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alternativa de informação: a revista do Brasil faz um ano ... - CNM/CUT

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Crônica PorRicar<strong>do</strong> KotschoDias <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>iranteE lá estava eu olhan<strong>do</strong> os outros<strong>de</strong> baixo para cima, achan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong>estranho. Passei a dar mais valor aamigos como o Marcelo Rubens Paiva,sempre <strong>de</strong> bom h<strong>um</strong>or e cheio <strong>de</strong>pl<strong>ano</strong>s, mesmo saben<strong>do</strong> que aca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>le é para sempreSei que a palavra é feia, mas é a que temos para <strong>de</strong>finirquem anda n<strong>um</strong>a ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> rodas, quer dizer,quem não po<strong>de</strong> andar com as próprias pernas.No começo <strong>de</strong> março, sem aviso prévio, virei <strong>um</strong>ca<strong>de</strong>irante. N<strong>um</strong>a fração <strong>de</strong> segun<strong>do</strong>s, a tampa <strong>de</strong><strong>um</strong>a caixa <strong>de</strong> bomba <strong>de</strong> piscina ce<strong>de</strong>u, caí sobre os c<strong>ano</strong>s,quebrei vários ossos e <strong>de</strong>smaiei <strong>de</strong> <strong>do</strong>r. Quase <strong>de</strong>u perda total.Quan<strong>do</strong> reacor<strong>de</strong>i, já tinha <strong>um</strong> monte <strong>de</strong> gente em voltapalpitan<strong>do</strong> sobre o que fariam comigo para me tirar <strong>do</strong> buraco.Sem forças para reagir, entala<strong>do</strong> que estava, fui fican<strong>do</strong>cada vez mais assusta<strong>do</strong>.Por sorte, como sempre acontece nessas horas, alguém ass<strong>um</strong>iuo coman<strong>do</strong> das operações e <strong>de</strong>terminou que se chamasseo Resgate. Hora <strong>do</strong> almoço na praia, calor infernal, os minutosque os bombeiros <strong>de</strong>moravam pareciam intermináveis horas.Quan<strong>do</strong> fui ver, já estava no pronto-socorro <strong>do</strong> hospital público<strong>de</strong> São Sebastião, cerca<strong>do</strong> <strong>de</strong> gente atropelada, baleada,esfaqueada. Minhas <strong>do</strong>res até diminuíram ao ver o sofrimento<strong>do</strong>s outros. Os médicos e enfermeiras que me aten<strong>de</strong>ram pareciamter percebi<strong>do</strong> isso. A to<strong>do</strong> momento vinham pedir <strong>de</strong>sculpas,mais <strong>um</strong> pouco <strong>de</strong> paciência, porque chegara outra urgência,mais <strong>um</strong> feri<strong>do</strong> em esta<strong>do</strong> pior que o meu.Não carregava nenh<strong>um</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ento, mas também ninguémpediu. Em res<strong>um</strong>o: alg<strong>um</strong>as fraturas no pé esquer<strong>do</strong>, três costelasquebradas, escoriações generalizadas, como o escrivão registrav<strong>ano</strong>s antigos boletins <strong>de</strong> ocorrência. Mesmo assim, fuiandan<strong>do</strong> até o carro, levan<strong>do</strong> a receita <strong>de</strong> remédios para aliviara <strong>do</strong>r. No dia seguinte, já em São Paulo, os médicos <strong>de</strong> <strong>um</strong>hospital particular repetiram os mesmos exames e fizeram osmesmos diagnósticos.Saí com bota ortopédica e a recomendação <strong>de</strong> passar pelomenos <strong>um</strong> mês na ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> rodas – por causa das costelasquebradas, não era recomendável usar muletas, quer dizer, eraimpossível. Já perdi as contas <strong>de</strong> quantas vezes me quebrei navida, já passei por mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>z cirurgias, mas nunca tinha chega<strong>do</strong>antes a esse ponto.Minha mulher, a fantástica Mara, que <strong>de</strong>ve ter mais horas<strong>de</strong> hospital <strong>do</strong> que muita enfermeira-chefe, tratou logo <strong>de</strong> alugar<strong>um</strong>a ca<strong>de</strong>ira básica a módicos 30 reais por semana. Meiahora <strong>de</strong>pois lá estava eu enca<strong>de</strong>ira<strong>do</strong>, olhan<strong>do</strong> para os outros<strong>de</strong> baixo para cima, achan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> muito estranho. No início,você se conforma – “até que <strong>de</strong>i sorte, po<strong>de</strong>ria ter si<strong>do</strong> pior...”,mas <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uns três dias o neoca<strong>de</strong>irante já começa a ficarimpaciente.Como não conseguia movimentar a ca<strong>de</strong>ira sozinho por causada <strong>do</strong>r nas costelas, precisava a toda hora chamar alguém e,como moramos só nós <strong>do</strong>is em casa, esse alguém era semprea Mara. Por pior que seja a situação, a gente acaba sempre seadaptan<strong>do</strong> a <strong>um</strong>a nova rotina. Se ela precisava sair para cuidarda vida, me <strong>de</strong>ixava n<strong>um</strong> café que tem em frente ao nossoprédio, aon<strong>de</strong> cost<strong>um</strong>o ir sempre e sou amigo <strong>de</strong> to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>,com a recomendação <strong>de</strong> que cuidassem bem <strong>de</strong> mim e me<strong>de</strong>volvessem na portaria. Sempre tinha alg<strong>um</strong> solícito lá parame levar até o apartamento. O pior <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> é ficar sempre <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>n<strong>do</strong><strong>do</strong>s outros para ir e vir.Nas festas, é importante ficar atento logo na chegada para veron<strong>de</strong> está a turma mais legal porque sempre há o risco <strong>de</strong> o estacionaremn<strong>um</strong>a roda <strong>de</strong> chatos. O pior é contar mil vezes oque aconteceu e ouvir mil vezes relatos <strong>de</strong> histórias semelhantesacontecidas com alguém.Mas, quan<strong>do</strong> há <strong>um</strong> prazo marca<strong>do</strong> para <strong>de</strong>volver a ca<strong>de</strong>ira evoltar a andar com as próprias pernas, vai-se levan<strong>do</strong>. Passei adar mais valor a amigos como o Marcelo Rubens Paiva, sempre<strong>de</strong> bom h<strong>um</strong>or e cheio <strong>de</strong> pl<strong>ano</strong>s, mesmo saben<strong>do</strong> que a ca<strong>de</strong>ira<strong>de</strong>le é para sempre. No dia em que <strong>de</strong>volvi a ca<strong>de</strong>ira, passei adar mais valor também ao simples ato <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r caminhar.Ricar<strong>do</strong> Kotscho é jornalista. Trabalhou nos principais veículos <strong>de</strong> comunicação <strong>do</strong> país e foi secretário <strong>de</strong> Imprensae Divulgação da Presidência da República (2003-2004). É autor, entre outros, <strong>de</strong> Serra Pelada – Uma Ferida Aberta naSelva (<strong>Brasil</strong>iense, 1984), A Prática da Reportagem (Ática, 1986), Caravana da Cidadania – Diário <strong>de</strong> Viagem ao <strong>Brasil</strong>Esqueci<strong>do</strong> (Scritta, 1993) e Do Golpe ao Planalto – Uma Vida <strong>de</strong> Repórter (Companhia das Letras, 2006)50 REVISTA DO BRASIL MAIO 2007

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