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editorial protagonistas de um passado histórico recente: lutas

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01<br />

EDITORIAL<br />

05<br />

O FENÔMENO RÁDIO MULHER: A VOZ FEMININA<br />

ECOANDO NA MATA SUL DE PERNAMBUCO.<br />

18<br />

PARA UMA CRÍTICA MARXISTA AO DIREITO E A PÓS-MODERNIDADE<br />

ENQUANTO DISCURSOS DE JUSTIFICAÇÃO.<br />

39<br />

ANÁLISE DOS OBSERVATÓRIOS DE MÍDIA BRASILEIROS COMO<br />

INSTRUMENTOS DO CONTROLE PÚBLICO DA MÍDIA.<br />

55<br />

AS RÁDIOS COMUNITÁRIAS E O DIREITO.<br />

96<br />

PROTAGONISTAS DE UM PASSADO HISTÓRICO RECENTE: LUTAS E VISÕES<br />

DE UMA CRENÇA EM UM MUNDO MAIS JUSTO.


EDITORIAL<br />

A Mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> é o transitório, o efêmero, o contingente, é a meta<strong>de</strong> da<br />

arte, sendo a outra meta<strong>de</strong> o eterno e o imutável.<br />

Charles Bau<strong>de</strong>laire<br />

Além do efêmero, herdou-se da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> o culto à insensatez.<br />

Herdou-se o apreço pela busca da novida<strong>de</strong> em si e por ser novida<strong>de</strong> será<br />

sempre transitória. Assim, o foco da produção foi <strong>de</strong>slocado para tudo<br />

aquilo que po<strong>de</strong> vir a existir. O saber científico está aplicado na construção<br />

das coisas possíveis <strong>de</strong> se tornarem úteis. Coisas que serão inseridas no<br />

cotidiano, subutilizadas e <strong>de</strong>scartadas para que então sejam substituídas<br />

por outras mais novas, porque somente assim será realmente explorada a<br />

capacida<strong>de</strong> h<strong>um</strong>ana <strong>de</strong> criação. Isso é fato. No entanto, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ssa<br />

mesma “or<strong>de</strong>m” <strong>de</strong>senvolveram-se, imensamente, faculda<strong>de</strong>s intelectuais.<br />

A h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong> fez da aplicação <strong>de</strong> seu conhecimento <strong>um</strong> instr<strong>um</strong>ento<br />

gerador <strong>de</strong> inteligência e, ao <strong>de</strong>senvolver-se, ofereceu a inquietos círculos<br />

criativos a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> contestar.<br />

A partir da esquematização <strong>de</strong> procedimento do raciocínio lógico,<br />

traduzido em processos inicialmente mecânicos, teve início a produção <strong>de</strong><br />

máquinas inteligentes. O homem i<strong>de</strong>ntificou o esquema lógico, por meio do<br />

qual processa intelectualmente seus símbolos, e reduziu esse esquema a<br />

<strong>um</strong> microambiente, criando sistemas físicos capazes <strong>de</strong> interpretar<br />

<strong>de</strong>terminados impulsos por analogia. Capacitando as máquinas para<br />

operacionalizar esses procedimentos, o homem po<strong>de</strong>, enfim, focar-se em<br />

outros símbolos, sínteses <strong>de</strong> novas razões. Com o avanço dos estudos da<br />

eletrônica, os procedimentos foram complexificados até que as máquinas<br />

ass<strong>um</strong>iram <strong>um</strong> papel <strong>de</strong> extensoras da própria inteligência h<strong>um</strong>ana, como<br />

se, sendo capazes <strong>de</strong> realizar alg<strong>um</strong>as funções lógicas, permitissem que<br />

outras novas faculda<strong>de</strong>s fossem <strong>de</strong>senvolvidas por seus criadores. A<br />

utilização da parafernália eletrônica inteligente transformou alg<strong>um</strong>as<br />

práticas produtivas em sub-tarefas e re<strong>de</strong>finiu outras mais abstratas. Ao<br />

1


incorporar o conhecimento técnico aos processos sociais, a h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong><br />

adquiriu a “capacida<strong>de</strong> tecnológica <strong>de</strong> utilizar, como força produtiva direta,<br />

aquilo que caracteriza a espécie como <strong>um</strong>a singularida<strong>de</strong> biológica: a<br />

capacida<strong>de</strong> superior <strong>de</strong> processar símbolos.” (Manuel Castells, A Socieda<strong>de</strong><br />

em Re<strong>de</strong>, 1998). Enfim, o aproveitamento tecnológico acelerou o ciclo<br />

produtivo, fazendo com que o que seria o resultado final <strong>de</strong> <strong>um</strong> processo<br />

fosse inserido como etapa criativa <strong>de</strong> outro, e, além <strong>de</strong> otimizar a utilização<br />

do conhecimento, potencializou a reflexivida<strong>de</strong> característica da lógica social<br />

mo<strong>de</strong>rna.<br />

A especificida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse fenômeno tecnológico resi<strong>de</strong> no caráter<br />

renovado que ass<strong>um</strong>e a informação, diante dos processos produtivos e,<br />

conseqüentemente, comunicativos. Com a chamada revolução<br />

informacional, a mensagem <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> consistir apenas em <strong>um</strong> “objeto” da<br />

tecnologia enquanto meio <strong>de</strong> transmissão. A partir <strong>de</strong> então, a própria<br />

tecnologia torna-se mensagem, pois admite significado simbólico enquanto<br />

utilida<strong>de</strong>. Além do fato <strong>de</strong> que os investimentos <strong>de</strong>spendidos no<br />

<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> aparatos tecnológicos cada vez mais mo<strong>de</strong>rnos<br />

traduzem-se em <strong>um</strong> custo final que incorpora valor social, tem-se,<br />

sobretudo, a evolução dos aparatos tecnológicos em prol da aceleração do<br />

<strong>de</strong>senvolvimento socioeconômico, que se tornam símbolo e ferramenta da<br />

transformação da estrutura social. O conceito <strong>de</strong> mensagem se expan<strong>de</strong> do<br />

conteúdo textual ao conteúdo referente ao ambiente <strong>de</strong> troca da<br />

informação. Os mediadores “tecno-máquinas” da comunicação se<br />

transformam em signos, porque implicam em re<strong>de</strong>finições do significado do<br />

que é mediado. É exatamente por permitir a renovação do caráter da<br />

mensagem que o meio tecnológico se incorpora a ela na condição <strong>de</strong><br />

símbolo do <strong>de</strong>senvolvimento do qual é resultado.<br />

Socieda<strong>de</strong>, expressão corrente para o significado do conjunto dos<br />

seres h<strong>um</strong>anos organizados e estruturados por suas culturas, agrega<br />

instituições, idéias e valores. Por socieda<strong>de</strong> subenten<strong>de</strong>m-se relações <strong>de</strong><br />

caráter prepon<strong>de</strong>rantemente econômico e cultural, sedimentadas por<br />

normas contratuais in<strong>de</strong>terminadas e impessoais, mas também orientadas a<br />

partir <strong>de</strong> interesses individuais. Por meio das singularida<strong>de</strong>s construídas<br />

2


pelas comunida<strong>de</strong>s h<strong>um</strong>anas, organizadas em bases territoriais<br />

geograficamente <strong>de</strong>limitadas, surgem vonta<strong>de</strong>s com forças que, ao<br />

simbolizar e aglutinar tipologias históricas, <strong>de</strong>finem e caracterizam o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento das interações sociais disseminadas no inconsciente<br />

coletivo.<br />

Filosoficamente, compreen<strong>de</strong>-se a socieda<strong>de</strong> dicotomizada em duas<br />

funções fundamentais: socieda<strong>de</strong> civil e socieda<strong>de</strong> política. Respaldada<br />

nessa singularida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>senvolve essas duas naturezas para alicerçar o<br />

Estado mo<strong>de</strong>rno.<br />

A socieda<strong>de</strong> política nas mo<strong>de</strong>rnas <strong>de</strong>mocracias caracteriza-se como o<br />

instante em que emergem as instituições pelas quais tanto a regulação<br />

quanto a coerção ass<strong>um</strong>em <strong>um</strong> caráter <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong> nas relações sociais,<br />

em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> estarem subsidiadas por <strong>um</strong> discernimento <strong>de</strong> valores<br />

culturais que dão suporte ético, coberto por <strong>um</strong> sentimento coletivo <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ver.<br />

É a socieda<strong>de</strong> civil, no entanto, a responsável pela imagem refletida<br />

na esfera pública, que se preocupa com a elaboração do consentimento -<br />

não com a coerção ou a dominação formal. São instituições da socieda<strong>de</strong><br />

civil a escola, a igreja, os mass media, entre outras, que asseguram a<br />

educação formal e sedimenta a cultura, tornando-se símbolos dinâmicos da<br />

hegemonia e da construção e realização do consenso.<br />

O Estado mo<strong>de</strong>rno, orientado pela razão histórica,<br />

prepon<strong>de</strong>rantemente alicerçado em dois pilares básicos - socieda<strong>de</strong> civil e<br />

socieda<strong>de</strong> política -, assentou a lógica inerente à racionalida<strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntal.<br />

Essa lógica é responsável, em termos <strong>de</strong> crises históricas, pela substituição<br />

dos valores tradicionais por relacionamentos entre indivíduos<br />

institucionalizados em padrões <strong>de</strong> comportamentos relacionais mais<br />

impessoais e em segmentados vínculos das <strong>de</strong>mocracias <strong>de</strong> massa urbana e<br />

<strong>de</strong> cons<strong>um</strong>o. A maior tradução <strong>de</strong>sse fenômeno é a universalização <strong>de</strong><br />

padrões <strong>de</strong> comportamentos, genericamente <strong>de</strong>nominado <strong>de</strong> globalização.<br />

Nesse aspecto específico, os meios <strong>de</strong> comunicação ass<strong>um</strong>em papel<br />

dinâmico na re<strong>de</strong>finição e construção dos novos mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>.<br />

3


Assim, a comunicação caracteriza-se, basicamente, pela produção <strong>de</strong><br />

<strong>um</strong>a enorme massa <strong>de</strong> bens culturais, induzida, em vasto aspecto, pela<br />

indústria criativa. Para alguns teóricos, esses bens são padronizados e<br />

estereotipados e ass<strong>um</strong>em valores simbólicos pelos quais os indivíduos<br />

sociais <strong>de</strong>bilitam a sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensar e <strong>de</strong> formular críticas<br />

autônomas. Para outros “teóricos da mídia”, no entanto, é essa massa <strong>de</strong><br />

bens simbólicos produzidos e disseminados pelos meios <strong>de</strong> comunicação<br />

que influencia positivamente a natureza e as novas formas <strong>de</strong> organização<br />

da sociabilida<strong>de</strong> e da sensibilida<strong>de</strong> h<strong>um</strong>ana.<br />

Nas socieda<strong>de</strong>s mo<strong>de</strong>rnas, o <strong>de</strong>senvolvimento dos meios <strong>de</strong><br />

comunicação criou <strong>um</strong> novo ambiente cultural em que o primado da visão<br />

foi <strong>de</strong>slocado por <strong>um</strong>a interação unificadora dos sentidos. Os indivíduos<br />

passaram a ser unidos em re<strong>de</strong>s globais <strong>de</strong> comunicação instantânea e,<br />

nesse caso, po<strong>de</strong>rá estar implícita a semente que germinará <strong>um</strong> novo<br />

homem em busca da realização <strong>de</strong> <strong>um</strong> novo padrão <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>.<br />

E é essa a pretensão que os editores da Revista Memória em<br />

Movimento, na condição <strong>de</strong> <strong>um</strong> “meio virtual”, preten<strong>de</strong>m. Ou seja, criar<br />

<strong>um</strong> ambiente ativo <strong>de</strong> discussão filosófica, privilegiando quatro enfoques<br />

básicos: Movimentos Sociais, Direitos H<strong>um</strong>anos, I<strong>de</strong>ologias do<br />

Desenvolvimento e Comunicação.<br />

Sejam bem-vindos todos que <strong>de</strong>sejam participar <strong>de</strong>ssas discussões.<br />

Dacier <strong>de</strong> Barros<br />

Editor Geral<br />

4


O FENÔMENO RÁDIO MULHER: A VOZ FEMININA<br />

ECOANDO NA MATA SUL DE PERNAMBUCO<br />

Ana Maria Veloso 1<br />

O rádio começou a ganhar maior popularida<strong>de</strong> a partir dos anos 1920<br />

no Brasil. A primeira transmissão radiofônica realizada no país ocorreu na<br />

Exposição do Centenário da In<strong>de</strong>pendência do Brasil, em 1922. A Rádio<br />

Socieda<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro (PRA-A), inaugurada por Roquete Pinto e<br />

Henrique Moritze em 20 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1923, foi consi<strong>de</strong>rada pioneira. Logo<br />

<strong>de</strong>pois, Elba Dias fundou a Rádio Clube do Brasil (PRA-B) e <strong>um</strong> grupo<br />

pernambucano começou a transmitir informações em 17 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong><br />

1923 pela Rádio Clube <strong>de</strong> Pernambuco.<br />

As emissoras operavam em sistema <strong>de</strong> clubes e socieda<strong>de</strong>s<br />

compostas, em sua maioria, por homens da classe média. As primeiras<br />

transmissões tinham formato educativo, com música clássica, ópera e<br />

leitura <strong>de</strong> livros para <strong>um</strong> público ainda restrito, <strong>de</strong>vido ao custo dos<br />

aparelhos. O veículo se firmou pelos idos <strong>de</strong> 1927, quando as gravações<br />

passaram a ser elétricas. Porém, o apogeu do rádio 2 ocorreu nos anos <strong>de</strong><br />

1930, <strong>de</strong>nominados <strong>de</strong> “A era do rádio no Brasil”. Foi quando o veículo caiu<br />

<strong>de</strong>finitivamente no gosto popular, com a participação <strong>de</strong> artistas em<br />

programas <strong>de</strong> auditório transmitidos ao vivo e nas adaptações <strong>de</strong> textos<br />

teatrais, as famosas novelas do rádio, que transformaram anônimos em<br />

celebrida<strong>de</strong>s.<br />

As transmissões, todavia, só seriam regulamentadas pelo governo<br />

fe<strong>de</strong>ral em 1931, quando o rádio passou a ser consi<strong>de</strong>rado <strong>um</strong> serviço <strong>de</strong><br />

interesse nacional e <strong>de</strong> finalida<strong>de</strong> educativa. Tudo isso sem <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> primar<br />

1 Jornalista, Mestra em Comunicação pela UFPE, Professora do curso <strong>de</strong> Jornalismo<br />

da Universida<strong>de</strong> Católica <strong>de</strong> Pernambuco e coor<strong>de</strong>nadora da Política <strong>de</strong><br />

Comunicação do Centro das Mulheres do Cabo.<br />

2 O po<strong>de</strong>rio do rádio só viria a ser abalado com o surgimento da televisão, nos anos<br />

1960.<br />

5


pela sua viabilida<strong>de</strong> econômica, que viria a se consolidar com o Decreto nº<br />

21.111, <strong>de</strong> 1.° <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1932, que regulamenta a radiodifusão<br />

comercial no país e permite a veiculação <strong>de</strong> propagandas.<br />

As mulheres tiveram gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>staque como “cantoras do rádio”<br />

nesse período. As maiores expoentes foram Carmen Miranda, Silvinha<br />

Mello, Dalva <strong>de</strong> Oliveira, Araci <strong>de</strong> Almeida, Hebe Camargo, Emilinha Borba e<br />

as clássicas Bidu Saião e Cristina Maristany. A inserção <strong>de</strong>las limitava-se às<br />

novelas e aos musicais. O gran<strong>de</strong> sucesso das cantoras contrastava com a<br />

fraca presença das mulheres na operacionalização, na locução e em cargos<br />

<strong>de</strong> chefia das emissoras. A crescente utilização comercial do veículo nos<br />

anos seguintes, o repasse <strong>de</strong> concessões a grupos empresas e políticos<br />

aliados aos governos <strong>de</strong> plantão e os custos operacionais também<br />

restringiram a presença feminina na produção <strong>de</strong> programas até o fim dos<br />

anos 1970.<br />

Foi quando a Rádio Nacional <strong>de</strong> Brasília colocou no ar diariamente,<br />

das 9 às 12 horas, o programa Viva Maria, <strong>um</strong> dos primeiros a mobilizar as<br />

ouvintes contra a violência doméstica e para a <strong>de</strong>fesa da qualida<strong>de</strong> no<br />

atendimento à saú<strong>de</strong> sexual e reprodutiva das mulheres pelas unida<strong>de</strong>s<br />

públicas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.<br />

O Viva Maria apostava na interação com o público, que comemorava<br />

o Dia Internacional da Mulher (8 <strong>de</strong> março) em transmissões realizadas da<br />

rodoviária ou da Praça do Povo, em Brasília. O programa saiu do ar em<br />

1991, em <strong>um</strong>a reforma na gra<strong>de</strong> <strong>de</strong> programação da emissora. Sua<br />

extinção provocou protestos do movimento feminista, que encaminhou <strong>um</strong>a<br />

carta com cinco mil assinaturas à Presidência da República.<br />

O Viva Maria inaugurou o rádio-coragem em<br />

Brasília, embora em alguns momentos sua<br />

apresentadora (a jornalista Mara Régia) estivesse<br />

acuada e medrosa diante das ameaças <strong>de</strong> morte!<br />

[...] Estimuladas pela força do programa, elas (as<br />

mulheres) ganhavam as ruas, batendo panelas<br />

contra a violência que se abatia contra as<br />

mulheres da capital. Listas e mais listas <strong>de</strong><br />

assinaturas eram o endosso para os abaixoassinados<br />

à Secretaria <strong>de</strong> Segurança pedindo <strong>um</strong>a<br />

<strong>de</strong>legacia só para as mulheres (CEMINA, 1998,<br />

p.16).<br />

6


A experiência do programa inspirou <strong>um</strong>a nova revolução na<br />

comunicação radiofônica do movimento feminista, que começou a tomar<br />

forma quando estratégias nacionais <strong>de</strong> acesso do discurso das mulheres<br />

organizadas à mídia obtiveram inegável impacto social. Duas articulações<br />

elevaram o status do sujeito político feminista ao <strong>de</strong> formador <strong>de</strong> opinião: a<br />

Re<strong>de</strong> Nacional Feminista <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos<br />

(Re<strong>de</strong> Feminista <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>) e a Re<strong>de</strong> <strong>de</strong> Mulheres no Rádio 3 .<br />

A Re<strong>de</strong> Feminista <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> fomentou, nos últimos 20 anos,<br />

discussões públicas acerca <strong>de</strong> questões centrais da agenda do movimento,<br />

<strong>de</strong>marcando sua posição diante <strong>de</strong> temas polêmicos, como o aborto e a<br />

lesbianida<strong>de</strong>. Foi pioneira articulação ao promover <strong>de</strong>bates entre feministas<br />

e jornalistas, ao realizar, entre 1997 e 1999, seminários regionais que, além<br />

<strong>de</strong> diagnosticar ruídos na comunicação entre ativistas e jornalistas,<br />

forneceram subsídios tanto para melhorar a cobertura dos veículos, quanto<br />

para qualificar as militantes para falar no rádio e na televisão. Os encontros<br />

resultaram na publicação do livro “Mulher e mídia, <strong>um</strong>a pauta <strong>de</strong>sigual?”,<br />

em 1997.<br />

É notório que o movimento, ao longo das últimas três décadas, vem<br />

se apropriando dos mecanismos da al<strong>de</strong>ia global (Macluhan, 1960), sabendo<br />

ainda que a incorporação <strong>de</strong> seu projeto político em instâncias da esfera<br />

pública está intimamente relacionada com sua capacida<strong>de</strong> dialogar com os<br />

meios massivos e comunitários, como colaboram Medrado e Lira:<br />

Autores como Thompson, Spink e Guid<strong>de</strong>ns enten<strong>de</strong>m<br />

que, atualmente, a imprensa tem <strong>um</strong> papel fundamental<br />

na análise das relações sociais dinâmicas do mundo<br />

mo<strong>de</strong>rno. Para eles, a mídia aponta para <strong>um</strong> novo olhar<br />

do que se consi<strong>de</strong>ra “o público e o privado”, enten<strong>de</strong>ndo<br />

a ética como <strong>um</strong>a nova instância <strong>de</strong> regulação social<br />

(MEDRADO e LIRA, 1999, p.21).<br />

Para as mulheres, que enfrentam dilemas oriundos da relação<br />

entre as esferas privada e o pública, anunciar suas idéias e opiniões,<br />

exercendo sua li<strong>de</strong>rança na socieda<strong>de</strong>, ainda é <strong>um</strong> gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>safio. No<br />

3 Após encontro realizado no primeiro semestre <strong>de</strong> 2007, cerca <strong>de</strong> 30 organizações<br />

<strong>de</strong> mulheres comunicadoras e feministas <strong>de</strong>cidiram que a, até então, Re<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Mulheres no Rádio passaria a se <strong>de</strong>nominar Re<strong>de</strong> <strong>de</strong> Mulheres em Comunicação.<br />

Até 2007, a então Re<strong>de</strong> <strong>de</strong> Mulheres no rádio congregava comunicadoras <strong>de</strong> 10<br />

estados brasileiros.<br />

7


entanto, é cada vez maior a participação <strong>de</strong>las no po<strong>de</strong>r. Isso exige, em<br />

contrapartida, maior habilida<strong>de</strong> para difundir o discurso. Ao que parece,<br />

as feministas estão procurando dar maior visibilida<strong>de</strong> à sua militância e<br />

intensa produção teórica. Isso nos leva a concluir que o movimento vem<br />

internalizando alguns aspectos convergentes com o pensamento <strong>de</strong><br />

Fraser:<br />

As esferas públicas não são só arenas para a<br />

formação da opinião discursiva, além disso, elas<br />

são arenas para a formação e o <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s sociais [...]. Participar significa ser<br />

capaz <strong>de</strong> falar “em sua própria voz”, assim,<br />

simultaneamente, construindo e expressando a<br />

própria i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural através do idioma e do<br />

estilo (apud MORERAS, 2000,p.89).<br />

E também vem compreen<strong>de</strong>ndo as potencialida<strong>de</strong>s que os meios<br />

<strong>de</strong> comunicação po<strong>de</strong>m oferecer para a afirmação das suas teses na<br />

socieda<strong>de</strong>:<br />

Los medios <strong>de</strong> comunicación contribuyen a <strong>de</strong>finir<br />

la importancia <strong>de</strong> los temas sociales y políticos<br />

cruciales <strong>de</strong>l momento, a po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> relieve los<br />

problemas sociales y políticos, a centrar la<br />

atención en las expresiones y perspectivas<br />

femeninas. Los medios <strong>de</strong> comunicación pue<strong>de</strong>n<br />

promover los <strong>de</strong>bates sobre el <strong>de</strong>sarrollo y los<br />

<strong>de</strong>rechos h<strong>um</strong>anos incluyendo (o no) los <strong>de</strong>rechos<br />

<strong>de</strong> las mujeres y la posición <strong>de</strong> las mujeres en la<br />

sociedad (MOHAMMADI, apud PORTUGAL e<br />

TORRES, 1996,p.21).<br />

A Re<strong>de</strong> <strong>de</strong> Mulheres no Rádio<br />

Outra ação voltada ao incremento da participação das mulheres na<br />

imprensa, a partir dos anos <strong>de</strong> 1990, foi a criação da Re<strong>de</strong> <strong>de</strong> Mulheres no<br />

Rádio. Sua tessitura foi consolidada, até o ano <strong>de</strong> 2007, por meio da Re<strong>de</strong><br />

Cyberela, <strong>um</strong> projeto da ONG Centro <strong>de</strong> Projetos da Mulher (Cemina) 4 , que<br />

4 ONG feminista do Rio <strong>de</strong> Janeiro que atua no campo da comunicação <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1990.<br />

8


investiu na inclusão digital feminina 5 , na veiculação <strong>de</strong> programas <strong>de</strong> rádio<br />

via internet e na participação das mulheres nas TICs (Tecnologias <strong>de</strong><br />

Informação e Comunicação), <strong>um</strong> conceito que, <strong>de</strong> acordo com o Cemina 6 :<br />

Abrange as inovações tecnológicas e a convergência <strong>de</strong><br />

informação e comunicação que têm transformado a<br />

socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> informação e conhecimento, ao esten<strong>de</strong>r<br />

os alcances das re<strong>de</strong>s a muitas partes do mundo. Estes<br />

meios, ao utilizar as telecomunicações e a tecnologia<br />

informática (microeletrônica, hardware e software,<br />

optieletrônica - microprocessadores, semicondutores,<br />

fibra óptica do conjunto <strong>de</strong> tecnologias e instr<strong>um</strong>entos<br />

utilizados para comunicar e distribuir informação),<br />

potencializam a comunicação e difusão <strong>de</strong> informação,<br />

através <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> comunicação (CEMINA, 2002).<br />

A paixão que as integrantes da Re<strong>de</strong> tinham pelo rádio 7 e seu acesso<br />

às TICs possibilitou o exercício da fala pública na mídia para centenas <strong>de</strong><br />

mulheres, n<strong>um</strong>a troca <strong>de</strong> relatos e histórias <strong>de</strong> vida que vêm mobilizando<br />

radialistas para ações políticas e campanhas em prol da cidadania feminina<br />

em todo o país 8 . As ações vinham sendo <strong>de</strong>senvolvidas em sintonia com a<br />

AMARC-WIN (Women’s International Network of Amarc 9 , a Re<strong>de</strong><br />

5 Uma pesquisa da Fundação Perseu Abramo (2001) sobre o afastamento das<br />

mulheres dos processos tecnológicos revela que 30% das entrevistadas nem sequer<br />

sabiam o que era a internet, 73% nunca haviam trabalhado com computador e<br />

86% não tinham acesso à internet.<br />

6 Disponível em: http://amora.rits.org.br/cemina/html/subcapII1.html. Acesso em:<br />

19 mar. 2005.<br />

7 Hoje, cerca <strong>de</strong> três bilhões <strong>de</strong> aparelhos funcionam no mundo. E, <strong>de</strong> todas as<br />

tecnologias da informação e da comunicação, o rádio continua sendo a mais<br />

difundida e a mais barata (disponível em: www.swissimfo.com.br. Acesso em: 2<br />

<strong>de</strong>z. 2003.<br />

8 Disponível em: www.radiofalamulher.org.br.<br />

9 A WIN representa <strong>um</strong>a larga assembléia <strong>de</strong> mulheres comunicadoras, que<br />

trabalham para assegurar os direitos das mulheres à comunicação com o<br />

movimento <strong>de</strong> rádios comunitárias. Os princípios básicos da WIN, subscrevendo os<br />

princípios da Plataforma <strong>de</strong> Ação <strong>de</strong> Pequim, procuram promover:<br />

• o direito <strong>de</strong> a mulher comunicar como <strong>um</strong> direito básico expresso pela rádio<br />

comunitária;<br />

• o empo<strong>de</strong>ramento das mulheres, a igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> gênero e a melhoria das<br />

condições e posições das mulheres em todo o mundo;<br />

• o acesso das mulheres a todos os níveis da rádio comunitária, incluindo a<br />

tomada <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões;<br />

• a expressão das próprias mulheres nas suas comunida<strong>de</strong>s, por meio <strong>de</strong><br />

programas <strong>de</strong> capacitação e da troca <strong>de</strong> produções em nível local e<br />

internacional;<br />

• a alteração das imagens negativas <strong>de</strong> estereótipos <strong>de</strong> homens e mulheres<br />

nos meios <strong>de</strong> comunicação, reproduzidos por todo o mundo.<br />

9


Internacional <strong>de</strong> Mulheres da Amarc 10 ), que promove a comunicação como<br />

direito universal do ser h<strong>um</strong>ano e o acesso das mulheres aos meios<br />

massivos.<br />

Dessa forma, enten<strong>de</strong>mos que as iniciativas têm sintonia com o<br />

pensamento <strong>de</strong> Martín-Barbero, ao resgatar a importância do veículo:<br />

O rádio fala basicamente seu idioma – a oralida<strong>de</strong> não<br />

é mera ressaca do analfabetismo, nem o sentimento é<br />

subproduto da vida para os pobres – e po<strong>de</strong> assim<br />

servir <strong>de</strong> ponte entre a racionalida<strong>de</strong> expressivosimbólica<br />

e informativo-instr<strong>um</strong>ental, po<strong>de</strong> ser e é algo<br />

além <strong>de</strong> mero espaço <strong>de</strong> sublimação: aquele meio que,<br />

para as classes populares, “está preenchendo o vazio<br />

<strong>de</strong>ixado pelos aparelhos tradicionais na construção <strong>de</strong><br />

sentido” (MARTÍN-BARBERO,1997,p.315).<br />

Dessa forma, as táticas do movimento resgatam o rádio como aliado<br />

na divulgação do feminismo para as populações mais <strong>de</strong>sinformadas,<br />

atingindo, principalmente, as mulheres que moram em áreas rurais e<br />

regiões ribeirinhas. Nota-se <strong>um</strong>a tentativa <strong>de</strong> apropriação cidadã do veículo,<br />

contrariando o curso da ampliação do po<strong>de</strong>rio da indústria cultural no Brasil,<br />

<strong>um</strong>a vez que a relação cada vez mais <strong>de</strong>svirtuada entre Estado e<br />

conglomerados <strong>de</strong> mídia originou a formação dos monopólios no país e no<br />

mundo 11 e a prepon<strong>de</strong>rância <strong>de</strong> interesses privados no uso <strong>de</strong> bens que<br />

<strong>de</strong>veriam ser públicos.<br />

A concentração da mídia contraria, ainda, a Constituição Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong><br />

1988, que, no artigo 220, parágrafo 5º, enuncia: “Os meios <strong>de</strong> comunicação<br />

social não po<strong>de</strong>m, direta ou indiretamente, ser objeto <strong>de</strong> monopólio ou<br />

oligopólio”. Um exemplo do <strong>de</strong>sc<strong>um</strong>primento da Carta Magna é a<br />

proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> canais <strong>de</strong> TV, emissoras <strong>de</strong> rádio e jornais por grupos<br />

10<br />

A Associação Mundial <strong>de</strong> Rádios Comunitárias (Amarc) é <strong>um</strong>a entida<strong>de</strong><br />

internacional que serve o movimento <strong>de</strong> rádios comunitárias, com cerca <strong>de</strong> 3.000<br />

membros <strong>de</strong> 106 países. Com se<strong>de</strong> em Montreal, Canadá, está presente em todos<br />

os continentes, organizando ativida<strong>de</strong>s globais e regionais. O seu objetivo é<br />

contribuir para o <strong>de</strong>senvolvimento das rádios comunitárias e participativas, <strong>de</strong><br />

acordo com os princípios <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> e cooperação internacional (CEMINA,<br />

2002).<br />

11 Dados da Folha <strong>de</strong> São Paulo <strong>de</strong> 27 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2003, p. A2, constatam: “Há 20<br />

anos, 50 corporações dominavam o mercado da mídia nos EUA. Eram 23 no início<br />

da década passada. Hoje são cinco”.<br />

10


familiares 12 que dominam os meios <strong>de</strong> comunicação no Brasil. Dessa forma,<br />

os discursos da elite empresarial e política são prepon<strong>de</strong>rantes nesses<br />

meios, que também não refletem a pluralida<strong>de</strong> das vozes da socieda<strong>de</strong>,<br />

nem a diversida<strong>de</strong> cultural existente no país.<br />

Indo <strong>de</strong> encontro a essa lógica, as associadas à Re<strong>de</strong> <strong>de</strong> Mulheres no<br />

Rádio facilitavam o acesso do público feminino aos programas. A população<br />

podia, inclusive, produzir suas notícias, divulgá-las no ar e na internet. Para<br />

o Cemina 13 , o formato do rádio 14 facilita a inserção das mulheres, <strong>um</strong>a vez<br />

que une oralida<strong>de</strong> com tecnologia e abre possibilida<strong>de</strong>s para, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo<br />

do uso, <strong>de</strong>mocratizar a transmissão e facilitar a interlocução e a recepção,<br />

por conta da troca <strong>de</strong> informações através das ondas eletromagnéticas.<br />

O rádio é <strong>um</strong> meio particularmente a<strong>de</strong>quado para tal,<br />

na medida em que utiliza <strong>um</strong>a tecnologia <strong>de</strong> baixos<br />

custos <strong>de</strong> produção e distribuição. Como é <strong>um</strong> meio<br />

auditivo, não exclui os que não sabem ler nem<br />

escrever, sendo transmitido freqüentemente nas<br />

línguas locais da comunida<strong>de</strong>. Por essas razões, o rádio<br />

tem penetrado no mundo, mesmo nas áreas mais<br />

remotas e continua a ser o veículo <strong>de</strong> maior audiência<br />

no Brasil (CEMINA, 2002).<br />

A Voz Feminina Ecoando na Mata Sul<br />

Veículo <strong>de</strong> comunicação imediato, o rádio se apresentava como i<strong>de</strong>al<br />

para o estabelecimento <strong>de</strong> <strong>um</strong>a comunicação direta e <strong>de</strong>mocrática entre o<br />

movimento feminista e a população da Zona da Mata Sul 15 <strong>de</strong> Pernambuco 16<br />

12 Nos anos 1990, cerca <strong>de</strong> nove grupos <strong>de</strong> empresas familiares controlavam a<br />

gran<strong>de</strong> mídia nacional no Brasil. As famílias eram Abravanel (SBT), Bloch<br />

(Manchete), Civita (Editora Abril), Frias (Folha <strong>de</strong> S.Paulo), Levy (Gazeta<br />

Mercantil), Marinho (Organizações Globo), Mesquita (O Estado <strong>de</strong> S.Paulo),<br />

Nascimento Brito (Jornal do Brasil) e Saad (Re<strong>de</strong> Ban<strong>de</strong>irantes). Hoje esse número<br />

está reduzido a cinco. As famílias Bloch, Levy, Nascimento Brito e Mesquita já não<br />

exercem mais o controle sobre seus antigos veículos.<br />

13 Disponível em: http://amora.rits.org.br/cemina/html/subcapII6.html. Acesso em:<br />

19 mar. 2005.<br />

14 Uma pesquisa da revista "Meio e Mensagem" n. 46, <strong>de</strong> 13/04/98, estimou que,<br />

naquela época, funcionavam perto <strong>de</strong> 2.500 emissoras no Brasil, sendo 75% <strong>de</strong>las<br />

em FM e as <strong>de</strong>mais em AM.<br />

15 Região atravessada por conflitos <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m social, cultural, política e econômica,<br />

tais como a crise da cultura canavieira e a imposição histórica do patriarcado como<br />

11


nos anos 1990. Uma mídia <strong>de</strong> fácil acesso e com po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> penetração em<br />

todas as instâncias sociais. Além disso, a mobilida<strong>de</strong> e a interativida<strong>de</strong> do<br />

rádio permitiam que as mulheres acompanhassem a programação sem<br />

<strong>de</strong>ixar suas ativida<strong>de</strong>s diárias, quer no espaço doméstico, quer no local <strong>de</strong><br />

trabalho.<br />

Com base nesses dados, os grupos femininos <strong>de</strong> Água Preta,<br />

Joaquim Nabuco, Caten<strong>de</strong> e Palmares e o Centro das Mulheres do Cabo 17<br />

realizaram, entre 1995 e 1997, cinco oficinas, envolvendo 60 mulheres dos<br />

municípios. Os encontros <strong>de</strong>ram origem a <strong>um</strong> plano <strong>de</strong> comunicação com<br />

foco no rádio. O objetivo era estimular a troca <strong>de</strong> informações entre as<br />

mulheres e a divulgação dos seus direitos para a população. O projeto foi<br />

apresentado à Fundação MacArthur 18 , que aprovou a iniciativa e, em março<br />

<strong>de</strong> 1997, ia ao ar, pela primeira vez, o Rádio Mulher: o programa<br />

radiofônico do Centro das Mulheres do Cabo, com linha <strong>editorial</strong> feminista,<br />

produzido em parceria com os grupos <strong>de</strong> mulheres da região.<br />

Veiculado inicialmente pela Rádio Cultura dos Palmares (AM), aos<br />

sábados, o programa nasceu para difundir informações qualificadas sobre<br />

saú<strong>de</strong>, direitos reprodutivos e cidadania feminina. Produção, parte técnica,<br />

apresentação, locução, direção... Tudo no Rádio Mulher é realizado por<br />

mulheres. Essa especificida<strong>de</strong> levou o programa a integrar a Re<strong>de</strong> Brasileira<br />

<strong>de</strong> Mulheres no Rádio, em 1999.<br />

A partir daquele ano, o Rádio Mulher passa a ser exibido ao vivo. De<br />

acordo com os relatórios técnicos do projeto, a mudança possibilitou maior<br />

empatia com o público, que se manifestou enviando cartas e recados para a<br />

produção. Antes <strong>de</strong> implementar o formato, o Centro das Mulheres do Cabo<br />

promoveu <strong>um</strong>a série <strong>de</strong> oficinas <strong>de</strong> qualificação técnica e linguagem<br />

forma <strong>de</strong> organização que agudiza a subordinação das mulheres, a Zona Mata Sul é<br />

<strong>um</strong> campo <strong>de</strong> batalha on<strong>de</strong> diversos sujeitos coletivos disputam a hegemonia. Entre<br />

eles, as mulheres organizadas, que surgem, a partir dos anos 1990, como <strong>um</strong>a<br />

força capaz <strong>de</strong> provocar rachaduras na sólida construção do machismo e do<br />

patriarcado.<br />

16 De acordo com o Instituto Brasileiro <strong>de</strong> Geografia e Estatística (IBGE/1995),<br />

quase 60% das mulheres da Mata Sul eram analfabetas.<br />

17 ONG feminista fundada em 1984, situada no Cabo <strong>de</strong> Santo Agostinho, e cuja<br />

missão é: “construir a eqüida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gênero e afirmar os direitos <strong>de</strong> cidadania das<br />

mulheres”.<br />

18 Agência <strong>de</strong> cooperação internacional com se<strong>de</strong> em Chicago, nos EUA.<br />

12


adiofônica com representantes das organizações locais <strong>de</strong> mulheres. Além<br />

<strong>de</strong> fontes, elas passaram a ser realizadoras do programa.<br />

A participação das mulheres no rádio era cada vez mais intensa no<br />

início dos anos 2000 e <strong>um</strong> salto maior foi dado em março <strong>de</strong> 2001, quando<br />

o Rádio Mulher estreou, por meio dos 100,9 MHz da rádio comercial<br />

Quilombo FM, <strong>de</strong> Palmares. Com <strong>um</strong>a hora <strong>de</strong> duração e três exibições<br />

semanais, o programa, no seu primeiro ano <strong>de</strong> exibição em novo formato,<br />

foi consi<strong>de</strong>rado <strong>um</strong> “fenômeno <strong>de</strong> público 19 ”.<br />

Hoje, o Rádio Mulher 20 vai ao ar <strong>de</strong> segunda a sexta-feira, das 11h<br />

ao meio-dia, e li<strong>de</strong>ra a audiência da emissora no horário da manhã,<br />

atingindo 200 mil ouvintes <strong>de</strong> 53 municípios da Zona da Mata Sul <strong>de</strong><br />

Pernambuco e do estado <strong>de</strong> Alagoas.<br />

O programa dispõe <strong>de</strong> <strong>um</strong> conselho, composto por oito<br />

representantes <strong>de</strong> organizações <strong>de</strong> mulheres <strong>de</strong> Palmares, Joaquim Nabuco,<br />

Água Preta e Caten<strong>de</strong>. Elas são as vozes e os ouvidos do público: analisam<br />

os conteúdos veiculados, a linguagem. Além disso, discutem o formato <strong>de</strong><br />

cada edição e coletam sugestões em suas comunida<strong>de</strong>s.<br />

O Rádio Mulher conta, ainda, com o suporte técnico <strong>de</strong> <strong>um</strong>a jornalista<br />

do Centro das Mulheres do Cabo, está inserido entre as linhas do programa<br />

<strong>de</strong> direitos reprodutivos e direitos sexuais da ONG e é apoiado pela<br />

Fundação Ford 21 e pela agência <strong>de</strong> cooperação européia Intermón.<br />

Além <strong>de</strong> informar a população sobre os cuidados com a saú<strong>de</strong>, ele<br />

convoca a audiência para o exercício do controle social das políticas<br />

públicas. São recorrentes, na sua linha <strong>editorial</strong>, assuntos como participação<br />

19 De acordo com <strong>um</strong>a pesquisa quantitativa realizada pelo instituto Promarketing,<br />

em 2002, a Rádio Quilombo FM foi apontada mais ouvida por 49,92% dos (as)<br />

entrevistados, seguida pela Cultura AM, com 31,3% da preferência. Na pergunta<br />

aberta, o Rádio Mulher figura como o terceiro programa mais ouvido entre 8h e<br />

22h. Mais <strong>de</strong> 55% dos (as) entrevistados (as) dos quatro municípios admitiram<br />

ouvi-lo. O levantamento mostra, ainda, que 64,58% das mulheres ouvidas<br />

afirmaram que <strong>um</strong>a informação divulgada pelo programa havia sido importante<br />

para sua vida. Entre os homens, 38,52% reconheceram a importância das notícias<br />

apresentadas pelo Rádio Mulher.<br />

20 Des<strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 2005, <strong>um</strong>a versão do Rádio Mulher, produzida por <strong>um</strong>a jovem<br />

radialista e <strong>um</strong>a jornalista do Centro das Mulheres, está indo ao ar <strong>de</strong> segunda a<br />

sexta, no Cabo <strong>de</strong> Santo Agostinho, das 8h às 9h da manhã, pela emissora<br />

comunitária Calheta FM (105,9).<br />

21 Fundação americana vinculada ao grupo <strong>de</strong> empresas Ford, que financia projetos<br />

sociais <strong>de</strong> ONGs da América Latina.<br />

13


política feminina, cidadania, direitos reprodutivos e direitos sexuais e o<br />

enfrentamento da violência doméstica e sexual. Dessa forma, o programa<br />

vem refletindo as tramas sociais que permeiam o acesso das mulheres ao<br />

po<strong>de</strong>r, difundindo suas conquistas e os princípios feministas pelas ondas<br />

sonoras. É <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ssa caixa <strong>de</strong> ressonância das <strong>lutas</strong> femininas e <strong>de</strong><br />

mediação social que falam as lí<strong>de</strong>res <strong>de</strong> <strong>um</strong> movimento que vem<br />

incentivando as mulheres a ocupar seu lugar no mundo público. Trata-se <strong>de</strong><br />

<strong>um</strong>a estratégia para romper com o estigma <strong>de</strong> que o ambiente doméstico<br />

<strong>de</strong>ve ser o único espaço <strong>de</strong> expressão <strong>de</strong>las.<br />

Os exemplos indicam que, tanto as reflexões teóricas quanto as<br />

discussões políticas sobre o papel social do rádio têm ganhado cada vez<br />

mais a<strong>de</strong>ptas e maior espaço <strong>de</strong>ntro do movimento <strong>de</strong> mulheres na Mata<br />

Sul. Notamos que o Rádio Mulher, junto com outras estratégias <strong>de</strong><br />

ocupação <strong>de</strong> espaços públicos, reflete o posicionamento crítico do<br />

movimento. Mais do que a<strong>de</strong>quar as ativistas às engrenagens da indústria<br />

cultural, o feminismo parece querer conquistar o rádio para, também por<br />

meio <strong>de</strong>le, “inscrever as mulheres na história” (SCOTT, 1995, p.73).<br />

Nem a invisibilida<strong>de</strong> na esfera privada, nem a superexposição dos<br />

holofotes da imprensa na esfera pública. Ao enten<strong>de</strong>r a importância da<br />

qualificação para esse diálogo com a socieda<strong>de</strong>, mediado também pelos<br />

meios <strong>de</strong> comunicação, as ativistas apostam na conquista <strong>de</strong> novos (as)<br />

aliados (as) para seu projeto político para imprimir mudanças nas relações<br />

sociais e a <strong>de</strong>mocratizar a vida cotidiana.<br />

Ao compreen<strong>de</strong>r que qualquer transformação cultural em curso no<br />

Brasil precisa consi<strong>de</strong>rar os veículos <strong>de</strong> comunicação, o movimento<br />

apresenta as mulheres organizadas como sujeitos políticos com habilida<strong>de</strong><br />

para imprimir seu discurso na socieda<strong>de</strong>, lançando o olhar feminista para a<br />

mídia como “lócus privilegiado da ação política” (JORDÃO in LIBARDONI e<br />

LIBARDONI,1999, p.119).<br />

14


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15


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1995.<br />

17


PARA UMA CRÍTICA MARXISTA AO DIREITO E A PÓS-MODERNIDADE<br />

ENQUANTO DISCURSOS DE JUSTIFICAÇÃO<br />

Enoque Feitosa 22<br />

S<strong>um</strong>ário: Introdução: O contexto do fim das certezas, a pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong><br />

e a negação da racionalida<strong>de</strong> do âmbito jurídico; 1. Pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e sua<br />

fundamentação teórica; 2. Pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> como forma <strong>de</strong> legitimação<br />

político-i<strong>de</strong>ológica; 3. Direito como racionalida<strong>de</strong> constituída e como<br />

expressão da alienação h<strong>um</strong>ana; 4. Conclusão: Direito e pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong><br />

enquanto i<strong>de</strong>ologias; 5. Referências.<br />

INTRODUÇÃO: O CONTEXTO DO FIM DAS CERTEZAS, A PÓS-<br />

MODERNIDADE E A NEGAÇÃO DA RACIONALIDADE DO ÂMBITO<br />

JURÍDICO<br />

Este artigo preten<strong>de</strong> colocar em discussão alguns elementos acerca<br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong>a temática que tem sido fruto tanto <strong>de</strong> perplexida<strong>de</strong>s quanto <strong>de</strong><br />

incompreensões para consi<strong>de</strong>rável daqueles que acompanham o <strong>de</strong>bate <strong>de</strong><br />

<strong>um</strong>a questão teórica relevante nos últimos tempos: a introdução, na<br />

discussão científica do e sobre o direito, <strong>de</strong> <strong>um</strong> conceito sociológico e<br />

histórico, a pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, e o exame da hipótese <strong>de</strong> que tenha havido,<br />

nas relações <strong>de</strong> produção ora vigentes no mundo oci<strong>de</strong>ntal, on<strong>de</strong> ele é<br />

citado à exaustão, modificações substanciais que legitimem a existência <strong>de</strong><br />

tal categoria 23 .<br />

A questão é que, no âmbito jurídico, ela serve <strong>de</strong> respaldo,<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte das intenções <strong>de</strong> seus formuladores e a<strong>de</strong>ptos, a idéia <strong>de</strong> que<br />

aplicação e interpretação do direito são ativida<strong>de</strong>s irracionais e não atos <strong>de</strong><br />

po<strong>de</strong>r voltado a <strong>de</strong>terminadas formas <strong>de</strong> racionalida<strong>de</strong>.<br />

22 Mestre e Doutor em Direito; Doutorando em Filosofia; Professor Efetivo da UFPB. O presente artigo<br />

correspon<strong>de</strong> a <strong>um</strong>a adaptação <strong>de</strong> trechos da tese doutoral do autor.<br />

23 Um estudioso atento <strong>de</strong> Habermas lembra que “nem mesmo o <strong>de</strong>senvolvimento das forças produtivas,<br />

especialmente na automação, cerne da chamada segunda revolução industrial, constitui razão suficiente<br />

para se falar <strong>de</strong> <strong>um</strong> sistema econômico pós-capitalista”. Ver: BORGES, Bento Itamar. Crítica e teorias<br />

da crise. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005, p. 258.<br />

18


Assim, e para <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já colocar as cartas na mesa quanto a <strong>um</strong> dos<br />

objetivos aqui pretendidos, pensa-se que só faria sentido falar em tal época<br />

se e na medida em que os suportes materiais e superestruturais do modo<br />

<strong>de</strong> vida vigente fossem dados como superados - o que não parece o caso, e<br />

é esse foco será <strong>um</strong>a das estratégias <strong>de</strong> abordagem.<br />

Assim, busca-se mostrar que <strong>um</strong>a das principais características do<br />

mundo mo<strong>de</strong>rno (a divisão do trabalho e sua apropriação privada) segue<br />

predominando, ainda que as formas jurídicas pelas qual o mo<strong>de</strong>lo se realiza<br />

– notadamente nas imensas transformações no mundo do trabalho –<br />

tenham mudado seu modo <strong>de</strong> expressão no âmbito das relações <strong>de</strong> trabalho<br />

pelo que o conceito com o qual se polemizará ao longo do presente texto,<br />

possa ter, em tal âmbito, <strong>um</strong>a aplicação restrita 24 .<br />

E, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já, se quer chamar atenção que a forma como o mo<strong>de</strong>lo se<br />

apresenta - dotado <strong>de</strong> universalida<strong>de</strong> - torna-o, ilusório, invertido, ou seja,<br />

funciona como construto i<strong>de</strong>ológico.<br />

Tal situação contribuiu objetivamente – mesmo não sendo o<br />

propósito discutir a intencionalida<strong>de</strong> – na difusão <strong>de</strong> <strong>um</strong> paradigma que<br />

funciona como reforço da intensificação da alienação do indivíduo não<br />

apenas dos frutos <strong>de</strong> seu trabalho, mas – e este é <strong>um</strong>a das novida<strong>de</strong>s do<br />

fenômeno - na sua moldagem i<strong>de</strong>ológica pelas estruturas simbólicas do<br />

po<strong>de</strong>r.<br />

Tais estruturas - tanto as mediatas como as imediatas - em nome da<br />

instauração <strong>de</strong> <strong>um</strong>a socieda<strong>de</strong> global solapa as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s nacionais<br />

visando <strong>de</strong>cretar, antecipadamente, a falta <strong>de</strong> sentido em resistir a direção<br />

<strong>de</strong> que são dotadas as mudanças nas relações <strong>de</strong> trabalho, pelo que se<br />

inscreve tal discurso muito mais como i<strong>de</strong>ologia do que como nova forma <strong>de</strong><br />

organização da sociabilida<strong>de</strong> h<strong>um</strong>ana.<br />

É da reflexão sobre essas problemáticas que se entrecruzam, ou seja, a<br />

vigência em sentido amplo <strong>de</strong> <strong>um</strong>a era pós-mo<strong>de</strong>rna, seu rebatimento nas<br />

novas formas <strong>de</strong> relações <strong>de</strong> trabalho e o reflexo n<strong>um</strong>a completa<br />

irracionalida<strong>de</strong> sobre questões essenciais como verda<strong>de</strong>, justiça, direito<br />

24 Assim, parece pertinente interpretar como <strong>um</strong>a tese que se apropria - no sentido restrito que frisamos<br />

supra - <strong>de</strong> certa releitura do conceito problemático <strong>de</strong> pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, a idéia pela qual “a socieda<strong>de</strong><br />

pós-mo<strong>de</strong>rna atua baseada em valores distintos daqueles estabelecidos na era mo<strong>de</strong>rna”. ANDRADE,<br />

Everaldo Gaspar. Direito do trabalho e pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>: fundamentos para <strong>um</strong>a teoria geral. São<br />

Paulo: LTr, 2005, p. 20.<br />

19


etc., que se trata doravante, visto sua repercussão na compreensão não<br />

apenas do papel que c<strong>um</strong>pre no âmbito do direito que, em tal conformação,<br />

fica dispensado <strong>de</strong> qualquer racionalida<strong>de</strong>, mas também da ativida<strong>de</strong><br />

transformadora que, sob a rubrica do fim das gran<strong>de</strong>s narrativas, torna-se<br />

algo inteiramente dispensável.<br />

Nessa nova configuração da produção, cujo foco se expressa na<br />

supervalorização do trabalho não-subordinado 25 , a mudança paradigmática<br />

que se apregoa, ao invés <strong>de</strong> libertar o indivíduo colocou no centro da<br />

problemática a mais ampla e completa insegurança quanto ao próprio<br />

mundo burguês, cuja última ilusão centrava-se na figura do sujeito <strong>de</strong><br />

direito, livre para oferecer-se no mercado.<br />

Claro que aqui <strong>de</strong>ve ser distinguido a tese que se vale do conceito <strong>de</strong><br />

pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> no sentido <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r o surgimento <strong>de</strong> novas relações<br />

<strong>de</strong> trabalho, <strong>de</strong> outra posição que enxerga nesse novo padrão não apenas<br />

<strong>um</strong>a nova era, a do fim das certezas, como também <strong>de</strong> qualquer idéia <strong>de</strong><br />

racionalida<strong>de</strong> com o qual na socieda<strong>de</strong> passaria a vigorar <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong><br />

vale-tudo.<br />

Para os que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m o conceito <strong>de</strong> pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> no primeiro<br />

sentido o que muda - como acentuam estudiosos tais como Everaldo Gaspar<br />

e Ricardo Antunes - é a forma <strong>de</strong> organização do trabalho e não o seu modo<br />

alienado <strong>de</strong> manifestação.<br />

Assim, dizer que o fim do trabalho subordinado correspon<strong>de</strong>, hoje, ao<br />

fim do estranhamento, leva a que se tome a causa pelos seus efeitos, nos<br />

mesmos termos da inversão hegeliana, que tomava predicados como<br />

sujeitos.<br />

Claro que se po<strong>de</strong>ria dizer, com a crise da forma jurídica e a completa<br />

<strong>de</strong>sregulamentação do mundo do trabalho o famoso lugar com<strong>um</strong>: “a crise<br />

chegou! Viva a crise!”.<br />

Como não acreditamos em mo<strong>de</strong>los do quanto pior, melhor, o ponto <strong>de</strong><br />

vista que aqui se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> é o <strong>de</strong> que a barbárie não encurta o caminho para<br />

o socialismo.<br />

25 Para <strong>um</strong>a ampla discussão <strong>de</strong> tais modificações ver o amplo estudo supracitado, realizado a título <strong>de</strong><br />

tese <strong>de</strong> doutorado. Ver: ANDRADE, Everaldo Gaspar. Direito do trabalho e pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>:<br />

fundamentos para <strong>um</strong>a teoria geral. São Paulo: LTr, 2005, especialmente páginas 55-77 on<strong>de</strong> se trata<br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong>a teoria em favor da refutabilida<strong>de</strong> do trabalho subordinado.<br />

20


De tais relações e ainda a discussão <strong>de</strong>sses temas, (voltado<br />

principalmente à sua contrapartida, qual seja, o problema da intensificação<br />

da extração <strong>de</strong> mais valia) é que se busca construir o presente artigo, sem<br />

pretensão <strong>de</strong> ter as respostas, mas – ao menos – formulando problemas e,<br />

ao mesmo tempo, tornando a reflexão e a escolha da temática da alienação<br />

relacionada às questões aqui tratadas e pertinentes ao seu objetivo central,<br />

até aqui exposto. 26<br />

Assim, pensa-se que a primeira tarefa que se impõe é procurar tratar <strong>de</strong><br />

como esse i<strong>de</strong>ário se <strong>de</strong>senvolveu após a crise do chamado socialismo real,<br />

ainda que aqui não se trate da proposta <strong>de</strong> realizar <strong>um</strong> trabalho <strong>de</strong> ampla<br />

reconstrução do conceito <strong>de</strong> pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, o que fugiria ao restrito<br />

âmbito <strong>de</strong> nossa preocupação teórica.<br />

1. PÓS-MODERNIDADE E SUA FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA<br />

Em apertada síntese, os termos “pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>” e “pósmo<strong>de</strong>rnismo”,<br />

nem não imunes a problemas <strong>de</strong> polissemia e nem são tão<br />

<strong>recente</strong>s na literatura acadêmica, visto que “pós-mo<strong>de</strong>rno” foi utilizado já<br />

na década <strong>de</strong> 30, em textos usados para <strong>de</strong>screver <strong>um</strong> refluxo conservador<br />

no interior do próprio mo<strong>de</strong>rnismo, muito embora só tenha se tornando<br />

corrente a partir da década <strong>de</strong> 70 do século <strong>passado</strong>.<br />

Isso leva alguns autores a afirmarem que a própria idéia <strong>de</strong><br />

mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, mais elaborada, envolveria <strong>um</strong>a totalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações<br />

econômicas, sociais, culturais e políticas. 27<br />

A questão, portanto, é a seguinte: Haveria <strong>um</strong>a evidência <strong>de</strong><br />

transformações sócio-econômicas, alterações <strong>de</strong> paradigmas, cultura e<br />

valores que justifiquem a aplicação <strong>de</strong> <strong>um</strong> conceito usado em estudos<br />

26 ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 130-134. Em <strong>um</strong> dos<br />

ensaios <strong>de</strong>sta obra – “As formas contemporâneas do estranhamento”, que se <strong>de</strong>sdobra n<strong>um</strong> excurso sobre<br />

a centralida<strong>de</strong> do trabalho, o citado autor examina tais problemas.<br />

27 MAGALHÃES, Fernando. Tempos pós-mo<strong>de</strong>rnos. São Paulo: Cortez, 2004, p. 61-62 e ANDERSON,<br />

Perry. As origens da pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, p. 9-10 e 20. Ver também DINIZ,<br />

Antonio Carlos “Pós-mo<strong>de</strong>rnismo”. In: BARRETTO, Vicente. Dicionário <strong>de</strong> filosofia. São Leopoldo:<br />

Unisinos, 2006, p. 647, que menciona o uso do termo pela primeira vez já na primeira década do século<br />

XX, na Alemanha.<br />

21


culturais 28 para <strong>de</strong>finir <strong>um</strong> novo modo <strong>de</strong> existência dos homens e <strong>um</strong>a<br />

mudança substancial na forma <strong>de</strong> regulação social que se conhece até hoje<br />

(visto que se tornou recorrente falar em direito pós-mo<strong>de</strong>rno)?<br />

Não se estaria vivenciando, e agora também no mundo das idéias,<br />

<strong>um</strong> fenômeno já assente no campo das forças produtivas, qual seja a<br />

intensificação <strong>de</strong> <strong>um</strong> po<strong>de</strong>r imperial, com pretensões <strong>de</strong> hegemonia em<br />

todos os campos e para isso se valendo não só das armas, mas também do<br />

tremendo <strong>de</strong>senvolvimento tecnológico que jamais a h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong> logrou<br />

construir e tentando justificar conceitualmente sua dominação?<br />

Seria interessante consi<strong>de</strong>rar que po<strong>de</strong> ocorrer que novos rótulos<br />

propostos para enquadrar realida<strong>de</strong>s já conhecidas, mas que apresentam<br />

novos aspectos – no caso em tela <strong>um</strong>a nova forma <strong>de</strong> capitalismo - parece<br />

visar mais certo exorcismo nominalista 29 pelo qual se busca rebatizar a<br />

criatura, relegando com isso a compreensão das novas formas com as quais<br />

se ela se organiza e evitando com isso a clarificação das características que,<br />

apesar disso, seguem a<strong>de</strong>ridas ao objeto.<br />

Para alguns teóricos, o termo pós-mo<strong>de</strong>rnismo se <strong>de</strong>stina a dar nome<br />

a <strong>um</strong> modo <strong>de</strong> produção no qual a produção cultural tem <strong>um</strong> lugar funcional<br />

bem <strong>de</strong>limitado e cuja sintomatologia se manifesta aparece principalmente<br />

na cultura. 30<br />

Outros, diferentemente <strong>de</strong> Jameson (já que esse ao compreen<strong>de</strong>r o<br />

pós-mo<strong>de</strong>rnismo enquanto forma <strong>de</strong> organização da produção na qual a<br />

cultura tem lugar específico, acaba por não valorizar as distinções entre<br />

aquele termo e o <strong>de</strong> pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>), tratam pós-mo<strong>de</strong>rnismo como<br />

forma cultural contemporânea e pós-mo<strong>de</strong>rnismo enquanto período<br />

histórico específico 31 , in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> se discutir aqui a valida<strong>de</strong><br />

histórica ou não <strong>de</strong> tal idéia. .<br />

Há <strong>um</strong>a tese que não comparece <strong>de</strong> forma muito explícita nos<br />

teóricos da pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>: a idéia do <strong>de</strong>saparecimento, se não físico,<br />

28 Stuart Hall, por exemplo, caracteriza tal período como mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> tardia e pergunta se o caráter da<br />

transformação não se dá no interior da própria mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Ver: HALL, Stuart. A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural<br />

na pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: DP &A, 2002, p. 9-10, 14-18.<br />

29 BORGES, Bento Itamar. Crítica e teorias da crise. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005, p. 259.<br />

30 JAMESON, Fre<strong>de</strong>ric. Pós-mo<strong>de</strong>rnismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática,<br />

2000, p. 402.<br />

31 EAGLETON, Terry. As ilusões do pós-mo<strong>de</strong>rnismo. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 7.<br />

22


mas seguramente do ponto <strong>de</strong> vista do exercício <strong>de</strong> qualquer papel político<br />

relevante, da classe operária.<br />

Mas não se olvi<strong>de</strong> <strong>de</strong> que há estudos que se colocam n<strong>um</strong>a<br />

perspectiva emancipadora e buscam formular <strong>um</strong>a teoria crítica do direito,<br />

ainda que diagnosticando - corretamente - modificações no perfil e nas<br />

características não apenas do mundo do trabalho, mas na própria natureza<br />

mesma do trabalho e as formas como ele é exercido hoje (muitas vezes<br />

com <strong>um</strong>a extração mais intensa e selvagem da mais-valia) não sancionam<br />

eliminação teorética da cena política daqueles setores historicamente<br />

interessados n<strong>um</strong> projeto <strong>de</strong> emancipação.<br />

Estes estudos têm chamado a atenção para a emergência <strong>de</strong> novos<br />

<strong>protagonistas</strong> que se somam – e não como coadjuvantes – aos novos<br />

projetos <strong>de</strong> superação da alienação da forma como ela se apresenta<br />

contemporaneamente. 32<br />

O que é <strong>de</strong> se registrar, em relação às análises que não <strong>de</strong>marquem<br />

campo com visões conservadoras do processo, é se com a perda, em tal<br />

marco teórico pós-mo<strong>de</strong>rno, <strong>de</strong> qualquer função ativa relevante à classe<br />

operária, e se com as alterações ocorridas no chamado mundo do trabalho<br />

subordinado, também se suprimiria <strong>de</strong> <strong>um</strong> golpe <strong>de</strong> mão a questão da<br />

alienação do trabalho e o estranhamento que <strong>de</strong>riva do lugar dos<br />

trabalhadores no processo produtivo?<br />

Perry An<strong>de</strong>rson, ex-editor da New Left Review, <strong>um</strong> respeitado<br />

estudioso <strong>de</strong>sse problema, fala dos obstáculos teóricos enfrentados na obra<br />

supracitada <strong>de</strong> Jameson, outro dos principais teóricos do tema, para<br />

justificar a valida<strong>de</strong> epistemológica do conceito <strong>de</strong> pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> como<br />

estratégia cultural do capitalismo tardio, para ele, <strong>um</strong>a forma pós-mo<strong>de</strong>rna<br />

<strong>de</strong> falar <strong>de</strong> imperialismo.<br />

Nessa crítica evi<strong>de</strong>ncia-se o que ele mesmo chama <strong>de</strong> “lance lógico”,<br />

ou seja, que o vetor imediato da cultura pós-mo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong>ve ser encontrado<br />

nas camadas <strong>de</strong> profissionais <strong>de</strong> afluência <strong>recente</strong> criadas pelo crescimento<br />

dos setores <strong>de</strong> serviços e especulativo das socieda<strong>de</strong>s capitalistas<br />

<strong>de</strong>senvolvidas.<br />

32 É essa perspectiva comprometida que se evi<strong>de</strong>ncia no texto que nos serve <strong>de</strong> contraponto. Ver:<br />

ANDRADE, Everaldo Gaspar. Direito do trabalho e pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>: fundamentos para <strong>um</strong>a teoria<br />

geral. São Paulo: LTr, 2005, p. 23, on<strong>de</strong> chama atenção para o reafirmar do direito e da justiça como<br />

instr<strong>um</strong>entos <strong>de</strong> busca <strong>de</strong> <strong>um</strong>a socieda<strong>de</strong> universal solidária.<br />

23


Parece que nesse ponto nega-se (ou, na melhor hipótese, subestimase)<br />

como já se assinalou qualquer papel <strong>de</strong> maior monta, no suposto novo<br />

modo <strong>de</strong> organização da economia, à classe operária e aos assalariados dos<br />

setores médios.<br />

Por via <strong>de</strong> conseqüência enten<strong>de</strong>-se que fica interditada a pertinência<br />

em se falar em trabalho subordinado, extração <strong>de</strong> mais–valia e em <strong>um</strong>a <strong>de</strong><br />

suas conseqüências mais importantes, o estranhamento, que po<strong>de</strong> ser<br />

caracterizado como aquela condição na qual o ser h<strong>um</strong>ano, visto como ser<br />

genérico torna-se alienado em relação aos resultados <strong>de</strong> sua própria<br />

ativida<strong>de</strong>. 33<br />

Como aponta com perspicácia <strong>um</strong> dos estudiosos do tema, <strong>um</strong> dos<br />

traços mais relevantes da ambiência cultural dos mo<strong>de</strong>los pós-mo<strong>de</strong>rnos<br />

(além da banalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas formulações), é <strong>um</strong>a concepção claramente<br />

i<strong>de</strong>alista do <strong>um</strong> mundo social, e on<strong>de</strong> fica claro que não se trata <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />

i<strong>de</strong>alismo inocente na medida em que, ao creditar à razão a realida<strong>de</strong><br />

histórica existente, o que se <strong>de</strong>ixa oculto é a or<strong>de</strong>m do capital e sua<br />

dominação <strong>de</strong> classe. 34<br />

Tal visão, não obstante as boas intenções e a honestida<strong>de</strong> intelectual<br />

daqueles que, para fundamentarem a mudança <strong>de</strong> paradigma no mundo do<br />

trabalho, adotam as categorias do mo<strong>de</strong>lo pós-mo<strong>de</strong>rno, tem servido para<br />

legitimar a negação <strong>de</strong> qualquer racionalida<strong>de</strong> ou obrigação <strong>de</strong><br />

fundamentação do direito, o que - apesar do caráter parcial e limitado da<br />

forma jurídica, não faz a vida <strong>de</strong> ninguém melhor se for para não colocar<br />

<strong>um</strong>a nova forma <strong>de</strong> organização social em seu lugar.<br />

As ilusões do pensamento único, do mundo globalizado e unipolar<br />

foram <strong>de</strong>struídas pelas duras lições da história, que, ela mesma, tratou <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>smentir a idéia mistificadora dos apologistas <strong>de</strong>sses “novos velhos<br />

tempos” segundo o qual estava a se realizar o i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> Marx e que a<br />

h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong> chegara - finalmente! - ao seu estágio supremo.<br />

33 RANIERI, Jesus. A câmara escura: alienação e estranhamento em Marx. São Paulo: Boitempo, 2001,<br />

p. 7-11.<br />

34 NETTO, JOSÉ Paulo. Marxismo impenitente: contribuição à história das idéias marxistas. São Paulo:<br />

Cortez, 2004, p. 158.<br />

24


Qualquer leitor sério <strong>de</strong> Marx sabe que ele nunca afirmou isso. Ao<br />

contrário. 35<br />

Trata-se <strong>de</strong> <strong>um</strong> procedimento usado ao limite contra as suas idéias:<br />

<strong>de</strong>formá-las primeiro e <strong>de</strong>pois empreen<strong>de</strong>r a crítica, atacando o monstrengo<br />

criado. Claro que em tal empreendimento as leituras simplórias da teoria <strong>de</strong><br />

Marx prestam <strong>um</strong> imenso <strong>de</strong>sserviço com sua história <strong>de</strong> superficialismos,<br />

<strong>de</strong>sprovidos <strong>de</strong> qualquer exame crítico.<br />

Razão assiste aos que, examinando esse processo não apenas<br />

reconhecem que o termo pós-mo<strong>de</strong>rno é sujeito a <strong>um</strong> amplo leque <strong>de</strong><br />

interpretações como, fundamentalmente, que “a pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> é nada<br />

mais que a forma sócio-política do capitalismo na época <strong>de</strong> sua<br />

globalização” 36 .<br />

Ora se assim o é, faz-se necessário pensar que a pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong><br />

não inaugura nada <strong>de</strong> novo, mas apenas exacerba condições que já lhe<br />

eram características. O que nela havia <strong>de</strong> novo foi a estratégia <strong>de</strong> tentar se<br />

legitimar como “fim da história” e que nada mais cabia aos seres h<strong>um</strong>anos<br />

a não ser se a<strong>de</strong>quarem à nova or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> coisas.<br />

Dessa forma, em tal quadro, subestimar o modo <strong>de</strong> produção tão<br />

somente mudou sua forma <strong>de</strong> extração <strong>de</strong> mais-valia, o qual apenas se<br />

exacerbou, e que tal forma <strong>de</strong> organização do trabalho segue não só<br />

alienada, mas também, e fundamentalmente, alienando o indivíduo, traz<br />

como <strong>de</strong>corrência lógica e como imperativo categórico a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

transformação do atual estado <strong>de</strong> coisas, mudando todas as relações em<br />

que o ser h<strong>um</strong>ano surge como ente <strong>de</strong>gradado. 37<br />

Até que ponto tal estratégia não c<strong>um</strong>priu <strong>um</strong> papel <strong>de</strong> tentativa <strong>de</strong><br />

legitimação, é o que se verá na próxima parte <strong>de</strong>ste artigo.<br />

2. PÓS-MODERNIDADE COMO FORMA DE LEGITIMAÇÃO POLÍTICO-<br />

IDEOLÓGICA<br />

35 MAGALHÃES, Fernando. “A opressão dos mortos: o testamento não escrito <strong>de</strong> Marx. In: Perspectiva<br />

Filosófica, Vol<strong>um</strong>e 5, n. 10. Recife: Departamento <strong>de</strong> Filosofia, 1997-1998, p. 59 e MARX, Karl.<br />

Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 114.<br />

36 MAGALHÃES, Fernando. “O discurso filosófico da pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>: a filosofia do espetáculo contra<br />

o marxismo”. In: Ciências Sociais Unisinos, Vol<strong>um</strong>e 43, Número 3, set-<strong>de</strong>z 2005. Vale dos Sinos:<br />

Unisinos, 2005, p. 193.<br />

37 MARX, Karl. A questão judaica. São Paulo: Cortez, 1991, p. 117.<br />

25


Ora, como a essência constitutiva do indivíduo é, em Marx, a sua<br />

ativida<strong>de</strong> social – expressa fundamentalmente no trabalho – resulta que a<br />

alienação vincula-se plenamente ao problema do lugar do trabalho na<br />

chamada ambiência pós-mo<strong>de</strong>rna.<br />

Assim se faz necessário <strong>de</strong>terminar o status que o labor ocupa na<br />

vida social e as implicações que disso <strong>de</strong>correm, muito embora, nesse<br />

âmbito, não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> se levar em conta aportes e objeções que<br />

foram feitas a tal centralida<strong>de</strong>, especialmente em Hannah Arendt e alguns<br />

<strong>de</strong> seus comentadores, no Brasil 38 .<br />

Se em Marx o trabalho é, como visto acima, essência constitutiva dos<br />

indivíduos e, portanto, categoria ontológica do ser social, o cuidado que se<br />

<strong>de</strong>ve ter quanto ao <strong>um</strong>a leitura reducionista <strong>de</strong>ssa <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> Lukács é<br />

não sermos levado a entendê-la tão só em suas <strong>de</strong>terminações econômicas,<br />

o que nos levaria a <strong>um</strong> reducionismo economicista.<br />

A afirmação <strong>de</strong> <strong>um</strong>a ontologia do trabalho, em Marx, <strong>de</strong>ve levar em<br />

conta seus dois significados:<br />

A – Quanto ao método – significa reconhecer como pressuposto a<br />

existência in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do mundo objetivo, dado que as premissas <strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />

partem as afirmações <strong>de</strong> tal ontologia não são arbitrárias, são reais e sua<br />

abstração – ou seja, a autoconstrução do conceito, é apenas processo <strong>de</strong><br />

abstração e suas bases são verificáveis empiricamente e, mesmo que não<br />

seja isenta <strong>de</strong> pressupostos, parte sempre <strong>de</strong> premissas fáticas 39 ,<br />

B – Quanto à perspectiva filosófica – não se trata <strong>de</strong> <strong>um</strong>a ontologia<br />

especulativa já que não proce<strong>de</strong> à base do conceito, pelo contrário, parte <strong>de</strong><br />

<strong>um</strong>a manifestação concreta do trabalho: a mercadoria, que representa só e<br />

tão somente trabalho h<strong>um</strong>ano materializado 40 .<br />

38 As principais objeções feitas por Hannah Arendt ao peso dado por Marx à esfera política (para ela,<br />

apenas <strong>um</strong>a das funções da socieda<strong>de</strong>) po<strong>de</strong>m ser lidas em “A condição h<strong>um</strong>ana”, on<strong>de</strong> ela faz questão,<br />

preliminarmente, <strong>de</strong> separar-se das críticas oportunistas feitas em relação a Marx. Ver: ARENDT,<br />

Hannah. A condição h<strong>um</strong>ana. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Forense, 1995, 40-45. E entre os comentadores:<br />

ADEODATO, João Mauricio. O problema da legitimida<strong>de</strong>: no rastro do pensamento <strong>de</strong> Hannah Arendt.<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro: Forense, 1989, p. 52; SALES WAGNER, Eugênia. Hannah Arendt e Karl Marx: o<br />

mundo do trabalho. São Paulo: Ateliê, 2000, p. 146-147 e DUARTE, André. Hannah Arendt e a<br />

exemplarida<strong>de</strong> subversiva: por <strong>um</strong>a ética pós-metafísica. In: Ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> Filosofia Alemã. São Paulo:<br />

USP – FFLCH, jan.-jun 2007, n. 9, p. 32.<br />

39 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A i<strong>de</strong>ologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, pp. 10 e 20.<br />

40 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política, Vol<strong>um</strong>e I, Livro primeiro, Tomo I. São Paulo:<br />

Abril, 1983, p. 51<br />

26


Ora, mantidos os pilares <strong>de</strong> organização capitalista do trabalho, ainda<br />

que levemos em conta as modificações no âmbito da produção – perda <strong>de</strong><br />

hegemonia do trabalho subordinado, surgimento do trabalho à distância e<br />

por apresentação <strong>de</strong> tarefas, volatilização dos capitais e supremacia do<br />

capital financeiro – on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>ríamos falar em alteração substancial das<br />

relações <strong>de</strong> trabalho que legitimem conceitualmente o surgimento <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />

nova forma <strong>de</strong> produção?<br />

A questão da alienação e o estranhamento <strong>de</strong>la <strong>de</strong>rivada, como<br />

fenômenos característicos do trabalho sob sujeição, permanecem <strong>de</strong> forma<br />

clara e, apesar do <strong>de</strong>senvolvimento incomensurável da técnica, não seria<br />

correto dizer que ela libertou o homem das imposições do labor.<br />

O trabalho longe <strong>de</strong> ser <strong>um</strong> prolongamento do prazer e forma <strong>de</strong><br />

realização h<strong>um</strong>ana segue mais coisificado que antes, dado que não libertou<br />

o ser h<strong>um</strong>ano <strong>de</strong> sua canseira, como apregoou Galileu Galilei, na peça<br />

homônima <strong>de</strong> Brecht, nem o beneficiou com a redução <strong>de</strong> seus ritmos, o<br />

que seria <strong>de</strong> se esperar n<strong>um</strong>a socieda<strong>de</strong> h<strong>um</strong>ana e que apropriasse<br />

socialmente os avanços da técnica.<br />

Muito mais que antes o labor tornou-se algo exterior a quem o<br />

executa e, tornando, lamentavelmente atual o diagnóstico <strong>de</strong> Marx, a<br />

ativida<strong>de</strong> segue não se constituindo em satisfação <strong>de</strong> <strong>um</strong>a necessida<strong>de</strong> e<br />

sim como meio <strong>de</strong> suprir outras necessida<strong>de</strong>s, pelo que o indivíduo só se<br />

sente livre exatamente no <strong>de</strong>sempenho daquelas funções que mais o<br />

i<strong>de</strong>ntifica com o reino animal. 41<br />

A hipótese pela qual a pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> nada mais é que <strong>um</strong> mo<strong>de</strong>lo,<br />

isto é, <strong>um</strong>a forma <strong>de</strong> legitimação política, i<strong>de</strong>ológica e sócio-cultural do<br />

capitalismo em sua fase global 42 tem sido consi<strong>de</strong>rada cada vez mais <strong>um</strong>a<br />

referência analítica correta 43 , e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito já não é mais tida como<br />

exotismo <strong>de</strong> saudosistas <strong>de</strong> <strong>um</strong> mundo bi-polarizado.<br />

41 MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 83.<br />

42 MAGALHÃES, Fernando. “O discurso filosófico da pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>: a filosofia do espetáculo contra<br />

o marxismo”. In: Ciências Sociais Unisinos, Vol<strong>um</strong>e 43, Número 3, set-<strong>de</strong>z 2005. Vale dos Sinos:<br />

Unisinos, 2005, p. 193.<br />

43 Não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> levar em conta – apesar <strong>de</strong> hoje ser consi<strong>de</strong>rado fora <strong>de</strong> moda citá-lo na<br />

aca<strong>de</strong>mia – que o diagnóstico <strong>de</strong> <strong>um</strong>a fase global do imperialismo nada tem <strong>de</strong> novo e foi formulado no<br />

início há quase cem anos por Lênin no “Imperialismo, fase superior do capitalismo”, on<strong>de</strong> já se falava em<br />

predomínio completo do capital financeiro e das gran<strong>de</strong>s corporações e monopólios. Ver: ULIANOV, V.<br />

I. “O imperialismo, fase superior do capitalismo”. In: Obras Escolhidas. São Paulo: Alfa-Ômega, 1980.<br />

27


As esperanças da chamada globalização e <strong>de</strong> sua forma <strong>de</strong> atuação<br />

econômica, o neoliberalismo, sua lógica cultural, o pós-mo<strong>de</strong>rnismo,<br />

revelou sua fragilida<strong>de</strong> muito antes que o “Consenso <strong>de</strong> Washington” e o<br />

diagnóstico otimista <strong>de</strong> Fukuyama completassem duas décadas.<br />

Pa<strong>de</strong>ceria assim <strong>de</strong> incompletu<strong>de</strong> se não fossem feitas alg<strong>um</strong>as<br />

consi<strong>de</strong>rações quanto à temática da pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> como discurso <strong>de</strong><br />

legitimação.<br />

3. DIREITO COMO RACIONALIDADE CONSTITUÍDA E COMO<br />

EXPRESSÃO DA ALIENAÇÃO HUMANA<br />

Mesmo no interior dos limites <strong>de</strong> <strong>um</strong> artigo, aqui se tentará colocar<br />

alguns problemas no sentido <strong>de</strong> subsidiar as questões que o <strong>de</strong>sdobramento<br />

<strong>de</strong>ste artigo ajudará a elucidar.<br />

Se, como reconhece o próprio Jameson, <strong>um</strong> dos estudiosos mais<br />

autorizados da pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, a época pós-mo<strong>de</strong>rna sugere a ocorrência<br />

<strong>de</strong> mudanças significativas na esfera econômica, mas no interior da lógica<br />

<strong>de</strong> funcionamento do capital, há que se salientar – como ele mesmo aponta<br />

nas passagens aqui citadas e em outras – que o mundo não ultrapassou a<br />

existência dos conflitos <strong>de</strong> classe.<br />

Note-se que naqueles espaços on<strong>de</strong> o capitalismo apresenta sua face<br />

jurídica e organizativa mais <strong>de</strong>snuda, isto é, no chão da fábrica, no trabalho<br />

rural e também no trabalho dos assalariados com formação técnica, sua<br />

organização não é nada <strong>de</strong>mocrática e nem participativa e nem per<strong>de</strong>u sua<br />

atualida<strong>de</strong>, mesmo com a introdução <strong>de</strong> novas tecnologias:<br />

The factory co<strong>de</strong> in which capital formulates, like<br />

a private legislator, and at his own good will, his<br />

autocracy over his workpeople, unaccompanied by<br />

the still more approved representative system,<br />

this is co<strong>de</strong> is but the capitalistic caricature of that<br />

social regulation of the labour-process which<br />

becomes requisites in co-operation on a great<br />

scale, and in the employment in common, of<br />

28


instr<strong>um</strong>ents of labour and especially of<br />

machinery. 44<br />

Sendo assim, e pelo fato <strong>de</strong> intervir fundamentalmente na esfera<br />

cultural não c<strong>um</strong>priria a tentativa <strong>de</strong> extensão do discurso pós-mo<strong>de</strong>rno<br />

para o âmbito jurídico <strong>um</strong>a forma <strong>de</strong> referência <strong>de</strong> legitimação i<strong>de</strong>ológica à<br />

atual forma <strong>de</strong> ac<strong>um</strong>ulação <strong>de</strong> capital sendo, portanto, alienador? (da<br />

mesma forma que a intensa propaganda sobre globalização, o fim da<br />

história e mundo unipolar).<br />

Já foi apontado que a alienação para ser superada requer a conjunção<br />

<strong>de</strong> duas exigências práticas, <strong>um</strong>a que tenha feito do conjunto da<br />

h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong> <strong>um</strong>a massa <strong>de</strong> <strong>de</strong>sapossados e em contradição com o mundo<br />

da riqueza e da cultura existentes e, em segundo lugar que o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento das forças produtivas se generalize, pois sem ele o que<br />

teríamos seria tão só a universalização da miséria. Tal <strong>de</strong>senvolvimento é<br />

requisito para <strong>um</strong> intercâmbio amplo entre os seres h<strong>um</strong>anos. 45<br />

Por isso a época pós-mo<strong>de</strong>rna é, em nosso ver, a ratificação <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />

diagnóstico que, se não foi feito em <strong>de</strong>talhes, e historicamente não po<strong>de</strong>ria<br />

sê-lo, já se era possível prognosticar em linhas gerais.<br />

Trata-se, portanto, <strong>de</strong> concluir o projeto <strong>de</strong> emancipação e libertar a<br />

h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong> <strong>de</strong> limites, cuja existência é condição mantenedora <strong>de</strong> todos os<br />

<strong>de</strong>mais aos quais os seres h<strong>um</strong>anos são submetidos e que lhes impe<strong>de</strong>m <strong>de</strong><br />

afirmar a sua própria h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong> genérica 46 .<br />

São nesses limites que se projeta a questão da alienação visto que<br />

esse conceito é refém, como muitos outros das ciências chamadas <strong>de</strong><br />

compreensivas, do problema da polissemia.<br />

A paternida<strong>de</strong> do conceito é, erradamente, atribuída por alguns a<br />

Marx, mas suas origens, tal como ele o trabalhou, especialmente nos seus<br />

44 Tradução livre: O código fabril no qual o capital formula, como <strong>um</strong> legislador privado e por sua própria<br />

autorida<strong>de</strong>, a sua autocracia sobre os trabalhadores, <strong>de</strong>sacompanhado pelo seu mais que aprovado sistema<br />

representativo, é apenas <strong>um</strong>a caricatura capitalista <strong>de</strong> regulação social do processo <strong>de</strong> trabalho que se faz<br />

necessária n<strong>um</strong>a cooperação em gran<strong>de</strong> escala e com o emprego em com<strong>um</strong> <strong>de</strong> instr<strong>um</strong>entos <strong>de</strong> trabalho,<br />

em especial <strong>de</strong> maquinas. Ver: MARX, Karl. Capital (Edited by Friedrich Engels). London:<br />

Encyclopedia Britannica, 1978, p. 208, (Machinery and mo<strong>de</strong>rn industry).<br />

45 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A i<strong>de</strong>ologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, pp. 30-31.<br />

46 Marx o associou, inicialmente, à crítica da religião, mas por via da crítica à política, para não criticar a<br />

política nos marcos da religião, como faziam os jovens hegelianos. Ver: MC LELLAN, David. Marx y<br />

los jovenes hegelianos. Barcelona: Martinez Roca, 1969, p. p. 44.<br />

29


textos da chamada primeira fase, encontra-se em Hegel, on<strong>de</strong> a formulação<br />

aparece enquanto visão da natureza como forma auto-alienada do espírito<br />

absoluto (o que se assemelha, como acentua Petrovic, à visão platônica do<br />

mundo natural como imagem imperfeita do mundo das idéias). 47<br />

Lukács lembra que já nas obras <strong>de</strong> juventu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Hegel,<br />

especialmente os escritos <strong>de</strong> Jena, tal conceito aparecia como “positivida<strong>de</strong>”<br />

– instituição ou complexos i<strong>de</strong>ológicos que se contrapunham à subjetivida<strong>de</strong><br />

da prática h<strong>um</strong>ana como <strong>um</strong>a fria objetivida<strong>de</strong>. 48<br />

À medida que vai avançando a formulação <strong>de</strong> sua dialética, Hegel vai<br />

superando o termo positivida<strong>de</strong> – aplicando-o apenas no sentido que temos<br />

hoje <strong>de</strong> Direito positivo. Por outro lado o termo positivida<strong>de</strong> cada vez mais<br />

adquire <strong>um</strong> tom <strong>de</strong> “recusa” na medida em que Hegel seguia tratando esse<br />

tipo <strong>de</strong> positivida<strong>de</strong> como algo sem vida e a ser eliminado da história.<br />

Mas se no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> sua filosofia se elimina o termo<br />

positivida<strong>de</strong>, não elimina ele o problema que <strong>de</strong>signava tal termo, ou seja,<br />

a relação da prática social com os objetos que cria. Assim, o termo aparece<br />

em sua elaboração <strong>de</strong>finitiva como consciência cindida (infeliz), que se<br />

projeta n<strong>um</strong> ser superior 49 e enquanto <strong>de</strong>gradação da vida ética em direção<br />

a <strong>um</strong> atomismo egoístico on<strong>de</strong> a particularida<strong>de</strong> enquanto satisfação <strong>de</strong><br />

exigências e em seus conflitos oferece à socieda<strong>de</strong> civil <strong>um</strong> espetáculo <strong>de</strong><br />

miséria (indivíduo X socieda<strong>de</strong> civil). 50<br />

A influência do hegelianismo, em Marx, bem como a perspectiva que<br />

já marcava suas concepções, leva-o a <strong>um</strong>a valorização explícita, nos textos<br />

<strong>de</strong> juventu<strong>de</strong>, do problema da consciência <strong>de</strong> si do indivíduo e que o leva,<br />

posteriormente, ao tema da alienação 51 .<br />

Ainda assim, o uso do termo só se torna corrente, no marxismo, após<br />

a <strong>de</strong>scoberta dos chamados “Manuscritos <strong>de</strong> Paris”. 52<br />

47 PETROVIC, Gajo. “Alienação”. In: BOTTOMORE, Tom (org). Dicionário do pensamento marxista.<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 5-8.<br />

48 LUKÁCS, Georg. El joven Hegel y los problemas <strong>de</strong> la sociedad capitalista. Barcelona: Grijalbo,<br />

1976, p. 516.<br />

49 HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 159,-162 e 168-169.<br />

50 HEGEL, G. W. F. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1997, p.169-170.<br />

51 Veja-se, por exemplo, a problemática que perpassa a tese doutoral <strong>de</strong> Marx intitulada “Diferença entre<br />

as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro”, in: MARX, Carlos. Escritos <strong>de</strong> juventud. México:<br />

Fondo <strong>de</strong> Cultura Econômica, 1985.<br />

52 MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004 e “Manuscritos<br />

economicos-filosoficos”, in: MARX, Carlos. Escritos <strong>de</strong> juventud. México: Fondo <strong>de</strong> Cultura<br />

Econômica, 1985<br />

30


Usual em direito (como transferência <strong>de</strong> titularida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> bem) e<br />

em psiquiatria (como <strong>de</strong>svio <strong>de</strong> padrões ditos normais) 53 , no marxismo<br />

seus diversos aspectos se con<strong>de</strong>nsam na separação do indivíduo não<br />

apenas do produto <strong>de</strong> sua ativida<strong>de</strong> (o que daria ao conceito <strong>um</strong> caráter<br />

meramente econômico e afastaria todo potencial esclarecedor das relações<br />

entre indivíduos e classes n<strong>um</strong>a socieda<strong>de</strong> dividida), mas também do<br />

exercício pleno <strong>de</strong> suas potencialida<strong>de</strong>s h<strong>um</strong>anas, pelo que gera <strong>um</strong><br />

momento <strong>de</strong> não-i<strong>de</strong>ntificação, <strong>de</strong> estranhamento entre o indivíduo e o<br />

resultado <strong>de</strong> suas ativida<strong>de</strong>s, bem como com a realida<strong>de</strong> e com os outros<br />

indivíduos.<br />

Do ponto <strong>de</strong> vista político a alienação resulta noutro fenômeno que<br />

não <strong>de</strong>ve ser subestimado: a total ou parcial perda <strong>de</strong> qualquer<br />

i<strong>de</strong>ntificação entre o indivíduo e as instituições (enquanto fontes <strong>de</strong><br />

produção das regras e <strong>de</strong> legitimação), suas próprias normas, bem como a<br />

cisão com o mundo, situando-se como objeto (e não, sujeito) e como meio<br />

(e não, finalida<strong>de</strong>).<br />

É <strong>de</strong>ssa constatação que parte <strong>um</strong> dos mais autorizados estudiosos<br />

da teoria da alienação em Marx para afirmar que a problemática<br />

fundamental que perpassa a formulação do conceito é o problema acerca <strong>de</strong><br />

como realizar a liberda<strong>de</strong> h<strong>um</strong>ana. 54<br />

Lukács aborda tal questão (ainda que <strong>de</strong> forma não explícita) quando<br />

trata, n<strong>um</strong> texto <strong>de</strong> 1923, da coisificação vista como relação entre o sujeito<br />

e a sua ativida<strong>de</strong> enquanto algo objetivo e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e que o domina<br />

por obra <strong>de</strong> leis alheias a ele.<br />

Na “História & Consciência <strong>de</strong> Classe”, ele lembra: “o mundo das<br />

mercadorias – e o seu movimento, o mercado 55 - cujas leis ainda que os<br />

homens as vão conhecendo, contrapõem-se a eles como potências<br />

indomáveis e autônomas em sua atuação” 56 .<br />

53 PETROVIC, Gajo. “Alienação”. In: BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento marxista: Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 5.<br />

54 MÉSZAROS, István. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 149.<br />

55 A própria existência do mercado, hoje erigido em mercado global no admirável mundo novo pósmo<strong>de</strong>rno,<br />

atesta, em nossa opinião, <strong>um</strong>a das características típicas <strong>de</strong> economias on<strong>de</strong> o trabalho é<br />

explorado e institucionalizado como espaço <strong>de</strong> troca entre pessoas (ainda que materialmente <strong>de</strong>siguais,<br />

embora formalmente se fale em igualda<strong>de</strong>) e é mais <strong>um</strong>a <strong>de</strong>monstração cabal que pós-mo<strong>de</strong>rno não é algo<br />

tão novo quanto parece.<br />

56 LUCÁKS, Gyorg. Historia y consciência <strong>de</strong> clase. P. 127<br />

31


Assim fica claro que a alienação do trabalho não apenas segue<br />

existindo como se encontra mais intensificada, permanecendo efetiva<br />

fundamentalmente no fato <strong>de</strong> que o produto do trabalho, isto é, a energia<br />

posta no objeto, é a objetivação da própria ativida<strong>de</strong> e tal apropriação<br />

manifesta-se na circunstância <strong>de</strong> que quanto mais produz o trabalhador<br />

menos possui e quanto mais realiza o objeto menos com ele se i<strong>de</strong>ntifica,<br />

ou seja, o próprio trabalho que realiza lhe aparece como potência estranha<br />

e que lhe domina, ao invés <strong>de</strong> ser dominado, que <strong>de</strong>le se serve ao invés <strong>de</strong><br />

a ele servir. 57<br />

Em s<strong>um</strong>a, sua relação com o objeto <strong>de</strong> trabalho é como com algo<br />

estranho, e não seu. E expressa que a <strong>um</strong> só tempo, a alienação e o<br />

estranhamento que caracterizam o trabalho subordinado na socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

classes e que, no essencial, não se modifica ainda que com novas formas <strong>de</strong><br />

organização do trabalho, típicas do capitalismo da segunda meta<strong>de</strong> do<br />

século XX em diante.<br />

O trabalho se objetiva, ass<strong>um</strong>e existência externa e contra o<br />

produtor, torna-se como <strong>um</strong> po<strong>de</strong>r autônomo contra o sujeito e a situação<br />

do trabalhador adquire, <strong>de</strong> forma sucinta e em linhas gerais, o seguinte<br />

perfil: a) quanto mais produz mais se consome; b) quanto mais valor cria<br />

menos valorizado é; c) quanto mais refinado o produto mais <strong>de</strong>sfigurado o<br />

produtor; d) quanto mais civilizado o produto mais bestificado o<br />

trabalhador. 58<br />

4. CONCLUSÃO: DIREITO E PÓS-MODERNIDADE ENQUANTO<br />

IDEOLOGIAS<br />

É óbvio que, em razão <strong>de</strong> não se ver mudanças <strong>de</strong> modo <strong>de</strong> produção<br />

nas novas formas com que o capitalismo se organizou para realizar a<br />

extração <strong>de</strong> mais-valia, a temática central que aqui se buscou evi<strong>de</strong>nciar foi<br />

exatamente a <strong>de</strong> que as ambivalências, falácias e contradições da pósmo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong><br />

(ainda que <strong>um</strong>a das análises mais argutas do problema a<br />

<strong>de</strong>snudou a partir do <strong>de</strong>bate da própria idéia no âmbito da crítica <strong>de</strong> cultura<br />

57 MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 80-82.<br />

58 Procurou-se, ao pontuar os aspectos da alienação / estranhamento, con<strong>de</strong>nsar suas conseqüências, como<br />

apontadas no trecho “trabalho estranhado e proprieda<strong>de</strong> privada”, componente do Ca<strong>de</strong>rno I dos MEF.<br />

Ver em: MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 79-90.<br />

32


e da i<strong>de</strong>ologia 59 ) se clarificam na medida em que seja ela compreendida<br />

como <strong>um</strong> período histórico on<strong>de</strong> supostamente teria havido <strong>um</strong>a mudança<br />

qualitativa <strong>de</strong> paradigmas e sem que tal afirmação se sustente nas<br />

estruturas i<strong>de</strong>ológicas e materiais da socieda<strong>de</strong>.<br />

Enten<strong>de</strong>-se aqui, que po<strong>de</strong> se falar, n<strong>um</strong> âmbito muito <strong>de</strong>limitado, <strong>de</strong><br />

formas <strong>de</strong> reflexão e percepção do mundo, enquanto manifestação <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />

visão pós-mo<strong>de</strong>rna, isso n<strong>um</strong>a perspectiva <strong>de</strong> busca <strong>de</strong> afirmação <strong>de</strong>ssa<br />

<strong>de</strong>terminada visão e sem negligenciar o caráter i<strong>de</strong>ológico <strong>de</strong> tal conceito.<br />

E aqui sua <strong>de</strong>limitação como visão <strong>de</strong> mundo não tem caráter<br />

pejorativo: afirmar <strong>um</strong>a concepção como i<strong>de</strong>ológica <strong>de</strong>ve ser entendido tão<br />

somente como ter claro o uso interessado que se po<strong>de</strong> fazer <strong>de</strong>la e não que<br />

ela seja apenas <strong>um</strong>a construção em plano i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> <strong>um</strong>a visão parcial e<br />

unilateral do mundo 60 .<br />

O mo<strong>de</strong>lo teórico <strong>de</strong> <strong>um</strong>a cultura pós-mo<strong>de</strong>rna é algo estabelecido na<br />

discussão acadêmica. Já a idéia <strong>de</strong> <strong>um</strong> modo <strong>de</strong> produção análogo não<br />

apenas é bastante discutível, como envolveria a tarefa relevante <strong>de</strong> dissecála.<br />

Fora disso o que po<strong>de</strong> ocorrer se caracteriza como tentativa <strong>de</strong> não se<br />

mostrar seus limites, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> sua inserção discursiva no<br />

meio acadêmico.<br />

E mais, mesmo como discurso <strong>de</strong> legitimação, isto é, como i<strong>de</strong>ologia, o<br />

que interessa é saber quais rebatimentos teve na vida social, <strong>de</strong> que modo<br />

afeta os diversos campos da ativida<strong>de</strong> h<strong>um</strong>ana, a exemplo do direito, on<strong>de</strong><br />

a adoção da idéia <strong>de</strong> pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> é corolário da aceitação <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />

completa irracionalida<strong>de</strong> no fazer jurídico, o que – in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>clarações protocolares <strong>de</strong> boas intenções - constitui-se n<strong>um</strong>a atitu<strong>de</strong><br />

completamente regressiva, pois ainda que se reconheça o caráter <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r<br />

e dominação do direito, isto é, enquanto instr<strong>um</strong>ento hegemônico, não se<br />

po<strong>de</strong> olvidar que seu aperfeiçoamento é <strong>um</strong>a conquista da civilização, e <strong>de</strong><br />

interesse principalmente daqueles a quem a pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixou para<br />

trás.<br />

Foi essa preocupação que dirigiu este artigo ao esboço <strong>de</strong> <strong>um</strong>a crítica<br />

<strong>de</strong> fundamento, qual seja, se não há mudanças <strong>de</strong> substância no campo das<br />

59 EAGLETON, Terry. As ilusões do pós-mo<strong>de</strong>rnismo. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 29-50, 93-<br />

127 e 127-131.<br />

60 FREITAS, Lorena. I<strong>de</strong>ologia na magistratura: O caso da AJD (Dissertação <strong>de</strong> Mestrado). Recife:<br />

UFPE, 2006, passim.<br />

33


elações <strong>de</strong> produção, a idéia <strong>de</strong> <strong>um</strong> mo<strong>de</strong>lo econômico pós-mo<strong>de</strong>rno fica<br />

enfraquecido, o que não quer dizer que não se possa falar em <strong>um</strong>a cultura<br />

pós-mo<strong>de</strong>rna, por exemplo, mas que constitui <strong>um</strong> fenômeno inteiramente<br />

distinto da caracterização <strong>de</strong> <strong>um</strong> modo <strong>de</strong> produção e <strong>de</strong> relações sociais e<br />

jurídicas <strong>de</strong>terminadas.<br />

Tratar-se-ia <strong>de</strong> <strong>um</strong>a tarefa limitada se circunscrever-se o <strong>de</strong>bate a<br />

tão só dissecar as ambivalências, as contradições, as falácias do pósmo<strong>de</strong>rnismo:<br />

é preciso notar como esta linha <strong>de</strong> pensamento vê as histórias<br />

e os sujeitos.<br />

Ao apregoar o fim das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s nacionais em prol <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />

locais, étnicas, <strong>de</strong> culturas <strong>de</strong>scentradas, ao <strong>de</strong>cretar – previamente – a<br />

falência do que chama <strong>de</strong> “gran<strong>de</strong>s narrativas” 61 , a i<strong>de</strong>ologia do pósmo<strong>de</strong>rno,<br />

isto é, sua expressão cultural, fortalece a lógica do “capitalismo<br />

tardio”, que, ao mesmo tempo em que aspira apresentar suas formas<br />

econômicas, jurídicas e políticas como a única (isto é, em última análise,<br />

como pensamento único) não po<strong>de</strong> realizar tal <strong>de</strong>si<strong>de</strong>rato apenas como <strong>um</strong><br />

aparato normativo e sim através <strong>de</strong> <strong>um</strong>a política cultural <strong>de</strong>terminada.<br />

E, embora tal se constitua n<strong>um</strong> fenômeno interessante o que se faz, ao<br />

final <strong>de</strong>ste artigo não é tão somente se limitar a anotá-lo, em função dos<br />

objetivos específicos que se preten<strong>de</strong> alcançar, mas <strong>de</strong> criticar os<br />

fundamentos do qual se parte para a categorização do fenômeno.<br />

Tentou-se, portanto, nos limites <strong>de</strong> <strong>um</strong> artigo, traçar esboços para se ir<br />

fundo na crítica das formas como a dominação do capital se apresenta e se<br />

justifica atualmente e tal intento não se leva a cabo, <strong>de</strong> modo satisfatório,<br />

sem termos que pelejar com os termos pós-mo<strong>de</strong>rnismo e pósmo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.<br />

Por fim, a reflexão conceitual aqui formulada não <strong>de</strong>ve nublar o papel<br />

<strong>de</strong>cisivo dos movimentos sociais emancipatórios, frutos <strong>de</strong> formas<br />

diversificadas <strong>de</strong> auto-organização da socieda<strong>de</strong> civil e que, <strong>de</strong> certa forma<br />

e em certas condições, dão <strong>um</strong> novo tom – e <strong>um</strong>a nova qualida<strong>de</strong> – as <strong>lutas</strong><br />

travadas na mesma.<br />

61 É o caso, entre outros – ao menos no âmbito da crítica <strong>de</strong> cultura – <strong>de</strong> Connor, que subscreve tal<br />

discurso. Ver: CONNOR, Steven. Cultura pós-mo<strong>de</strong>rna. São Paulo: Loyola, 1996, p. 187-188 e 198,<br />

on<strong>de</strong> tenta, ainda que, <strong>de</strong> certa forma, temendo “cair no universalismo”, atenuar na conclusão ao <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r<br />

“formas inclusivas <strong>de</strong> coletivida<strong>de</strong> ética”.<br />

34


É essa novida<strong>de</strong> o que lhes confere, ao fim e ao cabo, <strong>um</strong> caráter<br />

claramente contra-hegemônico, e que nos aponta que a crítica teórica<br />

enquanto tarefa conceitual não po<strong>de</strong> se confundir com o reconhecimento <strong>de</strong><br />

fatos que ainda que não a legitimem po<strong>de</strong> servir para a construção <strong>de</strong><br />

novas explicações e novos mo<strong>de</strong>los.<br />

Por fim, é óbvio que tal diferenciação não po<strong>de</strong> obscurecer o fato <strong>de</strong><br />

que nem todos os que formulam no campo da teoria que reconhece ou a<br />

existência <strong>de</strong> <strong>um</strong>a forma <strong>de</strong> produção pós-mo<strong>de</strong>rna ou, o que consi<strong>de</strong>ro<br />

mais preciso, o reconhecimento <strong>de</strong> importantes, e dramáticas, alterações na<br />

organização do trabalho, respaldam - ao contrário, chocam-se <strong>de</strong> modo<br />

franco com os aspectos exclu<strong>de</strong>ntes - a tentativa neoliberal <strong>de</strong> justificar<br />

suas políticas com base na emergência <strong>de</strong> <strong>um</strong> tempo pós-mo<strong>de</strong>rno.<br />

São exatamente esses estudiosos que apontam para o importante<br />

fenômeno do trabalho imaterial, <strong>um</strong>a das questões chaves que a política e o<br />

direito têm que dar conta e que alguns estudiosos tentam suprir a partir do<br />

conceito <strong>de</strong> “mo<strong>de</strong>rnização avançada”, que nos parece mais operativo para<br />

pensar as <strong>recente</strong>s transformações do capitalismo e que nos permite não<br />

apenas se ir mais além à crítica a esse mundo da divisão do trabalho (e do<br />

trabalho alienado), cujo enfrentamento aponta não só novas formas <strong>de</strong><br />

sociabilida<strong>de</strong>, mas também para novas formas <strong>de</strong> organização dos<br />

excluídos 62 , visto que o que se chama socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> informação não po<strong>de</strong><br />

ser – ou pelo menos não <strong>de</strong>veria ser – encaminhado na direção <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />

socieda<strong>de</strong> do controle total.<br />

Ao ver <strong>de</strong>ste artigo, esses (novos) problemas exigem novas<br />

perspectivas na compreensão do direito e na inserção dos que o fazem<br />

enquanto, simultaneamente, sujeitos históricos e morais, ou seja, enquanto<br />

pessoas cujos papeis sociais se <strong>de</strong>finem, ainda que disso não tenham plena<br />

consciência, por interesses <strong>de</strong> classe, mas que também - e,<br />

simultaneamente – fazem tais escolhas no interior <strong>de</strong>sses interesses.<br />

62 Para <strong>um</strong>a análise <strong>de</strong>sse novo contexto e da convergência teórica acerca das alterações do ethos n<strong>um</strong>a<br />

concepção pós-mo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>, mas que não legitima – nem consi<strong>de</strong>ra fatal – <strong>um</strong>a “sociabilida<strong>de</strong><br />

capitalista, ver: ANDRADE, Everaldo Gaspar. Direito do trabalho e pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>: fundamentos<br />

para <strong>um</strong>a teoria geral. São Paulo: LTr, 2005, P. 284-304, on<strong>de</strong> se analisam os principais teóricos da<br />

problemática, alguns <strong>de</strong> origem marxista, a exemplo <strong>de</strong> André Gorz, Adam Schaff e Armand Mattelart.<br />

35


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38


ANÁLISE DOS OBSERVATÓRIOS DE MÍDIA BRASILEIROS<br />

COMO INSTRUMENTOS DO CONTROLE PÚBLICO DA MÍDIA 1<br />

Edgard Rebouças 63 e Patrícia Cunha 64<br />

1. Introdução<br />

A partir da década <strong>de</strong> 60, intensificou-se no mundo o estudo sobre a<br />

economia política da comunicação. Na América Latina, essa tendência<br />

repercutiu, entre outros, no pensar a respeito <strong>de</strong> questões como as trocas<br />

<strong>de</strong>siguais, o imperialismo cultural, o acesso à informação, o papel da<br />

comunicação na educação e na manutenção do sistema sociopolíticoeconômico<br />

em vigor. Des<strong>de</strong> então, intensificou-se a estruturação <strong>de</strong><br />

organizações populares e entida<strong>de</strong>s sociais com a proposta <strong>de</strong> buscar<br />

soluções para os problemas ligados à comunicação. Foi neste contexto que<br />

os observatórios <strong>de</strong> mídia surgiram como alternativa à socieda<strong>de</strong> civil,<br />

frente ao po<strong>de</strong>r dos conglomerados <strong>de</strong> comunicação e às <strong>de</strong>terminações da<br />

“nova or<strong>de</strong>m mundial da informação e da comunicação” (NOMIC).<br />

A utilização das novas tecnologias <strong>de</strong> comunicação e informação<br />

(TCI) pelos movimentos sociais tem ass<strong>um</strong>ido alg<strong>um</strong>as formas e se<br />

manifestado através do ativismo online, dos ciberprotestos e da formação<br />

<strong>de</strong> plataformas <strong>de</strong> <strong>de</strong>bates com vinculações a temáticas sociais. A<br />

apropriação participativa dos meios <strong>de</strong> comunicação e informação é <strong>um</strong>a<br />

atitu<strong>de</strong> viável e que cria inúmeras possibilida<strong>de</strong>s para o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

h<strong>um</strong>ano.<br />

Os observatórios <strong>de</strong> mídia brasileiros são exemplos <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong><br />

movimento, cuja origem po<strong>de</strong> remeter à aca<strong>de</strong>mia, ao meio profissional<br />

midiático, ou aos próprios movimentos populares. Contudo, como será<br />

mostrado adiante, os observatórios analisados compartilham<br />

invariavelmente <strong>de</strong> objetivos sociais e buscam sempre <strong>um</strong>a aplicabilida<strong>de</strong><br />

para suas observações, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do tipo <strong>de</strong> origem. Este texto<br />

63<br />

Jornalista, professor do Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong><br />

Pernambuco (Email: edreboucas.br@gmail.com). É também coor<strong>de</strong>nador do Observatório da<br />

Mídia Regional. (www.ufpe.br/observatorio)<br />

64 Graduada pelo curso <strong>de</strong> Comunicação Social (Jornalismo) pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong><br />

Pernambuco. Estudante do Curso <strong>de</strong> Rádio e TV da UFPE, bolsista CNPq no Observatório da<br />

Mídia Regional: direitos h<strong>um</strong>anos, políticas e sistemas. (Email: patricunha@uol.com.br).<br />

39


procura divulgar a atuação dos diversos observatórios <strong>de</strong> mídia do Brasil e<br />

estimular o surgimento <strong>de</strong> novas iniciativas na área. Para isso, é <strong>um</strong><br />

diagnóstico que tenta <strong>de</strong>monstrar, por exemplo, como os observatórios<br />

surgem, como funcionam e como se mantêm.<br />

Os observatórios <strong>de</strong> mídia (media watchs) são <strong>um</strong>a forma <strong>de</strong> controle<br />

público perante os meios <strong>de</strong> comunicação. Maiorano (2003) <strong>de</strong>fine os<br />

observatórios sociais como “organismos auxiliares, colegiados e integrados<br />

<strong>de</strong> forma plural, que têm a função <strong>de</strong> facilitar o acesso público à informação<br />

<strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> e propiciar a tomada <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões por parte das autorida<strong>de</strong>s<br />

responsáveis”. Os primeiros observatórios <strong>de</strong> mídia surgiram nos Estados<br />

Unidos, na década <strong>de</strong> 1980. A idéia do media waching agregava-se às<br />

experiências anteriores do ombudsman e do media-criticism e objetivava a<br />

reflexão da socieda<strong>de</strong> e dos profissionais da mídia sobre a prática e a<br />

função jornalística na mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.<br />

2. Os Observatórios e os Direitos H<strong>um</strong>anos<br />

As <strong>lutas</strong> sociais no Brasil vêm (re)significando e reconstruindo as<br />

questões que envolvem os meios <strong>de</strong> comunicação e os direitos h<strong>um</strong>anos.<br />

Nas últimas duas décadas, viu-se o a<strong>um</strong>ento significativo <strong>de</strong> entida<strong>de</strong>s<br />

preocupadas com as chamadas gran<strong>de</strong>s mídias (televisão, rádio e jornal) e<br />

seu impacto na promoção, proteção e reparação dos direitos h<strong>um</strong>anos. A<br />

esse esforço, hoje, somam-se profissionais da área, estudos acadêmicos e<br />

órgãos públicos.<br />

O Brasil não possui <strong>um</strong>a legislação mo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong> comunicação<br />

eletrônica <strong>de</strong> massa, a qual <strong>de</strong>veria criar <strong>um</strong> órgão regulador, como existe<br />

na Europa e nos EUA. Isso dificulta a fiscalização e punição dos meios <strong>de</strong><br />

forma regular. Possibilitado através <strong>de</strong> concessões públicas, o<br />

funcionamento <strong>de</strong>sses meios <strong>de</strong>veria estar, segundo a Constituição Fe<strong>de</strong>ral,<br />

submetido ao interesse público (<strong>de</strong> forma ainda mais incisiva que na mídia<br />

impressa). Isso não vem sendo c<strong>um</strong>prido e a socieda<strong>de</strong> em geral carece <strong>de</strong><br />

órgãos que acompanhem, analisem e regulem qualquer tipo <strong>de</strong> mídia.<br />

Como agravante, há <strong>um</strong> embate entre a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> informação e os<br />

direitos do cidadão garantidos por lei, como o direito à imagem e o direito à<br />

privacida<strong>de</strong>, por exemplo. Sempre que se <strong>de</strong>lineia alg<strong>um</strong> limite para a<br />

prática midiática, é lançado <strong>um</strong> discurso igualando tais limites à censura.<br />

40


Todavia, a socieda<strong>de</strong> precisa <strong>de</strong> mecanismos que inibam as violações dos<br />

direitos h<strong>um</strong>anos, das leis e da Constituição do país, por parte dos meios <strong>de</strong><br />

comunicação. Nos últimos anos, o Ministério Público tem a<strong>um</strong>entado sua<br />

atuação na área, porém, essa ainda é bastante tímida para que se<br />

percebam mudanças significativas na mídia brasileira. Os observatórios<br />

surgem, então, como instr<strong>um</strong>entos <strong>de</strong> controle público frente ao po<strong>de</strong>r<br />

privado, a fim <strong>de</strong> combater abusos e acenar com soluções.<br />

3. Análise dos Observatórios<br />

Atualmente, os observatórios encontram-se difundidos em vários<br />

países. Em <strong>um</strong> levantamento realizado pelo Observatório da Mídia Regional,<br />

em fevereiro <strong>de</strong>ste ano, foram catalogados trinta e <strong>um</strong> observatórios na<br />

América Latina. De acordo com o levantamento, no Brasil existem sete<br />

observatórios <strong>de</strong> mídia com propostas <strong>de</strong> análises locais, regionais e<br />

nacionais. O mais antigo observatório <strong>de</strong> mídia brasileiro ainda em<br />

funcionamento é o Observatório <strong>de</strong> Imprensa, que em abril <strong>de</strong> 1996 já<br />

contava com <strong>um</strong>a versão on-line. Esses observatórios apresentam diversos<br />

objetivos e sistemas <strong>de</strong> ações que vão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o formato <strong>de</strong> <strong>um</strong>a revista<br />

eletrônica sobre a mídia até a proposta <strong>de</strong> ouvidoria pública.<br />

A análise <strong>de</strong>senvolvida consi<strong>de</strong>rou os sete observatórios <strong>de</strong> mídia<br />

brasileiros: Agencia Nacional dos Direitos da Infância (ANDI), Monitor <strong>de</strong><br />

Mídia, Observatório Brasileiro <strong>de</strong> Mídia, Observatório da Imprensa,<br />

Observatório da Mídia Regional, Observatório do Direito à Comunicação,<br />

SOS Imprensa. A pesquisa foi realizada a partir do conteúdo disponível nas<br />

páginas dos observatórios na web. Porém, no caso do Observatório da Mídia<br />

Regional, alg<strong>um</strong>as informações foram obtidas diretamente com o fundador<br />

do projeto, o professor Edgard Rebouças.<br />

Segundo Suzana Herrera (2006a), nas páginas da web é que os<br />

observatórios encontram o principal meio <strong>de</strong> divulgação <strong>de</strong> suas ações e a<br />

comunicação com o público. A autora chama atenção, ainda, para a<br />

pluralida<strong>de</strong> apresentada pelos observatórios e elenca alguns tópicos,<br />

segundo os quais os observatórios latino-americanos se diferenciam. São<br />

eles: origem, composição, orientação i<strong>de</strong>ológica, estruturas e modos <strong>de</strong><br />

funcionamento, aspectos dos meios que analisam, o diferente instr<strong>um</strong>ental<br />

41


metodológico que empregam e a sistematização <strong>de</strong> sua ativida<strong>de</strong><br />

(HERRERA, 2006b).<br />

Foi seguindo essa linha <strong>de</strong> diferenciação, com alg<strong>um</strong>as modificações,<br />

que o presente estudo foi <strong>de</strong>senvolvido. Foram consi<strong>de</strong>radas as seguintes<br />

características: abrangência dos meios que analisam; origem;<br />

composição/parcerias; missão/objetivos; sistematização <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s e<br />

divulgação/contato com a socieda<strong>de</strong>.<br />

Consi<strong>de</strong>rando-se esses pontos, os observatórios brasileiros ass<strong>um</strong>em<br />

características bastante versáteis. No entanto, po<strong>de</strong>m ser divididos em dois<br />

grupos gerais, segundo Luís Albornoz e Micael Herschmann (2006), com os<br />

seguintes enfoques básicos: <strong>um</strong> primeiro grupo, em que os observatórios<br />

são concebidos como espaços articuladores da cidadania a partir dos quais<br />

se po<strong>de</strong> monitorar o funcionamento dos meios <strong>de</strong> comunicação<br />

(“observatório fiscal”) e, outro, em que são consi<strong>de</strong>rados como novos<br />

organismos que colaboram através <strong>de</strong> suas intervenções e reflexões na<br />

formação <strong>de</strong> políticas públicas (“observatório think tank”). Na primeira<br />

categoria, po<strong>de</strong>m ser agrupados: o Monitor <strong>de</strong> Mídia e o Observatório<br />

Brasileiro <strong>de</strong> Mídia. Já no segundo grupo, po<strong>de</strong>m ser incluídos o<br />

Observatório da Imprensa e o Observatório do Direito à Comunicação.<br />

Porém, ao menos na realida<strong>de</strong> brasileira, alguns observatórios <strong>de</strong>senvolvem<br />

ativida<strong>de</strong>s que acabam por situá-los nos dois grupos, simultaneamente. É o<br />

caso do observatório da ANDI, do Observatório da Mídia Regional e do SOS<br />

Imprensa.<br />

4. Abrangência dos meios que analisam<br />

Descen<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong>ssa primeira classificação, é possível tipificar os<br />

observatórios a partir da abrangência dos meios que analisam. Os<br />

“observatórios fiscais” se caracterizam por analisar os meios <strong>de</strong><br />

comunicação locais: o Monitor <strong>de</strong> Mídia acompanha jornais e telejornais<br />

catarinenses; o Observatório Brasileiro <strong>de</strong> Mídia, os impressos paulistanos.<br />

Já os observatórios classificados no segundo e terceiro grupos contam com<br />

<strong>um</strong>a abrangência maior: regional, nacional, po<strong>de</strong>ndo alargar-se pelo<br />

território latino-americano, como é o caso da ANDI. Esse fenômeno po<strong>de</strong><br />

ser explicado pelo fato <strong>de</strong> que os observatórios que se restringem ao campo<br />

<strong>de</strong> fiscalização e análise, propriamente dito, comprometem-se em realizar<br />

42


<strong>um</strong> acompanhamento metódico - mesmo que temporário - dos meios,<br />

dando origem a análises, sobretudo, acadêmicas. Os dois observatórios<br />

estão diretamente ligados a universida<strong>de</strong>s (Monitor <strong>de</strong> Mídia à Universida<strong>de</strong><br />

do Itajaí e o Observatório Brasileiro <strong>de</strong> Mídia à Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo).<br />

O rigor científico objetivado por esses observatórios inviabiliza a análise <strong>de</strong><br />

alastrar-se por outras localida<strong>de</strong>s.<br />

Já os agrupados como “observatórios think tank” (Observatório da<br />

Imprensa, Observatório do Direito à Comunicação), têm <strong>um</strong>a abrangência<br />

maior, assim como os “mistos” (agrupados nas duas categorias). Estes<br />

últimos, apesar <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolverem análises da mídia como os “observatórios<br />

fiscais”, examinam-na com alcance regional (Observatório da Mídia<br />

Regional) ou nacional (observatório da ANDI e SOS Imprensa). Nesses<br />

observatórios, porém, o monitoramento da mídia não é <strong>um</strong>a ativida<strong>de</strong><br />

científica com fim em si mesma; pelo contrário, representa <strong>um</strong> meio para se<br />

conseguir <strong>um</strong> objetivo maior, como o acesso à informação, no caso do<br />

Observatório do Direito à Comunicação. O Observatório da Mídia Regional,<br />

por exemplo, propõe <strong>um</strong>a análise sistemática dos meios <strong>de</strong> comunicação do<br />

Nor<strong>de</strong>ste brasileiro. Suas experiências, contudo, ainda não ultrapassaram a<br />

capital pernambucana – Recife – on<strong>de</strong> fica sua se<strong>de</strong>. Em seu site, no link<br />

“Relatórios”, são expostos os “Relatórios em Andamento” que são dois:<br />

“Publicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> bebidas alcoólicas nas rádios do Recife” e “Publicida<strong>de</strong> e<br />

Criança”, que diz respeito a publicida<strong>de</strong>s locais que envolvem crianças.<br />

Por outro lado, o Observatório da Mídia Regional já <strong>de</strong>senvolveu<br />

parcerias com entida<strong>de</strong>s não governamentais e organizações populares,<br />

<strong>de</strong>sempenhando ações no Dia Mundial pela Justiça Global e organizando a<br />

IV Conferência <strong>de</strong> Mídia Cidadã. No caso da ANDI, o alcance latinoamericano<br />

<strong>de</strong> suas ações é possibilitado a partir <strong>de</strong> <strong>um</strong>a ampla re<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

parceiros que se propaga por toda a América Latina. Já o SOS Imprensa,<br />

através <strong>de</strong> <strong>um</strong> recorte temático intrínseco à sua estruturação, acompanha<br />

casos nos quais a imprensa está envolvida com aspectos legais - o que<br />

limita o universo <strong>de</strong> análise, mas torna possível, por outro lado, <strong>um</strong>a maior<br />

abrangência territorial.<br />

De qualquer forma, <strong>um</strong>a linha muito tênue caracteriza essas e outras<br />

categorias propostas para os observatórios brasileiros. O que acaba<br />

prevalecendo são estruturas versáteis para aten<strong>de</strong>r aos diversos objetivos<br />

43


propostos e, muitas vezes, a não consecução <strong>de</strong>sses objetivos por parte da<br />

organização - seja pela origem <strong>recente</strong>, seja por falta <strong>de</strong> financiamento, ou<br />

pelas mesmas dificulda<strong>de</strong>s enfrentadas pela maioria das organizações <strong>de</strong><br />

luta social. E, <strong>de</strong>ntre essas organizações, os observatórios <strong>de</strong> mídia<br />

brasileiros caracterizam-se por buscar, por meio dos mais diversos<br />

métodos, fomentar <strong>de</strong>bates com e sobre os meios <strong>de</strong> comunicação.<br />

5. Origem e Composição<br />

Dos setes observatórios consi<strong>de</strong>rados neste estudo, cinco possuem<br />

origem ligada à universida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> forma mais ou menos direta: Monitor <strong>de</strong><br />

Mídia (2001) – Universida<strong>de</strong> do Itajaí, Observatório Brasileiro <strong>de</strong> Mídia<br />

(2003) – Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, Observatório da Mídia Regional (2007)<br />

– Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Pernambuco, Observatório <strong>de</strong> Imprensa (1996,<br />

em sua versão on-line) – Universida<strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> Campinas e SOS<br />

Imprensa (1996) – Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Brasília.<br />

Já a ANDI, cuja observação da mídia faz parte <strong>de</strong> <strong>um</strong> conjunto<br />

n<strong>um</strong>eroso <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>senvolvidas pela instituição, nasceu em 1992 e<br />

foi criada por jornalistas. Em 2000, originou a Re<strong>de</strong> ANDI Brasil, n<strong>um</strong>a<br />

parceria entre organizações <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> diversas regiões do país. O<br />

Observatório do Direito à Comunicação, por sua vez, entrou no ar em março<br />

<strong>de</strong> 2007 e é <strong>um</strong>a iniciativa do Intervozes – Coletivo Brasil <strong>de</strong> Comunicação<br />

Social.<br />

A composição é <strong>um</strong>a variante que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> diretamente da origem<br />

do observatório. Em observatórios <strong>de</strong> mídia ligados a universida<strong>de</strong>s, a<br />

equipe é formada por profissionais do meio acadêmico (professores e<br />

pesquisadores) e estudantes (bolsistas ou voluntários). Esse é o caso do<br />

Monitor <strong>de</strong> Mídia, do Observatório Brasileiro <strong>de</strong> Mídia, do Observatório da<br />

Mídia Regional e do SOS Imprensa.<br />

Quanto mais essas organizações fortalecem sua estrutura e englobam<br />

ações pragmáticas visando mudanças sociais, mais agregam outros<br />

profissionais como advogados, sociólogos e cientistas políticos. A ANDI, pela<br />

abrangência da re<strong>de</strong> que a compõe e pela gama <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s que<br />

<strong>de</strong>sempenha, além da observação e análise da mídia apresenta a estrutura<br />

hierárquica mais complexa do grupo consi<strong>de</strong>rado. Possui <strong>um</strong> conselho<br />

diretor formado por profissionais das mais diversas áreas: cientistas<br />

44


políticos, acadêmicos, sociólogos, psicólogos, consultores, arquitetos,<br />

educadores, geógrafos, filósofos, entre outros. Além disso, sua estrutura<br />

operacional é bem <strong>de</strong>finida, com secretária executiva, assessores e<br />

coor<strong>de</strong>nadores divididos em vários <strong>de</strong>partamentos. Também são compostos<br />

<strong>de</strong> forma heterogênea o Observatório <strong>de</strong> Imprensa (que conta, sobretudo,<br />

com jornalistas e colaboradores diversos, regulares ou não) e o<br />

Observatório do Direito à Comunicação (que reúne em sua equipe<br />

profissionais da mídia, colaboradores acadêmicos e ativistas políticos).<br />

6. Parcerias<br />

Existem basicamente dois tipos <strong>de</strong> parceria: parceria financeira e<br />

parceria <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s. A primeira constitui as formas <strong>de</strong> financiamento <strong>de</strong><br />

projetos ou do próprio observatório como <strong>um</strong> todo. São geralmente órgãos<br />

governamentais (CNPq, Capes) e fundações nacionais ou internacionais que<br />

fomentam pesquisa (Fundação Ford, por exemplo). Já o segundo tipo <strong>de</strong><br />

parceria, diz respeito à formação <strong>de</strong> <strong>um</strong>a re<strong>de</strong> <strong>de</strong> ação social com<br />

organizações que apresentam objetivos comuns, como a promoção dos<br />

direitos h<strong>um</strong>anos na mídia, por exemplo.<br />

O SOS Imprensa tem como parceiro o CMI – Centro <strong>de</strong> Mídia<br />

In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte. O Observatório <strong>de</strong> Imprensa conta com o apoio da IG<br />

(provedor on<strong>de</strong> o site está alojado), da EMBRAER, da Fundação Ford e do<br />

Núcleo <strong>de</strong> Cultura Ol<strong>de</strong>brech. Já no Observatório do Direito à Comunicação,<br />

apesar dos diversos links presentes na página principal, este possui como<br />

parceiro - expresso <strong>de</strong> forma direta no site como “Parceiros <strong>de</strong>ste<br />

Observatório” – somente o Observatório da Imprensa, tendo como apoiador<br />

a Fundação Ford. Contudo, estão presentes em sua página na internet os<br />

links do INDECS – Instituto <strong>de</strong> Estudos e Projetos em Comunicação e<br />

Cultura, Educomunicação – Re<strong>de</strong> CAP; Livre Acesso; Tela Viva; Viração;<br />

Observatório da Imprensa; Mídia & Política; Conselho Nacional <strong>de</strong><br />

Cineclubes; Intervozes. Já o Observatório Brasileiro da Mídia, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua<br />

fundação, é associado ao Media Wacht Global.<br />

Da Re<strong>de</strong> Nacional <strong>de</strong> Observatórios <strong>de</strong> Imprensa – Renoi, fazem parte<br />

- além <strong>de</strong> projetos <strong>de</strong> pesquisa <strong>de</strong> acompanhamento da mídia <strong>de</strong><br />

universida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> todo o país - o Observatório da Imprensa e a Agência <strong>de</strong><br />

Notícias dos Direitos da Infância (ANDI). Esta última é a organização que<br />

45


conta com maior número <strong>de</strong> parceiros. A Unicef, a Organização<br />

Internacional do Trabalho – OIT e a Unesco são exemplos <strong>de</strong> parceiros <strong>de</strong><br />

<strong>um</strong> total <strong>de</strong> quarenta e seis listados na página da ANDI na internet.<br />

No Observatório da Mídia Regional, no mosaico “sites relacionados”,<br />

aparecem vários en<strong>de</strong>reços eletrônicos <strong>de</strong> entida<strong>de</strong>s não-governamentais.<br />

Porém, em sua página inicial, estão presentes os links do PPGCOM<br />

(Programa <strong>de</strong> Pós Graduação em Comunicação da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong><br />

Pernambuco) e da UFPE (Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Pernambuco – cujo site<br />

abriga a página do Observatório). Na home page do Observatório da Mídia<br />

Regional também aparecem - porém estes como parceiros - os links do<br />

Centro <strong>de</strong> Cultura Luiz Freire, CNPq (Conselho Nacional <strong>de</strong> Desenvolvimento<br />

Científico e Tecnológico), CRP-PE (Conselho Regional <strong>de</strong> Psicologia –<br />

Pernambuco), da campanha “Quem financia a baixaria é contra a<br />

cidadania”, da Sinos – Organização para o Desenvolvimento da<br />

Comunicação Social e da Cátedra UNESCO/Umesp <strong>de</strong> Comunicação para o<br />

Desenvolvimento Regional.<br />

As parcerias e os apoios apresentados no presente trabalho foram<br />

registrados no período <strong>de</strong> 8 a 28 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 2008.<br />

7. Missão/Objetivos<br />

Os observatórios estudados po<strong>de</strong>m variar quanto à presença <strong>de</strong><br />

objetivos acadêmicos ou não. Porém, todos fazem referência a <strong>um</strong>a missão<br />

social, combinando comunicação aos mais variados temas. A ANDI, por<br />

exemplo, busca a construção na mídia, e consequentemente na socieda<strong>de</strong>,<br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong>a cultura que priorize a promoção e <strong>de</strong>fesa dos direitos da criança e<br />

do adolescente. A ANDI consi<strong>de</strong>ra que a propagação do acesso aos direitos<br />

sociais básicos à infância e à adolescência é condição fundamental para a<br />

equida<strong>de</strong> social e para o <strong>de</strong>senvolvimento h<strong>um</strong>ano. Seu objetivo principal,<br />

segundo o texto do site, é “investir na formação <strong>de</strong> <strong>um</strong>a cultura jornalística<br />

que investigue e priorize as questões relativas ao universo infanto-juvenil,<br />

sempre sob a ótica <strong>de</strong> seus direitos”.<br />

O Monitor <strong>de</strong> Mídia está voltado para a consulta e pesquisa científica.<br />

No site, afirma ser o “único no Brasil com a linha <strong>de</strong> pesquisa voltada para a<br />

ética e crítica <strong>de</strong> mídia”, sendo o “único veículo <strong>de</strong> crítica da mídia<br />

catarinense”. Já o Observatório Brasileiro <strong>de</strong> Mídia, luta pela <strong>de</strong>mocratização<br />

46


dos meios <strong>de</strong> comunicação e busca formar <strong>um</strong>a re<strong>de</strong> <strong>de</strong> observatórios e<br />

organizações civis que tenham como foco com<strong>um</strong> o <strong>de</strong>sempenho da mídia<br />

na socieda<strong>de</strong>.<br />

O Observatório do Direito à Comunicação tenta formular <strong>um</strong> espaço<br />

<strong>de</strong> acompanhamento, fiscalização e discussão sobre as políticas públicas<br />

para a comunicação social. Assim também estrutura-se o Observatório da<br />

Mídia Regional, reunindo <strong>um</strong>a série <strong>de</strong> entida<strong>de</strong>s e organizações da<br />

socieda<strong>de</strong> civil em torno dos direitos h<strong>um</strong>anos na mídia e das políticas <strong>de</strong><br />

comunicação. Os objetivos <strong>de</strong>sse observatório ficam expressos já em seu<br />

título, na especificação: “Observatório da Mídia Regional: direitos h<strong>um</strong>anos,<br />

políticas e sistemas.<br />

O Observatório da Imprensa estrutura-se como fór<strong>um</strong> <strong>de</strong> discussão<br />

que reflete e emite comentários sobre os erros da mídia realizando críticas.<br />

“O Observatório da Imprensa propõe-se a funcionar como <strong>um</strong> atento<br />

mediador entre a mídia e os mediados, preenchendo o espaço social, até<br />

agora praticamente vazio”. Realiza, além disso, <strong>um</strong> trabalho <strong>de</strong> informação<br />

a partir <strong>de</strong> <strong>um</strong> jornalismo, predominantemente, opinativo.<br />

O SOS Imprensa também <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a <strong>de</strong>mocratização dos meios e<br />

abre espaço para reflexão a respeito da mídia, divulgando ações contra esta<br />

ou atuando em favor da liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> imprensa. De acordo com o texto da<br />

página na web, “a principal preocupação do SOS Imprensa é o cidadão<br />

com<strong>um</strong>, que não dispõe <strong>de</strong> assessoramento e orientação quando é vítima<br />

<strong>de</strong> abusos da imprensa”. Por isso busca “disponibilizar ao cidadão <strong>um</strong><br />

serviço <strong>de</strong> utilida<strong>de</strong> pública voltado para a promoção <strong>de</strong> <strong>um</strong> melhor<br />

relacionamento entre cidadão e mídia”.<br />

.<br />

8. Sistematização <strong>de</strong> Ativida<strong>de</strong>s<br />

A observação da imprensa apresenta-se como <strong>um</strong>a das ativida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong>senvolvidas pela ANDI, sendo subordinada aos objetivos <strong>de</strong> promover os<br />

direitos da infância e da juventu<strong>de</strong>. Contudo, é o observatório <strong>de</strong> mídia<br />

brasileiro mais citado em observatórios internacionais (FUCATEL e Media<br />

Watch, por exemplo).<br />

Três eixos estratégicos são <strong>de</strong>finidos pela agência: “Mobilização,<br />

Monitoramento e Qualificação”. Essas estratégias são postas em prática a<br />

partir da formação <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s (Re<strong>de</strong> ANDI Brasil e Re<strong>de</strong> ANDI América<br />

47


Latina). Em Pernambuco, tem como parceiro o AUÇUBA – Comunicação e<br />

Educação (<strong>um</strong>a das primeiras organizações do estado a trabalhar a<br />

comunicação como “proposta sociopedagógica <strong>de</strong> ensino e aprendizagem).<br />

No monitoramento da mídia, a ANDI analisa 116 jornais e revistas e<br />

realiza <strong>um</strong>a clipagem <strong>de</strong> notícias a respeito da criança e do jovem. A fim <strong>de</strong><br />

socializar esse material, a agência publica o boletim “A Criança e o<br />

Adolescente na Mídia” e mais <strong>um</strong> res<strong>um</strong>o com as principais notícias e enviaos<br />

para mais <strong>de</strong> 15 mil contatos. Para difundir as análises realizadas, a<br />

ANDI produz mais duas publicações - que estão disponíveis no site - sobre<br />

crianças e adolescentes nos meios <strong>de</strong> comunicação: “Infância na Mídia” e “A<br />

Mídia dos Jovens”, respectivamente. Entre outras ações, a ANDI promove<br />

ainda cursos <strong>de</strong> qualificação para estudantes <strong>de</strong> jornalismo e prêmios como<br />

o “Jornalista Amigo da Criança” e o “Prêmio Tim Lopes <strong>de</strong> Jornalismo<br />

Investigativo”, para incentivar a produção jornalística que atenda aos<br />

direitos da infância e da juventu<strong>de</strong>.<br />

O Monitor <strong>de</strong> Mídia também tem o foco voltado para a imprensa<br />

escrita, tendo <strong>um</strong> só caso <strong>de</strong> pesquisa no jornalismo televisivo. Analisa os<br />

principais jornais <strong>de</strong> Santa Catarina: A Notícia, Diário Catarinense, Jornal <strong>de</strong><br />

Santa Catarina. Também realiza <strong>um</strong>a avaliação crítica sobre os conteúdos<br />

dos jornais, ressaltando a confiabilida<strong>de</strong> da notícia, observa a clareza, o<br />

equilíbrio, a novida<strong>de</strong>, a singularida<strong>de</strong> e a contextualização da notícia. Sua<br />

única pesquisa voltada para o meio televisivo intitula-se “Os fatos e as<br />

versões na telinha – Diagnóstico do telejornalismo regional do Vale do<br />

Itajaí”. Neste estudo, investigaram-se os perfis dos telejornais veiculados<br />

em emissoras <strong>de</strong> canais abertos. Vinculada à ética e à crítica da mídia, a<br />

pesquisa avaliou a forma <strong>de</strong> tratamento dos diversos grupos da socieda<strong>de</strong>:<br />

como são ouvidos, representados e tratados nas informações veiculadas.<br />

O Monitor <strong>de</strong> Mídia divulga suas ações por meio <strong>de</strong> artigos publicados<br />

em livros, CD-ROM e no seu próprio site e <strong>de</strong> outros observatórios. Além<br />

disso, produziu <strong>um</strong> e-book com os cem primeiros diagnósticos <strong>de</strong> mídia e<br />

publicou a cartilha “Diálogos <strong>de</strong> Mídia e Educação”.<br />

O Observatório Brasileiro <strong>de</strong> Mídia tanto <strong>de</strong>senvolve metodologia <strong>de</strong><br />

pesquisa científica em comunicação como busca organizar <strong>um</strong> ambiente <strong>de</strong><br />

discussão e organização <strong>de</strong> acadêmicos, jornalistas e pessoas interessadas<br />

em mídia. Realiza estudos com os principais jornais impressos <strong>de</strong> São<br />

48


Paulo: Folha <strong>de</strong> São Paulo, O Estado <strong>de</strong> São Paulo, Diário <strong>de</strong> São Paulo,<br />

Agora e Jornal da Tar<strong>de</strong>. Seu primeiro trabalho foi realizado em 2004 (antes<br />

mesmo <strong>de</strong> sua fundação ter sido concretizada, em 2005) e pesquisou a<br />

cobertura que esses diários dispensavam às eleições municipais. Outra<br />

ativida<strong>de</strong> do Observatório Brasileiro <strong>de</strong> Mídia é a promoção <strong>de</strong> <strong>de</strong>bates em<br />

eventos, como o Fór<strong>um</strong> Social Mundial <strong>de</strong> Porto Alegre, sobre a<br />

<strong>de</strong>mocratização do acesso à produção, veiculação e cons<strong>um</strong>o da<br />

informação.<br />

Já o Observatório do Direito à Informação, tem a <strong>de</strong>mocratização dos<br />

meios como <strong>um</strong>a <strong>de</strong> suas principais temáticas. Dessa forma, reúne,<br />

organiza e disponibiliza informações úteis a outras entida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> luta pelo<br />

direito à comunicação. Além <strong>de</strong> fomentar <strong>um</strong> espaço <strong>de</strong> discussão e<br />

divulgação das políticas <strong>de</strong> comunicação, o observatório serve à socieda<strong>de</strong><br />

como <strong>um</strong> todo, promovendo, embasando e fortalecendo intervenções civis<br />

nessas políticas.<br />

Com o formato <strong>de</strong> <strong>um</strong> jornal eletrônico, o Observatório da Imprensa<br />

disponibiliza artigos e notícias sobre a ativida<strong>de</strong> jornalística e outras<br />

relacionadas à mídia, como a propaganda, por exemplo. Analisa, sobretudo,<br />

o jornalismo imprenso, mas também o radiofônico, o televisivo e a<br />

publicida<strong>de</strong>. Suas análises são realizadas <strong>de</strong> forma assistemática, já que<br />

não se enquadra nas metodologias <strong>de</strong> pesquisa acadêmicas. Conta, sim,<br />

com <strong>um</strong>a ampla re<strong>de</strong> <strong>de</strong> colaboradores. São profissionais do jornalismo, da<br />

mídia e outros que contribuem com o envio <strong>de</strong> artigos, comentários ou<br />

participações em <strong>de</strong>bates. Além disso, possui <strong>um</strong> programa <strong>de</strong> televisão<br />

intitulado “Observatório da Imprensa”, que é transmitido em Pernambuco,<br />

pela TV Universitária.<br />

Apesar <strong>de</strong> os artigos e clippings com proposta inicial <strong>de</strong> serem<br />

mensais não se concretizarem, o SOS Imprensa extrapola os limites <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />

ativida<strong>de</strong> acadêmica voltada para a pesquisa e <strong>de</strong>senvolve ativida<strong>de</strong>s<br />

importantes junto à socieda<strong>de</strong>. Pratica o serviço <strong>de</strong> ouvidoria pública que<br />

tenta orientar pessoas prejudicadas pela mídia. Em suas pesquisas,<br />

acompanha noticiários e programações e promove seminários, <strong>de</strong>bates e<br />

apresentação <strong>de</strong> trabalhos em eventos especializados.<br />

De acordo com o site, o SOS Imprensa compreen<strong>de</strong> três formas <strong>de</strong><br />

apelos: a primeira relacionada com erros e abusos da imprensa; a segunda,<br />

49


ao contrário, a imprensa representa <strong>um</strong>a instância <strong>de</strong> recurso do cidadão e<br />

do interesse público; e a terceira se manifesta quando a própria imprensa<br />

está em risco, seja em relação à liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão ou quando se trata<br />

<strong>de</strong> ameaças, agressões e assassinatos que, diariamente e em todo o<br />

mundo, vitimam jornalistas. Seu serviço básico é o funcionamento <strong>de</strong> <strong>um</strong><br />

“Disque-Imprensa”, semente do que se preten<strong>de</strong> transformar em <strong>um</strong>a<br />

Ouvidoria Pública <strong>de</strong> Imprensa.<br />

O Observatório da Mídia Regional sistematiza suas ativida<strong>de</strong>s<br />

pautando-se pela análise dos conteúdos midiáticos veiculados nos meios <strong>de</strong><br />

comunicação pernambucanos, com foco em questões <strong>de</strong> gênero, racial,<br />

religiosa, <strong>de</strong> orientação sexual, <strong>de</strong> idosos, criança e adolescente, <strong>de</strong> pessoa<br />

com <strong>de</strong>ficiência, entre outros. Nesse momento, duas ações estão em<br />

andamento, ambas relacionadas com publicida<strong>de</strong>, sendo <strong>um</strong>a no radio e<br />

outra na televisão. Além disso, também são <strong>de</strong>senvolvidas ações que visam<br />

à <strong>de</strong>mocratização da informação e do conhecimento. Essas ações são<br />

realizadas em encontros com a socieda<strong>de</strong> civil organizada, que abordam a<br />

forma como os direitos h<strong>um</strong>anos vêm sendo tratados nos espaços da mídia<br />

e divulgam seus instr<strong>um</strong>entos nacionais e internacionais <strong>de</strong> proteção e<br />

exigibilida<strong>de</strong>. Além disso, busca contribui regionalmente com a campanha<br />

“Quem financia a baixaria é contra a cidadania”, emitindo relatórios sobre a<br />

programação midiática local.<br />

9. Divulgação e Contato Social<br />

As formas <strong>de</strong> divulgação a que os observatórios brasileiros recorrem<br />

variam <strong>de</strong> programas <strong>de</strong> rádio e TV ao lançamento <strong>de</strong> livros e informativos<br />

sobre o próprio observatório ou a respeito <strong>de</strong> pesquisas <strong>de</strong>senvolvidas. Mas<br />

é em suas páginas na web que os media watches encontram o melhor<br />

veículo <strong>de</strong> comunicação, seja com os cidadãos em particular, seja com<br />

instituições <strong>de</strong> pesquisa e com a socieda<strong>de</strong> civil organizada. Esse é <strong>um</strong><br />

exemplo <strong>de</strong> concretização das expectativas sobre o possível papel da<br />

Internet na expansão dos esforços comunicativos do setor <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senvolvimento social.<br />

Por meio <strong>de</strong> suas páginas na internet, po<strong>de</strong>-se conhecer não só a<br />

estrutura do observatório, mas também as ações <strong>de</strong>sempenhadas. Além<br />

disso, todos os observatórios estudados possuem meios <strong>de</strong> contato com o<br />

50


público expostos em suas páginas eletrônicas em formato <strong>de</strong> template ou<br />

disponibilizando seus en<strong>de</strong>reços eletrônicos para contato. Dos sete<br />

observatórios estudados, cinco (Observatório do Direito à Informação,<br />

ANDI, Monitor <strong>de</strong> Mídia, Observatório da Mídia Regional e Observatório<br />

Brasileiro <strong>de</strong> Mídia) fazem referência a outros observatórios <strong>de</strong> mídia<br />

brasileiros em sua web page. Isso <strong>de</strong>monstra a re<strong>de</strong> <strong>de</strong> ligação que esses<br />

mecanismos <strong>de</strong> acompanhamento da mídia tentam formar em prol da<br />

melhoria da qualida<strong>de</strong> midiática.<br />

Como foi mencionado, alguns observatórios contam com programas<br />

<strong>de</strong> televisão (Monitor <strong>de</strong> Mídia, SOS Imprensa e Observatório da Imprensa).<br />

Contudo, a maioria disponibiliza apenas <strong>um</strong> en<strong>de</strong>reço <strong>de</strong> e-mail ou template<br />

para contato.<br />

No caso do SOS Imprensa, além do assessoramento público, também<br />

é realizado <strong>um</strong> acompanhamento dos noticiários e programações, com<br />

vistas à realização <strong>de</strong> <strong>de</strong>bates, seminários e apresentação <strong>de</strong> trabalhos em<br />

fóruns especializados. Há ainda o programa “SOS IMPRENSA”, que é<br />

gravado quinzenalmente nos estúdios da TV Cida<strong>de</strong> Livre e vai ao ar, ao<br />

vivo, às 16h, sempre às sextas-feiras, sendo reprisado durante a semana. O<br />

programa é produzido pelos integrantes do projeto, com exibição pelo canal<br />

8 da NET ou pelo site da TV Cida<strong>de</strong> Livre. O SOS Imprensa também<br />

disponibiliza no site <strong>um</strong> ví<strong>de</strong>o <strong>de</strong> apresentação para download.<br />

O programa televisivo do Monitor <strong>de</strong> Mídia tem o mesmo nome do<br />

observatório. Com duração <strong>de</strong> trinta minutos, o programa é veiculado pela<br />

TV Univali - canal vinte da Viacabo TV - semanalmente às terças-feiras. O<br />

lema do “Monitor <strong>de</strong> Mídia”, que vai ao ar às 22h30, é “comunicação e<br />

ciência sem frescura”. O programa é produzido pelo projeto <strong>de</strong> pesquisa e<br />

conta com o apoio da universida<strong>de</strong>. Além da produção para a TV, o Monitor<br />

<strong>de</strong> Mídia mantém <strong>um</strong> blog e <strong>um</strong>a comunida<strong>de</strong> no orkut.<br />

O Observatório Brasileiro <strong>de</strong> Mídia disponibiliza dois en<strong>de</strong>reços <strong>de</strong> e-<br />

mail e dois telefones para contato em sua página na web. Já no site da<br />

ANDI, encontram-se os vários telefones <strong>de</strong> cada setor da agência, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />

assessoria <strong>de</strong> projetos até o núcleo <strong>de</strong> monitoramento <strong>de</strong> mídia e<br />

estatística. Ao todo, são disponibilizados trinta e três números <strong>de</strong> telefone.<br />

Existe ainda <strong>um</strong> template intitulado “Fale com a ANDI”. O Observatório do<br />

Direito à Comunicação também conta com e-mail e template para contato.<br />

51


Já o Observatório da Imprensa, com <strong>um</strong>a estrutura que tem se<br />

solidificado com o passar dos anos, dispõe <strong>de</strong> <strong>um</strong>a seção chamada “Você no<br />

OI”, com tamplate <strong>de</strong> “fale conosco”, além <strong>de</strong> telefones e e-mails para<br />

contato e a possibilida<strong>de</strong> do leitor enviar artigos. Há, ainda, o programa do<br />

Observatório da Imprensa, que é produzido pela TVE do Rio <strong>de</strong> Janeiro e<br />

pela TV Cultura <strong>de</strong> São Paulo, com transmissão por diversas emissoras nas<br />

terças-feiras às 22h40min para várias cida<strong>de</strong>s do país. Ao todo, são três<br />

links para contato disponíveis no observatório: “Fale Conosco”, “En<strong>de</strong>reços<br />

e Telefones” e “Envie seu Artigo”. Existe ainda o “OI no Rádio” - programa<br />

diário transmitido pela rádio Cultura FM <strong>de</strong> São Paulo, rádios MEC AM e FM<br />

do Rio <strong>de</strong> Janeiro, e rádios Nacional AM e FM <strong>de</strong> Brasília. Os áudios dos<br />

programas, na forma <strong>de</strong> <strong>um</strong> blog, estão disponíveis também no site do<br />

Observatório da Imprensa.<br />

Além do site e do en<strong>de</strong>reço <strong>de</strong> e-mail, o Observatório da Mídia<br />

Regional utiliza <strong>um</strong> template para <strong>de</strong>núncias <strong>de</strong> violação dos direitos<br />

h<strong>um</strong>anos na mídia. Além disso, várias ações <strong>de</strong> divulgação e <strong>de</strong> tentativas<br />

<strong>de</strong> parceria são realizadas junto a entida<strong>de</strong>s civis. O Observatório da Mídia<br />

Regional realiza reuniões semanais abertas ao público com o intuito <strong>de</strong><br />

agregar e capacitar colaboradores.<br />

10. Conclusão<br />

Todas as instituições citadas anteriormente estão voltadas, <strong>de</strong><br />

alg<strong>um</strong>a forma, para o progresso no âmbito da <strong>de</strong>mocracia. Os observatórios<br />

servem como canal <strong>de</strong> comunicação entre o público, a socieda<strong>de</strong> civil<br />

organizada, o Estado, a aca<strong>de</strong>mia e as empresas do setor. Os observatórios<br />

surgiram para criar e fortalecer <strong>um</strong> novo espaço <strong>de</strong> diálogo e difusão <strong>de</strong><br />

conhecimento sobre a produção midiática e sobre os interesses públicos. De<br />

forma geral, os observatórios <strong>de</strong> mídia brasileiros preten<strong>de</strong>m, por meio <strong>de</strong><br />

<strong>um</strong>a re<strong>de</strong> regional e nacional, esten<strong>de</strong>r o acompanhamento sistemático da<br />

produção midiática. Também por isso a implantação <strong>de</strong> <strong>um</strong> sistema <strong>de</strong><br />

cooperação é tão importante. O estabelecimento <strong>de</strong> parcerias, o<br />

fortalecimento da articulação política, a busca por colaboradores e outros<br />

financiadores têm a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mobilizar recursos e viabilizar o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> mecanismos <strong>de</strong> sustentabilida<strong>de</strong>, a longo prazo, dos<br />

projetos.<br />

52


Todos os casos explanados e outros que fazem parte do universo<br />

analisado suscitam <strong>um</strong>a discussão sobre a lógica que rege os meios <strong>de</strong><br />

comunicação social: hoje, confundidos com indústrias culturais. A<br />

comunicação – ato e meio – foi transfigurada em importante peça para a<br />

manutenção do mercado. Nas concessões públicas, como as <strong>de</strong> rádio e<br />

televisão, as finalida<strong>de</strong>s comerciais extrapolam os objetivos sociais que<br />

essas concessões <strong>de</strong>veriam ass<strong>um</strong>ir. O direito público é suplantado pelo<br />

interesse privado. E é na luta pela efetivação da comunicação pública e pelo<br />

c<strong>um</strong>primento da Lei e dos acordos <strong>de</strong>mocraticamente ass<strong>um</strong>idos que os<br />

observatórios <strong>de</strong> mídia brasileiros se estabelecem.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ALBORNOZ, Luís A; HERSCHMANN, Micael. Os observatórios iberoamericanos<br />

<strong>de</strong> informação, comunicação e cultura: balanço <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />

breve trajetória. 2006. Disponível em: .<br />

Acesso em: 31 jan. 2008.<br />

HERRERA, Susana. Los observatorios <strong>de</strong> medios en Latinoamérica: una<br />

realidad em construcción. Intercom – Revista Brasileira <strong>de</strong> Ciências da<br />

Comunicação, v. 29, n. 2, p. 15- 37, 2006a.<br />

HERRERA, Susana; CHRISTOFOLETTI, Rogério. Mídia e <strong>de</strong>mocracia: <strong>um</strong><br />

perfil<br />

dos observatórios <strong>de</strong> meios na América Latina. VIII Congresso<br />

Latinoamericano <strong>de</strong> Investigadores <strong>de</strong> la Comunicación,<br />

Comunicación y Gobernabilidad en América Latina, Río Gran<strong>de</strong> do Sul,<br />

Brasil, 19-21 jul. 2006b.<br />

MAIORANO, Jorge Luis. Los observatorios <strong>de</strong> <strong>de</strong>rechos h<strong>um</strong>anos como<br />

instr<strong>um</strong>ento <strong>de</strong> fortalecimiento <strong>de</strong> la sociedad civil. Revista Probidad, n.<br />

24, 2003.<br />

MEDIOS PARA LA PAZ. ¿Por qué un observatorio? 2005. Disponível em:<br />

. Acesso<br />

em: 15 mar. 2007.<br />

REBOUÇAS, Edgard. Os direitos à comunicação e o regime <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong><br />

intelectual. In: MARQUES DE MELO, José; GOBBI, M.C.; SATHLER, L. Mídia<br />

Cidadã. São Bernardo do Campo: UMESP, 2006<br />

SITES CONSULTADOS:<br />

http://www.andi.org.br/<br />

http://www.direitoacomunicacao.org.br/<br />

http://www.observatoriodaimprensa.com.br/<br />

http://www.observatorio<strong>de</strong>midia.org.br<br />

53


http://www.ufpe.br/observatorio<br />

http://www.univali.br/monitor<br />

http://www.unb.br/fac/sos/site/in<strong>de</strong>x.php<br />

54


AS RÁDIOS COMUNITÁRIAS E O DIREITO<br />

Roberto Cordoville Efrem <strong>de</strong> Lima Filho 65<br />

1. Introdução: o que cabe ao direito.<br />

Cost<strong>um</strong>a-se esperar <strong>de</strong> <strong>um</strong>(a) “operador do direito”, o olhar jurídico<br />

sobre <strong>de</strong>terminado assunto. Elege-se <strong>um</strong> problema e pergunta-se ao/à<br />

jurista: mas então, qual é a visão do direito? Daí normalmente vem <strong>um</strong>a<br />

resposta repleta <strong>de</strong> sentimento <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> que muito provavelmente é<br />

aceita. Afinal a quem, se não ao/à jurista, po<strong>de</strong> competir manejar os<br />

institutos jurídicos, os princípios do direito, a arg<strong>um</strong>entação baseada em<br />

normas e, por fim, revelar a verda<strong>de</strong> do direito?<br />

Afirmo, <strong>de</strong> antemão, que <strong>de</strong> mim não se <strong>de</strong>ve esperar tamanha<br />

função. Primeiro porque não creio ser ela alcançável, nem <strong>de</strong>sejável. Direito<br />

é i<strong>de</strong>ologia, política. É algo construído no mundo, por gente, nada tendo <strong>de</strong><br />

natural. É histórico, mutável. Qualquer leitura que <strong>de</strong>le seja feita é <strong>um</strong>a<br />

interpretação, “<strong>um</strong>a” diante <strong>de</strong> outras possibilida<strong>de</strong>s. Segundo porque não é<br />

bem por ser “<strong>um</strong> jurista” que estou a escrever este texto. Por certo meus<br />

poucos estudos no direito venham a contribuir para o reconhecimento, no<br />

interior do campo jurídico, do meu lugar <strong>de</strong> fala. Mas <strong>de</strong>finitivamente não<br />

são esses conhecimentos as raízes <strong>de</strong> minha escrita. Escrevo porque sou<br />

<strong>um</strong> militante, porque <strong>de</strong>fendo alguns interesses e sujeitos, porque explicito<br />

que tenho <strong>um</strong> lado no mundo.<br />

A<strong>de</strong>mais, escrevo porque julgo ser isso ciência e que ciência longe<br />

<strong>de</strong> pressupor neutralida<strong>de</strong>, requer sincerida<strong>de</strong>. Tomo emprestado <strong>de</strong><br />

Antônio Gramsci (1966, p. 12) a expressão “concepção <strong>de</strong> mundo” para<br />

tentar explicar o que quero dizer. Segundo o marxista italiano somos<br />

sempre “homens-coletivos” e “mulheres-coletivas”. Isso porque partilhamos<br />

<strong>um</strong>a linguagem, “que é <strong>um</strong> conjunto <strong>de</strong> conceitos <strong>de</strong>terminados e não <strong>de</strong><br />

65 Roberto Cordoville Efrem <strong>de</strong> Lima Filho é estudante do curso <strong>de</strong> mestrado do Programa <strong>de</strong> Pósgraduação<br />

em Direito da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Pernambuco. É militante do NAJUP – Núcleo <strong>de</strong><br />

Assessoria Jurídica Popular – Direito nas Ruas e do MNDH – Movimento Nacional <strong>de</strong> Direitos H<strong>um</strong>anos,<br />

em Pernambuco.<br />

55


palavras gramaticalmente vazias <strong>de</strong> conteúdo” (1966, p. 11). A linguagem<br />

carrega valores dos quais nos apossamos mesmo que inconscientemente.<br />

Esses valores são historicamente criados e fazem-se presentes <strong>de</strong> tal forma<br />

em nosso dia-a-dia que é como se eles – os valores – sempre estivessem<br />

estado lá, como se não houvessem sido elaborados por gente, como se<br />

fossem naturais. Os valores, e nossas experiências <strong>de</strong> vida, formam as<br />

concepções <strong>de</strong> mundo que partilhamos. Porque esses valores não são <strong>um</strong><br />

dado, mas <strong>um</strong> construto, po<strong>de</strong>m ser modificados. Para isso, no entanto, é<br />

necessário que se tenha consciência <strong>de</strong> que esses valores existem, <strong>de</strong> que<br />

são históricos e não naturais. Essa consciência se dá justamente “no terreno<br />

da i<strong>de</strong>ologia” (1966, p. 134).<br />

Qualquer interpretação que <strong>um</strong> sujeito faça do direito é <strong>um</strong>a ação<br />

que parte <strong>de</strong> <strong>um</strong>a concepção <strong>de</strong> mundo, sendo, assim, política. Impossível<br />

se torna, <strong>de</strong>sse modo, <strong>um</strong>a pretensão <strong>de</strong> revelação “da única verda<strong>de</strong>” ou<br />

“do olhar jurídico”. Ambos inexistem. Aquilo que se tem chamado <strong>de</strong> “a<br />

verda<strong>de</strong> jurídica” não passa, nas palavras <strong>de</strong> Pierre Bourdieu (2005, p. 150)<br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong> arbitrário dissimulado pela promoção do seu próprio<br />

<strong>de</strong>sconhecimento. “Um olhar” é tido como “o olhar” porque sofre o primeiro<br />

<strong>um</strong>a “consagração” no campo jurídico. Essa consagração “submete os<br />

objetos, as pessoas e as situações sob sua alçada, a <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong><br />

promoção ontológica que faz lembrar <strong>um</strong>a transubstanciação” (2005, p.<br />

150). Dá-se como se estivesse inscrito na natureza daquele “<strong>um</strong> olhar” que<br />

ele é “o olhar”, único, verda<strong>de</strong>iro.<br />

A eleição da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> interpretação que será consagrada<br />

cost<strong>um</strong>a ser resultado das <strong>lutas</strong> simbólicas existentes no interior do campo<br />

jurídico e das relações objetivas <strong>de</strong>sse campo com o campo do po<strong>de</strong>r<br />

(BOURDIEU, 2007, p. 241). Por exemplo: qual é a interpretação consagrada<br />

no campo jurídico acerca das rádios comunitárias? Para chegar a essa<br />

resposta teríamos <strong>de</strong> analisar a pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> teses internas ao campo<br />

acerca das rádios comunitárias, mas também a relação dos sujeitos que<br />

compõem o campo jurídico com as forças externas ao campo, por exemplo,<br />

com os meios <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> massa, com o empresariado da<br />

comunicação e com as próprias rádios comunitárias e os movimentos<br />

populares. Isso porque o campo <strong>de</strong>tém autonomia relativa com relação às<br />

estruturas sociais.<br />

56


Essa “autonomia relativa” apontada por Bourdieu é maior ou menor<br />

a <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r do “papel <strong>de</strong>terminante que (o campo) <strong>de</strong>sempenha na<br />

reprodução social” (2007, p. 251). No caso do campo jurídico, por exemplo,<br />

essa autonomia relativa é bastante limitada. “Quer isto dizer que as<br />

mudanças externas nele se retraduzem mais diretamente e que os conflitos<br />

internos nele são mais diretamente resolvidos pelas forças externas” (2007,<br />

p. 251). Como no mundo externo ao campo jurídico existem forças<br />

hegemônicas 66 , elas terminam por conduzir as posições consagradas<br />

relevantes no interior do campo. Visto que essas forças hegemônicas assim<br />

o são porque relacionadas às classes dominantes:<br />

Segue-se daqui que as escolhas que o corpo (jurídico)<br />

<strong>de</strong>ve fazer, em cada momento, entre interesses,<br />

valores e visões <strong>de</strong> mundo diferentes ou antagonistas<br />

têm poucas probabilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>sfavorecer os<br />

dominantes, <strong>de</strong> tal modo o etos dos agentes jurídicos<br />

que está na sua origem e a lógica imanente dos textos<br />

jurídicos que são invocados tanto para os justificar<br />

como para os inspirar estão a<strong>de</strong>quados aos interesses,<br />

aos valores e à visão do mundo dos dominantes.<br />

(BOURDIEU, 2007, p. 242).<br />

Não se quer com isso dizer que o direito seja mero reflexo das<br />

estruturas econômicas e das relações <strong>de</strong> classe. Não o é. Sua autonomia<br />

relativa contraria tal refletivida<strong>de</strong>. Não seria possível dissimular arbitrários e<br />

dar cabo <strong>de</strong> hegemonias se as relações <strong>de</strong>siguais presentes na socieda<strong>de</strong><br />

estivessem <strong>de</strong> pronto refletidas no direito. Mas o direito, assim como o<br />

Estado, é sim instr<strong>um</strong>ento “para a<strong>de</strong>quar a socieda<strong>de</strong> civil à estrutura<br />

econômica”. Acontece que “o Estado <strong>de</strong>ve ‘querer’ fazer isto, ou, em outras<br />

palavras o Estado <strong>de</strong>ve ser dirigido pelos representantes da modificação<br />

ocorrida na estrutura econômica” (GRAMSCI, 1966, p. 306).<br />

É só notar a “bancada do latifúndio midiático” no Congresso<br />

Nacional brasileiro para perceber que os/as representantes das classes<br />

dominantes e dos meios <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> massa lá estão dirigindo a<br />

produção legislativa. Além disso, não é difícil reconhecer que os/as<br />

66 “La hegemonía es esto: capacidad <strong>de</strong> unificar a través <strong>de</strong> la i<strong>de</strong>ología y <strong>de</strong> mantener unido un bloque<br />

social que, sin embargo, no es homogéneo, sino marcado por profundas contradicciones <strong>de</strong> clase. Una<br />

clase es hegemónica, dirigente y dominante, mientras con su acción política, i<strong>de</strong>ológica, cultural, logra<br />

mantener junto a sí un grupo <strong>de</strong> fuerzas heterogéneas e impi<strong>de</strong> que la contradicción existente entre estas<br />

fuerzas estalle, produciendo una crisis en la i<strong>de</strong>ología dominante y conduciendo a su rechazo, el que<br />

coinci<strong>de</strong> con la crisis política <strong>de</strong> la fuerza que está en el po<strong>de</strong>r” (GRUPPI, 1978).<br />

57


estudantes das escolas jurídicas raramente compreen<strong>de</strong>m o sentido <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />

rádio comunitária. A maioria <strong>de</strong>les(as), na qual me incluo, nunca residiu<br />

n<strong>um</strong>a comunida<strong>de</strong> periférica. A maioria <strong>de</strong>sses estudantes também nunca<br />

militou junto a movimentos populares, nunca foi apresentado a <strong>um</strong> meio<br />

popular <strong>de</strong> comunicação e organização comunitárias.<br />

As rádios comunitárias, portanto, não estão entre os sujeitos com<br />

capital simbólico suficiente para interferir <strong>de</strong>cisivamente nas relações<br />

objetivas supracitadas entre o campo jurídico e o campo do po<strong>de</strong>r. As rádios<br />

comunitárias formam a contra-hegemonia na socieda<strong>de</strong>. São elas sujeitos<br />

promotores do diálogo nas classes subalternas. São sujeitos dispostos à<br />

libertação dos(as) oprimidos(as) (FREIRE, 1987) e, por isso, têm<br />

encontrado resistências no direito que, aí sim, a mim coube discutir neste<br />

texto.<br />

2. A legislação acerca das rádios comunitárias.<br />

Art. 1.º Denomina-se Serviço <strong>de</strong> Radiodifusão<br />

Comunitária a radiodifusão sonora, em freqüência<br />

modulada, operada em baixa potência e cobertura<br />

restrita, outorgada a fundações e associações<br />

comunitárias, sem fins lucrativos, com se<strong>de</strong> na<br />

localida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prestação do serviço.<br />

O caput <strong>de</strong> artigo acima transcrito pertence à Lei 9.612 <strong>de</strong><br />

1998, que institui o serviço <strong>de</strong> radiodifusão comunitária e dá outras<br />

providências. Compõem ainda o artigo em questão dois parágrafos, sendo o<br />

primeiro <strong>de</strong>les limitador da potência <strong>de</strong>ssas rádios em 25 watts e o segundo<br />

<strong>de</strong>finidor da expressão “cobertura restrita” como aquela <strong>de</strong>stinada ao<br />

atendimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada comunida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> <strong>um</strong> bairro e/ou vila. O caput<br />

do Art. 1º inicia bem <strong>um</strong>a lei que se <strong>de</strong>senvolve mal.<br />

Os serviços <strong>de</strong> radiodifusão e <strong>de</strong> telecomunicação foram durantes<br />

décadas regulados pelo Antigo Código Brasileiro <strong>de</strong> Telecomunicações (Lei<br />

4.117/62) que fazia dos serviços <strong>de</strong> radiodifusão <strong>um</strong>a espécie pertencente<br />

ao gênero das telecomunicações. Previa o Art. 6º da lei da década <strong>de</strong> 60:<br />

Art. 6. º Quanto aos fins a que se <strong>de</strong>stinam, as<br />

telecomunicações assim se classificam:<br />

58


d) serviço <strong>de</strong> radiodifusão, <strong>de</strong>stinado a ser recebido<br />

direta e livremente pelo público em geral,<br />

compreen<strong>de</strong>ndo radiodifusão sonora e televisão;<br />

O supracitado artigo incluía os meios <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> rádio e TV<br />

entre os serviços <strong>de</strong> telecomunicações. A radiodifusão era, portanto,<br />

também telecomunicação. Diferentemente fazem a Constituição Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong><br />

1988 e o atual Código Brasileiro <strong>de</strong> Telecomunicação (Lei 9.472/97). A<br />

Constituição, em seu artigo 21, estabelece que compete à União:<br />

Art. 21. XII - Explorar, diretamente ou mediante<br />

autorização, concessão ou permissão:<br />

a) os serviços <strong>de</strong> radiodifusão sonora <strong>de</strong> sons e<br />

imagens;”<br />

Prevê também a Constituição Fe<strong>de</strong>ral, agora em seu artigo 22, que:<br />

Art. 22. Compete privativamente à União legislar<br />

sobre:<br />

IV - águas, energia, informática, telecomunicações e<br />

radiodifusão”.<br />

Esses artigos <strong>de</strong>monstram, assim, que a Constituição Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong><br />

1988 diferencia radiodifusão <strong>de</strong> telecomunicação, visto que, fosse a<br />

primeira espécie da segunda na Constituição atual como ocorria no Código<br />

da década <strong>de</strong> 60, não haveria <strong>um</strong> porquê para o Art. 22 citar as duas e não<br />

apenas a última. As palavras no texto não existem por nada.<br />

No que tange ao artigo 21, importa dizer, que sofreu seu texto<br />

modificações durante o primeiro Governo <strong>de</strong> Fernando Henrique Cardoso,<br />

através da Emenda Constitucional nº. 8 promulgada em 1995 que, ao criar<br />

<strong>um</strong> sistema mais brando para as telecomunicações, permitiu a privatização<br />

dos seus serviços. Tal Emenda vinculou a exploração dos serviços <strong>de</strong><br />

telecomunicação a <strong>um</strong>a lei específica sobre a temática, prevendo inclusive a<br />

criação <strong>de</strong> <strong>um</strong> órgão regulador. Essa lei surgiu no ano <strong>de</strong> 1997,<br />

aproximadamente dois anos <strong>de</strong>pois da Emenda nº. 8, e ficou conhecida<br />

como o “Novo Código Brasileiro <strong>de</strong> Telecomunicação”. Ao órgão regulador<br />

<strong>de</strong>u-se o nome <strong>de</strong> ANATEL – Agência Nacional <strong>de</strong> Telecomunicações.<br />

59


A mesma diferenciação entre radiodifusão e telecomunicação é feita<br />

no Novo Código Brasileiro <strong>de</strong> Telecomunicação. O artigo 215 <strong>de</strong>ste diploma<br />

legal revoga o antigo código salvo quanto à matéria penal não tratada no<br />

novo código e quanto aos preceitos relativos à radiodifusão. Apesar <strong>de</strong><br />

tratar sobre a radiodifusão em alguns dos seus artigos, a Lei 9.472/97 a<br />

relega ao antigo código, o que, em verda<strong>de</strong>, é bastante frutífero para os<br />

gran<strong>de</strong>s meios <strong>de</strong> comunicação. Estes continuam a se manter regulados por<br />

<strong>um</strong>a legislação que nem <strong>de</strong> perto se aproxima <strong>de</strong> suas tecnologias,<br />

fortalecendo-se n<strong>um</strong>a terra, portanto, praticamente sem leis. A legislação<br />

<strong>de</strong> 1962, endurecida através <strong>de</strong> <strong>de</strong>creto pela ditadura militar, nem toca os<br />

gran<strong>de</strong>s meios porque não os acompanha. São normas <strong>de</strong> quatro décadas<br />

atrás que preten<strong>de</strong>m regular meios cujas mudanças não têm freios.<br />

O fato <strong>de</strong> o Novo Código <strong>de</strong> Telecomunicação ter relegado a<br />

radiodifusão à Lei 4.117/62, não revogando esta última completamente,<br />

manteve em situação complicada, por outro lado, as rádios comunitárias.<br />

Apenas <strong>de</strong>z anos após a promulgação da Constituição <strong>de</strong> 1988,<br />

votou-se no Congresso Nacional a normatização reguladora do serviço <strong>de</strong><br />

radiodifusão comunitária, a Lei 9.612/98. A existência <strong>de</strong> <strong>um</strong>a legislação<br />

que regulasse esse serviço e garantisse o direito à comunicação das<br />

comunida<strong>de</strong>s periféricas foi pleito histórico dos movimentos populares. Isso<br />

porque até a Lei 9.612/98 a legislação nacional, nem mesmo a Constituição<br />

Fe<strong>de</strong>ral, utilizava-se da expressão “rádios comunitárias”, não tratando esses<br />

sujeitos com a especificida<strong>de</strong> por eles <strong>de</strong>mandada. As rádios comunitárias<br />

eram então completamente equiparadas aos gran<strong>de</strong>s meios, mas sem as<br />

suas estruturas econômicas e seu capital político, o que fez com que elas<br />

terminassem por sofrer muito com a repressão própria à legislação da<br />

ditadura militar (Lei 4.117/62). Essa repressão se dava principalmente<br />

quando da aplicação da matéria penal da legislação em vigor. Essa matéria<br />

constituía a parte mais repressora da legislação: foi introduzida nela pelo<br />

Decreto-Lei nº. 236 <strong>de</strong> 1967, oriundo do auge da ditadura, das vésperas do<br />

AI-5.<br />

Uma equiparação entre os meios hegemônicos comerciais e os<br />

meios comunitários <strong>de</strong> radiodifusão impossibilita a isonomia. Não<br />

consi<strong>de</strong>rar as diferenças e especificida<strong>de</strong>s entre os gran<strong>de</strong>s meios e os<br />

60


comunitários, tratá-los da mesma maneira, soa no mínimo estranhamente<br />

aos ouvidos <strong>de</strong> qualquer sujeito que <strong>de</strong>fenda a igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s.<br />

Embora não caiba a mim neste texto <strong>de</strong>senvolver <strong>um</strong>a discussão acerca da<br />

assimetria existente entre os meios <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> massa e as rádios<br />

comunitárias, faz-se necessário perceber que a não pon<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> suas<br />

diferenças, mesmo sendo algo gritante, não é resultado <strong>de</strong> mero<br />

esquecimento, nem está aí à toa.<br />

A Lei 9.612/98 viria assim em boa hora para garantir as<br />

especificida<strong>de</strong>s das rádios comunitárias. Viria em boa hora, não veio. Não<br />

tratou da matéria penal em seu texto, mas também não revogou, para<br />

efeitos da radiodifusão comunitária, a parte penal da legislação da década<br />

<strong>de</strong> 60, possibilitando que a maioria dos tribunais continuasse a aplicá-la<br />

contra esses meios populares. Manteve a vinculação <strong>de</strong> obediência das<br />

rádios comunitárias ao disposto no Art. 223 da Constituição Fe<strong>de</strong>ral (ART.<br />

2º), reafirmando assim a equiparação <strong>de</strong>las aos meios <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong><br />

massa, principalmente no tocante à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> outorga <strong>de</strong> concessões,<br />

permissões e autorizações por parte do Estado para a legalização do<br />

serviço.<br />

A Lei que regula o serviço <strong>de</strong> radiodifusão comunitária, portanto,<br />

não diferenciou explicitamente esse serviço dos gran<strong>de</strong>s meios naquilo que<br />

mais <strong>de</strong>mandava diferenciação, ou seja, em sua parte penal. Aqui insisto:<br />

também não por mero esquecimento.<br />

O sistema penal – constituído pela lei, polícia, justiça e<br />

prisão – é o aparelho repressivo do mo<strong>de</strong>rno Estado<br />

capitalista, garantidor <strong>de</strong> relações sociais <strong>de</strong>siguais <strong>de</strong><br />

produção/distribuição material, responsáveis pela<br />

violência estrutural da marginalização, do <strong>de</strong>semprego,<br />

dos baixos salários, da falta <strong>de</strong> moradia, do ensino<br />

precário, da mortalida<strong>de</strong> precoce, do menor<br />

abandonado etc. (SANTOS, 2005, p. 5)<br />

Segundo o professor Juarez Cirino dos Santos, o direito penal<br />

obe<strong>de</strong>ce a <strong>um</strong>a seletivida<strong>de</strong> que consi<strong>de</strong>ra três níveis. No primeiro <strong>de</strong>les, a<br />

lei penal <strong>de</strong>fine que bens jurídicos <strong>de</strong>vem ser por ela tutelados, em razão<br />

das relações <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r das elites econômicas e políticas<br />

dominantes. No segundo nível, dá-se a “estigmatização judicial seletiva dos<br />

indivíduos das classes sociais subalternas, em especial dos marginalizados<br />

61


do mercado <strong>de</strong> trabalho (justiça penal)”. No terceiro nível, finalmente, o<br />

direito penal promove a “repressão penal seletiva <strong>de</strong> indivíduos sem<br />

utilida<strong>de</strong> no processo <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> mais-valia e <strong>de</strong> reprodução ampliada<br />

do capital (prisão)” (SANTOS, 2005, p. 6).<br />

Ocupando as rádios comunitárias o lugar da contra-hegemonia<br />

anteriormente discutido, é <strong>de</strong> se enten<strong>de</strong>r o porquê da equiparação <strong>de</strong>las<br />

aos gran<strong>de</strong>s meios – que, por toda sua estrutura e capital simbólico citados,<br />

não sofrem repressão – justamente na matéria penal. Prevê o Art. 2º da Lei<br />

9.612/98, em referência à Lei 4.117/62:<br />

Art. 2.º O serviço <strong>de</strong> Radiodifusão Comunitária<br />

obe<strong>de</strong>cerá aos preceitos <strong>de</strong>sta Lei e, no que couber,<br />

aos mandamentos da Lei n. 4117, <strong>de</strong> 27 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong><br />

1962, modificada pelo Decreto-Lei n. 236, <strong>de</strong> 28 <strong>de</strong><br />

fevereiro <strong>de</strong> 1967, e <strong>de</strong>mais disposições legais.<br />

Parágrafo único. O serviço <strong>de</strong> Radiodifusão<br />

Comunitária obe<strong>de</strong>cerá o disposto no art. 223 da<br />

Constituição Fe<strong>de</strong>ral.<br />

Po<strong>de</strong>r-se-ia arg<strong>um</strong>entar <strong>de</strong> antemão que o artigo 2º supracitado é<br />

inconstitucional por não respeitar o princípio da isonomia. Ele remete as<br />

rádios comunitárias às normas responsáveis pelos gran<strong>de</strong>s meios. É nisso<br />

que eu acredito visto que, como já dito, nem a Constituição, nem a Lei<br />

4.117/62 escrevem entre seus artigos a expressão “rádios comunitárias”,<br />

não possuindo <strong>um</strong> processo diferenciado para o exercício da comunicação<br />

comunitária.<br />

É preferível, todavia, armar-se <strong>de</strong> outros arg<strong>um</strong>entos além <strong>de</strong>sse da<br />

inconstitucionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>rivada do <strong>de</strong>srespeito à isonomia. Adotar-se-á aqui<br />

o posicionamento do Juiz Fe<strong>de</strong>ral aposentado Paulo Fernando Silveira, autor<br />

da mais completa obra sobre a temática das rádios comunitárias no Brasil.<br />

Segundo o magistrado a diferenciação realizada pela Constituição Fe<strong>de</strong>ral<br />

entre os serviços <strong>de</strong> radiodifusão e os <strong>de</strong> telecomunicação revogou tudo o<br />

que anteriormente era previsto e que ac<strong>um</strong>ulasse na mesma figura – a das<br />

telecomunicações – os dois serviços sob discussão. Assim, a Constituição<br />

Fe<strong>de</strong>ral teria, segundo Silveira, posto abaixo toda a parte da legislação <strong>de</strong><br />

1962 que consi<strong>de</strong>rava ser a radiodifusão <strong>um</strong> tipo <strong>de</strong> telecomunicação.<br />

62


Em primeiro lugar, há <strong>de</strong> se consi<strong>de</strong>rar que a<br />

Constituição Fe<strong>de</strong>ral distinguiu telecomunicações <strong>de</strong><br />

radiodifusão. Logo, on<strong>de</strong> o po<strong>de</strong>r constituinte<br />

distinguiu, o legislador não po<strong>de</strong> ignorar a separação.<br />

Portanto, a elementar telecomunicações não po<strong>de</strong><br />

englobar a radiodifusão, pois a Constituição<br />

<strong>de</strong>terminou a distinção. Tanto é verda<strong>de</strong> que o novo<br />

Código Brasileiro <strong>de</strong> Telecomunicação, em seu art.<br />

183, tipificou o <strong>de</strong>lito correspon<strong>de</strong>nte à ação <strong>de</strong>lituosa<br />

perpetrada contra as telecomunicações somente. Sem<br />

<strong>um</strong>a tipificação específica para radiodifusão, não há<br />

como aproveitar a elementar telecomunicações para<br />

duas figuras penais distintas, relativamente a <strong>um</strong>a só<br />

ação. Nem há <strong>de</strong> falar do efeito residual do termo<br />

telecomunicações , para se manter nele a radiodifusão,<br />

se assim não o quis a própria Constituição e nem<br />

mesmo o Novo Código Brasileiro <strong>de</strong> Telecomunicação<br />

(SILVEIRA, 2001, p. 199).<br />

A interpretação proposta por Paulo Fernando Silveira até então<br />

explicitada com o parágrafo acima nem toca na questão das rádios<br />

comunitárias, restringindo-se apenas à radiodifusão geral. De acordo com<br />

Silveira a norma do Art. 215 da Lei 9.472/97 ao remeter a radiodifusão à<br />

Lei 4.117/62 não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar a distinção realizada pela própria<br />

Constituição entre as figuras da radiodifusão e da telecomunicação. No fim<br />

das contas, a remissão feita pela Lei <strong>de</strong> 1997 àquela <strong>de</strong> 1962 é <strong>um</strong>a<br />

remissão ao quase nada, dado ter a própria Constituição ao diferenciar os<br />

serviços, <strong>de</strong>rrogado tudo que lhes não diferenciava. É <strong>de</strong> se perguntar: e a<br />

radiodifusão ficaria sem <strong>um</strong>a regulamentação? É <strong>de</strong> se respon<strong>de</strong>r com outra<br />

pergunta: a ultrapassada legislação da década <strong>de</strong> 60 regulamenta<br />

efetivamente a radiodifusão dos gran<strong>de</strong>s meios? Deve ela apenas servir à<br />

repressão aos meios populares <strong>de</strong>vido à sua matéria penal?<br />

Mas finalmente, do que se trata a matéria penal presente na Lei<br />

4.117/62, adicionada pelo Decreto <strong>de</strong> 1967? Prevê o Art. 70 da Lei<br />

4.117/62:<br />

Art. 70. Constitui crime punível com a pena <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>tenção <strong>de</strong> 1 (<strong>um</strong>) a 2 (dois) anos, a<strong>um</strong>entada da<br />

meta<strong>de</strong> se houver dano a terceiro, a instalação ou<br />

utilização <strong>de</strong> telecomunicações, sem observância do<br />

disposto nesta Lei e nos regulamentos.<br />

Parágrafo único. Prece<strong>de</strong>ndo ao processo penal, para<br />

os efeitos referidos neste artigo, será liminarmente<br />

63


procedida a busca e apreensão da estação ou aparelho<br />

ilegal.<br />

O artigo 70 da legislação em questão se refere também à figura das<br />

telecomunicações. Esta figura é aquela não-diferenciada anterior à emenda<br />

oitava e à distinção constitucional <strong>de</strong> 1988 entre radiodifusão e<br />

telecomunicação. Não po<strong>de</strong> ser ela, segundo Paulo Fernando Silveira,<br />

recebida pela Constituição <strong>de</strong> 1988, sendo norma sem eficácia, portanto.<br />

Po<strong>de</strong>r-se-ia arg<strong>um</strong>entar – e é isso que faz o posicionamento<br />

hegemônico no Po<strong>de</strong>r Judiciário – que por trás da expressão<br />

“telecomunicação” está também a radiodifusão e que, com a remissão feita<br />

pelo Novo Código Brasileiro <strong>de</strong> Telecomunicação, <strong>de</strong>ver-se-ia excluir da<br />

figura “telecomunicações” a telecomunicação propriamente dita, <strong>de</strong>ixando<br />

apenas seu resíduo, qual seja, a radiodifusão. Segundo esse raciocínio, já<br />

que na Lei 4.117/62 a palavra “telecomunicação” somava os meios <strong>de</strong><br />

telecomunicação aos <strong>de</strong> radiodifusão, mesmo com o nascimento do Novo<br />

Código Brasileiro <strong>de</strong> Telecomunicação, <strong>de</strong> 1997, que passou a regular,<br />

inclusive penalmente, os meios <strong>de</strong> telecomunicação, cabe ainda à Lei<br />

4.117/62 a regulação da radiodifusão até mesmo quanto à matéria penal.<br />

Ora, está-se a falar <strong>de</strong> <strong>um</strong>a norma penal (Art. 70) que, por ser<br />

norma penal, exige tipicida<strong>de</strong> e respeito à legalida<strong>de</strong> mais do que qualquer<br />

outra. Ao menos é isso o que consta nos manuais jurídicos <strong>de</strong> direito penal,<br />

acredito que sem exceção, e que sustenta boa parte do discurso liberal<br />

acerca <strong>de</strong>sse ramo do direito.<br />

Como aplicar <strong>um</strong>a norma penal em nome <strong>de</strong> <strong>um</strong> resíduo e em meio<br />

a <strong>um</strong>a confusão terminológica como a <strong>de</strong>scrita nos parágrafos anteriores?<br />

Ler “radiodifusão” on<strong>de</strong> está escrito “telecomunicação” é realizar, no<br />

mínimo, <strong>um</strong>a analogia. E analogias não são recebidas pelo direito penal,<br />

assim aprendi nos manuais, quando prejudicam o réu ou a ré. Se, na<br />

hegemonia, há tanta se<strong>de</strong> por <strong>um</strong>a legislação que controle o serviço <strong>de</strong><br />

radiodifusão, que faça a hegemonia, <strong>um</strong>a legislação específica sobre a<br />

matéria e que nela haja normas <strong>de</strong> caráter penal em que se possa<br />

reconhecer o tipo “radiodifusão clan<strong>de</strong>stina”, como fez o Código <strong>de</strong> 1997<br />

prevendo o tipo “telecomunicação clan<strong>de</strong>stina”. Ou assim age o aparelho<br />

64


hegemônico ou mantém em contradição seu próprio discurso liberal<br />

segundo o qual no direito penal, não cabem resíduos, suposições.<br />

A conclusão inafastável que se chega é que a própria<br />

Constituição restringiu o alcance do art. 70 da Lei<br />

4.117/62, ao fazer a distinção entre telecomunicações e<br />

radiodifusão, anteriormente englobadas nesse preceito<br />

penal. A partir <strong>de</strong> 1988, esse dispositivo penal não mais<br />

abrangeu a radiodifusão. Ele, obviamente, ficou valendo<br />

apenas para as telecomunicações, até a edição do novo<br />

Código Brasileiro <strong>de</strong> Telecomunicações (Lei n.<br />

9.472/97), quando, então, foi <strong>de</strong>finitivamente revogado,<br />

eis que esse diploma legal cuidou <strong>de</strong> tipificar o mesmo<br />

crime, relativamente às telecomunicações (art. 183)<br />

(SILVEIRA, 2001, p. 199).<br />

Como se mostrará no próximo tópico <strong>de</strong>ste texto, o posicionamento<br />

<strong>de</strong> Paulo Fernando Silveira aqui adotado não se reproduz na maioria das<br />

<strong>de</strong>cisões do sentido com<strong>um</strong> teórico das cortes superiores do país.<br />

O artigo 70 da legislação <strong>de</strong> 1962 possui <strong>um</strong> outro problema, <strong>de</strong>sta<br />

vez, no parágrafo único. O seu conteúdo normativo é arbitrário, típico dos<br />

regimes autoritários, não po<strong>de</strong>ndo ser recebido pela Constituição <strong>de</strong> 1988,<br />

afinal esse doc<strong>um</strong>ento enuncia princípios como a ampla <strong>de</strong>fesa e o<br />

contraditório também no processo penal. A realização da busca e da<br />

apreensão requer a existência <strong>de</strong> mandado judicial que siga os ditames dos<br />

artigos 243 e 245 do Código <strong>de</strong> Processo Penal principalmente quando o<br />

que se busca ou se quer apreen<strong>de</strong>r se encontra em <strong>um</strong> domicílio. Neste<br />

caso, faz-se imprescindível, além do mandado, a observância do<br />

consentimento do(a) morador(a) ou do horário em que a ação ocorrerá,<br />

visto que sem consentimento ela só po<strong>de</strong>r ser efetuada durante o dia (CF.,<br />

ART. 5º, XI).<br />

O artigo 70 e seu parágrafo único têm servido <strong>de</strong> respaldo para que<br />

a ANATEL (Agência Nacional <strong>de</strong> Telecomunicações), normalmente<br />

acompanhada pela Polícia Fe<strong>de</strong>ral, <strong>de</strong>senvolva suas ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

fechamento das rádios comunitárias. A ANATEL – e boa parte do Po<strong>de</strong>r<br />

Judiciário, como ficará posteriormente provado – não reconhece a<br />

inconstitucionalida<strong>de</strong> do artigo 70 no que diz respeito à não-diferenciação<br />

entre telecomunicação e radiodifusão, assim como não reconhece as<br />

especificida<strong>de</strong>s das rádios comunitárias e a inconstitucionalida<strong>de</strong> da<br />

equiparação <strong>de</strong>sses meios populares <strong>de</strong> comunicação aos gran<strong>de</strong>s meios.<br />

65


Utiliza-se, a ANATEL, da alteração legislativa imposta por <strong>de</strong>creto durante o<br />

Regime Militar, muitas vezes sem nem consi<strong>de</strong>rar os princípios do processo<br />

penal. Relevante notar que, dado o voluntarismo e a falta <strong>de</strong> estrutura que<br />

envolvem a organização comunitária, <strong>de</strong> cost<strong>um</strong>e as rádios comunitárias<br />

fazem suas transmissões ou têm se<strong>de</strong> nas casas <strong>de</strong> seus/suas participantes,<br />

o que torna ainda mais grave <strong>um</strong>a intervenção em que inexista mandado.<br />

Algo assim correspon<strong>de</strong> ao crime <strong>de</strong> violação <strong>de</strong> domicílio.<br />

O movimento <strong>de</strong> direitos h<strong>um</strong>anos recebe correntemente <strong>de</strong>núncias<br />

das rádios comunitárias acerca <strong>de</strong> irregularida<strong>de</strong>s nos mandados e inclusive<br />

da inexistência <strong>de</strong>les.<br />

Sobre isso alg<strong>um</strong>as consi<strong>de</strong>rações precisam ser<br />

feitas. A ANATEL possui competência administrativa e não penal. Não po<strong>de</strong><br />

ela então sozinha lacrar e apreen<strong>de</strong>r com base no artigo 70 da Lei<br />

4.117/62. Essas ações fogem a sua competência fiscalizatória. A<strong>de</strong>mais,<br />

como bem assegura Paulo Fernando Silveira:<br />

Os agentes da polícia fe<strong>de</strong>ral, como regra, não têm<br />

assinado o auto <strong>de</strong> lacração/apreensão, servindo<br />

apenas <strong>de</strong> meio intimidatório, isto é, acompanham os<br />

agentes da ANATEL, mas não subscrevem o auto<br />

circunstanciado, como <strong>de</strong>termina a lei;(SILVEIRA,<br />

2001, p. 212).<br />

Em verda<strong>de</strong>, os agentes policiais não po<strong>de</strong>m agir <strong>de</strong> ofício nesta<br />

área especializada. Ocorre que o próprio Superior Tribunal <strong>de</strong> Justiça,<br />

através dos julgados sobre os quais se discutirá posteriormente, em nome<br />

do pouco potencial ofensivo das rádios comunitárias, já <strong>de</strong>cidiu que a<br />

transmissão em baixa potência não é criminosa. Não tem competência, a<br />

polícia, para avaliar se o equipamento é ou não <strong>de</strong> baixa potência, sendo<br />

necessário, por isso, que se aguar<strong>de</strong> a, aí sim, competente representação<br />

da ANATEL. Sobre esta Agência, Paulo Fernando Silveira ainda tece alguns<br />

comentários:<br />

Esta [a ANATEL], por sua vez, ao exercer seu papel<br />

fiscalizatório só tem o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> autuar, <strong>de</strong>screvendo a<br />

infração administrativa que constatar e oportunizar o<br />

prazo <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa. Se, no seu entendimento, estiver<br />

ocorrendo a prática <strong>de</strong> alg<strong>um</strong> <strong>de</strong>lito, como o <strong>de</strong>scrito<br />

no art. 70 da Lei 4.117/62, <strong>de</strong>ve, apenas, representar<br />

às autorida<strong>de</strong>s criminais competentes, subsidiando-os<br />

com perícia técnica para evi<strong>de</strong>nciar a alta potência,<br />

capaz <strong>de</strong> tipificar o <strong>de</strong>lito, ante os pronunciamentos do<br />

Egrégio Tribunal Regional Fe<strong>de</strong>ral da 1.ª Região –<br />

66


como se verá abaixo – no sentido <strong>de</strong> que a rádio<br />

comunitária, por ser <strong>de</strong> baixa potência, não comete o<br />

crime previsto nesse dispositivo penal. (SILVEIRA,<br />

2001, p. 212).<br />

O magistrado Paulo Fernando Silveira ainda alega outro arg<strong>um</strong>ento<br />

em nome <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>fesa da inaplicabilida<strong>de</strong> do Art. 70 da lei da década <strong>de</strong><br />

60 às rádios comunitárias: a especialida<strong>de</strong> da Lei 9.612/98. Diz o<br />

magistrado que em artigo alg<strong>um</strong> a lei reguladora do serviço <strong>de</strong> radiodifusão<br />

comunitária faz referência a infrações penais, mas apenas a administrativas<br />

(ART. 21). Não há <strong>um</strong> porquê juridicamente razoável para importar da Lei<br />

4.117/62 sua matéria penal (ou seu resíduo penal!) neste texto<br />

suficientemente criticada. Mesmo no artigo 2º da Lei 9.612/98 não há<br />

referências às normas penais da Lei 4.117/62.<br />

Concluindo, entendo que art. 70 da Lei 4.117/62 foi<br />

revogado parcialmente pela Constituição, no que se<br />

referia à radiodifusão, e totalmente pelo atual Código<br />

Brasileiro <strong>de</strong> Telecomunicação (Lei n. 9.472/97, art.<br />

183), cujo tipo penal cuidou, igualmente, das<br />

telecomunicações. Como os tribunais têm insistido que<br />

o art. 70 está em vigor, entendo que, nessa hipótese,<br />

ele só se aplicaria à radiodifusão <strong>de</strong> alta potência<br />

(SILVEIRA, 2001, p. 216).<br />

Criou a Lei 9.612/98 ainda outros problemas: trouxe exigências<br />

sem respaldo na realida<strong>de</strong> à efetivação do direito à liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão.<br />

Dentre elas, a <strong>de</strong> que o exercício da radiodifusão comunitária só po<strong>de</strong> ser<br />

pleiteado por entida<strong>de</strong> legalmente instituída e <strong>de</strong>vidamente registrada (ART.<br />

7º), ou seja, por pessoa jurídica. Essa entida<strong>de</strong> pleiteadora <strong>de</strong>ve promover<br />

em sua comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> origem <strong>um</strong> conselho comunitário que reúna cinco<br />

representantes <strong>de</strong> outras entida<strong>de</strong>s da comunida<strong>de</strong> local, estas também<br />

legalmente instituídas e <strong>de</strong>vidamente registradas (ART. 8º). A entida<strong>de</strong><br />

pleiteadora <strong>de</strong>ve ainda obter o apoio manifesto <strong>de</strong> outras entida<strong>de</strong>s<br />

associativas e comunitárias, mais <strong>um</strong>a vez legalmente constituídas e<br />

sediadas na área pretendida para a prestação do serviço (ART. 9º, §2º, VI).<br />

Apesar das aparentemente nobres intenções do(a) legislador(a) <strong>de</strong><br />

garantia da legitimida<strong>de</strong>, transparece-se a ignorância (?) acerca do contexto<br />

social em que vivem as periferias urbanas das metrópoles brasileiras sem<br />

67


acesso às políticas sociais básicas e, como é <strong>de</strong> se esperar, longe <strong>de</strong><br />

possuírem tamanho grau <strong>de</strong> organização e formalização jurídicas.<br />

Mas os problemas não param por aí. Exigências como a <strong>de</strong> que as<br />

emissoras <strong>de</strong>vem c<strong>um</strong>prir <strong>um</strong> tempo mínimo <strong>de</strong> operação diária (ART. 17) e<br />

a do pagamento <strong>de</strong> taxas simbólicas para efeito <strong>de</strong> cadastramento quando<br />

da outorga da autorização para execução do serviço (ART. 24) apenas<br />

impõem burocratizações ao exercício do direito.<br />

Outras questões, no entanto, chamam ainda mais nossa atenção,<br />

quais sejam, aquelas previstas nos artigos 22 e 23 da Lei 9.612/98.<br />

Prevêem esses artigos:<br />

Art. 22. As Emissoras do Serviço <strong>de</strong> Radiodifusão<br />

Comunitária operarão sem direito à proteção contra<br />

eventuais interferências causadas por emissoras <strong>de</strong><br />

quaisquer Serviços <strong>de</strong> Telecomunicações e<br />

Radiodifusão regularmente instaladas, condições estas<br />

que constarão do seu certificado <strong>de</strong> licença <strong>de</strong><br />

funcionamento”.<br />

“Art. 23. Estando em funcionamento a emissora do<br />

Serviço <strong>de</strong> Radiodifusão Comunitária, em conformida<strong>de</strong><br />

com as prescrições <strong>de</strong>sta lei, e constatando-se<br />

interferências in<strong>de</strong>sejáveis nos <strong>de</strong>mais Serviços<br />

regulares <strong>de</strong> Telecomunicações e Radiodifusão, o Po<strong>de</strong>r<br />

Conce<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>terminará a correção da operação e, se<br />

a interferência não for eliminada, no prazo estipulado,<br />

<strong>de</strong>terminará a interrupção do serviço.<br />

Verifica-se a partir da interpretação dos artigos sobrescritos a<br />

hierarquização entre as rádios e televisões comerciais - ou os “<strong>de</strong>mais<br />

Serviços regulares <strong>de</strong> Telecomunicações e Radiodifusão”, para ser sutil – e<br />

as rádios comunitárias. Estas sem qualquer proteção em relação àquelas<br />

primeiras e passíveis <strong>de</strong> extinção quando, apesar <strong>de</strong> legalmente instituídas,<br />

interferirem nas ativida<strong>de</strong>s daquelas.<br />

As rádios comunitárias são, <strong>de</strong>sse modo, tratadas <strong>de</strong> forma<br />

subsidiária, tendo sua função <strong>de</strong> meio <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong>mocrático e <strong>de</strong><br />

participação popular relegada a segundo plano em consi<strong>de</strong>ração à<br />

segurança jurídica dos meios <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> massa e do mercado.<br />

Caberia aqui a pergunta simples: mas quais os motivos para dotar <strong>de</strong> maior<br />

importância os meios comerciais e <strong>de</strong> inferior importância os meios<br />

68


comunitários? A resposta dos meios hegemônicos para essa pergunta diria<br />

que esses meios promovem empregos, sustentam famílias, movimentam a<br />

economia, sendo essenciais ao <strong>de</strong>senvolvimento da socieda<strong>de</strong>. Ora, mas é<br />

este ou não o discurso do “bom burguês”? A exploração da classe<br />

trabalhadora (a mais-valia) através das relações capital-trabalho gera<br />

emprego e isso, por si só <strong>de</strong>ve ser suficiente para contentar todo <strong>um</strong> grupo<br />

social que, também por isso, <strong>de</strong>ve esquecer o quanto recebe pouco pelo<br />

trabalhado <strong>de</strong>senvolvido se comparado seu salário aos lucros do patrão. As<br />

previsões dos artigos 22 e 23 da Lei 9.612/98 apenas reforçam o ciclo<br />

vicioso da opressão <strong>de</strong> classe. Ao/ à operário(a) diz-se: para manter seu<br />

trabalho, cale sua voz. Ao patrão ele mesmo fala: falo pelo bem <strong>de</strong><br />

todos(as), para produzir empregos, informação e divertimento.<br />

A relação entre as rádios comunitárias e a classe trabalha e entre os<br />

meios <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> massa e o patronato vem bem a calhar. Os<br />

gran<strong>de</strong>s meios são <strong>um</strong>a extensão da fábrica. Através <strong>de</strong>les normalmente a<br />

classe dominante fala e a classe trabalhadora ouve. As rádios comunitárias,<br />

pelo contrário, são <strong>um</strong>a inversão <strong>de</strong>ssa equação. Nelas a classe<br />

trabalhadora dialoga consigo, organiza-se, reconhece-se. Percebido isso,<br />

fica evi<strong>de</strong>nte o porquê da legislação privilegiar as empresas <strong>de</strong> radiodifusão<br />

em <strong>de</strong>trimento das rádios comunitárias. Por certo, a classe hegemônica<br />

prefere a si.<br />

Essa preferência, no entanto, engendra mais <strong>um</strong>a incoerência ao<br />

discurso jurídico liberal levado a cabo pela classe dominante. Já se disse na<br />

introdução <strong>de</strong>ste texto, com base nos ensinamentos <strong>de</strong> Pierre Bourdieu<br />

(2007, p. 209), que o campo jurídico não é <strong>um</strong> simples reflexo das relações<br />

econômicas. É ele instr<strong>um</strong>ento sim das classes dominantes, mas não<br />

reflexivo. Sua estrutura simbólica possui autonomia relativa, seu discurso,<br />

sua i<strong>de</strong>ologia, resulta das <strong>lutas</strong> simbólicas interiores ao campo e exteriores<br />

a ele, em sua relação com o campo do po<strong>de</strong>r. Mas <strong>de</strong> fato, quando a<br />

hegemonia se sente ameaçada naquilo que lhe é fundamental – e os meios<br />

<strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> massa lhe são fundamentais – o campo jurídico toma<br />

claramente o seu lado estrutural no mundo, ou seja, o mesmo da<br />

hegemonia, que “em nada <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisivo se opõe ao ponto <strong>de</strong> vista dos<br />

dominantes” (BOURDIEU, 2007, p. 245).<br />

69


N<strong>um</strong>a oposição entre as gran<strong>de</strong>s empresas <strong>de</strong> comunicação, com<br />

seu po<strong>de</strong>rio econômico e sua tecnologia, e os pequenos meios comunitários,<br />

o ônus não <strong>de</strong>veria recair sobre o sujeito mais fraco, ou prejudicado estaria,<br />

mais <strong>um</strong>a vez, o princípio da igualda<strong>de</strong>, tão relevante em outras searas<br />

jurídicas, como no direito do cons<strong>um</strong>idor, em que se pressupõe a<br />

hipossuficiência e a boa-fé do(a) cons<strong>um</strong>idor(a) em relação às empresas. 67<br />

A liberda<strong>de</strong> do exercício do direito <strong>de</strong>ve ser a regra. Assim prevêem<br />

os incisos I e II do Art. 128 do Novo Código Brasileiro <strong>de</strong> Telecomunicações,<br />

a Lei 9.472/97, aquela mesmo nascida para garantir a privatização dos<br />

serviços <strong>de</strong> telecomunicação.<br />

I – a liberda<strong>de</strong> será a regra, constituindo exceção as<br />

proibições, restrições e interferência do Po<strong>de</strong>r Público”;<br />

II – nenh<strong>um</strong>a autorização será negada, salvo por<br />

motivo relevante.<br />

Também não por esquecimento, nada parecido com os dois incisos<br />

sobrescritos se encontra na Lei 9.612/98: burocracia e exigências para as<br />

rádios comunitárias, liberda<strong>de</strong> para os gran<strong>de</strong>s meios e o mercado. A luta<br />

<strong>de</strong> classes está no ar. Neste contexto, como se comporta o Po<strong>de</strong>r Judiciário?<br />

3. A luta <strong>de</strong> classes está no ar: em que onda segue o Po<strong>de</strong>r<br />

Judiciário?<br />

Com o que foi dito nas últimas páginas, percebe-se que, apesar da<br />

interpretação <strong>de</strong> Paulo Fernando Silveira aqui adotada, a legislação não é<br />

suficientemente favorável às rádios comunitárias. A Lei 9.612/98<br />

burocratiza a implementação do serviço, limita sua potência a 25 W, trata<br />

67 O direito do cons<strong>um</strong>idor possui <strong>um</strong>a lógica bastante peculiar. Nele, a escolha pelo cons<strong>um</strong>idor em<br />

<strong>de</strong>trimento da gran<strong>de</strong> empresa é feita pela hegemonia por conta da importância que ela confere ao<br />

cons<strong>um</strong>o e não ao sujeito cons<strong>um</strong>idor propriamente. A i<strong>de</strong>ologia do mercado possui a estratégia, discutida<br />

por Jameson, <strong>de</strong> focar o cons<strong>um</strong>o em <strong>de</strong>trimento da produção. Já que é tão óbvio que a concentração dos<br />

meios <strong>de</strong> produção existe e que uns/<strong>um</strong>as poucos(as) possuem muito e a gran<strong>de</strong> maioria possui bem<br />

pouco, algo precisa justificar essas relações <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>. O cons<strong>um</strong>o, <strong>de</strong> acordo com o mercado, é o<br />

campo da liberda<strong>de</strong>, das escolhas. Comprar o produto A e não o B, <strong>de</strong>cidir sobre o que lhe dará prazer e<br />

conforto etc. Sem dúvida isso é também <strong>um</strong>a falácia sustentada pela hegemonia. Uns poucos têm bem<br />

mais liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> cons<strong>um</strong>o do que a gran<strong>de</strong> maioria, que quase não a tem. A i<strong>de</strong>ologia <strong>de</strong>ssa liberda<strong>de</strong>, no<br />

entanto, colabora com a justificação das relações <strong>de</strong>siguais. Por isso o direito do cons<strong>um</strong>idor, em tese,<br />

garante segurança ao/à cons<strong>um</strong>idor(a), quando, <strong>de</strong> fato, assegura a perpetuação do cons<strong>um</strong>o.<br />

70


as rádios comunitárias em inferiorida<strong>de</strong> com relação aos meios comerciais<br />

<strong>de</strong> radiodifusão, vincula as rádios comunitárias ao Art. 223 da Constituição<br />

Fe<strong>de</strong>ral, faz referência à legislação repressiva da década <strong>de</strong> 60, não<br />

explicita as especificida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>ssas rádios, suas necessida<strong>de</strong>s. A Lei que<br />

regula o serviço <strong>de</strong> radiodifusão dá margens para que interpretações que<br />

firam o princípio da isonomia se tornem hegemônicas no Po<strong>de</strong>r Judiciário, o<br />

que tem acontecido.<br />

É <strong>de</strong> se conhecer, no entanto, a conjuntura em que o Po<strong>de</strong>r<br />

Judiciário é compelido a agir. O crescente número <strong>de</strong> processos relativos à<br />

radiodifusão comunitária não é <strong>um</strong> fato isolado. Celso Fernan<strong>de</strong>s<br />

Campilongo (2005, p. 34), ao avaliar os <strong>de</strong>safios do Judiciário diante dos<br />

vazios <strong>de</strong> efetivida<strong>de</strong>s gerados pela não realização dos direitos sociais<br />

previstos na Constituição, alerta para a procura dos movimentos sociais<br />

pelo Po<strong>de</strong>r Judiciário na tentativa <strong>de</strong> fazer <strong>de</strong>le <strong>um</strong> contra-po<strong>de</strong>r da própria<br />

socieda<strong>de</strong>. Essa procura gera <strong>um</strong>a nova dimensão para a discussão<br />

acerca do acesso à justiça, nova dimensão esta, no entanto, não<br />

necessariamente produtiva. Acontece que, como bem nota José Eduardo<br />

Faria (2005, p. 52), a cultura compartilhada pelos sujeitos formadores do<br />

Po<strong>de</strong>r Judiciário não recebe <strong>de</strong> bom grado, ao menos não<br />

hegemonicamente, os novos atores sociais e seus pleitos. A arg<strong>um</strong>entação<br />

dos movimentos sociais afronta as raízes liberais do Estado brasileiro,<br />

inclusive do Po<strong>de</strong>r Judiciário. Noções <strong>de</strong> coletivida<strong>de</strong>, diversida<strong>de</strong>, isonomia,<br />

legitimida<strong>de</strong>, função pública e justiça social inexistem radicalizadas n<strong>um</strong>a<br />

estrutura que se mantém presa à forma, à exegese legalista e ao privado.<br />

A cultura supracitada termina por se opor aos novos sujeitos <strong>de</strong><br />

forma especial quando está em <strong>de</strong>bate a radiodifusão comunitária. Isto<br />

porque o direito h<strong>um</strong>ano à comunicação, ban<strong>de</strong>ira dos movimentos sociais<br />

<strong>de</strong>fensores da <strong>de</strong>mocratização da comunicação, atinge diretamente a<br />

proprieda<strong>de</strong> privada em nome da função pública da comunicação social. Não<br />

está ele reduzido à liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão, a <strong>um</strong> direito <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa exigente<br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong>a obrigação <strong>de</strong> abstenção por parte dos po<strong>de</strong>res públicos. Trata-se se<br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong> direito <strong>de</strong>mandante <strong>de</strong> <strong>um</strong>a intervenção estatal com vistas à garantia<br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong> acesso isonômico aos meios <strong>de</strong> comunicação, à produção da<br />

informação. O discurso do direito h<strong>um</strong>ano à comunicação atinge<br />

71


diretamente, <strong>de</strong>sse modo, a estrutura existente <strong>de</strong> concentração dos meios<br />

<strong>de</strong> comunicação em nome da ampliação do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> convencimento social,<br />

notadamente dos grupos sociais oprimidos, do <strong>de</strong>senvolvimento do diálogo.<br />

Por essas razões, faz-se tortuoso o caminho do Po<strong>de</strong>r Judiciário no<br />

tocante ao serviço <strong>de</strong> radiodifusão comunitária, visto que essa face estatal<br />

também reproduz a i<strong>de</strong>ologia hegemônica vinculada aos interesses<br />

econômicos da classe dominante. Tortuoso o caminho, não impenetrável, no<br />

entanto. Apesar <strong>de</strong> minoritária, forma-se <strong>um</strong>a linha <strong>de</strong>cisória divergente no<br />

Judiciário com base na qual serão elencados a seguir alguns arg<strong>um</strong>entos<br />

referentes ao tratamento jurisdicional dispensado às rádios comunitárias.<br />

Ressalta-se o caráter <strong>de</strong> resistência <strong>de</strong>ssa linha <strong>de</strong>cisória. É ela <strong>um</strong> foco<br />

promovido por assessores(as) jurídicos(as) populares, acadêmicos(as) e<br />

alguns membros do Ministério Público e do Po<strong>de</strong>r Judiciário. Como toda<br />

resistência, no entanto, encontra fortes barreiras para a conquista <strong>de</strong> novos<br />

espaços e o convencimento <strong>de</strong> novos sujeitos. Ao tempo em que nas<br />

próximas linhas forem apresentados os posicionamentos teóricos dos<br />

sujeitos componentes <strong>de</strong>ssa linha <strong>de</strong>cisória, serão também apresentadas as<br />

posições jurídicas da hegemonia, tanto com vistas à comparação como em<br />

nome da garantia da pluralida<strong>de</strong> fundamental à ciência.<br />

3.1. Da sanção administrativa, da sanção criminal e do pouco<br />

potencial ofensivo.<br />

Dada a morosida<strong>de</strong> do Ministério das Comunicações em julgar os<br />

pedidos <strong>de</strong> outorga <strong>de</strong> autorização para o exercício da radiodifusão<br />

comunitária, dada a opção feita por alg<strong>um</strong>as das rádios comunitárias pela<br />

<strong>de</strong>sobediência civil e dada a própria realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconhecimento por parte<br />

dos(as) cidadãos(ãs) da legislação, <strong>de</strong>ntre outros fatores, é consi<strong>de</strong>rável o<br />

número <strong>de</strong> rádios comunitárias que funcionam sem a autorização<br />

<strong>de</strong>mandada pela legislação nacional.<br />

Quando se <strong>de</strong>para com essas rádios <strong>de</strong>sprovidas da <strong>de</strong>vida licença<br />

para funcionamento, a ANATEL cost<strong>um</strong>a liminarmente promover seu<br />

fechamento e levá-las ao Po<strong>de</strong>r Judiciário em ações criminais, tomando em<br />

conta a argüição do respaldo legal do Art. 70 da Lei 4.117/62, e <strong>de</strong> direito<br />

administrativo, no que diz respeito às sanções previstas na Lei 9.612/98.<br />

72


Por ocasião da análise, realizada no tópico anterior <strong>de</strong>ste capítulo,<br />

da legislação nacional referente à radiodifusão comunitária, apresentou-se o<br />

posicionamento do magistrado aposentado Paulo Fernando Silveira segundo<br />

o qual a promoção liminar do fechamento das rádios baseada no parágrafo<br />

único do Art. 70 da Lei 4.117/62 é inconstitucional por não respeitar os<br />

princípios do direito processual penal. Sendo assim o parágrafo único em<br />

questão também é inconstitucional. Afirmou-se ainda que, seguindo o<br />

pensamento do mesmo magistrado, o Art. 70 foi <strong>de</strong>rrogado pela<br />

Constituição Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> 1988 e pelo Novo Código Brasileiro <strong>de</strong><br />

Telecomunicação quando da diferenciação existente nesses instr<strong>um</strong>entos<br />

normativos entre a radiodifusão e a telecomunicação. Colocou-se ainda que<br />

às rádios comunitárias não se aplicaria, <strong>de</strong> qualquer forma, o Art. 70 da Lei<br />

4.117/62 por ser ele relativo aos meios comerciais <strong>de</strong> alta potência <strong>de</strong><br />

radiodifusão e não às rádios comunitárias <strong>de</strong> baixa potência, estas<br />

regulamentadas especificamente – e em sanções apenas administrativas e<br />

não penais – pela Lei 9.612/98.<br />

Os posicionamentos do Po<strong>de</strong>r Judiciário, no entanto, não<br />

correspon<strong>de</strong>m majoritariamente à opinião <strong>de</strong> Paulo Fernando Silveira,<br />

buscando <strong>de</strong> cost<strong>um</strong>e dois caminhos: a) o das <strong>de</strong>cisões que imputam à<br />

realização da radiodifusão comunitária <strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong> autorização sanções<br />

penais e administrativas e b) o caminho das <strong>de</strong>cisões que afastam as<br />

sanções penais em razão da especialida<strong>de</strong> da Lei 9.612/98 ou da<br />

consi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> que o exercício do serviço <strong>de</strong> radiodifusão comunitária sem<br />

a existência <strong>de</strong> autorização do órgão estatal competente é algo <strong>de</strong> pouco<br />

potencial ofensivo.<br />

O primeiro caminho é, sob a ótica da libertação dos(as)<br />

oprimidos(as), conservador. Ele consente com a criminalização do serviço<br />

<strong>de</strong> radiodifusão comunitária. Transforma a ação dos sujeitos que se<br />

organizam com vistas à efetivação do direito h<strong>um</strong>ano à comunicação em<br />

crime, apenas pela ausência <strong>de</strong> <strong>um</strong>a licença estatal. Ainda que o meio <strong>de</strong><br />

radiodifusão seja <strong>de</strong> baixa potência, ainda que a legislação específica (Lei<br />

9.612/98) esteja sendo respeitada, ainda que não haja efetivo dano, a<br />

prática da radiodifusão comunitária é vista como criminosa. Dá-se, este<br />

primeiro caminho, como se fundamentais fossem as formalida<strong>de</strong>s do Estado<br />

73


e não os direitos h<strong>um</strong>anos, o que po<strong>de</strong> ser tido como mais <strong>um</strong>a contradição<br />

do discurso liberal.<br />

A ementa a seguir apresentada é <strong>um</strong> exemplo <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão que<br />

criminaliza o serviço <strong>de</strong> radiodifusão comunitária <strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> licença. No<br />

caso em tela, <strong>um</strong> cidadão, partícipe <strong>de</strong> <strong>um</strong>a rádio comunitária, ingressa com<br />

pedido <strong>de</strong> Hábeas Corpus junto ao Po<strong>de</strong>r Judiciário por ter ele – o cidadão –<br />

sofrido ameaça <strong>de</strong> prisão pelo exercício da radiodifusão comunitária. Assim<br />

<strong>de</strong>ci<strong>de</strong> o relator Ministro do Superior Tribunal <strong>de</strong> Justiça Luiz Fux em 02 <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2003:<br />

HABEAS CORPUS PREVENTIVO. AMEAÇA DE PRISÃO<br />

DE ADMINISTRADOR DE RÁDIO COMUNITÁRIA EM<br />

FUNCIONAMENTO SEM A DEVIDA AUTORIZAÇÃO DO<br />

MINISTÉRIO DAS COMUNICAÇÕES. IMPOSSIBILIDADE<br />

DO WRIT CONVALIDAR SITUAÇÃO FÁTICA ILEGAL.<br />

COMPETÊNCIA EXCLUSIVA DO PODER EXECUTIVO<br />

PARA DELIBERAR ACERCA DA OUTORGA DE<br />

CONCESSÃO PARA EXPLORAÇÃO DE SERVIÇOS DE<br />

RADIODIFUSÃO. ORDEM DE HABEAS CORPUS QUE,<br />

CASO FOSSE DEFERIDA, POSSIBILITARIA A<br />

EXPLORAÇÃO DO SERVIÇO SEM AUTORIZAÇÃO DO<br />

ÓRGÃO COMPETENTE.<br />

1. O habeas corpus não po<strong>de</strong> ser utilizado como<br />

instr<strong>um</strong>ento para convalidar situação fática ilegal,<br />

consubstanciada na exploração irregular <strong>de</strong> serviço <strong>de</strong><br />

radiodifusão sonora.<br />

2. Revela-se inviável o <strong>de</strong>ferimento <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m <strong>de</strong><br />

habeas corpus para fins <strong>de</strong> fazer cessar qualquer<br />

ameaça ao impetrante, porquanto, in casu, isso<br />

significaria, via reflexa, autorizá-lo a continuar<br />

exercendo ilegalmente a ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> exploração <strong>de</strong><br />

serviço <strong>de</strong> radiodifusão sonora, cuja <strong>de</strong>liberação<br />

compete exclusivamente à União Fe<strong>de</strong>ral. (art. 21, XII,<br />

"a", da Constituição Fe<strong>de</strong>ral.)<br />

3. Or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> habeas corpus <strong>de</strong>negada.<br />

(Habeas corpus nº. 31483 - MG (2003/0197015-7)/1ª<br />

Turma/STJ/Rel.: Luiz Fux – Dj. 19.12.2003, p. 321).<br />

Pretendia o autor da ação não a regularização do exercício do<br />

serviço <strong>de</strong> radiodifusão, mas apenas evitar sua prisão, visto <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r –<br />

assim como faz Paulo Fernando Silveira – que a prática da radiodifusão<br />

comunitária <strong>de</strong> baixa potência, ainda que inexistente a licença estatal, não é<br />

74


crime. O Ministro Luiz Fux, por sua vez, afirma a ilegalida<strong>de</strong> do exercício e<br />

que o Hábeas não po<strong>de</strong> ser aceito porque, em palavras cruas, encobriria<br />

<strong>um</strong>a criminalida<strong>de</strong>. Não distingue o Ministro do Superior Tribunal <strong>de</strong> Justiça<br />

a ilicitu<strong>de</strong> administrativa da ilicitu<strong>de</strong> criminal. Esta última seria inexistente<br />

segundo a arg<strong>um</strong>entação do autor da ação, visto que o serviço mesmo<br />

irregular da radiodifusão comunitária não é crime <strong>de</strong> acordo com sua<br />

posição. A <strong>de</strong>cisão do Ministro é outra, no entanto. É ela a <strong>de</strong> que a<br />

irregularida<strong>de</strong> do serviço <strong>de</strong> radiodifusão comunitária é sim crime, apesar<br />

<strong>de</strong> não haver matéria penal na Lei 9.612/98.<br />

Em sentido próximo <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> o também Ministro do Superior Tribunal<br />

<strong>de</strong> Justiça Vicente Leal, em 26 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2002.<br />

PROCESSUAL PENAL. HABEAS-CORPUS. AÇÃO PENAL.<br />

TRANCAMENTO. MANUTENÇÃO DE RÁDIO<br />

COMUNITÁRIA SEM A DEVIDA AUTORIZAÇÃO. ART. 70<br />

DA LEI 4.117/62. TIPICIDADE. JUSTA CAUSA<br />

EVIDENCIADA. INEXISTÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO<br />

ILEGAL.<br />

1. O trancamento <strong>de</strong> ação penal por falta <strong>de</strong> justa<br />

causa, pela via estreita do habeas-corpus, somente se<br />

viabiliza quando se constata, <strong>de</strong> pronto, a imputação<br />

<strong>de</strong> fato atípico ou a inexistência <strong>de</strong> qualquer elemento<br />

indiciário <strong>de</strong>monstrativo da autoria do <strong>de</strong>lito pelo<br />

paciente.<br />

2. A instalação ou utilização <strong>de</strong> rádio comunitária,<br />

ainda que <strong>de</strong> baixa potência e sem fins lucrativos, sem<br />

a <strong>de</strong>vida autorização do Po<strong>de</strong>r Público, configura, em<br />

tese, o <strong>de</strong>lito previsto no artigo 70 da Lei 4.117/62,<br />

que continua em vigor, mesmo após o advento da<br />

Emenda Constitucional n.º 8/95 e da Lei 9.472/97.<br />

4. Habeas-corpus <strong>de</strong>negado.<br />

(Habeas corpus nº. 19917 - PB, 2001/0194913-8/6ª<br />

Turma/STJ/Rel.: Vicente Leal – Dj. 19.12.2002, p.<br />

440).<br />

O Ministro Vicente Leal se posiciona a favor da constitucionalida<strong>de</strong><br />

do artigo 70 da Lei <strong>de</strong> 1962 e <strong>de</strong> sua aplicabilida<strong>de</strong>. Nega a arg<strong>um</strong>entação<br />

<strong>de</strong> que tenha sido esse artigo colocado abaixo pela Constituição Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong><br />

1988 e pelo novo Código Brasileiro <strong>de</strong> Telecomunicação. A arg<strong>um</strong>entação do<br />

75


Ministro do STJ é, sem sombra <strong>de</strong> dúvida, aquela, anteriormente criticada,<br />

baseada no resíduo legal da radiodifusão. Essa arg<strong>um</strong>entação – majoritária<br />

no Po<strong>de</strong>r Judiciário inclusive – enxerga a conjuntura legal da seguinte<br />

maneira: a) a Lei 4.117/62, o antigo Código Nacional <strong>de</strong> Telecomunicação,<br />

foi completamente recebida pela Constituição Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> 1988, visto que a<br />

diferenciação entre a radiodifusão e a telecomunicação presente no artigo<br />

22 da Carta Magna e aquela outra constante no seu artigo 21, <strong>de</strong>corrente<br />

da Emenda <strong>de</strong> nº. 8, não importam para a eficácia da Lei 4.117/62, mesmo<br />

para a eficácia daqueles dispositivos que não fazem a diferenciação entre os<br />

serviços exigida pela Constituição; b) a Lei 9.472/97, o novo Código<br />

Brasileiro <strong>de</strong> Telecomunicação, <strong>de</strong>rrogou apenas em parte o antigo Código<br />

<strong>de</strong> Telecomunicação, mantendo salvos, na Lei <strong>de</strong> 1962, a matéria penal não<br />

tratada na Lei <strong>de</strong> 1997 assim como os preceitos relativos à radiodifusão,<br />

preceitos estes não revogados pela Constituição <strong>de</strong> 1988; e c) a Lei<br />

9.612/98 também não revogou a Lei 4.117/62, referenciando-se a ela<br />

inclusive em seu artigo 2º, o que <strong>de</strong>monstra que não há qualquer<br />

incompatibilida<strong>de</strong> entre a aplicação das sanções administrativas previstas<br />

na legislação reguladora do serviço <strong>de</strong> radiodifusão comunitária e a<br />

aplicação das sanções penais previstas na Lei <strong>de</strong> 1962, sendo então<br />

necessário realizar certo esforço hermenêutico e compreen<strong>de</strong>r que on<strong>de</strong> se<br />

lê “telecomunicações” no Art. 70 da Lei 4.117/62, <strong>de</strong>ve-se enten<strong>de</strong>r<br />

somente radiodifusão, dado que àquela época radiodifusão era apenas <strong>um</strong>a<br />

espécie do gênero telecomunicação e que tudo o que diz respeito às<br />

telecomunicações é atualmente regulado pela Lei 9.472/97.<br />

Minha discordância quanto à postura jurídico-interpretativa acima<br />

<strong>de</strong>scrita já foi objeto <strong>de</strong> discussão no tópico anterior <strong>de</strong>ste texto. Será<br />

pautada ainda e ratificada quando da posterior apresentação dos<br />

posicionamentos divergentes. Por ora, basta que se conheça com <strong>de</strong>talhes a<br />

opinião hegemônica do Po<strong>de</strong>r Judiciário. A seguir, expõe-se mais <strong>um</strong><br />

exemplo <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão criminalizadora do movimento <strong>de</strong> rádios comunitárias,<br />

<strong>de</strong>sta vez levada a cabo pelo Ministro do Superior Tribunal <strong>de</strong> Justiça Gilson<br />

Dipp em 25 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2004.<br />

CRIMINAL. RESP. RÁDIO COMUNITÁRIA. AUSÊNCIA DE<br />

AUTORIZAÇÃO. DESCRIMINALIZAÇÃO DA CONDUTA<br />

PELA REVOGAÇÃO DA LEI 9.472/97. INOCORRÊNCIA.<br />

RECURSO PROVIDO.<br />

76


1. Como a Lei 9.612/98 não <strong>de</strong>rrogou a Lei 9.472/97,<br />

a conduta <strong>de</strong> operar, sem licença do órgão<br />

competente, serviço <strong>de</strong> radiodifusão comunitária,<br />

continua enquadrado nas sanções do art. 183 <strong>de</strong>sta<br />

última norma, não havendo se falar em<br />

<strong>de</strong>scriminalização da conduta pelo advento da nova lei.<br />

2. As Leis 9.612/98 e 9.472/97 são perfeitamente<br />

compatíveis entre si, na medida em que cominam<br />

sanções <strong>de</strong> naturezas diversas.<br />

3. Recurso provido, nos termos do voto do Relator.<br />

(Recurso especial nº. 509501 – RS, 2003/0047428-<br />

9/5ª Turma/STJ/Rel.: Gilson Dipp – Dj. 02.08.2004, p.<br />

492).<br />

A arg<strong>um</strong>entação do Ministro Gilson Dipp se diferencia daquela do<br />

Ministro Vicente Leal pois enquadra o exercício da radiodifusão comunitária<br />

sem a <strong>de</strong>vida autorização não no Art. 70 da Lei 4.117/62 mas sim na<br />

matéria penal do novo Código <strong>de</strong> Telecomunicação, a Lei 9.472/97. Alega o<br />

Ministro Gilson Dipp que porque a Lei 9.612/98 não <strong>de</strong>rrogou a Lei 9.472/97<br />

não há que se falar em <strong>de</strong>scriminalização do exercício da radiodifusão<br />

comunitária sem a exigida licença.<br />

Faz o Ministro Gilson Dipp <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> confusão, em verda<strong>de</strong>.<br />

Acertou o Ministro quando da afirmação <strong>de</strong> que a Lei 9.612/98 e a Lei<br />

9.472/97 são juridicamente compatíveis. Por certo são compatíveis: tratam<br />

<strong>de</strong> matérias diferentes. A primeira regula o serviço <strong>de</strong> radiodifusão<br />

comunitária, a segunda estabelece o Novo Código Brasileiro <strong>de</strong><br />

Telecomunicação, diferenciando, inclusive, como faz a Constituição <strong>de</strong> 1988,<br />

o serviço <strong>de</strong> radiodifusão do serviço <strong>de</strong> telecomunicação e prevendo sanções<br />

penais apenas para o serviço <strong>de</strong> telecomunicação, remetendo, em seu<br />

artigo 215, o que tange à radiodifusão para a Lei 4.117/62. Desse modo,<br />

não há nem o que se discutir acerca da compatibilida<strong>de</strong> das duas leis. A<br />

primeira diz expressamente que não tratará da radiodifusão. A segunda, por<br />

sua vez, que trata da radiodifusão comunitária, nem menciona a primeira,<br />

embora o faça em relação à Lei <strong>de</strong> 1962. Por isso, também não há, <strong>de</strong><br />

modo alg<strong>um</strong>, que se imputar à radiodifusão comunitária a matéria penal do<br />

Código Brasileiro <strong>de</strong> Telecomunicação <strong>de</strong> 1997. Já basta ao movimento <strong>de</strong><br />

77


ádios ter <strong>de</strong> lidar com a arg<strong>um</strong>entação do Ministro Vicente Leal que<br />

criminaliza suas ações com base no resíduo da radiodifusão presente na Lei<br />

4.117/62. Não precisa o movimento ter <strong>de</strong> trabalhar com mais <strong>um</strong>a fonte<br />

<strong>de</strong> sanções penais, <strong>de</strong>sta vez completamente <strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong> razão, inclusive<br />

sob o olhar da racionalida<strong>de</strong> hegemônica.<br />

Posicionamentos como os dos Ministros Luiz Fux, Vicente Leal e<br />

Gilson Dipp hegemonizam o Superior Tribunal <strong>de</strong> Justiça. Não é possível<br />

neste momento trazer números que provem essa majoritarieda<strong>de</strong> porque<br />

não se realizou, quando dos preparos <strong>de</strong>ste trabalho, <strong>um</strong>a análise<br />

quantitativa das <strong>de</strong>cisões do Tribunal, mas não é difícil perceber que os<br />

posicionamentos conservadores se encontram em maioria: basta percorrer<br />

a jurisprudência relativa às rádios comunitárias presente no sítio eletrônico<br />

do STJ 68 . Pesquisa feita pela Deputada Fe<strong>de</strong>ral Iara Bernardi (PT-SP) e<br />

apresentada no dossiê “Querem calar a voz do povo” elaborado pela<br />

ABRAÇO 69 (2005) diz que no período <strong>de</strong> 1998 a 2002, 4474 inquéritos<br />

foram instaurados em enquadramento com a Lei 4.117/62. Nesses 4.474<br />

inquéritos, 1.794 pessoas foram indiciadas e 24.780 equipamentos foram<br />

apreendidos. O mesmo dossiê diz que, com fulcro no artigo 183 da Lei<br />

9.472/97, 5.574 inquéritos foram instaurados, 1.820 sujeitos foram<br />

indiciados e 92.971 equipamentos foram apreendidos. Situação <strong>de</strong>veras<br />

complicada para os movimentos sociais.<br />

A posição divergente no Po<strong>de</strong>r Judiciário, entretanto, existe e<br />

precisa ser afirmada. Encontra-se notadamente nas primeiras e segundas<br />

instâncias do Po<strong>de</strong>r Judiciário Fe<strong>de</strong>ral como se po<strong>de</strong>rá perceber com as<br />

<strong>de</strong>cisões a seguir mostradas. Todas elas afastam as sanções penais,<br />

<strong>de</strong>scriminalizando a prática da radiodifusão comunitária <strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong><br />

autorização <strong>de</strong> órgão estatal competente.<br />

Assim <strong>de</strong>cidiu a Juíza Sylvia Steiner, do Tribunal Regional Fe<strong>de</strong>ral<br />

da 3ª Região:<br />

68 www.stj.gov.br<br />

69 Associação Brasileira <strong>de</strong> Rádios Comunitárias.<br />

EMENTA: PENAL. RECURSO "EX OFFICIO". HABEAS<br />

CORPUS PREVENTIVO. CABIMENTO. RÁDIO<br />

COMUNITARIA. ART. 70 DA LEI 4.117/62.<br />

ATIPICIDADE. INOCORRÊNCIA DE DANO OU OFENSA<br />

AOS INTERESSES TUTELADOS PELO CÓDIGO<br />

78


BRASILEIRO DE TELECOMUNICAÇÕES.<br />

IMPROVIMENTO DA REMESSSA OFICIAL.<br />

1. Existente fundado receio <strong>de</strong> constrangimento ilegal<br />

consistente em ameaça <strong>de</strong> indiciamento em inquérito<br />

policial, fechamento <strong>de</strong> Rádio Comunitária e apreensão<br />

dos seus transmissores, é <strong>de</strong> se admitir o caráter<br />

preventivo do "writ".<br />

2. Não se tipifica o crime previsto no art. 70 da Lei<br />

4117/62, quando ausente potencialida<strong>de</strong> lesiva em<br />

transmissões <strong>de</strong> rádio comunitária, <strong>de</strong> diminuta<br />

potência e pouco alcance.<br />

3. Vedação legal à restrição ao direito <strong>de</strong> expressão e<br />

valorização das manifestações culturais, a justificarem<br />

o "mandamus". Aplicação dos arts. 5, inciso IX e 215,<br />

"caput", da Constituição Fe<strong>de</strong>ral.<br />

4. Manutenção da r. <strong>de</strong>cisão concessiva da or<strong>de</strong>m.<br />

(Acórdão na RCCR nº. 03022040-0-SP/2ª. Turma/TRF<br />

3ª. Região/ Rel.: Juíza Sylvia Steiner/ DJ-Data: 05-06-<br />

96/Pg: 038187).<br />

Vê-se, <strong>de</strong> pronto, que a <strong>de</strong>cisão da Juíza Sylvia Steiner é<br />

radilcamente divergente daquela do Ministro Luiz Fux anteriormente<br />

apresentada. No caso em tela, cidadão partícipe <strong>de</strong> rádio comunitária<br />

ingressa com Hábeas Corpus preventivo junto ao Po<strong>de</strong>r Judiciário por ter<br />

sofrido ameaça <strong>de</strong> prisão por conta do exercício do serviço <strong>de</strong> radiodifusão<br />

comunitária <strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> licença. A Juíza acolhe o Hábeas <strong>de</strong>vido ao<br />

fundado receio <strong>de</strong> constrangimento ilegal consistente em ameaça <strong>de</strong><br />

indiciamento em inquérito policial. Porque a Juíza Sylvia Steiner não<br />

reconhece a tipificação penal do Art. 70 da Lei 4.117/62 para as rádios<br />

comunitárias, não é cabível qualquer ameaça, por parte da ANATEL, da<br />

Polícia Fe<strong>de</strong>ral, ou <strong>de</strong> quem quer que seja, <strong>de</strong> instauração <strong>de</strong> inquérito<br />

criminal. Ameaça ilegal garante o direito ao writ. O não-reconhecimento do<br />

enquadramento da radiodifusão <strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong> autorização no Art. 70 da Lei<br />

4.117/62 se dá com base no entendimento <strong>de</strong> que há ausência <strong>de</strong><br />

potencialida<strong>de</strong> lesiva em transmissões <strong>de</strong> rádios comunitárias, por serem<br />

elas <strong>de</strong> diminuta potência e pouco alcance.<br />

79


Invoca ainda, a Juíza Sylvia Steiner, os direitos fundamentais à<br />

liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão e culturais, nos que nem tocam as <strong>de</strong>cisões<br />

anteriormente apresentadas que se filiam ao pensamento hegemônico<br />

criminalizador. A mera referência existente nesta última <strong>de</strong>cisão aos direitos<br />

fundamentais, direitos estes ignorados nas <strong>de</strong>cisões anteriores, já clarifica<br />

certas diferenças <strong>de</strong> postura hermenêutica 70 .<br />

No mesmo sentido da jurisprudência firmada pela Juíza Sylvia<br />

Steiner <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> o Juiz Hugo Machado, do Tribunal Regional Fe<strong>de</strong>ral da 5ª<br />

Região:<br />

Ementa: Habeas Corpus. Trancamento <strong>de</strong> ação penal.<br />

Rádio Comunitária. Ausência <strong>de</strong> permissão. Liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

expressão – Constituição Fe<strong>de</strong>ral e Tratado<br />

Internacional, inexistência <strong>de</strong> dolo, <strong>de</strong>sconfiguração do<br />

crime.<br />

1. Convicto o cidadão da licitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua conduta ante a<br />

liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão garantida pela Constituição<br />

Fe<strong>de</strong>ral e por Tratado Internacional, po<strong>de</strong>ndo praticá-la<br />

com o uso <strong>de</strong> equipamentos <strong>de</strong> rádio e comunicação <strong>de</strong><br />

baixa potência, ausente está o dolo, <strong>de</strong>sconfigurando-se<br />

a prática <strong>de</strong> crime.<br />

2. Distingue-se a questão do tipo penal, tido por não<br />

configurado, da matéria cível-administrativa,<br />

concernente à possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> controle dos<br />

equipamentos.<br />

3. Or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> Habeas Corpus em parte concedida, apenas<br />

para trancar a ação penal, não para <strong>de</strong>terminar a<br />

<strong>de</strong>volução dos equipamentos, nem para autorizar o<br />

funcionamento da emissora.<br />

(HC nº. 00500677-6-PB/1ª. Turma/TRF 5ª. Região/Rel.:<br />

Juiz Hugo Machado/DJ-Data: 13-06-97/Pg: 043653).<br />

O arg<strong>um</strong>ento do baixo potencial ofensivo tem servido<br />

estrategicamente para afastar as sanções penais das rádios comunitárias.<br />

Relevante lembrar, todavia, que <strong>de</strong> acordo com a arg<strong>um</strong>entação <strong>de</strong> Paulo<br />

70 Não quero dizer com isso que a simples referência discursiva aos direitos fundamentais baste para que<br />

se caracterize o que quer que seja como <strong>de</strong> acordo com a libertação dos(as) oprimidos(as). O discurso dos<br />

direitos fundamentais tem sido usado por gregos e troianos para sustentar os mais diversos interesses, até<br />

mesmo os mais conservadores. Quero apenas ressaltar a presença do elemento “direitos fundamentais” na<br />

<strong>de</strong>cisão em questão e notar sua ausência nas <strong>de</strong>cisões anteriores.<br />

80


Fernando Silveira aqui adotada, não seria necessário sequer pautar tal<br />

temática. A aplicação da Lei <strong>de</strong> 1962 estaria preterida primeiro por ter sido<br />

revogada pela Constituição <strong>de</strong> 1988 em tudo o que não diferencia os<br />

serviços <strong>de</strong> radiodifusão daqueles <strong>de</strong> telecomunicação, <strong>de</strong>pois por ter sido<br />

completamente revogada pelo novo Código Brasileiro <strong>de</strong> Telecomunicação<br />

naquilo que prevê sobre o serviço <strong>de</strong> telecomunicação. Segundamente a Lei<br />

4.117/62 não se aplicaria às rádios comunitárias por ser a Lei 9.612/98 a<br />

única a tratar da matéria. A Lei 9.612/98 é norma especial que <strong>de</strong>rroga<br />

norma geral. Além disso, a Lei <strong>de</strong> 1998 prevê apenas sanções<br />

administrativas quando do exercício irregular da radiodifusão e não sanções<br />

penais. Isso sem esquecer do arg<strong>um</strong>ento que impossibilita, por conta dos<br />

princípios do direito penal, a admissão da tese do resíduo legal da<br />

radiodifusão.<br />

Segue abaixo importante <strong>de</strong>cisão do Juiz Ricardo César Mandarino<br />

Barretto, da Justiça Fe<strong>de</strong>ral do Estado <strong>de</strong> Sergipe.<br />

SERVIÇOS DE RADIODIFUSÃO. FALTA DE<br />

AUTORIZAÇÃO PARA FUNCIONAMENTO. LEIS NºS.<br />

9.472/97 E 9.612/98. EMISSORA CLANDESTINA DE<br />

POTÊNCIA ÍNFIMA. INOCORRÊNCIA DE PERIGO AO<br />

BEM PROTEGIDO PELA NORMA PENAL. ILÍCITO<br />

ADMINISTRATIVO. ABSOLVIÇÃO.<br />

1. Destarte, no caso em exame, <strong>de</strong>monstrado inexistir<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dano ao bem juridicamente protegido<br />

pelas normas legais que regem a matéria, há que se<br />

afastar o dolo como elemento subjetivo do <strong>de</strong>lito,<br />

ass<strong>um</strong>indo caráter <strong>de</strong> ilícito administrativo.<br />

2. Quanto à aparelhagem apreendida (fls. 14 e 79),<br />

<strong>de</strong>ve a mesma ser <strong>de</strong>volvida ao(s) seu(s)<br />

proprietário(s), por termo nos autos, <strong>um</strong>a vez que,<br />

comprovadamente <strong>de</strong> baixa potência e cobertura<br />

restrita, além <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>stinação social, os serviços<br />

caracterizam-se como <strong>de</strong> radiodifusão comunitária,<br />

sendo regidos exclusivamente pela Lei nº. 9.612, <strong>de</strong><br />

19/02/98, a qual não comina, entre as sanções<br />

previstas – arts. 21 e 23 -, a <strong>de</strong> perdimento dos bens<br />

empregados na radiotransmissão.<br />

3. Contudo, não se traduza tal em autorização judicial<br />

para novo funcionamento da emissora, cuja outorga<br />

permanecerá <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do atendimento das<br />

condições estipuladas na Lei nº. 9.612/98 e Decreto<br />

81


nº. 2.615/98, que a regulamenta, expedida pelo<br />

Ministério das Comunicações, a teor da competência<br />

firmada na Carta Magna <strong>de</strong> 1988, no seu art. 21, XII,<br />

"a".<br />

(Processo criminal nº. 98.5181-3 – Classe: 7000/1ª.<br />

Vara/Justiça Fe<strong>de</strong>ral do Estado <strong>de</strong> Sergipe/ Juiz<br />

Ricardo César Mandarino Barretto/ Data da <strong>de</strong>cisão:<br />

31.03.2000).<br />

A <strong>de</strong>cisão proferida pelo Juiz Ricardo Barretto ac<strong>um</strong>ula dois<br />

arg<strong>um</strong>entos, quais sejam, o do pouco potencial ofensivo e o da<br />

especialida<strong>de</strong> da Lei 9.612/98. Esse acúmulo é positivo porque o primeiro<br />

arg<strong>um</strong>ento é estrategicamente mais fácil <strong>de</strong> ser aceito pelo sentido com<strong>um</strong><br />

teórico dos(as) juristas que o segundo embora seja este o aqui adotado<br />

como cerne da arg<strong>um</strong>entação. De qualquer modo, importa menos quais dos<br />

dois arg<strong>um</strong>entos é o mais relevante e importa mais como eles po<strong>de</strong>m ser<br />

utilizados na disputa da contra-hegemonia no Po<strong>de</strong>r Judiciário, disputa esta<br />

que tem que enfrentar além dos membros do próprio Po<strong>de</strong>r Judiciário,<br />

forças políticas e fatores reais <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r que lucram diretamente com o<br />

processo <strong>de</strong> criminalização das rádios comunitárias.<br />

Outro elemento merecedor <strong>de</strong> atenção consta na <strong>de</strong>cisão em<br />

questão, qual seja, o da “<strong>de</strong>stinação social” que se aproxima da referência<br />

feita aos direitos fundamentais já comentada presente em <strong>de</strong>cisão<br />

anteriormente analisada. Aqui, o arg<strong>um</strong>ento da “<strong>de</strong>stinação social” serve<br />

inclusive para que os aparelhos apreendidos ilegalmente pela ANATEL sejam<br />

<strong>de</strong>volvidos aos/às seus/suas proprietários(as).<br />

Outros dois pontos, <strong>um</strong>bilicalmente ligados, acerca da postura do<br />

Po<strong>de</strong>r Judiciário precisam ser tratados neste trabalho. Um <strong>de</strong>les é o da<br />

morosida<strong>de</strong> do Ministério das Comunicações em apreciar os pedidos <strong>de</strong><br />

outorga da autorização do exercício do serviço <strong>de</strong> radiodifusão comunitária.<br />

O outro <strong>de</strong>les é o da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tal autorização para o exercício do<br />

direito fundamental <strong>de</strong> se comunicar. Começar-se-á pelo primeiro dos<br />

pontos elencados. O segundo será pautado no tópico subseqüente, mas<br />

constará também nas discussões do próximo capítulo <strong>de</strong>sta monografia.<br />

3.2 Da mora administrativa.<br />

82


A interminável fila <strong>de</strong> pedidos <strong>de</strong> outorga para o serviço <strong>de</strong><br />

radiodifusão comunitária no Ministério das Comunicações tem gerado<br />

conseqüências para o Po<strong>de</strong>r Judiciário. A ineficiência do Po<strong>de</strong>r Executivo em<br />

c<strong>um</strong>prir sua função, em respon<strong>de</strong>r aos pedidos <strong>de</strong> forma célere, faz com<br />

que as rádios comunitárias exerçam o direito à comunicação antes mesmo<br />

da referida outorga. A ANATEL, por sua vez, reprime esses sujeitos coletivos<br />

e termina por levá-los ao Po<strong>de</strong>r Judiciário. Isso quando não são as próprias<br />

rádios comunitárias os sujeitos a ingressar no Judiciário com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

obter essa outorga por outras vias.<br />

A discussão aqui se foca no seguinte questionamento políticojurídico:<br />

as rádios comunitárias po<strong>de</strong>m exercer o direito à comunicação<br />

antes da concessão da licença pelo órgão estatal competente? É imperioso<br />

que se trate dos posicionamentos jurídicos apresentados pelo Po<strong>de</strong>r<br />

Judiciário, principalmente quanto aos casos <strong>de</strong> rádios que pleitearam junto<br />

ao Ministério das Comunicações, mas que, pela mora da Administração,<br />

ainda não obtiveram a outorga. Seguem exemplos <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões do Superior<br />

Tribunal <strong>de</strong> Justiça.<br />

MANDADO DE SEGURANÇA. PRETENDIDA DECISÃO<br />

ACERCA DA PERMISSÃO PARA EXPLORAÇÃO DE<br />

SERVIÇO DE RADIODIFUSÃO. ALEGADA OMISSÃO DO<br />

MINISTRO DE ESTADO DAS COMUNICAÇÕES. ART. 21<br />

CF. LEI 9.612/98. NECESSIDADE DE<br />

DILAÇÃO PROBATÓRIA.<br />

1. Nos termos do art. 21, XII, "a", da Constituição<br />

Fe<strong>de</strong>ral, compete à União explorar, diretamente ou<br />

mediante autorização, concessão ou permissão "os<br />

serviços <strong>de</strong> radiodifusão sonora e <strong>de</strong> sons e imagens".<br />

A Lei nº 9.612, <strong>de</strong> 19.02.98, veio a regulamentar as<br />

rádios comunitárias.<br />

2. Segundo as informações da autorida<strong>de</strong> impetrada,<br />

embora publicado quatro avisos para habilitação dos<br />

interessados no funcionamento <strong>de</strong> rádios comunitárias<br />

em Belo Horizonte, a Impetrante não manifestou seu<br />

interesse, como seria indispensável.<br />

3. A <strong>de</strong>mora da autorida<strong>de</strong> administrativa em <strong>de</strong>cidir<br />

sobre inúmeros processos que necessitam <strong>de</strong> exame<br />

pormenorizado não caracteriza ato ilícito submetido ao<br />

controle do mandado <strong>de</strong> segurança. Prece<strong>de</strong>ntes.<br />

83


4. É da natureza do mandado <strong>de</strong> segurança que a<br />

matéria fática se ache <strong>de</strong>vidamente esclarecida pelos<br />

doc<strong>um</strong>entos trazidos com a inicial.<br />

5. Não se mostram presentes os requisitos que<br />

norteiam a ação mandamental, pois seriam<br />

necessárias diligências e a abertura <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong><br />

para produção <strong>de</strong> provas a fim <strong>de</strong> aferir-se a<br />

ocorrência da alegada omissão pela autorida<strong>de</strong><br />

impetrada - ou mesmo por parte <strong>de</strong> outra autorida<strong>de</strong>.<br />

6. Segurança <strong>de</strong>negada.<br />

(Mandado <strong>de</strong> segurança nº. 9123 – DF,<br />

2003/0106880-5/Primeira Seção/STJ/Rel.: Castro<br />

Meira – Dj. 25.02.2004, p. 90).<br />

O primeiro arg<strong>um</strong>ento apresentado pelo Ministro Castro Meira do<br />

STJ é o da vinculação do serviço <strong>de</strong> radiodifusão comunitária às mesmas<br />

normas constitucionais que tratam sobre as concessões, permissões e<br />

autorizações para o exercício da radiodifusão pelas gran<strong>de</strong>s empresas<br />

comerciais. Pressupõe <strong>de</strong> antemão o Ministro que as rádios comunitárias só<br />

<strong>de</strong>vem iniciar seus trabalhos quando da existência da outorga assim como<br />

acontece com os gran<strong>de</strong>s meios.<br />

Outro arg<strong>um</strong>ento posto pelo Ministro Meira é aquele <strong>de</strong> que a<br />

<strong>de</strong>mora não é razão para a impetração <strong>de</strong> <strong>um</strong> mandado <strong>de</strong> segurança.<br />

Afirma o jurista que a lentidão do Po<strong>de</strong>r Executivo em <strong>de</strong>cidir não é motivo<br />

suficiente para que se consi<strong>de</strong>re a ineficiência <strong>um</strong>a arbitrarieda<strong>de</strong> ou algo<br />

que ofenda a liberda<strong>de</strong> e os direitos fundamentais do(a) cidadão(ã).<br />

Outros posicionamentos po<strong>de</strong>m ser explorados, no entanto. É o<br />

caso da seguinte <strong>de</strong>cisão do também Ministro do STJ, José Delgado.<br />

RECURSOS ESPECIAIS. ADMINISTRATIVO. EMPRESA<br />

DE RADIODIFUSÃO. BAIXA POTÊNCIA E FINALIDADE<br />

NÃO-COMERCIAL. LEIS 9.612/98 E 4.117/62,<br />

DECRETO 2.615/98. PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO PARA<br />

FUNCIONAMENTO. AUSÊNCIA DE EXAME.<br />

PARTICULARIDADE DO CASO CONCRETO. INCIDÊNCIA<br />

DO PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA.<br />

1. Consoante inscrito nas Leis 9.612/98, 4.117/62 e<br />

Decreto 2.615/98, é necessária a outorga legal do<br />

Po<strong>de</strong>r Executivo para o funcionamento dos<br />

<strong>de</strong>nominados Serviços <strong>de</strong> Radiodifusão Comunitários.<br />

84


2. No caso concreto, havendo a empresa interessada<br />

(comprovadamente <strong>de</strong> baixa potência e sem finalida<strong>de</strong><br />

lucrativa) buscado as vias a<strong>de</strong>quadas para o<br />

atendimento do requisito legal <strong>de</strong> funcionamento e<br />

caracterizada a ausência <strong>de</strong> resposta da<br />

Administração, admite-se, excepcionalmente, a<br />

continuida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas ativida<strong>de</strong>s.<br />

3. Inc<strong>um</strong>be à Administração, sem prejuízo da precisa<br />

observância das normas vigentes, a consi<strong>de</strong>ração da<br />

razoabilida<strong>de</strong> e proporcionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas <strong>de</strong>cisões, em<br />

conformida<strong>de</strong> com a manifesta e pronta aplicação, do<br />

princípio da eficiência..<br />

4. Recursos especiais da UNIÃO e da ANATEL<br />

<strong>de</strong>sprovidos.<br />

(Recurso especial nº. 579020 – AL, 2003/0134420-<br />

1/1ª Turma/STJ/Rel.: José Delgado – Dj. 05.12.2005,<br />

p. 223).<br />

O primeiro parágrafo da ementa também fala da necessida<strong>de</strong> da<br />

outorga legal do Po<strong>de</strong>r Executivo para o funcionamento do serviço <strong>de</strong><br />

radiodifusão comunitária. O segundo parágrafo, no entanto, <strong>de</strong>stoa do<br />

arg<strong>um</strong>ento apresentado pelo Ministro Castro Meira. Segundo José Delgado o<br />

caso concreto <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rado e, nele, a exceção do funcionamento da<br />

rádio sem a <strong>de</strong>vida outorga <strong>de</strong>ve ser levada a cabo dado o contexto <strong>de</strong><br />

ineficiência do Po<strong>de</strong>r Executivo. Invoca o Ministro José Delgado, princípios<br />

da Administração Pública, como os da razoabilida<strong>de</strong>, da proporcionalida<strong>de</strong> e<br />

da eficiência. O que faz o Ministro do STJ, é preciso dizer, não é conferir a<br />

autorização, entretanto. Ele permite que as ativida<strong>de</strong>s do exercício do<br />

direito fundamental à comunicação se efetivem enquanto o Po<strong>de</strong>r Executivo<br />

não se manifesta sobre o caso. Inibe, com essa <strong>de</strong>cisão, ações<br />

criminalizatórias da ANATEL e da Polícia Fe<strong>de</strong>ral. Dá relevância ao direito<br />

material e não simplesmente à forma.<br />

A efetivação <strong>de</strong> <strong>um</strong> direito fundamental não po<strong>de</strong> restar à espera<br />

in<strong>de</strong>finida por <strong>um</strong>a ação da Administração Pública. O fato <strong>de</strong> haver <strong>um</strong>a fila<br />

imensa <strong>de</strong> pleitos não resolvidos é <strong>um</strong>a conseqüência dos esforços<br />

<strong>de</strong>sempenhados por essa mesma Administração na solução dos problemas<br />

advindos da concentração da produção da comunicação no país: poucos<br />

esforços, pouquíssimos. Não po<strong>de</strong> o sujeito coletivo <strong>de</strong> direito, o movimento<br />

85


social, esperar a boa vonta<strong>de</strong> política <strong>de</strong> quem quer que ocupe os cargos do<br />

Governo Fe<strong>de</strong>ral. Isso porque a efetivação dos direitos fundamentais é<br />

mais do que <strong>um</strong>a política <strong>de</strong> Governos ao alvedrio <strong>de</strong> interesses. É <strong>um</strong>a<br />

política <strong>de</strong> Estado e, como tal, <strong>de</strong>ve ser cobrada inclusive pelo Po<strong>de</strong>r<br />

Judiciário.<br />

Contra esses arg<strong>um</strong>entos, surgem sempre aqueles outros,<br />

arraigados aos posicionamentos hegemônicos, <strong>de</strong>fensores da segurança, do<br />

espectro, sob o mito do temor da queda <strong>de</strong> aviões etc. Ora, pior ainda para<br />

a Administração Pública. Se há tanto com o que se preocupar e tanta<br />

segurança pela qual zelar, o que faz ela que não fiscaliza as rádios e julga<br />

os pedidos? Antes mesmo da elucubração acerca das possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

interferência nas ondas <strong>de</strong> rádio está a inércia da Administração em<br />

fiscalizar previamente o campo. Tem espaço aqui <strong>um</strong>a pergunta: por que<br />

tanta presteza em reprimir as rádios comunitárias e tão pouca em<br />

respon<strong>de</strong>r aos pleitos por outorgas?<br />

Outro arg<strong>um</strong>ento contrário ao posicionamento do Ministro José<br />

Delgado também se põe, qual seja, o do respeito ao equilíbrio da tripartição<br />

dos po<strong>de</strong>res. Isso, no entanto, já está explicado. A <strong>de</strong>cisão do Judiciário não<br />

ocupa o lugar da licença. A outorga <strong>de</strong>ve existir vinda do Po<strong>de</strong>r Executivo.<br />

Mas até lá – e essa é a <strong>de</strong>cisão do Ministro Delgado – a repressão às rádios<br />

fica suspensa. Caso o Ministério das Comunicações julgue que a rádio é<br />

imprópria e que o pleito <strong>de</strong>ve ser negado, não há mais o que o STJ dizer, a<br />

não ser que, por outros motivos, haja vícios no julgamento em questão.<br />

Mas até que essa <strong>de</strong>cisão ocorra, tem lugar sim <strong>um</strong>a afirmação <strong>de</strong>cisória do<br />

Po<strong>de</strong>r Judiciário que proteja o exercício do direito perante a inércia da<br />

Administração.<br />

3.3 Da necessida<strong>de</strong> da autorização e da potência do transmissor<br />

Até agora foram basicamente trabalhados casos <strong>de</strong> rádios<br />

comunitárias que <strong>de</strong>ram início ao pedido <strong>de</strong> outorga junto ao Ministério das<br />

Comunicações. Mas o que fazer quando do julgamento <strong>de</strong> <strong>um</strong>a li<strong>de</strong> em que<br />

a rádio comunitária <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> politicamente agir em <strong>de</strong>sobediência civil? O que<br />

implica na não realização do pedido <strong>de</strong> outorga, ou seja, em contrariar o<br />

que as duas últimas <strong>de</strong>cisões apresentadas dos Ministros do Superior<br />

Tribunal <strong>de</strong> Justiça, Castro Meia e José Delgado, dizem que é necessário ao<br />

86


exercício da radiodifusão comunitária. As rádios comunitárias que se<br />

preten<strong>de</strong>m em <strong>de</strong>sobediência civil cost<strong>um</strong>am afirmar que exercem a<br />

radiodifusão como direito h<strong>um</strong>ano <strong>de</strong> se comunicar e que, para tanto, não<br />

há <strong>de</strong> existir interferência estatal. Como proce<strong>de</strong>, ou <strong>de</strong>veria proce<strong>de</strong>r, o<br />

Po<strong>de</strong>r Judiciário?<br />

O pensamento majoritária do Po<strong>de</strong>r Judiciário, como já ficou<br />

<strong>de</strong>monstrado com a pequena amostragem <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões aqui trazidas, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong><br />

pela criminalização <strong>de</strong>ssas rádios <strong>de</strong>sprovidas <strong>de</strong> autorização. Aplica-se a<br />

elas <strong>de</strong> cost<strong>um</strong>e o Art. 70 da Lei 4.117/62 o que também já ficou<br />

<strong>de</strong>monstrado neste texto.<br />

De pronto, posso dizer que a aplicação da Lei da década <strong>de</strong> 60 às<br />

rádios comunitárias que não requerem a outorga po<strong>de</strong> ser excluída pelos<br />

mesmos arg<strong>um</strong>entos anteriormente <strong>de</strong>batidos com vistas à inaplicabilida<strong>de</strong><br />

da Lei 4.117/62, notadamente do seu artigo 70. Nada difere nisso. Não há<br />

crime <strong>de</strong> qualquer forma porque a aplicação da Lei e do artigo em questão é<br />

inconstitucional e fere os princípios do direito penal.<br />

Mas ainda assim, a partir daí, como <strong>de</strong>ve se comportar o Po<strong>de</strong>r<br />

Judiciário? Excluída a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> enquadramento em crime, como<br />

<strong>de</strong>cidir? Defen<strong>de</strong>r-se-á então a tese da aplicabilida<strong>de</strong> imediata dos direitos<br />

fundamentais (C.F. ART 5º, §1º).<br />

O exercício da radiodifusão é restringido pelo interesse público na<br />

Constituição Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> 1988. Não há erro nisso. Não há erro em ser a<br />

radiodifusão <strong>um</strong> serviço público estatal que po<strong>de</strong> ser exercido por<br />

particulares apenas em meio a concessões, permissões e autorizações. Mas<br />

não há erro se em pauta estão os gran<strong>de</strong>s meios <strong>de</strong> comunicação. As<br />

ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sses meios <strong>de</strong>mandam intensos cuidados no equilíbrio do<br />

interesse público. Daí a preocupação da própria Constituição <strong>de</strong> que os<br />

meios <strong>de</strong> comunicação não sejam objetos <strong>de</strong> monopólio ou oligopólio. Por<br />

certo esta previsão constitucional leva em conta os gran<strong>de</strong>s meios <strong>de</strong><br />

radiodifusão e todo o seu po<strong>de</strong>r simbólico. Quando se ouviu falar, no<br />

entanto, em rádios comunitárias exercendo oligopólio ou monopólio <strong>de</strong><br />

alg<strong>um</strong>a coisa? Seria isso inclusive forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>scaracterizar a radiodifusão<br />

comunitária. Deixaria ela <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>mocrática e comunitária, portanto.<br />

Acontece que os artigos do capítulo da comunicação social da<br />

Constituição Fe<strong>de</strong>ral não se relacionam ao serviço <strong>de</strong> radiodifusão<br />

87


comunitária. Fizessem isso, haveria, como se insistiu anteriormente neste<br />

texto, <strong>um</strong>a flagrante contradição com o princípio constitucional da isonomia.<br />

Seria tratar dois sujeitos radicalmente diferentes, que c<strong>um</strong>prem funções<br />

específicas, do mesmo modo.<br />

O exercício da radiodifusão comercial <strong>de</strong>manda maiores cuidados<br />

que o serviço da radiodifusão comunitária. Por isso o controle, as<br />

permissões, concessões e autorizações. O mesmo não precisa ocorrer com<br />

os meios comunitários <strong>de</strong> comunicação. Sobre eles rege o parágrafo<br />

primeiro do artigo 5º da Constituição Fe<strong>de</strong>ral, ou seja, a aplicabilida<strong>de</strong><br />

imediata do direito fundamental à liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão, à comunicação.<br />

Não se quer com isso arg<strong>um</strong>entar que é in<strong>de</strong>vido o processo <strong>de</strong> outorga,<br />

que ele não <strong>de</strong>va existir. Po<strong>de</strong> ser que exista, inclusive, mas não <strong>de</strong>ve ser<br />

ele – e falo aqui a partir do discurso liberal estatal hegemônico –<br />

consi<strong>de</strong>rado pressuposto para o exercício do direito fundamental. A<br />

efetivação do direito, no caso das rádios comunitárias, po<strong>de</strong> se dar <strong>de</strong><br />

antemão, <strong>de</strong>ve então o Po<strong>de</strong>r Executivo, a ANATEL, promover a fiscalização<br />

necessária para que problemas não ocorram. Seria o caso, por exemplo, <strong>de</strong><br />

interferência entre rádios comunitárias n<strong>um</strong>a mesma região ou entre rádios<br />

comunitárias e rádios comerciais. Aqui agiria a ANATEL e o Po<strong>de</strong>r Executivo<br />

para que problemas assim tivessem solução em razão do interesse público<br />

envolvido na boa realização das ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> comunicação social e na<br />

garantia da pluralida<strong>de</strong>.<br />

Esta tese é <strong>de</strong> difícil <strong>de</strong>fesa, reconhece-se, porque bastante<br />

principiológica. Contraria norma legal e toda <strong>um</strong>a corrente jurispru<strong>de</strong>ncial.<br />

Ainda assim é a tese aqui <strong>de</strong>fendida. Leva-se em consi<strong>de</strong>ração a<br />

importância das rádios comunitárias no processo <strong>de</strong> libertação dos(as)<br />

oprimidos(as). Consi<strong>de</strong>ra-se também sua importância para a <strong>de</strong>mocracia e<br />

a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong> tratamento diferenciado para esses sujeitos que tanto<br />

incomodam o Estado e os gran<strong>de</strong>s meios.<br />

Mas o que aconteceria se a rádio comunitária ultrapassasse os<br />

limites da potência previstos da Lei 9.612/98? Deixaria ela <strong>de</strong> ser<br />

comunitária? Per<strong>de</strong>r-se-iam os arg<strong>um</strong>entos até então discutidos? Não<br />

necessariamente. Uma rádio comunitária, que se pretenda comunitária,<br />

n<strong>um</strong> bairro gigantesco como o <strong>de</strong> Casa Amarela, na periferia do Recife, por<br />

exemplo, não po<strong>de</strong> ter apenas 25 W, o limite legalmente estabelecido, ou<br />

88


não abrangeria a comunida<strong>de</strong> efetivamente. Ter 40 ou 50W <strong>de</strong> potência no<br />

transmissor não faz da rádio menos comunitária. O limite estabelecido pela<br />

legislação restringe por <strong>de</strong>mais o serviço. Deve-se avaliar se, no caso<br />

concreto, há ou não o potencial ofensivo, se essas 50W ameaçam ou não<br />

causar prejuízo às comunicações. É provável que – e aqui se trabalha com<br />

probabilida<strong>de</strong>s nesta seara visto que sou <strong>um</strong> acadêmico <strong>de</strong> direito e não <strong>de</strong><br />

física ou engenharia – <strong>um</strong>a rádio <strong>de</strong> 25W que realize ativida<strong>de</strong>s do lado <strong>de</strong><br />

<strong>um</strong> hospital ou <strong>de</strong> <strong>um</strong> aeroporto cause alguns problemas mas que <strong>um</strong>a<br />

rádio <strong>de</strong> 50W nos morros <strong>de</strong> Casa Amarela não tragam quaisquer <strong>de</strong>les. O<br />

que faz <strong>um</strong>a rádio comunitária ser verda<strong>de</strong>iramente <strong>um</strong>a rádio comunitária<br />

é sua forma <strong>de</strong> gestão participativa, não o estreito limite <strong>de</strong> 25W.<br />

Reconhece-se que esta também é <strong>um</strong>a tese difícil <strong>de</strong> ser digerida<br />

pelo sentido com<strong>um</strong> teórico do Po<strong>de</strong>r Judiciário. Tudo que tente levar à<br />

realida<strong>de</strong> seus membros, para além da norma, parece contrariar sua<br />

constituição ontológica, afinal os “fatos jurídicos são produto da construção<br />

jurídica (e não o inverso)” (BOURDIEU, 2007, p. 230). No mundo, no<br />

entanto, há rádios comunitárias, realmente comunitárias, que c<strong>um</strong>prem<br />

funções libertadoras em suas comunida<strong>de</strong>s, mas que ultrapassam os limites<br />

legais e que exercem o direito fundamental à comunicação sem <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r<br />

<strong>de</strong> qualquer pedido <strong>de</strong> licença ao Estado. Também não há erro nisso.<br />

4. Breves consi<strong>de</strong>rações acerca da municipalização da legislação<br />

reguladora do serviço <strong>de</strong> radiodifusão comunitária.<br />

O bom <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>ste tópico <strong>de</strong>mandaria <strong>um</strong> outro artigo.<br />

Ainda assim <strong>um</strong> rascunho <strong>de</strong>ssa proposta precisa ser traçado, visto que<br />

vem ela se efetivando em alguns municípios brasileiros. Ignorá-la seria não<br />

estar aberto(a) ao reconhecimento do mundo.<br />

Setores do movimento <strong>de</strong> rádios comunitárias têm proposto que o<br />

tratamento diferenciado a essas rádios, tratamento este necessário para o<br />

c<strong>um</strong>primento da isonomia, seja conduzido não pela União, mas pelos<br />

municípios. Acreditam esses sujeitos que nos municípios o controle social<br />

po<strong>de</strong>ria ser efetivado, livrando as rádios assim das intermináveis esperas<br />

pelo Ministério das Comunicações.<br />

89


O que move o movimento <strong>de</strong> rádios comunitárias no sentido <strong>de</strong>ste<br />

pleito da municipalização da legislação reguladora da radiodifusão<br />

comunitária são os princípios da participação <strong>de</strong>mocrática, da aproximação<br />

dos sujeitos locais daqueles outros que <strong>de</strong>liberam sobre sua comunida<strong>de</strong>, da<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acompanhamento dos processos <strong>de</strong> outorga. É quase<br />

impossível, por exemplo, para <strong>um</strong>a rádio comunitária ir a Brasília saber<br />

como anda o processo do seu pedido <strong>de</strong> autorização. Se a instância a qual<br />

se pe<strong>de</strong> é mais próxima, a pressão dos movimentos locais se tornará efetiva<br />

e isso agilizará os processos e otimizará a eficiência da Administração. Além<br />

disso, arg<strong>um</strong>enta o movimento <strong>de</strong> rádios, que com <strong>um</strong>a legislação<br />

municipal, abre-se a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> existência <strong>de</strong> conselhos municipais<br />

<strong>de</strong>liberativos, compostos também pela socieda<strong>de</strong> civil organizada, que<br />

<strong>de</strong>cidam sobre a pertinência dos pedidos <strong>de</strong> outorga, o que extinguiria a<br />

atual unilateralida<strong>de</strong> <strong>de</strong>cisória.<br />

Alguns óbices jurídicos são colocados a essa proposta <strong>de</strong><br />

municipalização que servem <strong>de</strong> fundamento para <strong>de</strong>clarações <strong>de</strong><br />

inconstitucionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> leis municipais que preten<strong>de</strong>m regular a matéria da<br />

radiodifusão comunitária, como ocorreu na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Campinas, em São<br />

Paulo, no ano <strong>de</strong> 2004, em conseqüência da ação promovida pela ABERT –<br />

Associação das Emissoras <strong>de</strong> Rádio e Televisão do Estado <strong>de</strong> São Paulo<br />

(CABRAL, 2006).<br />

Esses óbices dizem respeito diretamente a dois pontos: a) às<br />

previsões presentes nos artigos 21 e 22 da Constituição Fe<strong>de</strong>ral; e b) às<br />

previsões presentes no Art. 223 também da Carta Magna.<br />

Art. 21. XII - Explorar, diretamente ou mediante<br />

autorização, concessão ou permissão:<br />

a) os serviços <strong>de</strong> radiodifusão sonora <strong>de</strong> sons e<br />

imagens;<br />

Art. 22. Compete privativamente à União legislar<br />

sobre:<br />

IV - águas, energia, informática, telecomunicações e<br />

radiodifusão.<br />

Art. 223. Compete ao Po<strong>de</strong>r Executivo [Nacional]<br />

outorgar e renovar concessão, permissão e autorização<br />

para o serviço <strong>de</strong> radiodifusão sonora e <strong>de</strong> sons e<br />

90


imagens, observado o princípio da complementarida<strong>de</strong><br />

dos sistemas privado, público e estatal.<br />

Muito já se discutiu neste trabalho sobre esses artigos e sobre o<br />

quanto enquadrar as rádios comunitárias neles <strong>de</strong> modo indiferenciado<br />

agri<strong>de</strong> a isonomia. A interpretação majoritária sobre eles também já foi<br />

objeto <strong>de</strong> discussões neste texto o que, agora, torna <strong>de</strong>snecessárias mais<br />

palavras sobre o assunto. Partir-se-á logo então para o olhar divergente<br />

protagonizado pela tese fe<strong>de</strong>ralista <strong>de</strong> Paulo Fernando Silveira (SILVEIRA,<br />

2001, p.240).<br />

Socorre-se o ex-magistrado mineiro na <strong>de</strong>fesa do pacto fe<strong>de</strong>ralista<br />

existente na República brasileira segundo o qual compete ao município<br />

legislar quando da prevalência do interesse local (C.F. ART 1º, 18, 30, I).<br />

Ora, se as rádios comunitárias possuem abrangência tão restrita porque<br />

<strong>de</strong>veria a União ser competente para <strong>de</strong>liberar sobre suas questões? A autogovernabilida<strong>de</strong><br />

dos municípios, seus interesses locais, <strong>de</strong>vem ser pautas<br />

suas mesmas e não da União. Sem dúvida a radiodifusão comunitária é <strong>um</strong>a<br />

temática <strong>de</strong> repercussão nacional. Não há <strong>de</strong> se negar. Mas o fato <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />

temática ser <strong>de</strong> repercussão abrangente não significa que seu exercício<br />

também o seja. Se o exercício é local, se é do interesse prioritário das<br />

comunida<strong>de</strong>s, sua regulamentação <strong>de</strong>ve também ser local. Este é o cerne<br />

da arg<strong>um</strong>entação pru<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Silveira. Mas tem ela outras boas<br />

conseqüências: a da <strong>de</strong>scriminalização das rádios comunitárias e a do<br />

afastamento da ANATEL como órgão competente para a fiscalização <strong>de</strong>ssas<br />

rádios.<br />

Se lei municipal passa a regular a matéria não há <strong>um</strong> porquê para<br />

que lei fe<strong>de</strong>ral venha prever sobre ela penalida<strong>de</strong>s. Do contrário, haveria<br />

<strong>um</strong>a enorme confusão legislativa <strong>de</strong> competências. A lei municipal traria<br />

apenas sanções administrativas às irregularida<strong>de</strong>s da radiodifusão<br />

comunitária por ser, no Brasil, a produção <strong>de</strong> normas <strong>de</strong> direito penal<br />

exclusivida<strong>de</strong> da União. Por seu turno, a ANATEL e a Polícia Fe<strong>de</strong>ral, que<br />

agem com fundamento no Art. 70 da Lei 4.117/62, per<strong>de</strong>riam tal respaldo.<br />

Isso porque com a lei municipal e a inversão <strong>de</strong> competências nada que a<br />

União previsse sobre a matéria <strong>de</strong> interesse do município continuaria válido.<br />

Esta é a tese <strong>de</strong> Paulo Fernando Silveira. Sobre ela, alg<strong>um</strong>as palavras.<br />

91


A estratégia <strong>de</strong> Paulo Fernando Silveira é coerente e bem repercute<br />

entre os movimentos. Assim como suas outras opiniões, encontra esta tese<br />

também obstáculos no conservadorismo do sentido com<strong>um</strong> teórico dos(as)<br />

juristas e nos interesses da classe dominante. De qualquer modo, propõe-se<br />

o seguinte questionamento: será mesmo que o Po<strong>de</strong>r Judiciário estadual e o<br />

Po<strong>de</strong>r Executivo municipal serão menos conservadores que os nacionais?<br />

Alguns setores dos movimentos <strong>de</strong> rádios também se fazem a mesma<br />

pergunta. Talvez alguns municípios possuam conjunturas favoráveis para a<br />

implementação <strong>de</strong>ssa lei e à participação popular. Mas ocorrerá isso<br />

sempre? E quanto àquelas cida<strong>de</strong>s comandadas por oligarquias bem<br />

distantes do olhar do interesse público?<br />

Essa pon<strong>de</strong>ração precisa ser feita para que não se caia na dicotomia<br />

<strong>de</strong> que o município é bom e a União má. Em verda<strong>de</strong>, necessária é a análise<br />

conjuntural a ser feita ao lado da estrutural. A conjuntura <strong>de</strong> <strong>um</strong> município<br />

po<strong>de</strong>r ser boa, como po<strong>de</strong> não ser. Do Po<strong>de</strong>r Judiciário dos Estados po<strong>de</strong> se<br />

dizer o mesmo. Cabe aos movimentos sociais compreen<strong>de</strong>rem seus<br />

contextos e pleitearem a partir <strong>de</strong>les.<br />

Ainda assim <strong>um</strong> arg<strong>um</strong>ento relativo à participação <strong>de</strong>mocrática faz<br />

com que eu seja, <strong>de</strong> início, também <strong>de</strong>fensor da tese da municipalização:<br />

aquele da pressão popular quando das <strong>de</strong>cisões <strong>de</strong> outorga. A proximida<strong>de</strong><br />

do centro <strong>de</strong>cisório <strong>de</strong>finitivamente a<strong>um</strong>enta o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> pressão dos<br />

movimentos e das rádios comunitárias. O processo <strong>de</strong> outorga <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser<br />

algo distante, ao menos fisicamente, embora o apartheid simbólico que<br />

ronda o Estado permaneça. Se a oligarquia repressora existir, a repressão<br />

ainda assim existirá. Mas o repressor ganha rosto. Deixa <strong>de</strong> ser o nunca<br />

dantes visto Ministro das Comunicações e passa a ser o prefeito, o juiz, o<br />

secretário etc. De todo modo, as análises conjunturais <strong>de</strong>vem ser<br />

concretizadas. Só a partir <strong>de</strong>la é possível dizer, em razão da libertação<br />

dos(as) oprimidos(as), se a municipalização servirá ou não aos interesses<br />

das classes populares.<br />

5. Conclusão: o que cabe às rádios comunitárias.<br />

Lembro-me <strong>de</strong> estar em meio a <strong>um</strong>a aula <strong>de</strong> direitos h<strong>um</strong>anos, do<br />

curso <strong>de</strong> graduação da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong><br />

92


Pernambuco, quando a docente responsável pela condução da disciplina<br />

tocou na temática da <strong>de</strong>sobediência civil. Sua fala con<strong>de</strong>nava a<br />

<strong>de</strong>sobediência segundo a arg<strong>um</strong>entação <strong>de</strong> que o direito jamais po<strong>de</strong>ria<br />

prever seu próprio <strong>de</strong>sc<strong>um</strong>primento. À época eu pesquisava justamente a<br />

prática da <strong>de</strong>sobediência civil por parte das rádios comunitárias e entendiaa<br />

como i<strong>de</strong>ntitária àqueles sujeitos que em seu exercício se uniam em nome<br />

da efetivação daquilo que reconheciam como <strong>um</strong> direito h<strong>um</strong>ano. Expus<br />

minhas discordâncias aos posicionamentos da docente, no que ouvi <strong>de</strong> <strong>um</strong>a<br />

colega <strong>de</strong> turma como resposta: - Mas qual é o problema <strong>de</strong>ssas rádios<br />

esperarem alguns anos para funcionar? Qual é a pressa? Imediatamente a<br />

docente complementou: - Também não entendi.<br />

Ainda tentei convencê-las da relevância das rádios comunitárias<br />

como sujeitos coletivos e movimentos populares, mas acredito que tenha<br />

sido minha tentativa <strong>um</strong>a tarefa frustrada. Suas concepções <strong>de</strong> mundo não<br />

permitiam que elas enxergassem o, e se permitiam faziam com elas<br />

discordassem do papel histórico das rádios comunitárias como sujeitos <strong>de</strong><br />

libertação dos(as) oprimidos(as). De fato, as rádios comunitárias percebem<br />

na legislação e no Estado <strong>um</strong>a injustiça que minha colega <strong>de</strong> turma e a<br />

docente não recebiam em suas concepções <strong>de</strong> mundo. Bem afirma Pierre<br />

Bourdieu “que a sensibilida<strong>de</strong> à injustiça ou a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> perceber <strong>um</strong>a<br />

experiência como injusta não está uniformemente espalhada e que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong><br />

estreitamente da posição ocupada no espaço social” (2007, p. 232).<br />

O campo jurídico, em sua luta simbólica pelo monopólio <strong>de</strong> revelar<br />

os direitos e, simultaneamente as injustiças, termina por “con<strong>de</strong>nar o<br />

sentimento <strong>de</strong> injustiça firmado apenas no sentido <strong>de</strong> equida<strong>de</strong>”<br />

(BOURDIEU, 2007, p. 232). Con<strong>de</strong>na, <strong>de</strong>ssa maneira, as rádios<br />

comunitárias e os movimentos sociais e populares que, por construírem a<br />

contra-hegemonia e anunciarem as injustiças por vias não consagradas pelo<br />

campo jurídico, ameaçam a hegemonia. Tal con<strong>de</strong>nação não <strong>de</strong>manda<br />

sentença transitada em julgado, ou <strong>de</strong>vido processo legal. É ela parte do<br />

habitus do campo jurídico, é constitutiva <strong>de</strong> seu senso-com<strong>um</strong>. Nesse<br />

campo, apesar da existência <strong>de</strong> alg<strong>um</strong>as posturas orgânicas aos interesses<br />

da contra-hegemonia como a que eu mesmo pretendo fortalecer com o<br />

presente texto, <strong>de</strong> suas disputas internas pelo po<strong>de</strong>r simbólico <strong>de</strong> dizer o<br />

que é e o que não é o direito, saem vitoriosos naquilo que é <strong>de</strong>terminante à<br />

93


hegemonia sempre os agentes jurídicos vinculados às concepções <strong>de</strong> mundo<br />

das classes dominantes.<br />

Por isso não cabe aqui <strong>um</strong> discurso que com<strong>um</strong>ente se acha nos<br />

textos jurídicos <strong>de</strong> que “é preciso mudar o Judiciário, fazer com que os/as<br />

magistrados(as) passem a ver as coisas <strong>de</strong> outras forma”. A postura contrahegemônica<br />

no Po<strong>de</strong>r Judiciário é, como já dito, <strong>de</strong> resistência. Quer ela sim<br />

agregar mais sujeitos, mas não sob a ilusão <strong>de</strong> que conquistará a<br />

legitimida<strong>de</strong> simbólica para dizer o que é e o que não justo. Preten<strong>de</strong> ela<br />

agregar mais sujeitos para mais fortemente resistir. E, resistindo,<br />

escancarar as contradições existentes nos discursos e práticas do campo<br />

jurídico ao tempo em que, n<strong>um</strong> ou noutro momento, é capaz <strong>de</strong> formar<br />

<strong>de</strong>cisões contrárias àquelas hegemônicas revelando, também assim, as<br />

referidas contradições do campo.<br />

Além disso, não cabe aqui <strong>um</strong> discurso que <strong>de</strong>fenda a intervenção<br />

do Po<strong>de</strong>r Judiciário na socieda<strong>de</strong> com o fulcro <strong>de</strong> transformá-la. Fortalecer o<br />

Po<strong>de</strong>r Judiciário é algo bastante perigoso à libertação dos(as)<br />

oprimidos(as), principalmente porque a ele cabe, estruturalmente, a<br />

“consagração da or<strong>de</strong>m estabelecida” (BOURDIEU, 2007). As<br />

transformações sociais coerentes com a libertação dos homens oprimidos e<br />

das mulheres oprimidas cabem aos próprios homens e mulheres em<br />

situação <strong>de</strong> opressão (FREIRE, 1987). Por isso é pertinente dizer que às<br />

rádios comunitárias é cabido algo que nem <strong>de</strong> longe pertence ao direito –<br />

ao menos não ao direito estatal – o que seja, a real transformação<br />

libertadora do mundo. Compete a esses sujeitos históricos o que é <strong>de</strong><br />

pertinência da contra-hegemonia: o diálogo, o encontro do povo com o<br />

povo, sua organização.<br />

REFERÊNCIAS<br />

ABRAÇO, Associação Brasileira <strong>de</strong> Rádios Comunitárias. Dossiê querem<br />

calar a voz do povo II. 2005<br />

BOURDIEU, Pierre. O po<strong>de</strong>r simbólico.10ª. ed., Rio <strong>de</strong> Janeiro: Bertrand<br />

Brasil, 2007.<br />

______. A economia das trocas simbólicas. 6ª. ed., São Paulo:<br />

Perspectiva, 2005.<br />

BRASIL, Justiça Fe<strong>de</strong>ral do Estado <strong>de</strong> Sergipe. Processo criminal nº.<br />

98.5181-3 – Classe: 7000/1ª. Vara/Justiça Fe<strong>de</strong>ral do Estado <strong>de</strong> Sergipe/<br />

Juiz Ricardo César Mandarino Barretto/ Data da <strong>de</strong>cisão: 31.03.2000.<br />

94


BRASIL, Superior Tribunal <strong>de</strong> Justiça. Mandado <strong>de</strong> segurança nº. 579020 –<br />

AL, 2003/0134420-1/1ª Turma/STJ/Rel.: José Delgado – Dj. 05.12.2005, p.<br />

223<br />

______. Recurso especial nº. 509501 – RS, 2003/0047428-9/5ª<br />

Turma/STJ/Rel.: Gilson Dipp – Dj. 02.08.2004, p. 492.<br />

______. Mandado <strong>de</strong> segurança nº. 9123 – DF, 2003/0106880-5/Primeira<br />

Seção/STJ/Rel.: Castro Meira – Dj. 25.02.2004, p. 90<br />

______. Habeas corpus nº. 31483 - MG (2003/0197015-7)/1ª<br />

Turma/STJ/Rel.: Luiz Fux – Dj. 19.12.2003, p. 321.<br />

______. Habeas corpus nº. 19917 - PB (2001/0194913-8)/6ª<br />

Turma/STJ/Rel.: Vicente Leal – Dj. 19.12.2002, p. 440<br />

BRASIL, Tribunal Regional Fe<strong>de</strong>ral da 3ª Região. Acórdão na RCCR nº.<br />

03022040-0-SP/2ª. Turma/TRF 3ª. Região/ Rel.: Juíza Sylvia Steiner/ DJ-<br />

Data: 05-06-96/P. 38187.<br />

______. Hábeas corpus nº. 00500677-6-PB/1ª. Turma/TRF 5ª. Região/Rel.:<br />

Juiz Hugo Machado/DJ-Data: 13-06-97/P. 43653.<br />

CABRAL, Eula. Municipalização das rádios comunitárias: luz no fim do<br />

túnel (?). Disponível em: www.comunicacao.pro.br/setepontos. Acesso em:<br />

21 <strong>de</strong> set. <strong>de</strong> 2006.<br />

CAMPILONGO, Celso Fernan<strong>de</strong>s. Os <strong>de</strong>safios do Judiciário: <strong>um</strong><br />

enquadramento teórico. In: FARIA, José Eduardo (org.). Direitos<br />

h<strong>um</strong>anos, direitos sociais e justiça. São Paulo: Malheiros Editores,<br />

2005. p. 30-51.<br />

FARIA, José Eduardo. (org.). Direitos h<strong>um</strong>anos, direitos sociais e<br />

justiça. São Paulo: Editora Malheiros, 2005.<br />

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17 ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Paz e<br />

Terra, 1987.<br />

GRAMSCI, Antônio. Concepção dialética da história. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Civilização Brasileira, 1966.<br />

GRUPPI, Luciano. El concepto <strong>de</strong> Hegemonía en Gramsci. México:<br />

Ediciones <strong>de</strong> Cultura Popular, 1978.<br />

JAMESON, Fredric. O pós-mo<strong>de</strong>rnismo e o mercado In ZIZEK, Slavoj. Um<br />

mapa da i<strong>de</strong>ologia. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Contraponto, 1996.<br />

SANTOS, Juarez Cirino. A criminologia crítica e a reforma da legislação<br />

penal. Florianópolis, XIX Conferência Nacional dos Advogados, 2005.<br />

Disponível em:<br />

http://www.cirino.com.br/artigos/jcs/criminologia_critica_reforma_legis_pe<br />

nal.pdf. Acesso em: 21 <strong>de</strong> out. <strong>de</strong> 2007.<br />

SILVEIRA, Paulo Fernando. Rádios Comunitárias. Belo Horizonte: Del Rey,<br />

2001.<br />

95


PROTAGONISTAS DE UM PASSADO HISTÓRICO RECENTE: LUTAS E<br />

VISÕES DE UMA CRENÇA EM UM MUNDO MAIS JUSTO<br />

* Dacier Barros e Silva<br />

** Cecília Santana<br />

“Meus colegas não se conformam <strong>de</strong> eu dizer que nós per<strong>de</strong>mos a<br />

guerra. Eles dizem: ‘não, nós per<strong>de</strong>mos a batalha!’. Nada disso, nós<br />

per<strong>de</strong>mos a guerra. Eu sou talvez o único que tenha a coragem <strong>de</strong> dizer.<br />

Não existe mais socialismo nenh<strong>um</strong>. Pra tudo tem <strong>um</strong> tempo. A pregação<br />

do século XX não po<strong>de</strong> ser a do XXI. Não é que eu abdiquei das minhas<br />

idéias. Faça <strong>um</strong> teste por aí com esse pessoal que se diz <strong>de</strong> esquerda. Qual<br />

<strong>de</strong>les é <strong>de</strong> fato?”. Prestes a completar 75 anos, Iberé Baptista bate na<br />

mesa. Gesticulando muito, mantinha <strong>um</strong> olho na conversa e outro na água<br />

do café que fervia na cozinha. Talvez tão elétrico e ativo quanto em 25 <strong>de</strong><br />

novembro <strong>de</strong> 1964. A entrevista, feita no dia 26, foi <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong><br />

comemoração dos 44 anos <strong>de</strong> sua prisão. Motivo: subversão e corrupção.<br />

Ouvindo-se a exteriorização <strong>de</strong>ste sentimento, às vezes parece ser<br />

exótico ainda encontrar pessoas fiéis a i<strong>de</strong>ologias que resgatam a crença<br />

n<strong>um</strong> mundo mais justo, n<strong>um</strong> mundo on<strong>de</strong> se transita com tanta facilida<strong>de</strong><br />

ausente da conotação <strong>de</strong> antagonia entre discursos e práticas opostos.<br />

Iberé se <strong>de</strong>fine como “agnóstico, materialista da cabeça aos pés”, e tudo<br />

isso com orgulho e segurança <strong>de</strong> si próprio. Mesmo para aqueles que<br />

nasceram n<strong>um</strong>a época em que os países socialistas já não existem mais –<br />

ou que ao menos se mostram como <strong>um</strong>a experiência fracassada, a exemplo<br />

<strong>de</strong> Cuba – não se po<strong>de</strong> negar a importância da contribuição <strong>de</strong>sses<br />

“subversivos”. A doutrina que os guiou não fala, hoje, mais alto do que a<br />

condição <strong>de</strong> eterno militante social. São décadas <strong>de</strong> trabalho e <strong>de</strong> tempo <strong>de</strong><br />

vida que Iberé, Luiz Momesso, Antonio <strong>de</strong> Campos e Delzuite da Costa Silva<br />

<strong>de</strong>dicam a <strong>um</strong>a crença n<strong>um</strong> país mais justo.<br />

Todos eles tinham <strong>um</strong>a “vocação” para se incomodar com a<br />

situação precária na qual o povo brasileiro estava, e ainda está. De classe<br />

média, camponeses ou <strong>de</strong> bairros pobres dos centros urbanos, tiveram sua<br />

96


consciência <strong>de</strong>spertada por alg<strong>um</strong> acontecimento histórico, pelo<br />

comunismo, que naquela época se apresentava como possibilida<strong>de</strong> com a<br />

qual muitos sonhavam, ou por ver as <strong>de</strong>sgraças ocorrerem na sua frente,<br />

no cotidiano. Em Jaboatão, fazendo <strong>um</strong> piquenique com amigos, alguns<br />

mendigos chamaram a atenção <strong>de</strong> Delzuite. Conversando com eles,<br />

<strong>de</strong>scobriu que jornais velhos eram tudo que tinham <strong>de</strong> agasalho à noite. Ela<br />

<strong>de</strong>cidiu criar <strong>um</strong> mini-mutirão: convenceu os companheiros a trazer lençóis,<br />

e <strong>um</strong> dos meninos daria <strong>um</strong> colchão usado na casa <strong>de</strong> praia. No dia <strong>de</strong><br />

entregar as doações, os mendigos se emocionaram: “cadê as asinhas <strong>de</strong><br />

vocês?”. A partir <strong>de</strong> então, os amigos passaram a levar toda semana <strong>um</strong><br />

pouco <strong>de</strong> comida que tiravam às escondidas <strong>de</strong> casa. Delzuite inclusive<br />

comprava “fiado na bo<strong>de</strong>ga pra minha mãe pagar, que só recebia <strong>um</strong>a<br />

pensão do meu pai”. Ela tinha 15 anos.<br />

Também ainda muito novo Iberé “começou a olhar pro mundo”.<br />

Nessa época, a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Natal servia como base para as tropas americanas<br />

que iam para a Europa e para a África durante a II Guerra. Influenciado por<br />

esse ambiente, “ouvia as conversas dos adultos, e lia”. Aos 13 anos, <strong>de</strong>ramlhe<br />

Engels para ler. “Eu não entendia, mas ficava a vonta<strong>de</strong>. É <strong>um</strong>a questão<br />

<strong>de</strong> <strong>um</strong>a conversa que faz tua cabeça tomar <strong>um</strong> r<strong>um</strong>o. Eu po<strong>de</strong>ria até ir pro<br />

seminário ser padre, mas eu peguei essa vertente”, afirma.<br />

Filho <strong>de</strong> imigrantes italianos “pobres, que vieram lascados pra<br />

trabalhar em fazendas <strong>de</strong> café”, Luiz Momesso nasceu em Taiaçu, povoado<br />

do interior <strong>de</strong> São Paulo. Contou que há pouco tempo achou <strong>um</strong>a foto da<br />

casa <strong>de</strong> barro on<strong>de</strong> morava. “Eu me lembro que a gente matava barbeiros<br />

nas rachaduras do barro”. Em 1962, na região dos canavieiros <strong>de</strong> Ribeirão<br />

Preto, ajudando dos padres e do bispo, via como a vida <strong>de</strong>les era sofrida.<br />

Mas, “eles passavam o dia com os trabalhadores, mas iam jantar com os<br />

usineiros. Eu achava aquilo errado”. Vinculou-se à Juventu<strong>de</strong> Agrária<br />

Católica – JAC-, que tinha <strong>um</strong>a visão contestadora e reformista.<br />

Quilômetros distantes, em João Pessoa, no Diretório Acadêmico<br />

do Liceu Paraibano, presi<strong>de</strong>nte e vice eram escolhidos em votações<br />

separadas, assim como nas eleições presi<strong>de</strong>nciais ocorridas entre o fim do<br />

Estado Novo, em 1945, até o início da ditadura. E tal qual João Goulart em<br />

1955, Antonio <strong>de</strong> Campos foi eleito vice com mais votos do que o<br />

presi<strong>de</strong>nte. Com 19 anos, via o panorama político conturbado pelo qual o<br />

97


Brasil passava. “O movimento estudantil percebia alg<strong>um</strong>a coisa interessante<br />

fora da nossa vidinha. Toda a história <strong>recente</strong> política do Brasil <strong>de</strong>spertava a<br />

curiosida<strong>de</strong>, e teve a Revolução Cubana”.<br />

Essa revolução constituiu <strong>um</strong> marco para muita gente, <strong>um</strong> exemplo<br />

a ser admirado. Maravilhado, Antonio Campos traz a memória <strong>de</strong> volta à<br />

vida. Aquele país nas “barbas do galego” alimentou as esperanças <strong>de</strong><br />

muitos jovens como ele. “Eu acreditava que o caminho era aquele. Uma ilha<br />

junto da maior nação do mundo fazer <strong>um</strong>a revolução e triunfar?”. No<br />

começo dos anos 60, todos já estavam enterrados até o pescoço em alg<strong>um</strong>a<br />

organização política do campo, dos operários ou em partidos <strong>de</strong> inspiração<br />

marxista, <strong>de</strong>sempenhando seus papéis nas <strong>lutas</strong> sociais.<br />

Entre 62 e 63, Campos mudou completamente <strong>de</strong> vida. Recusou-se<br />

a integrar o Partido Comunista por causa da sua linha pacifista. Decidiu<br />

então se unir a companheiros n<strong>um</strong> grupo <strong>de</strong> estudos sobre marxismo “para<br />

criar <strong>um</strong>a coisa in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> tudo”. Surge a Vanguarda Leninista,<br />

formada por estudantes da Paraíba, <strong>de</strong> Pernambuco e remanescentes do<br />

Movimento Revolucionário Tira<strong>de</strong>ntes, atuando em fábricas, junto aos<br />

estudantes e camponeses. Já em agosto <strong>de</strong> 63 per<strong>de</strong>u Jeremias, nome <strong>de</strong><br />

guerra <strong>de</strong> Paulo Roberto Pinto. Era <strong>um</strong> companheiro que atuava no Engenho<br />

Oriente, em Itambé, assassinado n<strong>um</strong>a emboscada, com 17 tiros, a mando<br />

dos proprietários das terras. A essa altura, mesmo sendo <strong>um</strong> jovem<br />

estudante, Campos estava envolvido a ponto <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r o medo e achar que<br />

a luta <strong>de</strong> Jeremias não foi em vão.<br />

“A<strong>de</strong>mar <strong>de</strong> Barros [ex-governador <strong>de</strong> São Paulo] comprou 25 mil<br />

fuzis AR-15 para que os latifundiários se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ssem da gente”. Esse<br />

mesmo mundo <strong>de</strong> disputas no campo mudou a vida <strong>de</strong> Delzuite. Em 62, seu<br />

talento natural para a militância esbarrou com as Ligas Camponesas,<br />

entida<strong>de</strong> li<strong>de</strong>rada por Francisco Julião Arruda <strong>de</strong> Paula, que organizava os<br />

trabalhadores dos engenhos e usinas da Zona da Mata <strong>de</strong> Pernambuco,<br />

Paraíba e Alagoas em torno da luta pela reforma agrária. Aos 26 anos<br />

conheceu participantes do movimento e logo foi convidada a integrá-lo.<br />

Executando suas tarefas nos engenhos, percebeu logo as brigas<br />

entre os sindicatos rurais e as ligas. “Me perguntei o porquê disso, se todos<br />

lutavam pelo mesmo i<strong>de</strong>al”. A vaida<strong>de</strong> é <strong>um</strong> traço que permeia o ser<br />

h<strong>um</strong>ano, e não importa época nem lugar. O po<strong>de</strong>r facilmente entorpece e,<br />

98


em ambientes <strong>de</strong> disputa pela li<strong>de</strong>rança, é praticamente obrigatório que os<br />

homens comecem a se bicar. “Não passava disso mesmo. (...) Aquilo<br />

parecia mais <strong>um</strong>a guerra <strong>de</strong> bandidos, <strong>de</strong> gente que não tinha i<strong>de</strong>al, que<br />

não sabia o que queria. Eram apenas pessoas que queriam aparecer. A<br />

história do camponês era <strong>de</strong> luta muito séria, eles não podiam ver <strong>um</strong>a<br />

pouca vergonha daquela”. Sensível à situação, por vonta<strong>de</strong> própria, Delzuite<br />

fez <strong>um</strong> relatório sobre o que viu e o entregou a Francisco Julião. De certa<br />

forma, aquilo foi <strong>um</strong>a afronta - <strong>um</strong>a novata que apontava para o gran<strong>de</strong><br />

lí<strong>de</strong>r <strong>um</strong>a das gran<strong>de</strong>s fraquezas do movimento. “Ele achou que eu, pra ser<br />

iniciante nas Ligas Camponesas, era espiã porque sabia <strong>de</strong>mais”. E como<br />

novata inexperiente, ela chorou muito e não quis mais ficar ali. Quem<br />

<strong>de</strong>sfez o mal entendido foi Alexina Arruda <strong>de</strong> Paula, esposa <strong>de</strong> Julião: “’é<br />

porque você é <strong>um</strong>a pessoa simples que usou <strong>um</strong>a linguagem <strong>de</strong> intelectual,<br />

<strong>de</strong> pessoa que sabe das coisas’”.<br />

Delzuite dividia sua vida entre os estudos na Aca<strong>de</strong>mia<br />

Brasiliense Comercial e as Ligas. Lá se apaixonou por Adauto Freire da<br />

Cruz. A novata mais <strong>um</strong>a vez se meteu com as li<strong>de</strong>ranças. Freire, como ela<br />

o chama, ass<strong>um</strong>ia as funções na ausência <strong>de</strong> Julião. Comunista, já tinha<br />

sido preso em 56. Até treinamento militar em Cuba o homem fez.<br />

Separado, 46 anos e <strong>um</strong>a penca <strong>de</strong> filhos. Uma luta a mais ou a menos não<br />

faria diferença. Os dois passaram a namorar. Diante da “tendência enorme<br />

a trabalhar frente às massas, gritar as injustiças, ir pro meio da rua e falar<br />

que tava tudo errado” que ela tinha, “ele me colocava sempre na frente<br />

porque ele achava que eu tinha essa estrela”.<br />

“Passei a adorar o que eu fazia, e a pregar reforma agrária na lei ou<br />

na marra. Quando eu subia n<strong>um</strong> palanque que falava da reforma, eu dizia<br />

que a terra tinha que ser do homem do campo, a terra é para quem nela<br />

trabalha, com condições e com tecnologia. Eu já falava nessa linguagem, eu<br />

era tão aplaudida no mundo! Era aclamada no meio dos camponeses, todo<br />

mundo dizia ‘é <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> lí<strong>de</strong>r’”. Apesar <strong>de</strong> sempre levantar essa<br />

ban<strong>de</strong>ira, as Ligas também faziam <strong>um</strong> trabalho <strong>de</strong> formiguinha,<br />

conscientizando os trabalhadores e cuidando das urgências do dia-a-dia.<br />

Outro integrante do movimento era Iberé. Des<strong>de</strong> 60 ele passava<br />

seus fins <strong>de</strong> semana e suas férias nas cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Goiana, Igarassu, Paulista<br />

e Timbaúba para conversar com trabalhadores e instruí-los. De acordo com<br />

99


ele, os camponeses até hoje sabem pouco dos problemas que acontecem<br />

pelo mundo, e por isso ele tentava mostrar lentamente porque “o mundo é<br />

como é”, resgatando a história e os conflitos da aristocracia rural. Iberé diz<br />

ainda que as Ligas não eram revolucionárias, e que <strong>um</strong> dos principais<br />

objetivos era ajudar no possível: “arranjar <strong>um</strong> caixão pras criancinhas que<br />

morriam. Os pais não tinham dinheiro. Havia necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mudar as<br />

coisas, as Ligas se transformaram n<strong>um</strong> instr<strong>um</strong>ento”.<br />

“A gente tava se preparando pra <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> tomada <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão<br />

nesse país, mas o golpe veio primeiro e acabou com tudo”.<br />

Em fevereiro <strong>de</strong> 64, Campos estava <strong>de</strong> passagem na cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro com <strong>um</strong> companheiro. Voltavam do congresso do PORT (Partido<br />

Operário Revolucionário Trotskista), ao qual tinha se filiado. Com <strong>um</strong>a pasta<br />

cheia <strong>de</strong> livros subversivos e <strong>um</strong>a faca, foi preso no bairro do Catete.<br />

Campos viu o “companheiro” sair andando calmamente <strong>de</strong>pois que os<br />

policiais o pegaram. Levado para o Dops (Departamento <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>m Política e<br />

Social, cujo objetivo era controlar e reprimir movimentos políticos e sociais<br />

contrários ao regime), teve a sorte <strong>de</strong> ser reconhecido por <strong>um</strong> policial<br />

militar que havia trabalhado com seu tio, José Carlos Néri, herói <strong>de</strong> guerra<br />

da Marinha e diretor <strong>de</strong> <strong>um</strong>a penitenciária.<br />

“Um cara do nor<strong>de</strong>ste no Catete, dizendo que ia pra <strong>um</strong>a reunião<br />

na UNE... Eu caí na prisão no momento em que o golpe ia acontecer, por<br />

acaso. Havia interesse em pegar qualquer pessoa”. Deu nos jornais: “Preso<br />

gran<strong>de</strong> subversivo do Nor<strong>de</strong>ste”. De <strong>de</strong>ntro do Dops Campos acompanhou o<br />

Comício da Central do Brasil, no dia 13 <strong>de</strong> março. Lá, ouviu João Goulart<br />

anunciar as reformas <strong>de</strong> base e Carlos Prestes, lí<strong>de</strong>r comunista histórico no<br />

nosso país, dizer que “estamos no governo, só nos falta o po<strong>de</strong>r. Jamais <strong>um</strong><br />

militar se levantará contra nós. Tentem pra ver a reação a qualquer<br />

golpe!”. Fodido foi o adjetivo usado por Campos para avaliar a situação <strong>de</strong>le<br />

a partir <strong>de</strong> então. “Eu vi que o golpe ia acontecer”.<br />

No dia 31 <strong>de</strong> março, a população carcerária do Dops a<strong>um</strong>entou e<br />

todos tiveram que ser levados à Invernada da Olaria. Campos foi sem saber<br />

se ia voltar vivo. A Invernada é <strong>um</strong> lugar do qual até hoje não se sabe<br />

100


muito. Não havia doc<strong>um</strong>entos que registrassem a entrada dos presos. Lá,<br />

Carlos Lacerda, governador do Rio, e Gustavo Boré, secretário <strong>de</strong><br />

segurança, testavam alguns métodos <strong>de</strong> tortura e <strong>de</strong> aniquilamento. “Se<br />

não fosse meu tio eu tava lascado, ele chegou lá gritando, ameaçando<br />

quem tocasse em mim”. À noite escutava os gritos e fuzilamentos e via os<br />

mortos sendo levados. “Só aquilo <strong>de</strong>sestabiliza qualquer <strong>um</strong>”.<br />

Ao contrário <strong>de</strong> Campos, o Golpe foi <strong>um</strong>a surpresa para Delzuite,<br />

em Recife. Sem ler jornais ou escutar o rádio, estranhou o fato <strong>de</strong> a se<strong>de</strong><br />

das Ligas Camponesas estar vazia, no que seria <strong>um</strong> dia normal. Seria se<br />

não fosse primeiro <strong>de</strong> abril. Não era mentira: Freire telefona: “Tá<br />

acontecendo <strong>um</strong> golpe <strong>de</strong> estado! Se nós não sairmos daqui agora vamos<br />

ser presos e quem sabe torturados e mortos. Vamos pra Vitória <strong>de</strong> Santo<br />

Antão nos reorganizar pra resistir. À noite vamos receber armas”. Delzuite<br />

ainda teve tempo <strong>de</strong> passar em casa e apanhar alg<strong>um</strong>as roupas. Sua mãe<br />

não entendia nada, e perguntava se o que ia fazer era “perigoso”. O perigo<br />

se apresentava <strong>de</strong> diversas formas para <strong>um</strong>a moça, que <strong>de</strong>veria se manter<br />

virgem e ainda cuidar dos camponeses, mas a mãe confiou na filha.<br />

Chegando a Vitória, Delzuite e seus companheiros encontraram<br />

camponeses, no Engenho Queimados, que escutavam pelo rádio a<br />

resistência do governador Miguel Arraes em <strong>de</strong>ixar o cargo.<br />

“‘Companheiros, viemos aqui pra resistir a esse golpe. Vamos reagir se unir<br />

aos companheiros <strong>de</strong> Vitória. Viemos aqui justamente pra levar vocês’.<br />

Quando dissemos isso, foram saindo <strong>um</strong> por <strong>um</strong>. Só restaram <strong>um</strong>as seis<br />

pessoas”. A resistência mencionada por Delzuite tinha sido toda presa. O<br />

grupo restante, on<strong>de</strong> estavam ela e Freire, escon<strong>de</strong>u-se nas matas, isolados<br />

e sem assistência. “O único contato eram os camponeses, que se danaram<br />

a beber cachaça. Ficou perigoso porque eles bebiam e falavam muita<br />

besteira. Teve <strong>um</strong> que falou: ‘eu tô escon<strong>de</strong>ndo na minha casa uns<br />

comunistas, e eu vou mandar eles embora, porque qualquer hora a polícia<br />

po<strong>de</strong> pegar eu também’”. Quarenta e quatro anos mais tar<strong>de</strong> ela constataria<br />

que a luta era “muito imatura”, e que o trabalho <strong>de</strong> conscientização dos<br />

camponeses não estava consolidado a ponto <strong>de</strong> formar <strong>um</strong> verda<strong>de</strong>iro<br />

movimento.<br />

Quatro dias <strong>de</strong>pois Delzuite <strong>de</strong>cidiu voltar a Jaboatão, on<strong>de</strong><br />

morava, e conseguiu <strong>um</strong>a carona na estrada. N<strong>um</strong> jipe com militares. “Na<br />

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hora eu não vi”. Apesar do turbilhão <strong>de</strong> coisas ruins que passava pela sua<br />

cabeça, conseguiu chegar em casa. A mãe sempre inquieta, perguntando<br />

“on<strong>de</strong> ela estava com aquele homem”. Um irmão levou o casal para se<br />

escon<strong>de</strong>r em Flores, cida<strong>de</strong> do sertão do Pajeú on<strong>de</strong> Delzuite tinha<br />

parentes. Outros percalços estavam para acontecer.<br />

Campos permaneceu na Invernada até o início <strong>de</strong> maio. Seu tio<br />

conseguiu <strong>um</strong>a audiência com <strong>um</strong> juiz, e, alegando que o sobrinho era<br />

menor <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> (a maiorida<strong>de</strong> então só era alcançada aos 21 anos),<br />

conseguiu que Campos respon<strong>de</strong>sse ao processo em liberda<strong>de</strong>. “Os caras<br />

não tiveram o gostinho <strong>de</strong> me levar <strong>de</strong> volta pra Invernada, porque ia ser<br />

outra história. Meu tio ficou com a responsabilida<strong>de</strong> da minha guarda pra eu<br />

respon<strong>de</strong>r o processo”.<br />

Vivendo na casa do tio, quietinho, recebeu duas visitas. Uma foi do<br />

“companheiro”, que o chamou para viver em São Paulo. Somente na década<br />

<strong>de</strong> Néri revelaria ao sobrinho que o “companheiro” era do Serviço Secreto<br />

da Marinha e que estava esperando o momento certo para entregar todos<br />

do PORT. A outra foi <strong>de</strong> Maria Hermínia, que tinha conhecido no congresso<br />

do partido. Os dois saíram para conversar e nunca mais voltaram.<br />

Tornaram-se companheiros em todos os sentidos, vivendo juntos por alg<strong>um</strong><br />

tempo. “Deixei meu tio n<strong>um</strong>a enrascada. Nem voltei pra me <strong>de</strong>spedir,<br />

fomos pra rodoviária e fui embora pra São Paulo. Dez anos na<br />

clan<strong>de</strong>stinida<strong>de</strong> no eixo Rio, São Paulo, Porto Alegre, Argentina e Uruguai,<br />

com vindas ao Nor<strong>de</strong>ste. Con<strong>de</strong>nado em cinco estados, com média <strong>de</strong> cinco<br />

anos <strong>de</strong> prisão” em cada <strong>um</strong> <strong>de</strong>les.<br />

Clan<strong>de</strong>stinida<strong>de</strong> foi o que restou para Iberé. Assim como Campos,<br />

ele foi da Vanguarda Leninista, <strong>um</strong> grupo que reunia comunistas <strong>de</strong> várias<br />

vertentes. Em sua opinião, não havia nenh<strong>um</strong> movimento forte o suficiente<br />

que se contrapusesse à Ditadura. Assim, vários movimentos logo caíram<br />

<strong>de</strong>vido à falta <strong>de</strong> organização. Integrantes da Vanguarda foram capturados<br />

em primeiro <strong>de</strong> novembro. Submetidos à tortura, revelaram o nome <strong>de</strong><br />

Iberé. No dia 25 foi preso na Benfica. Fez <strong>um</strong> périplo entre vários quartéis e<br />

prisões recifenses e, em 16 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro, foi levado para Fernando <strong>de</strong><br />

Noronha, on<strong>de</strong> ficou durante quatro meses. Voltou ao Recife, à Casa <strong>de</strong><br />

Detenção (atual Casa da Cultura), “esperando o que ia acontecer” e, em<br />

setembro <strong>de</strong> 65, foi liberado para respon<strong>de</strong>r o processo em liberda<strong>de</strong>. Em<br />

102


68 foi con<strong>de</strong>nado a seis anos <strong>de</strong> prisão. Mas aí <strong>um</strong> amigo arranjou-lhe <strong>um</strong><br />

doc<strong>um</strong>ento falso e Iberé foi viver em Feira <strong>de</strong> Santana até 1980.<br />

Escon<strong>de</strong>r-se da repressão talvez fosse possível, mas não do<br />

conservadorismo familiar. Em Flores, todos perguntavam o que <strong>um</strong>a moça<br />

como Delzuite estaria fazendo com Freire. “Era <strong>um</strong>a ladainha, <strong>um</strong><br />

sofrimento terrível, <strong>um</strong>a tortura, mas eu tinha que salvar Freire. Não era<br />

tanto por mim, eu era novata”, que era acusada apenas <strong>de</strong> agitação: “n<strong>um</strong><br />

comício que eu fiz na Paraíba instiguei o pessoal a matar os usineiros que<br />

iam colocar chocalho no pescoço do camponês”. Freire já estava sendo<br />

procurado a pente fino – as Ligas Camponesas foi <strong>um</strong> dos primeiros<br />

movimentos a se <strong>de</strong>sorganizar com o Golpe. Para protegê-lo, Delzuite<br />

inventou que os dois iam se casar. E qual a receita para se casar com <strong>um</strong><br />

comunista, tão querido pelo regime militar, naquela situação? Elementar.<br />

Arranje <strong>um</strong> doc<strong>um</strong>ento falso com o nome <strong>de</strong> Antônio Celestino. Arranje<br />

também <strong>um</strong> camponês, o Zacarias, que sirva como figurante na hora do<br />

casamento. E, claro, vista-se com véu e grinalda, como manda o figurino,<br />

no Palácio do Governo. “Pintei e bor<strong>de</strong>i pra salvar o Freire”. E foi mesmo?<br />

O casal não teve muito tempo <strong>de</strong> <strong>de</strong>scanso. Uma irmã foi <strong>de</strong><br />

Jaboatão a Flores para lhe contar a boa nova: procurando por Delzuite,<br />

militares tinham invadido a casa da família. Deram três dias para que ela se<br />

apresentasse, caso contrário, quem seria levada era a mãe. “Fiquei com<br />

vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> voar que nem <strong>um</strong> passarinho, pra dizer que minha mãe não<br />

tinha nada a ver com aquilo, que eu vinha me apresentar”. Freire fica<br />

pensando que iam torturar a mulher para conseguir informações sobre ele.<br />

Delzuite vai dando graças a Deus porque estavam procurando a ela e não<br />

ao marido.<br />

Três militares. “Nunca lhe <strong>de</strong>ram metralhadora? Prometeram a você<br />

<strong>de</strong> tomar conta <strong>de</strong> <strong>um</strong> estado?”. Delzuite passava incól<strong>um</strong>e. Mas aí <strong>um</strong> dos<br />

interrogadores apareceu com <strong>um</strong>a carta que ela havia escrito a <strong>um</strong>a<br />

companheira <strong>de</strong> luta. “Que tarefa é essa aqui que você disse que c<strong>um</strong>priu?”<br />

Era <strong>um</strong>a criança com início <strong>de</strong> catarata que Delzuite levou ao hospital para<br />

ser internada. E era verda<strong>de</strong>. Só que havia <strong>um</strong>a frase <strong>de</strong> teor, digamos,<br />

complicador. “Ou ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil? Que pátria livre é<br />

essa que você quer? A sua pátria tá sendo atacada por quem?”. Resposta:<br />

“quando a gente se forma no colégio, o primeiro hino que a gente canta é<br />

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esse [o da In<strong>de</strong>pendência]. As professoras ensinam isso porque são<br />

patriotas. A nossa pátria já foi muito invadida, por isso esse hino”. Taxada<br />

<strong>de</strong> “comunista disfarçada”, não teve jeito. Delzuite foi levada para a<br />

Secretaria <strong>de</strong> Segurança, mas conseguiu fugir no mesmo dia! Ainda aqui<br />

recebeu conselhos <strong>de</strong> ir embora do estado. Voltou para Flores, pegou o<br />

marido e foi embora para o Rio <strong>de</strong> Janeiro. Isso tudo durante os 15 dias que<br />

se suce<strong>de</strong>ram ao Golpe.<br />

“A Ditadura Militar é <strong>um</strong>a peste, <strong>um</strong>a <strong>de</strong>sgraça, a maior <strong>de</strong>sgraça<br />

que eu vivi na minha vida”!<br />

“Quando houve o Golpe, eu achei <strong>um</strong>a pena, mas não tinha noção<br />

política do que aquilo significava. Só que era ruim”. Lutar contra a Ditadura<br />

durante todos os seus dias foi <strong>um</strong>a missão que Momesso ass<strong>um</strong>iu aos 23<br />

anos, quando se juntou à Ação Popular (AP). Era <strong>um</strong> movimento originado<br />

em 62, nas agremiações católicas, mas que então tinha se transformado<br />

com as teorias marxistas.<br />

O cotidiano <strong>de</strong> Momesso, já em São Paulo, não era <strong>de</strong> alguém que<br />

<strong>de</strong>veria se dar ao luxo <strong>de</strong> militar ativamente. Inicialmente, “eu e mais dois<br />

rapazes morávamos n<strong>um</strong>a casinha, pagando 120 <strong>de</strong> aluguel. Só tinha <strong>um</strong><br />

trabalhando, e esse ganhava 140. Passei seis meses <strong>de</strong> porta em porta das<br />

fábricas, muito revoltado. Seis meses <strong>de</strong> fome. Fome, fome, sabe o que é<br />

fome? [Dá <strong>um</strong> riso <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero] De chegar em casa, sentar os três na<br />

mesa e só ter <strong>um</strong> tiquinho <strong>de</strong> farinha <strong>de</strong> mandioca e <strong>um</strong>a colher <strong>de</strong> pó <strong>de</strong><br />

café”. Na esperança <strong>de</strong> arr<strong>um</strong>ar emprego, ele ia <strong>de</strong> madrugada para as<br />

portas das fábricas. Na Ford, viu o primeiro da fila <strong>de</strong>smaiar e os “caras<br />

maltratando, mandando a gente embora, dizendo que não tinha emprego...<br />

Nesse dia eu tive tanta vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ter <strong>um</strong>a bomba pra jogar <strong>de</strong>ntro da<br />

Ford!”.<br />

Tal qual nas Ligas Camponesas, havia <strong>um</strong> trabalho <strong>de</strong><br />

conscientização e <strong>de</strong> ajuda aos operários. Momesso passou pela Philips, na<br />

cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Capuava, e pela fábrica Aços Vilares, em São Caetano do Sul.<br />

Deixava <strong>de</strong> <strong>de</strong>scansar, buscando <strong>um</strong>a vida mais digna para os operários.<br />

“Trabalhávamos 12 horas à noite na fábrica do sábado pro domingo. Eu<br />

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passava o domingo inteiro na rua, visitando operário, visitando casa,<br />

fazendo reuniões, e voltava pra trabalhar direto das seis da noite até as seis<br />

da manhã da segunda” ou então ajudando alg<strong>um</strong> companheiro a construir<br />

sua casa. Tinha facilida<strong>de</strong> para escrever e realizava ativida<strong>de</strong>s relacionadas<br />

à comunicação. Mudou-se para Mauá em 67, morando na mesma casa que<br />

Betinho, o sociólogo e ativista dos direitos h<strong>um</strong>anos, durante seis meses.<br />

Trabalhavam com jovens. Momesso <strong>de</strong>ixou a cida<strong>de</strong>, mas sob o comando <strong>de</strong><br />

Betinho ainda ficou Raimundo Eduardo da Silva, que foi assassinado sob<br />

tortura. “Foi a primeira vez que eu senti o choque do que era a repressão.<br />

Mais tar<strong>de</strong>, em 91, quando eu fui visitar Betinho, a primeira coisa que ele<br />

me falou é que ainda carregava <strong>um</strong> <strong>de</strong>funto nas costas”.<br />

A primeira vez que teve <strong>de</strong> encarar <strong>de</strong> perto a repressão chegou em<br />

68. Momesso foi preso em flagrante, distribuindo folhetos em apoio à greve<br />

dos metalúrgicos <strong>de</strong> Osasco, e levado ao Dops. “Eles ficaram muito danados<br />

da vida porque o folheto, além <strong>de</strong> apoiar a greve, tinha <strong>um</strong>a frase que eu vi<br />

que eles sublinharam que dizia que só a greve não ia resolver, que era<br />

necessário preparar a luta armada. Fiquei três dias preso, <strong>um</strong>as porradas,<br />

costela quebrada, <strong>um</strong>as bobagens”. Para ser solto, <strong>um</strong> padre, companheiro<br />

das <strong>lutas</strong>, arranjou <strong>um</strong> bispo, que lhe passou <strong>um</strong> sermão diante do<br />

carcereiro, que era ligado à Igreja. Foi julgado à revelia e con<strong>de</strong>nado a seis<br />

meses <strong>de</strong> prisão. É claro que Momesso não se entregou. Vivia n<strong>um</strong><br />

esquema <strong>de</strong> troca constante <strong>de</strong> en<strong>de</strong>reços e não abandonaria a luta. E a<br />

“bobagem” era em comparação ao que viria pela frente.<br />

A essa altura, o Ato Institucional número cinco (AI-5), que dava<br />

po<strong>de</strong>res absolutos ao Regime Militar, tinha sido <strong>de</strong>cretado em <strong>de</strong>zembro do<br />

mesmo ano. Um gole <strong>de</strong>ntro do golpe, criando <strong>um</strong> Estado <strong>de</strong> exceção que<br />

eliminava qualquer resquício <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia. Do fechamento do Congresso<br />

Nacional, passando pela suspensão do direito <strong>de</strong> fazer reuniões <strong>de</strong> cunho<br />

político à censura, o pau ia comer. Diante da radicalização do governo, a<br />

maioria dos partidos <strong>de</strong> esquerda começaram a ver na luta armada a única<br />

solução. “A gente tinha <strong>um</strong>a perspectiva não muito distante <strong>de</strong> fazer a<br />

revolução” e a AP ass<strong>um</strong>e a linha maoísta – luta armada a partir do campo.<br />

Por isso, Momesso foi enviado ao Nor<strong>de</strong>ste.<br />

O preparo começou com estudos sobre estratégia e tática e sobre<br />

os movimentos <strong>de</strong> resistência brasileiros, a exemplos dos cangaceiros, da<br />

105


Coluna Prestes, <strong>de</strong> Canudos, e da Guerra do Vietnã. Após ter <strong>passado</strong> por<br />

Pernambuco, Momesso e <strong>um</strong> companheiro passaram a viajar disfarçados <strong>de</strong><br />

mascates no sertão do Cariri, no Ceará. Estavam vendo a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

criar <strong>um</strong>a guerrilha naquela região, abrangendo o Maranhão e o Piauí. “Uma<br />

guerrilha pega <strong>um</strong>a área <strong>de</strong> ação muito gran<strong>de</strong>, <strong>de</strong> modo que você faz <strong>um</strong>a<br />

ação n<strong>um</strong> lugar e no outro dia tá 50, 100 quilômetros distante. É <strong>um</strong>a coisa<br />

muito móvel, e ao mesmo tempo vai criando raízes nos trabalhadores.<br />

Andava 70, 80 quilômetros por dia no sol quente sem problema. Era <strong>um</strong><br />

trabalho <strong>de</strong> levantamento. A gente conversava com os vaqueiros. Me<br />

adaptei bem, falava bem o arrastado”.<br />

Mas as ambições foram atropeladas em janeiro <strong>de</strong> 70. Outra prisão,<br />

<strong>de</strong>ssa vez na cida<strong>de</strong> cearense do Crato, por jagunços <strong>de</strong> <strong>um</strong> latifundiário<br />

francês. Momesso <strong>de</strong>sconfia <strong>de</strong> ter <strong>passado</strong> na casa <strong>de</strong> alg<strong>um</strong> <strong>de</strong>sses<br />

jagunços. Deu no Jornal do Commercio: “Terrorista pertencente ao grupo <strong>de</strong><br />

Marighela foi capturado no Crato”. A notícia dizia que Momesso confessou<br />

ter se envolvido em falsificação <strong>de</strong> dinheiro. Quando e on<strong>de</strong>? Sabe-se lá se<br />

o discurso ass<strong>um</strong>ido pelo jornal po<strong>de</strong>ria ser outro que não o das fontes<br />

oficiais. Todavia, a verda<strong>de</strong> estava muito longe disso.<br />

Levado a Fortaleza e <strong>de</strong>pois ao Recife, o périplo <strong>de</strong> Momesso por 13<br />

diferentes ca<strong>de</strong>ias durou <strong>um</strong> mês. Submetido a muita pressão e a<br />

interrogatórios constantes, manteve-se tranqüilo a ponto <strong>de</strong> não <strong>de</strong>ixar se<br />

envolver pelos esquemas que tentavam confundi-lo a fim <strong>de</strong> conseguir<br />

extrair alg<strong>um</strong>a informação. “Chegaram a colocar, ou a gente interpretou<br />

que eram prostitutas n<strong>um</strong>a cela do lado. As mulheres falando toda aquela<br />

linguagem <strong>de</strong> prostituta, ‘abre a porta pra gente ficar junto’. Armavam<br />

ciladas. Pegavam outro lá dizendo que era estudante. Armaram <strong>um</strong> monte<br />

<strong>de</strong> coisa pra gente falar, mas não caímos. Eles ofereciam café. Eu não<br />

pegava. Eles eram inimigos. Nada do que eles fazem é pro meu bem. Às<br />

vezes eles começavam com <strong>um</strong>a conversa mais amena. Vários<br />

perguntavam [ao mesmo tempo] coisas pra tentar te confundir. Quando <strong>um</strong><br />

me interrompia, eu dizia ‘peraí que eu não acabei <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r o outro’.<br />

Eles ficavam putos da vida”.<br />

De on<strong>de</strong> sai tanta calma e tanta coragem para enfrentar esse tipo<br />

<strong>de</strong> situação? Por que alguém <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> abdicar da oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ter <strong>um</strong>a<br />

vida “normal” para lutar por <strong>um</strong>a idéia? Na medida em que Momesso<br />

106


espondia a essa questão, lágrimas tímidas surgiam. Era como se lhe<br />

tivessem pedido <strong>um</strong>a razão pela qual a sua passagem nesse mundo valeu a<br />

pena. E esse choro contido não era <strong>de</strong> arrependimento. “Eu tinha convicção.<br />

Quando a gente vai pra <strong>um</strong>a luta <strong>de</strong>ssa, a gente sabe que po<strong>de</strong> ser morto,<br />

levar <strong>um</strong>a bala e ficar aleijado, posso viver 30 anos sem ver família, sei lá<br />

se eu ia ter família... A gente ia pro <strong>de</strong>sconhecido disposto a tudo. Abdicava<br />

<strong>de</strong> tudo por causa <strong>de</strong>sses valores. Quando você toma essa <strong>de</strong>cisão, não vê<br />

mais nada pela frente. Não tinha perspectiva nenh<strong>um</strong>a a não ser <strong>de</strong> estar<br />

na luta. Fi<strong>de</strong>l Castro virou presi<strong>de</strong>nte, mas po<strong>de</strong>ria ter levado <strong>um</strong>a bala. Já<br />

Che morreu. Então, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tomar <strong>um</strong>a <strong>de</strong>cisão assim, não era qualquer<br />

coisa que ia me abalar. A gente dizia que, se fosse preso, a luta seria na<br />

trincheira do inimigo. Lá, primeiro a gente não podia permitir que eles<br />

<strong>de</strong>struíssem a organização. Segunda coisa era proteger os companheiros. E<br />

tentar salvar a vida. Preservar a vida <strong>de</strong>ntro daquela perspectiva. Não era<br />

muito fácil não”.<br />

E iria ficar mais difícil ainda. Quem foi buscar Momesso para levá-lo<br />

<strong>de</strong> volta a São Paulo foi o <strong>de</strong>legado Sérgio Paranhos Fleury, conhecido pelos<br />

métodos cruéis e <strong>de</strong>s<strong>um</strong>anos <strong>de</strong> tortura usados durante os interrogatórios<br />

que presidia para obter confissões. “No aeroporto tinham duas filas <strong>de</strong><br />

policiais esperando a gente, tipo batalhão <strong>de</strong> choque, e a gente <strong>de</strong>sarmado.<br />

Esse pessoal tá com medo do quê? (risos)”. No Dops, Momesso foi colocado<br />

n<strong>um</strong>a cela pequena com mais nove pessoas. Lá estava o grupo que tinha<br />

seqüestrado o embaixador americano, Charles Elbrick. “A gente conversava<br />

muito, então distraía”. Cela superlotada, on<strong>de</strong> nem todo mundo podia<br />

<strong>de</strong>itar-se à noite, com banheiro fedido, era distração em comparação às<br />

pessoas arrebentadas que ele via <strong>de</strong>scer todos os dias. Até então, Momesso<br />

só tinha sido interrogado. Por três dias ele foi chamado pelos policiais, mas<br />

não entregou nenh<strong>um</strong>a informação. Dizia apenas que tinha saído <strong>de</strong> São<br />

Paulo para reorganizar a vida pessoal. “Quando pegavam em flagrante,<br />

caíam <strong>de</strong> pau. Quando não, era <strong>um</strong>a ação diária pra quebrar a resistência.<br />

(...). ‘Ah é, não quer falar não? Então vamo ver’. Me colocavam na porta da<br />

sala <strong>de</strong> tortura, e tinha nego gritando lá <strong>de</strong>ntro. ‘Ah, tá ocupado agora.<br />

Daqui a pouco eu chamo’. E eu ficava lá esperando ser chamado pra ser<br />

torturado. Cada vez que abria a porta, [pensava] ‘é agora’. Das minhas<br />

convicções eu tava tranqüilo, mas aquele clima <strong>de</strong> terror, esperando pra ser<br />

107


torturado, é <strong>um</strong>a tortura psicológica. Lá na cela tinha o livro, Cem anos <strong>de</strong><br />

solidão. Tentei ler, mas não entendia nada. Não conseguia me concentrar.<br />

Lia 20, 30 páginas sem enten<strong>de</strong>r nada. Muito tempo <strong>de</strong>pois eu consegui [e<br />

concluiu] ‘pô, é tão fácil! Como é que eu não entendia nada!?’”.<br />

“Aí enfim, chegou o momento <strong>de</strong> me pendurarem no pau-<strong>de</strong>-arara”.<br />

Esse método foi bastante utilizado durante a Ditadura. Consiste n<strong>um</strong>a barra<br />

<strong>de</strong> ferro que é atravessada entre os punhos amarrados e a dobra do joelho,<br />

sendo o “conjunto” colocado entre duas superfícies, ficando, o corpo da<br />

vítima que está nua, pendurado. “Só <strong>de</strong> você ficar pendurado com <strong>um</strong> cano<br />

no joelho já é <strong>um</strong>a dor enorme. Imagina... Aí vinham os interrogatórios, e<br />

eu contava sempre a mesma história. Pegaram <strong>um</strong> aquecedor pra queimar<br />

a bunda. Passavam sal grosso em cima e metiam paulada com <strong>um</strong> sarrafo.<br />

O sal grosso entrando na carne queimada... Imagina... Você não tem<br />

controle. A gente berra. Aí eles botavam <strong>um</strong> fio em cada orelha, <strong>um</strong>a<br />

maquininha pra dar choque, <strong>de</strong> baixa voltagem, pra não ter risco <strong>de</strong> matar.<br />

Dava <strong>um</strong> choque muito forte. Cruzava faísca azul. Botavam <strong>um</strong> fio em cada<br />

orelha e, enquanto <strong>um</strong> batia, o outro dava choque. O choque muito forte<br />

enrolava a língua. Aquela dor enorme, sem conseguir gritar, e sufocado.<br />

Não tem como dizer a intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dor, angústia, <strong>de</strong>sespero”.<br />

Um grupo <strong>de</strong> três policiais aplicava a tortura. Momesso nunca<br />

soube quem eram, e incrivelmente superou. “Mas não fiquei com ódio.<br />

Fiquei com nojo. O que essas pessoas têm mais <strong>de</strong> h<strong>um</strong>ano? São uns<br />

vermes”. Depois <strong>de</strong> todo o sofrimento, se as confissões não vinham por<br />

meio da violência, os torturadores apelavam para <strong>um</strong> método mais sutil.<br />

“Consegui botar a roupa por cima da carne, me levantei. Os pés inchados,<br />

todo sem pele, tudo roxo. Me levaram pra <strong>um</strong>a sala. Tinham uns <strong>de</strong>z<br />

torturadores fazendo <strong>de</strong> conta que me esqueciam lá. Falavam ‘esse bispo é<br />

<strong>um</strong> viado! Chico Buarque <strong>de</strong>u pra não sei quem! ’. Essas coisas pra você<br />

ficar puto da vida. ‘Marighella usando esses trouxas! ’. Tudo que tava no<br />

campo da esquerda eles esculhambavam. Eu fiquei impressionado porque<br />

tudo era muito bem montado. Percebi logo no início que era pra envolver.<br />

Se você <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>sse alguém, entrava em diálogo com eles, aí tava ferrado.<br />

Eu tinha muito cuidado, falava muito pouco, só falava quando tinha<br />

segurança do que ia falar. Quando entendi o que tava acontecendo, botei a<br />

108


mão na cabeça. Me moendo por <strong>de</strong>ntro, mas [para eles era] como se<br />

estivesse longe”.<br />

“Não sei quanto tempo fiquei lá porque a gente per<strong>de</strong> a noção. As<br />

forças foram s<strong>um</strong>indo. Chegou <strong>um</strong> momento em que eu pensei que ia<br />

morrer. Não tinha mais corpo, só tinha consciência. Cabeça pendurada, não<br />

me mexia mais nem nada. Era muito triste porque eu queria viver, queria<br />

continuar na luta. Não morri né?”.<br />

Não, e não por acaso está aí até hoje. Devolveram-no à cela.<br />

Fernando Gabeira, no livro O que é isso, companheiro?, escreveu <strong>um</strong><br />

parágrafo sobre o que percebeu <strong>de</strong> Momesso. “[Ceará, nome <strong>de</strong> guerra<br />

<strong>de</strong>vido ao lugar da prisão] dizia que perguntava coisas que <strong>de</strong>sconhecia,<br />

mas que <strong>de</strong> qualquer forma não revelaria nada, mesmo se soubesse. Dizia<br />

com convicção tão h<strong>um</strong>il<strong>de</strong>, tão pouco preocupada com a platéia, que tenho<br />

absoluta certeza que <strong>de</strong>le não arrancariam anda. Quantos não prometem<br />

mundos e fundos e <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> c<strong>um</strong>prir? Ceará apenas voltava da tortura,<br />

baixava as calças, ficava <strong>de</strong> barriga para o chão e continuava a conversar<br />

conosco, como se tivesse estado sempre ali, naquela posição”. Momesso<br />

explicou que isso acontecia porque ele não revelava nada a ninguém. E se<br />

os presos fossem obrigados a contar algo mediante tortura? Ele <strong>de</strong>veria<br />

confiar? “Eu era <strong>um</strong>a incógnita”. As marcas do sofrimento passaram –<br />

porque a tortura era superficial, não <strong>de</strong>ixava rastros – e Momesso não mais<br />

foi chamado para outras sessões. Levaram-no para <strong>um</strong> <strong>de</strong>scampado,<br />

<strong>de</strong>ixando-o com <strong>um</strong> carcereiro, que insinuava que po<strong>de</strong>ria fugir. “Eles<br />

querem que eu saia correndo, aí eles metem bala. Vi vários casos assim. O<br />

cara tava preso e <strong>de</strong>pois saía na imprensa que morreu em tiroteio com a<br />

polícia. Me <strong>de</strong>u <strong>um</strong>a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> dar <strong>um</strong> safanão naquele cara, mas eu tive<br />

que me segurar (risos)”. Esse “sequestro” durou <strong>um</strong> mês. De lá, Momesso<br />

foi c<strong>um</strong>prir sua antiga pena <strong>de</strong> seis meses no Presídio Tira<strong>de</strong>ntes na capital<br />

paulista. Três dias <strong>de</strong>pois da soltura já tinha <strong>um</strong>a reunião com a AP.<br />

Enquanto isso, Iberé continuava na clan<strong>de</strong>stinida<strong>de</strong> em Feira <strong>de</strong><br />

Santana, trabalhando como <strong>de</strong>senhista <strong>de</strong> construções. Sentiu falta da<br />

militância “porque é como se você tivesse n<strong>um</strong> canto, vendo a história<br />

passar, sabendo que alg<strong>um</strong>a coisa tem que ser feita”.<br />

Enquanto isso, Campos colecionava nomes <strong>de</strong> guerra (André,<br />

Alberto, Joaquim e Paulo) e <strong>de</strong>cretos <strong>de</strong> prisão no Rio <strong>de</strong> Janeiro, São Paulo,<br />

109


Paraíba, Pernambuco e Rio Gran<strong>de</strong> do Sul. “Dormíamos vestido, pronto pra<br />

sair a qualquer hora. Viver sob pressão é normal. (...) A vida da gente era<br />

viajar o país todo, e saíamos do país quando a repressão a<strong>um</strong>entava.<br />

Vivíamos <strong>um</strong>a vida simples na periferia, passando fome, rodando o<br />

mimeógrafo a noite toda, distribuindo jornal. Não tinha tempo pra se<br />

arrepen<strong>de</strong>r. E a gente ia tendo cuidado pra não ter filho. Minha mãe ficava<br />

louca, porque entravam sistematicamente em casa, faziam ameaças”. As<br />

famílias já não mantinham os filhos sob controle. Eles saiam <strong>de</strong> casa ainda<br />

novos, e voltavam 10 ou 20 anos <strong>de</strong>pois.<br />

A volta pra casa se <strong>de</strong>u <strong>um</strong> pouco mais cedo, em setembro <strong>de</strong> 73.<br />

Fugindo da repressão, Campos <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> se escon<strong>de</strong>r na casa da irmã em<br />

Cabe<strong>de</strong>lo, na Paraíba, e acaba sendo <strong>de</strong>latado. Seu pai era maçon, e<br />

conseguiu proteção para o filho. Um bom advogado conseguiu <strong>um</strong>a pena 3<br />

anos e 6 meses no lugar da soma <strong>de</strong> con<strong>de</strong>nações em todos os estados: 22<br />

anos. “Fui preso na Penitenciária Mo<strong>de</strong>lo da Paraíba, o único preso político.<br />

A maçonaria me colocou na prisão especial com <strong>um</strong> playboy que assassinou<br />

<strong>um</strong> cara estupidamente a troco <strong>de</strong> nada, três policiais ligados ao grupo <strong>de</strong><br />

extermínio dos latifundiários, <strong>um</strong> psicopata que matou <strong>um</strong> cara com<br />

requintes <strong>de</strong> cruelda<strong>de</strong> por causa <strong>de</strong> dinheiro. Ficar com essa gente não era<br />

coisa boa. Ouvir o cabo Chiquinho contar como ele trucidou a li<strong>de</strong>rança<br />

camponesa, pessoas que eu conhecia, como pren<strong>de</strong>u, torturou, matou... Aí<br />

eu olho lá pra baixo, tem <strong>um</strong> time <strong>de</strong> futebol”. Campos <strong>de</strong>cidiu falar com o<br />

superinten<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> justiça paraibano, que coinci<strong>de</strong>ntemente havia estudado<br />

no Liceu e o respeitava. Assim, Campos não só recebeu permissão para<br />

organizar <strong>um</strong> campeonato <strong>de</strong> futebol como também para alfabetizar os<br />

presos e ensiná-los a fazer artesanato.<br />

Enquanto isso, Delzuite e Celestino (ex-Freire) estavam no Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro, engajados nos movimentos revolucionários e com dois filhos: <strong>um</strong><br />

nascido em 71 e outra em 74. Faziam artesanato a fim <strong>de</strong> arrecadar<br />

dinheiro para pagar advogados para os presos políticos, pichavam muros,<br />

escondiam companheiros. No primeiro semestre <strong>de</strong> 79, o casal participava<br />

ativamente <strong>de</strong> manifestações pró-anistia. Panfletando n<strong>um</strong>a <strong>de</strong>las,<br />

<strong>de</strong>sconfiaram que estivessem sendo seguidos. De volta para casa no ônibus,<br />

<strong>um</strong>a parada brusca. Sobem quatro homens que pediram os doc<strong>um</strong>entos <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ntificação. Eles tomam os panfletos que Delzuite tinha e seguram-na pelo<br />

110


aço. “Aí Freire veio me <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r e avançaram nele. Quando <strong>de</strong>ram <strong>um</strong><br />

soco no estômago, ele começou a ficar roxo, querendo falar e sem po<strong>de</strong>r.<br />

‘Socorro, assassinos! Vocês tão matando meu companheiro, vocês mataram<br />

ele’! Aí mandaram o motorista parar e eles empurraram a gente. Freire já<br />

caiu praticamente morto”.<br />

Delzuite conseguiu <strong>um</strong>a carona para <strong>um</strong> hospital e viu Freire dar<br />

seu último suspiro.<br />

O médico <strong>de</strong>u o diagnóstico: infarto fulminante. “Entrou na minha cabeça<br />

<strong>um</strong>a névoa que eu não sabia quem eu era, não sabia o que fazer. Voltei pra<br />

casa e abracei os meninos. Eu só queria sair <strong>de</strong> lá morta, junto com as<br />

crianças. Fiquei com meus filhos esperando o pior”.<br />

Naquele momento havia no Brasil cerca <strong>de</strong> 200 presos políticos e cerca <strong>de</strong><br />

10 mil exilados. A meta da repressão <strong>de</strong> acabar com todas as li<strong>de</strong>ranças<br />

acabou se concretizando para Freire a pouco tempo <strong>de</strong> sair a anistia.<br />

“A Ditadura cai <strong>de</strong> podre”.<br />

Ao sair da prisão, em 76, Campos já tinha 32 anos. Decidiu estudar<br />

Economia e começou a trabalhar no Ban<strong>de</strong>pe. Até o ano <strong>de</strong> 79, em todas as<br />

sextas-feiras, ele tinha <strong>de</strong> assinar <strong>um</strong> livro dizendo se permaneceria o fim<br />

<strong>de</strong> semana no Recife ou se iria a João Pessoa. Não podia voltar a <strong>um</strong>a<br />

militância radical e correr o risco <strong>de</strong> ser preso novamente: já era casado e<br />

ia ter <strong>um</strong> filho. Depois da anistia quebram-se as amarras: Campos não se<br />

aliou a nenh<strong>um</strong> partido, porém passou a integrar a oposição bancária <strong>de</strong><br />

esquerda do Ban<strong>de</strong>pe, e lutou durante alguns anos para <strong>de</strong>rrubar os<br />

pelegos. “Me senti livre”.<br />

Delzuite agora po<strong>de</strong>ria voltar para Jaboatão, para a família. Só que<br />

a história foi diferente para ela. Quando Freire morreu, “fiquei esperando o<br />

terceiro filho, grávida <strong>de</strong> dois meses. De vez em quando sentia dores<br />

horríveis, começava a soluçar quando vinha a dor moral, aquilo era ruim<br />

pro bebê. N<strong>um</strong>a tar<strong>de</strong> o bebê nasceu prematuro <strong>de</strong> 8 meses e não resistiu.<br />

Era a cara <strong>de</strong>le [<strong>de</strong> Freire]. Eu era doida pra que sobrevivesse”.<br />

Momesso continuou na luta. Desligou-se da AP, voltou aos<br />

movimentos populares em bairros <strong>de</strong> São Paulo e formou-se em Jornalismo.<br />

111


Militou também pelas reivindicações operárias. Viu o PT se formar nesse<br />

contexto em 79. “Quando o PT surgiu, tive muita dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> aceitar. Era<br />

<strong>um</strong> partido muito frouxo, e o presi<strong>de</strong>nte era Lula, que não era socialista. Eu<br />

queria <strong>um</strong> partido socialista. Tinha pontos positivos: o partido foi crescendo<br />

no meio do povo, era amplo, por não se comunista, não tinha problema<br />

com religião. Mas muitos militantes tinham <strong>um</strong>a visão histórica muito<br />

estreita, achavam que tudo tinha começado com o PT. Era <strong>um</strong><br />

anticomunismo, na realida<strong>de</strong>. Lula nunca foi socialista e afirmava isso,<br />

muita gente foi que i<strong>de</strong>alizou. A gente analisava ele como <strong>um</strong> sindicalista<br />

combativo e honesto, mas atrasado politicamente do ponto <strong>de</strong> vista<br />

socialista”.<br />

Entre 83 e 84 o país se uniu em torno da campanha "Diretas Já",<br />

movimento civil <strong>de</strong> reivindicação por eleições presi<strong>de</strong>nciais diretas.<br />

Momesso mais <strong>um</strong>a vez se envolveu diretamente. Em 25 <strong>de</strong> janeiro ele<br />

estava n<strong>um</strong> comício na Praça da Sé junto a mais 300 mil pessoas. A<br />

lembrança vem mais <strong>um</strong>a vez acompanhada <strong>de</strong> lágrimas. “Foi <strong>um</strong>a luta<br />

muito bonita. Nós tomamos a ban<strong>de</strong>ira da ditadura. A gente tinha vergonha<br />

da ban<strong>de</strong>ira do Brasil, do hino nacional, que foram usados pro ‘Brasil ame-o<br />

ou <strong>de</strong>ixe-o’, o hino nacional da repressão, da alienação. Agora, Fafá <strong>de</strong><br />

Belém canta o hino nacional na praça. O hino é nosso! A gente começa a se<br />

pintar <strong>de</strong> ver<strong>de</strong> e amarelo. Começamos a tomar os símbolos nacionais que<br />

estavam com a Ditadura, [e pensou] ‘poxa, a gente vai mudar isso aqui! ’”.<br />

Embora as manifestações a favor da <strong>de</strong>mocracia fossem inúmeras e<br />

espalhadas pelo país inteiro, ainda havia gente reacionária. Delzuite viu e<br />

sofreu com isso. “Vendia pôster <strong>de</strong> Che Guevara no Teatro Santa Isabel.<br />

Levava tanta esculhambação dos burgueses quando eles vinham assistir às<br />

peças. Eu gritava: ‘pelas Diretas! Che Guevara, o maior revolucionário vive’!<br />

Um burguês <strong>de</strong>sceu do carro e disse: ‘não sei como não te fuzilaram’. A<br />

Burguesia fe<strong>de</strong>, como Cazuza diz. Tem dinheiro pra comprar perf<strong>um</strong>e, mas<br />

fe<strong>de</strong>”.<br />

As Diretas não saíram e Tancredo Neves é escolhido como o<br />

primeiro presi<strong>de</strong>nte civil <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 21 anos <strong>de</strong> Ditadura. Mais <strong>um</strong> drama<br />

abala a vida <strong>de</strong> Delzuite. Doze <strong>de</strong> outubro, dia das crianças, seu filho João<br />

Luiz é atropelado aos 13 anos. “Acabada do jeito que eu tava, mais esse<br />

fundo <strong>de</strong> poço? Passou pela minha cabeça me jogar na frente <strong>de</strong> <strong>um</strong> carro<br />

112


pra morrer atropelada que nem ele. Mas aí eu olhava minha menina [a<br />

filha]. Dava murro nas pare<strong>de</strong>s. Pra ele chegar na 7ª serie, eu tomava livro<br />

emprestado, tirava xerox. Comprava roupa a prazo, sapato <strong>um</strong>a vez por<br />

ano. Uma dificulda<strong>de</strong> pra criar meu filho, <strong>de</strong> repente <strong>um</strong> professor bêbado<br />

atropela ele”? Porém, Delzuite constata que sempre é tempo <strong>de</strong> ser forte.<br />

“Alg<strong>um</strong>a frustração? Gostaria <strong>de</strong> tocar viola (risos)”.<br />

Iberé não teve frustrações e sim perdas. Voltou a estudar Economia<br />

em 80 e se formou aos 50 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. Não po<strong>de</strong> fazer carreira<br />

acadêmica, como tanto queria, e foi trabalhar na administração da UFPE até<br />

97. “Mas fui autêntico, me ofereci pra fazer as coisas. Não <strong>de</strong>pendia só <strong>de</strong><br />

mim. Nosso inimigo era muito maior do que a gente pensava. Eu po<strong>de</strong>ria<br />

ter tudo e dizer: ‘poxa, fui apenas <strong>um</strong>a bazófia, apenas <strong>um</strong> cara que correu<br />

atrás <strong>de</strong> <strong>um</strong> salário, comprou, comeu, bebeu e vestiu’. A maioria das<br />

pessoas não passa disso, não pensam que o mundo <strong>de</strong>ve mudar”.<br />

Momesso realmente não se arrepen<strong>de</strong>u. Em 94 veio para o Recife<br />

(“não agüentava mais São Paulo, era muito <strong>de</strong>s<strong>um</strong>ano”) trabalhar no<br />

Departamento <strong>de</strong> Comunicação da UFPE. Sonhos são <strong>um</strong>a das poucas<br />

sequelas que restaram: “Durante muito tempo me acor<strong>de</strong>i assustado com<br />

barulho <strong>de</strong> carro à noite. Hoje eu sinto <strong>um</strong> pouco <strong>de</strong> claustrofobia, mas eu<br />

consigo me dominar. Ainda encarei militar como inimigo. Leva <strong>um</strong> tempo<br />

pra você aceitar que existem os honestos. Ainda não tive tempo para<br />

apren<strong>de</strong>r tocar viola”.<br />

Campos também tem sonhos. N<strong>um</strong> <strong>de</strong>les não consegue fugir <strong>de</strong><br />

<strong>um</strong>a casa cercada. No outro, <strong>de</strong>ve sair da cida<strong>de</strong> dirigindo <strong>um</strong> ônibus, mas<br />

não consegue. Infelizmente, outras sequelas mais sérias restaram: foi<br />

<strong>de</strong>pressivo crônico, superando o problema com três anos <strong>de</strong> tratamento.<br />

Hoje é portador <strong>de</strong> leucemia crônica, doença em que a medula óssea produz<br />

células ininterruptamente, mas que são incapazes <strong>de</strong> se diferenciar em<br />

células <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa. Assim, o organismo fica sem proteção e <strong>um</strong>a gripe po<strong>de</strong><br />

se tornar <strong>um</strong> perigo. É também estressado crônico. Tudo isso apareceu em<br />

85, o ano em que a Ditadura acabou. “Quando você sente que terminou,<br />

seu organismo relaxa e abre todas as guardas. Tudo aquilo que tava sendo<br />

113


trabalhado pra não incomodar sai”. Os hormônios do stress são <strong>um</strong>a<br />

possível explicação para que Campos estivesse bem em todo o tempo <strong>de</strong><br />

militância. A pressão a que ele esteve submetido po<strong>de</strong> ter feito com que<br />

hormônios como a adrenalina bloqueassem o aparecimento das doenças e o<br />

mantivesse firme frente a situações adversas. Quando utilizado em longos<br />

períodos, esse mecanismo <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa acaba em conseqüências sérias para a<br />

saú<strong>de</strong>. Em 87, por causa do diagnóstico <strong>de</strong> leucemia, Campos se aposenta<br />

aos 43 anos. Daí em diante foram mais 12 anos <strong>de</strong> quimioterapia.<br />

“A gente tá na contramão da história, correndo pra ver se salva a<br />

socieda<strong>de</strong> da barbárie”.<br />

Campos, Delzuite, Iberé e Momesso fazem parte da APAP<br />

(Associação Pernambucana <strong>de</strong> Anistiados Políticos), criada em 97. Todos<br />

receberam in<strong>de</strong>nização, a exceção <strong>de</strong> Campos, que sequer processou o<br />

Governo. A luta agora também é para que os fatos não caiam no<br />

esquecimento, resgatando e preservando a memória; pela abertura dos<br />

arquivos e pela divulgação do nome e punição dos torturadores. Não<br />

querem revanche, e sim que a população saiba o que aconteceu neste país.<br />

Eles têm exata noção do momento que vivem. Todos são comunistas<br />

(com exceção <strong>de</strong> Delzuite) e criticam o capitalismo categoricamente. Porém,<br />

não se transformaram em aposentados da revolução, e continuam militando<br />

cada <strong>um</strong> do seu jeito.<br />

Iberé: “Por que não tá bom? Porque não sabemos aproveitar a<br />

<strong>de</strong>mocracia que estamos vivendo. Não estamos trabalhando como<br />

<strong>de</strong>víamos. Tá aí a <strong>de</strong>mocracia, qualquer <strong>um</strong> po<strong>de</strong> se candidatar. Isso <strong>de</strong> fato<br />

representa <strong>um</strong>a opinião consciente da população? Paulo Maluf foi reeleito.<br />

Paulo Maluf já era pra ter sido morto, fuzilado! Esse povo que votou tem<br />

consciência perante a história que estão fazendo? Passeata pela paz não vai<br />

surtir efeito nenh<strong>um</strong>. O bandido que te assalta não tá nem aí pra isso”.<br />

O capitalismo já anestesiou até o mais pobre, segundo o que Iberé<br />

vê por aí. “Ele leva pra cabeça que o bom é ter <strong>um</strong> celular na cintura. É o<br />

cons<strong>um</strong>ismo”. Ainda assim, ele quer levar sua experiência <strong>de</strong> vida às<br />

escolas, fazer <strong>um</strong>a releitura da história do Brasil. “Se você não conhece o<br />

114


caminho percorrido, não sabe pra on<strong>de</strong> vai! Se não houver conscientização,<br />

vamos continuar à mercê do milagre do capitalismo”.<br />

Para Momesso, cada aula dada é <strong>um</strong> ato político. “Não tô<br />

preocupado se vou fazer revolução ou não, tô preocupado em fazer o que<br />

eu posso fazer enquanto vivo. Todo mundo tem <strong>um</strong> sentido <strong>de</strong> eternida<strong>de</strong>,<br />

a eternida<strong>de</strong> é a h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong>, continuar se aperfeiçoando”. E quando ele<br />

não pu<strong>de</strong>r fazer mais nada, “no mínimo vou falar mal do capitalismo”.<br />

Campos continua no trabalho <strong>de</strong> formiguinha, conscientizando as<br />

pessoas, “porque senão ninguém vai largar sua vidinha pra apostar como<br />

nós apostamos no escuro”. É <strong>um</strong> trabalho dificílimo explicar o que é<br />

socialismo quando “todo mundo tem televisão hoje em dia, dizendo pra<br />

comprar. A mídia bombar<strong>de</strong>ia toda hora. O Estado tá em guerra civil com os<br />

excluídos que tão li<strong>de</strong>rados pelo pior que exista da raça h<strong>um</strong>ana. O avanço<br />

das ciências, da tecnologia, isso parece que é fora da realida<strong>de</strong> do dia-a-dia.<br />

O dia-a-dia é <strong>de</strong>composição social, <strong>de</strong>gradação do ser h<strong>um</strong>ano. Eu vou<br />

morrer e outros vão ter que fazer isso, porque senão a gente não vai ter<br />

chance. Antes disso o capitalismo vai nos levar a barbárie”.<br />

Sem querer, Iberé faz o res<strong>um</strong>o <strong>de</strong> tudo. “É o que Engels dizia: ‘ou<br />

o socialismo ou a barbárie’. A barbárie tá aí instalada hoje, não é mais <strong>um</strong>a<br />

citação <strong>de</strong> <strong>um</strong> pensador do século XIX. Você sai <strong>de</strong> casa e o cara te mata<br />

pra pegar <strong>um</strong> celular”.<br />

“Hoje eu vivo <strong>de</strong> lembranças e recordações e dando minhas<br />

entrevistas”. Delzuite escreveu <strong>um</strong> livro, Sonho <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, em que conta<br />

sua trajetória <strong>de</strong> vida. Acredita na juventu<strong>de</strong> e gostaria que sua neta <strong>de</strong> 13<br />

anos estudasse Jornalismo. “Se não fossem os jornalistas, a gente não<br />

sabia <strong>de</strong> muita coisa”. Acredita que nenh<strong>um</strong>a luta é em vão, inclusive esta<br />

reportagem. Pensando nisto, fez <strong>um</strong>a música para Freire.<br />

115


Ao companheiro Freire<br />

Companheiro<br />

Eu te sinto tão presente<br />

Que às vezes fico contente<br />

Em olhar os filhos teus<br />

Confesso que quando<br />

Daqui partiste<br />

Deixastes como lembrança<br />

Os ensinamentos teus<br />

Teu filho último<br />

Tu não viste nascer<br />

A flor <strong>de</strong> maio<br />

Tu não viste brotar<br />

Tanto que lutou<br />

Tanto que esperou<br />

Tu não viste<br />

A anistia chegar<br />

Meu companheiro<br />

Meu companheiro<br />

Seguiremos teus princípios<br />

De todo coração<br />

E nossa luta<br />

Jamais será em vão<br />

A semente que plantaste<br />

Foi tão pura<br />

Que até hoje só germina<br />

On<strong>de</strong> há fonte <strong>de</strong> cultura<br />

Teu <strong>passado</strong> é tão presente<br />

Que revive em nossas <strong>lutas</strong><br />

E nos companheiros teus<br />

Nosso lema como tu é semear<br />

Outras sementes<br />

Que em outros campos<br />

Irão brotar<br />

E <strong>um</strong> dia com certeza<br />

Na cida<strong>de</strong> e no campo<br />

Estas sementes<br />

Belos frutos vos dará<br />

Meu companheiro<br />

Meu companheiro<br />

* Professor do DECOM/UFPE<br />

** Aluna <strong>de</strong> Jornalismo/ UFPE<br />

Obs.. As entre - aspas é o fiel discurso dos entrevistados<br />

116


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