A MORENINHA Joaquim Manuel de Macedo - Fundação Biblioteca ...
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mal vestidos e magros cercavam o leito em que jazia moribundo um ancião <strong>de</strong> cinqüenta anos, pouco<br />
mais ou menos. Pelo que agora posso concluir, uma síncope havia causado todo o movimento, pranto e<br />
<strong>de</strong>solação que observamos. Quando chegamos ao pé <strong>de</strong> seu leito, ele tornava a si.<br />
- Ainda não morri, balbuciou, olhando com ternura para seus filhos, e <strong>de</strong>ixando cair dos olhos<br />
grossas lágrimas. Depois, <strong>de</strong>parando conosco, continuou:<br />
- Quem são estes dois meninos?...<br />
Ninguém lhe respon<strong>de</strong>u, porque todos choravam, sem excetuar a minha bela camarada e eu.<br />
- Não chorem ao pé <strong>de</strong> mim, exclamou o velho, sufocado em pranto, e escon<strong>de</strong>ndo o rosto entre<br />
as mãos, enquanto seus três filhos e o quarto, que tínhamos há pouco visto fora, se atiravam sobre ele,<br />
no excesso da maior, da mais nobre e da mais sublime das dores.<br />
A minha camarada dirigiu-se então à velha.<br />
- O que tem então ele?... perguntou com viva <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> interesse.<br />
- Ó, meus meninos, respon<strong>de</strong>u a aflita velha, ele sofre uma enfermida<strong>de</strong> cruel, mas que po<strong>de</strong>ria<br />
não ser mortal... porém é pobre!... e morre mais <strong>de</strong>pressa pelo pesar <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar seus filhos expostos à<br />
fome!... morre <strong>de</strong> miséria!... morre <strong>de</strong> fome!...<br />
- Fome! exclamamos com espanto; fome! pois também morre-se <strong>de</strong> fome?...<br />
E instintivamente a minha interessante companheira tirou do bolso do seu avental uma moeda<br />
<strong>de</strong> ouro e, dando-a à velha, disse:<br />
- Foi meu padrinho que ma <strong>de</strong>u hoje <strong>de</strong> manhã... eu não preciso <strong>de</strong>la... não tenho fome.<br />
E eu tirei <strong>de</strong> meu bolso uma nota, não me lembro <strong>de</strong> que valor e por minha vez a entreguei,<br />
dizendo:<br />
- Foi minha mãe que ma <strong>de</strong>u e ela me dá também um abraço, sempre que faço esmola aos<br />
pobres.<br />
Não é possível <strong>de</strong>screver o que se passou então naquela miserável choupana. Minha linda mulher<br />
e eu tivemos <strong>de</strong> ser abraçados mil vezes, <strong>de</strong> ver <strong>de</strong> joelhos a nossos pés a velha e os meninos... O ancião<br />
forcejava por falar há muito tempo... Dava com as mãos, chamando-nos... Finalmente nós nos<br />
aproximamos <strong>de</strong>le, que nos apertou com entusiasmo contra o coração.<br />
- Quem sois? pô<strong>de</strong>, enfim, dizer; quem sois?<br />
- Duas crianças, foi a menina que respon<strong>de</strong>u.<br />
- Dois anjos, tornou o velho. E quem é este menino?...<br />
- É o meu camarada, disse ainda ela.<br />
- Vosso irmão?...<br />
- Não senhor, meu... marido.<br />
- Marido?<br />
- Sim, eu quero que ele seja meu marido.<br />
- Deus realize vossos <strong>de</strong>sejos!..<br />
Acabando <strong>de</strong> pronunciar estas palavras, o ancião guardou silêncio por alguns instantes... bebeu<br />
com sofreguidão um púcaro cheio d’água e, olhando <strong>de</strong> novo para nós, e tendo no rosto um ar <strong>de</strong><br />
inspiração e em suas palavras um acento profético, exclamou:<br />
- Seja dado ao homem agonizante lançar seus últimos pensamentos do leito da morte, além dos<br />
anos, que já não serão para ele, e penetrar com seus olhares através do véu do futuro!... Meus filhos!<br />
amai-vos, e amai-vos muito! A virtu<strong>de</strong> se <strong>de</strong>ve ajuntar, assim como o vício se procura; sim, amai-vos.<br />
Eu não vos iludo... vejo lá... bem longe... a promessa realizada! São dois anjos que se unem... ve<strong>de</strong>!...<br />
os meninos que entraram na casa do miserável, que enxugaram o pranto e mataram a fome da indigência,<br />
são abençoados por Deus e unidos em nome d’Ele!... Meus filhos, eu vos vejo casados lá no futuro!...<br />
- Oh!... eis aí outra vez o <strong>de</strong>lírio!... disse a velha vendo a exaltação e o semblante afogueado do<br />
enfermo.