publicações são as revistas Carga & Cia<br />
e Fluxo, voltadas para as áreas de logística, infra-estrutura e transportes. Desde 2000,<br />
faço reportagens para esses veículos, e desde então venho empreenden<strong>do</strong> algumas<br />
experiências no campo <strong>do</strong> texto, testan<strong>do</strong>-me para tor<strong>na</strong>r as matérias cada vez mais<br />
autorais, cada vez mais distintas <strong>do</strong> padrão rígi<strong>do</strong> de publicações <strong>do</strong> gênero.<br />
202
Por se voltarem a assuntos muito específicos e públicos tão qualifica<strong>do</strong>s, revistas<br />
deste ramo trazem reportagens “mais duras”, com textos menos fluentes, específicas a<br />
inicia<strong>do</strong>s nos temas. Minha experiência como repórter especial tem permiti<strong>do</strong> ver que,<br />
mesmo nesse terreno estreito, há espaço para a criatividade, a leveza e a origi<strong>na</strong>lidade.<br />
Tais aspectos auxiliam <strong>na</strong> visualização de uma <strong>autoria</strong>. Minhas reportagens são<br />
publicadas (com pouquíssimas alterações de edição) e preenchem espaços razoáveis <strong>na</strong>s<br />
revistas.<br />
Desde 2001, decidi estabelecer uma programática de pesquisa: avançar <strong>na</strong>s<br />
experiências textuais e ver até onde se pode ir com a <strong>autoria</strong> <strong>do</strong>s textos. Com isso,<br />
passei a cumprir pautas <strong>na</strong>s revistas, elaboran<strong>do</strong> textos intencio<strong>na</strong>lmente autorais. Os<br />
editores nunca souberam deste meu propósito, nem nunca quis causar suspeita dele. As<br />
matérias eram enviadas de Florianópolis à redação – em Curitiba - e editadas por lá, sem<br />
qualquer interferência minha. Tal qual foram publicadas, serão a<strong>na</strong>lisadas.<br />
Meto<strong>do</strong>logicamente, faço um recorte em minha produção desde 2000. Das matérias<br />
publicadas, selecionei dez para a comparação <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> veicula<strong>do</strong> com os arquivos<br />
origi<strong>na</strong>is <strong>do</strong> autor, e para a indicação <strong>do</strong>s traços que possibilitam ler ali um exercício de<br />
<strong>autoria</strong> no jor<strong>na</strong>lismo. Títulos, características e critérios da escolha serão detalha<strong>do</strong>s a<br />
seguir, <strong>na</strong> seção que descreve os testes desta pesquisa.<br />
Por fim, para contrapor os resulta<strong>do</strong>s da análise, apresento os pontos-de-vista de<br />
quem editou tais reportagens: o diretor editorial das publicações, a chefe de redação e a<br />
chefe de reportagem. Durante to<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> a<strong>na</strong>lisa<strong>do</strong>, os três foram os primeiros<br />
leitores das matérias e constituíram a instância de decisão sobre suas publicações ou<br />
não. Nas entrevistas, abor<strong>do</strong> informações relativas aos critérios de edição de uma<br />
reportagem em detrimento de outra, bem como suas posições acerca da <strong>autoria</strong> nos<br />
textos jor<strong>na</strong>lísticos. Evidentemente, em nenhum momento, foram revela<strong>do</strong>s aos editores<br />
203
o objetivo da pesquisa e a prática <strong>do</strong> repórter <strong>na</strong>s matérias. Na verdade, as entrevistas<br />
com os editores funcio<strong>na</strong>m como filtros da pesquisa e devem ser cruzadas com a análise<br />
das reportagens e com as diretrizes teóricas esboçadas no Capítulo 5. O que se quer com<br />
esse cruzamento é o delineamento <strong>do</strong>s critérios jor<strong>na</strong>lísticos que permitiram a<br />
emergência de uma <strong>autoria</strong> <strong>na</strong>s reportagens escolhidas.<br />
204
6.2. O ambiente <strong>do</strong> laboratório e as condições de<br />
trabalho <strong>do</strong> repórter<br />
“Pergunta-se pelo futuro <strong>do</strong>s jor<strong>na</strong>listas. Eles estão<br />
em vias de extinção. O sistema não quer mais saber deles”<br />
Ignácio Ramonet – A tirania da comunicação<br />
“Eu sempre quis ser jor<strong>na</strong>lista – fuçar, descobrir as coisas,<br />
as coisas que estão por trás das coisas, falar com as pessoas<br />
que admiro, com outras que desprezo, conhecer as que eu<br />
nunca imaginei. E depois sentar e escrever a história <strong>do</strong><br />
jeito mais interessante possível, <strong>do</strong> tamanho pedi<strong>do</strong> e no<br />
prazo que o jor<strong>na</strong>l precisa”<br />
Sérgio Dávila – Nova York antes e depois <strong>do</strong> atenta<strong>do</strong><br />
Estávamos no fi<strong>na</strong>l de 1999, quan<strong>do</strong> tocou o celular. Do outro la<strong>do</strong> da linha, uma<br />
repórter da sucursal catarinense da Gazeta Mercantil fazia um convite: queria me<br />
indicar como repórter free-lancer para uma revista para<strong>na</strong>ense da área de transportes.<br />
Havia pouco eu saíra da Editoria de Economia <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>l A Notícia, e a jor<strong>na</strong>lista da<br />
Gazeta estava deixan<strong>do</strong> de mandar matérias para a tal revista. “É pra ser frila fixo e<br />
estou meio sem tempo para eles, entende?”. Sei. Tentei saber um pouco mais da<br />
publicação, mas jor<strong>na</strong>lista sempre tem tanta pressa... Foi o tempo de apanhar o número<br />
da revista e um contato. Foi assim - totalmente por acaso - que começou minha relação<br />
com a Foco Editorial, que tem hoje três títulos no merca<strong>do</strong>, <strong>do</strong>is para quem ainda hoje<br />
escrevo – mesmo que bissextamente.<br />
Como não podia ser diferente, a Foco Editorial é uma empresa de comunicação<br />
que vai surgir de olho num precioso filão de merca<strong>do</strong>.<br />
205
6.2.1 As revistas<br />
Na segunda metade <strong>do</strong>s anos 90, a região metropolita<strong>na</strong> de Curitiba (PR) vai se<br />
converter num terreno fértil para o setor de Transportes, alargan<strong>do</strong> tentáculos para área<br />
adjacentes como a de Logística e de Infra-estrutura. Um conjunto de fatores geográfico-<br />
econômicos contribui para tor<strong>na</strong>r o Paraná um importante pólo <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l de logística:<br />
• A forte industrialização <strong>na</strong> década de 90 com a vinda de diversas<br />
indústrias de peso, nos ramos alimentício, metal-mecânico e automotivo,<br />
principalmente;<br />
• Os maciços investimentos estatais em obras de infra-estrutura,<br />
notadamente em estradas, acessos e portos. O governo Jaime Lerner<br />
alardeia que aplicou R$ 12 bilhões no setor entre injeções diretas e<br />
renúncias fiscais;<br />
• A privilegiada localização: o Paraná está cola<strong>do</strong> a São Paulo – o maior<br />
merca<strong>do</strong> produtivo e consumi<strong>do</strong>r <strong>do</strong> país – e é porta de escoamento para<br />
os esta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Sul e países <strong>do</strong> Mercosul;<br />
• A disponibilidade de um pujante porto, o de Para<strong>na</strong>guá, que conseguiu<br />
atrair empresas especializadas em soluções logísticas, armaze<strong>na</strong>gem e<br />
transporte.<br />
Esses fatores agrega<strong>do</strong>s a outros resultaram num cenário que coloca o esta<strong>do</strong><br />
como responsável por 25% das operações logísticas <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is e num merca<strong>do</strong> que tem 2<br />
mil transporta<strong>do</strong>ras, só para citar <strong>do</strong>is indica<strong>do</strong>res.<br />
Grandes empresas, grandes anunciantes. Em março de 1999, a Foco Editorial<br />
lançou a Carga & Cia, que já se autodenomi<strong>na</strong>va a “sucessora da revista Transporte”,<br />
206
uma publicação editada pelo Sindicato das Empresas Transporta<strong>do</strong>ras de Cargas <strong>do</strong><br />
Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Paraná (Setcepar) e pela Tempo Editorial. Na verdade, a Transporte era uma<br />
revista que não tratava de Logística e Infra-estrutura, assuntos que a nova Carga & Cia<br />
passaria a cobrir e só circulava <strong>na</strong>quele esta<strong>do</strong>, conforme explicou Rui Cichella,<br />
presidente <strong>do</strong> Conselho Editorial e também presidente <strong>do</strong> Setcepar 85 :<br />
“Mais <strong>do</strong> que uma simples mudança de nome, trata-se de uma<br />
profunda mexida no projeto gráfico e editorial da publicação. (...)<br />
Carga & Cia também passa, a partir das próximas edições, a ser<br />
vendida em bancas de revistas e a ser distribuída nos esta<strong>do</strong>s de<br />
Santa Catari<strong>na</strong> e Rio Grande <strong>do</strong> Sul, além da tradicio<strong>na</strong>l presença<br />
em to<strong>do</strong> o Paraná”.<br />
A Transporte era uma publicação que circulava com mais dificuldade. Marcelo<br />
Motta Vieira era assessor de imprensa <strong>do</strong> Setcepar e convenceu o sindicato a lançar uma<br />
revista mensal que não tratasse ape<strong>na</strong>s <strong>do</strong> setor transporta<strong>do</strong>r. “Eu era colunista político<br />
<strong>na</strong> época, no Jor<strong>na</strong>l <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, e acabei demiti<strong>do</strong>. Como já conhecia o setor e via nele<br />
um bom filão, criei a Foco Editorial”, conta o jor<strong>na</strong>lista 86 . Carga & Cia surgiu como<br />
resulta<strong>do</strong> de uma parceria entre a editora e o sindicato. O acor<strong>do</strong> durou ape<strong>na</strong>s uma<br />
edição. “Quan<strong>do</strong> eles viram quanto custava editar uma revista, a parceria acabou”,<br />
explica Motta Vieira.<br />
A publicação é uma exceção no merca<strong>do</strong>: é uma das poucas que é produzida fora<br />
de São Paulo, mantém sua periodicidade desde o surgimento e se pauta pela amplidão<br />
<strong>na</strong> cobertura editorial, não só cobrin<strong>do</strong> as transporta<strong>do</strong>ras, mas os demais elos da cadeia<br />
de distribuição. “Tratamos de infra-estrutura e isso acarreta em falar de política. Muitos<br />
concorrentes evitam de fazer isso. A gente não abre mão”, diferencia. Para uma<br />
descrição mais efetiva: a Carga & Cia é editada mensalmente, num formato de 21 cm X<br />
28 cm, toda impressa em quadricromia em papel couché fosco. De início, vinha com 48<br />
85 Mudan<strong>do</strong> para melhor, editorial da Carga & Cia de nº 1, de março de 1999.<br />
86 Entrevista ao autor em 23 de abril de 2004, <strong>na</strong> sede da editora em Curitiba (PR).<br />
207
pági<strong>na</strong>s, reunida num miolo com adição de grampos. A partir <strong>do</strong> nº 34, de março de<br />
2002, a<strong>do</strong>tou novo projeto gráfico, mais seções fixas, uma nova versão eletrônica <strong>na</strong><br />
internet (http://www.cargaecia.com.br) e encader<strong>na</strong>ção com lombada america<strong>na</strong>. Essas<br />
modificações marcaram os três anos de circulação da revista – que chega a sair com 72<br />
pági<strong>na</strong>s <strong>na</strong> edição nº 43, por exemplo, mas mantém-se numa média de 60 pági<strong>na</strong>s.<br />
A tiragem inicial foi de 2 mil exemplares, volta<strong>do</strong>s basicamente para as<br />
transporta<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> Paraná. Hoje, com um público leitor mais consolida<strong>do</strong>, a publicação<br />
tira mensalmente 7 mil exemplares (não audita<strong>do</strong>s) e só circula restritamente ao trade,<br />
mas seu alcance é <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l. A distribuição é feita pela própria editora, mas houve<br />
experiências com a OESP e com a disponibilização <strong>do</strong> título em bancas de São Paulo e<br />
Rio de Janeiro. Tais opções alcançaram bons resulta<strong>do</strong>s, mas eles foram considera<strong>do</strong>s<br />
equivoca<strong>do</strong>s pela empresa <strong>na</strong> estratégia de fixação <strong>do</strong> título no merca<strong>do</strong>. “Temos, hoje,<br />
assi<strong>na</strong>ntes em to<strong>do</strong> o país, <strong>do</strong> sul ao norte, e até mesmo fora <strong>do</strong> país. Nossa mailling list<br />
é tem uma boa cobertura <strong>do</strong> setor”, avalia o diretor editorial da Foco.<br />
Entre os anunciantes da Carga & Cia, estão a Ford, a Goodyear, a Volkswagen,<br />
a Autotrac, a Marcopolo, a Busscar, a Volvo, a Scania, a Agrale e a Mercedes-Benz.<br />
Do seu surgimento até abril de 2002, Carga & Cia manteve-se concentrada em<br />
três eixos de cobertura: Transportes (nos diversos modais), Logística (com ênfase <strong>na</strong>s<br />
soluções a<strong>do</strong>tadas por empresas para problemas cotidianos) e Infra-estrutura<br />
(salientan<strong>do</strong> investimentos e diagnósticos de eficiência). Mesmo com as alterações<br />
feitas ao longo <strong>do</strong> tempo, a revista se equilibrou entre seções fixas com notas<br />
informativas, artigos a<strong>na</strong>líticos de especialistas e autoridades, matérias sobre<br />
lançamentos no setor automotivo, entrevistas e reportagens mais aprofundadas. Amplo,<br />
o arco de interesse da publicação possibilitava a cobertura das pautas mais díspares: <strong>do</strong><br />
alto custo de embarques nos portos brasileiros aos pedágios <strong>na</strong>s estradas; <strong>do</strong> escoamento<br />
208
e circulação de produtos às privatizações no sistema elétrico e de transportes; da<br />
automatização <strong>na</strong> indústria automotiva às fusões de companhias aéreas, de inovações<br />
tecnológicas às descargas de poluentes <strong>do</strong>s veículos automotores...<br />
Em maio de 2002, Carga & Cia muda mais uma vez. Passa a cobrir ape<strong>na</strong>s<br />
Transportes e Infra-estrutura, e a Foco Editorial lança a Fluxo: “Primeiro filhote da<br />
Carga & Cia (...), a Fluxo chega ao merca<strong>do</strong> para tratar de temas liga<strong>do</strong>s a Logística,<br />
Armaze<strong>na</strong>gem, Movimentação de Materiais e Tecnologia de Informação”, explicou o<br />
diretor editorial Marcelo Motta Vieira no primeiro editorial da publicação.<br />
Com as mesmas dimensões e formato de Carga & Cia, a Fluxo saiu com tiragem<br />
inicial de 5 mil exemplares, 48 pági<strong>na</strong>s coloridas em papel couché e encader<strong>na</strong>ção com<br />
lombada america<strong>na</strong>. Circulação <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, distribuição dirigida, as mesmas instalações<br />
de produção e o mesmo corpo editorial da primeira revista da empresa.<br />
Com a experiência bem-sucedida da Carga & Cia, a Foco Editorial provou o<br />
merca<strong>do</strong> e percebeu brecha para crescer, segmentan<strong>do</strong> ainda mais os próximos<br />
produtos 87 . Pela Fluxo, por exemplo, desfilam matérias sobre redução de custos de<br />
operação, casos de logística integrada, soluções para distribuição de cargas perigosas e<br />
perecíveis, estratégias de armaze<strong>na</strong>gem, etiquetagem eletrônica e novidades no campo<br />
da Tecnologia da Informação (TI)... A cada mês, a publicação traz reportagens, seções<br />
fixas, notas, entrevistas e um suplemento especial (Expertise) com artigos de fun<strong>do</strong><br />
escritos por consultores <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> e especialistas acadêmicos. A segmentação se<br />
observa também nos anunciantes da Fluxo: Associação Brasileira de Logística, Iveco,<br />
Águia Sistemas de Armaze<strong>na</strong>gem, Vaspex, Re<strong>na</strong>ult, TransTec, América Lati<strong>na</strong><br />
Logística, Mitsubishi Empilhadeiras...<br />
87 Esta tendência teria mais um episódio em abril de 2003, quan<strong>do</strong> seria lançada a Fórmula Brasil, mais<br />
voltada ao automobilismo e às muitas categorias competitivas que cercam os esportes sobre rodas. A<br />
recessão de 2003 afugentou os anunciantes e a revista deixou de circular em dezembro, com nove números<br />
lança<strong>do</strong>s.<br />
209
Não há estatísticas consolidadas nem tampouco perfis confiáveis <strong>do</strong> segmento<br />
merca<strong>do</strong>lógico que abrange Fluxo e Carga & Cia. Nota-se, no entanto, que há diversos<br />
títulos disputan<strong>do</strong> os leitores brasileiros e que existe grande diversidade entre os<br />
patamares de qualidade <strong>do</strong>s produtos, os nichos que exploram e a própria longevidade<br />
dessas publicações. A Revista Ferroviária, por exemplo, é editada há 64 anos pela<br />
Empresa Jor<strong>na</strong>lística <strong>do</strong>s Transportes Ltda, <strong>do</strong> Rio de Janeiro. É a mais antiga <strong>do</strong> setor,<br />
mas já teve concorrentes que circularam pouco, como a Revista Ferrovia, editada pela<br />
Associação <strong>do</strong>s Engenheiros da Estrada de Ferro Santos à Jundiaí (AEEFSJ) <strong>na</strong>s<br />
décadas de 80 e 90. Há exemplos que atendem a outros modais, como é o caso da<br />
Revista <strong>do</strong> Ônibus, da recente Transurba<strong>na</strong>, da Frota, da AutoData, da Carga Pesada e<br />
da Conexão Marítima, que é bimensal, circula no sul-sudeste e países <strong>do</strong> Mercosul,<br />
concentran<strong>do</strong>-se em comércio exterior e no sistema portuário.<br />
O merca<strong>do</strong> <strong>do</strong> setor não é fácil. O diretor da Foco Editorial, Marcelo Motta<br />
Vieira, qualifica de “drásticas” as <strong>medida</strong>s que tomou no início <strong>do</strong> ano, com a<br />
interrupção <strong>na</strong> circulação da recente Fórmula Brasil (que durou só nove edições) e com<br />
as mudanças <strong>na</strong> distribuição de Carga & Cia e Fluxo. “Elas passam a chegar juntas aos<br />
assi<strong>na</strong>ntes. São <strong>do</strong>is títulos diferentes, mas serão distribuídas num pacote. Isso porque<br />
percebemos que estava acontecen<strong>do</strong> sobreposição de áreas” 88 . Embora cubram áreas<br />
distintas, a avaliação é de que as revistas se complementam. “Percebemos que a<br />
tendência das transporta<strong>do</strong>ras é se tor<strong>na</strong>r opera<strong>do</strong>ras logísticas”.<br />
Como não há definição clara desse merca<strong>do</strong>, faltam bases que possam sustentar<br />
análises comparativas entre os títulos. Tal carência não inviabiliza a pesquisa que<br />
apresento aqui, já que ela enfoca uma experiência realizada em veículo dirigi<strong>do</strong> pouco<br />
importan<strong>do</strong> da<strong>do</strong>s mais específicos. Nas pági<strong>na</strong>s que se seguem, interessa mais perceber<br />
como uma certa experimentação teve lugar e que condições a permitiram.<br />
210
6.2.2 A roti<strong>na</strong> <strong>do</strong> repórter<br />
As condições de produção <strong>do</strong> repórter, sim, interessam a esta experiência. É<br />
relevante saber que circunstâncias cercaram o pesquisa<strong>do</strong>r-cobaia durante a realização<br />
<strong>do</strong>s testes.<br />
O material noticioso é edita<strong>do</strong> <strong>na</strong> redação das revistas, <strong>na</strong> sede da Foco Editorial,<br />
em Curitiba (PR). Atuo como repórter especial das publicações em Florianópolis (SC), e<br />
prioritariamente cubro assuntos circunscritos nos limites catarinenses, muito embora já<br />
tenha produzi<strong>do</strong> reportagens em São Paulo e no Rio Grande <strong>do</strong> Sul. Essa distância me<br />
desvincula de uma roti<strong>na</strong> convencio<strong>na</strong>l de empresa jor<strong>na</strong>lística. Isto é, não acompanho<br />
as reuniões de pauta, o trabalho de edição, os fechamentos e a chegada da revista da<br />
gráfica. O que não significa dizer que fico alheio aos deadlines. Entretanto, não<br />
comungo de uma visão global da edição que se está produzin<strong>do</strong>, pouco converso com os<br />
editores durante a confecção das matérias e não tenho nenhum acesso às pági<strong>na</strong>s<br />
editadas e diagramadas antes de sua ida e retorno da impressão.<br />
As pautas são me passadas pelos editores, mas houve diversos casos em que<br />
sugeri os assuntos e tive a liberação para cobri-los. Faço entrevistas pessoalmente ou<br />
por telefone, viajo quan<strong>do</strong> necessário e escrevo os textos em casa, envian<strong>do</strong>-os por e-<br />
mail à redação. Mantenho pouco contato com os editores, aten<strong>do</strong>-me ape<strong>na</strong>s ao<br />
necessário sobre esclarecimentos da pauta e alargamento de prazos. Quase sempre por<br />
telefone. Os prazos para envio das matérias variam de duas sema<strong>na</strong>s até <strong>do</strong>is meses,<br />
sempre dependen<strong>do</strong> da programação <strong>do</strong>s editores e das dificuldades que os temas<br />
reservam. Essas condições permitem-me uma <strong>do</strong>se de autonomia de trabalho por um<br />
la<strong>do</strong> e um certo alheamento <strong>do</strong> processo total de produção de uma revista.<br />
88 Marcelo Motta Vieira, em entrevista ao autor. Curitiba, 23 de abril de 2004.<br />
211
Minha roti<strong>na</strong> de trabalho é atípica e as contribuições às revistas são espaçadas.<br />
Isso se explica pelo acúmulo de funções e compromissos (que me impede de trabalhar<br />
mais para a Foco Editorial) e pela própria gestão inter<strong>na</strong> das pautas enviadas aos<br />
repórteres (<strong>na</strong> grande maioria, free-lancers). De fevereiro de 2000 a abril de 2004, eu<br />
havia produzi<strong>do</strong> vinte reportagens para a editora, sen<strong>do</strong> 14 para a Carga & Cia e seis<br />
para a revista Fluxo. Foram três matérias enviadas em 2000, duas em 2001, dez em<br />
2002 e cinco em 2003.<br />
A seguir a relação completa das reportagens e suas referências:<br />
De volta ao banco escolar Carga & Cia - Nº 11, Fevereiro/2000<br />
Muito além <strong>do</strong> just-in-time Carga & Cia - Nº 14, Maio/2000<br />
Mar de novidades Carga & Cia - Nº 15, Junho/2000<br />
Si<strong>na</strong>l Vermelho Carga & Cia - Nº 23, Março/2001<br />
Os alquimistas estão chegan<strong>do</strong> Carga & Cia - Nº 23, Março/2001<br />
O perigo está no ar Carga & Cia - Nº 31, Novembro/2001<br />
É lixo só! Carga & Cia - Nº 35, Abril/2002<br />
Contêiner de surpresas Fluxo - Nº 01, Maio/2002<br />
Transportar é uma arte Carga & Cia - Nº 36, Maio/2002<br />
Suan<strong>do</strong> a camisa Fluxo - Nº 02, Junho2002<br />
Sempre cabe mais um Carga & Cia - Nº 38, Julho/2002<br />
Fora com o carimbo Fluxo - Nº 03, Julho/2002<br />
Um porto que se move Fluxo - Nº 03, Julho/2002<br />
Volante e giz Carga & Cia - Nº 39, Agosto/2002<br />
Mais peso para a carga Carga & Cia - Nº 39, Agosto/2002<br />
Altos negócios, baixos cala<strong>do</strong>s Fluxo - Nº 07, Novembro/2002<br />
Socorro à vista Carga & Cia - Nº 44, Fevereiro e Março/2003<br />
212
Integra<strong>do</strong> e complica<strong>do</strong> Carga & Cia - Nº 49, Agosto/2003<br />
As vinhas <strong>na</strong> mira Fluxo - Nº 14, Agosto/2003<br />
O salário <strong>do</strong> me<strong>do</strong> Carga & Cia - Nº 52, Novembro/2003<br />
Evidentemente, farei um recorte <strong>na</strong> produção, pinçan<strong>do</strong> alguns casos<br />
significativos no que tange o esforço de inscrição de uma <strong>autoria</strong> <strong>na</strong> reportagem, algo<br />
que detalharei <strong>na</strong> próxima seção.<br />
213
6.2.3 O recorte<br />
Do conjunto de reportagens produzidas para Carga & Cia e Fluxo, selecionei<br />
uma parte para que pudesse aprofundar uma reflexão acerca das tentativas de inscrição<br />
de uma assi<strong>na</strong>tura jor<strong>na</strong>lística. Estabeleci alguns critérios para contribuir <strong>na</strong>s condições<br />
de verificação.<br />
O primeiro foi a abrangência da amostra <strong>do</strong>s textos. A seleção deveria dar conta<br />
da extensão de tempo de minha experiência como repórter das revistas. Essa<br />
preocupação visava não trabalhar sobre textos concentra<strong>do</strong>s num único ano ou outro, a<br />
ponto de causar a impressão de que a <strong>autoria</strong> fosse ali um fenômeno data<strong>do</strong>, circunscrito<br />
numa fase.<br />
Um segun<strong>do</strong> critério para seleção <strong>do</strong> corpus de análise foi a proporcio<strong>na</strong>lidade.<br />
Isto é, eu precisava contemplar textos das duas revistas em número proporcio<strong>na</strong>l à<br />
minha contribuição a elas e ao tempo de sua existência no merca<strong>do</strong>. Assim, o corpus<br />
deveria conter mais matérias publicadas em Carga & Cia <strong>do</strong> que em Fluxo, já que a<br />
primeira circula desde 1999 e para ela escrevi 14 <strong>do</strong>s 20 textos no perío<strong>do</strong>. Este segun<strong>do</strong><br />
critério estabeleceu proporções mais ou menos fixas para cada subconjunto de<br />
reportagens.<br />
Alia<strong>do</strong> a isso, decidi aplicar um filtro <strong>na</strong> seleção. Desprezei o primeiro e o<br />
último ano de minha contribuição para a editora. Com isso, criei uma espécie de janela<br />
de eventualidade, dentro da qual teríamos textos que não estivessem sob a influência <strong>do</strong><br />
começo de minha relação com a empresa, nem sob a influência da escritura desta tese.<br />
Este foi um critério que priorizou a distância.<br />
Em seguida, passei a reler as reportagens, aten<strong>do</strong>-me às características textuais<br />
que mais facilmente evidenciassem uma unidade estilística, critério que tem como foco<br />
a pertinência <strong>do</strong>s objetos de observação com a temática <strong>do</strong> estu<strong>do</strong>. Quer dizer,<br />
214
destaquei as matérias onde se pudesse perceber que eu mais tivesse experimenta<strong>do</strong><br />
textualmente. É evidente que este critério se reveste de muita subjetividade, fator que<br />
poderia interferir decisivamente sobre os resulta<strong>do</strong>s da minha análise. Para reduzir essa<br />
possibilidade, resolvi trabalhar com uma amostragem grande frente ao conjunto total<br />
<strong>do</strong>s textos. Por isso, escolhi dez exemplos <strong>do</strong>s vinte produzi<strong>do</strong>s – 50% - para dar mais<br />
condições de aleatoriedade e legitimidade. A expressiva amostragem deve funcio<strong>na</strong>r<br />
como mais um filtro de seleção.<br />
Defini<strong>do</strong>s esses critérios, cheguei à seguinte composição <strong>do</strong> corpus de análise:<br />
<strong>do</strong>is textos publica<strong>do</strong>s em 2001, cinco em 2002 e três em 2003. Dos quais, seis<br />
circularam <strong>na</strong>s pági<strong>na</strong>s de Carga & Cia e quatro <strong>na</strong>s de Fluxo. As unidades de análise,<br />
por ordem de veiculação, são:<br />
Título da reportagem Referências_________________________<br />
Os alquimistas estão chegan<strong>do</strong> Carga & Cia - Nº 23, Março/2001<br />
O perigo está no ar Carga & Cia - Nº 31, Novembro/2001<br />
É lixo só! Carga & Cia - Nº 35, Abril/2002<br />
Sempre cabe mais um Carga & Cia - Nº 38, Julho/2002<br />
Fora com o carimbo Fluxo - Nº 03, Julho/2002<br />
Um porto que se move Fluxo - Nº 03, Julho/2002<br />
Altos negócios, baixos cala<strong>do</strong>s Fluxo - Nº 07, Novembro/2002<br />
Socorro à vista Carga & Cia - Nº 44, Fevereiro e Março/2003<br />
As vinhas <strong>na</strong> mira Fluxo - Nº 14, Agosto/2003<br />
O salário <strong>do</strong> me<strong>do</strong> Carga & Cia - Nº 52, Novembro/2003<br />
215
Para haver clareza meto<strong>do</strong>lógica, é preciso que se diga que, neste tempo to<strong>do</strong> de<br />
reportagem para as revistas, meus origi<strong>na</strong>is sempre foram muito pouco altera<strong>do</strong>s no<br />
processo de edição. Para além das qualidades intrínsecas <strong>do</strong> material envia<strong>do</strong> à redação,<br />
quero com esta menção ressaltar o rigor e o respeito com os quais trabalharam os<br />
profissio<strong>na</strong>is que editaram tais reportagens. As análises que procederei mais adiante<br />
serão feitas sobre os textos publica<strong>do</strong>s e, portanto, já revisa<strong>do</strong>s e ajusta<strong>do</strong>s aos formatos<br />
técnicos das publicações. Os elementos estilísticos e as características autorais passaram<br />
pelo crivo <strong>do</strong>s editores e estão sedimenta<strong>do</strong>s no espírito das reportagens.<br />
216
6.3. As tentativas de inscrição de uma assi<strong>na</strong>tura<br />
217<br />
“Era como ler uma vida paralela à minha,<br />
e ao falar <strong>na</strong> primeira pessoa, por um perso<strong>na</strong>gem<br />
paralelo a mim, eu gaguejava. Mas depois que aprendi<br />
a tomar distância <strong>do</strong> eu <strong>do</strong> livro, minha leitura fluiu.”<br />
Chico Buarque, Budapeste<br />
Foucault inicia o seu A ordem <strong>do</strong> discurso, dizen<strong>do</strong> que gostaria de se “insinuar<br />
sub-repticiamente no discurso” de sua aula i<strong>na</strong>ugural no Collège de France, no começo<br />
de dezembro de 1970. Como ele, eu gostaria muito de iniciar esta seção da tese,<br />
deixan<strong>do</strong> de la<strong>do</strong> to<strong>do</strong> traço de cabotinismo, e mais alguns vestígios de arrogância,<br />
egocentrismo e presunção. Sei que ao optar pelo caminho de ser cobaia de mim mesmo,<br />
corro os riscos que a interpretação impõe num processo de leitura. Não ignoro o fato de<br />
que os leitores possam considerar minha atitude – a<strong>na</strong>lisar o próprio texto para<br />
referendar minhas proposições – um tanto suspeita; que possam ver nisso um exercício<br />
fácil e pretensioso; que vejam aqui um contra-senso aos procedimentos científicos.<br />
Enten<strong>do</strong> isso, mas absorvo tais críticas em nome da opção meto<strong>do</strong>lógica que fiz.<br />
A<strong>na</strong>lisar minhas matérias jor<strong>na</strong>lísticas em busca de uma <strong>autoria</strong> <strong>na</strong> reportagem<br />
foi a maneira mais coerente que encontrei para fazê-lo. Remexer <strong>na</strong>s próprias vísceras<br />
permitiu-me não ape<strong>na</strong>s retor<strong>na</strong>r à prática <strong>do</strong> repórter que sou, mas ainda refletir sobre o<br />
profissio<strong>na</strong>l que preten<strong>do</strong> continuar construin<strong>do</strong> ao longo <strong>do</strong> tempo. Voltar meu <strong>olhar</strong><br />
para o próprio umbigo possibilitou ainda tecer uma crítica aos procedimentos que a<strong>do</strong>to<br />
e separar inconsistências e recursos descartáveis. Os exemplos que apresento a seguir e<br />
os comentários que os acompanham tentam mapear alguns esforços no senti<strong>do</strong> de um<br />
exercício autoral <strong>na</strong> reportagem. Por isso, os dez casos relata<strong>do</strong>s <strong>na</strong>s próximas pági<strong>na</strong>s<br />
não se colocam servem mais de exemplo de como tentei inscrever uma assi<strong>na</strong>tura<br />
jor<strong>na</strong>lística <strong>do</strong> que como fórmulas e procedimentos padrões para esse exercício. Nas<br />
matérias que apresento, manifesto mais testemunhos que lições, mais marcas que<br />
carimbos, mais exemplos que modelos.
Para além <strong>do</strong> caminho teórico que os leitores percorreram comigo <strong>na</strong>s quase<br />
duzentas pági<strong>na</strong>s anteriores, proponho um resto de fôlego para um mergulho da minha<br />
prática <strong>na</strong> reportagem. Julgo que as tentativas <strong>na</strong> inscrição de uma assi<strong>na</strong>tura, no<br />
exercício de uma <strong>autoria</strong>, foram bem sucedidas. Mas não bastam ape<strong>na</strong>s as minhas<br />
intuições. Por isso, ofereço meus exemplos. Ser cobaia de si mesmo pode parecer<br />
confortável, mas traz em si muitos perigos também. Um deles: deixar-se cortar <strong>na</strong><br />
própria carne.<br />
218
Carga & Cia. Nº 23. Março de 2001. pp.42-3<br />
Os alquimistas estão chegan<strong>do</strong><br />
Sem dinheiro para modernizar as unidades, o governo catarinense repassa para a<br />
iniciativa privada a operação de termi<strong>na</strong>is em São Francisco e Itajaí<br />
Na década de 80, era comum a idéia, entre empresas e usuários, de que só um<br />
passe de mágica poderia salvar o sistema portuário brasileiro. Equipamentos obsoletos,<br />
logística inoperante e custos altos faziam <strong>do</strong>s portos o centro das reclamações de<br />
quem importava e exportava por <strong>na</strong>vio. O cenário começou a mudar em 1993,<br />
quan<strong>do</strong> o governo federal acenou com um sopro de esperança ao publicar a Lei de<br />
Modernização <strong>do</strong>s Portos, que permitiu uma maior abertura <strong>do</strong> setor.<br />
Se não produziu milagres, a lei teve o mérito de criar oportunidades para alguns<br />
“magos” se apresentarem. As primeiras modificações se deram <strong>na</strong>s relações de<br />
trabalho entre opera<strong>do</strong>res portuários e as diversas categorias envolvidas nos negócios.<br />
Nos últimos três anos, as mudanças estão acontecen<strong>do</strong> <strong>na</strong> própria exploração <strong>do</strong>s<br />
negócios nos portos, com a chegada da iniciativa privada e a conquista de parcelas<br />
importantes da movimentação de cargas no país. Em Santa Catari<strong>na</strong> não é diferente.<br />
Nos <strong>do</strong>is maiores portos catarinenses – Itajaí e São Francisco <strong>do</strong> Sul – a iniciativa<br />
privada vem conquistan<strong>do</strong> espaço nos termi<strong>na</strong>is <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> porque os administra<strong>do</strong>res<br />
(a prefeitura e o governo estadual, respectivamente) não têm caixa para promover as<br />
melhorias exigidas pela modernização <strong>do</strong> segmento. Como dinheiro não surge <strong>na</strong><br />
cartola, a saída foi apelar para o empresaria<strong>do</strong>.<br />
Nas ur<strong>na</strong>s - A idéia de arrendar o Termi<strong>na</strong>l de Contêineres <strong>do</strong> Porto de Itajaí (Teconvi),<br />
por exemplo, até gerou polêmica durante a campanha eleitoral <strong>do</strong> ano passa<strong>do</strong>,<br />
concentran<strong>do</strong> a atenção <strong>do</strong>s candidatos a prefeito. Os três representantes da<br />
oposição eram contrários à proposta, defendida candidato à reeleição – que acabou<br />
vitorioso – com o argumento de que só a transferência da concessão à iniciativa<br />
privada salvaria o porto, injetan<strong>do</strong> ali R$ 80 milhões em novos investimentos.<br />
Longe de qualquer disputa, seja econômica ou eleitoral, outro porto de Santa<br />
Catari<strong>na</strong>, o de São Francisco <strong>do</strong> Sul, deve estar i<strong>na</strong>uguran<strong>do</strong> mais um termi<strong>na</strong>l neste<br />
ano, com exploração exclusiva pela iniciativa privada. Quem vai administrar o novo<br />
atraca<strong>do</strong>uro é a Termi<strong>na</strong>is Portuários São Francisco <strong>do</strong> Sul S/A (Terfran), empresa<br />
formada com capital da Cejen Engenharia e <strong>do</strong>s fun<strong>do</strong>s de pensão Portus (<strong>do</strong>s<br />
portuários) e Cellos (<strong>do</strong>s eletricitários). As obras para a construção <strong>do</strong> novo píer de 255<br />
metros, dragagem e alargamento <strong>do</strong> ca<strong>na</strong>l devem estar totalmente concluídas no<br />
fi<strong>na</strong>l de 2001, mas, comercialmente, as operações podem começar já a partir deste<br />
mês. “Estamos no fi<strong>na</strong>l da fase de dragagem”, informa o administra<strong>do</strong>r <strong>do</strong> termi<strong>na</strong>l,<br />
219
José Carlos Mello Rego.<br />
Hoje, quatro opera<strong>do</strong>res portuários - o consórcio WR, a Litoral, a Ocean Trade e<br />
a Portobello – fazem to<strong>do</strong> o trabalho em São Francisco <strong>do</strong> Sul. O diretor fi<strong>na</strong>nceiro <strong>do</strong><br />
porto, João Alberto Ramos Pfeilsteicker, calcula que o novo termi<strong>na</strong>l aumente em 25%<br />
a movimentação total de cargas no porto. Inicialmente, serão 300 mil toneladas a<br />
mais, chegan<strong>do</strong> a 1 milhão de toneladas no fi<strong>na</strong>l <strong>do</strong> ano que vem. “Temos quatro<br />
berços, hoje, e a concessão deste novo termi<strong>na</strong>l vale por 25 anos, poden<strong>do</strong> ser<br />
prorrogada por mais uma vez”, completa Pfeilsteicker. Em <strong>do</strong>is anos, o consórcio<br />
empresarial vai investir US$ 50 milhões em obras e equipamentos para carregamento e<br />
descarregamento de grãos e outras cargas sólidas. Três <strong>na</strong>vios poderão atracar no<br />
novo termi<strong>na</strong>l simultaneamente.<br />
No Sul <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, no Porto de Imbituba, totalmente priva<strong>do</strong>, a administra<strong>do</strong>ra<br />
Companhia Docas (CDI) negocia com empresas estrangeiras a criação de um pólo<br />
de concentração de cargas congeladas para serem enviadas ao Porto de Antuérpia,<br />
<strong>na</strong> Bélgica. As operações seriam no sistema porta-a-porta e significariam a atração de<br />
investimentos de até US$ 5 milhões. Se as expectativas de salto <strong>na</strong> qualidade <strong>do</strong>s<br />
serviços <strong>do</strong>s portos brasileiros serão alcançadas ou não, é pura futurologia. Mas, de<br />
la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong>, usuários e governo torcem para que a mágica esperada não se mostre<br />
ape<strong>na</strong>s uma mera ilusão.<br />
A pauta desta matéria me pedia um diagnóstico <strong>do</strong>s portos no Esta<strong>do</strong>. Da<br />
redação da revista em Curitiba, o editor queria um texto “não muito longo” que pudesse<br />
dar conta <strong>do</strong>s novos investimentos feitos nos termi<strong>na</strong>is e que servisse de uma peque<strong>na</strong><br />
radiografia <strong>do</strong> sistema portuário catarinense, oito anos depois <strong>do</strong> surgimento da<br />
legislação que pretendia modernizá-lo.<br />
Concentrei-me <strong>na</strong> produção de um texto que fosse ao mesmo tempo leve e<br />
informativo, amplo mas ancora<strong>do</strong> em informações atuais e consistentes. A leitura da Lei<br />
de Modernização <strong>do</strong>s Portos deu-me a impressão de que, se tu<strong>do</strong> aquilo ocorresse<br />
mesmo, teríamos uma profunda modificação no sistema. Teríamos um milagre, uma<br />
mágica. Vi nisso o mote que poderia conduzir meu texto. E busquei um símbolo que<br />
pudesse sintetizar uma transformação da água para o vinho ou <strong>do</strong> metal barato em ouro:<br />
220
o alquimista. Esta imagem serviria para dar um fio condutor ao texto, de forma que o<br />
perpassasse por inteiro e desembocasse no seu fi<strong>na</strong>l.<br />
Para dar unidade à idéia e conferisse força a ela, eu precisava de um título que<br />
contivesse essa metáfora e que facilitasse a direção de leitura que eu almejava. Apelei<br />
para <strong>do</strong>is recursos que, a princípio, parecem contraditórios, mas que <strong>na</strong> reportagem<br />
funcio<strong>na</strong>ram complementarmente: espanto e reconhecimento. O título deveria chamar a<br />
atenção por ser muito distinto da maioria <strong>do</strong>s encontra<strong>do</strong>s <strong>na</strong> revista, despertan<strong>do</strong> a<br />
atenção <strong>do</strong> leitor e convidan<strong>do</strong>-o à leitura da matéria. O elemento-surpresa deveria<br />
servir de chamariz para a leitura e permitir um reconhecimento de um outro texto em<br />
que o título teria se inspira<strong>do</strong>. A intertextualidade deveria, então, ser um recurso para a<br />
construção <strong>do</strong> título da reportagem. A intertextualidade é a conexão de um texto com<br />
outros tantos, cenário-mosaico de citações e absorções, paródias, apropriações e<br />
montagens. Como o sistema de funcio<strong>na</strong>mento da língua não admite pureza, tais<br />
combi<strong>na</strong>ções são previsíveis e ajudam a constituir o infinito das construções textuais.<br />
O que vai permitir o reconhecimento de um texto noutro é o que se denomi<strong>na</strong><br />
interdiscurso, isto é, uma memória discursiva (cf. Orlandi, 1999). Há uma ligação entre<br />
os discursos com algo que já se disse e que é transforma<strong>do</strong> pela história. É a<br />
historicidade que vai permitir que a paráfrase, que a citação transforme os senti<strong>do</strong>s<br />
repeti<strong>do</strong>s em novos. Assim, ao eleger o alquimista como síntese da transformação que<br />
eu ligava aos portos, pincei o título da canção de Jorge Ben, <strong>do</strong> disco A tábua de<br />
esmeralda, de 1974.<br />
O interdiscurso é o que vai possibilitar que o leitor – que tem memória<br />
discursiva para tal – reconheça o título <strong>do</strong> compositor e possa reatribuir senti<strong>do</strong>s após a<br />
leitura da matéria. Em outras palavras: o leitor chega à pági<strong>na</strong> da matéria, depara-se<br />
com um título estranho para uma publicação como aquela, reconhece a origem daquele<br />
221
título e fica intriga<strong>do</strong>, tentan<strong>do</strong> entender a conexão entre a cartola “Portos” e a canção.<br />
A leitura da matéria permitirá uma reacomodação de senti<strong>do</strong>s por parte <strong>do</strong> leitor. Os<br />
alquimistas deixam de ser as misteriosas figuras da Idade Média e passam a vestir<br />
outros trajes <strong>na</strong> contemporaneidade. O anúncio de Jorge Ben não perde a força nem o<br />
entusiasmo, renovan<strong>do</strong> a esperança da mudança.<br />
A interdiscursividade não foi um recurso usa<strong>do</strong> exclusivamente por mim <strong>na</strong>quela<br />
edição da Carga e Cia. O repórter Ewal<strong>do</strong> Oliveira tratou de telefonia por satélite num<br />
texto cujo título se apoiava <strong>na</strong> mesma estratégia: “Longe é um lugar que não existe”. A<br />
diferença entre os casos é a combi<strong>na</strong>ção com outros <strong>do</strong>is recursos de estilo: o<br />
desconcerto e a circularidade. O primeiro “deslocou” o texto <strong>do</strong>s demais edita<strong>do</strong>s <strong>na</strong><br />
revista por meio de um título aparentemente alieníge<strong>na</strong>: o que teria em comum Jorge<br />
Ben e a modernização <strong>do</strong>s portos?<br />
A circularidade, por sua vez, foi construída com base no título, <strong>na</strong> abertura e <strong>na</strong><br />
conclusão da matéria. A metáfora apresentada em “Os alquimistas estão chegan<strong>do</strong>”<br />
perpassa o texto <strong>do</strong> começo ao fi<strong>na</strong>l, e a presença <strong>na</strong>s duas pontas da aparente<br />
linearidade <strong>do</strong> texto dão uma sensação circular, de retorno ao começo. O recurso dá<br />
unidade ao texto e reforça a idéia que alimenta a metáfora.<br />
Tanto a circularidade, quanto a intertextualidade e o desconcerto são recursos<br />
que serão observa<strong>do</strong>s e reconheci<strong>do</strong>s em outros casos, mais adiante.<br />
222
Carga & Cia. Nº 31. Novembro de 2001. pp.18-9<br />
O perigo está no ar<br />
Controle de emissão de poluentes consegue bons resulta<strong>do</strong>s,<br />
mas Esta<strong>do</strong>s não fazem inspeção<br />
Imagine 29 milhões de escapamentos lançan<strong>do</strong> milhares de toneladas de<br />
poluentes <strong>na</strong> atmosfera. Imagine que isso ocorre to<strong>do</strong>s os dias. E que essa massa de<br />
substâncias tóxicas demora para se dissipar, causan<strong>do</strong> irritação e <strong>do</strong>enças <strong>na</strong>s<br />
pessoas. Uma câmara de gás? Não, este é o cenário atual da poluição veicular <strong>na</strong>s<br />
cidades brasileiras. Só <strong>na</strong> região metropolita<strong>na</strong> de São Paulo são 12,4 mil toneladas<br />
anuais de fumaça preta (partículas e fuligem), despeja<strong>do</strong>s por ônibus, caminhões e<br />
caminhonetes. Ape<strong>na</strong>s em 1996, a Associação Nacio<strong>na</strong>l de Transportes Públicos<br />
(ANTP) registrou 7% <strong>do</strong>s dias <strong>do</strong> ano com índices alarmantes de concentração de<br />
poluentes, provocan<strong>do</strong> rodízios e transtornos.<br />
A emissão desses gases por veículos automotores é a maior fonte polui<strong>do</strong>ra da<br />
atmosfera, o equivalente a 40% da poluição <strong>do</strong> ar. São substâncias como monóxi<strong>do</strong> e<br />
dióxi<strong>do</strong> de carbono, óxi<strong>do</strong> de nitrogênio, dióxi<strong>do</strong> de enxofre, chumbo e deriva<strong>do</strong>s de<br />
hidrocarbonetos. Nos grandes centros, o quadro se agrava no inverno com a inversão<br />
térmica, quan<strong>do</strong> uma camada de ar frio forma uma re<strong>do</strong>ma <strong>na</strong> alta atmosfera,<br />
aprisio<strong>na</strong>n<strong>do</strong> o ar quente e impedin<strong>do</strong> a dispersão <strong>do</strong>s poluentes. Funcio<strong>na</strong> como<br />
uma estufa venenosa.<br />
Na área automotiva, a preocupação com os gases emiti<strong>do</strong>s pelos carros<br />
ganhou corpo em 1986, quan<strong>do</strong> o governo federal criou o Programa de Controle da<br />
Poluição <strong>do</strong> Ar por Veículos Automotores (Proconve) para reduzir os níveis de emissão,<br />
além de incentivar o desenvolvimento tecnológico, tanto <strong>na</strong> engenharia automotiva<br />
como em méto<strong>do</strong>s e equipamentos para a realização de ensaios e medições de<br />
poluentes. Entre os resulta<strong>do</strong>s alcança<strong>do</strong>s, houve redução de até 98% da emissão de<br />
monóxi<strong>do</strong> de carbono, hidrocarbonetos, óxi<strong>do</strong>s de nitrogênio, e de aldeí<strong>do</strong>s por<br />
veículos leves.<br />
Os culpa<strong>do</strong>s – De acor<strong>do</strong> com os especialistas, não há um tipo de veículo que<br />
polua mais. Cada um – caminhão, automóvel ou picape – contribui com seu conjunto<br />
de poluentes, o que acaba compon<strong>do</strong> nuvens de alta toxicidade. “Mas não há<br />
dúvidas de que um veículo com motor gerencia<strong>do</strong> eletronicamente polui menos”,<br />
atesta o engenheiro Manoel Paulo de Tole<strong>do</strong>, da Companhia de Tecnologia e<br />
Saneamento Ambiental (Cetesb).<br />
Ele cita <strong>do</strong>is da<strong>do</strong>s para a comparação: “Hoje, 25% da frota mecânica já é<br />
responsável pela metade das emissões. Há 15 anos, um veículo pesava 600 kg, fazia 8<br />
223
quilômetros com um litro e emitia 54 gramas de monóxi<strong>do</strong> de carbono por quilômetro<br />
roda<strong>do</strong>. Hoje, o peso é o <strong>do</strong>bro, roda-se pelo menos 10 km com a mesma quantidade<br />
de combustível, mas a emissão caiu para 2 gramas”.<br />
Segun<strong>do</strong> a lei, to<strong>do</strong>s os veículos – <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is ou importa<strong>do</strong>s – precisam de uma<br />
licença <strong>do</strong> IBAMA para ser comercializa<strong>do</strong>s no país, e só a Cetesb pode avaliar a<br />
configuração <strong>do</strong> motor <strong>do</strong>s modelos, liberan<strong>do</strong>-os para o merca<strong>do</strong> interno. A a<strong>do</strong>ção<br />
<strong>do</strong> programa produziu sensíveis modificações <strong>na</strong> indústria, desde a a<strong>do</strong>ção de<br />
catalisa<strong>do</strong>res e injeção eletrônica à instalação de linhas de produção de sistemas<br />
para absorção de vapores de combustível. Equipamentos de medição e laboratórios<br />
para acompanhamento de emissão também foram implanta<strong>do</strong>s. A Petrobrás vem<br />
retiran<strong>do</strong> gradativamente o chumbo da gasoli<strong>na</strong> e o teor de enxofre no óleo diesel,<br />
além de adicio<strong>na</strong>r álcool à gasoli<strong>na</strong>. A aplicação de novas tecnologias e sistemas<br />
também melhoraram o funcio<strong>na</strong>mento <strong>do</strong>s motores, proporcio<strong>na</strong>n<strong>do</strong> uma queima<br />
mais efetiva <strong>do</strong> combustível.<br />
Inspeção necessário - Mas isso não basta. É necessário que seja coloca<strong>do</strong> em<br />
prática a Inspeção Técnica Veicular, um processo que engatinha lentamente no país.<br />
A idéia era implementar uma operação sistemática que vistoriaria to<strong>do</strong>s os veículos,<br />
apontan<strong>do</strong> quem está dentro da lei ou não, tiran<strong>do</strong> das ruas as chaminés ambulantes.<br />
Em São Paulo, ape<strong>na</strong>s <strong>na</strong> capital, parte dela deve ser feita pela prefeitura a partir de<br />
março de 2002. Trata-se, porém, de uma exceção no país.<br />
“As vistorias devem ser feitas no momento <strong>do</strong> licenciamento, e serão retira<strong>do</strong>s<br />
também os veículos com problemas de segurança”, adianta o engenheiro Antonio<br />
Paulo de Tole<strong>do</strong>. No interior <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>, o cronograma deve atrasar, já que há pouco<br />
tempo para to<strong>do</strong> o trâmite burocrático.<br />
No Rio de Janeiro, a inspeção de emissões já vem sen<strong>do</strong> feita, mas não é<br />
obrigatória, deixan<strong>do</strong> uma brecha para os espertalhões. “Os demais esta<strong>do</strong>s não<br />
implantaram o programa. Já a parte principal, que consiste <strong>na</strong> inspeção de<br />
segurança veicular, ainda está no Ministério da Justiça para aprovação, e não tem<br />
prazo ainda para sua implementação”, informa o presidente da Associação de<br />
Engenharia Automotiva (AEA), José Edison Parro.<br />
Acompanhamento - O Proconve atua com rigor <strong>na</strong> indústria, ditan<strong>do</strong> normas e<br />
especificações e também no monitoramento <strong>do</strong> ar em algumas cidades. Em São<br />
Paulo, a Cetesb fiscaliza fontes polui<strong>do</strong>ras e observa a qualidade <strong>do</strong> ar <strong>na</strong> capital e<br />
grandes centros <strong>do</strong> interior. A preocupação é a fumaça preta produzida por motores<br />
a diesel, que além de trazer problemas de saúde à população, reduz a visibilidade <strong>na</strong>s<br />
ruas e estradas.<br />
Para se ter uma idéia, de 1994 a junho deste ano, a fiscalização a ônibus,<br />
caminhões e picapes cresceu 352%. Os caça-fumaça comparam a cor das descargas<br />
224
<strong>do</strong>s escapamentos com uma escala inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, que aponta a concentração <strong>do</strong>s<br />
poluentes. Desde 1988, mais de 350 mil veículos a diesel foram vistoria<strong>do</strong>s, e só em<br />
1997, 25% <strong>do</strong>s que trafegam <strong>na</strong> região metropolita<strong>na</strong> foram autua<strong>do</strong>s. O da<strong>do</strong> revela<br />
uma realidade: a frota é velha e não recebe a manutenção necessária.<br />
Desgastes de peças, reparos mal feitos e muita negligência aumentam as<br />
possibilidades <strong>do</strong>s motores não renderem o espera<strong>do</strong> e poluírem além <strong>do</strong> permiti<strong>do</strong>.<br />
Como a inspeção veicular ainda não é uma realidade e os proprietários nem sempre<br />
tomam os cuida<strong>do</strong>s necessários, o Proconve perde o fôlego <strong>na</strong> redução das emissões.<br />
Operação oxigênio - Em Mi<strong>na</strong>s Gerais, também acontece o monitoramento <strong>do</strong><br />
ar em três cidades da região metropolita<strong>na</strong> de Belo Horizonte. Os técnicos realizam<br />
também a Operação Oxigênio, criada para controlar mais de perto a emissão de<br />
fumaça preta <strong>do</strong>s veículos movi<strong>do</strong>s a óleo diesel.<br />
Nas ruas há três anos, a operação já vistoriou mais de 50 mil veículos,<br />
colocan<strong>do</strong> selos de advertência nos irregulares, aplican<strong>do</strong> multas de até R$ 4351,05 e<br />
tiran<strong>do</strong> de circulação os reincidentes. Os resulta<strong>do</strong>s? A renovação da frota <strong>do</strong>s<br />
pesa<strong>do</strong>s <strong>na</strong> região metropolita<strong>na</strong> é um deles. Hoje, 80% <strong>do</strong>s caminhões e ônibus são<br />
veículos turbi<strong>na</strong><strong>do</strong>s em substituição aos de motor aspira<strong>do</strong>. Outra mudança: a<br />
Petrobrás está distribuin<strong>do</strong> o “diesel metropolitano”, que tem menos enxofre <strong>do</strong> que o<br />
comum, e é comercializa<strong>do</strong> sob o mesmo preço nos postos.<br />
Mas a poluição veicular não preocupa só os órgãos ambientais. A Associação<br />
de Engenharia Automotiva (AEA) também atua <strong>na</strong> área. A entidade existe desde<br />
1984, e reúne engenheiros e técnicos da indústria, de institutos de pesquisa e<br />
universidades. São estes profissio<strong>na</strong>is que elaboram diagnósticos e recomendações<br />
para o estabelecimento de normas e especificações, promovem seminários e<br />
discussões sobre o tema.<br />
Como se não bastassem as nuvens tóxicas, outro tipo de poluição veicular já<br />
tira o sono de muita gente: a sonora. Desde 1993 existe um programa <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l de<br />
controle de ruí<strong>do</strong> veicular, mas as ações ainda são muito incipientes. A Cetesb<br />
encaminhou proposta de regulamentação para o controle da frota em uso, mas entre<br />
as preocupações e as mudanças reais há uma grossa corti<strong>na</strong> de fumaça.<br />
O título origi<strong>na</strong>l desta matéria era “Câmara de gás”, o que reforçava a imagem<br />
criada <strong>na</strong> abertura <strong>do</strong> texto. Como a pauta se referia a um tema mais difícil de ser<br />
visualiza<strong>do</strong> – poluição <strong>do</strong> ar e sonora -, pensei em lançar mão de uma abertura que<br />
desse concretude ao assunto.<br />
225
Desta forma, apelei para uma abertura imagética, convidan<strong>do</strong> o leitor a imagi<strong>na</strong>r<br />
o que era o conjunto de to<strong>do</strong>s os canos de descarga <strong>do</strong>s automóveis no país despejan<strong>do</strong><br />
toxicidade <strong>na</strong> atmosfera. A construção da figura da câmara de gás – cuja memória<br />
discursiva nos leva aos horrores <strong>do</strong> Holocausto – foi alicerçada por trechos que<br />
reavivavam o tema, como “funcio<strong>na</strong> como uma estufa venenosa”, “...o Proconve perde<br />
o fôlego <strong>na</strong> redução das emissões” e “mas entre as preocupações e as mudanças reais há<br />
uma grossa corti<strong>na</strong> de fumaça” 89 . A realimentação da metáfora causa uma sensação de<br />
unidade no texto, conduzin<strong>do</strong> o leitor para os senti<strong>do</strong>s pretendi<strong>do</strong>s. No texto em<br />
questão, o recurso ajuda também a construir um movimento de leitura circular.<br />
O mesmo expediente de construção de imagens numa abertura de textos foi<br />
usa<strong>do</strong> no exemplo a seguir, como um recurso de estilo.<br />
89 A expressão “corti<strong>na</strong> de fumaça” pode remeter o leitor à memória discursiva de uma “corti<strong>na</strong> de ferro”,<br />
decorrência <strong>do</strong> fi<strong>na</strong>l da Segunda Guerra Mundial e da polaridade de forças no mun<strong>do</strong>.<br />
226
Carga & Cia. Nº 35. Abril de 2002. pp.48-9<br />
É lixo só<br />
Além de pedágios caros, da si<strong>na</strong>lização precária e <strong>do</strong>s buracos, as estradas servem<br />
de depósito de lixo para motoristas <strong>na</strong>da educa<strong>do</strong>s<br />
Latinhas de cerveja, sacos plásticos, pedaços de papel, restos de pneus. Grãos<br />
de cereais, sujeira <strong>do</strong>méstica, garrafas e pontas de cigarro. Parafusos, tábuas, fraldas<br />
descartáveis e até colchões. Quem pensa que se está falan<strong>do</strong> de um aterro sanitário,<br />
enga<strong>na</strong>-se: isso é só uma amostra <strong>do</strong> que é recolhi<strong>do</strong> diariamente ao longo das<br />
ro<strong>do</strong>vias pela Polícia Ro<strong>do</strong>viária e por equipes de limpeza e conservação. O volume<br />
de lixo encontra<strong>do</strong> é tão grande que em alguns trechos as margens das pistas mais se<br />
parecem com depósitos a céu aberto. E a impressão que se tem é de que o motorista<br />
não está nem um pouco preocupa<strong>do</strong> com a conservação da estrada, atiran<strong>do</strong> pela<br />
janela tu<strong>do</strong> aquilo que não quer mais no interior <strong>do</strong> veículo.<br />
“Este é um problema complexo, que envolve educação e conscientização”,<br />
define Humberto de Souza Gomes, gerente de Engenharia da Ecovia, concessionária<br />
de ro<strong>do</strong>vias no Paraná. A empresa responde por trechos que atravessam perímetros<br />
urbanos, onde a população, muitas vezes, deposita o lixo <strong>do</strong>méstico <strong>na</strong>s margens das<br />
estradas. Quem passa pelas ro<strong>do</strong>vias que cortam a região pode conferir isso de perto.<br />
Sem contar os detritos lança<strong>do</strong>s pelos turistas que passam por ali. “Achamos de tu<strong>do</strong>:<br />
papel, latas, tambores de freio, parafusos, partes de carrocerias. Para se ter uma idéia,<br />
um pino de ferro que se solta de um caminhão e vem <strong>na</strong> direção de um carro é uma<br />
verdadeira arma!”, alerta o engenheiro da Ecovia.<br />
Não bastasse isso, há outras preocupações para as equipes de limpeza da<br />
concessionária: como o trecho serve de interligação com o Porto de Para<strong>na</strong>guá,<br />
muitas cargas são de grãos, que acabam em boa parte, despeja<strong>do</strong>s ao longo <strong>do</strong><br />
caminho. Dependen<strong>do</strong> da quantidade, podem entupir os bueiros e as caixas<br />
coletoras, prejudican<strong>do</strong> o sistema de dre<strong>na</strong>gem da ro<strong>do</strong>via, causan<strong>do</strong> alagamentos<br />
<strong>na</strong>s partes mais baixas. “Mas tem outra coisa: o grão de soja que é derrama<strong>do</strong> <strong>na</strong><br />
pista, quan<strong>do</strong> esmaga<strong>do</strong>, libera um óleo que reage quimicamente com o asfalto,<br />
ajudan<strong>do</strong> a dissolver mais rapidamente a capa da pista”, explica Humberto.<br />
Campanhas – No interior <strong>do</strong> Paraná, a Ro<strong>do</strong>norte, que administra estradas <strong>na</strong><br />
região de Ponta Grossa, recolhe 8 toneladas de lixo por mês. Se a quantidade não<br />
parece alarmante, o volume é. Imagine 8 mil quilos de papel, latinhas de refrigerante e<br />
sacos plásticos. Há ainda a ressolagem de pneus de caminhões que se solta e que<br />
fica, muitas vezes, no meio da pista, servin<strong>do</strong> de obstáculo e armadilha para outros<br />
motoristas. A concessionária tem uma equipe de 637 funcionários que fazem a limpeza<br />
227
diariamente, e um programa de conscientização <strong>do</strong> usuário, o Rodeverde, com<br />
coletores seletivos de lixo <strong>na</strong>s bases de atendimento e postos da Polícia, e placas<br />
educativas ao longo da pista.<br />
Na ligação entre Rio de Janeiro e São Paulo, a Nova Dutra retira diariamente<br />
objetos de grande porte das pistas. São pedaços de madeira, metais e borracha que<br />
dificultam o fluxo normal <strong>do</strong>s veículos. A cada 24 horas, também são recolhi<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is<br />
caminhões de sujeira miúda, como recibos de pedágio, terra, latas e pequenos<br />
detritos.<br />
A concessionária conta com o programa Dutra Limpa, que já distribuiu 300 mil<br />
folhetos e sacos de lixo <strong>na</strong>s praças de pedágio. Resta saber se o motorista se sensibiliza<br />
com a campanha ou se atira o panfleto pela janela <strong>na</strong> primeira oportunidade. Como<br />
o inverno está próximo, e a estiagem também, outra preocupação passa a ser a<br />
incidência de focos de incêndio causa<strong>do</strong>s por pontas de cigarro acesas.<br />
Acha<strong>do</strong>s e perdi<strong>do</strong>s - No interior de São Paulo, a concessionária Triângulo <strong>do</strong><br />
Sol também registra o recolhimento de lixo e de outros objetos <strong>na</strong>s estradas em que é<br />
responsável. Os mais comuns são mochilas e bolsas, mas não fica só nisso. As equipes<br />
de inspeção de tráfego já encontraram, inclusive, colchões que haviam caí<strong>do</strong> das<br />
carrocerias enquanto estavam sen<strong>do</strong> transporta<strong>do</strong>s. Até onde se sabe, quem deixou a<br />
carga para trás não perdeu uma noite de sono sequer.<br />
A Viapar, que administra um lote <strong>do</strong> Anel de Integração <strong>do</strong> Paraná, informa<br />
que já encontrou diversos objetos inusita<strong>do</strong>s <strong>na</strong> pista. Sapatos, <strong>do</strong>cumentos e roupas,<br />
telefones celulares, talões de cheque, carrinhos de bebê e até bicicletas. É difícil saber<br />
se os objetos foram esqueci<strong>do</strong>s ou deixa<strong>do</strong>s de propósito pelos proprietários. Há casos<br />
em que estes pertences caem das carrocerias, mas em outros, são joga<strong>do</strong>s por<br />
crianças sem que os pais percebam. Quan<strong>do</strong> se trata de telefones celulares, o<br />
esquecimento se dá, <strong>na</strong> maioria das vezes, da seguinte forma: o proprietário pára no<br />
acostamento para checar algum defeito, faz uma ligação telefônica e deixa o<br />
aparelho em cima <strong>do</strong> veículo. Resolvi<strong>do</strong> o defeito, parte sem recolher o objeto que<br />
acaba cain<strong>do</strong> <strong>na</strong> pista...<br />
De acor<strong>do</strong> com o chefe <strong>do</strong> Departamento de Tráfego da Viapar, Luciano<br />
Ricar<strong>do</strong> Mendes, tu<strong>do</strong> o que é recolhi<strong>do</strong> fica sob custódia da empresa por seis meses.<br />
Desde 1998, quan<strong>do</strong> a Viapar começou a operar <strong>na</strong>quele trecho, 40% <strong>do</strong> que foi<br />
encontra<strong>do</strong> voltou para as mãos <strong>do</strong>s seus proprietários. O resto, considera<strong>do</strong> perdi<strong>do</strong> e<br />
de origem ignorada, foi <strong>do</strong>a<strong>do</strong> para entidades assistenciais.<br />
Geralmente, quan<strong>do</strong> <strong>do</strong>cumentos são recolhi<strong>do</strong>s <strong>na</strong>s estradas, o primeiro<br />
destino é a Polícia Ro<strong>do</strong>viária. Carteiras de identidade, fotografias e cartões de<br />
crédito são esqueci<strong>do</strong>s em postos policiais ou mesmo em postos de combustível. Não<br />
existem estatísticas oficiais sobre <strong>do</strong>cumentos perdi<strong>do</strong>s, mas <strong>na</strong> maioria das vezes, eles<br />
228
etor<strong>na</strong>m aos seus titulares. “É relativamente fácil identificar os proprietários, quan<strong>do</strong> se<br />
trata de <strong>do</strong>cumentos. Aí, tentamos localizá-los para entregar o que foi perdi<strong>do</strong>”, conta<br />
o chefe da seção de Policiamento e Fiscalização da Polícia Ro<strong>do</strong>viária Federal em<br />
Santa Catari<strong>na</strong>, Gilberto Durigon Freitas.<br />
O título “É lixo só” recorre à mesma estratégia lingüística de “Os alquimistas<br />
estão chegan<strong>do</strong>”, pois parafraseia o título de uma conhecida canção de Ary Barroso e<br />
Luiz Peixoto: “É luxo só”, gravada por João Gilberto. Entretanto, é preciso que se diga<br />
que este não é o título que dei à matéria. O origi<strong>na</strong>l – “Porcos no volante” – foi bem<br />
substituí<strong>do</strong> pelos editores, que repetiram o expediente da intertextualidade.<br />
É evidente que o recurso estilístico não é exclusivo <strong>do</strong>s textos <strong>do</strong> repórter, mas<br />
este título em particular não pode ser atribuí<strong>do</strong> a ele, nem tampouco figurar<br />
estatisticamente como um caso em que conseguiu deixar alguma marca mais autoral no<br />
rol <strong>do</strong>s textos.<br />
229
Carga & Cia. Nº 38. Julho de 2002. pp.16-8<br />
Sempre cabe mais um<br />
De iates e estátuas a animais vivos, há cargas que desafiam a imagi<strong>na</strong>ção e a<br />
eficiência <strong>do</strong>s transporta<strong>do</strong>res em to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong><br />
Mamãe, como é que vêm os bebês? A incômoda pergunta já foi respondida<br />
milhares de vezes com a cegonha levan<strong>do</strong> a culpa. Pois é mais ou menos assim que se<br />
pode pensar quan<strong>do</strong> o assunto é a remessa de cargas incomuns. Como despachar 17<br />
Ferraris da Bélgica para um salão de automóveis nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s? Como os museus<br />
recebem o conjunto de obras para uma megaexposição de arte?<br />
Bem, eles recorrem a cegonhas moder<strong>na</strong>s, empresas especializadas no<br />
transporte de qualquer carga. Mas não são ape<strong>na</strong>s eles. Superstars como Michael<br />
Jackson, o ex-Pink Floyd Roger Waters ou Ma<strong>do</strong>n<strong>na</strong> costumam enviar por via aérea<br />
toneladas de cenários, acessórios e equipamentos de suas turnês mundiais. A<br />
agilidade <strong>na</strong> entrega também pode salvar vidas. Não fosse o transporte ultra-rápi<strong>do</strong><br />
de uma perfuratriz de alto impacto de 4 toneladas, a peque<strong>na</strong> Jéssica McClure não<br />
teria sobrevivi<strong>do</strong>. A garotinha de um ano e meio caiu num poço no Texas, em 1987, e<br />
só foi salva quan<strong>do</strong> o equipamento chegou de avião.<br />
O transporte de cargas incomuns, muito numerosas ou pesan<strong>do</strong> toneladas<br />
envolve uma rede extensa de agentes logísticos, planejamento e conhecimento das<br />
dificuldades operacio<strong>na</strong>is. No mun<strong>do</strong>, poucos se aventuram a atuar nesse ramo,<br />
<strong>do</strong>mi<strong>na</strong><strong>do</strong> por gigantes. No Brasil, o caso mais célebre é o <strong>do</strong>s Correios, estatal que<br />
efetivamente cobre to<strong>do</strong> o país e consegue integrar de forma eficiente um território<br />
de dimensões continentais.<br />
Bip-Bip! - O brasileiro se acostumou a identificar <strong>na</strong> figura <strong>do</strong> Papa-Léguas o<br />
serviço de entregas rápidas <strong>do</strong>s Correios, o Sedex. Marca<strong>do</strong> pela rapidez, o<br />
perso<strong>na</strong>gem <strong>do</strong>s desenhos anima<strong>do</strong>s vencia grandes distâncias em pouquíssimo<br />
tempo. Tem gente que leva isso tão a sério que recorre ao Sedex para despachar as<br />
cargas mais inusitadas. A mãe preocupada envia remédio ao filho, o vizinho discreto<br />
recebe a fita de vídeo pornô, o <strong>na</strong>mora<strong>do</strong> remete um celular para a <strong>na</strong>morada.<br />
Embora o serviço trabalhe com cargas de até 30 quilos, 80% das encomendas<br />
<strong>do</strong> Sedex têm até <strong>do</strong>is quilos. Na maioria das vezes, são <strong>do</strong>cumentos, CDs, softwares,<br />
livros, utilidades <strong>do</strong>mésticas. Tem gente que até envia cartão de crédito, talão de<br />
cheques e até dinheiro, embora seja proibi<strong>do</strong>. As máqui<strong>na</strong>s de Raios X triam os<br />
pacotes e separam objetos pontiagu<strong>do</strong>s, materiais explosivos e outros que oferecem<br />
algum risco aos entrega<strong>do</strong>res. Animais vivos e plantas também não são permiti<strong>do</strong>s. Em<br />
2000, foram entregues 85,5 milhões de encomendas pelo Sedex, número que deve<br />
230
chegar a 103 milhões neste ano. O sucesso dessas operações está <strong>na</strong> logística. Os<br />
correios têm 12.212 agências para captar as encomendas, investiu US$ 32 milhões <strong>na</strong><br />
automação <strong>do</strong>s serviços de tratamento das remessas e tem um verdadeiro exército<br />
<strong>na</strong>s ruas, composto por 38 mil carteiros. “Nossa especialidade é entregar muita coisa<br />
ao mesmo tempo e em locais muito distantes. Temos agências em to<strong>do</strong>s os 5.561<br />
municípios brasileiros”, informa de Brasília o gerente <strong>do</strong> Programa de Encomendas <strong>do</strong>s<br />
Correios, Everton Luiz Macha<strong>do</strong>.<br />
Com uma frota própria de 9,5 mil motos, 4,5 mil veículos leves e 500 pesa<strong>do</strong>s, os<br />
Correios transportam peque<strong>na</strong>s cargas para to<strong>do</strong>s os pontos <strong>do</strong> planeta, por meio de<br />
conexões e parcerias com a União Postal Universal, que congrega correios de 189<br />
países. Para vencer as distâncias continentais dentro <strong>do</strong> território brasileiro, o Sedex<br />
contrata <strong>na</strong>da menos <strong>do</strong> que 28 linhas aéreas. Diariamente, os aviões a serviço <strong>do</strong>s<br />
Correios voam 60 mil quilômetros pelo Brasil, levan<strong>do</strong> 740 toneladas de peque<strong>na</strong>s<br />
encomendas. O que o Papa-léguas estatal faz é de deixar qualquer cegonha com<br />
inveja...<br />
Peso-pesa<strong>do</strong> - Mas se a remessa é maior <strong>do</strong> que os 30 quilos admiti<strong>do</strong>s pelos<br />
Correios, o cliente pode dispor de empresas especializadas em entregas rápidas. A<br />
FedEx, considerada a líder mundial de transporte aéreo expresso, é uma delas. Os<br />
opera<strong>do</strong>res logísticos da FedEx já precisaram, por exemplo, embarcar um moinho de<br />
vento que vinha da Di<strong>na</strong>marca. Talvez até seja uma tarefa simples para quem já<br />
despachou uma bola de neve gigante de Wisconsin para uma criança de Mênfis<br />
(EUA) e para quem já transportou um satélite de 5 toneladas <strong>do</strong>s EUA para um ponto<br />
perdi<strong>do</strong> <strong>na</strong> Chi<strong>na</strong>.<br />
Em alguns casos, é preciso que a transporta<strong>do</strong>ra atue como uma cegonheira.<br />
Foi o que aconteceu quan<strong>do</strong> o governo japonês encomen<strong>do</strong>u aos EUA um<br />
helicóptero Sikorsky Black Hawk, de 5 toneladas, que chegou ao aeroporto de Narita<br />
dentro de outra aero<strong>na</strong>ve. Ou quan<strong>do</strong> um iate de competição seguiu de avião da<br />
costa leste america<strong>na</strong> para a Austrália, durante as Paraolimpíadas de 2000. Na mesma<br />
época, a Rede Globo despachava <strong>do</strong> Rio de Janeiro toneladas de equipamentos<br />
para a cobertura televisiva <strong>do</strong>s jogos. A Marco Polo embarca carrocerias de<br />
caminhões por avião, e deve ser assim que chegará ao merca<strong>do</strong> chinês nos próximos<br />
meses.<br />
Quan<strong>do</strong> a carga é incomum, quatro fatores são leva<strong>do</strong>s em conta. O cliente<br />
tem pressa? Se ele quer rapidez, apela-se para os mais eficientes meios de transporte,<br />
as rotas mais curtas, desvian<strong>do</strong> de escalas e entraves. Qual a <strong>na</strong>tureza da carga? O<br />
pacote pode ser radioativo, inflamável, frágil ou ainda estar vivo. As características<br />
vão determi<strong>na</strong>r os cuida<strong>do</strong>s com a embalagem. Qual o peso? Este aspecto diz<br />
respeito à capacidade de transporte <strong>do</strong>s meios condutores, e pode – muitas vezes –<br />
231
inviabilizar uma estratégia multimodal. Que tamanho tem a remessa? Última<br />
preocupação antes <strong>do</strong> embarque, mas que determi<strong>na</strong> etapas de toda a operação<br />
de despacho. “Aqui no Brasil nós podemos transportar até 50 toneladas, pois dispomos<br />
de um DC-10 que opera a partir de Viracopos”, explica Guilherme Gatti, diretor de<br />
marketing da FedEx para o Mercosul.<br />
Tem cada uma... – Atualmente, mandar um pacote de até 70 quilos para<br />
qualquer parte <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> em até 48 horas é tão fácil quanto mandar uma carta<br />
comum. A coisa complica quan<strong>do</strong> a merca<strong>do</strong>ria é rara, pesada e precisa vencer<br />
milhares de quilômetros. Diante deste desafio, os funcionários da FedEx embarcaram<br />
uma daquelas esculturas da Ilha de Páscoa, de 12 metros de altura e seis toneladas,<br />
<strong>do</strong> Chile para uma exposição nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s.<br />
Pela América <strong>do</strong> Sul, não foram poucas as vezes em que conjuntos hípicos<br />
viajaram de um país a outro para participar de grandes prêmios. Jóquei e cavalo vão<br />
confortavelmente instala<strong>do</strong>s no avião, cada um no seu compartimento, e se<br />
reencontram no saguão <strong>do</strong> aeroporto. Mas este não é o único caso de cargas vivas.<br />
“Há alguns anos, quan<strong>do</strong> nossos aviões retor<strong>na</strong>vam a Menphis, paravam em Ma<strong>na</strong>us.<br />
Lá, eram embarca<strong>do</strong>s peixes or<strong>na</strong>mentais, que eram leva<strong>do</strong>s vivos para lá”, conta.<br />
Atualmente, essas remessas não se repetem. Mas outras são freqüentes, e precisam de<br />
refrigeração exata, nenhum contato manual e total segurança: são amostras de<br />
sangue, de sêmen e outros materiais biológicos. Até testes de paternidade por DNA<br />
são transporta<strong>do</strong>s para o exterior. A história da cegonha se repete.<br />
A reportagem acima foi origi<strong>na</strong>lmente pautada para a revista Fluxo, sen<strong>do</strong><br />
publicada <strong>na</strong> íntegra <strong>na</strong> edição de maio de 2002, <strong>na</strong> estréia da publicação (“Contêiner de<br />
surpresas”). Além <strong>do</strong> texto acima, havia um box intitula<strong>do</strong> “To<strong>do</strong>s a bor<strong>do</strong>”, que<br />
descrevia os procedimentos e as burocracias no envio de plantas, animais vivos e no<br />
próprio despacho, trasla<strong>do</strong> e desembaraço de cadáveres nos pontos de chegada. Entre as<br />
duas versões, a única diferença foi o descarte <strong>do</strong> box para a Carga & Cia, já que o<br />
complemento era mais adequa<strong>do</strong> à revista que cobre operações logísticas.<br />
Mais uma vez, lancei mão <strong>do</strong>s recursos da reportagem “Os alquimistas estão<br />
chegan<strong>do</strong>”: desconcerto e circularidade. Como a pauta previa o deslocamento rápi<strong>do</strong> de<br />
cargas em grandes distâncias e como o símbolo <strong>do</strong>s Correios – um <strong>do</strong>s casos a serem<br />
relata<strong>do</strong>s – era uma ave, fundi as duas idéias <strong>na</strong> conhecida lenda da cegonha que<br />
232
percorre longos caminhos carregan<strong>do</strong> merca<strong>do</strong>rias bem preciosas. Essa seria a metáfora<br />
que preencheria to<strong>do</strong> o texto, de forma a dar unidade às suas dispersões. A característica<br />
da circularidade ficou mesmo assegurada quan<strong>do</strong> uma das fontes se referiu a um serviço<br />
especial de transporte de líqui<strong>do</strong>s e materiais biológicos, de sangue a sêmen e até<br />
mesmo exames que atestem paternidade. Encontra<strong>do</strong> o gancho da matéria e o fio<br />
condutor <strong>do</strong> texto, parti para um desafio pessoal: criar uma abertura incomum, fora de<br />
qualquer expectativa que uma matéria sobre transporte de cargas poderia conter. O que<br />
seria tão desconexo, desconcertante, inusual? Para reforçar a idéia da cegonha, trouxe<br />
ao texto quem mais – supostamente – acredita <strong>na</strong> história: imaginei uma criança<br />
perguntan<strong>do</strong> como surgem os bebês. Pode não ser a melhor abertura, mas é criativa e<br />
inusitada, totalmente inesperada para uma matéria sobre logística de embalagem e<br />
circulação de merca<strong>do</strong>rias 90 .<br />
Na reportagem a seguir, tentei me ater a um estilo mais frio, mais preso aos<br />
números e às informações apuradas. Afora a frase de abertura – que constrói um<br />
raciocínio tortuoso e aparentemente contraditório -, to<strong>do</strong> o texto é propositalmente mais<br />
“duro”, se compara<strong>do</strong> aos já cita<strong>do</strong>s. Em meio à aridez <strong>do</strong>s números, seria possível tecer<br />
uma <strong>na</strong>rrativa mais fluída e leve, mas a opção foi construir um texto pesa<strong>do</strong>,<br />
burocrático, em contraponto com a desburocratização prevista <strong>na</strong> matéria.<br />
90 Fiz algo semelhante outras vezes. Vale citar uma em particular: “Mar de novidades”, publicada em Carga<br />
& Cia, nº 15, junho de 2000, começava com um verso <strong>do</strong> poeta Fer<strong>na</strong>n<strong>do</strong> Pessoa, para quem to<strong>do</strong> cais é<br />
uma saudade de pedra. Expediente inespera<strong>do</strong> numa matéria sobre a evolução <strong>do</strong>s portos catarinenses.<br />
233
Fluxo. Nº 03. Julho de 2002. pp.20-1<br />
Fora com o carimbo<br />
Ministério <strong>do</strong>s Transportes agiliza cobrança eletrônica de tributo para renovação da<br />
marinha mercante. Até outubro, portos <strong>do</strong> Sul e Sudeste devem se interligar ao sistema<br />
O governo não sabe o tamanho <strong>do</strong> gargalo, mas sente que o rombo não é<br />
<strong>na</strong>da pequeno. Alguns técnicos <strong>do</strong> Ministério <strong>do</strong>s Transportes estimam que se percam<br />
anualmente alguns milhões de reais com fraudes sobre o Adicio<strong>na</strong>l ao Frete para<br />
Renovação da Marinha Mercante (ARFMM), cobra<strong>do</strong> de <strong>na</strong>vios <strong>na</strong> movimentação de<br />
cargas importadas nos portos brasileiros. O tributo é recolhi<strong>do</strong> e vai para o Fun<strong>do</strong> da<br />
Marinha Mercante, volta<strong>do</strong> para construções e reparos <strong>na</strong> frota <strong>na</strong>val. O fun<strong>do</strong> foi<br />
cria<strong>do</strong> em 1958 e, desde então, o recolhimento <strong>do</strong> adicio<strong>na</strong>l era manual, com guias e<br />
carimbos, hoje facilmente fraudáveis com impressoras <strong>do</strong>mésticas cada vez mais<br />
sofisticadas e softwares gráficos específicos. “Precisávamos virar esta pági<strong>na</strong>,<br />
deixan<strong>do</strong> de la<strong>do</strong> a papelada e os carimbos”, comenta o diretor <strong>do</strong> Departamento<br />
de Marinha Mercante <strong>do</strong> Ministério <strong>do</strong>s Transportes, Vitorino Domenech, responsável<br />
pela implantação <strong>do</strong> novo sistema de arrecadação, agora eletrônica.<br />
O programa já contempla os portos de Para<strong>na</strong>guá, Porto Alegre, Rio Grande,<br />
Itajaí e Vitória e, em breve, deve alcançar São Sebastião, Rio de Janeiro, São<br />
Francisco <strong>do</strong> Sul, Imbituba e Santos. “Deixaremos Santos por último, para outubro,<br />
porque é o maior porto da América Lati<strong>na</strong>, e precisamos antes ver como se ajusta<br />
com os menore”, justifica Domenech. Interliga<strong>do</strong>s ao sistema de cobrança eletrônica,<br />
os portos das regiões sul e sudeste devem logo se conectar ao Siscomex. O objetivo é<br />
implantar o sistema nos 21 portos brasileiros até 2005, mesmo nos <strong>do</strong> norte e nordeste,<br />
que atualmente contam com isenção <strong>na</strong> contribuição, ampara<strong>do</strong>s em legislação<br />
para o incremento das economias regio<strong>na</strong>is.<br />
Mais agilidade - Mas o que muda com a cobrança eletrônica? Atualmente, o<br />
agente marítimo tem dez dias para recolher a taxa. Além <strong>do</strong> prazo longo para<br />
receber, o governo corre o risco de fraudes, já que o sistema é manual. Conforme<br />
da<strong>do</strong>s oficiais, as fraudes mais freqüentes se dão em Para<strong>na</strong>guá, Santos e Rio de<br />
Janeiro.<br />
Com o novo sistema, o importa<strong>do</strong>r tem que enviar eletronicamente os da<strong>do</strong>s<br />
da remessa em até 48 horas antes <strong>do</strong> <strong>na</strong>vio chegar ao porto, fazer a transação<br />
bancária e, só depois disso, sua carga poderá ser liberada. “O Mercante, que é como<br />
chamamos o novo programa de arrecadação, é importante porque vai possibilitar<br />
da<strong>do</strong>s estatísticos mais reais para tomadas de decisão mais acertadas”, avalia o<br />
secretário executivo <strong>do</strong> Ministério <strong>do</strong>s Transportes, Paulo Sérgio de Oliveira Passos. “O<br />
234
que queremos é elimi<strong>na</strong>r a burocracia, dar agilidade à tramitação e implicar os<br />
negócios no recolhimento. Este processo coloca o governo numa posição atualizada,<br />
contemporânea, já que precisamos de mecanismos mais confiáveis e seguros no<br />
comércio exterior”.<br />
Para o setor priva<strong>do</strong>, além da desburocratização e agilização <strong>do</strong>s<br />
procedimentos para a liberação das cargas importadas, o Mercante permite o registro<br />
<strong>do</strong> Conhecimento de Embarque em tempo real, e possibilita acesso on-line 24 horas<br />
por dia, sete dias <strong>na</strong> sema<strong>na</strong>, sem deslocamento físico a qualquer órgão <strong>do</strong> Ministério.<br />
O Adicio<strong>na</strong>l ao Frete para Renovação da Marinha Mercante (ARFMM) tem alíquota<br />
de 25% sobre o valor <strong>do</strong> frete e, segun<strong>do</strong> projeções, deve implicar num impacto de<br />
0,82% sobre o preço free-on-board (FOB) das merca<strong>do</strong>rias importadas por meio<br />
marítimo.<br />
Dependência exter<strong>na</strong> - Segun<strong>do</strong> as expectativas <strong>do</strong> governo federal, com a<br />
contenção das fraudes <strong>na</strong> arrecadação da contribuição para-fiscal, será possível que<br />
os estaleiros recebam mais encomendas, gerem novos empregos e aumentem sua<br />
escala de produção, além de reduzir o nível de dependência exter<strong>na</strong> no balanço de<br />
fretes. Para se ter uma idéia <strong>do</strong> ocaso <strong>do</strong> setor, anualmente o Brasil perde até US$ 6<br />
bilhões em afretamento externo. Ou seja: se depende muito <strong>do</strong>s <strong>na</strong>vios de fora para<br />
trazer as importações encomendadas. Na ponta <strong>do</strong> lápis, as empresas <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is não<br />
respondem nem por 40% <strong>do</strong>s negócios da área, e esta insuficiência de fretes<br />
inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is é o responsável pelo segun<strong>do</strong> maior volume de remessas para o<br />
exterior, <strong>na</strong>s contas <strong>do</strong> governo. Para quem já teve a segunda indústria <strong>na</strong>val <strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong>, os números pesam. Hoje, o país ocupa a 16ª posição no ranking, com 5,8<br />
milhões de toneladas de peso bruto (TPB), com uma frota de 126 <strong>na</strong>vios envelhecida<br />
em pelo menos 15 anos. Em 1990, eram 9,5 milhões de TPB e 380 <strong>na</strong>vios. “Por isso, é<br />
preciso retomar o setor, renovan<strong>do</strong> a frota, modernizan<strong>do</strong> os <strong>na</strong>vios e construin<strong>do</strong><br />
novos para operar nos nossos portos. É com isso que também reduzimos o chama<strong>do</strong><br />
Custo Brasil, que é, <strong>na</strong> verdade, o custo da ineficiência”, acredita Oliveira Passos.<br />
Em 1999, o Fun<strong>do</strong> da Marinha Mercante arreca<strong>do</strong>u R$ 428 milhões, valor que<br />
subiu ligeiramente para R$ 500 milhões no ano seguinte e que alcançou R$ 696 milhões<br />
em 2001. Para este ano, mesmo com a perspectiva de queda no volume das<br />
importações, o governo espera recolher cerca de R$ 700 milhões. Quan<strong>do</strong> o Mercante<br />
estiver operan<strong>do</strong> em toda a malha portuária, o bolo deve crescer em 30%, estimam os<br />
técnicos <strong>do</strong> Ministério <strong>do</strong>s Transportes. Em dezembro de 2001, o sal<strong>do</strong> <strong>do</strong> fun<strong>do</strong> era de<br />
R$ 1,33 bilhão.<br />
Próprias per<strong>na</strong>s – Mas, embora o governo esteja radiante com os mecanismos<br />
que vêm a<strong>do</strong>tan<strong>do</strong> para conter o gargalo, há quem torça o <strong>na</strong>riz. Na verdade,<br />
setores <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> defendem a desvinculação entre a indústria <strong>na</strong>val e a marinha<br />
235
mercante, divórcio que estimularia a iniciativa privada a avançar com a força de suas<br />
próprias hélices. Domenech discorda deste ponto de vista: “Durante o últimos 20 anos,<br />
o país foi perden<strong>do</strong> posições e os arma<strong>do</strong>res de fora foram se instalan<strong>do</strong> e ganhan<strong>do</strong><br />
terreno. Já temos um tributo que vem de uma lei federal, e isso nos propicia recursos<br />
num fun<strong>do</strong> específico para a renovação da frota”. Ele cita o programa Navega Brasil,<br />
lança<strong>do</strong> pelo governo federal em 2000, para flexibilizar as condições para<br />
fi<strong>na</strong>nciamento no setor. Se antes cobria 85% <strong>do</strong> valor total, hoje o programa atinge<br />
90%, cobran<strong>do</strong> juros caíram de 4% (e não mais 6%), com prazo de amortização de 20<br />
anos mais 4 de carência. “O BNDES tem linha específica para a indústria <strong>na</strong>val, e a<br />
preocupação <strong>do</strong> governo foi manifestada <strong>na</strong> inclusão deste programa no Plano<br />
Plurianual”, completa.<br />
No exemplo a seguir, retomo duas estratégias textuais usadas anteriormente:<br />
desconcerto e abertura imagética. O primeiro está expresso no contra-senso que construí<br />
no título. Como os números <strong>do</strong> porto em questão eram muito positivos e como a<br />
evolução <strong>do</strong>s índices era inegável, cheguei à idéia de que “aquele porto não parava de<br />
crescer”. Na frase-idéia, chamou-me a atenção a locução verbal que continha em si um<br />
tremen<strong>do</strong> conflito repouso-movimento. Quis aproveitar a mesma contradição trazen<strong>do</strong> o<br />
porto para o título e fazen<strong>do</strong> aquele cenário que se coloca como um ponto de segurança,<br />
algo que se movimente.<br />
Cria<strong>do</strong> o desconcerto de “Um porto que se move”, parti para uma abertura que<br />
descrevesse um cenário sobre o qual pudesse ampliar a contradição: trouxe à ce<strong>na</strong><br />
confusão, sujeira, inoperância. Para depois, negá-los, construin<strong>do</strong> a lógica definitiva <strong>do</strong><br />
texto. No caso desta matéria, os recursos funcio<strong>na</strong>ram combi<strong>na</strong><strong>do</strong>s: o contra-senso<br />
apoiou o título e a abertura imagética construiu um contexto que seria contesta<strong>do</strong>,<br />
nega<strong>do</strong>, estabelecen<strong>do</strong> uma nova direção para a <strong>na</strong>rrativa.<br />
236
Fluxo. Nº 03. Julho de 2002. pp.30-1<br />
Um porto que se move<br />
Itajaí se moderniza, cresce a taxas de 30% ao ano e quer ser reconheci<strong>do</strong><br />
como o mais eficiente <strong>do</strong> sul e <strong>do</strong> Mercosul até 2005<br />
Para muita gente, a idéia de porto está diretamente associada a um local<br />
insalubre, cheio de estiva<strong>do</strong>res musculosos e rudes, confuso e desorde<strong>na</strong><strong>do</strong>.<br />
Entretanto, este conceito caminha cada vez mais para o folclore coletivo. Pelo menos<br />
é assim com o Porto de Itajaí, em Santa Catari<strong>na</strong>, que vem se modernizan<strong>do</strong>,<br />
acumulan<strong>do</strong> bons resulta<strong>do</strong>s e se destacan<strong>do</strong> no cenário <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l. Para se ter uma<br />
idéia, desde 1991, o volume movimenta<strong>do</strong> setuplicou, passan<strong>do</strong> de 32,4 mil para 243,5<br />
mil contêineres por ano.<br />
Em to<strong>do</strong>s os anos, exceto em 1995, o porto viu crescer seus resulta<strong>do</strong>s, e entre<br />
2000 e 2001 contabilizou os melhores números de sua história: 38% a mais de<br />
contêineres movimenta<strong>do</strong>s, consolidan<strong>do</strong> 2,7 milhões de toneladas (crescimento de<br />
31%) e 18% a mais de <strong>na</strong>vios atraca<strong>do</strong>s. De acor<strong>do</strong> com a Associação Brasileira de<br />
Termi<strong>na</strong>is Portuários (ABTP), Itajaí é o porto que vem apresentan<strong>do</strong> melhor<br />
performance no ramo de contêineres, fato que o coloca como o segun<strong>do</strong> no Brasil<br />
<strong>na</strong>s exportações de contêineres cheios, deven<strong>do</strong> ficar atrás ape<strong>na</strong>s de Santos em<br />
2002.<br />
O bom desempenho <strong>do</strong> porto faz parte da estratégia para alcançar uma meta<br />
ousada: ser reconheci<strong>do</strong> como o mais eficiente <strong>do</strong> sul e <strong>do</strong> Mercosul até 2005. O<br />
desafio está estampa<strong>do</strong> em cada sala da administração <strong>do</strong> termi<strong>na</strong>l em pôsteres e<br />
quadros, visível aos visitantes e ostensivo aos funcionários, como se fosse um chama<strong>do</strong><br />
aos brios. Para ser o mais eficiente <strong>na</strong> região, Itajaí briga de frente com seus vizinhos<br />
catarinenses – São Francisco <strong>do</strong> Sul e Imbituba – e com Para<strong>na</strong>guá (PR) e Rio Grande<br />
(RS). “Temos investi<strong>do</strong> em obras e em novos procedimentos para agilizar o trabalho e<br />
dar mais eficiência ao porto. Além disso, desde 1996 as tarifas estão intocadas”, relata<br />
o diretor comercial, Héder Moritz.<br />
Parcerias - Único porto municipaliza<strong>do</strong> <strong>do</strong> país, Itajaí tem consegui<strong>do</strong> reunir<br />
uma gestão moder<strong>na</strong> com parcerias estratégicas com o setor priva<strong>do</strong>. No ano<br />
passa<strong>do</strong>, por exemplo, o termi<strong>na</strong>l arren<strong>do</strong>u área para a construção de um termi<strong>na</strong>l de<br />
contêineres que deve fortalecer ainda mais a movimentação local. Comprou novos<br />
equipamentos de terra e implementou um sistema de qualidade total <strong>na</strong>s suas<br />
dependências.<br />
Neste momento, está contratan<strong>do</strong> obras de dragagem para o alargamento da<br />
237
acia de evolução <strong>do</strong> termi<strong>na</strong>l, que passará de 270 para 300 metros de diâmetro. Os<br />
trabalhos devem ser concluí<strong>do</strong>s ainda neste ano, e com as novas dimensões será<br />
possível a atracação de <strong>na</strong>vios de até 270 metros de comprimento. Cargueiros<br />
maiores também devem lançar seus cabos ao cais quan<strong>do</strong> o cala<strong>do</strong> de 9,9 metros for<br />
aumenta<strong>do</strong> a 11 metros até o fi<strong>na</strong>l deste ano.<br />
Responsável por 60% <strong>do</strong> PIB exporta<strong>do</strong> catarinense (US$ 1,5 bilhão), Itajaí<br />
responde por 3,35% das exportações brasileiras, fican<strong>do</strong> <strong>na</strong> 9ª posição no ranking<br />
<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l. Em arrecadação de impostos, é o 10º coloca<strong>do</strong>, ten<strong>do</strong> arrecada<strong>do</strong> R$ 290,8<br />
milhões em 2001. Com uma cais que não chega a um quilômetro de extensão e 82%<br />
de ocupação média de seus berços de atracação, o porto é o que tem a maior<br />
produtividade <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l. E se Itajaí não é lá um grande porto – como Santos ou Rio de<br />
Janeiro - onde mora o segre<strong>do</strong> deste sucesso?<br />
Vocação exporta<strong>do</strong>ra - Três fatores vêm garantin<strong>do</strong> este desempenho: a<br />
vinculação <strong>do</strong> porto à economia catarinense (a 7ª <strong>do</strong> país), a vocação exporta<strong>do</strong>ra<br />
<strong>do</strong> porto e o segmento em que se especializou, o de contêineres. Em 2001, por<br />
exemplo, enquanto o país mal crescia 2%, Santa Catari<strong>na</strong> alcançou 3,7%,<br />
desbancan<strong>do</strong> Paraná (3,2%) e São Paulo (2,5%), habituais campeões de expansão<br />
econômica. Como Itajaí escoa boa parte <strong>do</strong>s negócios catarinenses, o porto pegou<br />
caro<strong>na</strong> nos bons ventos locais. Esta vinculação, entretanto não explica sozinha o<br />
superávit <strong>do</strong> porto.<br />
É aí que entram outras duas características que colocaram Itajaí em destaque:<br />
seu perfil exporta<strong>do</strong>r e o tipo de negócio a que está habitua<strong>do</strong>. Em 2001, as<br />
exportações catarinenses cresceram 11,68%, o que aju<strong>do</strong>u o sal<strong>do</strong> da balança<br />
comercial subir 23,53% no mesmo perío<strong>do</strong>. Como Itajaí é uma das principais portas de<br />
saída de produtos locais para o mun<strong>do</strong> – 81% <strong>do</strong>s volumes das cargas é tipo<br />
exportação, a autoridade portuária tem sorri<strong>do</strong> sem parar.<br />
“Itajaí vem apostan<strong>do</strong> num segmento muito importante: a carga<br />
conteinerizada, o filé mignon <strong>do</strong> setor”, avalia o secretário executivo <strong>do</strong> Ministério <strong>do</strong>s<br />
Transportes, Paulo Sérgio de Oliveira Passos. De to<strong>do</strong> o volume movimenta<strong>do</strong>, 84%<br />
seguem para outras localidades em contêineres. “A maioria <strong>do</strong>s <strong>na</strong>vios que aqui<br />
atracam – 59% - é <strong>do</strong> tipo full-contêiner”, informa o gerente de negócios, Leônidas<br />
Gomes Ferreira.<br />
Especialização - Numa análise geral, Itajaí não é um porto grande, mas é um<br />
entreposto especializa<strong>do</strong>, volta<strong>do</strong> a determi<strong>na</strong><strong>do</strong>s negócios. Prova disso é a sua<br />
condição de dispor <strong>do</strong> maior número de tomadas para contêineres reefers <strong>do</strong> país,<br />
próprios para cargas congeladas. Até o fi<strong>na</strong>l <strong>do</strong> ano, serão 3,5 mil tomadas, contan<strong>do</strong><br />
o porto e seu entorno.<br />
Esta especialidade atrai os opera<strong>do</strong>res logísticos, como a Link Sul Logística e<br />
238
Armazéns, de Joinville, que se instalou a <strong>do</strong>is quilômetros <strong>do</strong> porto, de olho no<br />
crescimento das exportações de carnes. A empresa já é a que dispõe de maior<br />
número de tomadas para atender aos principais frigoríficos da região. É bom lembrar<br />
que as líderes <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> – Sadia e Perdigão – têm grandes unidades no território<br />
catarinense, e que as safras sulistas de maçã são todas exportadas por Itajaí.<br />
Atípico <strong>na</strong> administração e no segmento logístico, o Porto de Itajaí pouco<br />
movimenta em termos graneleiros. O maior produto neste ramo é o trigo que vem da<br />
província de Rosário, <strong>na</strong> Argenti<strong>na</strong>. “A carga chega para abastecer um moinho<br />
vizinho ao porto, e se ele não estivesse instala<strong>do</strong> por aqui, penso que não<br />
trabalharíamos com granéis”, comenta o gerente de negócios.<br />
Entusiasmo – Se as estatísticas têm deixa<strong>do</strong> os administra<strong>do</strong>res <strong>do</strong> porto<br />
sorridentes, o desânimo parece não estar mesmo no horizonte deles. No primeiro<br />
trimestre deste ano, o movimento foi 40% maior <strong>do</strong> que no mesmo perío<strong>do</strong> de 2001. Em<br />
abril passa<strong>do</strong>, novo recorde: 302 mil toneladas passaram pelos pátios <strong>do</strong> porto. Nunca<br />
um mês foi tão intenso.<br />
Ape<strong>na</strong>s nos primeiros cinco meses deste ano – com a movimentação de 1,35<br />
milhão de toneladas – o volume já supera toda a movimentação <strong>do</strong> ano de 1995.<br />
“Este ano deve ser melhor ainda”, estima o diretor comercial, Héder Moritz. O porto<br />
vem manten<strong>do</strong> uma faixa de 24 mil contêineres por mês, e se tu<strong>do</strong> der certo,<br />
encerrará o ano com crescimento de 30 a 35%.<br />
Entre os novos negócios à frente, há o início de operação de uma linha<br />
específica para o Extremo Oriente, rota que se soma às direcio<strong>na</strong>das aos EUA, Europa,<br />
Ásia, América Central e África.<br />
Os recursos estilísticos usa<strong>do</strong>s <strong>na</strong> matéria acima repetem-se <strong>na</strong> abaixo: o título é<br />
desconcertante, apoia<strong>do</strong> num paralelismo de opostos, e a abertura desenha uma<br />
seqüência de imagens que será desconstruída no parágrafo seguinte (“A história poderia<br />
ter si<strong>do</strong> esta, mas não foi”). Se em “Um porto que se move”, apelou-se para o<br />
imaginário coletivo, em “Altos negócios, baixos cala<strong>do</strong>s”, a abertura é uma autêntica e<br />
confessada peça de ficção, inserida no início da matéria para ser desmentida por ele,<br />
para ser negada e restabelecer uma nova ordem de senti<strong>do</strong>s.<br />
239
Fluxo. Nº 7. Novembro de 2002. pp.22-3<br />
Altos negócios, baixos cala<strong>do</strong>s<br />
Maior companhia de <strong>na</strong>vegação privada <strong>do</strong> país investe pesa<strong>do</strong> no transporte por<br />
cabotagem. Barcaças cruzam a costa brasileira com madeira e bobi<strong>na</strong>s de aço<br />
No fi<strong>na</strong>l de uma tarde exaustiva de reuniões, um <strong>do</strong>s executivos da Aracruz<br />
Celulose voltou seu <strong>olhar</strong> para a janela e mirou o horizonte de forma interrogativa.<br />
Como transportar matéria-prima da Bahia para o Espírito Santo sem passar pela<br />
congestio<strong>na</strong>da BR-101? De repente, de frente para o mar azul, veio a luz: Por que não<br />
usar a costa brasileira, lançan<strong>do</strong> mão da <strong>na</strong>vegação de cabotagem? No escritório da<br />
Aracruz, to<strong>do</strong>s sorriram e cumprimentaram o executivo pela solução brilhante,<br />
aplaudin<strong>do</strong> a iniciativa.<br />
A história poderia ter si<strong>do</strong> esta, mas não foi. Na verdade, embora muitas vezes<br />
a resposta esteja sob o <strong>na</strong>riz de to<strong>do</strong>s, o óbvio nem sempre é a primeira opção. No<br />
caso da Aracruz, o impasse era real e a solução logística só poderia ser customizada.<br />
Em 1998, a Norsul, maior empresa de <strong>na</strong>vegação privada <strong>do</strong> país, foi acio<strong>na</strong>da para<br />
um estu<strong>do</strong> de viabilidade e três anos depois – após consultorias com duas gigantes<br />
escandi<strong>na</strong>vas <strong>do</strong> ramo – havia um projeto para desenvolvimento de sistema de<br />
transporte. Para levar a madeira extraída <strong>do</strong> sul baiano, deveria ser construí<strong>do</strong> um<br />
termi<strong>na</strong>l de embarque de cargas <strong>na</strong> cidade de Caravelas, e a carga contor<strong>na</strong>ria a<br />
costa em barcaças oceânicas, ligadas a empurra<strong>do</strong>res. Este sistema de comboios já<br />
funcio<strong>na</strong>va no Mar Báltico, de onde também se transporta madeira de um país a<br />
outro.<br />
No caso da Aracruz, o sistema prevê uma frota de quatro barcaças e <strong>do</strong>is<br />
empurra<strong>do</strong>res, sistema que suporta transporte de 5,2 mil toneladas por viagem, com<br />
velocidade média de 12,5 nós num cala<strong>do</strong> de quatro metros. No Espírito Santo, as<br />
toras de madeira vão desembarcar no termi<strong>na</strong>l de Portocel, próximo às instalações da<br />
empresa de celulose. “A indústria queria crescer, mas sofria com o gargalo ro<strong>do</strong>viário.<br />
Só mesmo este sistema de escoamento de matéria-prima poderia permitir isso. Foi uma<br />
solução com a cara <strong>do</strong> Brasil”, qualifica o diretor de Desenvolvimento de Negócios da<br />
Norsul, Luiz Philippe Figueire<strong>do</strong>. “Isso porque contamos com uma costa imensa, e o<br />
sistema é economicamente mais barato porque os custos operacio<strong>na</strong>l, de<br />
manutenção e de investimento são menores que qualquer outra opção”. Além da<br />
viabilidade fi<strong>na</strong>nceira, a solução logística se apóia também em vantagens técnicas:<br />
operan<strong>do</strong> com barcaças, o embarca<strong>do</strong>r pode fazer mais viagens por sema<strong>na</strong>,<br />
trafegan<strong>do</strong> por trechos com baixo cala<strong>do</strong> e atracan<strong>do</strong> em instalações relativamente<br />
240
simples. O sistema de comboio é mais versátil, fácil de manobrar e não exige<br />
modernos equipamentos nos ancora<strong>do</strong>uros.<br />
Cifras – O projeto Aracruz já tem si<strong>na</strong>l verde para começar a funcio<strong>na</strong>r. Neste<br />
mês, o estaleiro carioca Eisa entrega três das quatro barcaças e um <strong>do</strong>s empurra<strong>do</strong>res<br />
encomenda<strong>do</strong>s. O resto <strong>do</strong> pedi<strong>do</strong> sai <strong>do</strong> forno até o fi<strong>na</strong>l de 2004. Num primeiro<br />
momento, a Norsul poderá carregar 1,5 milhão de metros cúbicos de madeira por<br />
ano, volume que deve chegar a 3,4 milhões quan<strong>do</strong> a frota estiver completa.<br />
Para se ter uma idéia, esta carga equivale a 63 mil viagens de caminhões<br />
ultrapesa<strong>do</strong>s de 54m3, algo como um caminhão a cada oito minutos, 24 horas por dia,<br />
365 dias por ano. O projeto de construção <strong>do</strong>s termi<strong>na</strong>is e das barcaças está orça<strong>do</strong><br />
em US$ 30 milhões, e conta com fi<strong>na</strong>nciamento de 85% <strong>do</strong> BNDES com recursos <strong>do</strong><br />
Fun<strong>do</strong> da Marinha Mercante. A Norsul deve injetar capital próprio para fechar a<br />
conta. Mas este negócio não i<strong>na</strong>ugura a parceria entre Aracruz e Norsul.<br />
As gigantes já trabalham juntas desde 1986, quan<strong>do</strong> a empresa de <strong>na</strong>vegação<br />
começou a operar linhas inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is de carga geral. Desde então, os far<strong>do</strong>s de<br />
celulose da Aracruz são leva<strong>do</strong>s pelos <strong>na</strong>vios <strong>do</strong> tipo Open Hatch, e hoje, o volume<br />
transporta<strong>do</strong> anualmente chega a 600 mil toneladas. Além disso, há uma proximidade<br />
corporativa entre as parceiras: a Norsul é controlada pelo grupo norueguês Lorentzen,<br />
que detém participações em diversas empresas, inclusive <strong>na</strong> Aracruz.<br />
Grandes negócios - No Brasil há 49 anos, o grupo é a ponte entre a maior<br />
produtora de celulose branqueada <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> – 2 milhões de toneladas/ano – e a<br />
maior companhia de <strong>na</strong>vegação privada <strong>do</strong> país – 8 milhões de toneladas de cargas<br />
transportadas anualmente em 28 <strong>na</strong>vios e faturamento de US$ 140 milhões. A maioria<br />
<strong>do</strong>s negócios da Norsul está <strong>na</strong> área de granel, onde são feitas 70% das operações da<br />
empresa, com transporte de papel, celulose, produtos siderúrgicos e madeira. Sem<br />
contar o ramo petrolífero, o arma<strong>do</strong>r responde por grossa fatia <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> de<br />
cabotagem <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, e 35% das exportações de celulose de Brasil e Argenti<strong>na</strong> para<br />
Europa e Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s.<br />
Operan<strong>do</strong> também em linhas de longo curso, a Norsul enxergou <strong>na</strong>s águas<br />
brasileiras a oportunidade de novos negócios. O desenvolvimento de novas rotas de<br />
transporte de matéria-prima para a Aracruz é só um <strong>do</strong>s grandes contratos da<br />
<strong>na</strong>vega<strong>do</strong>ra. “Estamos há quase 40 anos sempre volta<strong>do</strong>s à cabotagem, no entanto,<br />
atuan<strong>do</strong> com a maioria de cargas em granel sóli<strong>do</strong>. A operação com contêineres é<br />
recente, e percebemos que o segmento, nos últimos anos, vinha fican<strong>do</strong> cada vez<br />
mais competitivo. Partimos, então, para operar também num modal diferente: as<br />
barcaças oceânicas transportan<strong>do</strong> em distâncias menores e uma freqüência maior de<br />
viagens”, explica o diretor da Norsul, Luiz Phillipe Figueire<strong>do</strong>.<br />
Paralelo ao projeto Aracruz, a Norsul já engatilha investimentos de US$ 40<br />
241
milhões numa solução para o grupo francês Usinor, que desembarca em Santa<br />
Catari<strong>na</strong> com a Vega <strong>do</strong> Sul. Neste caso, o trabalho é transportar bobi<strong>na</strong>s de aço da<br />
Companhia Siderúrgica de Tubarão (CST) <strong>do</strong> Espírito Santo para São Paulo e Santa<br />
Catari<strong>na</strong>. Segun<strong>do</strong> a Norsul, um protocolo já foi assi<strong>na</strong><strong>do</strong> preven<strong>do</strong> ainda a escoagem<br />
de matéria-prima da Usinor para São Francisco <strong>do</strong> Sul, onde a multi<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l constrói a<br />
sua unidade no sul <strong>do</strong> país. Com isso, logo que a indústria estiver em funcio<strong>na</strong>mento,<br />
parte da sua produção seguirá pelas barcaças da Norsul para São Paulo, de onde<br />
será distribuída. A Vega <strong>do</strong> Sul deve beneficiar 1 milhão de toneladas de aço<br />
lami<strong>na</strong><strong>do</strong> ao ano, e a previsão é de que o transporte desta carga só comece em<br />
2005.<br />
A circularidade é uma característica estilística bastante presente no rol de textos<br />
apresenta<strong>do</strong>s nesta tese. A seguir, mais um exemplo de como este recurso contribui para<br />
inscrever uma assi<strong>na</strong>tura <strong>na</strong> reportagem.<br />
242
Carga & Cia. Nº 44. Fevereiro e Março de 2003. pp.18-9<br />
Socorro à vista<br />
Busscar aguarda o aval <strong>do</strong> BNDES para concluir a sua integralização acionária e iniciar<br />
a reestruturação das dívidas, que alcançam cerca de R$ 200 milhões<br />
A segunda maior fabricante de carrocerias de ônibus <strong>do</strong> Brasil torce para que<br />
o Banco Nacio<strong>na</strong>l de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) volte a assumir o<br />
papel de “hospital” defendi<strong>do</strong> pelo seu novo presidente, o economista Carlos Lessa.<br />
Há um ano, a Busscar pediu um empréstimo para a sua reestruturação fi<strong>na</strong>nceira, que<br />
consiste no pagamento de cre<strong>do</strong>res, integralização das ações <strong>na</strong>s mãos da família<br />
Nielson e obtenção de capital de giro. Passa<strong>do</strong> tanto tempo, o acor<strong>do</strong> com o BNDES<br />
está <strong>na</strong> iminência de ser oficializa<strong>do</strong>. A assessoria de imprensa <strong>do</strong> banco não informa<br />
detalhes da operação, mas a informação que se tem é de que o fi<strong>na</strong>nciamento beira<br />
os R$ 100 milhões.<br />
Em janeiro, a empresa enviou carta aos cre<strong>do</strong>res informan<strong>do</strong> os termos <strong>do</strong><br />
<strong>do</strong>cumento. As novas condições são de que o BNDES suspende temporariamente a<br />
liquidação <strong>do</strong>s sal<strong>do</strong>s venci<strong>do</strong>s e estipula um prazo de carência com os bancos<br />
cre<strong>do</strong>res de 12 meses para o início <strong>do</strong> pagamento <strong>do</strong> sal<strong>do</strong>. Trata-se de um respiro<br />
para atender aos fornece<strong>do</strong>res, que foram classifica<strong>do</strong>s em três grupos: os que<br />
receberão em 24 parcelas, os com prazo de 12 meses e os que receberão em seis<br />
meses. O acor<strong>do</strong> diz ainda que esses fornece<strong>do</strong>res só poderão emitir novas faturas<br />
com prazo de 45 dias para o seu vencimento. Socorrida pelo BNDES, a Busscar deve<br />
ainda se livrar <strong>do</strong>s protestos e ações de cobrança que vem receben<strong>do</strong> nos últimos<br />
meses. É que o acor<strong>do</strong> com o banco condicio<strong>na</strong> os pagamentos aos cre<strong>do</strong>res à<br />
retirada <strong>do</strong>s protestos.<br />
Na empresa, em Joinville (SC), ninguém fala sobre o assunto. A recomendação<br />
é não atender a imprensa e não se manifestar sobre quaisquer aspectos <strong>do</strong> acor<strong>do</strong>. A<br />
assessoria de comunicação da Busscar garante que pretende anunciar a conclusão<br />
<strong>do</strong> acor<strong>do</strong> com o BNDES tão logo ele se concretize. Este anúncio deveria ter ocorri<strong>do</strong><br />
no segun<strong>do</strong> semestre <strong>do</strong> ano passa<strong>do</strong>, mas, ao que tu<strong>do</strong> indica, os entraves<br />
burocráticos frearam a iniciativa. As fi<strong>na</strong>nças da Busscar não andam bem das per<strong>na</strong>s<br />
desde o ano passa<strong>do</strong> e a demora <strong>do</strong> BNDES só piorou a situação. Entre encargos<br />
sociais e outros passivos, calcula-se que as dívidas cheguem a R$ 200 milhões. Para se<br />
ter uma idéia, em dezembro passa<strong>do</strong>, a empresa chegou a dispensar seus<br />
funcionários por um dia por falta de alimentação, já que a fornece<strong>do</strong>ra – a Embrasa –<br />
havia corta<strong>do</strong> o abastecimento depois de ficar 45 dias sem receber. No dia seguinte,<br />
243
tu<strong>do</strong> foi normaliza<strong>do</strong> após a negociação da dívida de R$ 350 mil.<br />
Evitan<strong>do</strong> tragédia - É clássico o tema da disputa pelo poder dentro de uma<br />
família. Em geral, depois de muita intriga, ninguém sobrevive e o negócio vai parar <strong>na</strong><br />
mão de terceiros. Muito possivelmente, a presidenta Rosita Nielson não quis repetir a<br />
tragédia <strong>na</strong> segunda maior encarroça<strong>do</strong>ra de ônibus <strong>do</strong> país, a Busscar. Há anos, a<br />
empresa sofria com a disputa inter<strong>na</strong> pelo poder, o que poderia abalar a situação<br />
promissora da empresa. Enxergan<strong>do</strong> ape<strong>na</strong>s uma saída, a matriarca abriu a bolsa em<br />
janeiro de 2002, e optou por comprar as ações <strong>do</strong>s sócios minoritários.<br />
Até então, a viúva de Harold Nielson e os filhos Fábio e Cláudio detinham 56,8%<br />
das ações. Com a aquisição, <strong>do</strong>is sócios foram afasta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> controle: o irmão <strong>do</strong> ex-<br />
presidente, Valdir Nielson, e o cunha<strong>do</strong>, Ran<strong>do</strong>lfo Raiter. Ambos ainda ocupam cargos<br />
importantes no grupo: o primeiro responde pela HVR Equipamentos Industriais, unidade<br />
que adapta projetos de chassis, e o segun<strong>do</strong> dirige a Tecnofibras, empresa de<br />
materiais plásticos <strong>do</strong> grupo. Os <strong>do</strong>is braços ajudam a sustentar o sucesso da Busscar<br />
dentro e fora <strong>do</strong> país, que se traduziu em negócios de R$ 520 milhões em 2001.<br />
Com 100% das ações da empresa, Rosita Nielson concentrou ainda mais o<br />
poder <strong>do</strong> clã <strong>na</strong> escalada da Busscar. A operação de integralização dependeu de<br />
muita negociação inter<strong>na</strong> e infindáveis reuniões. Parece contraditório, mas ao mesmo<br />
tempo em que Rosita Nielson trazia a Busscar mais para dentro de casa, quem foi<br />
desig<strong>na</strong><strong>do</strong> para chefiar a empresa nem é da família. A razão é simples: confiança no<br />
vice-presidente, Edson Andrade, que já passou com sucesso por outras multi<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is.<br />
Na monta<strong>do</strong>ra há cinco anos, o executivo reverteu números negativos, racio<strong>na</strong>lizou a<br />
gestão e vem lideran<strong>do</strong> o processo de inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lização. Em setembro de 1998, o<br />
então presidente Harold Nielson contratou Andrade para modernizar a empresa.<br />
Ape<strong>na</strong>s 48 dias depois, um acidente aéreo abalou a empresa, matan<strong>do</strong> o empresário.<br />
Na época, não houve disputa pelo poder no grupo, e to<strong>do</strong>s confiaram a direção a<br />
Andrade. A empresa fechou o ano com um prejuízo líqui<strong>do</strong> de US$ 1,9 milhão, mas em<br />
2000, já buzi<strong>na</strong>va com lucro de US$ 10 milhões. De 1999 a 2001, a Busscar comprou<br />
fábricas no México, em Cuba, <strong>na</strong> Colômbia, <strong>na</strong> Venezuela e <strong>na</strong> Di<strong>na</strong>marca.<br />
Atualmente, tem parcerias <strong>na</strong> Ásia e EUA.<br />
Esperan<strong>do</strong>, esperan<strong>do</strong> – Fora <strong>do</strong>s muros da empresa, o merca<strong>do</strong> aguarda<br />
informações e manifestações concretas de restabelecimento da saúde fi<strong>na</strong>nceira da<br />
Busscar. Não se teme notícias piores, mas há apreensão. O volume de negócios da<br />
empresa é grande, suas exportações pesam <strong>na</strong> balança e a fatia de merca<strong>do</strong> é<br />
expressiva. Entre as encarroça<strong>do</strong>ras, a Busscar é a quinta <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e só em 2001<br />
vendeu 5.726 unidades, 35,1% delas para o exterior. De acor<strong>do</strong> com o balanço anual<br />
da empresa, 2001 foi o melhor perío<strong>do</strong> da história da Busscar. As vendas alcançaram<br />
R$ 544,6 milhões, confirman<strong>do</strong> um crescimento de 27% com relação a 2000. Mesmo<br />
244
aumentan<strong>do</strong> exportações e venden<strong>do</strong> para 50 países, a Busscar está no foco <strong>do</strong><br />
merca<strong>do</strong>.<br />
O a<strong>na</strong>lista de merca<strong>do</strong> João da Costa Marques, da Sudameris Corretora,<br />
acompanha o setor automotivo e considera que talvez o salto da Busscar tenha si<strong>do</strong><br />
maior que as per<strong>na</strong>s. “Acredito que a empresa entrou numa guerra de preços para<br />
ganhar fatia de merca<strong>do</strong> e acabou prejudican<strong>do</strong> o seu desempenho. No ramo das<br />
encarroça<strong>do</strong>ras, a margem de lucro é muito estreita e qualquer perda no preço fi<strong>na</strong>l<br />
se traduz em prejuízo real para a empresa”. Segun<strong>do</strong> o a<strong>na</strong>lista, o segmento depende<br />
de mão-de-obra intensiva e automação, o que demanda custos altos. Daí trabalhar<br />
com margem peque<strong>na</strong> de lucro. “A Busscar até conquistou mais merca<strong>do</strong>, mas<br />
acabou se endividan<strong>do</strong>”, avalia.<br />
Costa Marques compara a estratégia da empresa catarinense com a da<br />
concorrente Marcopolo, de Caxias <strong>do</strong> Sul (RS). A líder <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l optou por<br />
diferenciar suas receitas, buscan<strong>do</strong> também o merca<strong>do</strong> inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, mas protegeu-<br />
se lançan<strong>do</strong> ações <strong>na</strong> Bolsa de Valores de São Paulo. Foram negocia<strong>do</strong>s 37% <strong>do</strong><br />
antigo capital da empresa, que detém mais da metade <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> brasileiro, e uma<br />
fatia planetária de 6% <strong>do</strong>s negócios <strong>do</strong> ramo. “A oferta <strong>na</strong> Bovespa foi um sucesso, o<br />
que funcionou como um colchão fi<strong>na</strong>nceiro para a Marcopolo. Isso a deixou mais<br />
confortável com relação a créditos”. Na época, as dívidas estavam próximas <strong>do</strong><br />
patrimônio líqui<strong>do</strong>, e isso costuma assustar os bancos que ficam mais renitentes para<br />
conceder empréstimos.<br />
A Busscar tenta a sua saída. Esta não é a primeira vez que a monta<strong>do</strong>ra de<br />
Joinville recorre ao BNDES. No fi<strong>na</strong>l <strong>do</strong> ano passa<strong>do</strong>, ela conseguiu fi<strong>na</strong>nciamento<br />
federal de US$ 26,8 milhões para exportar carrocerias e chassis de ônibus para Cuba.<br />
Desta vez, é diferente: o empréstimo não tem ape<strong>na</strong>s caráter de fomento. O caso<br />
lembra a velha discussão sobre o papel <strong>do</strong> BNDES, que ganhou corpo com o governo<br />
Lula. O ministro <strong>do</strong> Desenvolvimento, Luiz Fer<strong>na</strong>n<strong>do</strong> Furlan, quer que o BNDES<br />
mantenha o seu papel de banco de investimento, de fomento, mas o próprio<br />
presidente <strong>do</strong> banco, Carlos Lessa, ace<strong>na</strong> com a possibilidade de o órgão atuar em<br />
alguns casos como salva<strong>do</strong>r da pátria de algumas empresas. É esperar para ver.<br />
No exemplo acima, o título não é o origi<strong>na</strong>l sugeri<strong>do</strong> pelo repórter. Na primeira<br />
versão, ele era “Ainda <strong>na</strong> UTI” e remetia à discussão sobre a vocação <strong>do</strong> BNDES como<br />
um banco que socorre empresas em dificuldades. Mesmo troca<strong>do</strong> por um título melhor<br />
(“Socorro à vista”), o gancho se mantém <strong>na</strong> reportagem, reforça<strong>do</strong> pela abertura e pela<br />
245
conclusão, que retoma a discussão. Mais uma vez, recorro a uma estrutura circular de<br />
texto, formato que tor<strong>na</strong> as <strong>na</strong>rrativas jor<strong>na</strong>lísticas mais fechadas em si mesmas, de<br />
mo<strong>do</strong> que se apresentem como episódios mais bem acaba<strong>do</strong>s.<br />
246
Fluxo. Nº 14. Agosto de 2003. pp. 24-6<br />
As vinhas <strong>na</strong> mira<br />
Sem deixar a romântica tradição no cultivo da uva, vinícolas investem em alta<br />
tecnologia e soluções logísticas.E se precisar, técnicos fazem até chover...<br />
Conta a lenda que, quan<strong>do</strong> as águas baixaram, Noé deixou a arca e plantou<br />
uma videira <strong>na</strong>s terras lavadas pelo grande dilúvio. O ato era um símbolo de que o<br />
homem novamente se ligava à terra para viver. A muda prosperou e se espalhou pelo<br />
mun<strong>do</strong>. Passa<strong>do</strong>s milhares de anos, numa outra latitude, algumas famílias também<br />
tentavam recomeçar. Vindas da Itália, encontraram <strong>na</strong> serra gaúcha o clima e as<br />
condições necessárias para se fixar, e foi a partir dali que passaram a produzir os<br />
melhores vinhos <strong>do</strong> país.<br />
Quase 130 anos depois, os vinhe<strong>do</strong>s daquela região parecem os mesmos, mas<br />
a infra-estrutura por trás deles mu<strong>do</strong>u muito. Embora ainda sejam mantidas algumas<br />
tradições – como a colheita manual e o toque familiar <strong>na</strong> condução <strong>do</strong>s negócios -,<br />
as vinícolas perceberam que era mais <strong>do</strong> que necessário buscar soluções <strong>na</strong><br />
tecnologia. Por isso, hoje, as principais produtoras de vinho não dispensam o<br />
acompanhamento de especialistas, a engenharia genética e até mesmo moder<strong>na</strong>s<br />
técnicas para garantir o melhor clima para o desenvolvimento das uvas.<br />
Como as frutas são sensíveis, ventos fortes e granizo fazem muitos produtores<br />
perderem mais <strong>do</strong> que o sono. Não é à toa que anualmente é gasto muito dinheiro<br />
com foguetes anti-granizo no Vale <strong>do</strong>s Vinhe<strong>do</strong>s, no entorno de Bento Gonçalves (RS).<br />
Quan<strong>do</strong> os técnicos percebem formações perigosas no céu, eles disparam foguetes<br />
que dissolvem os blocos de gelo <strong>na</strong>s nuvens, provocan<strong>do</strong> chuvas mais ame<strong>na</strong>s,<br />
salvan<strong>do</strong> a lavoura, literalmente.<br />
Vinhoduto – Como a qualidade <strong>do</strong>s vinhos depende <strong>do</strong> bom desenvolvimento<br />
da matéria-prima, a atenção com as uvas começa bem antes: <strong>na</strong> escolha das<br />
sementes e sua adequação às condições de solo e clima. Na Vinícola Aurora, a maior<br />
<strong>do</strong> país, por exemplo, <strong>do</strong>is centros tecnológicos de viticultura importam mudas e as<br />
reproduzem em suas estufas. Os engenheiros agrônomos desenvolvem variedades de<br />
uva isentas de viroses e totalmente ambientadas à região. Só depois disso é que as<br />
novas mudas são distribuídas aos produtores.<br />
Nesses mesmos laboratórios, testes são feitos com enzimas e leveduras em<br />
busca de vinhos melhores. Este departamento de pesquisa funcio<strong>na</strong> como uma<br />
unidade de vinificação e está integra<strong>do</strong> aos centros tecnológicos por um complexo<br />
de tubulações especialmente projetadas para a planta da vinícola.<br />
247
O vinhoduto de mais de 4,5 km de extensão foi a solução logística perfeita<br />
para a empresa (veja box). Trouxe economia porque substituiu o transporte por<br />
caminhões-pipa e garantiu mais cuida<strong>do</strong> <strong>na</strong> movimentação <strong>do</strong> vinho: subterrâneo, o<br />
vinhoduto transporta os líqui<strong>do</strong>s sem qualquer alteração de temperatura, o que<br />
assegura fidelidade <strong>na</strong> cor, no aroma e no sabor.<br />
Negócio familiar – É comum o produto levar no rótulo o nome da família<br />
produtora. Mas este não é o único indica<strong>do</strong>r <strong>do</strong> apego <strong>do</strong>s clãs ao negócio <strong>do</strong> vinho.<br />
A terceira e quarta gerações já <strong>do</strong>mi<strong>na</strong>m o merca<strong>do</strong> e continuam tocan<strong>do</strong> a<br />
produção <strong>na</strong> serra gaúcha. Na Casa Valduga, é Luiz – neto <strong>do</strong>s funda<strong>do</strong>res da<br />
vinícola – quem acompanha to<strong>do</strong>s os detalhes. Na Miolo, netos e bisnetos <strong>do</strong><br />
patriarca Giuseppe, tomam as decisões, mas cercam-se de padrões de gestão<br />
profissio<strong>na</strong>l. Para se ter uma idéia, a vinícola desenvolveu um planejamento<br />
estratégico para os próximos dez anos. Se hoje detém 8% <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> <strong>do</strong>méstico de<br />
vinhos finos – a sua especialidade -, a Miolo deve produzir neste ano 5 milhões de litros<br />
e faturar R$ 48 milhões. Em 2012, pretende alcançar 12 milhões de litros, um terço disso<br />
para exportação.<br />
Na Vinícola Aurora, toda uva que entra no parque fabril é cultivada em regime<br />
familiar. Aliás, a empresa é uma imensa cooperativa que reúne 1300 produtores de<br />
nove municípios da serra gaúcha. Mas como eles mantêm o mesmo padrão da<br />
matéria-prima? A empresa fornece as mudas, acompanha o cultivo e dá orientação<br />
técnica especializada. Com isso, tu<strong>do</strong> fica sob controle, e o desvio é mínimo. Na<br />
época da colheita, os produtores chegam a contratar trabalha<strong>do</strong>res temporários, e é<br />
a vez de outras famílias migrarem para a serra gaúcha no início de janeiro. Colhi<strong>do</strong>s<br />
manualmente, os delica<strong>do</strong>s cachos de uva são deposita<strong>do</strong>s em tachos plásticos que<br />
se empilham nos caminhões. A partir dali e até tor<strong>na</strong>rem-se vinho, ninguém mais tem<br />
contato manual com as uvas. Quan<strong>do</strong> os carregamentos chegam aos portões da<br />
vinícola, os tachos se enfileiram <strong>na</strong>s esteiras mecânicas e seguem direto para a linha<br />
de produção.<br />
Por contrato, os cooperativa<strong>do</strong>s produzem exclusivamente para a vinícola, que<br />
tem o compromisso de garantir a compra de toda a matéria-prima. Entretanto, o<br />
termo de exclusividade não impede que concorrentes desleais assediem os<br />
viticultores. Desesperadas por uvas de qualidade, algumas vinícolas chegam a<br />
oferecer preços melhores pelos carregamentos. Quem cede à tentação de um lucro<br />
maior, acaba pagan<strong>do</strong> por descumprir o acerta<strong>do</strong> com a Aurora. “Já houve casos,<br />
sim. Mas, como prevê o contrato, o produtor que fizer isso é automaticamente<br />
excluí<strong>do</strong> <strong>do</strong> quadro cooperativo”, afirma o diretor operacio<strong>na</strong>l da Aurora, Carlos<br />
Zanotto. Esse negócio familiar gera anualmente 46 milhões de quilos de uva que se<br />
convertem em 35 milhões de litros de vinho. Embora a produção seja familiar, ela<br />
248
contrasta com o profissio<strong>na</strong>lismo <strong>na</strong> gestão que se quer imprimir no Vale <strong>do</strong>s Vinhe<strong>do</strong>s,<br />
região de 81 quilômetros quadra<strong>do</strong>s que está sob a supervisão da Associação <strong>do</strong>s<br />
Produtores de Vinhos Finos <strong>do</strong> Vale <strong>do</strong>s Vinhe<strong>do</strong>s (Aprovale), desde 1995. A<br />
organização zela pela qualidade <strong>do</strong>s produtos e, no ano passa<strong>do</strong>, criou o primeiro<br />
selo de indicação de procedência de vinhos <strong>do</strong> país.<br />
Pelo mun<strong>do</strong> - Tal como acontece com outros produtos certifica<strong>do</strong>s – como o<br />
café - o selo marca uma nova etapa no padrão de qualidade <strong>na</strong> produção e<br />
comercialização <strong>do</strong>s vinhos no merca<strong>do</strong> <strong>do</strong>méstico. Segun<strong>do</strong> a Aprovale, os vinhos<br />
que trazem o indica<strong>do</strong>r de procedência têm aumenta<strong>do</strong> seus valores agrega<strong>do</strong>s,<br />
colocam-se com mais facilidade no merca<strong>do</strong> e têm mais saída, já que o consumi<strong>do</strong>r<br />
cria uma confiança maior em produtos certifica<strong>do</strong>s.<br />
O vinho com sotaque brasileiro, aliás, já chega às mesas mais exigentes <strong>do</strong><br />
planeta. Os espumantes, por exemplo, têm nível de competição no primeiro escalão<br />
inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l, e os demais alcançam quatro continentes. Curioso é perceber que o<br />
maior exporta<strong>do</strong>r uruguaio de vinho é brasileiro. “O Ta<strong>na</strong>t uruguaio sempre teve um<br />
bom conceito entre os vinhos sul-americanos. Fomos atrás desta qualidade e<br />
adquirimos uma unidade de produção <strong>na</strong>quele país. Hoje, somos os maiores<br />
vende<strong>do</strong>res de vinho de lá”, comemora Carlos Zanotto, da Aurora. A vinícola produz<br />
lá as variedades Ta<strong>na</strong>t e Cabernet Sauvignon da linha Marcus James, que chegam ao<br />
Brasil devidamente envasa<strong>do</strong>s e rotula<strong>do</strong>s para o merca<strong>do</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l.<br />
Compensa colocar <strong>na</strong>s gôn<strong>do</strong>las daqui um produto importa<strong>do</strong> que tem know-<br />
how brasileiro? O consumo maciço nesta faixa demonstra que sim. Além <strong>do</strong> mais, não<br />
poderia ser diferente: a legislação impede que vinhos entrem no país a granel. O<br />
produto precisa estar rotula<strong>do</strong>, envasa<strong>do</strong> e veda<strong>do</strong>. Afora esta operação<br />
“brasiguaia”, a Aurora já enche taças nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, Japão e Finlândia. Cerca de<br />
5% <strong>do</strong>s negócios são em exportação, faixa que quer chegar a 20% nos próximos cinco<br />
anos, alardeia a empresa. Dentro <strong>do</strong> país, a distribuição se dá por meio de<br />
representantes em to<strong>do</strong>s os Esta<strong>do</strong>s e de centros de distribuição.<br />
A Miolo exporta para Ca<strong>na</strong>dá e Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, mas os negócios com o<br />
exterior ainda estão se firman<strong>do</strong>. De to<strong>do</strong> o faturamento, a fatia estrangeira é de<br />
ape<strong>na</strong>s 1%. “Estamos ten<strong>do</strong> uma boa recepção lá fora e queremos atingir 4 milhões<br />
de litros exporta<strong>do</strong>s anualmente em dez anos”, projeta Carlos Eduar<strong>do</strong> Correa<br />
Nogueira, gerente da área. As cargas saem prontinhas da empresa para desembarcar<br />
<strong>na</strong> América <strong>do</strong> Norte. Os contêineres que partem <strong>do</strong> porto de Rio Grande (RS) são<br />
inclusive estofa<strong>do</strong>s para que não haja perigo às garrafas. “Vinhos são produtos muito<br />
sensíveis e para que não haja muita oscilação no transporte nem variação de<br />
temperatura, colocamos os contêineres no <strong>na</strong>vio, abaixo da linha d´água”, completa<br />
Nogueira. Se há milhares de anos Noé embarcou pessoas e animais, hoje, são garrafas<br />
249
de vinho que cortam os mares para chegar a novas terras. Pensan<strong>do</strong> bem, muita<br />
coisa mu<strong>do</strong>u desde a primeira muda...<br />
BOX<br />
Vinho pela torneira<br />
Para reduzir custos operacio<strong>na</strong>is e diminuir o risco de perdas, a Vinícola Aurora<br />
optou por uma solução logística limpa e barata. Ten<strong>do</strong> que fazer diariamente o<br />
transporte da produção entre três unidades distantes, a empresa resolveu aposentar<br />
os caminhões-pipa que circulavam pela região de Bento Gonçalves (RS) e instalou um<br />
complexo de enca<strong>na</strong>mentos entre os pontos deseja<strong>do</strong>s.<br />
Funcio<strong>na</strong>n<strong>do</strong> desde 1995, o vinhoduto tem 4,3 km de extensão e é composto<br />
por três linhas de dutos, por onde correm 25 milhões de litros de vinho por ano.<br />
Independentes, cada cano é responsável pelo transporte de um líqui<strong>do</strong>, seja vinho,<br />
resíduo industrial ou resíduo trata<strong>do</strong>. O sistema foi especialmente projeta<strong>do</strong> para a<br />
empresa, e o material sintético usa<strong>do</strong> foi desenvolvi<strong>do</strong> para suportar a pressão <strong>do</strong><br />
bombeamento, além de não oxidar nem liberar toxi<strong>na</strong>s que alterem sabor, cor ou<br />
perfume. O enca<strong>na</strong>mento é subterrâneo – o que conserva a temperatura <strong>do</strong> vinho e<br />
preserva suas características – e fica a uma profundidade que varia de <strong>do</strong>is a <strong>do</strong>ze<br />
metros, dependen<strong>do</strong> <strong>do</strong> trecho.<br />
Há sistemas específicos de bombeamento para cada cano, além de<br />
controla<strong>do</strong>res de pressão e velocidade. Funcio<strong>na</strong>m como corações, impulsio<strong>na</strong>n<strong>do</strong><br />
um líqui<strong>do</strong> igualmente rubro por baixo da terra. Para acompanhar o tráfego, os<br />
técnicos observam os medi<strong>do</strong>res de vazão, instala<strong>do</strong>s em pontos-chave, onde podem<br />
ser identifica<strong>do</strong>s perdas ou qualquer tipo de desvio. Como a carga que por ali passa é<br />
delicada e requer muita assepsia, o vinhoduto tem manutenção diária, à base de<br />
água quente e material de limpeza.<br />
O projeto de construção <strong>do</strong> vinhoduto levou em conta a necessidade da<br />
empresa de centralizar o volume de efluentes numa única estação de tratamento. Se<br />
conseguisse isso, cortaria custos não só de manejo, mas também <strong>na</strong> elimi<strong>na</strong>ção <strong>do</strong><br />
frete <strong>do</strong>s caminhões-pipa. A idéia bem sucedida livrou o trânsito da cidade <strong>do</strong>s<br />
veículos, reduziu a emissão de gases poluentes e trouxe mais tranqüilidade a quem<br />
cuida da qualidade <strong>do</strong> vinho. É que, evitan<strong>do</strong> os sacolejos comuns ao transporte<br />
ro<strong>do</strong>viário, a vinícola mantém o seu produto mais “descansa<strong>do</strong>” e mais seguro. A idéia<br />
de fazer um vinhoduto veio a calhar, ainda mais numa região como a <strong>do</strong> Vale <strong>do</strong>s<br />
Vinhe<strong>do</strong>s. Nesse caso, até a topografia aju<strong>do</strong>u.<br />
250
A matéria acima foi produzida em <strong>do</strong>is momentos, e eles são facilmente<br />
percebi<strong>do</strong>s <strong>na</strong> espessura <strong>do</strong> texto. Eu soube que havia uma vinícola que trazia vinho <strong>do</strong><br />
Uruguai para o Brasil, aplican<strong>do</strong> nele seus rótulos em português e dan<strong>do</strong> ao produto a<br />
sua marca. Fiquei intriga<strong>do</strong> com a operação , questio<strong>na</strong>n<strong>do</strong>-me se aquilo valia a pe<strong>na</strong><br />
logisticamente. Produzi uma pauta em cima da informação e apresentei à Fluxo,<br />
argumentan<strong>do</strong> que teríamos ali um bom caso a ser conta<strong>do</strong>, ainda mais num clima de<br />
inverno. A sugestão foi recebida e passei a cumprir minha pauta.<br />
A primeira versão <strong>do</strong> texto já trazia destaca<strong>do</strong>s os três recursos estilísticos mais<br />
presentes <strong>na</strong> minha produção jor<strong>na</strong>lística para aquelas publicações: a intertextualidade, a<br />
abertura imagética e a estrutura circular <strong>do</strong> texto. A primeira característica estava<br />
expressa no título da matéria, uma paráfrase ao famoso romance de John Steinbeck (“As<br />
vinhas da ira”); mas também se manifestava <strong>na</strong> alusão ao conheci<strong>do</strong> episódio da Arca de<br />
Noé, <strong>na</strong> Bíblia.<br />
A abertura <strong>do</strong> texto – descritiva e sintética - conta um fragmento de como teria<br />
si<strong>do</strong> o fi<strong>na</strong>l da história <strong>do</strong> Dilúvio, apegan<strong>do</strong>-se a um detalhe que serviria de gancho<br />
para to<strong>do</strong> o texto: uma muda de videira estava ligada ao começo de um novo tempo,<br />
cheio de esperança e de prosperidade. A conclusão retoma a abertura, fechan<strong>do</strong> a<br />
história, como um conto em círculo, a exemplo de outros casos já relata<strong>do</strong>s<br />
anteriormente. Após a primeira versão <strong>do</strong> texto, os editores pediram texto complementar<br />
que detalhasse a <strong>na</strong>tureza e o funcio<strong>na</strong>mento <strong>do</strong> vinhoduto, sistema da Vinícola Aurora.<br />
Como eu já havia fecha<strong>do</strong> a história em si mesma e tinha a confirmação de que o<br />
complemento seria um box à matéria, destaca<strong>do</strong> <strong>do</strong> conjunto anterior, produzi um texto<br />
num tom diferencia<strong>do</strong>, alheio à primeira <strong>na</strong>rrativa. No box, propositalmente, não se<br />
aplicam as características antes evidenciadas já que se busca um caráter mais técnico<br />
que detalhe o funcio<strong>na</strong>mento <strong>do</strong> sistema hidráulico de bombeamento <strong>do</strong> vinho.<br />
251
Carga & Cia. Nº 52. Novembro de 2003. pp. 16-7<br />
O salário <strong>do</strong> me<strong>do</strong><br />
Setor de Transportes é o que mais causa mortes em acidentes de trabalho. Enquanto<br />
especialistas alertam para o perigo, segmento arca com prejuízos e perdas huma<strong>na</strong>s<br />
Pressio<strong>na</strong><strong>do</strong>s pelo desespero, os motoristas aceitam o frete: levar um delica<strong>do</strong><br />
carregamento de explosivos por precárias estradas até um poço de petróleo. A cada<br />
solavanco, a certeza de ter a insegurança como companheira <strong>na</strong> boléia. A situação<br />
está em O salário <strong>do</strong> me<strong>do</strong>, filme clássico francês da década de 50, mas o drama <strong>do</strong>s<br />
motoristas não é exclusivo <strong>do</strong> roteiro cinematográfico. Atualmente, trabalhar cruzan<strong>do</strong><br />
ruas e ro<strong>do</strong>vias brasileiras é tão perigoso quanto transportar nitrogliceri<strong>na</strong>.<br />
Levantamento feito junto ao Ministério <strong>do</strong> Trabalho e à Previdência Social aponta que<br />
o setor de transportes é o que mais mata em serviço. A categoria <strong>do</strong>s motoristas é a<br />
maior vítima e está envolvida em um a cada cinco acidentes de trabalho fatais.<br />
Metade dessas mortes se dá em vias públicas.<br />
Durante muitos anos, a grande vilã <strong>do</strong>s acidentes de trabalho era a construção<br />
civil. Entretanto, embora ainda cause muitas vítimas, o setor vem reduzin<strong>do</strong> muitos <strong>do</strong>s<br />
seus índices graças ao aumento das fiscalizações, à a<strong>do</strong>ção de equipamentos e<br />
procedimentos de segurança e às modificações nos ambientes de trabalho. “Nos<br />
canteiros de obras, os pequenos acidentes vêm diminuin<strong>do</strong>. Em compensação, as<br />
vítimas estão aumentan<strong>do</strong> no trânsito, já que é sempre muito difícil intervir no cotidiano<br />
desses trabalha<strong>do</strong>res”, explica Roberto Cláudio Lodetti, chefe <strong>do</strong> setor de Segurança<br />
da Delegacia Regio<strong>na</strong>l <strong>do</strong> Trabalho (DRT) de Santa Catari<strong>na</strong>. “O fiscal visita a<br />
transporta<strong>do</strong>ra e percebe que lá as condições de trabalho são até aceitáveis, mas o<br />
local de trabalho <strong>do</strong> motorista é mesmo a estrada. Lá, o ambiente e a roti<strong>na</strong> são<br />
outros, e é isso que faz a diferença”.<br />
Em 2001, só em Santa Catari<strong>na</strong>, foram registradas 14 mortes em acidentes de<br />
trabalho no transporte terrestre contra 12 <strong>na</strong> construção civil. Em São Paulo, foram 85,<br />
no Rio, 23, e no Paraná, 26. É preciso lembrar ainda que a massa trabalha<strong>do</strong>ra<br />
empregada <strong>na</strong> construção é maior que a nos transportes.<br />
O roteiro desse filme é claro: o país é continental, mais de 60% da produção<br />
seguem por ro<strong>do</strong>vias, as estradas têm má conservação e os prazos de entrega estão<br />
cada vez mais curtos. Assim, o caminhoneiro tem que vencer grandes distâncias em<br />
menos tempo e, com isso, abusa da velocidade, exagera <strong>na</strong> jor<strong>na</strong>da de trabalho,<br />
<strong>do</strong>rme menos e, por isso, se arrisca mais em serviço. O resulta<strong>do</strong>: se em 2002, o país<br />
contabilizou 387 mil acidentes de trabalho, mais de 20 mil se deram <strong>na</strong>s áreas de<br />
252
transporte e armaze<strong>na</strong>gem. A fatia de 5% <strong>do</strong> total parece peque<strong>na</strong>, mas é preciso<br />
lembrar que esses são os da<strong>do</strong>s notifica<strong>do</strong>s, os oficiais.<br />
Informalidade – Muitos <strong>do</strong>s acidentes de trabalho nos transportes não são<br />
lança<strong>do</strong>s <strong>na</strong> conta total. Isso porque há muitos trabalha<strong>do</strong>res autônomos no<br />
segmento e milhares de casos são registra<strong>do</strong>s ape<strong>na</strong>s como acidentes de trânsito.<br />
Uma pesquisa da Fundação Seade, de São Paulo, revelou a subnotificação de<br />
acidentes de trabalho. Cruzan<strong>do</strong> da<strong>do</strong>s de atesta<strong>do</strong>s de óbitos e da Previdência<br />
Social, percebeu-se que em ape<strong>na</strong>s 26,5% <strong>do</strong>s casos o médico que assi<strong>na</strong>va os lau<strong>do</strong>s<br />
relacio<strong>na</strong>va a morte às condições de trabalho.<br />
Mesmo os números <strong>do</strong> trânsito são pouco transparentes. De acor<strong>do</strong> com o<br />
De<strong>na</strong>tran, no ano 2000, morreram 45 mil pessoas <strong>na</strong>s vias brasileiras. Entretanto, essas<br />
são ape<strong>na</strong>s as vítimas nos locais. Estima-se que mais um terço desse número morra no<br />
prazo de uma sema<strong>na</strong> por decorrência <strong>do</strong>s desastres. Esses elementos transformam o<br />
drama que é a vida <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r das estradas num filme de terror. E o que é pior:<br />
não é ficção.<br />
A informalidade ajuda a mascarar a realidade perigosa. Técnicos <strong>do</strong> governo<br />
brasileiro acreditam que ape<strong>na</strong>s um terço da massa trabalha<strong>do</strong>ra tenha registro em<br />
carteira e, portanto, notifique acidentes e receba benefícios que cubram essas<br />
eventualidades.<br />
Se antes eram autônomos ape<strong>na</strong>s os caminhoneiros que pescavam fretes pelo<br />
país, agora um exército de motoboys e mototaxistas ajuda a aumentar o grupo de<br />
risco. Em Brasília, por exemplo, a cada quatro mortes no trânsito, uma atinge um<br />
motoboy. Na cidade de São Paulo, morre um motociclista por dia. “Não basta ape<strong>na</strong>s<br />
que usem o capacete. A necessidade de realizar mais entregas por dia faz com que<br />
se arrisquem mais. No caso <strong>do</strong>s caminhoneiros, não é raro que acumulem funções, já<br />
que carregam e descarregam quan<strong>do</strong> chegam aos seus destinos”, relata Lodetti.<br />
Disparidades - Com tese de <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> sobre acidentes de trânsito, a socióloga<br />
Michele Catherine Henrique alerta para a distância entre os números alardea<strong>do</strong>s e a<br />
situação real. “Questiono as campanhas e os programas <strong>na</strong> área porque as<br />
estatísticas estão muito aquém <strong>do</strong> que ocorre por aí. Os acidentes têm si<strong>do</strong> trata<strong>do</strong>s<br />
como fatos isola<strong>do</strong>s, mas <strong>na</strong> verdade há uma rede de relações que se estabelece a<br />
partir deles”, critica. Segun<strong>do</strong> a pesquisa<strong>do</strong>ra, as condições de risco de quem<br />
trabalha com transportes têm feito com que, <strong>na</strong> média, os indivíduos deixem de viver<br />
metade <strong>do</strong> que poderiam ter vivi<strong>do</strong>. Se a expectativa de vida tem aumenta<strong>do</strong> no<br />
país, a guerra no trânsito tem frea<strong>do</strong> muitas vidas por aí.<br />
Os acidentes de trabalho no ramo de Transportes e Armaze<strong>na</strong>gem têm um<br />
perfil bem defini<strong>do</strong>: atingem mais homens, provocan<strong>do</strong> lesões <strong>na</strong> colu<strong>na</strong> e nos<br />
membros, além de problemas ósteo-musculares e estresse. Os acidentes se dão mais<br />
253
no começo da manhã, quan<strong>do</strong> o motorista já está cansa<strong>do</strong> de dirigir a noite toda, e<br />
no da tarde, logo após o almoço quan<strong>do</strong> o sono alcança os trabalha<strong>do</strong>res que<br />
<strong>do</strong>rmiram menos.<br />
Um outro traço caracteriza a maioria <strong>do</strong>s casos: tanto emprega<strong>do</strong>res como<br />
funcionários encaram acidentes como inerentes à atividade de trabalho. Esta<br />
complacência deseduca os profissio<strong>na</strong>is para uma cultura de prevenção.<br />
Em qualquer atividade profissio<strong>na</strong>l, imperícia, imprudência e desconhecimento<br />
das condições de trabalho respondem por até 80% <strong>do</strong>s acidentes graves e fatais.<br />
Campanhas informativas e cumprimento ideal de jor<strong>na</strong>das de trabalho poderiam<br />
modificar o quadro. “Exames médicos devem ser feitos com mais freqüência,<br />
diminuin<strong>do</strong> riscos. Emprega<strong>do</strong>s e patrões precisam se educar. Só assim, vão mudar o<br />
perfil <strong>do</strong> setor. Se somarmos esforços, tenho certeza de que em um ano derrubamos<br />
em 20% esses números”, aposta o chefe da Segurança no Trabalho em Santa<br />
Catari<strong>na</strong>, Cláudio Lodetti.<br />
Prejuízos – Vidas não têm preço, mas outros custos também pesam quan<strong>do</strong> o<br />
assunto é acidente de trabalho. O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)<br />
calcula que se gaste em torno de US$ 76 bilhões em toda a América Lati<strong>na</strong> com isso.<br />
Só em acidentes de trânsito, o Banco Mundial projeta um ralo de US$ 10 bilhões em<br />
to<strong>do</strong> o planeta. Aliás, em tempos de reformas, esta é uma área que vem chaman<strong>do</strong><br />
muito a atenção. O INSS concede 55 mil aposenta<strong>do</strong>rias por mês, das quais ape<strong>na</strong>s<br />
21% são por tempo de serviço. O resto atende casos de acidente, aposenta<strong>do</strong>ria e<br />
invalidez.<br />
“Recebemos muita gente aqui que é vítima de acidentes de trabalho, seja em<br />
cadeiras de roda ou mesmo profissio<strong>na</strong>is mutila<strong>do</strong>s <strong>na</strong>s estradas”, conta o presidente<br />
<strong>do</strong> Sindicato <strong>do</strong>s Ro<strong>do</strong>viários de Florianópolis e Região, Sidinei Medeiros. Mas o<br />
sindicato alerta que os trabalha<strong>do</strong>res <strong>do</strong> setor sofrem não só com os acidentes de<br />
trabalho, mas também com um encurtamento da vida profissio<strong>na</strong>l. “O motorista que<br />
tem mais de 45 anos não consegue mais ser encaixa<strong>do</strong>. As empresas acham que ele<br />
não rende mais porque pode não agüentar longas jor<strong>na</strong>das”, queixa-se Medeiros. As<br />
condições <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res <strong>do</strong> setor vêm preocupan<strong>do</strong> as autoridades, mas<br />
modificar a situação é processo a médio e longo prazos. Se O Salário <strong>do</strong> Me<strong>do</strong>, o<br />
filme, ganhou a Palma de Ouro em Cannes, a roti<strong>na</strong> de mortes no trânsito tem rendi<strong>do</strong><br />
ao Brasil a medalha de campeão mundial de acidentes. Mas não é vantagem<br />
nenhuma ser protagonista desse filme...<br />
Na reportagem acima, tor<strong>na</strong>m a aparecer a intertextualidade, apoiada por uma<br />
abertura imagética e dan<strong>do</strong> suporte a uma estrutura circular de texto.<br />
254
O título é referência explícita ao filme, confessada no início da história, e<br />
repeti<strong>do</strong> tanto <strong>na</strong> abertura como <strong>na</strong> conclusão da reportagem. A matéria (uma <strong>na</strong>rrativa<br />
não-ficcio<strong>na</strong>l) se ampara <strong>na</strong> descrição de uma história inventada (a <strong>do</strong> filme já cita<strong>do</strong>)<br />
para criar um gancho – o filme - que possa ser retoma<strong>do</strong> em trechos como: “mas o<br />
drama <strong>do</strong>s motoristas não é exclusivo <strong>do</strong> roteiro cinematográfico”, “a grande vilã <strong>do</strong>s<br />
acidentes de trabalho era a construção civil”, “o roteiro desse filme é claro” e “não é<br />
vantagem nenhuma ser protagonista desse filme”. A construção <strong>do</strong> texto revela uma<br />
estrutura circular, que delimita as fronteiras da história que se propôs <strong>na</strong>rrar. É evidente<br />
que o texto – como qualquer outro – é poroso e contém pontos de fuga, e de entrada.<br />
Entretanto, a circularidade, observada em outros exemplos, é uma característica que se<br />
reedita neste exemplo, contribuin<strong>do</strong> para os esforços para marcar uma assi<strong>na</strong>tura<br />
jor<strong>na</strong>lística <strong>na</strong> prática cotidia<strong>na</strong>.<br />
Concluída a análise <strong>do</strong> corpus, temos sedimentadas quatro características<br />
recorrentes <strong>na</strong>s matérias: a intertextualidade, o apoio em aberturas imagéticas, o<br />
recurso a elementos que causem desconcerto/surpresa/curiosidade e a engenharia de<br />
uma estrutura circular de texto.<br />
A intertextualidade mostrou-se um recurso que busca outras referências para<br />
enriquecer os textos, promoven<strong>do</strong> autêntico cruzamento de áreas, já que sempre se<br />
procurava contemplar saberes exteriores ao Transporte e à Logística, focos das<br />
publicações. No corpus a<strong>na</strong>lisa<strong>do</strong>, era um expediente que funcio<strong>na</strong>va como ponto de<br />
fuga, apontan<strong>do</strong> para outros campos, contribuin<strong>do</strong> para a experiência da leitura. Recurso<br />
estético, mas que auxilia tecnicamente a costura <strong>do</strong> texto jor<strong>na</strong>lístico.<br />
As aberturas descritivas, que compunham seqüências de imagens ou cenários,<br />
foram usadas como estratégia de atração e sedução <strong>do</strong>s leitores, suavizan<strong>do</strong> a <strong>na</strong>rrativa<br />
de assuntos difíceis (administração portuária e redução de poluentes, por exemplo) ou<br />
255
delica<strong>do</strong>s (como acidentes de trânsito e socorro a empresas endividadas). Com forte<br />
acento estético, as aberturas lançam as bases para a montagem de uma estrutura circular<br />
<strong>do</strong> texto. Esta circularidade dá unidade ao to<strong>do</strong>, fortalecen<strong>do</strong> a <strong>na</strong>rrativa e marcan<strong>do</strong><br />
bem o ritmo da história. Os episódios apresentam-se ao leitor mais bem acaba<strong>do</strong>s,<br />
fecha<strong>do</strong>s em unidades definidas.<br />
Dos recursos observa<strong>do</strong>s, o desconcerto é o menos usa<strong>do</strong>, o que não retira sua<br />
importância como elemento estilístico. No conjunto das características, ele ajuda a atrair<br />
a leitura, quebran<strong>do</strong> a lógica <strong>na</strong>rrativa ou mesmo crian<strong>do</strong> a sensação de que algo é<br />
contraditório, desconexo, desconcertante.<br />
A ocorrência dessas quatro características em pelo menos dez das vinte matérias<br />
produzidas para Carga & Cia e Fluxo desde o ano 2000 imprimem-se como tentativas<br />
bem sucedidas <strong>na</strong> busca de uma <strong>autoria</strong> jor<strong>na</strong>lística em reportagem. Bem sucedidas<br />
porque as experiências de confecção de textos mais leves e soltos para publicações<br />
dirigidas a setores mais austeros passaram pelo crivo <strong>do</strong>s editores e ganharam as bancas.<br />
Bem sucedidas porque não sofreram modificações que desfigurassem os origi<strong>na</strong>is<br />
envia<strong>do</strong>s aos editores. Bem sucedidas porque não implicaram em perdas nos conteú<strong>do</strong>s<br />
informativos em nome da estética textual ou <strong>do</strong> mero exercício estilístico manifesto<br />
como beletrismo.<br />
O corpus e as características encontradas<br />
Título da Matéria Publicada em Recursos Estilísticos<br />
Os alquimistas estão<br />
chegan<strong>do</strong><br />
Carga & Cia, nº 23 Intertextualidade<br />
Estrutura circular de texto<br />
Desconcerto<br />
O perigo está no ar Carga & Cia, nº 31 Abertura imagética<br />
Intertextualidade<br />
Estrutura circular de texto<br />
É lixo só Carga & Cia, nº 35 Abertura imagética<br />
Sempre cabe mais um Carga & Cia, nº 38 Desconcerto<br />
Estrutura circular de texto<br />
Fora com o carimbo Fluxo, nº 03 Desconcerto<br />
Um porto que se move Fluxo, nº 03 Desconcerto<br />
Abertura imagética<br />
256
Altos negócios, baixos cala<strong>do</strong>s Fluxo, nº 07 Desconcerto<br />
Abertura imagética<br />
Socorro à vista Carga & Cia, nº 44 Estrutura circular de texto<br />
As vinhas <strong>na</strong> mira Fluxo, nº 14 Intertextualidade<br />
Estrutura circular de texto<br />
Abertura imagética<br />
O salário <strong>do</strong> me<strong>do</strong> Carga & Cia, nº 52 Intertextualidade<br />
Estrutura circular de texto<br />
Abertura imagética<br />
Houve um esforço para imprimir um estilo nos textos em questão? É preciso<br />
confessar que, em alguns momentos, sim. Mas, <strong>na</strong> grande maioria das vezes, esses<br />
recursos foram se colocan<strong>do</strong> no texto de maneira <strong>na</strong>tural, entre o instintivo e o racio<strong>na</strong>l,<br />
para garantir o bem-estar estético e qualidade técnica jor<strong>na</strong>lística. Até as edições de nº<br />
49 de Carga & Cia e de nº 14 de Fluxo, ambas de agosto de 2003, eu ainda não havia<br />
disseca<strong>do</strong> os textos em busca de características comuns a fim de categorizá-las. O que<br />
significa que as duas últimas reportagens foram produzidas e redigidas com a<br />
consciência de recursos estilísticos comuns; e que tais matérias tentaram aprofundar<br />
esses expedientes. Mais ainda, isso mostra que – para além de mera experimentação<br />
estilística – a aprovação das matérias pelas instâncias de edição e suas publicações<br />
atestam que há possibilidades concretas <strong>do</strong> exercício de <strong>autoria</strong> <strong>na</strong> reportagem.<br />
257
6.4. O que os editores têm a dizer<br />
258<br />
“Um editor de jor<strong>na</strong>l é alguém que<br />
separa o joio <strong>do</strong> trigo. E imprime o joio”<br />
Adlai Stevenson, político norte-americano<br />
“A carreira de um bom repórter, em geral, é<br />
abortada prematuramente pelo oferecimento<br />
de um cargo de chefia, e, dali, para fora <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lismo.<br />
Um bom editor demora anos para fazer-se mas,<br />
quan<strong>do</strong> fica pronto, um infer<strong>na</strong>l rodízio leva-o para<br />
outra área ou outra empresa”.<br />
Alberto Dines, jor<strong>na</strong>lista brasileiro<br />
Os editores são os primeiros leitores <strong>do</strong>s repórteres. Recebem o material,<br />
revisam, cortam, alteram, renomeam, ajustam à linha editorial, quan<strong>do</strong> isso é necessário.<br />
Seus olhos são os primeiros a escanear a superfície difusa <strong>do</strong>s textos produzi<strong>do</strong>s;<br />
escarafuncham, buscam senti<strong>do</strong>s, a<strong>na</strong>lisam se o que têm ali pode ir a público, se deve<br />
chegar ao leitor. Funcio<strong>na</strong>m como primeiro filtro <strong>do</strong>s textos candidatos a matérias.<br />
Por essas razões, é preciso ouvir os editores. Mais ainda: ao conhecer as bases<br />
em que se apóiam seus critérios de edição, é possível traçar conclusões sobre a validade<br />
ou não das proposições <strong>do</strong> Capítulo 5 desta tese.<br />
No fi<strong>na</strong>l de abril de 2004, entrevistei o diretor editorial da Foco, Marcelo Motta<br />
Vieira, e a chefe de reportagem, Adria<strong>na</strong> Ferro<strong>na</strong>tto, responsáveis pelo trabalho de<br />
edição <strong>na</strong>s publicações. To<strong>do</strong>s os textos passam por eles, e é a partir dali que os<br />
números das revistas vão se desenhan<strong>do</strong> antes de chegar aos assi<strong>na</strong>ntes. Na mesma<br />
ocasião, conversei ainda com o jor<strong>na</strong>lista Júlio Malhadas Neto, que editou a já extinta<br />
Fórmula Brasil e agora atua como repórter de Carga & Cia e Fluxo. As fontes foram<br />
escolhidas porque estão diretamente envolvidas com aqueles projetos editoriais,<br />
freqüentam a redação e vivem a roti<strong>na</strong> da editora.<br />
As entrevistas aconteceram no mesmo dia, <strong>na</strong> redação da Foco Editorial, em<br />
Curitiba (PR). Conversei separadamente com cada um deles, embora os demais<br />
tivessem condições para interferir em respostas, complementan<strong>do</strong> informações, negan<strong>do</strong>
ou confirman<strong>do</strong> versões. Para que as entrevistas fluíssem, não utilizei grava<strong>do</strong>res,<br />
toman<strong>do</strong> ape<strong>na</strong>s notas de pontos mais importantes de suas falas. A exemplo de to<strong>do</strong> o<br />
tempo anterior, não mencionei minhas experiências textuais com nenhuma das fontes, e<br />
também não me coloquei <strong>na</strong> condição de um colega de redação. Concentrei as perguntas<br />
num único eixo: os critérios <strong>do</strong>s editores no tratamento das matérias que chegam à<br />
redação. Este aspecto foi des<strong>do</strong>bra<strong>do</strong> em três perguntas que se repetiram:<br />
• Quais são os critérios que você utiliza para editar um texto para Carga &<br />
Cia e/ou Fluxo?<br />
• Para você, o que é um texto bom, passível de sair <strong>na</strong>s revistas?<br />
• Que tipo de texto não entraria em Carga & Cia e/ou Fluxo se você as<br />
tivesse editan<strong>do</strong>?<br />
As questões tentam extrair respostas que tratem da qualidade textual das<br />
reportagens, observan<strong>do</strong> se há margem para experiências mais autorais, com emprego<br />
de estilo ou se existe uma norma ou padrão a ser segui<strong>do</strong>. Adiante, os principais trechos<br />
<strong>do</strong>s depoimentos <strong>do</strong>s editores:<br />
Marcelo Motta Vieira, diretor da Foco Editorial<br />
“Olha, para mim, só há <strong>do</strong>is tipos de texto: o bom e o ruim. Aqui, <strong>na</strong> Foco,<br />
seguimos um funcio<strong>na</strong>mento pareci<strong>do</strong> com o da Editora Abril. Há alguém que a<strong>na</strong>lisa<br />
toda a edição e se preocupa com a qualidade <strong>do</strong>s textos veicula<strong>do</strong>s. Tenta dar uma<br />
padronização, mas isso não quer dizer que os vôos textuais <strong>do</strong>s repórteres não sejam<br />
permiti<strong>do</strong>s. Muito pelo contrário, eles são muito bem-vin<strong>do</strong>s. Tentamos nos espelhar em<br />
fórmulas consagradas de boas revistas como a Veja e a Exame, mas voltan<strong>do</strong>-nos para<br />
os segmentos que atendemos”.<br />
259
“Eu penso que a Folha de S.Paulo influenciou muito a nossa geração. Eu tenho<br />
40 anos e senti isso também. A Folha veio com um esquema industrial pesa<strong>do</strong>, de<br />
planejar a edição, de estabelecer espaços para as matérias, de condicioná-las ao<br />
planejamento da pági<strong>na</strong>. Aí, o que aconteceu? Os textos acabaram mecânicos demais,<br />
chatos, quase feitos por robôs. O que a Folha fez? Deu mais espaço para os colunistas.<br />
Ali, a Folha podia se permitir ter estilo, escrever bem (risos). O que eu percebo, de uma<br />
maneira geral, é que os jor<strong>na</strong>listas que mais escrevem bem são aqueles que mais lêem.<br />
Em termos de informação, eu penso que os textos que publicamos estão num patamar<br />
mais básico, não há lá muita exclusividade, mas temos um bom texto”.<br />
“Não tenho qualquer restrição em termos de texto. Se o repórter fizer uma<br />
reportagem bem feita, com informação, boas fontes e estiver em versos, por exemplo,<br />
eu publico. Não tenho restrição a formatos”.<br />
“Recebemos muitos elogios <strong>do</strong>s assi<strong>na</strong>ntes, e eles se concentram em <strong>do</strong>is pontos<br />
basicamente: o planejamento gráfico das revistas e a amplitude <strong>na</strong>s coberturas. Neste<br />
tempo to<strong>do</strong>, recebi <strong>do</strong>is ou três elogios ape<strong>na</strong>s à qualidade <strong>do</strong> texto. Acho que o leitor<br />
não se importa muito com isso. Acho que chama mais a atenção <strong>do</strong> próprio repórter, <strong>do</strong><br />
jor<strong>na</strong>lista”.<br />
“Essa coisa <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lismo é curiosa mesmo. Tive uma noção mais clara de como<br />
fazer revista quan<strong>do</strong> trabalhei <strong>na</strong> Veja. Lá <strong>na</strong> Abril, há o entendimento de que uma<br />
revista precisa de cerca de quatro anos para se consolidar. É claro que existem exceções<br />
e a própria Veja é uma delas. Demorou mais que isso, mas era o carro-chefe da editora e<br />
uma aposta pessoal <strong>do</strong>s Civita. Embora já contássemos com alguma experiência de<br />
produção da Carga & Cia, também cometemos erros com a Fluxo. Ao fazer a Carga,<br />
vimos que a área da Logística era maior ainda que a de Transportes, por isso criamos<br />
um novo título. Entretanto, descobrimos que essa área não está acostumada a investir<br />
260
em publicidade nem tampouco habituada com jor<strong>na</strong>lismo. Então, não foram poucas as<br />
vezes em que um anunciante meu me ligava dizen<strong>do</strong>: Pó, Marcelo! Eu anuncio contigo<br />
e é o meu concorrente que sai <strong>na</strong> capa? Não vou mais anunciar! O cara não entendia que<br />
quem saiu <strong>na</strong> capa era notícia, tinha assunto e ele não. Outra coisa: há publicações <strong>na</strong><br />
área de Logística que mais se parecem com catálogos. São 90% de publicidade<br />
travestida de matéria e 10% de jor<strong>na</strong>lismo de verdade. Nós fazemos diferente, e<br />
pagamos por isso”.<br />
Adria<strong>na</strong> Ferro<strong>na</strong>tto, chefe de reportagem de Carga & Cia e Fluxo<br />
“Os critérios de edição são os <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lismo mesmo. Não se foge muito disso.<br />
Para mim, um texto bom começa pela correção gramatical, por um bom português. É<br />
preciso também que seja fluente, sem tropeços, que seja bom de ser li<strong>do</strong>, gostoso. Não é<br />
porque trabalhamos em revistas segmentadas que devemos fazer textos engessa<strong>do</strong>s,<br />
maçantes. É preciso fazer revistas que mantenham o padrão da informação sem serem<br />
chatas. Sabemos para quem escrevemos, mas não precisamos escrever no jargão deles,<br />
com a mesma linguagem das transporta<strong>do</strong>ras, <strong>do</strong>s caminhoneiros. Escrevemos de uma<br />
maneira que possa ser inteligível para nossos assi<strong>na</strong>ntes e outras pessoas que possam se<br />
tor<strong>na</strong>r nossos leitores”.<br />
“Embora a edição fique a cargo de uma única pessoal, recebemos os textos já<br />
previamente edita<strong>do</strong>s pelos repórteres. Eles nos enviam o material conten<strong>do</strong> não só o<br />
texto da matéria, mas sugestão de título, de legenda, fotos, intertítulos e olho. Isso<br />
facilita”.<br />
“Que texto não entra? Ah! O factual não dá. Somos revistas mensais e não<br />
podemos ficar com esse compromisso de jor<strong>na</strong>l diário. Outra coisa: não dá para tolerar<br />
texto sem nexo, sem ligação, que só traz partes que não se conectam, como num<br />
relatório. Matéria em primeira pessoa? Pode passar, sim. Se estiver bem escrita e for<br />
261
adequa<strong>do</strong>, por que não? A revista tem espaço para brincar, para ter um texto mais<br />
informal. Então, o repórter pode fazer uma abertura de texto com mais estilo, ou ainda<br />
com referências a outras áreas, quem sabe. Eu acho que por ser revista, até se exige uma<br />
certa flexibilidade. O que tem é que enriquecer mesmo. Criatividade é essencial. Há<br />
espaço para estilo até pela própria característica <strong>do</strong> meio”.<br />
Júlio Malhadas Neto, repórter de Carga & Cia e Fluxo, e auxiliar <strong>na</strong> revisão<br />
“Para mim, um texto ruim é aquele que tem cara de press-release. Não que não<br />
existam releases bem escritos, mas texto de reportagem precisa ser diferente. Não pode<br />
ser cheio de adjetivos, não pode ter um só ponto de vista. Tem que estar correto<br />
gramaticalmente, ter fontes, ter falas que importem para o assunto. O texto bom tem que<br />
estar rechea<strong>do</strong> de fontes qualificadas, conter falas conflitantes para que o leitor julgue e<br />
tome o seu parti<strong>do</strong>. O texto bom também não pode ser uma novela. Tem que ser conciso<br />
sem ser <strong>do</strong> tipo que a gente <strong>na</strong> Folha de S.Paulo: telegráfico, molda<strong>do</strong>, em fórmula”.<br />
“Acho que o bom texto tem que ter um pouco de literatura também. Não pode<br />
ser maçante. Por ser revista, tem que ter um molho, pode-se fazer metáforas, joguinhos<br />
de palavras. Na verdade, acho que o repórter tem que fazer isso: tor<strong>na</strong>r o texto mais<br />
atraente”.<br />
As falas <strong>do</strong>s editores de Carga & Cia e Fluxo demonstram flexibilidade no trato<br />
com os textos. Mesmo servin<strong>do</strong> merca<strong>do</strong>s bem delimita<strong>do</strong>s, as publicações permitem<br />
reportagens mais fluentes, textos mais soltos, matérias mais informais. Os editores<br />
garantem que isso não afeta o conteú<strong>do</strong> informativo ou a credibilidade das publicações.<br />
Pelo contrário, pode atrair outros leitores. Um pouco dessa flexibilidade é atribuída ao<br />
próprio meio de comunicação que a revista impressa se consoli<strong>do</strong>u.<br />
262
Entretanto, apesar disso, há exemplos <strong>na</strong>s bancas e <strong>na</strong>s salas de espera <strong>do</strong>s<br />
consultórios médicos em que não se vê “literatura”, “informalidade”, “estilo” – para<br />
tomar as palavras das bocas <strong>do</strong>s editores. O que se percebe é que, entre os editores de<br />
Carga & Cia e Fluxo, vigora um conjunto de critérios de edição que coloca o conteú<strong>do</strong><br />
informativo das matérias sobre o formato como elas se apresentam. Isto é, se as matérias<br />
produzidas contemplarem as demandas jor<strong>na</strong>lísticas, suas formas pouco importarão.<br />
Não há restrição a exercício de estilo nem a experimentações textuais. Essa flexibilidade<br />
resulta em uma liberdade maior por parte <strong>do</strong>s repórteres <strong>na</strong> escritura de seus trabalhos.<br />
A flexibilidade <strong>do</strong>s editores garante autonomia de quem realiza as coberturas. Parece<br />
caber aos repórteres “vôos” mais altos.<br />
É preciso que se diga que, durante as entrevistas, nenhum <strong>do</strong>s consulta<strong>do</strong>s<br />
referiu-se à <strong>autoria</strong>. Não há entre eles uma reflexão mais aprofundada disso, o que se<br />
traduz numa preocupação menor com relação ao exercício de um estilo ou à<br />
competência textual que aponte para essa direção. Em nenhum momento também os<br />
editores distinguiram o trabalho de um repórter de outro <strong>na</strong>s revistas da editora. Nem<br />
tampouco apontaram para outros jor<strong>na</strong>listas-autores de veículos <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is ou<br />
inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>is. As referências se deram ape<strong>na</strong>s no plano institucio<strong>na</strong>l das empresas,<br />
como se elas se configurassem escolas ou correntes jor<strong>na</strong>lísticas.<br />
De maneira geral, o que observei é que a <strong>autoria</strong> é um assunto que ainda não<br />
atrai tanta atenção e energia <strong>do</strong>s editores quan<strong>do</strong> se discute qualidade <strong>do</strong> texto<br />
jor<strong>na</strong>lístico. Embora, ela possa estar impressa <strong>na</strong>s pági<strong>na</strong>s das revistas que editam, não<br />
há um <strong>olhar</strong> tão deti<strong>do</strong> sobre essa matéria.<br />
263
CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
Um jor<strong>na</strong>lismo com impressões digitais<br />
264<br />
“O jor<strong>na</strong>lismo é o exercício diário da inteligência<br />
e a prática cotidia<strong>na</strong> <strong>do</strong> caráter”.<br />
Cláudio Abramo, jor<strong>na</strong>lista brasileiro<br />
“O conceito de <strong>objetividade</strong> tem si<strong>do</strong> tão desfigura<strong>do</strong><br />
que hoje é usa<strong>do</strong> para descrever o próprio problema<br />
que deveria corrigir”<br />
Bill Kovach & Tom Rosenstiel, jor<strong>na</strong>listas norte-americanos<br />
“Nunca me esquecerei desse acontecimento<br />
<strong>na</strong> vida de minhas reti<strong>na</strong>s tão fatigadas”<br />
Carlos Drummond de Andrade – No meio <strong>do</strong> caminho<br />
O Jor<strong>na</strong>lismo que se arvora no objetivismo é tão diáfano quanto a permanência<br />
<strong>do</strong>s fatos. No mun<strong>do</strong> exterior às redações, os acontecimentos se sucedem, repetem-se,<br />
superam-se, desmentem-se. O tempo passa, as coisas acontecem e os jor<strong>na</strong>listas correm<br />
como loucos <strong>na</strong> tentativa de congelar a vida em manchetes ou anúncios. Autêntico<br />
trabalho de Sísifo, o Jor<strong>na</strong>lismo alimenta a ilusão de que possa refletir o real, que seja<br />
capaz de manejar fragmentos da realidade sem interferir em suas formas e senti<strong>do</strong>s.<br />
Iludem-se os profissio<strong>na</strong>is ali envolvi<strong>do</strong>s e parte <strong>do</strong> público que ainda crê no Jor<strong>na</strong>lismo<br />
como espelho <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />
Mas o Jor<strong>na</strong>lismo é também vitrine e janela para a vida. Entre o público e a<br />
paisagem, há um anteparo: transparente, limpo, quase invisível. Mesmo assim,<br />
pensamos que nosso <strong>olhar</strong> toca a paisagem, esquecen<strong>do</strong>-nos de que há algo no meio <strong>do</strong><br />
caminho que pode distorcer nossa visão, dan<strong>do</strong> a impressão de que a paisagem não está<br />
tanto distante quanto efetivamente está, por exemplo. Usamos vidros <strong>na</strong>s janelas. Há<br />
vidros <strong>na</strong>s vitrines. Carregamos lentes apoiadas em nossos <strong>na</strong>rizes. E cotidia<strong>na</strong>mente<br />
nos esquecemos desta i<strong>na</strong>parente existência; convivemos com ela, como se a ignoran<strong>do</strong>,<br />
como se essas placas de vidro não fizessem o seu papel, como se não interferissem.
O Jor<strong>na</strong>lismo ajuda a enxergar o mun<strong>do</strong>. Funcio<strong>na</strong> como janela, como vitrine;<br />
funcio<strong>na</strong> como lente, como prisma. É tão familiar que quase nos esquecemos dele; e aí,<br />
o que recebemos <strong>do</strong>s meios de comunicação é absorvi<strong>do</strong> como o fato-em-si, como se<br />
não houvesse mediação. Mas a luz que ilumi<strong>na</strong> a paisagem não chega aos nossos olhos<br />
sem antes passar por lentes, sem antes sofrer refração. Talvez seja proposital esquecer<br />
disso, talvez seja i<strong>na</strong>dvertidamente. Mas a mediação está ali.<br />
O Jor<strong>na</strong>lismo é uma atividade desenvolvida por e para humanos. E concebê-la<br />
isenta de sujeitos é alimentar a ilusão de que os fatos falem por si mesmos, que os<br />
relatos sejam feitos sem nenhuma voz. Neste senti<strong>do</strong>, sobra pouco espaço para<br />
considerar a <strong>objetividade</strong> da forma como as gramáticas jor<strong>na</strong>lísticas construíram no<br />
último século. A <strong>objetividade</strong> – como aquela qualidade de isentar-se completamente de<br />
si para trazer à to<strong>na</strong> o objeto – sobrevive ape<strong>na</strong>s <strong>na</strong> boca e <strong>na</strong> mente <strong>do</strong>s que crêem nela.<br />
Sua permanência enquanto coisa se dá no pensamento e no discurso. Efeito de<br />
linguagem, <strong>do</strong>gma profissio<strong>na</strong>l ou imperativo ético, a <strong>objetividade</strong> reside <strong>na</strong> debilidade<br />
de seu conceito. É claro que se pode tentar apagar as marcas <strong>do</strong>s sujeitos que realizam o<br />
Jor<strong>na</strong>lismo. Na superfície da língua, tu<strong>do</strong> é possível: “Veja ouviu o ministro tal”,<br />
“fulano recebeu a Folha de S.Paulo em seu escritório”. Mas os vestígios humanos<br />
permanecem. Alguém já disse, certa vez, que não é possível fazer Jor<strong>na</strong>lismo sem sujar<br />
as mãos. E entre a <strong>objetividade</strong> <strong>do</strong>gmatizada e o exercício subjetivo <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista há<br />
muita coisa. É evidente que não defen<strong>do</strong> aqui um Jor<strong>na</strong>lismo individual, pessoal e<br />
isola<strong>do</strong>. Esta é uma atividade social, coletiva. Também não me refiro a um Jor<strong>na</strong>lismo<br />
impressionista, onde adjetivos i<strong>na</strong>preensíveis e relatos egocêntricos sustentem as<br />
<strong>na</strong>rrativas <strong>do</strong> cotidiano. É preciso dialogar, tor<strong>na</strong>r comum, compartilhar.<br />
Não defen<strong>do</strong> um Jor<strong>na</strong>lismo impressionista, mas um Jor<strong>na</strong>lismo onde as<br />
impressões digitais <strong>do</strong>s sujeitos que o fazem sejam visíveis, aparentes. Um Jor<strong>na</strong>lismo<br />
265
onde as marcas autorais não sejam soterradas por projetos editoriais pretensamente<br />
objetivos, presumidamente universais. Aponto a necessidade de um Jor<strong>na</strong>lismo que<br />
restitua os <strong>na</strong>rra<strong>do</strong>res como sujeitos <strong>do</strong> processo, em conjunto com os sujeitos <strong>do</strong><br />
público, desti<strong>na</strong>tários da informação. A leitura <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> pelos meios de comunicação é<br />
um processo complexo de atribuição de senti<strong>do</strong>s que contribui sobremaneira para a<br />
conversão de indivíduos em sujeitos. No outro extremo, a <strong>autoria</strong> também se coloca<br />
como um conjunto de operações que funcio<strong>na</strong> <strong>na</strong> mesma direção: o <strong>na</strong>rra<strong>do</strong>r pode ser<br />
escrivão ou escritor, autor ou mero repeti<strong>do</strong>r de versões.<br />
Nas 265 pági<strong>na</strong>s anteriores, sublinhei que o Jor<strong>na</strong>lismo é uma atividade prática<br />
coletiva, e que nem sempre a <strong>autoria</strong> numa obra jor<strong>na</strong>lística é discernível. O Jor<strong>na</strong>lismo<br />
reflete/refrata os fatos (ou tenta fazê-lo), e eles não têm <strong>do</strong>no. Neste contexto, pode-se<br />
falar em <strong>autoria</strong> jor<strong>na</strong>lística quan<strong>do</strong> preenchidas algumas condições de exercício de<br />
estilo e reposicio<strong>na</strong>mento <strong>do</strong> sujeito <strong>do</strong> discurso jor<strong>na</strong>lístico. Neste cenário, a <strong>autoria</strong> é<br />
entendida primeiro como indica<strong>do</strong>r de responsabilidades, mas ela se efetiva mesmo no<br />
Jor<strong>na</strong>lismo <strong>na</strong> órbita da mediação.<br />
Assim, para ser autor <strong>na</strong> reportagem, é necessário atender a <strong>do</strong>is estilos, um<br />
estrutural <strong>do</strong> Jor<strong>na</strong>lismo e outro, pessoal. A <strong>autoria</strong> jor<strong>na</strong>lística se dá num ponto<br />
periférico, no estágio de exercício <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> estilo (o pessoal), não no primeiro, já que<br />
este é plano de imanência <strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa jor<strong>na</strong>lística. Uma <strong>autoria</strong> no Jor<strong>na</strong>lismo depende<br />
de uma compreensão diferenciada da obra jor<strong>na</strong>lística, e por isso não vigoram as<br />
mesmas regras que valem para a obra literária ou artística, por exemplo.<br />
No Jor<strong>na</strong>lismo, para ser autor, é preciso legitimidade. Ela é a primeira condição<br />
a ser satisfeita para uma efetiva vivência autoral <strong>na</strong> reportagem. Para além disso, a<br />
<strong>autoria</strong> pode se apoiar ainda <strong>na</strong> capacidade/competência de bem <strong>na</strong>rrar. Mais ainda:<br />
<strong>autoria</strong> requer certo grau de autonomia <strong>do</strong> repórter, flexibilidade das instituições<br />
266
jor<strong>na</strong>lísticas que abrigam esse profissio<strong>na</strong>l. Autonomia <strong>do</strong> repórter e sua correspondente<br />
ousadia <strong>na</strong> prática cotidia<strong>na</strong>. Outra condição: a autoridade de quem é especialista ou<br />
testemunha <strong>do</strong> aconteci<strong>do</strong>, fator que ajuda a credenciar o discurso <strong>do</strong> jor<strong>na</strong>lista.<br />
Portanto, é possível exercer <strong>autoria</strong> em estruturas jor<strong>na</strong>lísticas cada vez mais<br />
hierarquizadas, industrializadas e complexas <strong>na</strong> <strong>medida</strong> em que se constroem condições<br />
de autonomia <strong>do</strong> repórter e o profissio<strong>na</strong>l alimenta sua atuação com <strong>do</strong>ses de ousadia e<br />
consciência de sua função social.<br />
No Jor<strong>na</strong>lismo impresso, por exemplo, os autores poderiam estar mais evidentes.<br />
E a primeira <strong>medida</strong> neste senti<strong>do</strong> é garantir a assi<strong>na</strong>tura <strong>do</strong> trabalho. Os repórteres<br />
fotográficos já têm assegura<strong>do</strong> este direito, e recebem seus devi<strong>do</strong>s créditos. Penso que<br />
isso poderia ser estendi<strong>do</strong> aos repórteres, redatores e editores. Penso que deveriam<br />
figurar <strong>na</strong>s pági<strong>na</strong>s <strong>do</strong>s jor<strong>na</strong>is e revistas os nomes <strong>do</strong>s jor<strong>na</strong>listas que estiveram<br />
envolvi<strong>do</strong>s <strong>na</strong>queles relatos. Então, em to<strong>do</strong>s os textos, os leitores veriam nomea<strong>do</strong>s<br />
seus autores e responsáveis. Essa proposição acarreta numa mudança não só como<br />
<strong>medida</strong> que assegura o direito i<strong>na</strong>lienável de um autor de ser evoca<strong>do</strong> frente a sua obra,<br />
mas também como respeito aos leitores no conhecimento <strong>do</strong>s efetivos autores <strong>do</strong>s<br />
textos. A evidência, a proposta da assi<strong>na</strong>tura maciça <strong>do</strong>s textos nos meios impressos,<br />
permite uma outra coisa: visualizar com mais nitidez a polifonia que vigora <strong>na</strong>s pági<strong>na</strong>s<br />
da imprensa, as muitas vozes ali no jor<strong>na</strong>l e <strong>na</strong> revista.<br />
É possível que esta proposta não seja bem recebida <strong>na</strong>s redações, e possa ainda<br />
ser questio<strong>na</strong>da por setores da academia como algo que redunde <strong>na</strong> ba<strong>na</strong>lização das<br />
assi<strong>na</strong>turas. Mas independente de qualquer polêmica que alimente, a vocalização desta<br />
proposta se sustenta por um argumento facilmente assimilável: a assi<strong>na</strong>tura de um<br />
trabalho de espírito não é prêmio. Trata-se de crédito devi<strong>do</strong> a quem produz. Assi<strong>na</strong>tura<br />
é reconhecimento, é direito. I<strong>na</strong>lienável.<br />
267
Há uma premissa que escora a recomendação da assi<strong>na</strong>tura maciça nos trabalhos<br />
jor<strong>na</strong>lísticos: to<strong>do</strong> discurso tem uma voz que o emite, e ela parte de um sujeito, de um<br />
autor. Mesmo no anonimato das matérias não assi<strong>na</strong>das, mesmo <strong>na</strong>s reportagens<br />
televisivas onde não há passagem. Os fatos não falam por si mesmos; eles são conta<strong>do</strong>s.<br />
Entre os teóricos da Educação e da Lingüística, há o entendimento de que é através da<br />
aquisição da escrita que o sujeito deixa a posição de enuncia<strong>do</strong>r para ocupar a de autor.<br />
Comungo com esta compreensão <strong>do</strong> processo. E para ser autor, é preciso se colocar<br />
como um princípio de agluti<strong>na</strong>ção, agrupamento. A <strong>autoria</strong> é ponto de convergência, é<br />
para onde se atraem os senti<strong>do</strong>s dispersos e se passa a organizá-los. A <strong>autoria</strong> é ponto de<br />
coerência discursiva, onde são articuladas as mais diversas possibilidades de atribuição<br />
de senti<strong>do</strong>, selecio<strong>na</strong>n<strong>do</strong> e formatan<strong>do</strong> novas versões. A <strong>autoria</strong> é ponto de unidade, é<br />
vórtice. Ela está <strong>na</strong> mesma instância de onde se dispara o <strong>olhar</strong>. Não é ela quem<br />
determi<strong>na</strong> a <strong>medida</strong> <strong>do</strong> <strong>olhar</strong>, já que ela é a própria distância que separa sujeitos de<br />
objetos e de outros sujeitos.<br />
Funcio<strong>na</strong>n<strong>do</strong> como ponto de reunião e organização de senti<strong>do</strong>s, a <strong>autoria</strong> se<br />
materializa <strong>na</strong> ocupação <strong>do</strong> espaço que resta entre o sujeito <strong>na</strong>rra<strong>do</strong>r e o <strong>na</strong>rrável. O<br />
<strong>do</strong>mínio desta distância, o preenchimento desta espessura desenha os <strong>do</strong>is extremos da<br />
complexa operação <strong>do</strong> <strong>olhar</strong>: um sujeito-autor e o seu entorno em constante movimento.<br />
A <strong>autoria</strong> não é o <strong>olhar</strong>, mas dele depende. Para ser autor, é preciso firmar esse <strong>olhar</strong>,<br />
manifestá-lo com intensidade e consciência. Duvidar também das próprias reti<strong>na</strong>s<br />
(muitas vezes, fatigadas), lembrar-se da arguta ocorrência de ilusões ópticas. Então, não<br />
basta ape<strong>na</strong>s abrir os olhos – como quem abre janelas - e ver o mun<strong>do</strong>. Isso é só o meio<br />
<strong>do</strong> caminho. É necessário se posicio<strong>na</strong>r como sujeito que está mergulha<strong>do</strong> <strong>na</strong> realidade e<br />
<strong>na</strong>s ce<strong>na</strong>s <strong>na</strong>rráveis e lançar um <strong>olhar</strong> agu<strong>do</strong>, como quem procura senti<strong>do</strong>s no livro da<br />
vida.<br />
268
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