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no Bairro Alto? - Fonoteca Municipal de Lisboa - Câmara Municipal ...

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<strong>de</strong> pára o Captain Kirk?<br />

a<br />

a<br />

vitalida<strong>de</strong> dos a<strong>no</strong>s 80, mas entre 1995 e 1997 houve um meteorito <strong>no</strong> <strong>Bairro</strong> <strong>Alto</strong>, o Captain Kirk, o espaço on<strong>de</strong> todos queriam estar.<br />

valida<strong>de</strong> resi<strong>de</strong> na energia que <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>iam não se aguentou muito tempo. Mas a sua marca ainda se faz sentir. Vítor Belancia<strong>no</strong><br />

a energia adolescente dos que<br />

querem que o mundo fosse seu<br />

- agora.<br />

Dois a<strong>no</strong>s alucinantes<br />

O Kirk durou pouco. Talvez não<br />

pu<strong>de</strong>sse ser <strong>de</strong> outra forma, diz<br />

o realizador Jorge Cramez, na<br />

casa dos 40 a<strong>no</strong>s, espécie <strong>de</strong><br />

“do<strong>no</strong> ho<strong>no</strong>rário”, como gosta <strong>de</strong><br />

afirmar. Em sua casa, olhando<br />

para uma foto <strong>de</strong> Marilyn, não<br />

resiste à analogia: “Penso<br />

nela ou <strong>no</strong> [James] Dean como<br />

metáforas. Viveram o tempo<br />

certo para <strong>de</strong>ixarem rasto. O<br />

Kirk também. Viveu o tempo<br />

certo para ficar qualquer coisa.<br />

Aquela potência esgotou-se. Só<br />

podia. Aqueles dois a<strong>no</strong>s foram<br />

alucinantes!”<br />

Os proprietários eram Tiago<br />

Vaz, que hoje está retirado, e o<br />

belga Gilluu Leroy, que se <strong>de</strong>dica<br />

à restauração na Tailândia.<br />

Recuperaram uma velha casa,<br />

transformando-a num bar<br />

dançante. Não era gran<strong>de</strong>, mas<br />

foi optimizado. À direita, uma<br />

máquina <strong>de</strong> flipers, à esquerda<br />

mesas, ro<strong>de</strong>ando uma pista<br />

<strong>de</strong> dança circular, um balcão<br />

corrido e oito televisores.<br />

“No primeiro a<strong>no</strong>, foi um<br />

acontecimento em <strong>Lisboa</strong>”,<br />

recorda Cramez, “agregando<br />

pessoas do Frágil, e <strong>de</strong> outros<br />

espaços, ligadas às artes, dança,<br />

cinema, jornalismo ou moda.<br />

Depois, funcio<strong>no</strong>u o boca-a-boca.<br />

Inicialmente, os ciclos <strong>de</strong> cinema<br />

ao final da tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>ram-lhe<br />

visibilida<strong>de</strong>, tornando-o em algo<br />

mais do que sítio <strong>de</strong> copos. Às<br />

sete da tar<strong>de</strong> podia verse<br />

retrospectivas<br />

Em pouco mais <strong>de</strong> seis meses, tor<strong>no</strong>u-se ‘o’ sítio <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong><br />

<strong>de</strong> realizadores <strong>de</strong> referência.<br />

Em pouco mais <strong>de</strong> seis meses,<br />

era ‘o’ sítio <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>.” Ia-se ao<br />

Kirk para se ver e ser visto. Mas,<br />

até pela configuração do espaço,<br />

a pose <strong>de</strong> “ver o ambiente” não<br />

funcionava. “Quem ia lá, ia lá<br />

mesmo”, lembra Ricardo Montas,<br />

38 a<strong>no</strong>s, <strong>de</strong>signer, a viver hoje<br />

em Londres. “Não era um espaço<br />

on<strong>de</strong> se fosse <strong>de</strong>scontrair. Tinha<br />

que se estar lá, mesmo.”<br />

“O Kirk representa a essência<br />

do <strong>Bairro</strong>, a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> num<br />

espaço peque<strong>no</strong> haver pessoas<br />

diferentes. Tanto havia o pessoal<br />

artístico como as pessoas que só<br />

queriam dançar, numa mistura<br />

<strong>de</strong> pessoas mais velhas e <strong>no</strong>vas.”<br />

Montas veio dos arredores <strong>de</strong><br />

Leiria para estudar em <strong>Lisboa</strong>. O<br />

Kirk foi a segunda escola. “Foi o<br />

Kirk que me integrou em <strong>Lisboa</strong>.<br />

E foi dali que abri olhos para o<br />

mundo.”<br />

À porta estava a figurinista<br />

Isabel Peres ou Vanessa Rato,<br />

hoje jornalista do PÚBLICO.<br />

Ao balcão encontrava-se,<br />

inicialmente, DJ Rui Murka,<br />

hoje com 36 a<strong>no</strong>s. “Tinha 22<br />

a<strong>no</strong>s, naquele espaço respiravase<br />

qualquer coisa <strong>de</strong> <strong>no</strong>vo e<br />

queria fazer parte daquilo. Era<br />

uma excitação ir para lá. Havia<br />

sempre muita gente, aquilo não<br />

parava. Estava sempre ansioso<br />

por ir trabalhar. Fazia parte<br />

<strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> pessoas que<br />

se queria afirmar e que sentia<br />

que aquele era o espaço on<strong>de</strong><br />

estavam as coisas a acontecer.”<br />

O tempo <strong>de</strong>u-lhe razão.<br />

Nessa época<br />

“Havia muita avi<strong>de</strong>z<br />

na forma como<br />

aquele ambiente se<br />

consumia e, às tantas,<br />

começou a ser o<br />

ambiente a consumir<br />

algumas pessoas”<br />

Rui Murka, DJ<br />

Todas as <strong>no</strong>ites eram iguais e<br />

distintas (seguindo a lógica dos<br />

clubes britânicos com sessões<br />

temáticas todos os dias)<br />

movimentavam-se uma série<br />

<strong>de</strong> DJs que queriam legitimar<br />

<strong>no</strong>vas so<strong>no</strong>rida<strong>de</strong>s para lá da<br />

lógica da música <strong>de</strong> dança mais<br />

funcional (house e tec<strong>no</strong>) que<br />

predominava. O Kirk funcio<strong>no</strong>u<br />

como catalisador. Foi ali que<br />

<strong>de</strong>spontaram, ou tiveram<br />

oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> evoluir, <strong>no</strong>mes<br />

hoje firmados da cultura DJ<br />

portuguesa como Tiago Miranda<br />

(Loosers, Dezperados, Pop Dell’<br />

Arte, Slight Delay), Dinis, Nu<strong>no</strong><br />

Rosa (Pink Boy, Dezperados)<br />

ou Rui Murka. Foi também ali<br />

que o colectivo CoolTrain Crew<br />

(Johnny, Murka, Dinis, Rosa,<br />

Miranda e eu próprio) <strong>de</strong>u os<br />

primeiros passos, antes <strong>de</strong><br />

iniciar residência <strong>no</strong> Ciclone (ex-<br />

Johnny Guitar) e transitar pelo<br />

resto do país.<br />

Todos esses <strong>no</strong>mes, em<br />

conjunto com outros, como os<br />

resi<strong>de</strong>ntes Lígia Pereira ou Rui<br />

Viana (so<strong>no</strong>plasta), criaram a<br />

imagem sónica do Kirk, misto<br />

<strong>de</strong> linguagens em afirmação<br />

na época, do drum & bass ao<br />

jazz mais dançável, até <strong>no</strong>ites<br />

ecléticas on<strong>de</strong> tudo podia<br />

acontecer. Uma vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

surpreen<strong>de</strong>r que chegou a ser<br />

elogiada na revista inglesa “The<br />

Face”.<br />

O sociólogo, músico e artista<br />

António Contador, 38 a<strong>no</strong>s, hoje<br />

em Paris, também por lá andava.<br />

Às vezes como cliente, outras na<br />

cabine <strong>de</strong> DJ. “Recordo-me das<br />

<strong>no</strong>ites Pimp-Pop, ao domingos,<br />

em que o Rui Viana e o Tiago<br />

Vaz misturavam piroseiras<br />

num espírito embriagador, com<br />

aquele cheiro a tabaco e a bafio<br />

por todo o lado que se colava à<br />

pele e era maravilhoso. Lembrome<br />

da Isabel Peres e da Vanessa<br />

Rato na porta, adornavam com o<br />

seu ar ‘arty-trashy’ a cena toda<br />

que girava à volta do Kirk e que<br />

era naquela altura o centro do<br />

universo criativo lisboeta.”<br />

Algumas das <strong>no</strong>ites mais<br />

emblemáticas não aconteciam<br />

aos fins-<strong>de</strong>-semana. A dinâmica<br />

era diferente da actual.<br />

“Não havia tanta oferta”,<br />

reflecte Murka, “e as pessoas<br />

concentravam-se mais num<br />

circuito, contribuindo para que<br />

todos os dias existisse alguma<br />

animação. Havia uma gran<strong>de</strong><br />

dinâmica e aos domingos,<br />

segundas ou terças havia<br />

pessoas para se divertirem.”<br />

Uma das imagens que ainda<br />

hoje perdura é a dos televisores.<br />

“Era singular um bar daqueles<br />

ter tanta informação visual,<br />

com uma <strong>de</strong>zena <strong>de</strong> televisores<br />

a passar coisas diversas<br />

- documentários, coisas ligadas<br />

à arte ou fitas clássicas”,<br />

conta Cramez, que fazia<br />

a programação <strong>de</strong><br />

cinema.<br />

O Kirk<br />

libertava uma energia<br />

excessiva. Não era apenas um<br />

bar ou uma discoteca. Era um<br />

organismo vivo e como muitos<br />

locais cuja valida<strong>de</strong> resi<strong>de</strong> na<br />

vitalida<strong>de</strong> que <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>iam<br />

não se aguentou muito tempo.<br />

“Havia muita avi<strong>de</strong>z na forma<br />

como aquele ambiente se<br />

consumia e, às tantas, começou<br />

a ser o ambiente a consumir<br />

algumas pessoas”, diz Rui<br />

Murka. “Havia tantos exageros<br />

que era impossível manter<br />

aquele negócio. Não havia<br />

cabeça para tal.”<br />

Certa <strong>no</strong>ite, uma dúzia <strong>de</strong><br />

pessoas, entre empregados e<br />

clientes, foi parar à esquadra<br />

e, <strong>de</strong>pois, presente a tribunal.<br />

Acusação: distúrbios à or<strong>de</strong>m<br />

pública. O facto nada teve <strong>de</strong><br />

extraordinário, efeito <strong>de</strong> uma<br />

discussão acalorada entre<br />

empregados, clientes e polícia,<br />

pelo facto do bar ainda conter<br />

pessoas <strong>de</strong>pois das quatro da<br />

manhã, mas Murka assinala<br />

o sucedido como marcante.<br />

“Foi um episódio, mas <strong>de</strong>u<br />

início ao <strong>de</strong>clínio. O primeiro<br />

a<strong>no</strong> foi intenso, com cultura,<br />

diversão e sentido lúdico, mas<br />

<strong>de</strong>pois começaram os exageros<br />

com os consumos ilícitos e<br />

os responsáveis per<strong>de</strong>ram o<br />

controlo à coisa.”<br />

O último com aura<br />

O bar Captain Kirk, <strong>no</strong>me <strong>de</strong><br />

herói do Caminho das Estrelas,<br />

imortalizado na canção<br />

“Where’s Captain Kirk?” do<br />

grupo punk Spizzenerg!,<br />

surgiu num tempo <strong>de</strong> transição<br />

do <strong>Bairro</strong> <strong>Alto</strong>.<br />

Recebeu a herança dos<br />

a<strong>no</strong>s 80, atribuindo-lhe<br />

<strong>no</strong>va energia, generosa mas<br />

<strong>de</strong>smesurada, ao mesmo<br />

tempo que já prenunciava<br />

os <strong>no</strong>vos tempos. A fase <strong>de</strong><br />

empobrecimento coinci<strong>de</strong> já<br />

com a ocupação das ruas do<br />

<strong>Bairro</strong> <strong>Alto</strong>, que começou a<br />

ser vivido <strong>no</strong> exterior e não<br />

<strong>no</strong> interior. Para muitos, como<br />

para Ricardo Montas, foi o<br />

último dos bares icónicos<br />

do <strong>Bairro</strong> a ter essa aura <strong>de</strong><br />

mistério. “Quando entrava<br />

naquele sítio, perguntava-me<br />

sempre: ‘o que vou encontrar<br />

<strong>de</strong>sta vez?’”<br />

A jornalista Maria João<br />

Guardão evoca o espaço <strong>de</strong><br />

forma lapidar: “falar, falar,<br />

falar, beber, beber, beber,<br />

dançar, dançar, dançar, e tudo,<br />

outra e outra vez”.<br />

António Contador recorda<strong>no</strong>s<br />

que um local daqueles<br />

também é espaço <strong>de</strong> afectos:<br />

“Lembro-me tão bem das<br />

pessoas que trabalhavam <strong>no</strong><br />

Kirk, em especial da Cikuta.<br />

Para mim, o Kirk era muito<br />

ela. Nunca lho disse e adorava<br />

fazê-lo. Lembro-me do seu<br />

corpo esguio, das mãos finas<br />

e compridas, do cabelo curto<br />

e do rosto e sorriso à Grace<br />

Jones. Cikuta, se me estás a<br />

ler, fica sabendo que foste<br />

linda e seguramente ainda és.”<br />

Se souberem on<strong>de</strong> ela pára,<br />

digam-lhe.<br />

Ípsilon • Sexta-feira 27 Fevereiro 2009 • 11

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