FERNANDO VELUDO/ PÚBLICO Cinema a bela adormecida Que segunda cida<strong>de</strong> do país é esta que já teve um dos maiores cineclubes da Europa e on<strong>de</strong> agora há pessoas para tudo, me<strong>no</strong>s para o cinema? Andamos a queixar-<strong>no</strong>s muito (4373 <strong>no</strong>mes num abaixo-assinado pela criação <strong>de</strong> um pólo da Cinemateca <strong>no</strong> Porto) mas nunca <strong>no</strong>s queixaremos <strong>de</strong>masiado. Inês Nadais 28 • Ípsilon • Sexta-feira 27 Fevereiro 2009 Porto, A se<strong>de</strong> do Cineclube praticamente não abre: chegou a ter mais sócios do que o FC Porto e agora tem 300, mas são só <strong>de</strong>z a pagar as quotas
O poster encostado à pare<strong>de</strong> <strong>de</strong>scascada da se<strong>de</strong> do Cineclube do Porto, na Rua do Rosário, diz “hoje há cinema infantil” mas não há - não há cinema infantil nem há cinema, ponto. Podíamos não escrever mais nada porque tudo o que vem a seguir está escrito na testa <strong>de</strong>sta pare<strong>de</strong> <strong>de</strong>scascada, ou do tecto da Casa das Artes, que <strong>de</strong>sabou em 2004 e até hoje não foi reparado: é aí que vamos ter um pólo da Cinemateca, ou lá o que é, e ainda este a<strong>no</strong> (não estamos a <strong>de</strong>lirar: são <strong>de</strong>clarações solenes do ministro da Cultura, Pinto Ribeiro, <strong>no</strong> centenário <strong>de</strong> Ma<strong>no</strong>el <strong>de</strong> Oliveira, e o Porto leva essas coisas a sério). Há a<strong>no</strong>s que não víamos o poster (a se<strong>de</strong> do Cineclube praticamente não abre: chegou a ter mais sócios do que o FC Porto e agora tem 300, mas são só <strong>de</strong>z a pagar as quotas), há a<strong>no</strong>s que não sabemos o que é feito do Cineclube, mas cruzámo-<strong>no</strong>s com eles um <strong>de</strong>stes dias, numa exposição na Casa do Infante que conta a história, e é uma história exemplar me<strong>no</strong>s na parte em que acaba mal, <strong>de</strong> um dos maiores cineclubes da Europa. O pa<strong>no</strong>rama actual da exibição cinematográfica <strong>no</strong> Porto é tudo me<strong>no</strong>s exemplar - 14 salas em funcionamento, 12 das quais em centros comerciais (oito salas Lusomundo <strong>no</strong> Dolce Vita do Estádio do Dragão, quatro salas Me<strong>de</strong>ia <strong>no</strong> Shopping Cida<strong>de</strong> do Porto, com um anexo <strong>no</strong> Cine- Estúdio do Teatro do Campo Alegre), e apenas um cinema na Baixa (o Estú- dio 111, <strong>no</strong> Teatro Sá da Ban<strong>de</strong>ira), a passar filmes por<strong>no</strong>. Dos 21 cinemas activos na cida<strong>de</strong> em 1978, não há nenhum aberto. O Cineclube do Porto não fechou mas é como se tivesse fechado, o Cineclube do Norte fechou, a Casa das Artes (equipamento que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da Direcção- Geral das Artes) fechou, a Casa da Animação tem problemas <strong>de</strong> financiamento, o festival <strong>de</strong> documentário e <strong>no</strong>vos media Odisseia nas Imagens, lançado pela Capital Europeia da Cultura em 2001, ficou na gaveta <strong>de</strong> Rui Rio - e continua a não haver Cinemateca. É como se o Porto tivesse <strong>de</strong>ixado <strong>de</strong> estar à sua própria altura. “É constrangedor ver o estado em que as coisas estão quando se viveram aqueles a<strong>no</strong>s extraordinários em que o cinema era a base <strong>de</strong> uma militância cultural e também uma plataforma <strong>de</strong> oposição ao regime. Era uma vivência riquíssima: as pessoas viam filmes em condições que hoje não se imaginam, e <strong>de</strong>pois discutiam até <strong>de</strong> madrugada”, diz Bernard Despomadères, cinéfilo furioso, amigo <strong>de</strong> Oliveira e responsável pelos serviços culturais do Consulado Geral <strong>de</strong> França <strong>no</strong> Porto, que ainda <strong>no</strong> a<strong>no</strong> passado organizou com a Me<strong>de</strong>ia um ciclo <strong>de</strong> cinema sobre o Maio <strong>de</strong> 68 - “com duas cópias cedidas pela Cinemateca”, acrescenta António Costa, representante (íamos dizer resistente) da Me<strong>de</strong>ia <strong>no</strong> Porto. E o público? É uma palavra que ouvimos <strong>de</strong> cinco em cinco minutos - há décadas. No a<strong>no</strong> passado, 4373 assinaturas <strong>de</strong>pois, o Ministério da Cultura assumiu a criação <strong>de</strong> um pólo da Cinemateca <strong>no</strong> Porto: é uma <strong>de</strong>claração em que já ninguém acredita (sobretudo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> se saber que o pólo é uma coisa a três, Serralves, Casa das Artes e Casa Ma<strong>no</strong>el <strong>de</strong> Oliveira, e que duas <strong>de</strong>las não existem), mas que a há, há. Era fácil, diz António Costa: “A Casa das Artes está equipada, e não é preciso fazer um investimento por aí além. Ainda por cima, a Sala Henrique Alves Costa tem uma tradição <strong>de</strong> cinefilia: foi programada pela Me<strong>de</strong>ia durante <strong>de</strong>z a<strong>no</strong>s, sempre com bastante público, foi lá que a Cinemateca fez as comemorações do centenário do cinema em 1997, leva o <strong>no</strong>me <strong>de</strong> um dos maiores divulgadores do cinema <strong>no</strong> Porto, e até tem espaço para uma pequena biblioteca”. Só não sabemos se tem público (ainda há poucos meses João Bénard da Costa atirou isto à cara dos signatários da petição: as tais comemorações do centenário do cinema, em 1997, não fizeram propriamente milhares <strong>de</strong> espectadores). “Temos um grave problema <strong>de</strong> oferta, que gerou um grave problema <strong>de</strong> procura: há um público a reconstruir <strong>no</strong> Porto”, argumenta João Fernan<strong>de</strong>s, director do Museu <strong>de</strong> Arte Contemporânea <strong>de</strong> Serralves. “O Porto tem vários públicos, mas são voláteis: a Casa das Artes fazia 60 a 70 mil espectadores por a<strong>no</strong>, e lembro-me <strong>de</strong> haver dias em que o ‘Vale Abrãao’ esgotava as três sessões. Quando fechou, esse público dispersou-se - agora é difícil reconquistá-lo. Mas quando organizámos um ciclo <strong>de</strong> cinema italia<strong>no</strong> em Outubro quase todas as sessões estiveram esgotadas. O ‘Fome’, do Steve McQueen, fez mil espectadores em duas semanas, o que não foi mau numa fase em que já só se falava dos Óscares. É óbvio que se pudéssemos estrear certos filmes em simultâneo em <strong>Lisboa</strong> e Porto podíamos potenciar o efeito multiplicador. Quando chegam cá, os jornais já <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> falar <strong>de</strong>les há meses - e as pessoas vêem na carteleira ‘A Rapariga Cortada em Dois’ mas não se lembram que é um filme do Chabrol”, explica António Costa. É um facto: as quatro salas Me<strong>de</strong>ia do Shopping Cida<strong>de</strong> do Porto são <strong>no</strong>tícia mais vezes por estarem em risco <strong>de</strong> fechar do que pelos filmes que tem em exibição. No curto prazo - com ou sem Cinemateca - não vai haver milagres <strong>de</strong>mográficos, e o Porto vai continuar a ser esta segunda cida<strong>de</strong> que per<strong>de</strong>u quase 100 mil habitantes em duas décadas e que tem uma população cada vez mais próxima da que tinha <strong>no</strong> início do século XX (por dia, são 20 pessoas que saem e já não voltam). Há uma parte <strong>de</strong>sse problema que não é específica do Porto - as salas monumentais, como o Águia D’Ouro e o Batalha, fecharam porque esse mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> cinemas se tor<strong>no</strong>u obsoleto com o VHS e o DVD e com a abertura <strong>de</strong> complexos multiplex <strong>de</strong>ntro dos centros comerciais. Mas há outra parte que faz <strong>de</strong>sta história um caso particular. “O número <strong>de</strong> cinemas fechados e abandonados é assustador. O Porto tem um problema grave <strong>de</strong> empreen<strong>de</strong>dorismo cultural que tem a ver com uma centralização progressiva das estruturas culturais em <strong>Lisboa</strong>, a ressaca da Capital Europeia da Cultura e o <strong>de</strong>sinteresse da câmara por estas questões. As gerações mais <strong>no</strong>vas cresceram <strong>de</strong>sligadas da produção artística - e do cinema”, aponta Guilherme Blanc. Está a estudar fora do Porto, como a maioria dos miúdos que estiveram por trás do movimento Circuito - Cinema na Universida<strong>de</strong>, que fe<strong>de</strong>rou uma série <strong>de</strong> cineclubes universitários e que acabou como sabemos, numa petição com mais <strong>de</strong> 4000 assinaturas. David Barros também: não podia estudar cinema <strong>no</strong> Porto. “Em <strong>Lisboa</strong> posso ver em sala, com condições excepcionais, 95 por cento dos filmes que <strong>no</strong> Porto teria <strong>de</strong> ver em DVD. Não fui para <strong>Lisboa</strong> fazer um mestrado por causa da qualida<strong>de</strong> da Universida<strong>de</strong> Nova mas por causa da qualida<strong>de</strong> da Cinemateca. É disso que <strong>no</strong>s queixamos: falta-<strong>no</strong>s todo o cinema anterior à década <strong>de</strong> 90, falta a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma geração inteira crescer a ver cinema. Não foi sempre assim. Ainda há dias estive a fazer uma pesquisa na Cinemateca e encontrei artigos sobre as vindas do Jean Rouch ao Porto”, resume. Sim, há um problema <strong>de</strong> público Dos 21 cinemas activos na cida<strong>de</strong> em 1978, não há nenhum aberto PAULO PIMENTA “Temos um grave problema <strong>de</strong> oferta, que gerou um grave problema <strong>de</strong> procura: há um público a reconstruir <strong>no</strong> Porto”, João Fernan<strong>de</strong>s, director do Museu <strong>de</strong> Arte Contemporânea <strong>de</strong> Serralves Fantasporto, um caso único a nível nacional FERNANDO VELUDO/ NFACTOS Ípsilon • Sexta-feira 27 Fevereiro 2009 • 29