Virou a cabeça, procurando esconder um sorrisoleve; depois, acenou para uma cadeira e disse: "Sentatee enxuga tua roupa."Sentei-me, agradecido, e ele se sentou defronte demim, num assento esculpido na pedra e começou aumedecer os dedos num líquido oleoso e a untar a asae a cabeça machucadas do pássaro. Depois, olhou-mee disse: "O vendaval jogou <strong>este</strong> pobrezinho contra aspedras, entre vivo e morto. '. Pudessem os temporaisquebrar as asas dos homens e machucar suas cabeças!Mas o homem foi amassado com medo e covardia. Malpressente a tempestade, 'esconde-se <strong>nas</strong> fendas e <strong>nas</strong>grutas."Retruquei, com a intenção de alimentar a conversação:"Sim, o pássaro e o homem têm essências diferentes.O homem vive à sombra de leis e tradições por eleinventadas; o pássaro vive segundo a lei universal quefaz girar os mundos."Seus olhos brilharam e seus braços se abriram comose tivesse encontrado em mim um aluno de rápidaapreensão. Depois, disse: "Muito bem, muito bem, Seacreditas no que dizes, abandona os homens e vivecomo os pássaros, à lei da terra e do céu."Respondi: "Claro que acredito no que digo."Ergueu a mão e, voltando a seu tom anterior, disse:"Acreditar é uma coisa; viver conforme o qu.e se acreditaé outra coisa. Muitos falam como o mar, mas vivemcomo os pânta<strong>nos</strong>. Muitos levantam a cabeçaacima dos montes; mas sua alma jaz <strong>nas</strong> trevas dascaver<strong>nas</strong>."3A noite <strong>este</strong>ndeu sobre aquelas terras seu mantonegro. As chuvas tornaram-se torrenciais. Parecia-meque o dilúvio vinha de novo destruir a vida e lavar aterra de suas impurezas. Mas a fúria dos elementosprovocou a serenidade em Yussef El-Fakhry. Suaagressividade desapareceu. Levantou-se, acendeu duasvelas e trouxe uma garrafa de vinho e uma bandejacarregada de pão, queijo, azeito<strong>nas</strong>, mel e frutas dessecadas.Sentou-se perto de mim e disse, amável: "Sãotodas as minhas provisões. Faze-me, ó irmão, o favorde partilhá-las comigo." ,Jantamos em silêncio, com acompanhamento dosventos e das chuvas.Após tirar a mesa, apanhou de um lado da lareirauma cafeteira de bronze e verteu duas xícaras de caféodoroso e trouxe uma caixa de cigarros.Segurei a xícara e o cigarro, duvidando do que estavavendo. E ele, como se estivesse, ouvindo-me pensar,sorriu e disse: "Estranhas que haja vinho e fumo e cafén<strong>este</strong> eremitério. Talvez estranhes que haja comida.Não te censuro. Muitos imaginam que <strong>nos</strong>so afastamentoda" sociedade supõe <strong>nos</strong>so afastamento dos prazeresnaturais e simples da vida."- De fato. Imaginamos que os eremitas se sustentamape<strong>nas</strong> com água e ervas.Retrucou: "Não abandonei o mundo para encontrarDeus, pois o encontrava na casa dos meus pais eem todo outro lugar. Afastei-me dos homens porqueeu era uma roda que girava para a direita entre rodasque giravam para a esquerda. Deixei a civilização porquea achei uma árvore idosa e carcomida, cujas floressão a cobiça e o engano e cujas frutas são a infelicidadee ~J desassossego. Alguns reformadores tentaramtransformá-Ia, mas nada conseguiram, e acabaram perseguidose derrotados."Inclinou-se sobre a lareira como se achasse prazerno efeito de suas <strong>palavras</strong> sobre mim, e, erguendo avoz mais ainda, acrescentou: "Não, não procurei a so52 53
lidão para orar e me dedicar ao ascetismo; pois a oração,que é o canto da alma, atinge o ouvido de Deus,mesmo misturada com os gritos das multidões; e o ascetismo,que é a humilhação do corpo e a imolação dosseus 'desejos, é algo que não se enquadra na minha religião.Deus criou os corpos para "serem os templos dasalmas. Devemos cuidar desses templos para que sejamdig<strong>nos</strong> da divindade que neles mora. Não, meu irmão,não procurei a solidão para orar e me castigar, maspara fugir dos homens, de suas leis, de suas tradiçõese de seu barulho. Procurei a solidão porque me canseidos que confundem amabilidade com fraqueza, e tolerânciacom covardia, e altivez com orgulho. Procureia solidão porque me cansei de lidar com os endinheiradosque pensam que o sol e a lua e as estrelas se levantamdos seus cofres e se deitam <strong>nos</strong> seus bolsos.Cansei-me dos políticos que enchem os olhos dos p0vos com poeira dourada e seus ouvidos com falsas promessas.Cansei-me dos sacerdotes que aconselham osoutros, mas não se aconselham a si mesmos, e exigemdos outros o que não exigem de si mesmos. Procurei asmontanhas desabitadas porque nelas há o despertar daprimavera, e os desejos do verão, e as canções do outono,e a força do inverno. Vim para <strong>este</strong> eremitério afim de descobrir os segredos da terra e me aproximardo trono de Deus."Calou-se e respirou, aliviado. Seus olhos brilhavamcom uma luz estranha e cativante. Seu rosto irradiavagrandeza, vontade, determinação.Eu o olhava, feliz por ter descoberto o que ignoravadele. Depois, argumentei: "Acertaste el? tudo. Masnão vês que, ao diag<strong>nos</strong>ticar as doenças da sociedadecomo um médico competente, demonstraste que nãote deves afastar dela antes de curá-la, como um médiconão pode afastar-se do doente, mas tratá-lo até quesare ou morra? O mundo precisa de ti. Não é justo quete afastes dos homens quando podes beneficiá-los."Fixou-me um instante e disse com amargura: "Desdeo começo, os médicos têm procurado salvar <strong>este</strong>doente. Uns usaram do escalpelo; outros, de remédios;mas todos morreram desesperados, sem nada conseguir.Este doente malvado mata seus médicos e, depois, fe\, cha-lhes os olhos e diz: 'Eram realmente grandes médicos.'Não, meu amigo, nenhum homem mudará oshomens. O agricultor mais hábil não obterá colheitano inverno."Respondi-lhe: "Mas o inverno da Humanidade passará.Depois, virá a primavera, com suas flores ecanções."Retrucou com um sorriso: "Será que Deus dividiu aeternidade em estações similares às estações do ano?Virá, mesmo daqui a um milhar de milhares de a<strong>nos</strong>,uma geração de homens que viverá pelo espírito e averdade, e achará sua felicidade na luz do dia e naquietude da noite? Virá tudo isto um dia? .. Esses sãosonhos longíquos. E <strong>este</strong> eremitério não é uma moradade sonhos. . ."Respondi: "Respeito tuas convicções e tua solidão.Mas também sei que esta nação infeliz perdeu, comteu· afastamento, um homem dotado, capaz de despertá-lae guiá-la."Retrucou: "Esta nação é como as demais nações.Todos os homens são iguais e só diferem em aparênciassecundárias. O que se considera progresso no Ocidenteé ape<strong>nas</strong> outra sombra da ilusão. A hipocrisia1e.:que trata as unhos COIU refinamento não deixa de serhipocrisia. E a impostura permanece impostu ra, mesmoquando se v<strong>este</strong> de seda e mora em palacete. E afraude e a cobiça não mudam de natureza quandoaprendem a medir as distâncias e a analisar os elemen~-54 55
- Page 1 and 2: poral •ESTE LIVRO, VIOLENTO NOS P
- Page 3 and 4: GIBRA" KHALIL GIBRANtraduc;io e apr
- Page 5 and 6: Entre a Noite e a Aurora 62Ó Filho
- Page 7 and 8: ~~~_... f"5Y:~~~'~~- liiVale, As Al
- Page 9 and 10: U Amava-vos, ó filhos da minha mã
- Page 11 and 12: SATANÁSO' Padre Simão era conhece
- Page 13 and 14: "Depois, apareceram os sacerdotes e
- Page 15 and 16: Depois de enumerar dezenas de carac
- Page 17 and 18: VENENO NO MEL14Numa manhã de outon
- Page 19 and 20: OS DENTES CARIADOSHavia na minha bo
- Page 21 and 22: És um justo que une, sob as asas d
- Page 23 and 24: - Eu sou um estrangeiro nestes dias
- Page 25 and 26: Bulos As-Solban (dirigindo-se a Mua
- Page 27 and 28: ib Saade é amante do vinho e do ca
- Page 29 and 30: e líderes descobriram este segredo
- Page 31 and 32: IOS GIGANTESQuem escreve com tinta
- Page 33 and 34: AS NAÇÕESUma nação é uma comun
- Page 35: A TEMPESTADE1Yussef AI-Fâkhry tinh
- Page 39 and 40: votos para que aprendas a amar as t
- Page 41 and 42: ENTRE A NOITE E A AURORAC ala-te, m
- Page 43 and 44: "Enchi o navio de meu pensamento de
- Page 45 and 46: Chorava por vossa humildade e esmag
- Page 47 and 48: "Vivi uma hora como rosa. Vivi uma
- Page 49 and 50: Disse: "Não suporto viver só. Hab
- Page 51 and 52: Meus parentes morreram de morte hum
- Page 53 and 54: quanto de construir. Odeio o que os
- Page 55 and 56: anestesias, ou se sou vítima de il
- Page 57 and 58: II IIII li~iilii)tiiiIINós nos apr
- Page 59 and 60: povos, que compreendes os sonhos da
- Page 61 and 62: "Não, não. Desprezamo-lo na vida
- Page 63 and 64: ao mesmo tempo, fazendo uma vez ou
- Page 65 and 66: ,- --'--'-ry"I--'~'_.~"""","""""~-"
- Page 67 and 68: ministro de Estado, ocupado em gove
- Page 69 and 70: Quanto ao nome da mulher que meu co
- Page 71 and 72: E há os palavreadores-grilos que,
- Page 73 and 74: ~~'PILHaS DE DEUSES E NETOS DE MACA
- Page 75 and 76: vertendo nela um vinho onde se mist
- Page 77 and 78: vardes que simulam a bravura diante