13.07.2015 Views

A Responsabilidade Civil Objetiva e Subjetiva do Estado - Emerj

A Responsabilidade Civil Objetiva e Subjetiva do Estado - Emerj

A Responsabilidade Civil Objetiva e Subjetiva do Estado - Emerj

SHOW MORE
SHOW LESS
  • No tags were found...

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

ISSN 2236-8957Revista da EMERJv. 14 - n. 55 - 2011Julho/Agosto/SetembroRio de JaneiroR. EMERJ Rio de Janeiro v. 14 n. 55 p. 1-290 jul.-set. 2011


© 2011 EMERJEscola da Magistratura <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio de Janeiro - EMERJTRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - TJERJRevista <strong>do</strong>utrinária destinada ao enriquecimento da cultura jurídica <strong>do</strong> País.Conselho Editorial:Min. Luiz Fux; Des. Manoel Alberto Rêbelo <strong>do</strong>s Santos; Des. Sergio Cavalieri Filho;Des. Letícia de Faria Sardas; Des. Jessé Torres Pereira Júnior; Des. Décio XavierGama; Des. Semy Glanz; Des. Laerson Mauro; Des. Wilson Marques; Des. Eduar<strong>do</strong>Sócrates Castanheira Sarmento; Des. Jorge de Miranda Magalhães; Des. José CarlosBarbosa Moreira.Produção Gráfico-Editorial: Divisão de Publicações da EMERJ.Editor: Irapuã Araújo (MTb MA00124JP); Programação Visual: Jaqueline Diniz(editoração eletrônica) e André Amora (capa); Revisão Ortográfica: Suely Lima,Ana Paula Maradei e Sergio Silvares.Revista da EMERJ. v. 1, n. 1 - Rio de Janeiro: EMERJ, 1998 -v.Trimestral.ISSN 1415-4951 (versão impressa)ISSN 2236-8957 (versão on-line)v. 1, n. 4, 1998: Anais da 4ª Semana de Integração Jurídica InteramericanaNúmero Especial 2003: Anais <strong>do</strong>s Seminários EMERJ Debate o NovoCódigo <strong>Civil</strong>, parte I, fevereiro a junho/2002.Número Especial 2004: Anais <strong>do</strong>s Seminários EMERJ Debate o NovoCódigo <strong>Civil</strong>, parte II, julho/2002 a abril/2003.Edição Especial 2007: Comemorativa <strong>do</strong> Octogésimo Ano <strong>do</strong> Código deMenores Mello Mattos.1. Direito - Periódicos. I. Rio de JaneirO (Esta<strong>do</strong>). Tribunal de Justiça<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio de Janeiro. Escola da Magistratura <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio deJaneiro.CDD 340.05CDU 34(05)Os conceitos e opiniões expressos nos trabalhos assina<strong>do</strong>s são de responsabilidadeexclusiva de seus autores. É permitida a reprodução total ou parcial <strong>do</strong>s artigos destarevista, desde que citada a fonte.To<strong>do</strong>s os direitos reserva<strong>do</strong>s à Escola da Magistratura <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio de Janeiro - EMERJAv. Erasmo Braga, nº 115/4° andar - Rio de Janeiro/RJ CEP: 20020-903Telefones: (21) 3133-3400 / 3133-3365www.emerj.tjrj.jus.br - emerjpublicacoes@tjrj.jus.br


Diretoria da EMERJ Diretora-GeralDesª. Leila Maria Carrilo Cavalcante Ribeiro Mariano Conselho ConsultivoDesª. Maria Augusta Vaz Monteiro de Figueire<strong>do</strong>Des. Milton Fernandes de SouzaDes. Jessé Torres Pereira JúniorDes. Geral<strong>do</strong> Luiz Mascarenhas Pra<strong>do</strong>Des. Ricar<strong>do</strong> Couto de CastroDes. Elton Martinez Carvalho Leme Presidente da Comissão AcadêmicaDes. Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho Comissão de Iniciação e Aperfeiçoamento de Magistra<strong>do</strong>sDes. Luiz Fernan<strong>do</strong> Ribeiro de CarvalhoDesª. Elisabete Filizzola AssunçãoDes. Heleno Ribeiro Pereira NunesDes. Wagner Cinelli de Paula FreitasDes. Claudio Brandão de OliveiraDes. Claudio Luis Braga Dell’OrtoDes. Paulo de Oliveira Lanzellotti Baldez Coordena<strong>do</strong>r de Estágio da EMERJDes. Edson Aguiar de Vasconcelos Secretária-Geral de EnsinoRosângela Pereira N. Mal<strong>do</strong>na<strong>do</strong> de Carvalho Assessora da Diretora-GeralMaria de Lourdes Car<strong>do</strong>so da RochaR. EMERJ Rio de Janeiro v. 14 n. 55 p. 1-290 jul.-set. 2011


Sumário6 Apresentação7 A Agenda <strong>do</strong> JuizJessé Torres Pereira Junior10 A <strong>Responsabilidade</strong> <strong>Civil</strong> <strong>Objetiva</strong> e <strong>Subjetiva</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>Sergio Cavalieri Filho21 Sobre a Inversão <strong>do</strong> Ônus da Prova no Direito <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>rThiago Ferreira Car<strong>do</strong>so Neves41 A Compensação por Dano Moral em Tutela Antecipadano Regime de <strong>Responsabilidade</strong> <strong>Civil</strong> <strong>Objetiva</strong>Vitor Guglinski55 A Incompetência <strong>do</strong>s Órgãos de Defesa <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>rpara Multar as Companhias de Transporte AéreoMárcio Vinícius Costa Pereira66 Notas sobre a Herança Jurídica e Social da Questão HabitacionalBrasileira: um Desafio à Aplicação <strong>do</strong> Direito àMoradia aos Assentamentos InformaisJoão Maurício Martins de Abreu87 A Decisão <strong>do</strong> STF, o Princípio Constitucional da Igualdadee a Vedação de Discriminação. O Afeto como ParadigmaNortea<strong>do</strong>r da Legitmidade das Decisões Judiciais. A FamíliaContemporânea e sua Nova FormataçãoMauro Nicolau Junior165 O Direito Priva<strong>do</strong> à luz da Supremacia da ConstituiçãoFábio Anderson de Freitas PedroR. EMERJ Rio de Janeiro v. 14 n. 55 p. 1-290 jul.-set. 2011


179 O Requerimento de Suspensão de Eficácia de Liminarcomo Des<strong>do</strong>bramento <strong>do</strong> Direito Fundamental <strong>do</strong> Réu àTutela Jurisdicional AdequadaLeonar<strong>do</strong> Oliveira Soares191 Principais Inovações quanto aos Meios de Impugnaçãodas Decisões Judiciais no Projeto <strong>do</strong> Novo CPCAFlávia Pereira Hill215 Contrato de Leasing de Veículos: Verdades e Mentirassobre o Valor Residual Garanti<strong>do</strong> (VRG)Paulo Gustavo Rebello HortaPaulo Maximilian240 Tag Along: uma Análise à Luz da Escola <strong>do</strong> RealismoCientíficoJorge Lobo261 O Panorama Contemporâneo da Execução PenalÁlvaro Mayrink da Costa271 Acolher é Proteger, Recolher é CrimeSiro Darlan278 Interrogatório Judicial: a Entrevista Prévia e Reservadacom Defensor e a Participação das PartesEduar<strong>do</strong> Francisco de SouzaR. EMERJ Rio de Janeiro v. 14 n. 55 p. 1-290 jul.-set. 2011


ApresentaçãoCom satisfação, apresentamos aos nossos leitores a edição n. 55, daREVISTA DA EMERJ. Em suas páginas, artigos sobre as questões maisinteressantes que acorrem ao Poder Judiciário e acerca das quais, to<strong>do</strong>snós, magistra<strong>do</strong>s, procura<strong>do</strong>res, advoga<strong>do</strong>s, defensores públicos, precisamosmeditar.Sem sombra de dúvidas, era muito mais fácil ser juiz ao tempo emque, por um processo de subsunção, podiam-se solucionar quase todas asdemandas, as quais, em sua grande maioria, referiam-se a direitos individuais.Pensava-se que o ordenamento jurídico era completo, coerente eque tinha todas as respostas.Em tempos de globalização e de pós-positivismo, não é assim. Asdemandas que nos chegam são as mais variadas e complexas. A principiologiaconstitucional, ao albergar conceitos da moral, trouxe dificuldadespara as quais não estávamos prepara<strong>do</strong>s. Afinal, nossa formação é meramente<strong>do</strong>gmática. Falta-nos embasamento quanto à zetética jurídica quereúne o conhecimento interdisciplinar em sociologia jurídica, filosofia <strong>do</strong>Direito, história <strong>do</strong> Direito, criminologia, política legislativa, teoria geral <strong>do</strong>Direito, meto<strong>do</strong>logia e lógica jurídica, etc.Daí a importância das Escolas da Magistratura em proporcionaraos magistra<strong>do</strong>s esses conhecimentos faltantes. Com essa visão, estamospreparan<strong>do</strong> o planejamento de nossos cursos, sen<strong>do</strong> que já se deuo primeiro passo no que toca ao curso de Especialização em Direito, cujagrade programática, desde o segun<strong>do</strong> semestre de 2011, contempla algunsdesses saberes.É tempo pois de nossa Revista se abrir a essa realidade e tambémalbergar textos sobre essas multidisciplinas tão importantes para a entregada jurisdição nos nossos tempos. Com esse propósito, lançamos o desafioaos juristas e estudiosos das ciências afins para que atendam a nossapróxima chamada de artigos, agradecen<strong>do</strong> a to<strong>do</strong>s os colabora<strong>do</strong>rese leitores que permitiram a manutenção da Revista neste ano de 2011.Desembarga<strong>do</strong>ra Leila MarianoDiretora-Geral da EMERJ6R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, jul.-set. 2011


A Agenda <strong>do</strong> JuizJessé Torres Pereira JuniorDesembarga<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Tribunal de Justiça <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong>Rio de Janeiro e Professor da EMERJA poucos anos de encerrar carreira trintenária na magistratura, começoa pensar em deixar testemunhos, se é que a alguém possam interessar.O primeiro deles é o de que a pauta <strong>do</strong> juiz, quan<strong>do</strong> se tem delauma visão retrospectiva (<strong>do</strong> quase aposenta<strong>do</strong>), é o inverso <strong>do</strong> que pareceser à visão prospectiva (quan<strong>do</strong> nela se dão os primeiros passos): é antesuma lista de “não posso” <strong>do</strong> que uma agenda de “posso”, ou seja, antesdever <strong>do</strong> que poder. Eis a lista <strong>do</strong> que o juiz não pode, no exercício de suasfunções:• não pode escolher dia, hora, nem caso, segun<strong>do</strong> o seu teor deelegância ou desafio técnico, para resolver os conflitos que lhe são apresenta<strong>do</strong>s,porque os conflitos humanos não têm hora, nem lugar certo,nem conteú<strong>do</strong> preferencial para explodir, e <strong>do</strong> juiz a sociedade esperaque resolva aqueles para os quais as pessoas não encontraram uma soluçãoaceitável, ou não lograram controlar os seus efeitos negativos, quechegam ao juiz sob a forma de liminares, medidas cautelares e tutelas antecipadas,durante o expediente ou fora dele, em dia útil, fim de semanaou feria<strong>do</strong>;• não pode retardar essa solução, nem apressá-la, porque, paracada caso, haverá uma solução adequada, e o tempo para encontrá-latambém variará a cada caso, sem contar as urgências que podem comprometera salvaguarda, no presente, de direitos a serem reconheci<strong>do</strong>sno futuro quanto à liberdade e ao patrimônio material ou moral daquelesque batem às portas <strong>do</strong> Judiciário;• não pode hierarquizar os conflitos a resolver, porque aos envolvi<strong>do</strong>so conflito sempre parece ser enorme, quase uma questão de vida,morte, sobrevivência ou honra, ou tu<strong>do</strong> ao mesmo tempo;• não pode generalizar o mal, nem descrer <strong>do</strong> bem, porque em cadaconflito eles estarão entremea<strong>do</strong>s, e se espera que o juiz tenha conhecimentoe sabe<strong>do</strong>ria para distingui-los, ainda que ocultos sob os mais varia<strong>do</strong>sdisfarces e enevoa<strong>do</strong>s por circunstâncias, previsíveis ou inopinadas;R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 7-9, jul.-set. 2011 7


• não pode hierarquizar interesses segun<strong>do</strong> quem deles seja o titular,porque o juiz é juiz de to<strong>do</strong>s, ricos e pobres, humildes e poderosos,crianças, jovens e i<strong>do</strong>sos, públicos e priva<strong>do</strong>s, individuais e coletivos, derepercussão larga ou restrita;• não pode imaginar-se superior em importância a outros profissionais,porque, se é verdade que recebe da sociedade a incumbência dejulgá-los a to<strong>do</strong>s em suas mazelas, erros e fraquezas, vitórias e derrotas,também ele, juiz, porta a mesma natureza de to<strong>do</strong>s aqueles a quem julga,e melhor os julgará se puder entendê-los e respeitá-los em seus pontosfracos e fortes;• não pode supor-se um ser superior em formação, virtude ou inteligência,porque, ainda que as tenha em <strong>do</strong>se generosa, de nada valerãose não colocadas a serviço <strong>do</strong> ofício de julgar com justiça, ou seja, sãoferramentas, não fins em si mesmos;• não pode postular prerrogativas que não sejam aquelas estritamentenecessárias ao exercício da autoridade inerente ao ofício de julgar,<strong>do</strong> qual decorrem decisões impositivas para as partes (prender ou soltar,mandar pagar ou não pagar, obrigar a fazer ou a não fazer, a dar ou anão dar), porque o reconhecimento dessa autoridade pela sociedade nãoadvém, propriamente, das prerrogativas <strong>do</strong> cargo, mas da sabe<strong>do</strong>ria e dadiscrição com que são exercidas, e esse reconhecimento é o único que setraduzirá em respeito e acatamento;• não pode pretender auferir vantagens que a nenhuma outra profissãoé garantida, porque, embora a sua função seja fundamental paraa paz social, todas as outras têm um relevante papel social a cumprir –faxinar, curar, administrar, assistir, entreter, informar, comunicar, fabricar,comercializar, apoiar, negociar, assegurar - e movem o mun<strong>do</strong>, sem o qual,com os seus conflitos inerentes (e cada vez mais dissemina<strong>do</strong>s e plúrimos),juízes não seriam necessários;• não pode sacrificar a si próprio, a sua família e a sua saúde comjornadas excessivas ou intemperantes, porque equilíbrio e ponderação éo mínimo que se espera <strong>do</strong> juiz, inclusive quanto à gestão de sua própriavida privada, equilíbrio e ponderação indispensáveis a que cumpra bem oofício de julgar.Diante de tantas restrições, é admirável que ainda exista quemqueira ser juiz. A sociedade há de lhe ser reconhecida, desde que nele ounela veja alguém que diga o direito e distribua a justiça não como atributo8R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 7-9, jul.-set. 2011


de uma inexistente superioridade, mas como missão que alguns devemdesempenhar a serviço de to<strong>do</strong>s, sujeitos às mesmas vicissitudes e limitaçõesda alma humana, tanto quanto reclamam respeito à sua dignidadecomo pessoas.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 7-9, jul.-set. 2011 9


A <strong>Responsabilidade</strong> <strong>Civil</strong><strong>Objetiva</strong> e <strong>Subjetiva</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>Sergio Cavalieri FilhoDesembarga<strong>do</strong>r (aposenta<strong>do</strong>) <strong>do</strong> TJERJ e Procura<strong>do</strong>r-Geral<strong>do</strong> TCERJ1 - A responsabilidade objetiva <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>A responsabilidade objetiva conquistou e consoli<strong>do</strong>u expressivoespaço no Direito brasileiro, mormente a partir <strong>do</strong> Código de Defesa <strong>do</strong>Consumi<strong>do</strong>r (CDC) e <strong>do</strong> Código <strong>Civil</strong> de 2002; chegou primeiro, entretanto,na responsabilidade civil <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, que é objetiva, desde a Constituiçãode 1946. Nem por isso o tema se mostra exauri<strong>do</strong> na sua complexidade;muitos aspectos remanescem controverti<strong>do</strong>s, entre os quais aquele quenos propomos abordar.1.1 - O § 6º <strong>do</strong> Artigo 37 da Constituição de 1988A Constituição de 1988 disciplinou a responsabilidade civil <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> no § 6º <strong>do</strong> seu artigo 37, que tem a seguinte redação: “As pessoasjurídicas de Direito Público e as de Direito Priva<strong>do</strong> presta<strong>do</strong>ras de serviçospúblicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade,causarem a terceiros, assegura<strong>do</strong> o direito de regresso contra o responsávelnos casos de <strong>do</strong>lo e culpa.”1.2 - Acolhimento da Teoria <strong>do</strong> Risco AdministrativoO exame desse dispositivo revela, em primeiro lugar, que o Esta<strong>do</strong>só responde objetivamente pelos danos que os seus agentes, nessa qualidade,causarem a terceiros. A expressão seus agentes, nessa qualidade,está a evidenciar que a Constituição a<strong>do</strong>tou expressamente a teoria <strong>do</strong>risco administrativo como fundamento da responsabilidade da AdministraçãoPública, e não a teoria <strong>do</strong> risco integral, porquanto condicionou aresponsabilidade objetiva <strong>do</strong> Poder Público ao dano decorrente da sua atividadeadministrativa, isto é, aos casos em que houver relação de causae efeito entre a atuação <strong>do</strong> agente público e o dano. Sem essa relação decausalidade não há como e nem porque responsabilizá-lo objetivamente.10R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 10-20, jul.-set. 2011


Em voto paradigma prolata<strong>do</strong> no início da década de noventa(RE nº 130.764-PR, 1992), pontificou o Ministro Moreira Alves: “A responsabilidade<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, embora objetiva por força <strong>do</strong> disposto no art. 107da Emenda Constitucional nº 1/69 (e, atualmente, no § 6º <strong>do</strong> artigo 37 daCarta Magna), não dispensa, obviamente, o requisito, também objetivo,<strong>do</strong> nexo de causalidade entre a ação ou omissão atribuída a seus agentese o dano causa<strong>do</strong> a terceiros.”Em apertada síntese, a teoria <strong>do</strong> risco administrativo importa atribuirao Esta<strong>do</strong> a responsabilidade pelo risco cria<strong>do</strong> pela sua atividadeadministrativa. Essa teoria surge como expressão concreta <strong>do</strong>s princípiosda equidade e da igualdade de ônus e encargos sociais. É a forma democráticade repartir os ônus e encargos sociais por to<strong>do</strong>s aqueles que sãobeneficia<strong>do</strong>s pela atividade da Administração Pública.Com efeito, se a atividade administrativa <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> é exercida emprol da coletividade, se traz benefícios para to<strong>do</strong>s, justo é, também, queto<strong>do</strong>s respondam pelos seus ônus, a serem custea<strong>do</strong>s pelos impostos. Oque não tem senti<strong>do</strong>, nem amparo jurídico, é fazer com que um ou apenasalguns administra<strong>do</strong>s sofram todas as consequências danosas da atividadeadministrativa.Em suma, “o fundamento da responsabilidade estatal é garantiruma equânime repartição <strong>do</strong>s ônus provenientes de atos ou efeitoslesivos, evitan<strong>do</strong> que alguns suportem prejuízos ocorri<strong>do</strong>s por ocasião oupor causa de atividades desempenhadas no interesse de to<strong>do</strong>s. De consequente,seu fundamento é o princípio da igualdade, noção básica <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> de Direito” (Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de DireitoAdministrativo, 15ª ed., Malheiros Editores, p. 866).Nesta fase, descarta-se qualquer indagação em torno da culpa <strong>do</strong>funcionário causa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> dano, ou, mesmo, sobre a falta <strong>do</strong> serviço ouculpa anônima da Administração. Responde o Esta<strong>do</strong> porque causou odano ao seu administra<strong>do</strong>, simplesmente porque há relação de causalidadeentre a atividade administrativa e o dano sofri<strong>do</strong> pelo particular.1.3 - Relação entre o ato <strong>do</strong> agente ou da atividade administrativa e odanoNesse terreno, a única questão que ainda enseja certa dificuldade éa que diz respeito à relação que deve existir entre o ato <strong>do</strong> agente ou daatividade administrativa e o dano. Terá o ato que ser pratica<strong>do</strong> durante oR. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 10-20, jul.-set. 2011 11


serviço, ou bastará que seja em razão dele? De acor<strong>do</strong> com a essência devários julga<strong>do</strong>s, o mínimo necessário para determinar a responsabilidade<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> é que o cargo, a função ou atividade administrativa tenha si<strong>do</strong>a oportunidade para a prática <strong>do</strong> ato ilícito.Sempre que a condição de agente <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> tiver contribuí<strong>do</strong> dealgum mo<strong>do</strong> para a prática <strong>do</strong> ato danoso, ainda que simplesmente lheproporcionan<strong>do</strong> a oportunidade para o comportamento ilícito, respondeo Esta<strong>do</strong> pela obrigação ressarcitória. Não se faz mister, portanto, que oexercício da função constitua a causa eficiente <strong>do</strong> evento danoso; bastaque ela ministre a ocasião para praticar-se o ato. A nota constante é aexistência de uma relação entre a função pública exercida pelo agente e ofato gera<strong>do</strong>r <strong>do</strong> dano.Em suma, haverá a responsabilidade <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> sempre que se possaidentificar um laço de implicação recíproca entre a atuação administrativa(ato <strong>do</strong> seu agente), ainda que fora <strong>do</strong> estrito exercício da função, e odano causa<strong>do</strong> a terceiro.Em acórdão da relatoria <strong>do</strong> eminente Ministro Carlos Mario Velloso,no RE 160.401 – SP, a 2ª Turma <strong>do</strong> Supremo Tribunal Federal assim seposicionou sobre a questão: “Constitucional – Administrativo – <strong>Responsabilidade</strong>civil <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> – Constituição Federal, art. 37, § 6º - Agressãopraticada por solda<strong>do</strong>, com a utilização de arma da corporação: incidênciada responsabilidade objetiva <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, mesmo porque, não obstantefora <strong>do</strong> serviço, foi na condição de policial-militar que o solda<strong>do</strong> foicorrigir as pessoas. O que deve ficar assenta<strong>do</strong> é que o preceito inscritono art. 37, § 6º, da Constituição Federal não exige que o agente públicotenha agi<strong>do</strong> no exercício das suas funções, mas na qualidade de agentepúblico”(RTJ 170/631).Não basta, portanto, para emergir a responsabilidade <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>,que o ato ilícito tenha si<strong>do</strong> pratica<strong>do</strong> por agente público. É também precisoque a condição de agente estatal tenha contribuí<strong>do</strong> para a prática<strong>do</strong> ilícito, ainda que simplesmente proporcionan<strong>do</strong> a oportunidade ouocasião para o comportamento ilícito. A contrario senso, o Esta<strong>do</strong> nãopoderá ser responsabiliza<strong>do</strong> se o ato ilícito, embora pratica<strong>do</strong> por servi<strong>do</strong>r,este não se encontrava na qualidade de agente público.Mais recentemente, no RE nº363423/SP, Relator o Ministro CarlosBrito, o Supremo Tribunal Federal voltou a posicionar-se nesse senti<strong>do</strong>.12R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 10-20, jul.-set. 2011


Com efeito, o fato de não ter si<strong>do</strong> reproduzi<strong>do</strong> no Código <strong>Civil</strong> de2002 o artigo 15 <strong>do</strong> Código <strong>Civil</strong> de 1916 não permite concluir que a responsabilidadesubjetiva <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> foi banida de nossa ordem jurídica. Aresponsabilidade subjetiva é a regra básica, que persiste independentementede existir ou não norma legal a respeito. To<strong>do</strong>s respondem subjetivamentepelos danos causa<strong>do</strong>s a outrem, por um imperativo ético-jurídicouniversal de justiça. Destarte, não haven<strong>do</strong> previsão legal de responsabilidadeobjetiva, ou não estan<strong>do</strong> esta configurada, será sempre aplicável acláusula geral da responsabilidade subjetiva se configurada a culpa, nostermos <strong>do</strong> artigo 186 <strong>do</strong> Código <strong>Civil</strong>.A regra, com relação ao Esta<strong>do</strong>, é a responsabilidade objetiva fundadano risco administrativo sempre que o dano for causa<strong>do</strong> por agentepúblico nessa qualidade, sempre que houver relação de causa e efeitoentre a atuação administrativa e o dano. Resta, todavia, espaço para aresponsabilidade subjetiva nos casos em que o dano não é causa<strong>do</strong> pelaatividade estatal, nem pelos seus agentes, mas por fenômenos da natureza– chuvas torrenciais, tempestades, inundações – ou por fato da própriavítima ou de terceiros, tais como assaltos, furtos acidentes na via públicaetc. Não responde o Esta<strong>do</strong> objetivamente por tais fatos, repita-se, porquenão foram causa<strong>do</strong>s por sua atividade; poderá, entretanto, respondersubjetivamente com base na culpa anônima ou falta <strong>do</strong> serviço, se poromissão (genérica) concorreu para não evitar o resulta<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> tinha odever legal de impedi-lo.3.1 - Omissão específica e genéricaComo vimos, para uma prestigiada corrente a responsabilidade<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> é sempre subjetiva no caso de omissão. “Quan<strong>do</strong> o dano foipossível em decorrência de uma omissão <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> (o serviço não funcionou,funcionou tardia ou ineficientemente) é de aplicar-se a teoria daresponsabilidade subjetiva. Com efeito, se o Esta<strong>do</strong> não agiu, não pode,logicamente, ser ele o autor <strong>do</strong> dano. E se não foi o autor, só cabe responsabilizá-locaso esteja obriga<strong>do</strong> a impedir o dano. Isto é: só faz senti<strong>do</strong>responsabilizá-lo se descumpriu dever legal que lhe impunha obstar oevento lesivo” (Celso Antônio Bandeira de Mello - Elementos de DireitoAdministrativo, 2ª ed., RT, p. 344).Em nosso entender, o artigo 37, § 6º da Constituição não se refereapenas à atividade comissiva <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>; pelo contrário, a ação a que alude16R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 10-20, jul.-set. 2011


engloba tanto a conduta comissiva como omissiva. E tal entendimentoencontra respal<strong>do</strong> em inúmeros precedentes da Suprema Corte: “Comose sabe, a teoria <strong>do</strong> risco administrativo, consagrada em sucessivos <strong>do</strong>cumentosconstitucionais brasileiros, desde a Carta Política de 1946, revela-sefundamento de ordem <strong>do</strong>utrinária subjacente à norma de direitopositivo que instituiu, em nosso sistema jurídico, a responsabilidade civilobjetiva <strong>do</strong> Poder Público, pelos danos que seus agentes, nessa qualidade,causarem a terceiros, por ação ou por omissão (CF, art. 37, §6º). Essa concepçãoteórica – que informa o princípio constitucional da responsabilidadecivil objetiva <strong>do</strong> Poder Público, tanto no que se refere à ação quanto noque concerne à omissão <strong>do</strong> agente público – faz emergir, da mera ocorrênciade lesão causada à vítima pelo Esta<strong>do</strong>, o dever de indenizá-la..., nãoimportan<strong>do</strong> que se trate de comportamento positivo (ação) ou que secuide de conduta negativa (omissão) daqueles investi<strong>do</strong>s da representação<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>”... (AI 299125/SP, Relator Ministro Celso de Mello). Por issotemos sustenta<strong>do</strong> que, no caso de omissão estatal, é preciso distinguir aomissão específica da genérica, distinção essa hodiernamente reconhecidapela melhor e mais atualizada <strong>do</strong>utrina. A responsabilidade <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>será subjetiva no caso de omissão genérica e objetiva, no caso de omissãoespecífica, pois aí há dever individualiza<strong>do</strong> de agir.Haverá omissão específica quan<strong>do</strong> o Esta<strong>do</strong> estiver na condição degarante (ou de guardião) e por omissão sua cria situação propícia para aocorrência <strong>do</strong> evento em situação em que tinha o dever de agir para impedi-lo;a omissão estatal se erige em causa adequada de não se evitar odano. São exemplos de omissão específica: morte de detento em rebeliãoem presídio (Ap. Civ. 58957/2008, TJRJ); suicídio cometi<strong>do</strong> por pacienteinterna<strong>do</strong> em hospital público, ten<strong>do</strong> o médico responsável ciência daintenção suicida <strong>do</strong> paciente e nada fez para evitar (REsp. 494206/MG);paciente que dá entrada na emergência de hospital público, onde ficainternada, não sen<strong>do</strong> realiza<strong>do</strong>s os exames determina<strong>do</strong>s pelo médico,vin<strong>do</strong> a falecer no dia seguinte (Ap. Civ. 35985/2008, TJRJ); acidente comaluno nas dependências de escola pública – a pequena vítima veio a morrerafogada no horário escolar, em razão de queda em bueiro existente nopátio da escola municipal (Ap. Civ. 3611/1999, TJRJ). Em suma, a omissãoespecífica, que faz emergir a responsabilidade objetiva da AdministraçãoPública, pressupõe um dever específico <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, que o obrigue a agirpara impedir o resulta<strong>do</strong> danoso.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 10-20, jul.-set. 2011 17


Em contra partida, a omissão genérica tem lugar nas hipóteses emque não se pode exigir <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> uma atuação específica; quan<strong>do</strong> a Administraçãotem apenas o dever legal de agir em razão, por exemplo, <strong>do</strong>seu poder de polícia (ou de fiscalização), e por sua omissão concorre parao resulta<strong>do</strong>, caso em que deve prevalecer o princípio da responsabilidadesubjetiva. São exemplos de omissão genérica: negligência na segurançade balneário público – mergulho em lugar perigoso, consequente tetraplegia;o infortúnio ocorreu quan<strong>do</strong> a vítima, aos 14 anos, após penetrar,por meio de pagamento de ingresso, em balneário público, mergulhou decabeça em ribeirão de águas rasas, o que lhe causou lesão medular cervicalirreversível (REsp.418713-SP); queda de ciclista em bueiro há muitotempo aberto em péssimo esta<strong>do</strong> de conservação, o que evidencia aculpa anônima pela falta <strong>do</strong> serviço (Ap. Civ. 4846/2008, TJRJ); estuprocometi<strong>do</strong> por presidiário, fugitivo contumaz, não submeti<strong>do</strong> à regressãode regime prisional como manda a lei – faute du service public caracterizada;a omissão <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> constituiu, na espécie, o fator determinanteque propiciou ao infrator a oportunidade para praticar o crime de estuprocontra menor de 12 anos de idade, justamente no perío<strong>do</strong> em que deveriaestar recolhi<strong>do</strong> à prisão (REsp. 409203/RS); poste de ferro com um sinalde trânsito cai sobre i<strong>do</strong>sa no calçadão de Ipanema – a base de metal quesustentava o sinal estava bastante enferrujada e acabou quebran<strong>do</strong> como apoio da i<strong>do</strong>sa (Globo, 12/07/2010)Como se vê, na omissão genérica, que faz emergir a responsabilidadesubjetiva da Administração, a inação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> não se apresentacomo causa direta e imediata da não ocorrência <strong>do</strong> dano, razão pela qualdeve o lesa<strong>do</strong> provar que a falta <strong>do</strong> serviço (culpa anônima) concorreupara o dano, que se houvesse uma conduta positiva praticada pelo PoderPúblico o dano poderia não ter ocorri<strong>do</strong>.3.2 - Fatos da naturezaEm se tratan<strong>do</strong> de fatos da natureza, a jurisprudência, aplican<strong>do</strong>tais princípios <strong>do</strong>utrinários aos casos concretos, <strong>do</strong>s mais varia<strong>do</strong>s matizes,definiu-se através de uma orientação uniforme, de que nos dá notíciaYussef Said Cahali, após analisar o conjunto abrangente de acórdãos denossos Tribunais: “A Administração Pública será responsabilizada pelareparação <strong>do</strong>s danos sofri<strong>do</strong>s pelos particulares, provoca<strong>do</strong>s por eventosinevitáveis da Natureza (chuvas torrenciais, inundações, alagamentos,18R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 10-20, jul.-set. 2011


desmoronamentos), desde que, por sua omissão ou atuação deficiente,deixan<strong>do</strong> de realizar obras que razoavelmente lhe seriam exigíveis (ouas realizan<strong>do</strong> de maneira insatisfatória), poderia ter evita<strong>do</strong> a causação<strong>do</strong> prejuízo, ou atenua<strong>do</strong> as suas consequências” (<strong>Responsabilidade</strong><strong>Civil</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, Malheiros Editores, 2ª ed. P. 58).Cahali arremata dizen<strong>do</strong> que, embora a razoabilidade dependa deprudente arbítrio <strong>do</strong> Poder Judiciário, a ser aplica<strong>do</strong> caso a caso, nesseconceito precípuo reside o núcleo da perquirição da responsabilidadepública, de mo<strong>do</strong> a concluir se a omissão ou atuação deficiente figuroucomo causa exclusiva ou concorrente <strong>do</strong> dano.4 - ConclusãoEm conclusão, quan<strong>do</strong> não se pode exigir <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> uma atuaçãoespecífica, ten<strong>do</strong> este, entretanto, um dever genérico de agir, e o serviçonão funciona, funciona mal ou funciona tardiamente, haverá omissãogenérica, pela qual responde a Administração subjetivamente com basena culpa anônima; quan<strong>do</strong> o Esta<strong>do</strong> tem dever específico de agir e a suaomissão cria a situação propícia para a ocorrência <strong>do</strong> evento danoso, emsituação que tinha o dever de agir para impedi-lo, haverá omissão específicae o Esta<strong>do</strong> responde objetivamente.O corolário dessa <strong>do</strong>utrina é o acórdão <strong>do</strong> Supremo Tribunal Federal,verdadeiro leading case no tema, em que se decidiu que o Município<strong>do</strong> Rio de Janeiro omitiu-se especificamente no seu dever de garantir aincolumidade física de alunos de sua rede pública de ensino, a partir dequan<strong>do</strong> os mesmos ingressam no recinto escolar. Na ocasião, condenou amunicipalidade a ressarcir danos decorrentes de ferimento que cegou umaluno, provoca<strong>do</strong> por seu colega, durante o horário escolar e dentro <strong>do</strong>estabelecimento de ensino público.Vale, pela importância, reproduzir algumas passagens <strong>do</strong> voto <strong>do</strong>eminente relator, o Ministro Celso de Mello: “As circunstâncias <strong>do</strong> presentecaso – apoiadas em pressupostos fáticos soberanamente reconheci<strong>do</strong>spelo Tribunal a quo – evidenciam que o nexo de causalidade materialrestou plenamente configura<strong>do</strong> em face <strong>do</strong> comportamento omissivoem que incidiu o agente <strong>do</strong> Poder Público (funcionário escolar), que seabsteve de a<strong>do</strong>tar as providências reparatórias que a situação estava aexigir. Na realidade consta <strong>do</strong>s autos que, por incompreensível omissãoadministrativa, não só deixou de ser solicita<strong>do</strong> e presta<strong>do</strong> imediatoR. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 10-20, jul.-set. 2011 19


socorro médico à vítima, mas, também, absteve-se a própria administraçãoescolar de notificar os pais da aluna atingida, com a urgência queo caso requeria. É preciso enfatizar que o Poder Público, ao receber omenor estudante em qualquer <strong>do</strong>s estabelecimentos da rede oficialde ensino, assume o grave compromisso de velar pela preservação desua integridade física, deven<strong>do</strong> empregar to<strong>do</strong>s os meios necessáriosao integral desempenho desse encargo jurídico, sob pena de incidir emresponsabilidade civil pelos eventos lesivos ocasiona<strong>do</strong>s ao aluno, osquais, muitas vezes, decorrem da inércia, da omissão ou indiferença <strong>do</strong>sservi<strong>do</strong>res estatais. A obrigação de preservar a intangibilidade física <strong>do</strong>salunos, enquanto estes se encontram no recinto <strong>do</strong> estabelecimento escolar,constitui encargo indissociável <strong>do</strong> dever que incumbe ao Esta<strong>do</strong> dedispensar proteção efetiva a to<strong>do</strong>s os estudantes que se acharem sob aguarda imediata <strong>do</strong> Poder Público nos estabelecimentos oficiais de ensino.Descumprida essa obrigação, e vulnerada a integridade corporal <strong>do</strong>aluno – tal como no caso ocorreu – emerge a responsabilidade civil <strong>do</strong> PoderPúblico pelos danos causa<strong>do</strong>s a quem, no momento <strong>do</strong> fato lesivo, seachava sob guarda, atenção, vigilância e proteção das autoridades e <strong>do</strong>sfuncionários escolares” (RE 109615-RJ – RTJ nº 163/1107-1114).Como se vê, o Pretório Excelso concluiu pela responsabilidadeobjetiva da municipalidade fulcra<strong>do</strong> na obrigação que os agentes públicostinham de proteger a incolumidade física <strong>do</strong>s estudantes. O descumprimentodesse dever constitui a omissão específica, que dá ensejo à obrigaçãode indenizar pelo critério objetivo. Só no caso de omissão genéricaemerge a responsabilidade subjetiva <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>.20R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 10-20, jul.-set. 2011


Sobre a Inversão <strong>do</strong> ônus daprova no Direito <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>rThiago Ferreira Car<strong>do</strong>so NevesProfessor da EMERJ e <strong>do</strong>s Cursos de Pós-Graduaçãoda Universidade Cândi<strong>do</strong> Mendes. Pós-gradua<strong>do</strong> emDireito Público e Priva<strong>do</strong> pela EMERJ. Advoga<strong>do</strong> <strong>do</strong>Escritório Sylvio Capanema Advoga<strong>do</strong>s Associa<strong>do</strong>s.1. IntroduçãoA inversão <strong>do</strong> ônus da prova é uma benesse processual concedidaao consumi<strong>do</strong>r quan<strong>do</strong> litiga com os fornece<strong>do</strong>res, facilitan<strong>do</strong> o convencimento<strong>do</strong> julga<strong>do</strong>r, em seu favor, quan<strong>do</strong> da resolução <strong>do</strong>s conflitos.Dúvidas poderiam surgir acerca da validade de tal benefício aparentementeanti-isonômico. Entretanto, ver-se-á que esse tratamento diferencia<strong>do</strong>decorre da própria condição peculiar <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r perante osfornece<strong>do</strong>res, que se tornou ainda mais diferenciada com a expansão <strong>do</strong>consumo.O crescimento da população e o desenvolvimento da sociedadeacarretaram uma maior demanda por produtos e serviços. A RevoluçãoIndustrial e a produção de bens em larga escala são frutos da exigência <strong>do</strong>merca<strong>do</strong> em atender essas necessidades.De lá pra cá esses méto<strong>do</strong>s de produção se desenvolveram de formaassombrosa, permitin<strong>do</strong> a satisfação de consumi<strong>do</strong>res de to<strong>do</strong> o planeta.Todavia, esse crescimento em progressão geométrica, e em velocidadesurpreendente, trouxe consequências inexoráveis ao processo produtivo,exsurgin<strong>do</strong> falhas das quais os produtores de bens e serviços nãolograram êxito em obstar, haja vista que a velocidade de desenvolvimento<strong>do</strong>s produtos e da sua produção em massa não foi a mesma aplicada àqualificação desses meios produtivos.A consequência é a falha no processo de produção e a impossibilidadede se exercer um controle infalível sobre cada bem individualmenteproduzi<strong>do</strong>.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 21-40, jul.-set. 2011 21


Outro aspecto destacável que decorre desse crescimento exponencialda população e da cadeia de consumo é a separação das figuras <strong>do</strong>comerciante e <strong>do</strong> produtor, em que aquele exerce uma atividade de distribuição<strong>do</strong>s produtos fabrica<strong>do</strong>s, uma vez que se tornou impossível para ofabricante concentrar as suas funções com a de distribui<strong>do</strong>r.Vê-se, pois, que o caminho entre o produtor e o consumi<strong>do</strong>r tornousemais longo, possibilitan<strong>do</strong> a ocorrência de falhas nessas relações intermediáriasaté a chegada <strong>do</strong>s bens produzi<strong>do</strong>s ao seu destinatário final.Frise-se que os produtos fabrica<strong>do</strong>s em larga escala passaram a serdistribuí<strong>do</strong>s de forma lacrada, o que dificultou, ainda mais, o controlesobre a qualidade e perfeição <strong>do</strong> processo produtivo, isso porque essaforma de acondicionamento e distribuição <strong>do</strong>s bens obsta eventual fiscalizaçãopelo intermedia<strong>do</strong>r – o comerciante –, bem como pelo consumi<strong>do</strong>r.Além de todas essas falhas, o destinatário final, que não detémmeios econômicos e técnicos para efetuar o aludi<strong>do</strong> controle, ainda ficavaà mercê <strong>do</strong>s grandes produtores e comerciantes, ante a falta de umatutela específica <strong>do</strong> ordenamento jurídico.Inúmeros são os exemplos de lesões causadas aos consumi<strong>do</strong>resem razão de defeitos no desenvolvimento de produtos e sua consequentedistribuição, irresponsável, em massa.Não custa ser lembra<strong>do</strong> o famoso caso da Tali<strong>do</strong>mida, medicamentoutiliza<strong>do</strong> por gestantes nas décadas de 1950 e 1960, que ocasionou deformidadesirreversíveis aos fetos.Como salienta o emérito professor e Desembarga<strong>do</strong>r aposenta<strong>do</strong><strong>do</strong> Tribunal de Justiça <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio de Janeiro, Sergio Cavalieri Filho,um único defeito de concepção ou fabricação de produtos produzi<strong>do</strong>s emsérie pode gerar riscos e danos para um número incalculável de indivíduos,aquilo que ele denominou de riscos de consumo, riscos em série, ouriscos coletivos 1 .Diante desses fatos, viu-se o consumi<strong>do</strong>r em flagrante desvantagemperante os fornece<strong>do</strong>res, isso porque a massificação da produção e<strong>do</strong> consumo tornou os produtores e comerciantes econômicos, técnicos ejuridicamente mais fortes.A superioridade econômica decorre <strong>do</strong>s lucros astronômicos a quepassaram a obter os fornece<strong>do</strong>res.1 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Direito <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r. São Paulo: Atlas. 2008, p. 03.22R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 21-40, jul.-set. 2011


Quanto à vantagem técnica, são os fornece<strong>do</strong>res os detentores <strong>do</strong>smeios de produção e <strong>do</strong> conhecimento das técnicas de fabricação, que sedesenvolveram ainda mais, bem como a correta compreensão acerca dautilização e funcionamento <strong>do</strong>s próprios produtos por eles forneci<strong>do</strong>s.No que tange à supremacia jurídica, ela decorre da larga experiênciaadquirida pelos fornece<strong>do</strong>res nos milhares de embates jurídicostrava<strong>do</strong>s contra os consumi<strong>do</strong>res em juízo, sen<strong>do</strong> esses últimos, tãosomente, litigantes eventuais.Diante de tamanha desigualdade, foi necessária a criação de umregramento próprio para a proteção <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r em evidente desvantagem.O constituinte de 1988, atento a todas essas questões, trouxe parao legisla<strong>do</strong>r ordinário o dever de produzir um sistema protetivo próprio<strong>do</strong>s consumi<strong>do</strong>res, que se materializou, <strong>do</strong>is anos após a promulgação daCarta Magna, com a Lei nº 8.078/90.As inovações trazidas pelo diploma consumerista revolucionaramo ordenamento então vigente. A previsão expressa da responsabilidadeobjetiva e a imposição da boa-fé objetiva como cláusula implícita em to<strong>do</strong>sos contratos, garantias essas posteriormente incorporadas e consagradasno Código <strong>Civil</strong> de 2002, bem como a regra processual da inversão <strong>do</strong> ônusda prova, são exemplos da mudança paradigmática <strong>do</strong> direito brasileiroanteriormente contamina<strong>do</strong> por ideias individualistas, consagra<strong>do</strong>ras <strong>do</strong>absolutismo <strong>do</strong> direito de propriedade, da autonomia da vontade e <strong>do</strong>pacta sunt servanda.No campo <strong>do</strong> direito material, inúmeras foram as inovações <strong>do</strong>Código de Proteção e Defesa <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r como, por exemplo, a previsão<strong>do</strong> direito à informação clara e transparente, o direito à reparaçãopor danos sofri<strong>do</strong>s por fatos <strong>do</strong> produto e <strong>do</strong> serviço, o direito à substituição<strong>do</strong> produto, devolução <strong>do</strong> preço pago ou abatimento <strong>do</strong> preço nashipóteses de vício <strong>do</strong> produto, bem como o direito ao cumprimento dasofertas.No campo <strong>do</strong> direito processual também não foram poucas as novidadestrazidas pelo diploma protetivo, como, por exemplo, a alteraçãoda regra geral de competência de foro para facilitar o exercício <strong>do</strong> direitode ação pelo consumi<strong>do</strong>r, que pode optar por ajuizar a demanda no forode seu <strong>do</strong>micílio.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 21-40, jul.-set. 2011 23


Contu<strong>do</strong>, a regra de grande relevância para a concretização <strong>do</strong> exercíciodesse direito constitucional de ação é a inversão <strong>do</strong> ônus da prova.Isso porque, to<strong>do</strong>s os atos <strong>do</strong> processo nada mais são <strong>do</strong> que um des<strong>do</strong>bramentodesse direito, e de nada adiantaria ao consumi<strong>do</strong>r ter o direitode ajuizar a ação no foro de seu <strong>do</strong>micílio se não tivesse meios de produzira prova para a demonstração <strong>do</strong> seu direito material. O exercício dessedireito de ação, apenas com a alteração da regra de competência, seriaineficaz.Portanto, a garantia processual prevista no art. 6º, VIII, <strong>do</strong> Códigode Defesa <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r é de grande importância para a manutenção<strong>do</strong> próprio sistema introduzi<strong>do</strong> pela Lei nº 8.078/90, haja vista que, semela, dificilmente seria possível reconhecer a existência <strong>do</strong> direito materialalega<strong>do</strong> pelo consumi<strong>do</strong>r.Não obstante, essa benesse processual não é incondicional, ou seja,para ser aplicada devem ser observadas algumas condições, requisitosimprescindíveis sem os quais a sua aplicação não atenderá aos fins a quese destina.Além disso, é imperioso o exame da natureza da inversão <strong>do</strong> ônusda prova, bem como <strong>do</strong> momento em que deve ser empregada, e se elaé, ou não, obrigatória.Por essa razão, impõe-se o exame minucioso dessa regra imprescindívelà tutela <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r inserida pelo legisla<strong>do</strong>r ordinário.2. Princípios ConstitucionaisO Direito <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r tem fonte constitucional, como se depreendeda leitura <strong>do</strong> artigo 5º, XXXII, da Lei Fundamental, que dispõe que oEsta<strong>do</strong> promoverá, na forma da lei, a defesa <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r, bem como seinfere <strong>do</strong> artigo 170, V, que prevê que a ordem econômica deve observaro princípio da defesa <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r.Vê-se, pois, que o constituinte de 1988 não estava alheio às transformaçõessociais. Todavia, conferiu ao legisla<strong>do</strong>r ordinário o dever decriar os mecanismos para a defesa <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r.Não obstante a previsão constitucional, insculpida no artigo 5º,§ 1º, de que as normas defini<strong>do</strong>ras de direitos e garantias fundamentaistêm aplicação imediata, o inciso XXXII <strong>do</strong> mesmo artigo 5º e o art. 170da Magna Carta consistem em normas de eficácia limitada de princípioprogramático, uma vez que “são traduzidas no texto supremo apenas em24R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 21-40, jul.-set. 2011


princípio, como esquemas genéricos, simples programas a serem desenvolvi<strong>do</strong>sulteriormente pela atividade <strong>do</strong>s legisla<strong>do</strong>res ordinários 2 ”.Então, essas normas reclamam a elaboração de uma lei que lhes dêeficácia plena, sem a qual não será atendida a vontade <strong>do</strong> constituinte.No caso especial da norma <strong>do</strong> artigo 170 que inaugura o Título VIIIda Carta Política, pretendeu o constituinte, através da intervenção naordem econômica, assegurar a to<strong>do</strong>s uma existência digna, em observânciaao postula<strong>do</strong> normativo da dignidade da pessoa humana, fundamento<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Democrático de Direito, promoven<strong>do</strong> a justiça social.Estava o constituinte consciente da posição <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r nasociedade, bem como da inexistência da sua proteção no ordenamentopátrio.A lei vigente, até então, era o ultrapassa<strong>do</strong> Código <strong>Civil</strong> de 1916,com o seu ranço individualista, jamais volta<strong>do</strong> à tutela da coletividade oude uma determinada classe.Pressentiu o constituinte que era necessário reformular essa visãoindividualista <strong>do</strong> Digesto brasileiro e que, diante de um sistema legal queainda não gozava de estabilidade e segurança, essa reformulação deviaser iniciada pelo próprio texto constitucional.Também consciente da contumaz inércia e morosidade <strong>do</strong> PoderLegislativo, e temeroso de que outros interesses pudessem inviabilizar, ouaté mesmo suplantar, a concretização da defesa <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r, estipulouo constituinte, no artigo 48 <strong>do</strong>s Atos das Disposições ConstitucionaisTransitórias, o ADCT, um prazo de 120 dias para a elaboração <strong>do</strong> Códigode Defesa <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r.A primeira observação a ser feita é que o constituinte determinou acriação de um código, e um código volta<strong>do</strong> à defesa de um grupo, pois odenominou de Código de Defesa <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r.Portanto, não se trata de um mero código a regular relações de consumo,mas sim um código para a defesa e proteção <strong>do</strong>s consumi<strong>do</strong>res.A segunda observação é que, por ser a norma <strong>do</strong> ADCT desprovidade sanção, o legisla<strong>do</strong>r, como não poderia deixar de ser, não observouo prazo previsto constitucionalmente, e só veio a elaborar o diplomaprotetivo depois de quase 700 dias da promulgação da Lei Fundamental,interstício esse em que, mesmo com a vigência da Constituição, o consu-2 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 7. ed. São Paulo: Malheiros. 2008, p. 137.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 21-40, jul.-set. 2011 25


mi<strong>do</strong>r ficou à mercê <strong>do</strong>s fornece<strong>do</strong>res, ten<strong>do</strong> em vista que as normas <strong>do</strong>sartigos 5º, XXXII, e 170 da Constituição não são de eficácia plena.Quanto à prova, também tem ela fundamento constitucional. Dispõeo artigo 5º, LIV, da Magna Carta que ninguém será priva<strong>do</strong> de seusbens sem o devi<strong>do</strong> processo legal, bem como prevê o inciso LV, <strong>do</strong> mesmoartigo 5º, que aos litigantes em processo judicial são assegura<strong>do</strong>s ocontraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.A garantia <strong>do</strong> devi<strong>do</strong> processo legal é aquela que assegura a to<strong>do</strong>so direito a um processo previamente previsto em lei, com “garantias mínimasde meios e de resulta<strong>do</strong>, com emprego de instrumental técnicoprocessualadequa<strong>do</strong> e conducente a uma tutela adequada e efetiva”. 3E dúvidas não há de que o direito à produção da prova, ou melhor,a garantia que tem as partes, no âmbito <strong>do</strong> processo, de provar suas alegaçõesestá inserida nesse contexto, ten<strong>do</strong> em vista que a prova é uminstrumento para a obtenção <strong>do</strong> resulta<strong>do</strong> pretendi<strong>do</strong> pela parte.A existência de uma fase probatória no processo, seja ela autônoma,como no procedimento comum ordinário, ou concentra<strong>do</strong> em umaaudiência, como no procedimento especial <strong>do</strong>s Juiza<strong>do</strong>s Especiais, é umademonstração da observância <strong>do</strong> Devi<strong>do</strong> Processo Legal.Quanto ao contraditório, é ele costumeiramente trata<strong>do</strong> como obinômio ciência-possibilidade de manifestação, isto é, através <strong>do</strong> contraditórioconfere-se à parte o direito de conhecer to<strong>do</strong>s os fatos que venhama ocorrer durante o curso <strong>do</strong> processo, garantin<strong>do</strong>-lhe a oportunidade dese manifestar sobre to<strong>do</strong>s esses acontecimentos.Todavia, a isso não se resume o contraditório. Consiste ele, emverdade, na garantia constitucional que assegura às partes o direito deinfluenciar no resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> processo, ou seja, é através <strong>do</strong> contraditórioque a parte, ten<strong>do</strong> conhecimento <strong>do</strong>s fatos processuais, poderá agir, ouaté quedar-se inerte, alteran<strong>do</strong> o seu resulta<strong>do</strong>, ou permitin<strong>do</strong> que oresulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> processo seja mesmo o já previsto.Apenas com essa conclusão é possível, por exemplo, compreendera constitucionalidade <strong>do</strong> instituto da revelia. Isso porque, se o réu, regularmentecita<strong>do</strong>, opta por não responder, está exercen<strong>do</strong> o seu direito deinfluenciar no resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> processo. Nessa hipótese, haverá a presunçãode veracidade das alegações, o que importará, na grande maioria <strong>do</strong>s3 DINAMARCO, Cândi<strong>do</strong> Rangel. Instituições de Direito Processual <strong>Civil</strong>. V. I. 5. ed. São Paulo: Malheiros. 2005,p. 266.26R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 21-40, jul.-set. 2011


casos, ten<strong>do</strong> em vista ser apenas relativa essa presunção, no acolhimentoda pretensão autoral, salvo se, <strong>do</strong> fato narra<strong>do</strong>, não decorrer odireito alega<strong>do</strong>, ou se a eventual prova trazida aos autos fizer cair porterra a presunção.A prova, por essa ótica, é um meio que a parte tem de influenciarno resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> processo, pois influencia o convencimento <strong>do</strong> julga<strong>do</strong>racerca da veracidade das alegações deduzidas.Quanto à ampla defesa, consiste ela no dever que tem o Esta<strong>do</strong> deassegurar à parte a mais ampla e completa gama de instrumentos para oexercício <strong>do</strong> seu direito de defesa. E dúvidas não há de que a prova é um<strong>do</strong>s instrumentos de exercício desse direito.Portanto, não há dúvidas de que o direito à prova assegura o cumprimento<strong>do</strong> coman<strong>do</strong> constitucional, pois apenas garantin<strong>do</strong> à parte odireito de provar o que for alega<strong>do</strong>, estar-se-á prestigian<strong>do</strong> a garantia daampla defesa.E o direito à produção da prova, em prestígio ao contraditório, àampla defesa e ao devi<strong>do</strong> processo legal, também só pode ser limita<strong>do</strong>por previsão constitucional, como ocorre no inciso LVI, <strong>do</strong> art. 5º, daMagna Carta, que veda a obtenção de provas obtidas por meios ilícitos.Por fim, é imperioso demonstrar que a regra da inversão <strong>do</strong> ônus daprova é um instrumento para o exercício <strong>do</strong> direito de ação, que se extraiimplicitamente <strong>do</strong> princípio da inafastabilidade <strong>do</strong> controle <strong>do</strong> PoderJudiciário previsto no art. 5º, XXXV, da Magna Carta.Ora, se não é possível à lei excluir da apreciação <strong>do</strong> Poder Judiciáriolesão ou ameaça a direito, isso significa que a to<strong>do</strong>s é assegura<strong>do</strong> o direitode exigir, em juízo, a proteção de seu direito. E isso ocorre por intermédio<strong>do</strong> exercício <strong>do</strong> direito de ação.Ocorre que, em muitos casos, impossível é ao consumi<strong>do</strong>r produzira prova de seu direito, ante a sua hipossuficiência, seja técnica, sejafinanceira.Então, a inversão <strong>do</strong> ônus da prova possibilita ao consumi<strong>do</strong>r ir ajuízo mesmo sem ter em mãos essa prova. Nesses casos, caberá ao fornece<strong>do</strong>rproduzir a prova da inexistência <strong>do</strong> direito alega<strong>do</strong> pelo autor, bemcomo demonstrar que os fatos narra<strong>do</strong>s não correspondem à verdade.Caso não existisse a benesse processual, o consumi<strong>do</strong>r, impossibilita<strong>do</strong>no caso concreto de produzir a prova, não poderia ir a juízo parapostular seu direito, haja vista que estaria fada<strong>do</strong> ao insucesso.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 21-40, jul.-set. 2011 27


Por essa razão, a inversão <strong>do</strong> ônus da prova é um instrumento deacesso à Justiça, pois possibilita ao consumi<strong>do</strong>r hipossuficiente ir a juízomesmo sem ter a prova da existência <strong>do</strong> seu direito.Disso se conclui que a regra processual, enquanto instrumento deacesso ao Poder Judiciário através <strong>do</strong> exercício <strong>do</strong> direito de ação, é corolário<strong>do</strong> princípio da inafastabilidade da jurisdição.3. Ônus da ProvaÔnus, segun<strong>do</strong> o processualista baiano Fredie Didier Jr., “é o encargoatribuí<strong>do</strong> à parte e jamais uma obrigação”. 4 Isso significa que a norma<strong>do</strong> art. 333 <strong>do</strong> diploma instrumental brasileiro, que introduz a regra <strong>do</strong>ônus da prova, não traz uma imposição, ou seja, não tem o autor da açãoo dever legal de provar os fatos constitutivos de seu direito, e tampoucotem o réu a obrigação de provar os fatos extintivos, modificativos ouimpeditivos <strong>do</strong> direito <strong>do</strong> autor.Trata-se, meramente, de um encargo, ou seja, uma incumbênciaonerosa. Todavia, o não cumprimento dessa incumbência poderá trazerconsequências indesejáveis a aquele que poderia cumpri-la.Diz-se que pode trazer consequências indesejáveis, e não que traránecessariamente consequências indesejáveis, porque pode ocorrer daparte não produzir a prova que lhe incumbia e, mesmo assim, lograr êxitona ação proposta.Isso porque a norma que dispõe sobre o ônus da prova não traz,conforme feliz expressão de Fredie Didier, “regras que distribuem tarefasprocessuais”. 5O significa<strong>do</strong> dessa expressão utilizada pelo <strong>do</strong>uto processualista éque a norma processual não traz deveres jurídicos, mas sim uma soluçãopara a problemática da obrigatoriedade de julgamento mesmo naquelashipóteses em que não há provas nos autos para o convencimento <strong>do</strong>julga<strong>do</strong>r.O brocar<strong>do</strong> romano non liquet significa que determina<strong>do</strong> pedi<strong>do</strong>não está claro suficiente para ser julga<strong>do</strong>. Em Roma, podiam os juízesse abster de decidir com base nesse fundamento, ou seja, entenden<strong>do</strong>o julga<strong>do</strong>r que não havia provas suficientes para o deslinde da questão,desincumbia-se ele <strong>do</strong> seu encargo de dar uma solução à lide.4 DIDIER Jr., Fredie. Curso de Direito Processual <strong>Civil</strong>. v. I. 6. ed. Salva<strong>do</strong>r: Jus Podivm. 2006, p. 512.5 idem.28R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 21-40, jul.-set. 2011


O direito processual brasileiro, contu<strong>do</strong>, inadmite o non liquet, preven<strong>do</strong>o artigo 126 <strong>do</strong> Código de Ritos pátrio que o juiz não se exime desentenciar ou despachar alegan<strong>do</strong> lacuna ou obscuridade na lei.Questionar-se-ia que a ausência de provas não é o mesmo quelacuna ou obscuridade na lei. Tal questionamento é plausível, no entanto,a ausência de provas não é justificativa para que o juiz se exima de decidir,pois a lei traz uma solução para a hipótese de não haver provas nos autos,que é a regra <strong>do</strong> ônus da prova.Não haven<strong>do</strong> prova nos autos de nenhuma das alegações, buscaráo juiz a norma contida no art. 333 <strong>do</strong> Código de Processo <strong>Civil</strong>, ou seja, senão há prova <strong>do</strong>s fatos, observará o julga<strong>do</strong>r de quem era o encargo deproduzi-la.Sen<strong>do</strong> o encargo <strong>do</strong> autor, ou seja, incumbin<strong>do</strong> a ele a prova <strong>do</strong> fatoconstitutivo de seu direito, e não haven<strong>do</strong> provas da existência <strong>do</strong> direitoalega<strong>do</strong>, outra solução não há que o julgamento de improcedência.Entretanto, o ônus da prova não consiste em um dever jurídico cujodescumprimento levaria a uma sanção, in casu, o julgamento de improcedência<strong>do</strong> pedi<strong>do</strong>, isso porque se admite o julgamento de procedênciamesmo quan<strong>do</strong> o autor da ação não produza a prova <strong>do</strong> fato constitutivode seu direito.A justificativa é que tal prova pode vir aos autos pelas mãos deoutro sujeito <strong>do</strong> processo que não seja o autor da ação. Pode o réu, porum descui<strong>do</strong>, por exemplo, ou no afã de produzir uma prova favorável aele, acabar por produzir uma prova que favoreça ao autor.Nesse caso, acolherá o juiz a pretensão autoral, mesmo não ten<strong>do</strong> oautor cumpri<strong>do</strong> com o seu ônus de produzir a prova que lhe beneficie.Se o ônus da prova fosse um dever a ser cumpri<strong>do</strong> pelas partes,teria o juiz, obrigatoriamente, que julgar improcedente o pedi<strong>do</strong> autoralnas hipóteses em que o autor não tenha produzi<strong>do</strong> a prova de seu direito,ou julgar procedente o pedi<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> o réu não produza a prova <strong>do</strong> fatoextintivo, modificativo ou impeditivo <strong>do</strong> direito <strong>do</strong> autor. Tal conclusãoseria, no mínimo, esdrúxula.Vê-se, pois, que apenas nas hipóteses de ausência de provas é queo juiz observará o onus probandi, qual seja, o <strong>do</strong> autor produzir a prova<strong>do</strong> fato constitutivo de seu direito, e <strong>do</strong> réu provar o fato modificativo,extintivo, ou impeditivo <strong>do</strong> direito <strong>do</strong> autor.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 21-40, jul.-set. 2011 29


Há que se ressaltar a lição <strong>do</strong> emérito processualista carioca, eDesembarga<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Tribunal de Justiça <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio de Janeiro, o professorAlexandre Freitas Câmara, que sustenta que o ônus <strong>do</strong> réu não seresume apenas em provar o fato extintivo, modificativo, ou impeditivo <strong>do</strong>direito <strong>do</strong> autor, mas também lhe incumbe provar que não existe o fatoconstitutivo <strong>do</strong> direito <strong>do</strong> autor, o que o ilustre professor chama de “ônusda contraprova 6 ”.Segun<strong>do</strong> o preclaro professor, pode assumir o réu <strong>do</strong>is ônus: o deprovar a inexistência <strong>do</strong> fato constitutivo <strong>do</strong> autor, hipótese em que nãoadmite a existência <strong>do</strong> fato ou, ao admitir a existência <strong>do</strong> fato, provar quehouve causa modificativa, impeditiva ou extintiva.Conclui-se, pois, que a natureza <strong>do</strong> ônus da prova é de regra dejulgamento, ou seja, o juiz apenas aplicará a regra <strong>do</strong> ônus da prova nomomento de decidir, pois é só nesse momento em que o juiz verificará sehá, ou não, provas suficientes para decidir a questão posta em juízo.Então, cabe ao juiz, no momento de prolatar a sentença, verificara existência ou não de provas e, verifican<strong>do</strong> a sua insuficiência, expressara quem incumbia produzi-las, e, assim, julgar favoravelmente àquele quetinha o encargo e dele se desincumbiu, não lhe sen<strong>do</strong> possível deixar dedecidir por ausência de provas ou, como que em uma ane<strong>do</strong>ta, julgar alide empatada e condenar o escrivão nas custas.4. A Inversão <strong>do</strong> Ônus da Prova no Código de Proteção eDefesa <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>rNo campo <strong>do</strong> Direito <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r, outra regra prevalece acerca<strong>do</strong> ônus da prova, que é aquela prevista no art. 6º, VIII, <strong>do</strong> diploma consumerista,que determina a inversão <strong>do</strong> ônus ao se constatar a verossimilhançadas alegações e a hipossuficiência <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r, bem comoaquelas que determinam a inversão <strong>do</strong> ônus da prova ao se verificar algumadas situações previstas nos artigos 12, § 3º, 14, e 38.Não se trata, pois, de exceção à regra <strong>do</strong> ônus da prova, mas simde uma regra especial aplicável às relações de consumo que, como já foraexplicita<strong>do</strong>, possui um regime diferencia<strong>do</strong> ante a vulnerabilidade de umadas partes, o que impõe a aplicação <strong>do</strong> conceito material de isonomia, ouseja, o tratamento desigual <strong>do</strong>s desiguais na medida de sua desigualdade.6 CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual <strong>Civil</strong>. V. I. 18. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2008,p. 378.30R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 21-40, jul.-set. 2011


Estan<strong>do</strong> o consumi<strong>do</strong>r em uma situação inferior ao <strong>do</strong> fornece<strong>do</strong>r,há que se impor ao processo uma regra que facilite o exercício <strong>do</strong> seudireito, reequilibran<strong>do</strong>, no âmbito <strong>do</strong> direito processual, aquela relaçãoque, no âmbito <strong>do</strong> direito material e no aspecto social, encontra-se emdesequilíbrio.Iniciar-se-á o exame com a regra prevista no art. 6º, VIII, <strong>do</strong> diplomaconsumerista, que determina a inversão <strong>do</strong> ônus ao se constatar a verossimilhançadas alegações e a hipossuficiência <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r.Assim como ocorre com a regra geral prevista no art. 333 <strong>do</strong> Códigode Processo <strong>Civil</strong>, a regra especial <strong>do</strong> Código de Defesa <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r éuma regra de julgamento, ou seja, o julga<strong>do</strong>r, então, constatan<strong>do</strong> a inexistênciade provas para o deslinde da causa, e preenchi<strong>do</strong>s os requisitos dalei, aplicará a inversão <strong>do</strong> onus probandi.E não poderia ser diferente. O juiz só poderá aferir a existência ounão de provas, bem como a presença <strong>do</strong>s requisitos autoriza<strong>do</strong>res dainversão, no momento de prolatar a sentença, isso porque é nesse momentoque o julga<strong>do</strong>r verificará o mérito da questão, confrontan<strong>do</strong> asalegações autorais com uma possível realidade fática – prova da verossimilhança.Constata-se, pois, que a regra da inversão <strong>do</strong> ônus da prova tambémé uma regra de julgamento, ou seja, é aplicável na sentença, ao contrário<strong>do</strong> que sustenta grande parcela da <strong>do</strong>utrina.Segun<strong>do</strong> Fredie Didier, a regra de inversão é regra de procedimento,pois não é ela a mesma regra daquela que distribui o ônus da prova.De acor<strong>do</strong> com seu entendimento, não seria lícito ao magistra<strong>do</strong> operara inversão no momento da sentença, pois ocorreria situação peculiar emque o juiz, no mesmo momento, atribuiria o ônus ao réu e lhe negariaa possibilidade de desincumbir-se de seu encargo, ten<strong>do</strong> em vista já terultrapassa<strong>do</strong> a fase probatória 7 .Contu<strong>do</strong>, apesar da autoridade <strong>do</strong> argumento, tal posicionamentonão nos sensibiliza. Assim como a regra <strong>do</strong> ônus da prova em que o juizconstata a necessidade de aplicação apenas na sentença, igualmente a7 DIDIER. op. cit. p. 515. O professor Rizzato Nunes pactua <strong>do</strong> mesmo entendimento, argumentan<strong>do</strong> que o juizprecisa se manifestar acerca da presença <strong>do</strong>s requisitos legais, quais sejam, a hipossuficiência e a verossimilhançadas alegações autorais, que uma vez reconhecidas determinam a inversão. A decisão de inversão, então, deveriaocorrer entre o pedi<strong>do</strong> inicial e a fase sanea<strong>do</strong>ra, ten<strong>do</strong> em vista que a inversão não é automática, não acarretan<strong>do</strong>,então, uma surpresa para as partes. NUNES, Rizzato. Curso de Direito <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r. 2. ed. São Paulo: Saraiva.2007, p. 743.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 21-40, jul.-set. 2011 31


egra da inversão <strong>do</strong> ônus da prova só pode ser aplicada nesse momento,pois, como já afirma<strong>do</strong>, é nesse instante que o julga<strong>do</strong>r apreciará asprovas para decidir, e verificará a presença, ou não, <strong>do</strong>s requisitos <strong>do</strong> art.6º, VIII, <strong>do</strong> Código de Defesa <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r, que, uma vez presentes,imporão a inversão.É apenas nesse momento que o julga<strong>do</strong>r verificará se existem ounão provas suficientes para julgar a questão posta pelas partes. Caso seconsidere como uma regra de procedimento, o juiz deverá examinar asprovas antes da fase de instrução, o que, na prática, muitas vezes se mostrainviável, como, por exemplo, no caso <strong>do</strong>s Juiza<strong>do</strong>s Especiais, em que ojuiz só tem contato com o processo no momento da audiência de instruçãoe julgamento, em que, ao final, deverá prolatar a sentença.Não há que se falar, nesse caso, em surpresa das partes, uma vezque, assim como a regra prevista no Código de Processo <strong>Civil</strong>, a regra dainversão está prevista em lei, ten<strong>do</strong> as partes ciência da possibilidade desua aplicação.Deverá, então, o fornece<strong>do</strong>r de produtos e serviços, parte maisforte da relação, e ciente dessa possibilidade, produzir todas as provasnecessárias a corroborar as suas alegações, desconstituin<strong>do</strong> aquelas expostaspelo consumi<strong>do</strong>r em sua inicial.Por isso, crê-se ser a inversão <strong>do</strong> ônus da prova uma regra de julgamento,e não de procedimento, com o que também pactua o mestreKazuo Watanabe:“Quanto ao momento da aplicação da regra de inversão <strong>do</strong>ônus da prova, mantemos o mesmo entendimento sustenta<strong>do</strong>em edições anteriores: é o <strong>do</strong> julgamento da causa. Éque as regras de distribuição <strong>do</strong> ônus da prova são regras dejuízo, e orientam o juiz, quan<strong>do</strong> há um non liquet em matériade fato, a respeito da solução a ser dada à causa. Constituem,por igual, uma indicação às partes quanto à sua atividadeprobatória. Com o juízo de verossimilhança, decorrente daaplicação das regras de experiência, deixa de existir o nonliquet (considera-se demonstra<strong>do</strong> o fato afirma<strong>do</strong> pelo consumi<strong>do</strong>r)e, consequentemente, motivo algum há para a aplicaçãode qualquer regra de distribuição <strong>do</strong> ônus da prova 8 ”.8 WATANEBE, Kazuo. Código brasileiro de defesa <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r: comenta<strong>do</strong> pelos autores <strong>do</strong> anteprojeto. AdaPellegrini Grinover... [et al.] 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2001, p. 735.32R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 21-40, jul.-set. 2011


Questão que envolve grande polêmica é sobre a obrigatoriedade,ou não, da aplicação dessa regra especial.Têm-se sustenta<strong>do</strong> que, por ser a regra da inversão <strong>do</strong> ônus da provaope iudicis, ou seja, opera-se pela vontade <strong>do</strong> juiz, sua aplicação decorreriade critérios de conveniência e oportunidade. São adeptos desseentendimento os especialistas em Direito <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r, a professoraCláudia Lima Marques 9 e o Desembarga<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Tribunal de Justiça <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><strong>do</strong> Rio de Janeiro, o professor José Carlos Mal<strong>do</strong>na<strong>do</strong> de Carvalho.Argumenta o cita<strong>do</strong> magistra<strong>do</strong> que, por ser a regra destinada àformação da convicção <strong>do</strong> julga<strong>do</strong>r, só pode ela ocorrer por ato próprio<strong>do</strong> juiz, que verificará a necessidade de sua aplicação segun<strong>do</strong> regras ordináriasde experiência 10 .Todavia, não obstante o profícuo argumento, não parece ser esse omelhor entendimento. A regra da inversão <strong>do</strong> ônus da prova insculpida noart. 6º, VIII, <strong>do</strong> diploma consumerista, não obstante ser ope iudicis, é deaplicação obrigatória.A inversão <strong>do</strong> ônus da prova é regra de Direito Processual, pois dizrespeito ao ônus da produção da prova no âmbito <strong>do</strong> processo, apesar deestar inserida no rol <strong>do</strong>s direitos básicos <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r.A norma de processo deve ser lida pelo ponto de vista <strong>do</strong> juiz, poisvisa a regular a sua atividade, que é uma atividade estatal. Por isso, o DireitoProcessual é ramo <strong>do</strong> Direito Público. Assim sen<strong>do</strong>, se o Esta<strong>do</strong>, noprocesso, é representa<strong>do</strong> pelo juiz, as normas de Direito Processual visama regular a atividade <strong>do</strong> julga<strong>do</strong>r.Por ser ramo <strong>do</strong> Direito Público volta<strong>do</strong> à regulação da atividadeestatal, o Direito Processual prevê normas de atuação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Dúvidasnão há de que o Esta<strong>do</strong> é a parte mais forte em qualquer relação, seja elade direito material ou processual, uma vez que o Esta<strong>do</strong> é soberano, eto<strong>do</strong>s a ele devem se subordinar.Para evitar abusos, ao Esta<strong>do</strong> só é permiti<strong>do</strong> fazer o que a leiexpressamente autoriza. Não há espaços para a discricionariedade. Issonada mais é <strong>do</strong> que a aplicação <strong>do</strong> princípio da estrita legalidade, ou seja,9 Sustenta a emérita professora que é faculta<strong>do</strong> ao juiz inverter o ônus da prova, inclusive nas hipóteses em que aprodução da prova for difícil para o fornece<strong>do</strong>r. BENJAMIN, Antônio Herman V., BESSA, Leonar<strong>do</strong> Roscoe, e MAR-QUES, Claudia Lima. Manual de Direito <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r. São Paulo: Revista <strong>do</strong>s Tribunais. 2007, p. 62.10 CARVALHO, José Carlos Mal<strong>do</strong>na<strong>do</strong>. Direito <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r. Fundamentos <strong>do</strong>utrinários e visão jurisprudencial.2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2007, p. 48.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 21-40, jul.-set. 2011 33


o Esta<strong>do</strong> só pode agir quan<strong>do</strong> a lei o permite, e só pode fazer o que a leio autoriza.Por isso, em regra, as omissões legais nos ramos de Direito Públicoconsistem em proibições, uma vez que, se não há autorização legal expressapara a prática de determina<strong>do</strong> ato, o Esta<strong>do</strong> não pode praticá-lo,em observância à estrita legalidade.Assim, como esclarece o professor Rizzato Nunes, “no processocivil, como é sabi<strong>do</strong>, o juiz não age com discricionariedade (que é medidade conveniência e oportunidade da decisão). Age sempre dentro da legalidade,fundan<strong>do</strong> sua decisão em bases objetivas 11 ”.Por essa razão, não é dada ao juiz a liberdade de escolher entrea aplicação, ou não, da regra da inversão <strong>do</strong> ônus da prova. Caberá aojulga<strong>do</strong>r, tão somente, verificar se estão presentes, ou não, os requisitoslegais. E uma vez presentes, imperiosa é a inversão <strong>do</strong> onus probandi.Conclui, assim, o já cita<strong>do</strong> mestre Rizzato Nunes, sustentan<strong>do</strong> que“deverá o magistra<strong>do</strong> determinar a inversão. E esta se dará pela decisãoentre duas alternativas: verossimilhança das alegações ou hipossuficiência.Presente uma das duas, está o magistra<strong>do</strong> obriga<strong>do</strong> a inverter o ônusda prova 12 ”.Vê-se, então, que cabe ao magistra<strong>do</strong> determinar a inversão, ouseja, ela não decorre diretamente da lei. Daí porque essa inversão é opeiudicis, e não ope legis. No entanto, a atuação <strong>do</strong> juiz se limita à verificaçãoda presença <strong>do</strong>s requisitos legais para determinar a inversão. Aomagistra<strong>do</strong> não cabe escolha. Presentes os requisitos da lei, determinaráele a inversão.Há que se analisar, ainda, se os requisitos <strong>do</strong> artigo 6º, VIII, <strong>do</strong> Códigode Proteção e Defesa <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r são cumulativos ou alternativos,isto é, se é preciso que se ateste, cumulativamente, a hipossuficiência <strong>do</strong>consumi<strong>do</strong>r e a verossimilhança das suas alegações para que ocorra ainversão, ou se basta a aferição da presença de um <strong>do</strong>s requisitos paraque se aplique a regra especial.Antes, deve-se examinar o que significa cada um desses requisitos.A verossimilhança das alegações, segun<strong>do</strong> a singela e brilhantelição <strong>do</strong> sau<strong>do</strong>so ministro <strong>do</strong> Supremo Tribunal Federal, Carlos AlbertoMenezes Direito, é uma prova de primeira aparência, “decorrente das re-11 NUNES. op. cit. p. 738.12 ibdem. p. 739.34R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 21-40, jul.-set. 2011


gras de experiência comum, que permita um juízo de probabilidade como,por exemplo, a repetição de determina<strong>do</strong> evento em relação a um certoproduto 13 ”.Portanto, para a aferição da verossimilhança, deverá o magistra<strong>do</strong>verificar se, segun<strong>do</strong> as regras de experiência comum, a partir, por exemplo,<strong>do</strong>s acontecimentos <strong>do</strong> dia a dia, seria provável, ou até possível, que aquelesfatos narra<strong>do</strong>s pelo consumi<strong>do</strong>r possam realmente ter aconteci<strong>do</strong>.Quanto à hipossuficiência <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r, pode ela ser aferida sobo aspecto econômico e técnico.No primeiro caso, o consumi<strong>do</strong>r não tem meios econômicos de produzira prova capaz de demonstrar a existência de seu direito. Sua hipossuficiênciaé financeira.Já no segun<strong>do</strong> caso, o consumi<strong>do</strong>r não tem o conhecimento técnicocapaz de lhe permitir a produção da prova. É o ocorre, por exemplo, emuma ação ajuizada por um consumi<strong>do</strong>r que adquiriu um automóvel deuma grande monta<strong>do</strong>ra e viu determinada peça de seu veículo, mesmoultrapassa<strong>do</strong> o prazo da garantia, se deteriorar antes <strong>do</strong> tempo de suavida útil.Nesse caso, o consumi<strong>do</strong>r não detém o conhecimento <strong>do</strong> projeto,das técnicas e <strong>do</strong> processo utiliza<strong>do</strong> para a fabricação <strong>do</strong> veículo, bemcomo daquela determinada peça. Apenas o fornece<strong>do</strong>r tem meios de produziressa prova, haja vista que detém o <strong>do</strong>mínio dessas questões.Assim, sua hipossuficiência é técnica, pois não tem conhecimentotécnico para entender o que efetivamente ocorreu no caso, não sen<strong>do</strong>possível, pois, produzir a prova.É imperioso ressaltar que basta a presença de um desses aspectos– financeiro ou técnico – para que se caracterize a hipossuficiência, que,no caso, é processual, pois o consumi<strong>do</strong>r não tem condições, financeirasou técnicas, de produzir aquela prova no processo.Portanto, o consumi<strong>do</strong>r apenas não será hipossuficiente se, conjuntamente,não se verificar a deficiência econômica e financeira.Deve-se ressaltar que há opinião no senti<strong>do</strong> de que a verdadeirainversão <strong>do</strong> ônus da prova só poderá ocorrer nessa segunda situação, dahipossuficiência <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r, uma vez que, na hipótese da verossimi-13 DIREITO, Carlos Alberto Menezes; CAVALIERI FILHO, Sergio. Comentários ao Novo Código <strong>Civil</strong>. Arts. 927 a 965.v. XIII. Rio de Janeiro: Forense. 2007, p. 23-24.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 21-40, jul.-set. 2011 35


lhança das alegações, a situação é distinta, como leciona o já cita<strong>do</strong> mestreKazuo Watanabe:“é que o magistra<strong>do</strong>, com a ajuda das máximas experiênciase das regras de vida, considera produzida a prova que incumbea uma das partes. Examinan<strong>do</strong> as condições de fato, combase em máximas de experiência, o magistra<strong>do</strong> parte <strong>do</strong> cursonormal <strong>do</strong>s acontecimentos, e, porque o fato é ordinariamentea consequência ou o pressuposto de um outro fato,em caso de existência deste, admite também aquele comoexistente, a menos que a outra parte demonstre o contrário.Assim, não se trata de uma autêntica hipótese de inversão <strong>do</strong>ônus da prova 14 ”.Após o exame <strong>do</strong>s requisitos, há que se adentrar, efetivamente, nadiscussão se eles devem ser aferi<strong>do</strong>s cumulativamente ou alternativamentepara a determinação judicial da inversão <strong>do</strong> ônus da prova.Como se pôde perceber da lição anteriormente transcrita <strong>do</strong> professorRizzato Nunes, entende ele que os requisitos são alternativos, ouseja, basta que se constate a hipossufiência <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r, ou a verossimilhançade suas alegações, para que o juiz aplique a regra da inversão <strong>do</strong>ônus da prova.Assim também pactua Cláudia Lima Marques, que, em seus escritos,sustenta que a partícula “ou” constante no artigo 6º, VIII, <strong>do</strong> Códigode Proteção e Defesa <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r 15 não deixa dúvidas de que “a favor<strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r, pode o juiz inverter o ônus da prova quan<strong>do</strong> apenas umadas duas hipóteses está presente no caso 16 ”.Mais uma vez ousa-se discordar de tão convincente argumento. Nãoparece lógico que o juiz possa inverter o ônus da prova apenas com a presençade um <strong>do</strong>s requisitos, sob pena de ocorrer situações esdrúxulas.Basta imaginar a hipótese em que o juiz constate a hipossuficiência<strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r diante da situação concreta apresentada na ação, todavia,os argumentos lança<strong>do</strong>s na inicial são inverossímeis. Poderá o juiz determinara inversão? Crê-se que não, pois haveria enorme contrassenso em14 WATANEBE, Kazuo. op. cit. p. 733-734.15 Lei nº 8.078/90, art. 6º. São direitos básicos <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r: [...] VIII – a facilitação da defesa de seus direitos,inclusive com a inversão <strong>do</strong> ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quan<strong>do</strong>, a critério <strong>do</strong> juiz, for verossímil aalegação ou quan<strong>do</strong> for ele hipossuficiente, segun<strong>do</strong> as regras ordinárias de experiência.16 MARQUES. op cit. p. 62.36R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 21-40, jul.-set. 2011


conferir ao consumi<strong>do</strong>r, provável litigante de má-fé no caso concreto, abenesse prevista no Código de Proteção e Defesa <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r.Estar-se-ia tutelan<strong>do</strong> uma eventual fraude. A regra da inversão <strong>do</strong>ônus da prova visa a trazer um equilíbrio processual à relação, e não conceder,sem qualquer limite e aferição das circunstâncias, um benefício aoconsumi<strong>do</strong>r, trazen<strong>do</strong> um novo desequilíbrio ao processo, agora em favorda parte que antes era hipossuficiente, e agora passa a ter super poderes.A situação contrária também seria inadmissível. Imagine-se que oconsumi<strong>do</strong>r narre em sua petição inicial fatos verossímeis; no entanto, nãoé ele hipossuficiente. Ora, haveria flagrante violação ao princípio constitucionalda isonomia, isso porque, não obstante serem verossímeis asalegações, o consumi<strong>do</strong>r teria condições de produzir a prova.Nesse caso, em que o consumi<strong>do</strong>r não é hipossuficiente, ter-se-iamduas partes em condições idênticas, não sen<strong>do</strong> possível, então, deferir auma delas a benesse da inversão <strong>do</strong> onus probandi, por acarretar flagrantedesequilíbrio na relação processual.Assim, nessas hipóteses, não poderá o julga<strong>do</strong>r determinar a inversão<strong>do</strong> ônus da prova, o que comprova que os requisitos legais não sãoalternativos, e sim cumulativos.Ressalte-se que a inversão <strong>do</strong> ônus da prova não é uma garantia devitória <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r na ação proposta. Isto é, a lei não prevê a inversãopara que o consumi<strong>do</strong>r logre êxito em sua pretensão. Pretende a lei facilitara comprovação <strong>do</strong>s fatos constitutivos <strong>do</strong> direito alega<strong>do</strong> pela partemais fraca, que, na maioria das vezes, não tem o conhecimento técnico eo acesso aos meios para a produção de determinada prova.Em muita das vezes pode ocorrer a inversão <strong>do</strong> ônus e, mesmoassim, o fornece<strong>do</strong>r ter sucesso em produzir a prova necessária à desconstituição<strong>do</strong> direito alega<strong>do</strong> pelo consumi<strong>do</strong>r.Todavia, a determinação equivocada da inversão acaba por imputarinjustamente um ônus, acarretan<strong>do</strong> um prejuízo ao fornece<strong>do</strong>r, que teráque buscar a prova <strong>do</strong> fato que desconstrua as alegações autorais, mesmoque inverossímeis, ou diante de um consumi<strong>do</strong>r não hipossuficiente,prova essa que pode até ser impossível de ser produzida pelo fornece<strong>do</strong>r,ante uma narrativa autoral eventualmente descabida.Conclui-se, pois, que a regra da inversão <strong>do</strong> ônus da prova é umabenesse concedida ao consumi<strong>do</strong>r, mas àquele que efetivamente nãoR. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 21-40, jul.-set. 2011 37


tenha condições de produzi-la, e que esteja em juízo para defender, legitimamente,um direito que acredita ter.Por derradeiro, há que se verificar as demais hipóteses legais deinversão, previstas nos artigos 12, § 3º, 14, § 3º e 38 <strong>do</strong> Código de Proteçãoe Defesa <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r.Tais hipóteses correspondem à inversão ope legis <strong>do</strong> ônus da prova,ou seja, decorrem diretamente da lei independentemente de decisão <strong>do</strong>julga<strong>do</strong>r.A lei prevê que em certos casos, como no de responsabilidade <strong>do</strong>sfornece<strong>do</strong>res por danos causa<strong>do</strong>s aos consumi<strong>do</strong>res por defeito nos produtose serviços, ou por vício de informação ou publicidade, caberá aofornece<strong>do</strong>r produzir a prova, e não o consumi<strong>do</strong>r, que já ingressará na lideciente de que não detém esse ônus.Segun<strong>do</strong> dispõe o art. 12, § 3º <strong>do</strong> diploma consumerista, o fabricante,o construtor, o produtor ou importa<strong>do</strong>r só não serão responsabiliza<strong>do</strong>spelo fato <strong>do</strong> produto, ou seja, pelos danos causa<strong>do</strong>s ao consumi<strong>do</strong>r pelodefeito <strong>do</strong> produto, se provarem que: não colocaram o produto no merca<strong>do</strong>;que, embora coloca<strong>do</strong> o produto no merca<strong>do</strong>, o defeito inexiste; ouque a culpa é exclusiva <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r ou de terceiro.Então, caberá a esses fornece<strong>do</strong>res, arrola<strong>do</strong>s no dispositivo, provaralgum desses fatos, para que se eximam da sua responsabilidade. Trata-sede prova de excludentes de responsabilidade, as quais são enumeradastaxativamente, ou seja, os fornece<strong>do</strong>res só se eximirão de responderpelos danos causa<strong>do</strong>s pelo produto se provarem alguma dessas causas.Não se admitirá, portanto, a excludente da responsabilidade por nenhumaoutra causa.A hipótese <strong>do</strong> art. 14, § 3º <strong>do</strong> diploma consumerista também é deprova de excludente da responsabilidade. Ocorre que, nesse dispositivo,a responsabilidade é por fato <strong>do</strong> serviço, ou seja, por danos causa<strong>do</strong>s aoconsumi<strong>do</strong>r por defeito na prestação de um serviço.Aqui, exime-se o fornece<strong>do</strong>r <strong>do</strong> serviço de sua responsabilidade apenasse provar duas causas excludentes: que, ten<strong>do</strong> presta<strong>do</strong> o serviço, odefeito inexiste; que a culpa seja exclusiva <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r ou de terceiro.Em relação a essas causas excludentes, cabe uma observação, apesarde não ser esse propriamente o objeto de estu<strong>do</strong>: o Código de Proteçãoe Defesa <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r não admite a exclusão de responsabilidade <strong>do</strong>fornece<strong>do</strong>r, ou a mitigação da responsabilidade, por culpa concorrente.38R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 21-40, jul.-set. 2011


Como afirma<strong>do</strong>, as causas de exclusão são numerus clausus, istoé, taxativas, e o Código não prevê a concorrência de causas. Infere-se,pois, que, haven<strong>do</strong> concorrência de causas, o fornece<strong>do</strong>r responderá integralmente,em razão da vulnerabilidade <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r. Se para o danoconcorreu o fornece<strong>do</strong>r, não poderá o consumi<strong>do</strong>r, vulnerável, ter a suareparação minorada.Por fim, tem-se a hipótese <strong>do</strong> art. 38 <strong>do</strong> diploma consumerista, queprevê que o ônus da prova da veracidade e correção da informação, oucomunicação publicitária, cabe a quem patrocina.Isso significa que o responsável pela divulgação da informação, ouque fez a publicidade <strong>do</strong> produto ou serviço tem o ônus da prova da veracidadee correção dessa informação ou publicidade.Então, o fornece<strong>do</strong>r <strong>do</strong> produto ou serviço que tem a informaçãoou publicidade divulgada tem o encargo processual de provar que são verídicase corretas essas informações, bem como deverá manter em seupoder, para fins de prova, toda publicidade e informação divulgada sobreaquele produto ou serviço.Caso o produto ou serviço não atenda a essa publicidade, deverádemonstrar o fornece<strong>do</strong>r que esse não atendimento já estava previsto nainformação, ou que a publicidade não informava aquilo que alega o consumi<strong>do</strong>r,caso contrário, responderá por eventuais danos causa<strong>do</strong>s pelapropaganda abusiva ou enganosa.Há que se frisar, novamente, que nesses três casos a inversão <strong>do</strong>onus probandi decorre <strong>do</strong> próprio direito material e de determinação expressada lei – inversão ope legis –, bastan<strong>do</strong> que esteja em discussão, noprocesso, fato <strong>do</strong> produto ou serviço, bem como vício de informação oupublicidade. Sen<strong>do</strong> o objeto da ação uma dessas hipóteses, imperativaserá a aplicação da regra de inversão <strong>do</strong> onus probandi, independentementede qualquer apreciação pelo julga<strong>do</strong>r de quaisquer pressupostosou requisitos.5. ConclusãoO que se evidencia é que a regra da inversão <strong>do</strong> ônus da prova é degrande relevância nas lides travadas entre consumi<strong>do</strong>res e fornece<strong>do</strong>res,sen<strong>do</strong> um importante instrumento de proteção <strong>do</strong>s primeiros, ten<strong>do</strong> emvista a sua hipossuficiência que, se inexistisse a benesse processual, inviabilizariao próprio exercício <strong>do</strong> direito de ação.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 21-40, jul.-set. 2011 39


Então, a inversão <strong>do</strong> ônus da prova também é um instrumento deacesso à jurisdição, não sen<strong>do</strong> apenas legítima, como também tem amparoconstitucional.Ocorre que tal benefício não é assegura<strong>do</strong> a to<strong>do</strong>s os consumi<strong>do</strong>resindistintamente. Prevê a lei, nos casos em que a inversão ocorrepor decisão <strong>do</strong> julga<strong>do</strong>r, o cumprimento de requisitos que devem serobserva<strong>do</strong>s cumulativamente: a verossimilhança das alegações e a hipossuficiência<strong>do</strong> indivíduo.Preenchi<strong>do</strong>s os pressupostos legais, o consumi<strong>do</strong>r fará jus à inversão<strong>do</strong> ônus probatório.Há, ainda, hipóteses em que a lei já determina a inversão, independentementede decisão judicial ou de cumprimento de requisitos.A lei, nesse caso, já presume a hipossuficiência <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r, razãopela qual está ele dispensa<strong>do</strong> de produzir a prova <strong>do</strong>s fatos narra<strong>do</strong>s.São essas, pois, as considerações sobre o tema.40R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 21-40, jul.-set. 2011


A Compensação porDano Moral em TutelaAntecipada no Regimede <strong>Responsabilidade</strong><strong>Civil</strong> <strong>Objetiva</strong>Vitor GuglinskiAdvoga<strong>do</strong> em Minas Gerais. Pós-gradua<strong>do</strong> com especializaçãoem Direito <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r.Por mais que convivamos diariamente com a morte, sabe<strong>do</strong>res deque esse fato jurídico é o marco final de nossa existência, conscientes deque o dia derradeiro chegará, invariavelmente, para to<strong>do</strong>s, tal fenômenosempre nos choca; a alguns em maior grau, sen<strong>do</strong> que outros, <strong>do</strong>ta<strong>do</strong>sde certa <strong>do</strong>se de resignação, ceticismo etc., são atingi<strong>do</strong>s com diferidaintensidade.Quantos não ficam abala<strong>do</strong>s pela morte de um ente queri<strong>do</strong>, de umamigo, ou até mesmo de uma pessoa estranha, até mesmo quan<strong>do</strong> o fimseja espera<strong>do</strong>?Inúmeras conjecturas são levantadas, de mo<strong>do</strong> a justificar e buscarconforto diante da cessação da existência humana, especialmente emrelação àquelas pessoas que nos são caras. Talvez isso se justifique emrazão <strong>do</strong>s valores que o ser humano agrega à própria existência e à daquelesque o cercam, sen<strong>do</strong> justamente esses valores que são deixa<strong>do</strong>s porquem parte, como maior herança àqueles que permanecem vivos.Com estas breves considerações, indaga-se: se a morte de uma pessoa,de forma natural, e em alguns casos até mesmo esperada, já é capazde nos causar enorme abalo, diante da vin<strong>do</strong>ura e permanente privação<strong>do</strong> convívio e <strong>do</strong> compartilhamento <strong>do</strong>s valores que aquela pessoa agregouà nossa existência, o que se dirá em relação àquelas mortes súbitas eviolentas, consequentes de acidentes aéreos, de trânsito, àquelas cau-R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 41-54, jul.-set. 2011 41


sadas pela violência urbana, para as quais o Poder Público contribui diáriae acintosamente através de suas omissões ou ações canhestras?Este é o tema que preten<strong>do</strong> discutir neste singelo ensaio, a partirda análise de casos concretos, trazen<strong>do</strong> ao leitor uma construção jurídicaenvolven<strong>do</strong> a viabilidade de provimento jurisdicional, via antecipação<strong>do</strong>s efeitos da tutela, em razão <strong>do</strong> incontestável dano experimenta<strong>do</strong> poraqueles cujos entes que lhe são mais caros foram mortos em razão dasatividades desenvolvidas por aqueles sujeitos de direito público ou priva<strong>do</strong>,à luz <strong>do</strong> regime de responsabilidade civil ao qual estes sujeitos sesubmetem, por força <strong>do</strong> nosso ordenamento jurídico.Em síntese, é dizer que, valen<strong>do</strong>-se das interpretações sistemáticae teleológica tanto <strong>do</strong> direito material quanto <strong>do</strong> processual, existe a possibilidadeplena da fixação de um valor mínimo determina<strong>do</strong>, em decisãoantecipatória <strong>do</strong>s efeitos da tutela, proferida pelo órgão jurisdicional quevier a apreciar eventual ação envolven<strong>do</strong> pedi<strong>do</strong> de indenização por morte,ajuizada em razão de ato ilícito decorrente da violação, seja pelo Esta<strong>do</strong>ou por particulares, <strong>do</strong>s deveres jurídicos afetos ao desenvolvimento dasrespectivas atividades.Contu<strong>do</strong>, antes de adentrar nas questões processuais envolven<strong>do</strong> oassunto, cumpre traçar ligeiras linhas sobre a responsabilidade civil, a fim deque se possa visualizar, sem dificuldades, a viabilidade da antecipação <strong>do</strong>sefeitos da tutela jurisdicional, dentro da proposta deste artigo, lembran<strong>do</strong>que os casos concretos que serão forneci<strong>do</strong>s são apenas ilustrativos, comobjetivo de facilitar a intelecção <strong>do</strong> leitor sobre o tema proposto.Discorren<strong>do</strong> sobre a responsabilidade civil, Cavalieri Filho (1998,p. 19-20) nos fornece sua noção:“A violação de um dever jurídico configura o ilícito, que quasesempre acarreta dano a outrem, geran<strong>do</strong> um novo deverjurídico, qual seja, o de reparar o dano. Há, assim, um deverjurídico originário, chama<strong>do</strong> por alguns de primário, cuja violaçãogera um dever jurídico sucessivo, também chama<strong>do</strong> desecundário, que é o de indenizar o prejuízo”.No ordenamento jurídico brasileiro, a regra da responsabilidadecivil é no senti<strong>do</strong> de que o dever de indenizar deve ser avalia<strong>do</strong> à luz daverificação de culpa <strong>do</strong> agente causa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> dano. Isto é, devem estar42R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 41-54, jul.-set. 2011


presentes to<strong>do</strong>s os pressupostos da responsabilização civil, a saber: conduta(ação ou omissão), nexo causal (relação entre a conduta <strong>do</strong> agentee o resulta<strong>do</strong> danoso) e, finalmente, o dano em si, como resulta<strong>do</strong> naturalístico.Significa dizer, consoante a regra geral, que a alguém só seráimputada responsabilidade desde que fique comprova<strong>do</strong> que o dano foiresulta<strong>do</strong> de conduta <strong>do</strong>losa ou culposa, que aquela conduta teve relaçãodireta com o resulta<strong>do</strong>, e que este consistiu na ofensa a bem jurídicode titularidade da vítima, seja de ordem patrimonial ou extrapatrimonial,sen<strong>do</strong> que, in casu, nos interessa averiguar o dano de natureza moral,desencadea<strong>do</strong> pela morte de um ente queri<strong>do</strong>.Na sociedade de massa, contu<strong>do</strong>, marcada pela velocidade dainformação, pelo consumo eleva<strong>do</strong> e desenfrea<strong>do</strong>, pela violência urbanaetc., a responsabilidade civil, tradicionalmente fundada na culpa, nãomais atendia aos anseios sociais, uma vez que em diversas situações oônus de provar a culpa <strong>do</strong> causa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> dano era tarefa dificílima; em algunscasos, até mesmo impossível, imputada a quem pretendia obtera respectiva indenização, e sen<strong>do</strong> assim, quem fazia jus à reparação oucompensação, a depender <strong>do</strong> dano experimenta<strong>do</strong>, acabava suportan<strong>do</strong>o prejuízo, ten<strong>do</strong> em vista o absolutismo da regra processual no senti<strong>do</strong>de que quem alega o fato deve prová-lo.Com vistas nessa dificuldade probatória, a legislação pátria, a nívelconstitucional, agasalhou a responsabilidade civil objetiva, isto é, aquelaem que a vítima, para obter a respectiva indenização, basta provar apenasa conduta <strong>do</strong> agente (comissiva ou omissiva), o dano experimenta<strong>do</strong> e onexo causal.No corpo da CF 88, a responsabilidade objetiva tem seus traçosdelinea<strong>do</strong>s no art. 37, § 6º, da Carta Fundamental e, a nível infraconstitucional,no Código <strong>Civil</strong> (Lei nº 10.406/02) e, principalmente, no Código deDefesa <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r (Lei nº 8.078/90).Eis a regra <strong>do</strong> art. 37, § 6º, da Constituição Federal:Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer<strong>do</strong>s Poderes da União, <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s, <strong>do</strong> Distrito Federal e <strong>do</strong>sMunicípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade,moralidade, publicidade e eficiência e, também, aoseguinte:(omissis)R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 41-54, jul.-set. 2011 43


§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direitopriva<strong>do</strong> presta<strong>do</strong>ras de serviços públicos responderão pelosdanos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros,assegura<strong>do</strong> o direito de regresso contra o responsávelnos casos de <strong>do</strong>lo ou culpa.Com vistas na regra acima, passemos, então, a um fato ocorri<strong>do</strong> nacidade <strong>do</strong> Rio de Janeiro, no dia 07/07/2008: a morte trágica de um meninochama<strong>do</strong> João Roberto Amorim Soares, de apenas 3 anos de idade,que foi alveja<strong>do</strong> por policiais militares durante uma perseguição a bandi<strong>do</strong>s,ten<strong>do</strong> os agentes policiais confundi<strong>do</strong> o carro onde a criança se encontravacom o <strong>do</strong>s criminosos persegui<strong>do</strong>s. Tal exemplo possibilitará aoleitor visualizar a questão da responsabilidade civil objetiva <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>.O episódio em questão, infelizmente, foi apenas mais um que engor<strong>do</strong>uas lamentáveis estatísticas que revelam a calamitosa situação <strong>do</strong>sistema de segurança pública <strong>do</strong> Rio de Janeiro. Assistimos diariamentenos telejornais à incompetência das polícias militares, especialmente apolícia fluminense, sen<strong>do</strong> que, mais trágica ainda é a insegurança vividapela população, que inegavelmente não pode confiar na instituição criadapara lhe servir e garantir a segurança.Em reportagem exibida no Jornal Nacional <strong>do</strong> dia 08/07/2008, ogoverna<strong>do</strong>r Sérgio Cabral, em reunião na Sede da Secretaria de SegurançaPública daquele esta<strong>do</strong>, chamou de desastrosa a atuação <strong>do</strong>s policiaisenvolvi<strong>do</strong>s no episódio, dizen<strong>do</strong>: “Eu não consegui <strong>do</strong>rmir esta noite coma imagem <strong>do</strong> pai em desespero na minha cabeça. Como governa<strong>do</strong>r, euavalio a ação policial como um erro fatal e incompleta capacidade de discernimentono momento de tensão”. Disse ainda que os policiais militaresenvolvi<strong>do</strong>s no ocorri<strong>do</strong> seriam expulsos da corporação, asseveran<strong>do</strong>: “Nãotem conversa. Tem que expulsar. São <strong>do</strong>is assassinos”. Com suas palavras,então, creio ser possível dizer, seguramente, que o governa<strong>do</strong>r assumiuexpressamente a culpa <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> pelo lamentável episódio.Destarte, embora a responsabilidade civil, in casu, deva ser objetivamenteapurada, houve, como reforço, a assunção expressa de culpapelo ocorri<strong>do</strong>, através <strong>do</strong> chefe <strong>do</strong> Poder Executivo daquele esta<strong>do</strong> da federação.Ultrapassa<strong>do</strong> o exemplo de responsabilidade civil <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, passoagora a fornecer exemplos de acontecimentos que expressam a respon-44R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 41-54, jul.-set. 2011


sabilidade civil objetiva de transporta<strong>do</strong>res de passageiros, envolven<strong>do</strong>os <strong>do</strong>is maiores acidentes aéreos da história da aviação brasileira, quaissejam, aqueles ocorri<strong>do</strong>s com os voos 1907, da Gol, no dia 26/09/2006,e com o voo 3054, da TAM, no dia 17/07/2007, tragédias que, se desencadearamenorme comoção e abalo mundiais, como costumeiramenteocorre com os acidentes aéreos, o que se dirá em relação aos familiaresdas respectivas vítimas.Os acidentes em tela, exaustivamente noticia<strong>do</strong>s em diversas mídias,acabaram por ceifar, juntos, 353 vidas humanas. Apenas a títuloilustrativo, para que se possa vislumbrar a dimensão <strong>do</strong> dano que se pretendedemonstrar, o jornal Folha de São Paulo, em sua versão eletrônicana internet (www.folha.uol.com.br) veiculou, no dia 08/10/2006, notíciaintitulada “Tragédia da gol deixa ao menos cem órfãos”. Em suma, talmatéria dava conta das consequências psíquicas pelas quais passavam, àépoca, e provavelmente hão de passar, os filhos que perderam seus paisem virtude da queda <strong>do</strong> avião, muitos <strong>do</strong>s quais, em vista da pouca idadepara compreender o ocorri<strong>do</strong>, não obstante a própria <strong>do</strong>r, agravam a <strong>do</strong>r<strong>do</strong>s familiares com quem convivem diariamente, ao indagarem sobre osmotivos da ausência de seus pais.Discorren<strong>do</strong> sobre a morte, Cahali (1998, p. 111) pondera:“Seria até mesmo afrontoso aos mais sublimes sentimentoshumanos negar-se que a morte de um ente queri<strong>do</strong>, familiarou companheiro, desencadeia naturalmente uma sensação<strong>do</strong>lorosa de fácil e objetiva percepção.Por ser de senso comum , a verdade desta assertiva dispensademonstração: a morte antecipada em razão <strong>do</strong> ato ilícitode um ser humano de nossas relações afetiva, mesmo nascituro,causa-nos um profun<strong>do</strong> sentimento de <strong>do</strong>r, de pesar,de frustração, de ausência, de saudade, de desestímulo, deirresignação.São sentimentos justos e perfeitamente identificáveis damesma forma que certos danos simplesmente patrimoniais,e que se revelam com maior ou menor intensidade, mas queexistem.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 41-54, jul.-set. 2011 45


No estágio atual de nosso direito, com a consagração definitiva,até constitucional, <strong>do</strong> princípio da reparabilidade <strong>do</strong>dano moral, não mais se questiona que esses sentimentosferi<strong>do</strong>s pela <strong>do</strong>r moral comportam ser indeniza<strong>do</strong>s; não setrata de ressarcir o prejuízo material representa<strong>do</strong> pela perdade um familiar economicamente proveitoso, mas de reparara <strong>do</strong>r com bens de natureza distinta, de caráter compensatórioe que, de alguma forma, servem como lenitivo”.Passemos, agora, à análise <strong>do</strong> que dispõe o sistema protetivo estatuí<strong>do</strong>pelo Código de Defesa <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r.No campo da responsabilidade civil, o CDC veio a consagrar a responsabilidadeobjetiva <strong>do</strong>s fornece<strong>do</strong>res de produtos e serviços, significan<strong>do</strong>que responderão, independentemente da existência de culpa, pelosdanos causa<strong>do</strong>s aos consumi<strong>do</strong>res, bastan<strong>do</strong> a estes a comprovação<strong>do</strong> dano e <strong>do</strong> nexo causal, sen<strong>do</strong> que, em relação aos acidentes aéreosem comento, tais pressupostos gera<strong>do</strong>res <strong>do</strong> dever de indenizar já foramdelinea<strong>do</strong>s.Para tanto, tomamos como objeto de análise o art. 14 <strong>do</strong> CDC, oqual trata da responsabilidade <strong>do</strong>s presta<strong>do</strong>res de serviços pelo fato <strong>do</strong>serviço, sen<strong>do</strong> que as empresas aéreas se enquadram como tal nas regrascontidas no dispositivo em comento.Prescreve o caput <strong>do</strong> art. 14 <strong>do</strong> C.D.C.:Art. 14 – O fornece<strong>do</strong>r de serviços responde, independentementeda existência de culpa, pela reparação <strong>do</strong>s danoscausa<strong>do</strong>s aos consumi<strong>do</strong>res por defeitos relativos à prestação<strong>do</strong>s serviços, bem como por informações insuficientes ouinadequadas sobre sua fruição e riscos.Posto isto, creio seja possível chegar a uma conclusão primária, juridicamentelógica e incontroversa: a perda da vida de um ser humano,indubitavelmente acarreta, imediata e irremediavelmente, danos aos respectivosfamiliares, sen<strong>do</strong> que destaco como objeto deste estu<strong>do</strong> o denatureza moral.Para que o leitor disponha de condições a vislumbrar de maneiramais clara a dimensão <strong>do</strong>s danos decorrentes <strong>do</strong>s exemplos forneci<strong>do</strong>slinhas acima, envolven<strong>do</strong> a responsabilidade por ato ilícito <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e46R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 41-54, jul.-set. 2011


das empresas aéreas referenciadas, a própria veiculação das notíciasenvolven<strong>do</strong> os acontecimentos com o menino João Roberto AmorimSoares e os voos 1907 e 3054, permite a qualquer ser humano médioperceber o desespero <strong>do</strong>s familiares das respectivas vítimas. A morte deentes queri<strong>do</strong>s, das maneiras violentas como ocorreram, é algo que indubitavelmentetraz consequências psíquicas que vão além daquelas verificadasem casos de morte natural. No momento em que as famílias deixamde conviver com seus membros, deixam de agregar valores à sua existência,além de enfraquecer a unidade familiar.Nem é preciso dizer, no caso <strong>do</strong> menino João Roberto, que, moralmente,e como medida da mais ampla e legítima justiça, caberia aoEsta<strong>do</strong>, diante da culpa expressamente assumida pelo respectivo chefe <strong>do</strong>Poder Executivo, oferecer, no mínimo voluntariamente, uma indenizaçãoà família da vítima.Mesmo argumento se aplica às empresas aéreas mencionadas, bemcomo a qualquer outro fornece<strong>do</strong>r de produtos e serviços cuja atividadeeventualmente venha a causar a morte de um consumi<strong>do</strong>r, ten<strong>do</strong> em vistaque aqueles sabem que sua responsabilidade civil é objetiva. Entretanto,tal discussão se torna estéril em um país onde um instituto de contornosmorais e éticos como a boa-fé teve de ser positiva<strong>do</strong>.Passamos, então, a discorrer sobre as questões processuais envolven<strong>do</strong>o tema, bem como sobre a postura <strong>do</strong> Judiciário diante da situaçãofática ao apreciar um eventual pedi<strong>do</strong> de tutela antecipada para a compensação<strong>do</strong>s danos de natureza moral, nos casos em que haja previsãode responsabilidade objetiva.O Código de Processo <strong>Civil</strong> brasileiro regra a tutela antecipada noart. 273, e demais disposições subsequentes, e consigna ser lícito ao juiz, arequerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente os efeitos da tutelapretendida no pedi<strong>do</strong> inicial. Isto, desde que exista prova inequívoca, seconvença da verossimilhança da alegação, bem como haja funda<strong>do</strong> receiode dano irreparável ou de difícil reparação e fique caracteriza<strong>do</strong> o abuso dedireito de defesa ou o manifesto propósito protelatório <strong>do</strong> réu.De pronto, com vistas nos exemplos forneci<strong>do</strong>s, é possível notarque a existência de prova inequívoca a permitir tal provimento está pintadaem cores vivas, expressa nas mortes <strong>do</strong> garoto João Roberto e dasvítimas <strong>do</strong>s acidentes aéreos em comento, como fatos notórios que são,na medida em que foram exaustivamente noticia<strong>do</strong>s por to<strong>do</strong> o tipo deR. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 41-54, jul.-set. 2011 47


mídia, <strong>do</strong>cumenta<strong>do</strong>s pelos entes públicos competentes etc. Além disso,em relação a eventuais vítimas fatais de acidentes de trânsito, ferroviários,enfim, causa<strong>do</strong>s por fornece<strong>do</strong>res de serviços de transporte de passageiros,sujeitos ao regime de responsabilidade <strong>do</strong> CDC, até mesmo dispensariaas partes autoras de eventuais ações de reparação civil, de sua prova, ateor <strong>do</strong> que dispõe o art. 334, inciso I, <strong>do</strong> diploma processual civil.Em relação ao Esta<strong>do</strong>, como é de curial saber, a injustificada demorano provimento jurisdicional final fundamentaria a decisão sumária, se forleva<strong>do</strong> em conta que o julgamento ao final importaria mais alguns anos<strong>do</strong>s familiares da vítima na fila <strong>do</strong>s famigera<strong>do</strong>s precatórios.No que toca ao abuso de direito de defesa ou ao manifesto caráterprotelatório <strong>do</strong> réu, basta reportarmo-nos à supremacia da qual goza aAdministração Pública em relação aos particulares. Na seara processual,por exemplo, vale-se de prerrogativas processuais com prazos diferencia<strong>do</strong>spara contestar e recorrer, evidencian<strong>do</strong>, assim, a possibilidade daa<strong>do</strong>ção, pelo réu, das condutas descritas no inciso II <strong>do</strong> art. 273 <strong>do</strong> CPC,visto que nossa sistemática processual prevê um número excessivo de recursosaté que o processo chegue ao fim e haja a efetiva entrega da tutelajurisdicional.Por sua vez, em relação ao transporta<strong>do</strong>r, a injustificada demorano provimento jurisdicional final fundamentaria a decisão antecipa<strong>do</strong>rada tutela, se for leva<strong>do</strong> em conta que a perda de um chefe de família, porexemplo, importa, entre outros, e via de consequência, a perda da basede subsistência familiar, geran<strong>do</strong>, no mínimo, sequelas de caráter alimentício,entre outras de ín<strong>do</strong>le psíquica, obviamente.Quanto ao abuso de direito de defesa ou o manifesto caráter protelatório<strong>do</strong> réu, lembre-se <strong>do</strong> acidente ocorri<strong>do</strong> com um Boeing da Varigem 1989, o qual até hoje aguarda solução definitiva na justiça, depois depassa<strong>do</strong>s mais de 20 anos.Nada obstante, impende registrar que estamos diante de relaçõesregidas pela responsabilidade civil objetiva, assim acolhida pelos ordenamentosconstitucional e consumerista, justamente para se evitar possíveisabusos <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e de pessoas jurídicas de direito priva<strong>do</strong> sujeitasao regime <strong>do</strong> Código <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r, em relação aos direitos e garantiasexpressos na Constituição Federal. Isto faz com que toda e qualquer consideração,neste particular, seja objeto de análise à luz das disposições daCarta Maior e <strong>do</strong> CDC, justifican<strong>do</strong>, assim, o tratamento jurídico diferen-48R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 41-54, jul.-set. 2011


cia<strong>do</strong> que confere às vítimas, pelo menos em tese, condições materiaise processuais a litigar contra aqueles que se encontram em situação desuperioridade, lembran<strong>do</strong>, ainda, que, no que se refere ao consumi<strong>do</strong>r,este é, por definição, a parte vulnerável na relação de consumo, conformeassenta<strong>do</strong> em 1985, pela ONU, em sua 106ª Sessão Plenária, através daResolução nº 39/248.Dentro da sistemática abraçada pela CF 88, como dito, a responsabilidadecivil recebeu tratamento diverso <strong>do</strong> que lhe é tradicionalmenteatribuí<strong>do</strong>, pois veio a consagrar a responsabilidade objetiva <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>,fundada no risco administrativo, e traduzida no dever jurídico sucessivo(responsabilidade) de reparar os danos advin<strong>do</strong>s <strong>do</strong> descumprimento deum dever jurídico originário (obrigação), independentemente de culpa,sen<strong>do</strong> que o dever jurídico originário, aqui, está expresso na garantia dasegurança pública ao cidadão. Uma vez viola<strong>do</strong> tal dever jurídico, comoaconteceu no caso sob exame, ficou demonstra<strong>do</strong> o inadimplemento <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> em relação à prestação que lhe é juridicamente imputada, nascen<strong>do</strong>,assim, um dever jurídico secundário, que é a responsabilidade pelareparação <strong>do</strong> dano.O fornece<strong>do</strong>r de produtos e serviços, de seu turno, dentro <strong>do</strong> regime<strong>do</strong> CDC sujeita-se à responsabilidade objetiva fundada no risco <strong>do</strong> empreendimento.Posto isto, é possível verificar que, em ambas as hipóteses, osofensores têm sua responsabilidade fundada nos riscos das respectivasatividades.O interesse maior é então a garantia da concretização das medidasprotetivas <strong>do</strong> cidadão. Assim, transporta-se a discussão acerca da culpapara um plano secundário, em homenagem à eficácia que deve revestir oprovimento jurisdicional pleitea<strong>do</strong>.O evento morte, à luz <strong>do</strong>s fundamentos alinha<strong>do</strong>s, por si só, destaco,já é capaz de autorizar a concessão <strong>do</strong>s efeitos antecipatórios da tutela,para determinar, incontinenti, o pagamento de indenização a quem dedireito, em razão de o magistra<strong>do</strong>, através da cognição sumária, já saberser a mesma devida. É, portanto, prova forte e imodificável! É a fixação,de pronto, de um valor mínimo, devi<strong>do</strong> pela simples causa da morte deum ser humano.No que tange ao perigo de irreversibilidade <strong>do</strong> provimento, podemosafirmar com segurança que tal inexiste, pois o direito, em casos comoR. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 41-54, jul.-set. 2011 49


os forneci<strong>do</strong>s, estaria cabalmente demonstra<strong>do</strong>. Com a morte das vítimas,o dano moral automaticamente se consumou, ou seja, já fez nascernos parentes das vítimas o direito à correspondente compensação, já quea morte não é passível de reparação, isto é, não existe possibilidade deretorno ao status quo ante, registre-se.Nesse especial cabe registrar a sempre magistral lição de Fux (1996,p. 31): “Sob o ângulo civil, o direito evidente é aquele que se projeta noâmbito <strong>do</strong> sujeito de direito que postula. Sob o prisma processual, éevidente o direito cuja prova <strong>do</strong>s fatos sobre os quais incide revela-osincontestáveis ou ao menos impassíveis de contestação séria.”No mesmo senti<strong>do</strong>, Neves (2010, p. 1094):“(...) a prova produzida como apta a garantir a tutela antecipadatambém poderá ser apta a garantir à parte a vitóriadefinitiva na demanda, tu<strong>do</strong> a depender da necessidade deaprofundamento da cognição probatória desenvolvida pelojuiz. Significa dizer que determinadas provas são tão robustasacerca da alegação de fato que, ainda que existam outrasprovas produzidas, ela por si só, já é suficiente para a decisãofavorável definitiva. O que se pretende afirmar é que a provainequívoca exigida para para a concessão da tutela antecipadanão deve ser robusta e completa a ponto de permitir,em qualquer hipótese, um julgamento definitivo favorável aoautor, mas é plenamente possível que, em determinadas situações,seja exatamente isso que ocorra, tamanha a carga deconvencimento apresentada no caso concreto pelo beneficia<strong>do</strong>pela tutela antecipada.”Como já aponta<strong>do</strong> precedentemente, a morte das vítimas é fato, e,segun<strong>do</strong> a dicção <strong>do</strong> brocar<strong>do</strong> jurídico, “contra fatos não há argumentos.”Seria, no mínimo, em observação à construção feita pelo eminente Ministro,insensato não se considerarem tais fatos incontestáveis ou impassíveisde contestação séria!Provável discussão poder-se-ia levantar em relação à individuação<strong>do</strong> quantum a indenizar, ten<strong>do</strong> em vista que o juiz, no exercício de seumister, tem de considerar uma série de aspectos objetivos e subjetivospara a fixação <strong>do</strong> respectivo valor. Porém, em se tratan<strong>do</strong> <strong>do</strong> dano moralsob exame, não há, nesse particular, que se cogitar tal hipótese se consi-50R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 41-54, jul.-set. 2011


derarmos, pura e simplesmente, o fato de os causa<strong>do</strong>res <strong>do</strong> dano teremocasiona<strong>do</strong> a morte das vítimas nos exemplos examina<strong>do</strong>s. O direito àreparação se faz presente em face <strong>do</strong> evento morte, o que lhe reveste deliquidez e certeza, pelo que o magistra<strong>do</strong>, diante dessa característica, e afim de resguardar o direito da parte, poderá fixar um mínimo a ser indeniza<strong>do</strong>,já que o dano sumariamente observa<strong>do</strong> é o denomina<strong>do</strong>r comumque vai orientar a atividade <strong>do</strong> juiz, sen<strong>do</strong> que outros fatos, em especial,que porventura vierem a importar o aumento <strong>do</strong> quantum indenizatóriopoderão, sem prejuízo, ser objeto de apreciação no decorrer da instruçãoprocessual, em harmonia com o contraditório e o devi<strong>do</strong> processo legal.Outra consideração que se faz imperiosa, e ainda toca na questãoda irreversibilidade da decisão, diz respeito aos direitos constitucionalmenteenvolvi<strong>do</strong>s no litígio. Se por um la<strong>do</strong> a antecipação <strong>do</strong>s efeitos datutela pode importar prejuízo econômico irreversível em relação ao réucaso, remota e futuramente, fique prova<strong>do</strong> que a indenização não era devidanos moldes em que foi fixada, la<strong>do</strong> outro a sua não concessão importaprejuízos irreversíveis atinentes aos direitos à honra subjetiva, à intimidade,à vida privada. Tais direitos estão visceralmente liga<strong>do</strong>s à dignidadeda pessoa humana, sen<strong>do</strong> que estes se revelam prementes em virtude <strong>do</strong>dano presente, e são hierarquicamente superiores àqueles de interesseestatal, nos termos da Carta Fundamental.Não é demais recordarmos que o juiz deve sempre orientar seudesígnio no senti<strong>do</strong> de que a lei existe para servir à sociedade, e não ocontrário, sob pena de se privilegiar a disposição literal <strong>do</strong> texto legal emdetrimento <strong>do</strong> seu real espírito.Novamente me socorro no magistério de Fux (Op. Cit) ao citar Reale,assinalan<strong>do</strong> que “a tutela de evidência é regra in proceden<strong>do</strong> para oaplica<strong>do</strong>r <strong>do</strong> direito que não está tão atrela<strong>do</strong> assim à ‘lógica formal’ masantes à percepção <strong>do</strong>s fatores lógicos, axiológicos e éticos que antecedemessa operação de aplicação jurisdicional <strong>do</strong> direito”. Soma<strong>do</strong> a isto, comosempre faço questão de repetir em meus textos, há que se atentar para aregra contida no art. 5º da LINDB (Lei de Introdução às Normas <strong>do</strong> DireitoBrasileiro), o qual orienta o julga<strong>do</strong>r a observar os fins sociais a que a leise dirige, e o regramento a ser observa<strong>do</strong> nos fatos trazi<strong>do</strong>s à baila é oconti<strong>do</strong> na Constituição Federal, que garante o direito à reparação pelosdanos de natureza moral, nos termos <strong>do</strong> art. 5º, inciso X.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 41-54, jul.-set. 2011 51


Sen<strong>do</strong> assim, o direito reclama uma tutela plenamente capaz desatisfazer os anseios <strong>do</strong> corpo social quan<strong>do</strong> da ocorrência de fatos comoestes que examinamos, em que vidas são diariamente perdidas, em razãoda incompetência daqueles que agem canhestramente, seja em nome <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong>, seja na prática empresarial. Nada justifica a extremada cautela <strong>do</strong>magistra<strong>do</strong> a evitar possíveis danos de natureza econômica atinentes àpessoa <strong>do</strong> réu no processo quan<strong>do</strong> o direito da parte ex adversa se revelacristalino, líqui<strong>do</strong> e certo.Após estas colocações, surge outro problema a ser analisa<strong>do</strong>: quemdeve ser indeniza<strong>do</strong> em casos como os narra<strong>do</strong>s?A indagação é pertinente porquanto o interesse de agir, conformeCahali, citan<strong>do</strong> Luiz Felipe Haddad, limitar-se-á aos pais em relação aosfilhos, e vice-versa, ten<strong>do</strong> em vista que o sofrimento, in casu, é perfeitamentepresumível, embora o festeja<strong>do</strong> autor pondere no senti<strong>do</strong> de quetal presunção é juris tantum, na medida em que muitos pais e filhos sequerconvivem diariamente ou possuem afinidades. Porém, tal presunçãodeverá ser elidida por prova em senti<strong>do</strong> contrário, permanecen<strong>do</strong>, assim,a tese no senti<strong>do</strong> da viabilidade <strong>do</strong> provimento sumário, como coloca<strong>do</strong>.Não é dizer, entretanto, que terceiros estranhos à relação entre paise filhos não possuam legitimidade para demandar o causa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> danoem juízo, sen<strong>do</strong> que, no caso de dano advin<strong>do</strong> de acidente de consumo,o art. 17 <strong>do</strong> Código <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r equipara a consumi<strong>do</strong>res todas asvítimas <strong>do</strong> evento, isto é, aqueles que não possuem relação contratualcom o fornece<strong>do</strong>r de produtos ou serviços, porém sofrem os reflexos <strong>do</strong>fato danoso.Contu<strong>do</strong>, penso que a averiguação da lesividade perpetrada, nocaso de pedi<strong>do</strong> feito por quem não integre a relação pais/filhos, reclamariainstrução probatória, a fim de se verificar o grau de afinidade da vítimacom os parentes que se encontram fora daquela relação.O STJ recentemente enfrentou a questão ao apreciar o REsp1.101.213-RJ, da relatoria <strong>do</strong> Min. Castro Meira, julga<strong>do</strong> em 02/04/2009.No caso, os avós pleiteavam indenização pela morte da neta, ocorridanas dependências da escola municipal onde estudava. O insigne Ministrodestacou em seu voto:“É inegável o abalo emocional sofri<strong>do</strong> por parentes da vítimaem razão da morte tão prematura, absolutamente evitável52R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 41-54, jul.-set. 2011


e em local em que se espera proteção, dedicação e cuida<strong>do</strong>dispensa<strong>do</strong>s a crianças de tão pouca idade. O sofrimentopela morte de parente é dissemina<strong>do</strong> pelo núcleo familiar,como em força centrífuga, atingin<strong>do</strong> cada um <strong>do</strong>s membrosem gradações diversas, o que deve ser leva<strong>do</strong> em conta pelomagistra<strong>do</strong> para fins de arbitramento <strong>do</strong> valor da reparação<strong>do</strong> dano moral. Assim, os avós são legitima<strong>do</strong>s à propositurade ação de reparação por dano moral proveniente da morteda neta. A reparação, nesses casos, decorre de dano individuale particularmente sofri<strong>do</strong> pelos membros da família liga<strong>do</strong>simediatamente ao fato (art. 403 <strong>do</strong> CC/2002). Assim,consideran<strong>do</strong>-se as circunstâncias <strong>do</strong> caso concreto e a finalidadeda reparação, a condenação ao pagamento de danosmorais no valor de R$ 114.000,00 para cada um <strong>do</strong>s pais,corresponden<strong>do</strong> à época a 300 salários mínimos, e de R$80.000,00 para cada um <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is avós não é exorbitante nemdesproporcional à ofensa sofrida pelos recorri<strong>do</strong>s pela perdada filha e neta menor em tais circunstâncias” (Informativo deJurisprudência <strong>do</strong> Superior Tribunal de Justiça nº 0389)Como é possível perceber, o eminente relator, ao julgar, considerouas circunstâncias <strong>do</strong> caso concreto para a condenação <strong>do</strong> município.E não poderia agir diferente, na medida em que, pelo menos a priori, aavaliação <strong>do</strong> sofrimento de parentes que não sejam os pais dependerá,salvo melhor juízo, de análise de prova colhida no decorrer a instruçãoprocessual.Destarte, penso seja tranquilo visualizar que a lesão experimentadapelos filhos em relação aos pais, e vice-versa, é de fácil e sumária averiguaçãoem sede de tutela antecipada, quan<strong>do</strong> estamos diante de ação emque se pede indenização por dano moral decorrente de morte.Concluin<strong>do</strong>, fica demonstra<strong>do</strong>, assim, o direito de pais e filhos devítimas de ato ilícito <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e de transporta<strong>do</strong>res de passageiros emhaver a respectiva indenização pelos danos morais experimenta<strong>do</strong>s, deforma sumária, diante <strong>do</strong> prejuízo inconteste, ocasiona<strong>do</strong> pela morte deuma pessoa, sen<strong>do</strong> até mesmo dever <strong>do</strong> magistra<strong>do</strong> conceder a antecipação<strong>do</strong>s efeitos da tutela pretendida, uma vez verificada a presença <strong>do</strong>spressupostos próprios.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 41-54, jul.-set. 2011 53


É direito da parte, anote-se, revesti<strong>do</strong> de legitimidade em razão deestarmos diante de fatos cujas consequências são submetidas ao regimeda responsabilidade civil objetiva, sen<strong>do</strong> que os direitos e garantias fundamentaisforam consagra<strong>do</strong>s pelo ordenamento constitucional comoforma de garantir efetiva proteção aos respectivos titulares <strong>do</strong> direito decompensação, que fazem jus, pois, à indenização devida, diante da possibilidadede cognição sumária <strong>do</strong> juiz em relação à prova inequívoca <strong>do</strong>dano sofri<strong>do</strong>.54R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 41-54, jul.-set. 2011


A Incompetência <strong>do</strong>sÓrgãos de Defesa <strong>do</strong>Consumi<strong>do</strong>r para Multaras Companhias deTransporte AéreoMárcio Vinícius Costa PereiraAdvoga<strong>do</strong> no Rio de JaneiroCom a criação das agências regula<strong>do</strong>ras brasileiras, originadas noesteio de uma reforma estrutural da Administração Pública, inspiradas emmodelo de forte influência norte-americada, surgiu a controvérsia a respeitode quem teria competência para analisar os eventuais problemasenvolven<strong>do</strong> os direitos <strong>do</strong>s usuários, em decorrência da prestação <strong>do</strong>sserviços da concessionária de serviço público.Não obstante o pouco tempo para comentar o assunto, no caso emtela, será demonstra<strong>do</strong> que os órgãos de defesa <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r não têmcompetência para multar as concessionárias de serviço público de transporteaéreo com relação às questões regulamentadas pela agência regula<strong>do</strong>racompetente.Os órgãos de defesa <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r calcam sua competêncianormativa, de controle e fiscalização, com base no art. 55 e seguintes <strong>do</strong>Código de Defesa <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r.O parágrafo 1º <strong>do</strong> referi<strong>do</strong> diploma legal determina que a União,os Esta<strong>do</strong>s e os Municípios fiscalizarão e controlarão a produção, industrialização,distribuição, a publicidade de produtos e serviços e o merca<strong>do</strong>de consumo, no interesse da preservação da vida, da saúde, da segurança,da informação e <strong>do</strong> bem-estar <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r, baixan<strong>do</strong> as normas que sefizerem necessárias.O § 3º, também <strong>do</strong> aludi<strong>do</strong> dispositivo legal, manifesta-se no senti<strong>do</strong>de que os órgãos federais, estaduais, <strong>do</strong> Distrito Federal e municipaisR. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 55-65, jul.-set. 2011 55


com atribuições para fiscalizar e controlar o merca<strong>do</strong> de consumo manterãocomissões permanentes para elaboração, revisão e atualização dasnormas referidas no § 1º, sen<strong>do</strong> obrigatória participação <strong>do</strong>s consumi<strong>do</strong>rese fornece<strong>do</strong>res.Por sua vez, o § 4º, <strong>do</strong> mesmo dispositivo, dispõe que os órgãosoficiais poderão expedir notificações aos fornece<strong>do</strong>res para que, sob penade desobediência, prestem informações sobre questões de interesse <strong>do</strong>consumi<strong>do</strong>r.Como se vê, de imediato, constata-se que os órgãos de defesa <strong>do</strong>consumi<strong>do</strong>r não podem se socorrer <strong>do</strong>s menciona<strong>do</strong>s dispositivos, comrelação a questões já regulamentadas pela agência regula<strong>do</strong>ra responsávelpor fiscalizar a concessionária de serviço público, pois haverá conflitode interesses.Para que se tenha certeza dessa assertiva, basta se observar que,mesmo tratan<strong>do</strong>-se de relação de consumi<strong>do</strong>r/usuário, não há como seadmitir que os eventuais pontos sejam regulamenta<strong>do</strong>s pela agênciaregula<strong>do</strong>ra e, mais tarde, fiscaliza<strong>do</strong>s por outro órgão sem capacitaçãotécnica.Sem sombra de dúvidas, foge à razoabilidade imaginar que a concessionáriade serviço público pratique um ato no exercício regular <strong>do</strong> direitoe em consonância com o princípio da legalidade, seguin<strong>do</strong> as orientaçõesde determinada resolução, para, mais tarde, correr o risco de sofre algumtipo de penalidade administrativa, caso o órgão de defesa <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>rentenda que houve violação ao CDC.Verifiquem-se os ensinamentos de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DEMELLO, em seu CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO, editora Malheiros,26ª edição, página 172:“Da<strong>do</strong> o princípio constitucional da legalidade, e conseqüentevedação a que atos inferiores inovem inicialmente na ordemjurídica (v. Capítulo II, ns. 7 a 10), resulta claro que as determinaçõesnormativas advindas de tais entidades hão de secifrar a aspectos de providências subalternas, conforme semenciona no CapítuloVI, ns. 35-38, ao tratar <strong>do</strong>s regulamentos.Afora isto, nos casos em que suas disposições se voltempara concecssionários ou permissionários de serviço público,é calro que podem, ugualmente, expedir as normas e determinaçõesde alçada <strong>do</strong> poder concedente (cf. capítulo XII,56R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 55-65, jul.-set. 2011


n. 40-44) ou para quem esteja incluso no âmbito <strong>do</strong>mésticoda Administração. Em suma: cabe-lhes expedir normas quese encontrem abrangidas pelo campo da chamada “supremaciaespecial”.Antes de tomar posse no Supremo Tribunal Federal, o Ministro LUIZFUX, ao atuar como relator no Recurso Especial nº 806.304-RS, foi taxativocom relação à competência das agências regula<strong>do</strong>ras. Confira-se trechoda ementa que será reproduzida abaixo:“O judiciário sob pena de criar embaraços que podem comprometera qualidade <strong>do</strong>s serviços e, até mesmo, inviabilizara sua prestação, não deve intervir para alterar as regras fixadaspelos órgãos competentes, salvo em controle de constitucionalidade.Precedente STJ: AgRg na MC 10915/RN.O ato normativo expedi<strong>do</strong> por Agência Regula<strong>do</strong>ra, criadacom a finalidade de ajustar, disciplinar e promover o funcionamento<strong>do</strong>s serviços públicos, objeto de concessão, permissãoe autorização, asseguran<strong>do</strong> um funcionamento em condiçõesde excelência tanto para fornece<strong>do</strong>r/produtor comoprincipalmente para consumi<strong>do</strong>r/usuário, posto urgente nãoautoriza que os estabelecimentos regula<strong>do</strong>s sofram danos epunições pelo cumprimento das regras maiores às quais sesubsumem, mercê <strong>do</strong> exercício regular <strong>do</strong> direito, sen<strong>do</strong> certo,ainda, que a ausência de nulificação específica <strong>do</strong> ato daAgência afasta a intervenção <strong>do</strong> Poder Judiciário no segmento,sob pena de invasão na seara administrativa e violaçãoprima facie <strong>do</strong>s deveres <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r”.A verdade é que a regulação das atividades exercida pelas agênciasregula<strong>do</strong>ras mediante normas secundárias, como, por exemplo, resoluções,são impositivas para as entidades atuantes no setor regula<strong>do</strong>.Sob outro aspecto, preceitua o caput <strong>do</strong> art. 8º da Lei 11.182/2005que cabe à ANAC a<strong>do</strong>tar as medidas necessárias para o atendimento<strong>do</strong> interesse público e para o desenvolvimento e fomento da aviaçãocivil, da infra-estrutura aeronáutica e aeroportuária <strong>do</strong> País, atuan<strong>do</strong>com independência, legalidade, impessoalidade e publicidade, competin<strong>do</strong>-lhe:R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 55-65, jul.-set. 2011 57


“XXXV – reprimir infrações à legislação, inclusive quanto aosdireitos <strong>do</strong>s usuários, e aplicar as sanções cabíveis”.De acor<strong>do</strong> com o art. 11º da Lei Federal 9.784/99, que regula o processoAdministrativo Federal, a competência é irrenunciável e se exercepelos órgãos administrativos a que foi atribuída como própria, salvo oscasos de delegação e avocação legalmente admiti<strong>do</strong>s.Preceituam os incisos I e II <strong>do</strong> art. 29, da Lei 8.987/95 que incumbe aopoder concedente regulamentar o serviço concedi<strong>do</strong>, fiscalizar permanentementea sua prestação e aplicar as penalidades regulamentarese contratuais.Como se vê, por se tratar de um sistema jurídico específico e devidamenteregulamenta<strong>do</strong>, como é o caso <strong>do</strong> transporte aéreo, a defesa<strong>do</strong> usuário de serviço público não é atribuição <strong>do</strong>s órgãos de defesa <strong>do</strong>consumi<strong>do</strong>r (Procons), e sim, da respectiva agência regula<strong>do</strong>ra.Para que não pairem dúvidas no senti<strong>do</strong> de que não há competênciaconcorrente <strong>do</strong>s órgãos de defesa <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r para as questõesregulamentadas pela ANAC, convém registrar que, no ano de 2006, a Fundaçãode Proteção e Defesa <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r – Procon/SP, uma das maisrespeitadas <strong>do</strong> país, ingressou, perante o Juízo da 6ª Vara Federal de SãoPaulo, com ação civil pública contra a União Federal, ANAC e demais companhiasaéreas, objetivan<strong>do</strong> que as questões concernentes aos atrasos devoos e consequente assistência material, bem como direito à informação<strong>do</strong>s usuários <strong>do</strong> serviço público fosse regulamentada.Mais tarde, obedecen<strong>do</strong> determinação <strong>do</strong> referi<strong>do</strong> Juízo, em 09 demarço de 2010, a Agência Nacional de Aviação <strong>Civil</strong> criou a ResoluçãoNº 141 que “dispõe sobre as Condições Gerais de Transporte aplicáveisaos atrasos e cancelamentos de vôos e às hipóteses de preterição depassageiros e dá outras providências”.Além de regulamentar vários pontos concernentes ao transporteaéreo e direito <strong>do</strong> usuário, como, por exemplo, atraso de voo, direito ainformação, auxílio-alimentação, etc., a referida resolução foi taxativa aodizer, no art. 19, que o descumprimento configura infração às condiçõesgerais de transporte, nos termos da alínea “u”, <strong>do</strong> inciso III, <strong>do</strong> art. 302 <strong>do</strong>Código Brasileiro de Aeronáutica.Com efeito, ao analisar a questão em foco, não pode ser esqueci<strong>do</strong> oprincípio da pre<strong>do</strong>minância <strong>do</strong> interesse, segun<strong>do</strong> o qual à União caberão58R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 55-65, jul.-set. 2011


aquelas matérias e questões de pre<strong>do</strong>minante interesse geral, nacional,ao passo que aos Esta<strong>do</strong>s tocarão as matérias e assuntos de pre<strong>do</strong>minanteinteresse local, diga-se estadual ou municipal.Esse é mais um importante ponto que nos traz a noção da impossibilidadede competência concorrente <strong>do</strong>s órgãos de defesa <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>rpara apreciar questões concernentes ao transporte aéreo e quesão aplicadas em to<strong>do</strong> o território nacional. Além <strong>do</strong>s problemas de ordemtécnica, haveria também enorme conflito na fiscalização e aplicaçãode eventuais multas, na medida em que seria inevitável o conflitode meto<strong>do</strong>logias.O que daí se depreende é que os órgãos de defesa <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>rnão têm competência para aplicar multas concernentes ao serviço detransporte aéreo, sen<strong>do</strong> que tal fato torna-se ainda mais irrefragável coma atitude da Fundação Procon de São Paulo em ingressar com ação contraa ANAC, objetivan<strong>do</strong> que as providências necessárias garantam os direitos<strong>do</strong>s usuários de serviço público.Vale aqui uma indagação: Por qual motivo a fundação Procon/SPnão se socorreu <strong>do</strong> Código de Defesa <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r para resolver eventuaisproblemas decorrentes da condições gerais <strong>do</strong> transporte aéreo emvez de ingressar com ação civil pública objetivan<strong>do</strong> que as questões fossemregulamentadas?Ademais, não há razão lógica, nem muito menos jurídica, para o órgãode defesa <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r fiscalizar e aplicar multas às concessionáriasde serviço público de transporte aéreo, na medida em que há legislaçãoespecífica e devidamente regulamentada para tratar <strong>do</strong>s interesses <strong>do</strong>usuário <strong>do</strong> serviço público, mesmo que esse usuário seja considera<strong>do</strong> ochama<strong>do</strong> “usuário/consumi<strong>do</strong>r”.Como se sabe, a lei especial prevalece sobre a lei geral, dan<strong>do</strong>-sepreferência às disposições relacionadas mais direta e especialmente aoassunto de que se trata.Mesmo que tenha como pano de fun<strong>do</strong> alguns pontos que tambémpodem ser encaixa<strong>do</strong>s no Código de Defesa <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r, a realidadeé que as questões decorrentes <strong>do</strong> complexo sistema de transporte aéreodevem ser apreciadas por pessoas com qualificação técnica, sob pena dea agência regula<strong>do</strong>ra perder a sua própria finalidade.Lembre-se de que o raciocínio em tela está adstrito ao campoadministrativo, caben<strong>do</strong>, se for o caso, ao usuário/consumi<strong>do</strong>r buscarR. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 55-65, jul.-set. 2011 59


seus eventuais direitos no âmbito judicial, como ocorre, por exemplo, noscasos de extravio de bagagem, atraso de voo, etc. O que não é admissívelé o órgão de defesa <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r se camuflar de agência regula<strong>do</strong>rapara fiscalizar e aplicar sanções à companhia de serviço público de transporteaéreo.A aplicação <strong>do</strong> Código de Defesa <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r à atividade regulatória<strong>do</strong>s serviços públicos é conclusão que necessariamente emerge daobservância <strong>do</strong> princípio da legalidade que informa a atividade <strong>do</strong>s órgãosadministrativos competentes para realizá-la. O CDC estabelece em seuart. 22: “Os órgãos públicos, por si ou por suas empresas, concessionárias,permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, sãoobriga<strong>do</strong>s a fornecer serviços adequa<strong>do</strong>s, eficientes, seguros e, quantoaos essenciais, contínuos”.A Lei que regula a concessão <strong>do</strong> serviço público, em seu art. 30,parágrafo único, é clara ao dizer que a fiscalização <strong>do</strong> serviço será feitapor intermédio de órgão técnico <strong>do</strong> poder concedente ou com entidadepor ele conveniada, e, periodicamente, conforme previsto em normaregulamentar, por comissão composta de representantes <strong>do</strong> poder concedente,da concessionária e <strong>do</strong>s usuários.Está nítida, portanto, a preocupação <strong>do</strong> legisla<strong>do</strong>r em ordenar queas concessionárias de serviço público sejam fiscalizadas por pessoas comqualificação técnica e não, por curiosos.Lembre-se de que os artigos <strong>do</strong> Código de Defesa <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r são,na maioria das vezes, bastante genéricos, quan<strong>do</strong> mencionam questões comodeficiência na prestação <strong>do</strong> serviço, informação inadequada, atraso etc.Não podemos admitir que o mesmo funcionário <strong>do</strong> órgão de defesa<strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r que fiscalizou a padaria, supermerca<strong>do</strong> ou qualquerloja, tenha capacidade técnica para fiscalizar e aplicar multas a uma concessionáriade serviço público que desempenha o complexo serviço detransporte aéreo.O que seria direito de informação na relação obrigacional privadapara a venda de produto ou serviço, não seria o mesmo direito de informaçãopara a hipótese de transporte aéreo. Há uma série de peculiaridadestécnicas que devem ser avaliadas, como, por exemplo, qual informaçãodeveria ser prestada, de que forma essa informação seria prestada e serealmente tal informação chegou às mãos da companhia aérea.60R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 55-65, jul.-set. 2011


Para corroborar o que foi dito, convém transcrever a lição de ALE-XANDRE SANTOS DE ARAGÃO, em sua obra DIREITO DOS SERVIÇOS PÚ-BLICOS, editora Forense, páginas 519/520:“O direito positivo brasileiro a<strong>do</strong>tou, a nosso ver acertadamente,uma posição mista em relação à categorização jurídica<strong>do</strong> usuário de serviço público.Não há dúvidas, com efeito, quanto à aplicabilidade <strong>do</strong> Códigode Defesa <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r – CDC, aos serviços públicosem razão de dispositivos expressos nesse senti<strong>do</strong>: por umla<strong>do</strong>, o art. 7°, caput, da Lei de Concessões e Permissões deServiços Públicos – Lei 8.987/95 – faz remissão genérica àaplicação <strong>do</strong> CDC aos usuários de serviços públicos; por outrola<strong>do</strong>, o CDC os contempla expressamente nos arts. 4°,inciso II (referência à melhoria <strong>do</strong>s serviços públicos comoprincípio da Política Nacional das Relações de Consumo); 6º,X (prestação adequada <strong>do</strong>s serviços públicos como direito<strong>do</strong>s consumi<strong>do</strong>res); e 22 (obrigação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e de seus delegatáriospela prestação de serviços adequa<strong>do</strong>s).O STJ vem expressamente identifican<strong>do</strong> as relações das quaisparticipam usuários de serviços públicos específicos e remunera<strong>do</strong>scomo relações de consumo. Já há decisões nessesenti<strong>do</strong> em relação aos usuários pagantes de pedágio pelamanutenção de ro<strong>do</strong>vias (Resp. nº 467.883), aos usuários deserviços de distribuição <strong>do</strong>miciliar de água potável (Respn° 263.229) e de correios (Resp n° 527.137), entre outros.Todavia, o CDC não pode ser aplica<strong>do</strong> indiscriminadamenteaos serviços públicos, já que eles não são atividades econômicascomuns, sujeitas à liberdade de empresa e desconectadasda preocupação de manutenção de um sistemaprestacional coletivo.Os serviços públicos, ao revés, constituem atividades deprestação de bens e serviços muitas vezes titularizadas peloEsta<strong>do</strong> com exclusividade, só poden<strong>do</strong> ser presta<strong>do</strong>s porparticulares enquanto delegatários (res extra commercium).A razão para tais atividades econômicas serem retiradas daR. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 55-65, jul.-set. 2011 61


livre iniciativa e submetidas a um regime jurídico tão especialse explica pelo fato de visarem a assegurar os interesses<strong>do</strong>s cidadãos enquanto integrantes de uma mesma sociedade,não como pessoas individualmente consideradas”.Na mesma linha de raciocínio, manifesta-se MARÇAL JUSTEN FILHO,em sua TEORIA GERAL DAS CONCESSÕES DE SERVIÇO PÚBLICO, editoraDIALÉTICA, página 560:“Isso significa reconhecer a preponderância <strong>do</strong> regime deDireito Administrativo sobre o Direito <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r. A disciplina<strong>do</strong> Direito <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r apenas se aplicará na omissão<strong>do</strong> Direito Administrativo e na medida em que não hajaincompatibilidade com os princípios fundamentais nortea<strong>do</strong>res<strong>do</strong> serviço público. Em termos práticos, essa soluçãopode gerar algumas dificuldades. O que é certo é a impossibilidadede aplicação pura e simples, de mo<strong>do</strong> automático,<strong>do</strong> Código de Defesa <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r no âmbito <strong>do</strong>s serviçospúblicos”.Observe-se, ainda, a opinião de JOSÉ DOS SANTOS CARVALHOFILHO, em seu MANUAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO, 21ª edição, páginas454/455:“Agências Regula<strong>do</strong>ras. A qualificação legal expressa voltou àtona mais recentemente quan<strong>do</strong> da instituição das autarquiasde controle ou, se preferir, das agências regula<strong>do</strong>ras.....A competência decisória da agência abrange tanto os conflitossurgi<strong>do</strong>s no âmbito de concessionários, permissionáriosou outras sociedades empresariais entre si (todas evidentementesob seu controle), como também aqueles decorrentesda relação entre tais pessoas e os usuários <strong>do</strong>s serviçose atividades por elas executa<strong>do</strong>s. No caso de irresignaçãocontra decisão administrativa final, firmada pela instânciamáxima da entidade, deve o interessa<strong>do</strong> buscar no judiciárioa satisfação <strong>do</strong> seu interesse.A despeito desse aspecto especial das citadas entidades,tem havi<strong>do</strong> entendimento no senti<strong>do</strong> da possibilidade de osMinistérios exercerem poder revisional de ofício ou por pro-62R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 55-65, jul.-set. 2011


vocação (recurso hierárquico impróprio), sobre os atos dasagências quan<strong>do</strong> ultrapassa<strong>do</strong>s os limites de sua competênciaou contrariadas políticas públicas <strong>do</strong> governo central”.Há que se ter em mente que os órgãos de defesa <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>rnão foram cria<strong>do</strong>s para fiscalizar concessionárias de serviço público,valen<strong>do</strong> a pena lembrar também que se o funcionário não tiver qualificaçãotécnica, o auto de infração será inteiramente nulo por deficiência defundamentação. O requisito básico da fundamentação é que aquele quepratica o ato tenha condições técnicas para fundamentá-lo, não sen<strong>do</strong>, poresse motivo, admissível que qualquer cidadão profira decisão judicial.Portanto, mais uma vez, é importante frisar o raciocínio de que,além de ter alcance nacional, a operação de transporte aéreo tem suaspeculiaridades próprias e necessita de pessoal com conhecimento técnicopara dirimir os eventuais problemas.Imagine-se que cada órgão de defesa <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r municipal ouestadual avoque a competência para fiscalizar as companhias de transporteaéreo. Certamente, em curto espaço de tempo, teremos sérios problemasde ordem técnica e jurídica.Ademais, foi por essa razão que a competência designada à ANAC éespecífica, sen<strong>do</strong> ela, portanto, a única competente para dirimir conflitosadministativos que envolvam questões atinentes à Resolução 141/2010.Novamente, é de bom alvitre observar os ensinamentos de José<strong>do</strong>s Santos Carvalho Filho, em seus comentários à Lei 9.784/99, LumenJuris, página 126:“Quan<strong>do</strong> a lei (ou o ato administrativo organizacional) estabelecehipótese de competência específica, não há alternativaoutra senão a de ser inicia<strong>do</strong> o processo perante oórgão ou agente <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> dessa competência, como asseverao art. 11 da lei. Significa dizer que, tentada a instauraçãoperante o órgão incompetente, deve o administra<strong>do</strong>r orientaro administra<strong>do</strong> a fazê-lo junto ao órgão competente ou,se não verificada previamente a incompetência, remetê-loao órgão próprio tão logo constata<strong>do</strong> o fato” (grifou-se).Considere-se, ainda, o fato de que é a ANAC quem tem competênciaadministrativa para fiscalizar companhias aéreas, sen<strong>do</strong> que o inciso III <strong>do</strong>R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 55-65, jul.-set. 2011 63


art. 13 da Lei 9.784/99 é taxativo ao dizer que não podem ser objeto dedelegação as matérias de competência exclusiva <strong>do</strong> órgão ou autoridade.Por fim, para sedimentarmos o raciocínio em foco, vale destacara lição de Cláudia Lima Marques, Antônio Herman V. Benjamin e BrunoMirangem sobre o tema:“..a Lei 8.987, de 13 de fevereiro de 1995 – que estabeleceo regime jurídico das concessões e permissões de serviçospúblicos -, determina em seu art. 30, parágrafo único, que “afiscalização <strong>do</strong> serviço será feita através de órgão técnico <strong>do</strong>poder concedente ou com entidade por ele conveniada, e,periodicamente, conforme previsto em norma regulamentar,por comissão composta de representantes <strong>do</strong> poder concedente,da concessionária e <strong>do</strong>s usuários”.Do mesmo mo<strong>do</strong>, a própria atividade das agências regula<strong>do</strong>rasé significativamente mais ampla <strong>do</strong> que a defesa <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r.Diz respeito à realização <strong>do</strong> interesse público, que,embora envolven<strong>do</strong> diversos aspectos, é indiscutível que secompõe também da proteção <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r, a partir de suamatriz constitucional. Assim, à evidência de que é funçãodas agências a defesa <strong>do</strong>s interesses <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r. Entretanto,estes se articulam com uma série de outros aspectos aserem considera<strong>do</strong>s em relação à dinâmica da atividade econômicaregulada.É intuitivo que as agências regula<strong>do</strong>ras, como órgão daAdministração, vinculam-se ao disposto na legislação e naprópria Constituição. Assim, têm o dever de aplicação dasdisposições <strong>do</strong> CDC na regulação da atividade econômicade que se ocupam. Em alguns casos, como o da Agência Nacionalde Vigilância Sanitária, esta vinculação é explícita. Nasdemais, embora isto não reste expresso nas leis que as criaram,é imposição da própria finalidade a que se propõem.Entretanto, deve ser dito que até o presente momento a atuaçãodestas agências – sobretu<strong>do</strong> as regula<strong>do</strong>ras de serviçospúblicos – está muito aquém <strong>do</strong> adequa<strong>do</strong> para a garantia deum nível eleva<strong>do</strong> de proteção <strong>do</strong>s consumi<strong>do</strong>res.64R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 55-65, jul.-set. 2011


Em trabalho anterior, afirmamos que as agências regula<strong>do</strong>rasnão pertenceriam ao SNDC. Partimos de um ponto de análisedistinto, afirman<strong>do</strong> que da<strong>do</strong> o caráter de coordenaçãoatribuí<strong>do</strong> pelo Código ao DPDC e a autonomia reconhecidaàs agências, não existiria possibilidade de relação que permitissemínima ingerência <strong>do</strong> órgão coordena<strong>do</strong>r <strong>do</strong> sistema naatividade de regulação, sob pena de inviabilizar os diversosinteresses pondera<strong>do</strong>s pela atividade de regulação. Ocorreque a estrutura flexível <strong>do</strong> SNDC, tal qual vislumbramos hoje,parece afastar aquele argumento. Aproximo-me, assim, aoentendimento já defendi<strong>do</strong> por Daniel Fink em seus comentários,quan<strong>do</strong> distingue órgãos vincula<strong>do</strong>s de mo<strong>do</strong> diretoe indireto à defesa <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r (FINK, Daniel Roberto eoutros. Comentários..., 6.ed. Forense, 1999, p.845-847). Nocaso, as agências, ainda que tenham uma atividade marcadamentede ponderação, têm, na defesa <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r, umimperativo legal e constitucional, e por isso, desde logo,integram o SNDC.(...)Todas as agências regula<strong>do</strong>ras mencionadas, conforme seprocurou demonstrar, incluem dentre suas atribuições, demo<strong>do</strong> mais ou menos expresso, a consideração <strong>do</strong>s interesses<strong>do</strong>s consumi<strong>do</strong>res na regulação da atividade econômicade que se ocupam. Ao mesmo tempo, o próprio CDC éexpresso em seu art. 22, ao incluir no seu âmbito de incidênciaos serviços públicos cuja prestação caracterize-secomo relação de consumo, sejam eles presta<strong>do</strong>s pela própriaAdministração, sejam presta<strong>do</strong>s mediante regime deconcessão e permissão.” (Comentários ao Código de Defesa<strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r, ed. RT, 3ª ed., 2010, 1121/1124 – grifou-se).Como se vê, mesmo tratan<strong>do</strong>-se de questão envolven<strong>do</strong> o Códigode Defesa <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r, sen<strong>do</strong> a matéria regulamentada pela AgênciaNacional de Aviação <strong>Civil</strong>, resta irrefragável a incompetência <strong>do</strong>s órgãosde defesa <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r para fiscalizar as concessionárias de serviçopúblico de transporte aéreo.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 55-65, jul.-set. 2011 65


Notas sobre a herança jurídica esocial da questão habitacionalbrasileira: um desafio àaplicação <strong>do</strong> direito à moradiaaos assentamentos informaisJoão Maurício Martins de AbreuAdvoga<strong>do</strong> - Corrêa da Veiga, Peltier, Rufino e AbreuAdvoga<strong>do</strong>s. Professor de Direito <strong>Civil</strong> da UNESA. Mestreem Sociologia e Direito pela UFF.1 - IntroduçãoEm termos estritamente jurídicos, não pode haver dúvida de queexiste, há muito tempo, proteção normativa autônoma, válida e apta aproduzir efeitos em torno <strong>do</strong> direito à moradia. Desde a Declaração Universal<strong>do</strong>s Direitos Humanos de 1948, passan<strong>do</strong> pelo Pacto Internacionalde Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 (ratifica<strong>do</strong> no Brasilem 1992), e ainda por disposições implícitas e explícitas de nossa ConstituiçãoFederal de 1988 (art. 6º, especialmente), assim como, mais recentemente,por uma série de leis infraconstitucionais (Estatuto da Cidade,Medida Provisória 2.220 de 2001, inserção da concessão de uso para finsde moradia no rol de direitos reais <strong>do</strong> Código <strong>Civil</strong> etc.), revela-se a construçãode um considerável discurso normativo que concebe o direito àmoradia como direito humano e fundamental.Uma das mais importantes implicações desse discurso normativo éa possibilidade, em tese, de invocação <strong>do</strong> direito à moradia em defesa <strong>do</strong>smora<strong>do</strong>res de assentamentos informais – favelas, loteamentos irregulares,clandestinos, ocupações de prédios públicos e priva<strong>do</strong>s aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>setc. 1 –, possibilidade essa que ocorre principalmente por força da inserção1 O delica<strong>do</strong> conceito de favela aqui utiliza<strong>do</strong> é aquele a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> pelo IBGE, que toma o termo favela como sinônimode aglomera<strong>do</strong> subnormal, isto é, conjunto de no mínimo 51 residências que ocupam terreno alheio (público oupriva<strong>do</strong>), construídas de forma desordenada, com elevada densidade populacional e carência de serviços públicosessenciais. IBGE. "Uma análise <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s da amostra <strong>do</strong> Censo Demográfico 2000". Disponível no site: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2000/tendencias_demograficas/comentarios.pdf. Acesso em66R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 66-86, jul.-set. 2011


discursiva da segurança jurídica da posse e da vedação <strong>do</strong>s despejosforça<strong>do</strong>s, salvo em casos excepcionais e respeita<strong>do</strong> o devi<strong>do</strong> processolegal, dentre os critérios de monitoramento <strong>do</strong> direito à moradia peloComitê Geral da ONU. 2Por outro la<strong>do</strong>, em termos sociais, temos vivencia<strong>do</strong>, especialmentenas grandes cidades <strong>do</strong> país, a proliferação da moradia constituída emassentamentos informais, em números, em certos perío<strong>do</strong>s, maiores queo crescimento da própria moradia formalizada. Em recente estu<strong>do</strong>, o Institutode Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) buscou quantificar a chamadaquestão habitacional nas cidades brasileiras e, no que nos interessa notar,apontou para a existência, no país, de cerca de 7 (sete) milhões de pessoasviven<strong>do</strong> em favelas. 3 Metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro, aindasegun<strong>do</strong> a pesquisa, contavam, juntas, em 2008, com o impressionantenúmero de 1.560 (mil quinhentas e sessenta) favelas – o que não chega,sequer, a computar to<strong>do</strong>s os assentamentos informais... E não se trata deum fenômeno local. De acor<strong>do</strong> com da<strong>do</strong>s apresenta<strong>do</strong>s em importanteestu<strong>do</strong> <strong>do</strong> sociólogo americano Mike Davis (1946- ), funda<strong>do</strong>s, por suavez, em relatório de 2003 <strong>do</strong> Programa de Assentamentos Humanos dasNações Unidades (UN-Habitat), na primeira década <strong>do</strong> século XXI, mais deum bilhão de pessoas no globo já viveriam em assentamentos informais. 4O conflito entre a norma jurídica e o fato social vive sua máximatensão quan<strong>do</strong> os assentamentos informais são ameaça<strong>do</strong>s de remoção.Nesse contexto, além da ação direta <strong>do</strong> Poder Executivo, também oPoder Judiciário brasileiro tem si<strong>do</strong> aciona<strong>do</strong> para promover o despejo força<strong>do</strong>de assentamentos informais através de Ações Civis Públicas, Açõesde Reintegração de Posse e Ações Reivindicatórias, cujas petições iniciaisinvocam normas ambientais, normas urbanísticas e a “melhor” posse ou aviolação ao direito de propriedade alheia em amparo ao desalijo.23/09/09. Para uma crítica dessa definição, cf. VALLADARES, Lícia <strong>do</strong> Pra<strong>do</strong>. A invenção da favela. Rio de Janeiro:FGV, 2005, p. 149-150. Loteamento irregular é aquele cujo projeto não tem aprovação consumada na Prefeitura,mas que pode ser regulariza<strong>do</strong>. Já o loteamento clandestino é aquele feito por pessoas que não são proprietárias daárea loteada e que não é, por isso, passível de regularização na Prefeitura.2 No plano internacional, cf. PIOVESAN, Flávia et alii. Código Internacional <strong>do</strong>s Direitos Humanos Anota<strong>do</strong>. São Paulo:DPJ, 2008, esp. p. 3-13, 19-21 e 151-157. No âmbito nacional, cf. SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia.In: SAMPAIO, José Adércio. Crise e desafios da Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, 415-466 e SAULE Jr.,Nelson. A proteção jurídica da moradia nos assentamentos irregulares. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2004.3 IPEA. Folha de S. Paulo (SP): 54,6 milhões vivem no país em moradia inadequada. Disponível em http://ipea.gov.br/003/00301009.jsp?ttCD_CHAVE=6717. Acesso em 02/07/2009.4 DAVIS. Mike. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006, p. 34.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 66-86, jul.-set. 2011 67


E nossos tribunais, não raro, concedem, inclusive liminarmente, odespejo força<strong>do</strong>, sem a oitiva <strong>do</strong>s assenta<strong>do</strong>s – muitas vezes contribuintesde IPTU; muitas vezes, há mais de cinco, dez ou vinte anos mora<strong>do</strong>res <strong>do</strong>local... Pior: as Ações Civis Públicas tramitam, normalmente, sem a participação<strong>do</strong>s assenta<strong>do</strong>s, ten<strong>do</strong> como autor o Ministério Público e comoréu o Município “omisso”, que nada fez para impedir a constituição <strong>do</strong>assentamento informal, segun<strong>do</strong> a tese <strong>do</strong> parquet.No debate processual, o direito à moradia <strong>do</strong>s assenta<strong>do</strong>s é umcompleto estranho: reinam, p.ex., os conceitos tradicionais de Direito<strong>Civil</strong>, como a posse de má-fé e a detenção (de bem público), como instrumentostécnicos para negar aos assenta<strong>do</strong>s até mesmo o direito mínimoa uma indenização pela perda de suas casas, sem qualquer ponderaçãojudicial sobre o direito à moradia ou sobre o destino <strong>do</strong>s assenta<strong>do</strong>s apóso desalijo. 5Não à toa, o Relatório Nacional de monitoramento <strong>do</strong> direito àmoradia no Brasil, endereça<strong>do</strong> à ONU, em 2004, pontifica que nossostribunais não enxergam os grupos vulneráveis (notadamente as classesmais pobres que produzem sua moradia na informalidade) como titulares<strong>do</strong> direito à moradia, promoven<strong>do</strong> uma espoliação da defesa jurídica<strong>do</strong>s assenta<strong>do</strong>s. 6Por que a prática judicial brasileira <strong>do</strong>minante não tem aplica<strong>do</strong> enem mesmo discuti<strong>do</strong> sobre a aplicabilidade, ou não, <strong>do</strong> direito à moradiaem favor <strong>do</strong>s mora<strong>do</strong>res de assentamentos informais? Por que temconcentra<strong>do</strong> sua discussão em casos individualiza<strong>do</strong>s e menos dramáticoscomo o <strong>do</strong> bem de família <strong>do</strong> fia<strong>do</strong>r? 7Trabalhamos com duas hipóteses, aparentemente complementares.Uma primeira hipótese, já defendida em nossa dissertação de Mestra<strong>do</strong>e a ser particularmente desenvolvida em outro artigo, refere-se a5 Foi o que concluímos em nossa dissertação de Mestra<strong>do</strong>, com ampla análise jurisprudencial e estu<strong>do</strong> de casoconcreto ocorri<strong>do</strong> no Município de Belford Roxo/RJ, e para a qual remetemos o leitor interessa<strong>do</strong> em um aprofundamentodeste ponto: ABREU, João Maurício M. de. "A efetividade da defesa <strong>do</strong> direito à moradia em juízo: estu<strong>do</strong>de casos no Brasil". Dissertação. PPGSD/UFF, 2009.6 SAULE Jr., Nelson. "Instrumentos de monitoramento <strong>do</strong> direito humano à moradia adequada". In: FERNANDES, E. eALFONSIN, B.. Direito Urbnanístico – estu<strong>do</strong>s brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 215-250.7 A orientação atualmente <strong>do</strong>minante no Supremo Tribunal Federal sobre o bem de família <strong>do</strong> fia<strong>do</strong>r, que repercutediretamente nas decisões <strong>do</strong>s Tribunais de Justiça <strong>do</strong>s esta<strong>do</strong>s da federação, está sintetizada na seguinte ementa:“[f]ia<strong>do</strong>r. Locação. Ação de Despejo. Sentença de procedência. Execução. <strong>Responsabilidade</strong> solidária pelos débitos <strong>do</strong>afiança<strong>do</strong>. Penhora de seu imóvel residencial. Bem de família. Admissibilidade. Inexistência de afronta ao direito àmoradia previsto no art. 6° da CF. Constitucionalidade <strong>do</strong> art. 3°, inc. VII, da Lei n. 8.009/90, com a redação da Lein. 8.245/91” (R.E. 407.688, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 08/02/06, Plenário, DJ de 06/10/06).68R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 66-86, jul.-set. 2011


um habitus de classe social de nossos profissionais como obstáculo queimpede a efetividade da defesa da moradia informal em juízo, na esteira<strong>do</strong> conheci<strong>do</strong> conceito <strong>do</strong> sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002).Na outra hipótese, parece-nos que também representa um importanteobstáculo a tal efetividade a naturalização de nossa herança jurídica e socialem matéria de constituição da moradia, fincada, <strong>do</strong> final <strong>do</strong> século XIXem diante, sobre os marcos da propriedade e <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> como meios(quase) absolutos de acesso à terra.O objeto deste artigo é a apresentação inicial dessa segunda hipótese,o que impõe uma sondagem minimamente consistente sobre os antecedenteshistoriográficos, jurídicos e sociais da apropriação e ocupação<strong>do</strong> território brasileiro, com especial ênfase sobre o espaço urbano.2 – A herança jurídica: o marco proprietárioEm senti<strong>do</strong> estritamente jurídico, o que hoje conhecemos comopropriedade plena sobre um bem imóvel não guarda paralelo jurídico como conceito de sesmaria, que consistiu no pilar central <strong>do</strong> modelo oficial deacesso à terra no Brasil por mais de três séculos.Para entender a afirmação, é necessário rememorar algumaspoucas características da apropriação <strong>do</strong> território no perío<strong>do</strong> colonial e<strong>do</strong> regime de outorga de sesmarias.O sistema de outorga de sesmarias foi engendra<strong>do</strong>, originalmente,no século XIII, por ocasião da Reconquista <strong>do</strong> atual território de Portugal,que impusera uma política de povoamento das terras aban<strong>do</strong>nadas pelosmouros em fuga. Quan<strong>do</strong>, no início <strong>do</strong> século XVI, Portugal se apropria <strong>do</strong>território brasileiro, o faz sob o título jurídico de direito de conquista, referenda<strong>do</strong>pela Igreja, sem reconhecer como direito qualquer outro poder defato sobre a terra, exerci<strong>do</strong> desde sempre pelo indígena ou, durante to<strong>do</strong> oséculo XVI, pelo francês. É como se toda a terra conquistada fosse virgem. 8A colonização só se inicia, de fato, em 1530, e, desde o princípio, aCoroa busca transplantar para o Brasil seu já antigo modelo de ocupaçãode território, posteriormente consolida<strong>do</strong> juridicamente nas ordenações<strong>do</strong> reino: Ordenações Afonsinas, de 1446 (Livro IV, título 81), OrdenaçõesManuelinas, de 1511-1512 (Livro IV, título 67, § 3º) e, principalmente, OrdenaçõesFilipinas, de 1603 (Livro IV, título 43, §§ 1º e 4º). 98 ABREU, Maurício de Almeida. "A apropriação <strong>do</strong> território no Brasil colonial". In: CASTRO, Inéa E. et alii (org.).Explorações geográficas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, p. 204.9 PORTO, Costa. Estu<strong>do</strong> sobre o sistema sesmarial. Recife: Imprensa universitária, 1965, p. 41.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 66-86, jul.-set. 2011 69


O traço distintivo <strong>do</strong> regime sesmarial – em relação a outras formasantigas de apropriação territorial, como, p.ex., a enfiteuse – consistiu-sena bipartição <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio sobre a terra, com finalidade específica de povoamentoe produção: enquanto o <strong>do</strong>mínio dito eminente sobre to<strong>do</strong> o territóriocabe ao Esta<strong>do</strong>, o <strong>do</strong>mínio dito útil de parcelas delimitadas de terra étransferi<strong>do</strong> a pessoas que, dentre outras coisas, obrigam-se a cultivá-las, atorná-las produtivas, sob pena de comisso, ou seja, sob pena de perderem o<strong>do</strong>mínio útil, que retornaria ao Esta<strong>do</strong>. Este, no entanto, foi o traço distintivo“em tese”. E diz-se “em tese” principalmente por força de duas deturpaçõescentrais ocorridas no Brasil: (a) primeiramente, o requisito de produtividade,embora categoricamente previsto nas Ordenações e exigi<strong>do</strong> nas sesmariasda Metrópole, foi muito pouco cobra<strong>do</strong> <strong>do</strong>s sesmeiros na Colônia; (b) alémdisso, o propósito original de povoamento desde ce<strong>do</strong> se desvirtuou, porobra direta da própria Coroa portuguesa, que concedia sesmarias emextensões muito além <strong>do</strong>s limites de razoabilidade impostos pelas Ordenaçõese que generalizava a prática, particular para o Brasil, de exigir a provade recursos (notadamente escravos) aos pleiteantes de sesmarias, fatos quereverberam até hoje na concentração brasileira de terras rurais. 10Essa forma oficial conviveu com outros <strong>do</strong>is meios secundários deapropriação <strong>do</strong> território que, conforme a colonização avançava, tornavam-sebastante comuns: desde o final <strong>do</strong> século XVI a Colônia conheceuum emergente merca<strong>do</strong> de arrendamento e compra e venda, cujo objetoeram as cobiçadas terras próximas aos portos e núcleos urbanos; e, a seuturno, como era de se prever, a Colônia conheceu também a velha disseminaçãoda prática da ocupação, 11 o apossamento de terras particulares,não aproveitadas pelos sesmeiros, ou mesmo de terras públicas, especialmentenos concentra<strong>do</strong>s núcleos urbanos (beira de mares e rios navegáveis,p. ex.), à espera de um ato <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> que viesse legitimar a posse econsolidar o <strong>do</strong>mínio sobre o bem. 1210 ABREU, Maurício de A. "A apropriação..." op. cit., p. 208.11 Vale lembrar que, na Roma antiga, cujo Direito compila<strong>do</strong> concorria em aplicação com as Ordenações, uma dasformas de aquisição de um bem a título originário (ou seja, aquisição sem “transferência”) era a ocupação, isto é, atomada de posse de alguma coisa sem <strong>do</strong>no, com a intenção de tornar-se seu proprietário. Podiam ser objeto deapropriação por ocupação, conforme ensina o romanista Jean Gaudemet, os produtos da pesca e da caça e, o queé mais importante notar, as terras ainda não apropriadas, assim como aquelas tomadas <strong>do</strong> inimigo. No original:“le mode originaire d’acquérir est par excellence l’occupation, c’est-à-dire la prise de possession d’une chosequi jusque-lá était sans maître et cela avec l’intention d’en devenir proprieétaire. Font l’objet d’aprpropriation paroccupation les produits de la pêche et de la chasse, les terres non encore appropriées, les biens pris à l’ennemi”.GAUDEMET, Jean. Droit Privé Romain Paris: Montchrestien, 1998, p. 230.12 Para uma análise mais detalhada de outras formas de apropriação <strong>do</strong> território não abordadas aqui, remeta-semais uma vez a ABREU, Maurício de A.. "A apropriação..." op. cit., 1997, p. 197-245. Em relação a essas últimas,vale apenas destacar duas: as sesmarias de chãos, afeitas às vilas e cidades com fins específicos de propiciar aos70R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 66-86, jul.-set. 2011


É evidente que os conflitos, especialmente entre “posseiros” e“sesmeiros”, surgiram de imediato – e não raras vezes os posseiros obtiveramo reconhecimento de um direito melhor que o <strong>do</strong>s sesmeiros sobreas terras ocupadas.Foi numa decisão desse tipo de conflito, aliás, que o regime sesmarialterminou por ser suspenso, em 17 de julho de 1822, com a Resolução76 <strong>do</strong> Príncipe Regente, que declarava: “[f]ique o suplicante na posse dasterras que tem cultiva<strong>do</strong>, e suspendam-se todas as sesmarias futuras,até convocação da Assembleia Geral Constituinte”. 13O que significa, juridicamente, tal suspensão?Ainda que, dadas as distorções e peculiaridades <strong>do</strong> sesmarialismobrasileiro, socialmente houvesse um sentimento comum entre os mora<strong>do</strong>rese colonos de se considerarem “<strong>do</strong>nos da terra” recebidas emsesmarias, 14 em senti<strong>do</strong> estritamente jurídico o regime sesmarial exigiao poder de fato, a posse efetiva sobre a terra concedida, através da instituiçãoda moradia e da produção, distancian<strong>do</strong>-se, por essa característica,como agora se vê, da propriedade plena de um imóvel, tal como a concebemosatualmente. Responden<strong>do</strong> à questão proposta, podemos, portanto,dizer que a suspensão <strong>do</strong> regime sesmarial em 1822 representouo início <strong>do</strong> processo de transição de um modelo jurídico estatal de apropriaçãoterritorial, basea<strong>do</strong> na obrigatoriedade da posse, para um modelojurídico de merca<strong>do</strong> basea<strong>do</strong> na propriedade da terra, que se consolidariamenos de um século depois, com a promulgação <strong>do</strong> Código <strong>Civil</strong> de 1916,como procuraremos demonstrar. 15colonos a constituição de moradia e quintais de uso e produção <strong>do</strong>mésticos; e também os patrimônios religiosos,que eram “glebas cedidas por um ou vários proprietários fundiários para que os trabalha<strong>do</strong>res sem terra pudessemali fixar residência. A cessão, entretanto, não se fazia diretamente a eles. O beneficiário era o orago de uma capela jáexistente ou que se queria erigir no local, caben<strong>do</strong> à Igreja, em nome <strong>do</strong> padroeiro, administrar esse patrimônio. (...)Da repartição desse patrimônio, portanto, surgiram pequenos arraiais, alguns <strong>do</strong>s quais prosperaram e tornaram-sefreguesias. Muitos foram mais tarde eleva<strong>do</strong>s à categoria de vila”, p. 218-219 e p. 233-4, respectivamente.13 Apud, MELO, Marco. A. Bezerra de. Legitimação de posse: os imóveis urbanos e o direito à moradia. Rio de Janeiro:Lumen Juris, 2008, p. 19.14 Um episódio exemplificativo reflete esse contexto social conturba<strong>do</strong>. No final <strong>do</strong> século XIX, através <strong>do</strong> Alvará de3 de dezembro de 1795, a Metrópole havia tenta<strong>do</strong> consolidar legislativamente as rígidas exigências especiais que seimpunham aos sesmeiros da Colônia, tornan<strong>do</strong> real a ameaça de comisso. Mas houve grande resistência <strong>do</strong>s colonose mora<strong>do</strong>res, que, passa<strong>do</strong> tanto tempo de tolerância da Metrópole, passaram a sentir-se “<strong>do</strong>nos das terras”, e nãoapenas titulares <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio útil sob certas condições, de mo<strong>do</strong> que, pouco menos de um ano depois de tal tentativa,aquele Alvará teve sua vigência suspensa apelo Alvará de 10 de dezembro de 1796. Ruy Cirne de Lima, apud ABREU,Maurício de A. "A apropriação..." op. cit., p. 228.15 Sobre esse processo, há um seguro panorama historiográfico e jurídico em LOPES, José Reinal<strong>do</strong> da Lima.O Direito na História. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 335 e ss., bem como em OLIVEIRA, Arioval<strong>do</strong> U. e FARIA, CamilaSalles de. "O processo de constituição da propriedade privada da terra no Brasil". Disponível no site http://egal2009.easyplanners.info/area06/6193_OLIVEIRA_Arioval<strong>do</strong>_Umbelino.<strong>do</strong>c. Acesso em 27/07/2009.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 66-86, jul.-set. 2011 71


E abra-se aqui um parêntesis para enfatizar que o que vale para aconcessão de sesmarias vale igualmente para os meios circundantes deapropriação territorial: o merca<strong>do</strong> de terras e chãos urbanos <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>colonial e a ocupação por posseiros de terras incultas ou de terras públicas.Com efeito, os negócios imobiliários na Colônia – os arrendamentosou as compras e vendas – tinham por objeto “terras” ou “chãos” de sesmaria,estan<strong>do</strong>, portanto, to<strong>do</strong>s vincula<strong>do</strong>s à Carta original de concessãoda sesmaria e seu regime jurídico. Por sua vez, como processo informalde apropriação territorial, a ocupação de terras incultas ou públicas, porprincípio, não poderia transferir mais direitos <strong>do</strong> que o próprio processooficial de apropriação <strong>do</strong> solo: a concessão de sesmarias.O vácuo deixa<strong>do</strong> pela suspensão <strong>do</strong> regime sesmarial em 1822 sófoi preenchi<strong>do</strong> em 1850, com a promulgação da Lei 601, <strong>do</strong> Império. Aassim chamada Lei de Terras instaura o que vamos denominar de processode consolidação <strong>do</strong> modelo jurídico proprietário de apropriação eocupação <strong>do</strong> território, funda<strong>do</strong> principalmente no contrato de comprae venda imobiliária.Dispon<strong>do</strong> sobre o passa<strong>do</strong>, e procuran<strong>do</strong> estabilizar a complexasituação até então vigente, a lei revali<strong>do</strong>u, em seu art. 4º, grande númerode sesmarias e, no art. 5º, as ocupações primárias mansas e pacíficas instituídasaté 1850, desde que houvesse, em ambos os casos, princípios decultura da terra e estabelecimento de morada habitual. Quan<strong>do</strong> não houvessecultura ou moradia instituída, ou quan<strong>do</strong> estivessem desocupadas,as terras seriam consideradas juridicamente vagas e, uma vez identificadase demarcadas, deviam ser devolvidas ao Esta<strong>do</strong> (daí o nome “devolutas”),que poderia, futuramente, vendê-las. 16Dispon<strong>do</strong> para o futuro (cf. art. 2º a 5º, principalmente), a lei proibiua concessão de novas sesmarias; tipificou como crime apena<strong>do</strong> comprisão, multa e perda das benfeitorias a ocupação de terras, um processoinformal por séculos reconheci<strong>do</strong> pelo Esta<strong>do</strong>; e instituiu a compra e venda,que fora um processo secundário, embora importante, de apropriação<strong>do</strong> território no perío<strong>do</strong> colonial, como via única de aquisição, inclusive,das terras rurais disponíveis, até mesmo das terras virgens, o que inaugura16 Note-se que a única exceção a essa regra está nas terras devolutas próximas às fronteiras <strong>do</strong> território <strong>do</strong> Impériobrasileiro, para as quais a lei abriu a possibilidade de o Esta<strong>do</strong> concedê-las gratuitamente, por contrato de <strong>do</strong>ação.Cf. segunda parte <strong>do</strong> art. 1° da Lei 601/1850.72R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 66-86, jul.-set. 2011


no país o processo de conversão jurídica <strong>do</strong> valor de uso da terra em valorde troca, ou seja, de conversão da terra em merca<strong>do</strong>ria. 17Segun<strong>do</strong> alguns autores, não por acaso, mas para cercear o acessoà terra, essa lei é contemporânea da abolição <strong>do</strong> tráfico negreiro e <strong>do</strong>início da regulamentação e estímulo da imigração de trabalha<strong>do</strong>res livrespara o Brasil. 18“Dono” da terra (urbana ou rural) era o detentor de título jurídico,independentemente da posse efetiva, eis o modelo jurídico <strong>do</strong> proprietárioinstaura<strong>do</strong> pela Lei 601/1850. Prova disso é que, mesmo os posseirosque tiveram o direito sobre a terra que ocupavam preteritamente valida<strong>do</strong>pela Lei, foram obriga<strong>do</strong>s a tirar títulos <strong>do</strong>s terrenos apossa<strong>do</strong>s, sem oque não poderiam dá-los em hipoteca, nem alienar. É o título, ou a ausênciadele, que define quem é ou não <strong>do</strong>no da terra.Seria um erro supor que esse é um antecedente histórico com poucarelevância para os meios urbanos. Em primeiro lugar, a Lei de Terrasaplicava-se, também, ao espaço urbano; em segun<strong>do</strong> lugar, embora elatenha afeta<strong>do</strong>, principalmente, o direito sobre a terra rural, o fenômeno<strong>do</strong> “inchaço” urbano, que nos últimos cem anos inverteu a proporção dadensidade populacional entre o campo e as cidades brasileiras, é reflexo,dentre outras razões, da própria estrutura fundiária das terras rurais, queimpede, na palavra de especialistas no assunto 19 , o “acesso <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>rrural à terra por ele cultivada, determinan<strong>do</strong> o êxo<strong>do</strong> para os centrosurbanos” e remonta, sem me<strong>do</strong> de errar, ao regime jurídico instaura<strong>do</strong>pela Lei de Terras.Acresçam-se <strong>do</strong>is fatos relevantes: (a) da<strong>do</strong> seu impacto na situaçãojurídica e social até então vigente, a Lei 601/1850, que deveria ser regulamentadaem até <strong>do</strong>is anos a contar da sua promulgação, por injunçõespolíticas, só o foi em 1854; (b) o Governo <strong>do</strong> Império encontrou grandesdificuldades em demarcar, como necessitava para fins de vendê-las, todasas terras devolutas, de mo<strong>do</strong> que, se havia, em tese, potencialidades redistributivase de ordenação territorial no texto da lei, elas acabaram porser, na prática, tolhidas pela ineficiência <strong>do</strong> Poder Público. Como afirma asocióloga Ermínia Maricato (1947- ),17 Sobre a contraposição valor de uso / valor de troca e sobre o conceito de merca<strong>do</strong>ria, cf. MARX, Karl. "A merca<strong>do</strong>ria".In: O capital – crítica à economia política. Rio de Janeiro, 18ª ed.: <strong>Civil</strong>ização Brasileira, 2001, v. 1, p. 55-105.18 Nesse senti<strong>do</strong>, José de Souza Martins, apud OLIVEIRA, A. U. e FARIA, C. S. de. Op. cit., p. 5.19 LIRA, Ricar<strong>do</strong> Pereira. "Campo e cidade no ordenamento jurídico brasileiro". In: Elementos de Direito Urbanístico.Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 342.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 66-86, jul.-set. 2011 73


[a] demora na demarcação das terras devolutas deveu-se àsresistências e imprecisões com que as solicitações <strong>do</strong> governocentral eram respondidas pelo poder local. Durante esseprocesso, um vasto patrimônio público, sob a forma de terrasrurais e urbanas, passou para mãos privadas. 20O modelo jurídico proprietário foi robusteci<strong>do</strong> em 1864, pela ediçãoda Lei Hipotecária <strong>do</strong> Império (Lei n° 1.237), a qual criou os Registros Públicosno país e, em seu art. 8° 21 , expressamente estabeleceu que o direitode propriedade da terra, fosse ela rural ou urbana, passava a ser aferi<strong>do</strong>pelo registro <strong>do</strong> contrato (normalmente de compra e venda) no RegistroGeral, confirman<strong>do</strong>, então, a possibilidade de o direito sobre a terra seexercer à distância, pelo simples registro <strong>do</strong> título e independentementeda posse efetiva. O título de contrato de compra e venda, como se diz atéhoje, passa a ter efeitos meramente obrigacionais (cria a obrigação interpartes de transferir a propriedade); é o registro desse título no RegistroGeral que confere efeitos reais (transfere efetivamente a propriedade).O “<strong>do</strong>no” da terra (urbana ou rural) era aquele que constava como “<strong>do</strong>no”no registro.As bases desse sistema de transferência da propriedade imobiliáriabasea<strong>do</strong> no registro foram mantidas pelo Código <strong>Civil</strong> de 1916, pela Lei deRegistros Públicos de 1973 (Lei 6.015 de 31/12/1973) 22 , ainda vigente, epelo Código <strong>Civil</strong> de 2002 23 .Enfim, o Código <strong>Civil</strong> de 1916, que em matéria de propriedades e decontratos ficou marca<strong>do</strong> pela firme posição não intervencionista, fechou ociclo de transição de modelo jurídico de apropriação e ocupação territorial20 MARICATO, Erminia. Metrópole na periferia <strong>do</strong> capitalismo. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 37. No mesmo senti<strong>do</strong>,LOPES, José Reinal<strong>do</strong> da Lima, O Direito..., 2009, p. 337.21 Art. 8° A transmissão entrevivos por títulos oneroso ou gratuito <strong>do</strong>s bens susceptíveis de hypothecas (art. 2° §1°)[imóveis, escravos, animais etc.] assim como a instituição <strong>do</strong>s onus reaes (art. 6°) não operão seus effeitos a respeitode terceiros, senão pela transcripção e desde a data della.22 Lei 6.015/1973. “Art. 172. No Registro de Imóveis serão feitos, nos termos desta Lei, o registro e a averbação <strong>do</strong>stítulos ou atos constitutivos, declaratórios, translativos e extintivos de direitos reais sobre imóveis reconheci<strong>do</strong>sem lei, inter vivos ou mortis causa, quer para sua constituição, transferência e extinção, quer para sua validade emrelação a terceiros, quer para a sua disponibilidade.”23 CC/2002. “Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade [imobiliária] mediante o registro <strong>do</strong> título translativono Registro de Imóveis.§1°. Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havi<strong>do</strong> como <strong>do</strong>no <strong>do</strong> imóvel.§2°. Enquanto não se promover, por meio de ação própria, a decretação de invalidade <strong>do</strong> registro, e o respectivocancelamento, o adquirente continua a ser havi<strong>do</strong> como <strong>do</strong>no <strong>do</strong> imóvel.”74R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 66-86, jul.-set. 2011


e consoli<strong>do</strong>u o regime centraliza<strong>do</strong> na figura <strong>do</strong> proprietário, segun<strong>do</strong> oregistro <strong>do</strong> título aquisitivo (cf., principalmente, arts. 524, 530, I e 859 24 ).O fun<strong>do</strong> ideológico <strong>do</strong> modelo consolida<strong>do</strong> no Código foi, declaradamente,a conhecida teoria <strong>do</strong> romanista alemão Ru<strong>do</strong>lf Von Jhering(1818-1892), segun<strong>do</strong> a qual a posse é a exteriorização da propriedadee, portanto, em última análise, num sinal <strong>do</strong>s tempos, postula que é“o interesse da propriedade que justifica a proteção da posse”. 25 É o quese extrai, aliás, <strong>do</strong> próprio conceito de possui<strong>do</strong>r fixa<strong>do</strong> pelo Código <strong>Civil</strong>de 1916:Art. 485 – Considera-se possui<strong>do</strong>r to<strong>do</strong> aquele que tem, defato, o exercício, pleno ou não, de algum <strong>do</strong>s poderes inerentesao <strong>do</strong>mínio ou propriedade. (grifos meus, J.M.M.A.)O problema <strong>do</strong> modelo jurídico proprietário de apropriação e ocupação<strong>do</strong> território brasileiro não está, propriamente, no instituto da propriedade;mas sim num exclusivismo proprietário que é a marca desse modeloe relega a posse (o poder de fato sobre a terra) ao irremediável planoda ilegalidade – quan<strong>do</strong> não da criminalidade – quan<strong>do</strong> não consentida,direta ou indiretamente, pelo proprietário, ainda que o detentor <strong>do</strong> poderde fato sobre a terra (urbana ou rural) nela trabalhe ou institua sua moradiae a de sua família. Posse legítima é aquela de algum mo<strong>do</strong> consentidapelo proprietário: através <strong>do</strong> aluguel, <strong>do</strong> usufruto, <strong>do</strong> arrendamento, dacessão de uso etc..Clóvis Bevilaqua (1859-1944), autor <strong>do</strong> projeto de 1899 que resultouem nosso Código <strong>Civil</strong> de 1916, explica melhor essa concepção ao asseverarque o objeto <strong>do</strong> Direito das Coisas (que regula os direitos reais)é, em última análise, “a propriedade, a adaptação das coisas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>externo às necessidades <strong>do</strong> homem, na vida social. Mas a propriedadeoferece matizes diferentes, desmembra-se, modifica-se, e desses fatos resultauma grande variedade de relações”. Ou seja, trata-se a posse, nessapassagem eloquente, como mero des<strong>do</strong>bramento <strong>do</strong> conceito central depropriedade. E, mais à frente, confirman<strong>do</strong> a tomada de posição atribuída24 “Art. 524. A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens e de reavê-los <strong>do</strong> poder dequem quer que injustamente os possua.”“Art. 530. Adquire-se a propriedade imóvel: I – pela transcrição <strong>do</strong> título de transferência no Registro <strong>do</strong> Imóvel.”“Art. 859. Presume-se pertencer o direito real à pessoa, em cujo nome se inscreveu, ou transcreveu.”25 O excerto foi retira<strong>do</strong> <strong>do</strong>s comentários ao art. 485 feitos pelo próprio autor <strong>do</strong> Projeto que resultou no Código<strong>Civil</strong> de 1916. BEVILAQUA, Clovis. Código <strong>Civil</strong> <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Brasil Comenta<strong>do</strong>. 10ª ed. Rio de Janeiro:Francisco Alves, 1955, v. 3, p. 8.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 66-86, jul.-set. 2011 75


ao Código, aduz Bevilaqua que “a posse é o esta<strong>do</strong> de fato correspondenteao exercício da propriedade ou de seus desmembramentos, sempre queesta situação se definir, nas relações jurídicas, haverá posse”. 263 – A herança social: o marco merca<strong>do</strong>lógicoQual o aspecto social que nos interessa nesse modelo jurídico proprietário,que se instaura em fins <strong>do</strong> século XIX e se consolida no início <strong>do</strong>século XX? Numa palavra: a legitimação da difusão na sociedade brasileirade um regime de merca<strong>do</strong> em relação à terra e, consequentemente, àmoradia, inclusive urbana, o qual, como to<strong>do</strong> regime de merca<strong>do</strong>, tambémé seletivo. Com efeito, <strong>do</strong> final <strong>do</strong> século XIX em diante, para que osnão proprietários, sem acesso à terra rural ou urbana, constituíssem suamoradia por via legítima, vale repetir, isso deveria decorrer <strong>do</strong> des<strong>do</strong>bramento<strong>do</strong>s poderes <strong>do</strong> proprietário da terra urbana, através <strong>do</strong> aluguel(meio mais comum), <strong>do</strong> usufruto, <strong>do</strong> arrendamento, da cessão de usoetc.. Isso generalizava, já no século XIX, uma oportunidade de lucro aos<strong>do</strong>nos das terras e, posteriormente, uma oportunidade de investimentospara o capital imobiliário que emergiria.Era o valor de troca sobrepujan<strong>do</strong>-se ao valor de uso da terra (in casu,ao valor-moradia).Note-se que não se trata de condenar o merca<strong>do</strong> em si, que temo seu lugar e contribuição, mesmo no que tange à moradia. Como espirituosamentesugere o economista indiano Amartya Sem (1933– ), “[s]ergenericamente contra os merca<strong>do</strong>s seria quase tão estapafúrdio quantoser genericamente contra a conversa entre duas pessoas (ainda que certasconversas sejam claramente infames e causem problemas a terceiros– ou até mesmo aos próprios interlocutores).” 27Assim como dito em relação à propriedade, o problema está no(quase-)absolutismo merca<strong>do</strong>lógico direciona<strong>do</strong> à moradia. Quan<strong>do</strong> pre<strong>do</strong>minaa ocupação e o apossamento como vias usuais de apropriação daterra – como ocorri<strong>do</strong> entre 1822 e 1850 no Brasil, no vácuo deixa<strong>do</strong> pelasuspensão <strong>do</strong> regime sesmarial e só preenchi<strong>do</strong> com a Lei de Terras –,corre-se o risco de sujeitar o Direito à força física e social, principalmentede latifundiários, uma vez que, em muitas ocasiões, para além da ocupaçãode terras incultas e aparentemente sem <strong>do</strong>no, há também esbulhos for-26 BEVILAQUA, Clovis, op. cit., p. 7 e 16.27 SEM, Amartya Kumar. Desenvolvimento com liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 21.76R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 66-86, jul.-set. 2011


ça<strong>do</strong>s de terras já aproveitadas por posseiros com frágeis condições deautodefesa. Contu<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> passa a pre<strong>do</strong>minar, com pretensão de viaúnica, o acesso à terra pelo merca<strong>do</strong>, assume-se o risco social de alijar,pela fragilidade econômica, enormes parcelas da população sem poderde compra – isso numa época, final <strong>do</strong> século XIX e início <strong>do</strong> século XX,em que a propriedade imobiliária era privilégio apenas <strong>do</strong>s estratos maisabasta<strong>do</strong>s economicamente.A produção de moradias urbanas, inserida no marco proprietário emerca<strong>do</strong>lógico (formal), tem sua história contada desde a transformaçãode prédios em habitações coletivas para locação, no final <strong>do</strong> século XIX,até o atual modelo de incorporação imobiliária, basea<strong>do</strong> na difusão <strong>do</strong>princípio da casa própria. 28 Chamaremos de produção formal da moradiaa esse tipo.Mas, por óbvio, fora <strong>do</strong>s marcos proprietário e merca<strong>do</strong>lógico,constitui-se um tipo de produção informal da moradia urbana. O merca<strong>do</strong>,notadamente o merca<strong>do</strong> formal, não é acessível a to<strong>do</strong>s e, portanto,muitas vezes a moradia se produz pelo apossamento de terras urbanasnão utilizadas, à revelia <strong>do</strong>s <strong>do</strong>nos e <strong>do</strong> Poder Público, constituin<strong>do</strong> o queatualmente denominamos assentamentos informais.Essa dualidade parece refletida no ilustrativo caso da atual metrópole<strong>do</strong> Rio de Janeiro, ainda que com algumas particularidades.3.1 – O caso paradigmático da metrópole <strong>do</strong> Rio de JaneiroNo caso <strong>do</strong> território e da estrutura social da atual metrópole <strong>do</strong>Rio de Janeiro, na segunda metade <strong>do</strong> século XIX, perío<strong>do</strong> contemporâneoàs mencionadas transformações no regime jurídico de apropriação <strong>do</strong>território, nota-se uma progressiva expansão <strong>do</strong> espaço urbano sobre orural, com o parcelamento em grandes lotes de antigos engenhos, fazendase chácaras. Contribuíram para essa crescente urbanização o início daindustrialização, os investimentos públicos e os investimentos de capitaisinternacionais à procura de novos merca<strong>do</strong>s – os quais, na então capital<strong>do</strong> Império, destinaram-se especialmente aos transportes coletivos (bondese trens suburbanos), que aumentaram a mobilidade da população no es-28 Para uma ampla análise <strong>do</strong>s tipos de oferta de moradia que o merca<strong>do</strong> imobiliário formal pode oferecer, identifican<strong>do</strong>três grandes estágios de oferta a partir de 1870 – de acor<strong>do</strong> com o pre<strong>do</strong>mínio da produção rentista damoradia (através das habitações coletivas), da produção <strong>do</strong> pequeno capital imobiliário (com suas vilas e correresde casa para locação) e, enfim, <strong>do</strong> capital de incorporação –, cf. RIBEIRO, Luiz César de Q.. Dos Cortiços aos con<strong>do</strong>míniosfecha<strong>do</strong>s – as formas de produção da moradia na cidade <strong>do</strong> Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: <strong>Civil</strong>izaçãoBrasileira/IPPUR/UFRJ, 1997.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 66-86, jul.-set. 2011 77


paço, assim como à concessão de outros serviços públicos tipicamenteurbanos: fornecimento de água, esgoto, gás etc. 29 Além de tais fatores indutoresde urbanização – assim como, é claro, <strong>do</strong> fato de estar cercea<strong>do</strong> oacesso à terra rural a escravos recém-libertos –, devemos citar a emergência,na capital, de uma economia urbana organizada e progressivamentefundada no trabalho livre, atrativo <strong>do</strong> fluxo de trabalha<strong>do</strong>res.[A] partir de 1870 entra em crise a economia mercantil-escravistae, pouco a pouco, afirma-se uma economia urbanaorganizada com base no trabalho livre; por outro la<strong>do</strong>, expande-sea intervenção sobre a cidade, através da legislaçãourbana e <strong>do</strong>s investimentos urbanos realiza<strong>do</strong>s pelo PoderPúblico e pelas empresas privadas. Os anos deste perío<strong>do</strong>serão também marca<strong>do</strong>s por um extraordinário crescimentodemográfico. Estes fatores terão importantes impactos sobrea produção de moradias, crian<strong>do</strong> as bases para a mercantilizaçãoda moradia e <strong>do</strong> solo. 30Foi, portanto, no último quarto <strong>do</strong> século XIX que se estruturaram,socialmente, os antecedentes próximos da chamada questão habitacionalaté hoje vivenciada na metrópole <strong>do</strong> Rio de Janeiro.Já nesse perío<strong>do</strong> distante, com efeito, o crescimento demográficofoi muito maior <strong>do</strong> que o número de <strong>do</strong>micílios oferta<strong>do</strong>, acarretan<strong>do</strong> acriação de habitações coletivas e o consequente adensamento <strong>do</strong>s <strong>do</strong>micíliosdestina<strong>do</strong>s às classes mais pobres – por definição, pre<strong>do</strong>minantementenão proprietárias. Com efeito, a via formal de produção da moradiapopular mais corriqueira no perío<strong>do</strong> foi o aluguel de quartos em casasde cômo<strong>do</strong>s, cortiços e estalagens, o que, especialmente nas freguesias<strong>do</strong> centro histórico e adjacências, pelo adensamento de pessoas, gerou adegradação das condições de moradia. 31Ainda não era a escassez da moradia popular urbana o principal problemahabitacional da capital, mas sim a precariedade de suas condições.O aparecimento vigoroso da escassez de oferta de moradia no Riode Janeiro data especialmente <strong>do</strong> início <strong>do</strong> século XX.29 Sobre o tema, cf. ABREU, Maurício de A.. A Evolução Urbana <strong>do</strong> Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPLAN/ZAHAR,1987, p. 35-69.30 RIBEIRO, Luiz César de Q.. Dos Cortiços... Op. cit., 1997, p. 165-6.31 Nesse senti<strong>do</strong>, RIBEIRO, Luiz César de Q.. Dos Cortiços... Op. cit., 1997, p. 165-173.78R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 66-86, jul.-set. 2011


No final <strong>do</strong> século XIX e, principalmente, no início <strong>do</strong> século XX,com a Reforma Urbana implementada pelo Prefeito <strong>do</strong> então Distrito Federal,Francisco Pereira Passos, as habitações coletivas (casas de cômo<strong>do</strong>se, principalmente, cortiços e estalagens) foram duramente combatidas egrande número delas destruí<strong>do</strong>, sem oferecer-se a boa parte das classesmais pobres que ali residiam outra alternativa formal de moradia. Trataseda conhecida política higienista, que identificou as habitações coletivascomo o principal foco das epidemias que assolavam a cidade, agravadapelo também notório empreendimento moderniza<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Prefeito PereiraPassos, que desapropriava e derrubava diversos prédios ocupa<strong>do</strong>s poroperários para a abertura de avenidas, o alargamento de ruas, a construçãode prédios comerciais etc., buscan<strong>do</strong> fazer com que o espaço dacapital “simbolizasse concretamente a importância <strong>do</strong> país como principalprodutor de café <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, que expressasse os valores e os modi vivendicosmopolitas e modernos das elites econômicas e políticas nacionais”. 32Além disso, ou melhor, entrelaça<strong>do</strong> a tais movimentos, foram erigidasnormas jurídicas muito rígidas para a construção civil, as quais nãosó proibiam a reforma <strong>do</strong>s cortiços ainda existentes, como impunham emminúcias como deveriam ser feitas as construções imobiliárias, o que dificultavasobremaneira até mesmo a ocupação <strong>do</strong> subúrbio lotea<strong>do</strong> dacidade (ainda pouco aproveita<strong>do</strong>) pelas classes mais pobres.Consequentemente, ten<strong>do</strong> em vista o coevo ritmo acelera<strong>do</strong> <strong>do</strong>crescimento populacional da cidade, por conta da chegada constante demigrantes, a ocupação <strong>do</strong>s morros e encostas <strong>do</strong> maciço da Tijuca – emtorno <strong>do</strong> qual se vinha expandin<strong>do</strong> horizontalmente a cidade – e o desenvolvimentoda moradia de favela (a negação estética <strong>do</strong> modernismopreconiza<strong>do</strong> pela Reforma Passos) se tornaram inevitáveis.Atrain<strong>do</strong> grande quantidade de força de trabalho e não oferecen<strong>do</strong>opções de residência legalizada na cidade, era inevitável que o Rio deJaneiro visse surgir, a partir de então, uma nova forma de habitação que,pela precariedade de sua construção, e pelo desafio que representava aocontrole urbanístico, constituiu-se em verdadeira negação da estética demodernidade que se procurava dar à cidade. Essa forma de habitação foia favela. 3332 ABREU, Maurício de A.. A Evolução urbana... Op. cit., 1987, p. 60.33 ABREU, Maurício de A.. "A cidade, a montanha e a floresta". In: Natureza e Sociedade no Rio de Janeiro. Rio deJaneiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1992, p. 90. Com uma outra perspectiva, mas em senti<strong>do</strong> muito próximo,cf. MARICATO, Ermínia. Op. cit., 1996, p. 38, onde se lê: “[o] aparato legal urbano, fundiário e imobiliário, que seR. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 66-86, jul.-set. 2011 79


Por que as classes mais pobres ocuparam os morros e encostas?Primeiro, porque a imensa maioria dessas localidades era, no início <strong>do</strong>século XX, inapropriada para a construção civil oficial, devi<strong>do</strong> especialmenteà carência de técnicas de construção adequadas para os padrõesarquitetônicos oficiais naquele tipo de topografia. 34 Segun<strong>do</strong>, porque aconstituição geográfica da cidade permitia que, com a ocupação popular<strong>do</strong>s morros e encostas, a força de trabalho acompanhasse o movimento<strong>do</strong> merca<strong>do</strong> de trabalho na cidade, com a expansão <strong>do</strong> centro para a zonanorte, a zona sul e os subúrbios.Iniciava-se, assim, no meio urbano carioca, um processo de produçãoinformal de moradias que se tornaria irreversível com o tempo; umprocesso à margem <strong>do</strong> direito de propriedade e <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> habitacionalregulamenta<strong>do</strong>; à margem das posturas municipais de construção civil;à margem da malha urbana e <strong>do</strong>s serviços públicos de fornecimento deágua, esgoto, gás etc.; à margem, portanto, de tu<strong>do</strong> o que se entendia,no início <strong>do</strong> século XX, como cidade. Não à toa, durante a primeira metade<strong>do</strong> século XX, as favelas foram consideradas verdadeiro “mun<strong>do</strong> rural nacidade”. 35É evidente que, junto com esse meio de produção informal no início<strong>do</strong> século passa<strong>do</strong>, coexistia um merca<strong>do</strong> volta<strong>do</strong> para a produção formalde moradias populares e que foi o grande responsável pela ocupação <strong>do</strong>ssubúrbios e de parte da zona norte. A partir de 1910, p. ex., pequenos capitaispassaram a ser investi<strong>do</strong>s na construção de conjuntos de casas paraaluguel: são as vilas e correres de casa típicos das moradias da zona nortee <strong>do</strong> subúrbio carioca.Mas, como anota o sociólogo Luiz César de Queiroz Ribeiro, já nãoencontraríamos ali os antigos habitantes <strong>do</strong>s cortiços, estalagens, casasde cômo<strong>do</strong>...O novo merca<strong>do</strong> habitacional instaura<strong>do</strong> pelas transformaçõesnas condições de produção e circulação seleciona agoradesenvolveu na segunda metade <strong>do</strong> século XIX, forneceu base para o início <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> imobiliário funda<strong>do</strong> emrelações capitalistas e também para a exclusão territorial. Os Códigos de Posturas Municipais de São Paulo (1886) eRio de Janeiro (1889) proibiram a edificação de cortiços ou ‘edificações acanhadas’ nas áreas mais centrais (...). Asexigências da propriedade legal <strong>do</strong> terreno, plantas, responsável pela obra, tu<strong>do</strong> obedecen<strong>do</strong> às normas <strong>do</strong>s códigos,afastou a massa pobre <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> formal.”34 ABREU, Maurício de A.. "A cidade..." Op. cit., 1992, p. 90.35 Sobre a gênese das favelas cariocas, as representações que dela fizeram as elites, as intervenções <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e osprimeiros recenseamentos <strong>do</strong> Poder Público, com ampla análise bibliográfica, cf. VALLADARES, Lícia <strong>do</strong> Pra<strong>do</strong>.A invenção da favela – <strong>do</strong> mito de origem à favela.com. Rio de Janeiro: FGV, 2008, p. 22-73.80R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 66-86, jul.-set. 2011


os segmentos sociais que têm acesso a este novo produto,pois exige não apenas um rendimento maior, mas, sobretu<strong>do</strong>,estável. Assim sen<strong>do</strong>, somente os trabalha<strong>do</strong>res qualifica<strong>do</strong>sda indústria e <strong>do</strong> comércio e parcelas <strong>do</strong>s funcionários públicosconstituem os inquilinos destes senhorios. Os outroscontinuarão nos “cortiços e “cômo<strong>do</strong>s” que restaram e nos“barracões de zinco” autoconstruí<strong>do</strong>s nos morros e longínquosloteamentos suburbanos (...). 36Apenas as classes mais abastadas, com poder de autofinanciamento,podiam fugir <strong>do</strong> aluguel e encomendar a pequenos empreiteirosa construção de suas casas.Na década de 1920, uma série de decretos, iniciada pelo Decreto4.403 de 1921 e somente revogada em 1928, impôs fortes restrições aoaumento <strong>do</strong>s aluguéis de imóveis. Se, por um la<strong>do</strong>, o Poder Público atendiaassim aos anseios imediatos <strong>do</strong>s inquilinos contra os aumentos abusivos<strong>do</strong>s aluguéis que vinham ocorren<strong>do</strong>, por outro, paralisava a principalfonte de produção formal de moradias no Rio de Janeiro: o pequeno capitalimobiliário emprega<strong>do</strong> na construção de vilas e correres de casa com ointuito de auferir lucro com o aluguel. Foi, portanto, uma década de fortequeda no ritmo de construção habitacional na cidade, cuja consequênciaseria o aumento da moradia de favela e, principalmente, a aceleração davenda de lotes longínquos, recentemente incorpora<strong>do</strong>s à malha urbanapelo parcelamento de chácaras e fazendas cuja produção agrícola deixarade ser lucrativa.Era o cenário ideal para a proliferação da propaganda <strong>do</strong>s lotea<strong>do</strong>resem favor da autoconstrução da moradia através da compra de lotesnesses vazios urbanos: possibilitava-se, assim, a parcelas das classes maispobres, a fuga das oscilações <strong>do</strong>s aluguéis, com o ônus da distância <strong>do</strong>local de trabalho. De qualquer mo<strong>do</strong>, foi a abertura da alternativa, especialmentepara ditas classes, da compra de terrenos distantes para aautoprodução – não raro, precária – de moradias.Por esse perío<strong>do</strong>, iniciava-se a ocupação acelerada <strong>do</strong>s imensos vaziosurbanos recém-lotea<strong>do</strong>s: Penha, Ramos, Bonsucesso, Maria da Graça,Inhaúma, Irajá, Marechal Hermes, Deo<strong>do</strong>ro, Honório Gurgel, Ricar<strong>do</strong>Albuquerque etc. 3736 RIBEIRO, Luiz César de Q. Dos Cortiços... Op. cit., 1997, p. 332.37 Sobre o assunto, cf. RIBEIRO, Luiz César de Q. Dos Cortiços... Op. cit., 1997, p. 236-248.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 66-86, jul.-set. 2011 81


O mesmo processo, já agora fortemente influencia<strong>do</strong> pelas opçõesde moradia <strong>do</strong>s migrantes que afluem à capital, se deu em relação à urbanizaçãoda maior parte da Baixada Fluminense a partir da década de 1930.As obras de saneamento <strong>do</strong>s anos de 1930; a eletrificação da Central <strong>do</strong>Brasil a partir de 1935; a instituição da tarifa ferroviária única em to<strong>do</strong> oGrande Rio; e a abertura da Avenida Brasil, que aumentava enormementea acessibilidade aos municípios periféricos, foram os quatro principaisfatores explicativos para o acelera<strong>do</strong> crescimento demográfico da BaixadaFluminense, transforman<strong>do</strong> a então zona rural em espaço urbano, muitasvezes de forma irregular e clandestina. “Desses fatores resultou uma ‘febreimobiliária’ notável, que se refletiu principalmente no retalhamentointenso <strong>do</strong>s terrenos aí existentes para a criação de loteamentos, muitos<strong>do</strong>s quais foram abertos sem qualquer aprovação oficial.” 38Foram, assim, incorpora<strong>do</strong>s à malha urbana <strong>do</strong> Rio de Janeiro osatuais municípios de Duque de Caxias, São João de Meriti, Belford Roxo,Mesquita 39 ... e, no final <strong>do</strong>s anos 1940, Nova Iguaçu, onde a produção delaranjas para exportação conseguira conter o avanço imobiliário, até a criseeconômica gerada pela 2ª Guerra Mundial. De mo<strong>do</strong> que,[n]o final <strong>do</strong>s anos quarenta a onda urbaniza<strong>do</strong>ra tinha, pois,praticamente atingi<strong>do</strong> os seus limites atuais. Os anos seguintesiriam se caracterizar mais pelo adensamento dessa frentepioneira urbana <strong>do</strong> que pelo seu avanço no espaço. O perío<strong>do</strong>1930-1950 se constituiu, assim, na fase mais marcante deexpansão física da metrópole. 40Contu<strong>do</strong>, mesmo com a abertura da alternativa de constituição damoradia através da autoprodução em lotes recém-incorpora<strong>do</strong>s à malhaurbana, até a década de 1940 ainda era no aluguel que as classes maispobres encontravam pre<strong>do</strong>minantemente o meio de produzi-la pela viaformal. Com efeito, a situação formal das moradias, em 1940, estava assimdividida: mais de 60% <strong>do</strong>s <strong>do</strong>micílios eram aluga<strong>do</strong>s, contra menos de30% próprios e menos de 10% cedi<strong>do</strong>s. 41Após a crise da década de 1920, o pequeno capital imobiliário,especializa<strong>do</strong> na construção de vilas e correres de casa nos subúrbios38 ABREU, Maurício de A.. A Evolução urbana... Op. cit., 1987, p. 109.39 O atual município de Nilópolis já havia si<strong>do</strong> praticamente to<strong>do</strong> lotea<strong>do</strong> desde o final da década de 1920.40 ABREU, Maurício de A.. A Evolução urbana... Op. cit., 1987, p. 111.41 RIBEIRO, Luiz César de Q. Dos Cortiços... Op. cit., 1997, p. 256.82R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 66-86, jul.-set. 2011


e na zona norte com o intuito de aluguel, havia recupera<strong>do</strong> o fôlego deinvestimento. A década de 1930 marcara um perío<strong>do</strong> de estancamentoda crise de moradia. No entanto, como aponta<strong>do</strong> por diversos autores,a promulgação <strong>do</strong> decreto <strong>do</strong> inquilinato de 1942, num perío<strong>do</strong> de grandecrescimento demográfico, devi<strong>do</strong> ao êxo<strong>do</strong> rural e fora de um contextode aumentos abusivos <strong>do</strong>s aluguéis, impôs longa estagnação nessetipo de produção formal da moradia (principalmente para as classes maispobres). Com efeito, tal decreto a<strong>do</strong>tou a política de congelamento <strong>do</strong>saluguéis e deixou nítida a opção governamental de incentivar a construçãode imóveis exclusivamente para a venda, inibin<strong>do</strong> enormemente oinvestimento <strong>do</strong> pequeno capital imobiliário em construção para locaçõese crian<strong>do</strong> as bases para a proliferação da construção <strong>do</strong>s “arranha-céus”de Copacabana, a cargo <strong>do</strong> grande capital de incorporação, que assume ocontrole da produção formal de moradia daí em diante. 42Criava-se a partir daí, como política pública, o princípio da casa própriae o incentivo à incorporação imobiliária.O resulta<strong>do</strong> dessa equação, agrava<strong>do</strong> consideravelmente pela destruiçãode centenas de prédios que ainda serviam de moradia popular nocentro histórico da cidade, no governo <strong>do</strong> prefeito Henrique Dodsworth(1937-1945), foi o brutal encolhimento das opções <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> formal damoradia para as classes mais pobres e a consequente explosão da produçãoinformal. Os autores que tratam <strong>do</strong> tema anotam que o númerode favelas e de loteamentos irregulares e clandestinos cresceu de formaexponencial, na já metrópole <strong>do</strong> Rio de Janeiro, na década de 1940. 43Nem as milhares de casas próprias financiadas pelos Institutos dePrevidência (IAP’s) <strong>do</strong> Governo Vargas, nem as construções de habitaçõespopulares da Fundação da Casa Popular de 1946, ou a construçãode Parques Proletários e de Conjuntos Habitacionais, onde se instalarammora<strong>do</strong>res de favelas removidas pelo Poder Público... impediram que atendência de dualização das formas de produção da moradia na metrópole<strong>do</strong> Rio de Janeiro se mostrasse inteira a quem quisesse enxergar:de um la<strong>do</strong>, a construção de moradia submetida às regras <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>formal organiza<strong>do</strong>, já agora <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> pelo capital de incorporação impul-42 Nesse senti<strong>do</strong>, RIBEIRO, Luiz César de Q. Dos Cortiços... Op. cit., 1997, p. 332; e também MORAIS, Maria da Piedadee CRUZ, Bruno de Oliveira. Housing demand, tenure choice and housing policy in Brazil. Disponível no site: http://www.wordbank.org/urban/symposium2007/papers/piedade.pdf. Acesso em 20 de abril de 2009.43 Cf., p. ex., RIBEIRO, Luiz César de Q. Dos Cortiços... Op. cit., 1997, p. 257 e ABREU, Maurício de A.. A Evoluçãourbana... Op. cit., 1987, p. 106.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 66-86, jul.-set. 2011 83


siona<strong>do</strong> pela intervenção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, acessível pre<strong>do</strong>minantemente paraelites e classes médias da população; de outro, a autoprodução da moradia,ou o desenvolvimento de merca<strong>do</strong>s não regulamenta<strong>do</strong>s (merca<strong>do</strong>sinformais), nos assentamentos informais, acessada por grande parte dasclasses mais pobres.Merece destaque o fracasso <strong>do</strong> mais estrutura<strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s os planoshabitacionais <strong>do</strong> Governo: o Sistema Financeiro de Habitação, cria<strong>do</strong>em 1964. Embora responsável por uma certa difusão da propriedade privadada moradia no Brasil, mais de 80% <strong>do</strong>s empréstimos concedi<strong>do</strong>s peloseu agente financia<strong>do</strong>r, o BNH, teve como beneficiários mutuários comrenda superior a 5 (cinco) salários mínimos, deixan<strong>do</strong> de fora, portanto, amaior parte das classes mais pobres. Daí o impressionante da<strong>do</strong> nacionalde que, para cada habitação financiada pelo SFH no Brasil, entre 1964e 1986 (foram 4,8 milhões), corresponderam três habitações irregularesedificadas em assentamentos informais (foram 15 milhões). 44Da<strong>do</strong>s específicos para a cidade <strong>do</strong> Rio de Janeiro na década de1970 e início da década de 1980, coligi<strong>do</strong>s pelo cita<strong>do</strong> Luiz César de QueirozRibeiro 45 – os quais dão uma dimensão da situação mais ampla da metrópole– mostram que o panorama nacional se reproduzia parcialmentena capital fluminense. Com efeito, entre 1974 e 1983, um perío<strong>do</strong> de expansão<strong>do</strong> parque imobiliário formal, cerca de 56% (cinquenta e seis porcento) da produção de moradias na cidade não era formalizada junto àPrefeitura. Daí concluir o autor:quan<strong>do</strong> comparamos a ‘produção real’ com os lançamentosimobiliários, expressão da produção sob o regime da incorporaçãoimobiliária, verificamos que a produção capitalista nãosomente representa uma parcela reduzida da construção da44 O trabalho cita<strong>do</strong> foi originalmente escrito em inglês, para apresentação em Congresso Internacional no qual foipremia<strong>do</strong>, e ainda não ganhou tradução. A referência <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s no original é: “loans to medium and high incomeclass absorbs the bulk of credit to self-owned house, because less than 20% of the BNH beneficiaries perceivedincome below 5 minimum wages. BNH has financed 4.8 million dwelling, from 1964 to 1986, only 25% of the incrementof the housing stock in the period, with the other 75% being produced outside formal housing finantial system,through self-help housing in peripheral settlements or slums”. MORAIS, Maria da Piedade e CRUZ, Bruno de Oliveira.Op. cit., p. 13.45 O méto<strong>do</strong> utiliza<strong>do</strong> pelo autor é inova<strong>do</strong>r e inteligente: através da análise <strong>do</strong>s arquivos da LIGHT, responsável peladistribuição elétrica na cidade <strong>do</strong> Rio de Janeiro, ele compara o número de novas ligações residenciais de fornecimentode luz com o número de “habite-se” concedi<strong>do</strong> pela Prefeitura num mesmo perío<strong>do</strong>: a diferença existenteentre os da<strong>do</strong>s comparativos, com um número muito maior de ligações novas em relação a “habite-se” concedi<strong>do</strong>s,corresponde a um percentual seguro de produção informal da moradia.84R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 66-86, jul.-set. 2011


cidade, como também ocorre uma expansão da construção‘ilegal’, concomitantemente com a da produção capitalista. 46Como se vê, mesmo a política da difusão da propriedade privadada moradia, a partir <strong>do</strong> considerável alargamento <strong>do</strong> crédito imobiliário,é irremediavelmente seletiva; o merca<strong>do</strong> – mesmo o merca<strong>do</strong> informalde aluguéis, hoje instituí<strong>do</strong> em muitos assentamentos informais da metrópolefluminense – será sempre inatingível para um certo contingentede pessoas, que, não obstante, como uma condição básica da existência,precisam morar.4 – Considerações finaisHá uma herança jurídica, fundada no des<strong>do</strong>bramento <strong>do</strong>s poderes<strong>do</strong> proprietário, e uma herança social, fundada na universalização fática<strong>do</strong> princípio de merca<strong>do</strong>, que, provavelmente, estão enraizadas na memóriasocial e na formação profissional de nossos juristas, naturalizan<strong>do</strong>a (falsa) ideia de que, mesmo atualmente, fora <strong>do</strong> marco da propriedadee fora <strong>do</strong> marco merca<strong>do</strong>lógico formal acima esboça<strong>do</strong>s, a moradia seriaconstituída ilegalmente.Ocorre que, segun<strong>do</strong> as normas jurídicas vigentes, a pretensãoexclusivista <strong>do</strong> marco proprietário e <strong>do</strong> marco merca<strong>do</strong>lógico de apropriaçãoe ocupação <strong>do</strong> território está ultrapassada. Normas de direitos humanos,normas constitucionais e infraconstitucionais brasileiras – algumasdelas citadas na introdução deste artigo – protegem a posse constituídapara fins de moradia enquanto gênero, não importan<strong>do</strong> a forma específicade que ela se revista: moradia/compra e venda/propriedade, moradia/promessa de compra e venda/propriedade, moradia/aluguel/posse des<strong>do</strong>brada<strong>do</strong>s poderes <strong>do</strong> proprietário... ou moradia de favela, ou moradiade ocupação de áreas ou prédios públicos e priva<strong>do</strong>s aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>s etc.Assim, torna-se no mínimo problemática a questão da “legalidade/ilegalidade” da moradia constituída nos assentamentos informais, umaquestão a ser, no mínimo, ponderada e judiciosamente debatida em cadacaso concreto. Daí o anacronismo de referências, ainda usuais no meiojurídico, aos assentamentos informais como “assentamentos ilegais”.46 RIBEIRO, Luiz César de Q. "Dos Cortiços..." Op. cit., 1997, p. 296-7. Para uma análise da atual distribuição damoradia na metrópole <strong>do</strong> Rio de Janeiro, inclusive <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> informal, cf. RIBEIRO, Luis César de Q.. "Segregação,desigualdade e habitação: a metrópole <strong>do</strong> Rio de Janeiro". Disponível em http://www.observatoriodasmetrópoles.ufrj.br/<strong>do</strong>wnload/anpur_luiz_cesar.pdf. Acesso em 12/07/2009.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 66-86, jul.-set. 2011 85


Afinal, que valor teria a construção de toda uma arquitetura protetiva<strong>do</strong> direito à moradia se sua aplicação ficasse adstrita às pessoas que jásão protegidas pelo estatuto da propriedade ou <strong>do</strong> inquilinato? Que valorteria se as pessoas que mais carecem de segurança jurídica da posse –os mora<strong>do</strong>res de assentamentos informais – não forem concebidas, nosprocessos judiciais concretos, como titulares <strong>do</strong> direito à moradia?O marco jurídico mu<strong>do</strong>u, mas muitas mentes continuam fixadas aIhering e Bevilaqua – e esse parece ser, definitivamente, um <strong>do</strong>s obstáculosideológicos importantes contra a aplicação <strong>do</strong> direito à moradia,pelos tribunais brasileiros, aos assentamentos informais.O desafio, no campo <strong>do</strong> Direito, está, então, em dar efetividadeà “nova” normativa jurídica nas muitas Ações Civis Públicas, Ações deReintegração de Posse e Ações Reivindicatórias instauradas no país contraos assentamentos informais, relativizan<strong>do</strong> a importância da propriedadee <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> formal na construção <strong>do</strong>s novos e complexos critérios delegalidade da moradia.86R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 66-86, jul.-set. 2011


A Decisão <strong>do</strong> STF, o PrincípioConstitucional da Igualdade ea Vedação de Discriminação.O Afeto como ParadigmaNortea<strong>do</strong>r da Legitimidadedas Decisões Judiciais.A Família Contemporâneae sua Nova Formatação.Mauro Nicolau JuniorJuiz de Direito <strong>do</strong> Tribunal de Justiça<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio de Janeiro.1. FAMÍLIASem descurar ou desconsiderar os avanços já experimenta<strong>do</strong>s naárea <strong>do</strong> Direito de Família a partir da Constituição Federal de 1988, mas jádemonstran<strong>do</strong> sinais de reação a partir da metade <strong>do</strong> século XX, a travessiapara o novo milênio traz consigo valores diferentes e uma conquistaimpossível de continuar se ignoran<strong>do</strong>:[A] família não é mais essencialmente um núcleo econômico ede reprodução, onde sempre esteve instalada a suposta superioridademasculina. Passou a ser – muito mais que isto– o espaço para o desenvolvimento <strong>do</strong> companheirismo, <strong>do</strong>amor e, acima de tu<strong>do</strong>, o núcleo forma<strong>do</strong>r da pessoa e elementofundante <strong>do</strong> próprio sujeito. (DIAS, Maria Berenice;PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de Família e o NovoCódigo <strong>Civil</strong>. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. VIII)Isso já pregava Ru<strong>do</strong>lf Von Ihering no longínquo ano de 1888. NoR. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 87


prefácio da primeira edição de seu livro A luta pelo Direito, ele afirmou:Consciência <strong>do</strong> direito, convicção jurídica são abstração daciência que o povo não compreende; a força <strong>do</strong> direito resideno sentimento, exatamente como a <strong>do</strong> amor; a razão e a inteligêncianão podem substituir o sentimento quan<strong>do</strong> este falta.(IHERING, Ru<strong>do</strong>lf Von. A luta pelo direito. Tradução JoãoVasconcelos. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 38)Esse mesmo amor – que atravessa os tempos, penetra a história,altera os destinos e determina os rumos de pessoas, povos, civilizações eimpérios –veio a ser canta<strong>do</strong> na poesia refinada de Renato Russo: “aindaque eu falasse a língua <strong>do</strong>s anjos, sem amor, eu nada seria”.Há, reconhece-se, uma imortalização na ideia de família. Mudamos costumes, mudam os homens, muda a história; só parece não mudaresta verdade:a atávica necessidade que cada um de nós sente de saber que,em algum lugar, encontra-se o seu porto e o seu refúgio, valedizer, o seio de sua família, este locus que se renova semprecomo ponto de referência central <strong>do</strong> indivíduo na sociedade;uma espécie de aspiração à solidariedade e à segurança quedificilmente pode ser substituída por qualquer outra formade convivência social. (TEPEDINO, Gustavo. Novas formas deentidades familiares: efeitos <strong>do</strong> casamento e da família nãofundada no matrimônio. Temas de direito civil. Rio de Janeiro:Renovar, 1999, p. 326)Na ideia de família, o que mais importa – a cada um de seus membrose a to<strong>do</strong>s, a um só tempo – é exatamente pertencer ao seu âmago, éestar naquele idealiza<strong>do</strong> lugar onde é possível integrar seus sentimentos,esperanças e valores, permitin<strong>do</strong> que cada um se sinta a caminho da realizaçãode seu projeto pessoal de felicidade. Isso, com toda a certeza, nãose funda em lei, vínculo sanguíneo ou sexo.Exatamente em função dessa importância, dessa relevância da famíliaremodelada, reconfigurada, repersonalizada e humanizada, não pode oPoder Judiciário afastar os olhos e deixar de considerá-la como fator preponderantena construção e na formação da personalidade <strong>do</strong> homem e naeterna busca da felicidade. Neste texto, tenta-se identificar traços que possamcaracterizar a família <strong>do</strong> futuro, partin<strong>do</strong> <strong>do</strong> princípio de que só haverá88R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


família se ela for fundada em bases sólidas de afetividade e amor.Essa realidade, no entanto, encontra obstáculos na legislação, que,a despeito de modernizada e oxigenada pela CRFB de 1988 e pelo novoCódigo <strong>Civil</strong>, ainda não se mostra suficiente para dar conta da flexibilidadedesses relacionamentos. A título ilustrativo, pode-se citar, por exemplo,a ausência de regulamentação <strong>do</strong>s direitos, deveres e consequências darelação homoafetiva, não só no que diz respeito ao patrimônio amealha<strong>do</strong>durante a constância desse vínculo, mas também à possibilidade dea<strong>do</strong>ção, fixação de alimentos e tu<strong>do</strong> o mais que deve ser objeto de deliberaçãopor ocasião da separação de um casal “casa<strong>do</strong>”.Julgamentos, não raramente, são fundamenta<strong>do</strong>s na vedação aoenriquecimento sem causa, que tem sua eficácia não na falta de causa, senãona presença de um prejuízo que vai contra os parâmetros da justiça eda moral e que lesiona, ademais, os interesses patrimoniais daqueles que,sozinhos, ou com outros, laboraram durante muitos anos para forjar umpatrimônio. (GROSS, Alfonso Oramas. El enriquecimento sin causa comofuente de obligaciones. Buenos Aires: Edino Jurídicos, 1988, p. 74).A esse respeito, parece que o ideal seria a tutela da família, não emfunção <strong>do</strong> patrimônio eventualmente amealha<strong>do</strong>, o qual pode inexistir,mas pelo simples fato de haverem, um dia, delibera<strong>do</strong> que se manteriamjuntos, sem qualquer outro anseio que não fosse viver em paz e buscar afelicidade.To<strong>do</strong>s esses aspectos legais e jurídicos sofreram a incidência de umainterpretação humanista, voltada à consecução <strong>do</strong>s objetivos comuns depessoas que estejam e se mantenham juntas voluntariamente, uma hermenêuticaatualizada e atualizável, flexível, progressista e permeável, deforma a acompanhar a evolução social, umbilicalmente conectada aosdireitos humanos e fundamentais, alguns prescritos nas ConstituiçõesFederais, outros não, mas determinantes de todas as demais normas.2. DECISÃO JUDICIALO valor socioafetivo da família é uma realidade da existência.Ela se qualifica com o transcorrer <strong>do</strong>s tempos, não é um da<strong>do</strong>e sim um construí<strong>do</strong>.(Luiz Edson Fachin)Assim, a questão da legitimidade da decisão judicial se apresentaR. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 89


com força total. Miguel Reale (REALE, Miguel. Lições preliminares <strong>do</strong>Direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 105) explica que a validadejurídica compreende os problemas da vigência, eficácia e fundamento (ouvalidade ética), que é entendi<strong>do</strong> como a adequação <strong>do</strong> direito a valores eideias aceitos pela comunidade.Jürgen Habermas analisa a questão da legitimidade fazen<strong>do</strong> derivara crença na legalidade a partir de uma crença na legitimidade que possaser justificada (Para a reconstrução <strong>do</strong> materialismo histórico. São Paulo:Brasiliense, 1983, p. 223-224), de tal forma que a legitimidade forneceriaà legalidade e à racionalidade procedimental teor moral, permitin<strong>do</strong> o entrelaçamentoda moral com o direito. Há uma distinção entre legitimidadee legitimação. Em síntese, a legitimidade se apoia no consenso sobre aadequação entre o ordenamento positivo e os valores, ao passo que alegitimação consiste no próprio processo de justificação da Constituição e<strong>do</strong>s seus princípios fundamentais.No entanto, não se pode olvidar que, numa sociedade de homenslivres, a justiça tem de estar acima de tu<strong>do</strong>; sem justiça, não há liberdade. 1A igualdade passa, então, a exercer o papel de harmonização, juntamentecom os da ponderação, razoabilidade e transparência, os quais são princípiosde legitimação que possibilitam o equilíbrio entre to<strong>do</strong>s os princípiosconstitucionais. Robert Alexy afirma que a legitimação da decisão judicialsó pode derivar da argumentação jurídica racional, que a ideia de racionalidadediscursiva (ALEXY, Robert. "Direitos Fundamentais no Esta<strong>do</strong> ConstitucionalDemocrático". in Revista de Direito Administrativo, São Paulo,n. 217, 1999, p. 55-66), ela apenas se realiza em um Esta<strong>do</strong> democráticoconstitucional, o qual, sem discurso, é impossível existir.Assim, o Poder Judiciário deverá também se mover segun<strong>do</strong> taisprincípios legitima<strong>do</strong>res de suas decisões, aban<strong>do</strong>nan<strong>do</strong> o sistema hierarquiza<strong>do</strong>de valores e a<strong>do</strong>tan<strong>do</strong> a ponderação e a proporcionalidade,segun<strong>do</strong> a igualdade formal entre os ditos valores, que devem ser subordina<strong>do</strong>saos princípios. Sobre os princípios, reformulan<strong>do</strong> velhas posiçõespositivistas, Gustav Radbruch, na sua obra Cinco minutos de filosofia <strong>do</strong>Direito, afirmou: Há, por isso, princípios fundamentais <strong>do</strong> direito que sãomais fortes que cada regra jurídica, de tal forma que uma lei que lhe contravenhaperde a sua validade (RADBRUCH, Gustav. Filosofia <strong>do</strong> Direito.1 STJ, 4 a Turma, Resp. 226.436/PR, rel. Min. Sálvio de Figueire<strong>do</strong> Teixeira, v.u. j. 28/6/2001 (Revista <strong>do</strong> SuperiorTribunal de Justiça, p. 403, 2002).90R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


Trad. Cabral de Moncada, Coimbra: Armênio Arman<strong>do</strong>, 1979, p. 189).No texto constitucional, há o ideário de uma sociedade: seus valores,suas tradições e, em teor considerável, seus sonhos. Assim foi e assimserá com todas as Constituições. Luís Roberto Barroso afirma:Os princípios constitucionais, portanto, explícitos ou não, passama ser a síntese <strong>do</strong>s valores abriga<strong>do</strong>s no ordenamento jurídico.Eles espelham a ideologia da sociedade, seus postula<strong>do</strong>sbásicos, seus fins. Os princípios dão unidade e harmoniaao sistema, integran<strong>do</strong> suas diferentes partes e atenuan<strong>do</strong>tensões normativas. ("Fundamentos teóricos e filosóficos <strong>do</strong>novo Direito Constitucional Brasileiro". Revista de Direito daProcura<strong>do</strong>ria Geral <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,n. 54, 2001 a, p. 47)Entretanto, as Constituições determinam uma espécie de rupturano imaginário coletivo. Elas assinalam a esperança no porvir e a possibilidadede sepultamento de um passa<strong>do</strong> que incomoda, algema e angustia.Ao mesmo tempo, dão origem a um futuro radiante e promissor, e incumbea to<strong>do</strong>s que atuam em consonância com as diretrizes constitucionais,notadamente as destinadas à concretização <strong>do</strong>s direitos humanos, a tarefade fazê-las presentes e atuantes, a despeito <strong>do</strong> reconhecimento de que,em países de modernidade tardia, como o Brasil, há necessidade de umaTeoria da Constituição Dirigente, que, nas palavras de Gomes Canotilho,estará morta [...] se o dirigismo constitucional for entendi<strong>do</strong> como normativismoconstitucional revolucionário, capaz de, por si só, operar transformaçõesemancipatórias. ("O Direito Constitucional na encruzilhada <strong>do</strong>milênio: de uma disciplina dirigente a uma disciplina dirigida". In: SORIA-NO, G. (Ed.). Constitución y constitucionalismo hoy. Caracas: FundaciónManuel Garcia-Pelayo, 2000, p. 217, 225).Essa abordagem, segun<strong>do</strong> Lênio Luiz Streck,pode também ser entendida como uma Teoria da ConstituinteAdequada a Países Periféricos, deven<strong>do</strong> tratar, assim, daconstrução das condições de possibilidade para o resgatedas promessas da modernidade incumpridas, as quais, comose sabe, colocam em xeque os <strong>do</strong>is pilares que sustentam opróprio Esta<strong>do</strong> Democrático de Direito. (STRECK, Lênio Luiz."Hermenêutica e concretização <strong>do</strong>s direitos fundamentais noR. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 91


Brasil". In: ANDRADE, André (Org.). A constitucionalização<strong>do</strong> Direito – A Constituição como locus da hermenêutica jurídica.Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 23)O tempo é implacável e se faz presente, mesmo em modelos atéentão aceitos como paradigmas imutáveis. No entanto, os paradigmasconcernentes aos laços familiares já não respondem aos questionamentosque se vão delinean<strong>do</strong> e que impulsionam a busca de recriar (ourefigurar) a realidade. Às vezes, a insatisfação com o que é velho é produtivae marca o efetivo encontro de soluções cria<strong>do</strong>ras, como ocorreu, porexemplo, com a bossa nova e outros estilos musicais.Importa a reflexão sobre a situação da pessoa em sociedade, comofruto e resulta<strong>do</strong> da convivência familiar, de sua aceitação ou rejeiçãopela família e pela sociedade, <strong>do</strong>s estímulos recebi<strong>do</strong>s com o intuito daformação de sua personalidade e voltan<strong>do</strong> olhar diferencia<strong>do</strong> sobre estainstituição chamada “família”, que parece vir se moldan<strong>do</strong> e se constituin<strong>do</strong>,fundamentada em parâmetros de amor, afetividade, empatia eafinidade, restan<strong>do</strong> ultrapassadas as normas legais que apenas a admitemse fundamentadas em laços de consanguinidade, a<strong>do</strong>ção, casamentoou “união estável” entre pessoas de sexos diferentes.Mantém-se a preocupação de clarificar o papel <strong>do</strong> Poder Judiciáriocomo locus ideal a pensar e interpretar o direito volta<strong>do</strong> à compreensão<strong>do</strong>s relacionamentos entre pessoas que vêm propician<strong>do</strong> e experimentan<strong>do</strong>evolução, mas sempre em busca da felicidade. Esse direito há deser democratiza<strong>do</strong> e oxigena<strong>do</strong> para aproximá-lo <strong>do</strong> cidadão.Em outras palavras, a intenção deste texto é deixar claro que, ao sedistanciar dessa realidade, a Justiça estará descumprin<strong>do</strong> sua função constitucionale, talvez, ensejan<strong>do</strong> pensar em sua desimportância como instrumentoeficaz à consecução <strong>do</strong> objetivo maior a alcançar-se – a paz social.Com esse raciocínio, chega-se à nítida conclusão de que as normaslegais existem em função da pessoa, e não vice-versa, não poden<strong>do</strong> serviro positivismo de motivo para a negação de direitos. Porém, indicar-se-átambém que há disponíveis sistemas hermenêuticos aptos e eficientes aamparar cientificamente posições e decisões que não mais se contentemcom a repetição de velhos paradigmas que já não condizem com a realidadesocial e que, da mesma forma, dão conta de afastar as críticas daquelesque veem no sistema composto por princípios possibilidade exacerbadade subjetivismo <strong>do</strong> julga<strong>do</strong>r.92R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


O tema é desenvolvi<strong>do</strong> de forma a se dar conta <strong>do</strong>s objetivos estabeleci<strong>do</strong>s,o que será feito pelo méto<strong>do</strong> desconstrutivista, sem, contu<strong>do</strong>,esquecer que, para o aprimoramento <strong>do</strong> sistema judicial de forma a torná-loverdadeiramente a caixa de ressonância <strong>do</strong>s anseios democráticosda sociedade, há muita coisa para ser desfeita, muita para ser refeita emuita para ser feita, como observou, a respeito <strong>do</strong> sistema de educaçãosuperior a professora e filósofa Marilena Chauí (CHAUÍ, Marilena. Universidade.Jornal <strong>do</strong> Commercio, Rio de Janeiro, 16 jun. 2004, Primeiro Caderno,p. A-10). 2Pelo debate acadêmico despi<strong>do</strong> de vaidades e conserva<strong>do</strong>rismosexacerba<strong>do</strong>s, pela dialética, pelo pensamento volta<strong>do</strong> à junção de esforçosoriun<strong>do</strong>s das diversas áreas <strong>do</strong> conhecimento e pela ciência, é possívelbuscar a melhor forma de tratar as relações familiares, por vezes,tão íntimas e prazerosas e, por outras, porta<strong>do</strong>ras de tantos dissabores,<strong>do</strong>res, frustrações e sentimentos de rejeição, na certeza de que, como jádito, apenas o afeto justifica sua permanência e constância.Interessa-nos, enquanto profissionais <strong>do</strong> Direito, pensar e repensarmelhor a liberdade <strong>do</strong>s sujeitos, acima de conceitosestigmatizantes e moralizantes que servem de instrumentode expropriação da cidadania. (Rodrigo da Cunha Pereira)3. A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE FAMÍLIAPodem-se distinguir três grandes perío<strong>do</strong>s na evolução da família.Numa primeira fase, a família dita “tradicional” servia, acima de tu<strong>do</strong>, paraassegurar a transmissão de um patrimônio. Os casamentos eram, então,arranja<strong>do</strong>s entre os pais, sem que se levasse em conta a dimensão afetiva<strong>do</strong>s futuros esposos, em geral uni<strong>do</strong>s em idade precoce. Por essa ótica, acélula familiar repousava em uma ordem <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> aparentemente imutávele inteiramente submetida a uma autoridade patriarcal, verdadeiratransposição da monarquia de direito divino.Numa segunda fase, a família dita “moderna” tornou-se o receptáculode uma lógica afetiva, cujo modelo se impõe entre o fim <strong>do</strong> séculoXVIII e mea<strong>do</strong> <strong>do</strong> século XX. Fundada no amor romântico, a família sancionaa reciprocidade <strong>do</strong>s sentimentos e os desejos carnais por intermédio<strong>do</strong> casamento. Mas valoriza também a divisão <strong>do</strong> trabalho entre os espo-2 Trecho <strong>do</strong> discurso de sua posse na Câmara de Ensino Superior <strong>do</strong> Conselho Nacional de Educação (CNE).R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 93


sos e, ao mesmo tempo, faz <strong>do</strong> filho um sujeito cuja educação sua naçãoé encarregada de assegurar. A atribuição da autoridade torna-se, assim,motivo de uma divisão incessante entre o Esta<strong>do</strong> e os pais, de um la<strong>do</strong>, eentre pais e mães, de outro.Finalmente, a partir da década de 1960, impôs-se a família “contemporânea”ou “pós-moderna”, que une, ao longo de uma duração relativa,<strong>do</strong>is indivíduos em busca de relações íntimas ou de realização sexual.A transmissão da autoridade vem se tornan<strong>do</strong>, então, cada vez mais problemática,à medida que divórcios, separações e recomposições conjugaisaumentam.Que esta organização familiar seja o sintoma da importância queo século XIX atribuía à vida privada, ou que esta seja imposta como objetode estu<strong>do</strong> em função desse movimento, importan<strong>do</strong> em verdadeirareviravolta que se produziu na sociedade ocidental em torno de 1850 naesfera <strong>do</strong> priva<strong>do</strong>, como sublinha Michel Perrot (PERROT, Michel. Históriada vida privada. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. (Volume IV: DaRevolução à Primeira Guerra), surgiu então uma zona obscura e malditapara se tornar o lugar de uma das experiências subjetivas mais importantesde nossa época.A psicanálise foi, de certa maneira, o paradigma <strong>do</strong> advento da famíliaafetiva contemporânea, uma vez que contemplava, ao fazer dessafamília uma estrutura psíquica universal, um mo<strong>do</strong> de relação conjugalentre os homens e as mulheres em que não repousava mais uma coerçãoligada à vontade <strong>do</strong>s pais, mas sim uma livre escolha <strong>do</strong>s filhos. O romancefamiliar freudiano supunha, com efeito, que o amor e o desejo, o sexo e apaixão estivessem inscritos no cerne da instituição <strong>do</strong> casamento.Com a evolução <strong>do</strong>s relacionamentos e, notadamente, da conquistafeminina de um espaço na sociedade que caracteriza as mulheres comopessoas, independentes <strong>do</strong>s mari<strong>do</strong>s, sem precisarem de um homem (mari<strong>do</strong>ou pai) para chancelar seus atos, em 1970, na França, foi suprimida aexpressão “chefe de família”. No Brasil, isso só ocorreu de forma significativacom a Constituição Federal de 1988, com a corroboração e a confirmaçãoda absoluta igualdade entre os cônjuges, sejam eles casa<strong>do</strong>s ou não.4. AS TRANSFORMAÇÕES DA FAMÍLIA E A ÉTICADe que ser humano estaremos falan<strong>do</strong> até o fim <strong>do</strong> século? Atualmente,vê-se, cada vez mais perto e real, o problema da clonagem <strong>do</strong> ser94R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


humano. O mun<strong>do</strong> se debate entre as possibilidades científicas potencialmenteexistentes, a ética na prática de tal conduta e os eventuais resulta<strong>do</strong>s,haven<strong>do</strong> possibilidade também da criação de figuras monstruosas econdutas absolutamente desumanas.Como exemplo, basta lembrar que, em 2002, um ginecologista italiano,Severino Antinori, ganhou celebridade ao recorrer a todas essastécnicas para que mulheres na menopausa pudessem ser mães. Ao la<strong>do</strong>de Claude Vorilhon, guru da seita Raël, Antinori foi o primeiro a preconizarexperimentos de clonagem reprodutiva. Em 2002, declarou:Confirmo que três mulheres encontram-se atualmente grávidas,duas na Rússia e a terceira em outro país, depois daimplantação in utero de embriões humanos a partir da técnicada transferência nuclear, e que os nascimentos deverãoocorrer em dezembro de 2002 ou em janeiro de 2003. (ROU-DINESCO, Elizabeth. A família em desordem. Tradução AndréTelles. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 174)Esse fato, a despeito de não ter si<strong>do</strong> confirma<strong>do</strong> real e cientificamente,atraiu as atenções e preocupações <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> to<strong>do</strong>.Durante muito tempo, assinalou François Jacob, 3 tentou-se ter prazersem filho. Com a fecundação in vitro, tiveram-se filhos sem prazer.Agora, conseguem-se fazer filhos sem prazer, nem espermatozóides. E eleindagou: será que teremos paz no mun<strong>do</strong>? (apud ROUDINESCO, 2003, p.174). Esse comentário áci<strong>do</strong> ilustra perfeitamente como foi recebida pelaopinião pública a grande questão da família <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> século XX.No início <strong>do</strong> século XXI, vivencia-se o dilema da incerteza e da complexidade,similar, talvez, àquele experimenta<strong>do</strong> no perío<strong>do</strong> romano,quan<strong>do</strong> se entendia que o homem, pela sua vontade, era o condutor eúnico propicia<strong>do</strong>r da existência de filhos, para, posteriormente, no perío<strong>do</strong>cristão, atribuir isso unicamente a Deus. Convive-se, agora, com apossibilidade de ver a criação de pessoas e filhos depender da vontadejá não mais de Deus ou <strong>do</strong>s pais, mas de terceiros, servin<strong>do</strong>-se de conhecimentoscientíficos que, obviamente, não são acessíveis à maioria dapopulação, carrean<strong>do</strong> sérios e funda<strong>do</strong>s temores quanto ao futuro e àprópria existência da raça humana como hoje ela é conhecida.3 Prêmio Nobel de Medicina em 1965, dividi<strong>do</strong> com André Lwoff e Jacques Monod, por pesquisas e descobertasrelativas às atividades regulatórias das células.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 95


A mesma preocupação é explicitada por Jürgen Habermas, quan<strong>do</strong>indaga:Devemos considerar a possibilidade, categoricamente nova,de intervir no genoma humano como um aumento de liberdade,que precisa ser normativamente regulamenta<strong>do</strong>, oucomo a autopermissão para transformações que dependemde preferências e que não precisam de nenhuma autolimitação?Somente quan<strong>do</strong> essa questão fundamental for resolvidaem favor da primeira alternativa é que se poderão discutiros limites de uma eugenia negativa e inequivocamente voltadaà eliminação de males. (HABERMAS, Jürgen. O futuro danatureza humana. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 18)Na atualidade, discute-se também a respeito da formação de famíliasindependentes <strong>do</strong> casamento, que existe no Brasil há muito tempo.Recentemente, essa formação foi oficializada pela legislação que reconheceuos vínculos <strong>do</strong> concubinato e da união estável, bem como, a despeitode ainda não ser objeto de regulamentação legislativa, aqueles gruposfamiliares (e não se poderia deixar de reconhecê-los como tal) forma<strong>do</strong>spor pessoas <strong>do</strong> mesmo sexo, como recentemente decidiu o Supremo TribunalFederal, como bem preconiza Rodrigo da Cunha Pereira:As relações amorosas entre pessoas <strong>do</strong> mesmo sexo interessamà ciência jurídica, não só porque daí podem decorrerconsequências patrimoniais e previdenciárias, mas tambémporque está liga<strong>do</strong> a isso o pilar que sustenta o Direito: Justiça.Associada à ideia de Justiça está a palavra de ordem dacontemporaneidade: cidadania. Esse ideal democrático significanão à exclusão <strong>do</strong> laço social e aprender a conviver comas diferenças. Diferenças de raça, de classes, de religião, depensamentos e de preferências sexuais diferentes das tradicionaisditas “normais”. A estigmatização das pessoas queestabelecem relação afetiva com outras <strong>do</strong> mesmo sexojá ocasionou muita injustiça ao longo da história. Não podemospermitir que o direito continue sustentan<strong>do</strong> essasinjustiças e, consequentemente, o sofrimento e a marginalização.(Texto da contracapa. In: DIAS, Maria Berenice. UniãoHomossexual – Preconceito e a justiça. 2. ed. Porto Alegre:Livraria <strong>do</strong> Advoga<strong>do</strong>, 2001)96R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


Maria Berenice Dias (União homossexual: o preconceito & justiça.2ª ed. Porto Alegre: Livraria <strong>do</strong> Advoga<strong>do</strong>, 2001), quan<strong>do</strong> comenta o fatode que o novo Código <strong>Civil</strong> não trata da questão da união de pessoas <strong>do</strong>mesmo sexo, nem no âmbito <strong>do</strong> Direito de Família, nem no das obrigações,esclarece que Miguel Reale ("Visão geral <strong>do</strong> projeto de Código <strong>Civil</strong>".Revista <strong>do</strong>s Tribunais, São Paulo, v. 752, p. 26, jun. 1998), relator <strong>do</strong> projeto,rebateu as críticas recebidas pela omissão, chaman<strong>do</strong>-as de “apressadas”e “absolutamente sem senti<strong>do</strong>”. Reale se justifica dizen<strong>do</strong> que essamatéria não é de Direito <strong>Civil</strong>, mas sim de Direito Constitucional, porquea Constituição criou a união estável entre um homem e uma mulher. Sustentaque, para cunhar-se a união estável <strong>do</strong>s homossexuais, em primeirolugar é preciso mudar a Constituição. Não era essa a tarefa da comissão deredação final <strong>do</strong> Código <strong>Civil</strong> e muito menos <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong>, concluiu Reale.Em 18 de agosto de 2001, a Câmara <strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s aprovou o parecer<strong>do</strong> relator, deputa<strong>do</strong> Ricar<strong>do</strong> Fiúza, que, no relatório final, no item “Algumasquestões não tratadas”, discorre sobre “A questão da união civil”e justifica a sua ausência alegan<strong>do</strong> impossibilidade técnica. Diz ele que énotório que as relações afetivas entre pessoas <strong>do</strong> mesmo sexo provocamconflitos religiosos, diante de usos e costumes longamente sedimenta<strong>do</strong>s,muitas vezes apenas para efeitos públicos, ou seja, o legisla<strong>do</strong>r não sedeu conta de viver num Esta<strong>do</strong> Laico e, da mesma forma, não se dispôsa enfrentar as evidentes reações religiosas que se seguiriam, preferin<strong>do</strong>,então, simplesmente ignorar as forças de um movimento social crescentea cada dia.Certamente ainda com grande influência da escolástica, 4 é veda<strong>do</strong>às pessoas que sejam felizes se o preço dessa felicidade significar o mínimoarranhão aos seus cânones religiosos, usos e costumes longamentesedimenta<strong>do</strong>s, muitas vezes apenas para efeitos públicos. É preciso, todavia,que se afastem as posturas orto<strong>do</strong>xas e discriminatórias. Tambémé preciso atentar que, em to<strong>do</strong> o capítulo <strong>do</strong> Direito de Família, o novoCódigo <strong>Civil</strong> dá especial ênfase às relações afetivas. Nesse caso, dever-seiareconhecer que a busca da felicidade entre duas pessoas extrapolou a4 A escolástica representa o último perío<strong>do</strong> <strong>do</strong> pensamento cristão, que vai <strong>do</strong> começo <strong>do</strong> século IX até o fim <strong>do</strong> séculoXVI, isto é, da constituição <strong>do</strong> sacro romano império bárbaro ao fim da Idade Média, que se assinala geralmentecom a descoberta da América (1492). Chama-se escolástica porque era a filosofia ensinada nas escolas da época.Os mestres, por sua vez, eram chama<strong>do</strong>s de escolásticos. As matérias ensinadas nas escolas medievais eram representadaspelas chamadas artes liberais, divididas em trívio (gramática, retórica e dialética) e quadrívio (aritmética,geometria, astronomia e música). A escolástica surge, historicamente, <strong>do</strong> especial desenvolvimento da dialética.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 97


igidez e o engessamento <strong>do</strong> direito positivo, até porque a ConstituiçãoFederal veda terminantemente qualquer espécie de preconceito em razãode origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação(art. 3 o , inciso IV).Depois de declarar que o Projeto de Lei 1.151, de 1995, de autoriada então deputada Marta Suplicy, no mínimo vem ao encontro de umarealidade fenomenológica que não é despercebida pelos opera<strong>do</strong>res <strong>do</strong>Direito, afirma Miguel Reale que pelo menos a questão patrimonial entreparceiros civis deveria ter si<strong>do</strong> disciplinada no Direito das Sucessões.Conclui Maria Berenice Dias:Se duas pessoas passam a ter vida em comum, cumprin<strong>do</strong> osdeveres de assistência mútua, em verdadeiro convívio estávelcaracteriza<strong>do</strong> pelo amor e respeito recíprocos, com o objetode construir uma família, tal vínculo, independentemente <strong>do</strong>sexo de seus participantes, constitui uma entidade familiar,nada impedin<strong>do</strong> que seja reconheci<strong>do</strong> o direito à a<strong>do</strong>ção pelopar. Ante tais colocações, em apertada síntese, pode-se dizer:o Direito deve acompanhar o momento social. Assim como asociedade não é estática, estan<strong>do</strong> em constante transformação,o Direito não pode ficar estático à espera da lei. Se o fatosocial se antepõe ao jurídico, e a jurisprudência antecede alei, devem os juízes ter coragem de quebrar preconceitos enão ter me<strong>do</strong> de fazer justiça. Nada justifica a verdadeiraaversão em se fazer analogia com o casamento ou com aunião estável, e não aplicar a mesma legislação aos relacionamentoshomoafetivos. Conforme bem assevera Rodrigoda Cunha Pereira: Interessa-nos, enquanto profissionais<strong>do</strong> Direito, pensar e repensar melhor a liberdade <strong>do</strong>s sujeitosacima de conceitos estigmatizantes e moralizantes que servemde instrumento de expropriação da cidadania. (Uniãohomossexual: o preconceito & justiça. 2ª ed. Porto Alegre:Livraria <strong>do</strong> Advoga<strong>do</strong>, 2001. p. 176)Não se pode desconsiderar que, durante muito tempo, o comportamentohomossexual foi considera<strong>do</strong> <strong>do</strong>ença, perversão, devassidão edesvio de conduta, que conduzia à obscuridade e à clandestinidade, fatoresque culminaram com a dizimação de toda uma geração nascida entre98R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


1945 e 1960, pelo advento abrupto e violento da Aids, no exato momentoem que essa geração acabava de conquistar sua liberdade. 5Surgiu, então, de forma bem mais massificada, sobretu<strong>do</strong> para oshomens, o desejo de gerar e de transmitir uma história. Sob esse aspecto,os homossexuais adaptaram-se à conserva<strong>do</strong>ra ideologia familiar de suaépoca: uma estrutura desconstruída, medicalizada, esfacelada, periciada,entregue ao poder materno. Além disso, essa estrutura já escapara àantiga autoridade patriarcal que se buscava – no entanto, em vão – nãorevalorizar, mas restabelecer, fazen<strong>do</strong> com que ela passasse pela quintessênciade uma ordem simbólica imutável.A respeito desse relacionamento homossexual ou homoerótico e<strong>do</strong> projeto de lei existente no Congresso Nacional, de autoria da entãodeputada Marta Suplicy, assevera o ínclito magistra<strong>do</strong> fluminense AntônioCarlos Esteves Torres (TORRES, Antônio Carlos Esteves. União <strong>Civil</strong> – OProjeto. 2003. Inédito):[...] a matéria é excessivamente complexa para permitir conclusõesdefinitivas e lineares. Por enquanto, não será ousa<strong>do</strong>se trouxermos, a título de subtotal, os seguintes da<strong>do</strong>s: a)enquanto estiver nas entrelinhas da Constituição o conceitoorto<strong>do</strong>xo de casamento, união entre seres de sexo diferente,o projeto não terá vida. É absolutamente inconstitucional; b)a hipótese, além de ter de suplantar o impeditivo constitucional,em termos biossociológicos, está longe de ser conceituadacom clareza indiscutível; c) os temores expostos nasjustificativas da proposta bem poderiam ser debela<strong>do</strong>s viade procedimentos já existentes para a preservação <strong>do</strong>s interessescomuns <strong>do</strong>s parceiros, testamento, participação nasaquisições, <strong>do</strong>ações, para efeitos patrimoniais, sen<strong>do</strong> certoque, apenas com a atuação no setor moral, psicológico, social,podem-se obter resulta<strong>do</strong>s no setor da aceitação e <strong>do</strong>respeito, ainda longe, a nosso ver, a possibilidade de, via legislativasomente, produzirem-se efeitos preserva<strong>do</strong>res dessesobjetivos.5 Em relação ao perío<strong>do</strong> de 1982 a 2002, contabilizaram-se 80 mil mortos na França e 25 milhões no mun<strong>do</strong>.Ver POLLAK, Michel. Les homosexuels et le sida. Paris: Métailié, 1988 e POMMIER, François. La psychanalyse àl´epreuve du sida. Paris: Aubier, 1996.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 99


Costuma-se objetar que a relação homoerótica não se constitui emespécie de união estável, pois a regra constitucional e as Leis 8.971/94 e9.278/96 exigem a diversidade de sexo.Nesse senti<strong>do</strong>, argumenta-se que a relação sexual entre duas pessoascapazes <strong>do</strong> mesmo sexo é um irrelevante jurídico, pois a relaçãohomossexual voluntária em si não interessa ao Direito, em linha de princípio,já que a opção e a prática são aspectos <strong>do</strong> exercício <strong>do</strong> direito àintimidade, garantia constitucional de to<strong>do</strong> o indivíduo (art. 5 o , X), escolhaque não deve gerar qualquer discriminação, em vista <strong>do</strong> preceito daisonomia.O amor e o afeto independem de sexo, cor ou raça. É preciso quese enfrente o problema e se encare uma realidade que bate à portada hodiernidade. Mesmo que a situação não se enquadre nos moldes darelação estável padronizada, não é possível abdicar de atribuir à união homossexualos efeitos e a natureza dela, até porque a Constituição Federalveda, de forma categórica e definitiva, qualquer forma de preconceito, 6além <strong>do</strong> fato de a Lei 8.081, de 21 de setembro de 1990, ter estabeleci<strong>do</strong>que quaisquer atos discriminatórios ou de preconceito em relação araça, cor, religião, etnia ou procedência nacional, veicula<strong>do</strong>s pelos meiosde comunicação ou por publicação de qualquer natureza, são considera<strong>do</strong>scrime.Assim, como se pode aceitar o gritante preconceito – ainda estabeleci<strong>do</strong>,exerci<strong>do</strong> e defendi<strong>do</strong> de forma majoritária – contra a preferênciasexual, que, muitas vezes, sequer opção existe? Talvez seja uma normaconstitucional inconstitucional, pois quan<strong>do</strong> se limitam o casamento e aunião estável a pessoas de sexos diferentes, a Constituição Federal voltasecontra o princípio nortea<strong>do</strong>r insculpi<strong>do</strong> no artigo 3 o , inciso IV.Cabe destacar, desde logo, que a permanência de uma Constituiçãodepende, em primeira linha, da medida em que ela for adequada à missãointegra<strong>do</strong>ra que lhe cabe diante da comunidade que ela mesma constitui.Os princípios informam to<strong>do</strong> o sistema jurídico. Eles são normas, e as normascompreendem as regras e os princípios.Os princípios, além de atuarem normativamente, podem ser relevantes,em caso de conflito, para um determina<strong>do</strong> problema legal, mas6 No artigo 3 o da Constituição Federal diz-se: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa <strong>do</strong> Brasil:[...] IV – promover o bem de to<strong>do</strong>s, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formasde discriminação”.100R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


não estipulam uma solução particular. Na feliz síntese <strong>do</strong> professor Diogode Figueire<strong>do</strong> Moreira Neto (Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro:Forense, 1998, p. 61), os princípios são abstrações de segun<strong>do</strong> grau, normasde normas, em que se buscam exprimir proposições comuns a umdetermina<strong>do</strong> sistema de leis. Eles dispõem de maior grau de abstração emenor densidade normativa. “Como enuncia<strong>do</strong>s genéricos que são, estãoa meio passo entre os valores e as normas na escala da concretização <strong>do</strong>Direito e com eles não se confundem”, observa Ricar<strong>do</strong> Lobo Torres (Cursode Direito Financeiro e Tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 79).Não resta alternativa senão recorrer à técnica da ponderação de valores,na busca de compor esses pontos de tensão principiológica. Luís RobertoBarroso (Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva,p. 185) entende que se trata de uma linha de raciocínio que procuraidentificar o bem jurídico tutela<strong>do</strong> por cada uma das normas, associá-lo adetermina<strong>do</strong> valor, isto é, ao princípio constitucional ao qual se reconduz,para, então, traçar o âmbito de incidência de cada norma, sempre ten<strong>do</strong>como referências máximas as decisões fundamentais <strong>do</strong> constituinte.Essa técnica faz-se mister quan<strong>do</strong>, de fato, estiver caracterizada acolisão entre, pelo menos, <strong>do</strong>is princípios constitucionais incidentes sobreum caso concreto. Há de prevalecer aquele de maior peso para a solução<strong>do</strong> caso concreto, tema que será mais bem desenvolvi<strong>do</strong> nos próximoscapítulos.5. O SEXO E A HOMOAFETIVIDADENas culturas ocidentais contemporâneas, a homossexualidadetem si<strong>do</strong>, até então, a marca de um estigma, pois se relegam à marginalidadeaqueles que não têm sua orientação sexual de acor<strong>do</strong> com padrõesde moralidade <strong>do</strong>minantes. Isso não diz respeito apenas à homossexualidadee à heterossexualidade, mas a qualquer comportamento sexualdefini<strong>do</strong> como anormal, como se isso pudesse ser controla<strong>do</strong> e coloca<strong>do</strong>dentro de um padrão normal (PEREIRA, Rodrigo, 1997, Direito de família:uma abordagem psicanalítica. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, p. 43) oucomo se pudesse afirmar que existem padrões de normalidade legítimos.Ao se manter tais posicionamentos, escancaradamente preconceituosos,estar-se-á relegan<strong>do</strong> a Constituição Federal a uma norma meramenteprogramática, sem eficácia, aplicabilidade e, em última instância,sem valor, pois, desse mo<strong>do</strong>, é desvinculada e desconectada da realidadeR. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 101


e de valores sociais latentes e presentes. Como assinala Hermann Heller,“se se prescinde da normalidade social positivamente valorada, a Constituição,como mera formação normativa de senti<strong>do</strong>, diz sempre muito pouco”(Teoria del Esta<strong>do</strong>. 4ª ed. Tradução e prólogo de Gerhart Niemeyer.Cidade <strong>do</strong> México: Fon<strong>do</strong> de Cultura Económica, 1961, p. 276). O sistemajurídico pode ser um sistema de exclusão, já que a atribuição de determinadaposição jurídica depende <strong>do</strong> ingresso da pessoa no universo detitularidades que o sistema define. Opera-se a exclusão quan<strong>do</strong> se negamàs pessoas ou situações as portas de entrada da moldura das titularidadesde direitos e deveres. Diz Luiz Edson Fachin:Tal negativa, emergente de força preconceituosa <strong>do</strong>s valoresculturais <strong>do</strong>minantes em cada época, alicerça-se em juízode valor depreciativo, historicamente atrasa<strong>do</strong> e equivoca<strong>do</strong>,mas este medievo jurídico deve sucumbir à visão maisabrangente da realidade, examinan<strong>do</strong> e debaten<strong>do</strong> os diversosaspectos que emanam das parcerias de convívio eafeto. ("Aspectos jurídicos da união de pessoas <strong>do</strong> mesmosexo". In: BARRETO, Vicente (Org.). A nova família: problemase perspectivas. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 114)Com fundamento nesse afeto, alça<strong>do</strong> e reconheci<strong>do</strong>, agora, comoelemento jurídico importante no relacionamento entre pessoas, a EgrégiaCorrege<strong>do</strong>ria Geral da Justiça <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio Grande <strong>do</strong> Sul, pormeio <strong>do</strong> Provimento 6/4 de 17 de fevereiro de 2004, acrescentou umparágrafo ao artigo 215 da Consolidação Normativa Notarial Registral,para prever que:As pessoas plenamente capazes, independente da identidadeou posição de sexo, que vivam uma relação de fato dura<strong>do</strong>ura,em comunhão afetiva, com ou sem compromisso patrimonial,poderão registrar <strong>do</strong>cumentos que digam respeito atal relação. As pessoas que pretendam constituir uma uniãoafetiva na forma anteriormente referida também poderãoregistrar os <strong>do</strong>cumentos que a isso digam respeito. (Sem destaqueno original)Sobre essa inovação, Maria Berenice Dias (Afeto registra<strong>do</strong>. Disponívelem: .Acesso em: 24 maio 2004) afirma que as serventias vinham se recusan<strong>do</strong>102R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


a proceder ao registro de <strong>do</strong>cumentos declaratórios dessas relações, sobalegação da ausência de lei que as previsse. Consideran<strong>do</strong> tal procedimentocomo discriminatório, a autora afirma que a “negativa, às claras,encobria postura preconceituosa e discriminatória, já que não há ilicitudeou ilegalidade nas uniões que agora são nominadas de homoafetivas”. Eela conclui:A omissão <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> havia leva<strong>do</strong> as organizações de defesada livre orientação sexual a proceder ao registro das uniõesestáveis homossexuais em livro próprio da entidade. O fatode tais registros carecerem de reconhecimento jurídico nãoimpediu que uma infinidade de casais buscasse consolidarsuas uniões.Resgata assim o Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio Grande <strong>do</strong> Sul sua função registrale certificatória <strong>do</strong>s atos e contratos firma<strong>do</strong>s peloscidadãos, garantin<strong>do</strong> o direito fundamental à obtenção decertidões, o qual tem assento constitucional (CRFB, art. 5 o ,inc. XXXIV, b).Não bastasse isso, o fato de um provimento <strong>do</strong> Poder Judiciáriochamar de união estável a relação afetiva entre pessoas<strong>do</strong> mesmo sexo é um importante marco na luta pelavisibilidade <strong>do</strong> afeto que – como qualquer outro – não deveter vergonha de dizer seu nome.Porém, esse é um ato isola<strong>do</strong>, que se justifica pelo pioneirismo játradicional que vem <strong>do</strong>s pampas e se alastra, com algum custo, para as demaisregiões <strong>do</strong> país, impulsiona<strong>do</strong> pela força e perseverança <strong>do</strong> “minuano”.Nesse ponto, já não se está afirman<strong>do</strong> apenas a exclusão de pessoasem razão de terem procedimentos, comportamentos e opções sexuaisque apenas a elas dizem respeito, mas negan<strong>do</strong> vigência à própria ConstituiçãoFederal, transforman<strong>do</strong>-a em papelucho despi<strong>do</strong> de significa<strong>do</strong>,senti<strong>do</strong> e força motriz de construção e progresso social.No entanto, o Desembarga<strong>do</strong>r Rui Portanova, <strong>do</strong> Tribunal de Justiça<strong>do</strong> Rio Grande <strong>do</strong> Sul, argutamente observou que “o sistema jurídicocomo um to<strong>do</strong> permite a a<strong>do</strong>ção por homossexuais” (Família possível:desembarga<strong>do</strong>r defende a<strong>do</strong>ção de crianças por homossexuais. Disponívelem: . Acesso em: 22 maioR. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 103


2004). Segun<strong>do</strong> ele, não há norma que proíba homossexuais de a<strong>do</strong>taremuma criança, o que é juridicamente possível. Para pessoas solteiras, nãohá problema algum, apenas quanto à idade (de acor<strong>do</strong> com o artigo 1.618<strong>do</strong> novo Código <strong>Civil</strong>, somente os maiores de 18 anos podem a<strong>do</strong>tar umacriança). Também em relação a casais de homossexuais não existe normaalguma, de cunho permissivo ou proibitivo, a respeito. Não há, portanto,fundamento para a vedação que não seja a forma <strong>do</strong> preconceito.Segun<strong>do</strong> Portanova, quan<strong>do</strong> há uma lacuna na lei, o juiz deve decidirusan<strong>do</strong> analogia. Alguns magistra<strong>do</strong>s consideram que o mais próximode uma união de homossexuais seria a sociedade de fato. Mas, para odesembarga<strong>do</strong>r, como é uma relação que envolve amor, o que seria maissemelhante na lei é a união estável.Conforme observa o desembarga<strong>do</strong>r, o conceito de união estávelviabiliza juridicamente esse tipo de a<strong>do</strong>ção. O artigo 1.622 <strong>do</strong> novo Código<strong>Civil</strong> dispõe que “ninguém pode ser a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> por duas pessoas, salvose forem mari<strong>do</strong> e mulher ou se viverem em união estável”. O artigo aindalembra que o direito não é composto somente pelas leis, “o direito é fato,valor e norma, é a conjugação dessas três dimensões”. Para Portanova, nocaso da a<strong>do</strong>ção, o que deve sempre prevalecer é o princípio <strong>do</strong> melhorinteresse da criança.O assunto ainda carece de análise e estu<strong>do</strong> mais aprofunda<strong>do</strong>s,principalmente sob o enfoque da sociologia, da psicologia e <strong>do</strong> direito.Mas há de se louvar a coragem da afirmação de Portanova, ainda que emsede acadêmica, de se buscar a aproximação da Justiça com a realidade<strong>do</strong>s fatos da sociedade e <strong>do</strong> respeito ao princípio fundamental da nãodiscriminação.Busca-se, o que parece váli<strong>do</strong> e legítimo, a sociologização da normaconstitucional, da qual, ensina José Afonso da Silva (Aplicabilidadedas normas constitucionais. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 23),Lassale é seu exímio representante. Quan<strong>do</strong> este questiona sobre a verdadeiraessência <strong>do</strong> conceito de Constituição, conclui que o conceito jurídico,normativo, apenas diz como se formam as constituições, o que fazem.Entretanto, não diz o que uma Constituição é, não dá critérios parareconhecê-la exterior e juridicamente e não diz qual é o conceito de todaConstituição, a essência constitucional.Para ele [Lassale], a constituição de um país é, em essência, asoma <strong>do</strong>s fatores reais <strong>do</strong> poder que regem nesse país e esses104R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


fatores reais <strong>do</strong> poder constituem a força ativa e eficaz queinforma todas as leis e instituições jurídicas da sociedade emquestão, fazen<strong>do</strong> com que não possam ser, em substância,mais que tal e como são. (SILVA, José Afonso, 1998, p. 23)Os valores da realidade <strong>do</strong> poder que “emana <strong>do</strong> povo” 7 convertem-seem fatores jurídicos quan<strong>do</strong> são transporta<strong>do</strong>s para uma folhade papel. A partir desse momento, deixam a situação de simples fatoresou valores reais de poder e assumem feição de direito, de instituiçõesjurídicas. Para Lassale, “relacionam-se as duas constituições de um país:a real e a efetiva, formada pela soma <strong>do</strong>s fatores reais e efetivos queregem na sociedade, e a escrita, a que, para distinguir daquela, ele denominafolha de papel” (LASSALE, Ferdinand. Que es una constitución?.Tradução W. Roces. Buenos Aires: Siglo Veinte, 1946, p. 62). “Esta – aconstituição escrita – só é boa e durável quan<strong>do</strong> corresponde à constituiçãoreal” (SILVA, 1998, p. 32), àquela que tem suas raízes nos fatoresde poder que regem no país.Em países nos quais a Constituição escrita não corresponde à real,instala-se inevitavelmente um conflito que não há maneira de se mantersimula<strong>do</strong>. Ce<strong>do</strong> ou tarde, a Constituição escrita, a folha de papel, tem necessariamenteque sucumbir ante o empuxo da Constituição real, das verdadeirasforças vigentes no país. Esse conflito irredutível importará sempreo desrespeito e o descumprimento da Constituição escrita e somentese resolverá se esta for modificada para ajustar-se à Constituição real ou,então, mediante a transformação <strong>do</strong>s fatores reais <strong>do</strong> poder.Rechaçan<strong>do</strong> essa lógica vertida no modismo apressa<strong>do</strong> e aprofundan<strong>do</strong>um debate que não seja circunstancial e passageiro, reúnem-semilitantes da realidade, to<strong>do</strong>s aqueles toma<strong>do</strong>s por uma densa inquietude,os mesmos que, to<strong>do</strong>s os dias, entre a angústia e a esperança,celebram um certo fim e, ao mesmo tempo, uma espécie de eterno recomeço.Esses militantes proferem palavras que não conseguem encontrarcom nitidez o ponto onde as trevas se separam da luz e repetem a liçãosecular para ficar apenas na tentativa de aclarar, quanto muito, pequenasobscuridades (COSTA, Jurandir Freire. "Impasses da ética naturalista: Gidee o homoerotismo". In. NOVAES, Adauto (Org.). Ética. São Paulo: Compa-7 Palavras constantes no parágrafo único <strong>do</strong> artigo 1 o da Constituição Federal.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 105


nhia das Letras, 1992).Os limites podem ser morais, éticos, jurídicos e, evidentemente, religiosos.Moral, ética e religião, não estan<strong>do</strong> dissociadas, dizem respeito aum conjunto de concepções atribuídas a um grupo social ou a um de seussegmentos. No tocante à inseminação artificial, por exemplo, nem todasas religiões têm a mesma opinião sobre o assunto.A problemática <strong>do</strong> sexo <strong>do</strong>s indivíduos é um questionamento latentee discuti<strong>do</strong> no Brasil há algum tempo, até com sérias divergências jurisprudenciais.Durante longo tempo, trata<strong>do</strong> sob os aspectos anatômicos,parecia não apresentar problemas. Atualmente, a medicina considera outrosaspectos, deven<strong>do</strong>-se ao sexo anatômico acrescer o sexo genético oucromossômico, o sexo hormonal e o sexo psicológico ou psicossocial, queé a consciência <strong>do</strong> sujeito de pertencer a um sexo que é seu e determinarseu comportamento social. 8O transexualismo se caracteriza por uma contradição entre o sexofísico aparente, determina<strong>do</strong> geneticamente, e o sexo psicológico. Não seconfunde, portanto, com o intersexualismo – constituí<strong>do</strong> por anomaliasfísicas, hormonais ou genéticas que conduzem a um sexo falso – ou com ohomossexualismo. Nesse senti<strong>do</strong>, esclarece Antônio Chaves quea definição <strong>do</strong> sexo de um indivíduo obedece a critérios estabeleci<strong>do</strong>s,que inclui o sexo genético que irá informar a constituiçãocromossômica, mas que além disso há influências psicológicas,socioculturais e ambientais que da mesma forma sãoresponsáveis não só pelo estabelecimento <strong>do</strong> seu sexo de criação,como pelo seu comportamento e identificação sexuais,concluin<strong>do</strong> que a formação e a determinação <strong>do</strong> sexo de umindivíduo normal é fruto de inúmeros fatores e determinantesque constituem um universo inexplora<strong>do</strong>. (Direito à vida e aopróprio corpo. São Paulo: Saraiva, 1985, p. 128)Tem-se, por vezes, a tendência de associar a ética ao comportamentosexual. A ética aplicar-se-ia essencialmente ao comportamentosexual, deixan<strong>do</strong> à Justiça o cuida<strong>do</strong> de gerir os outros tantos aspectos<strong>do</strong> comportamento humano. Simplifican<strong>do</strong>, se a ética só se aplica à se-8 Nesse senti<strong>do</strong>, a Resolução 1.492/97 <strong>do</strong> Conselho Federal de Medicina, que autoriza, a título experimental, a realizaçãode cirurgia de transgenitalização como tratamento <strong>do</strong>s casos de transexualismo, inclui, entre outros critériosmínimos da definição de transexual, o “desconforto com o sexo anatômico natural” e o desejo expresso de eliminargenitais, perder as características primárias e secundárias <strong>do</strong> próprio sexo e ganhar as <strong>do</strong> sexo oposto.106R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


xualidade, e se ela é a única ética existente, haveria então uma éticasexual sui generis. Freudianos e não freudianos sugerem que a personalidadesexual é o centro da personalidade moral e que a maneira comopercebemos nosso parceiro sexual e como nos comportarmos para comele reflete e influencia nossa percepção e nosso comportamento geralem relação ao outro.Tomemos, como exemplo, o coito heterossexual acompanha<strong>do</strong> demeios contraceptivos, tais como o diafragma ou o preservativo. Pode-sealegar, com argumentos kantianos, o que fez, em 1960, Karol Wojtyla,Papa João Paulo II, em Amor e responsabilidade (WOJTYLA, Karol. Amore responsabilidade. Lisboa: Rei <strong>do</strong>s Livros, 1999, p. 45), que o ato sexualcom contracepção é um mal moral, pois, como busca unicamente o prazer(e, assim, reduz o parceiro a um meio), ele é degradante e leva à exploração.Portanto, o ato sexual com contracepção, que, por essas razões, é ummal, não o é em virtude de seu caráter sexual. Com efeito, se Tomás deAquino tem razão ao afirmar que o fim natural da emissão de esperma éa procriação, depreende-se de tal afirmação que o ato sexual com contracepçãoé imoral porque contraria o propósito da natureza.O mal provém <strong>do</strong> fato de tratar-se de uma atividade sexualoposta ao fim natural da sexualidade, e não da atividade sexualpropriamente dita. Da mesma forma, o estupro é geralmentecondena<strong>do</strong> por comportar aspectos condenáveis, taiscomo ameaças e constrangimentos. Numerosos exemplos similarespermitem chegar à seguinte conclusão: Não é nuncao fato de um ato ser sexual que o torna um mal ou que acentuaseu caráter moral, se o ato é imoral por outros aspectos.(SOBLE, Alan. "Sexualidade". In: CANTO-SPERBER, Monique(Org.). Dicionário de ética e filosofia moral. Tradução MariaVitória Kesler. São Leopol<strong>do</strong>, RS: Unisinos, 2003, p. 577).Mas ainda que de forma, por assim dizer, recatada, o próprio Papa JoãoPaulo II exorta, em sua encíclica Esplen<strong>do</strong>r da Verdade, algumas tendênciasda teologia moral hodierna. Sob a influência das correntes subjetivistas eindividualistas agora lembradas, essas tendências interpretam, de um mo<strong>do</strong>novo, a relação da liberdade com a lei moral, com a natureza humana e coma consciência e propõem critérios inova<strong>do</strong>res de avaliação moral <strong>do</strong>s atos.São tendências que, em sua verdade, coincidem no fato de atenuar ou mesmonegar a dependência da liberdade da verdade (GARCEZ FILHO, Martinho.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 107


Direito de Família. 2ª ed. São Paulo: Paulinas, 1932. (V. 1. p. 59).Assim, a situação ainda está longe de ser suficientemente esclarecida.Faz-se necessário o estu<strong>do</strong> mais aprofunda<strong>do</strong>, o debate menosapaixona<strong>do</strong> e mais aberto a horizontes ainda não percorri<strong>do</strong>s, o descortinarde teses, teorias, reflexões ainda muito incipientes, sem descurarda ética que há de prevalecer. Por outro la<strong>do</strong>, é preciso ter cuida<strong>do</strong>, a fimde que o argumento ético não passe a ser o instrumento de moralizaçãoanticientífico.Com esse objetivo, avança-se à verificação real <strong>do</strong> panorama legalconstitucionalda família brasileira, sua função e importância a partir deuma abordagem construtivo-desconstrutivista, alçan<strong>do</strong> a pessoa comovalor-fonte fundamental <strong>do</strong> Direito e de to<strong>do</strong> o sistema jurídico nortea<strong>do</strong>à concretização e à tutela de seus direitos fundamentais consagra<strong>do</strong>sconstitucionalmente.Nessa linha de raciocínio, com acentuada percepção, Heloisa HelenaBarboza questionou o novo papel da família no mun<strong>do</strong> contemporâneo:Qual é a função atual da família? Se é certo que ela é a baseda sociedade, qual é o papel que a ela cumpre desempenhar,já que não tem mais funções precipuamente religiosa,econômica ou política como outrora? Qual é a base quese deve dar à comunidade familiar para que alcance a tãoalmejada estabilidade, tornan<strong>do</strong>-a dura<strong>do</strong>ura? Devemosreunir todas essas funções ou simplesmente considerar oseu verdadeiro e talvez único fundamento: a comunhão deafetos? (BARBOZA, Heloísa Helena. "Novas tendências <strong>do</strong> direitode família". Revista da Faculdade de Direito da Uerj, Riode Janeiro, n. 2, 1994, p. 232)A família só continuará existin<strong>do</strong> se fundamentada no princípioda afetividade e <strong>do</strong> amor, posto que os valores que anteriormente a engessavam,aprisionavam e algemavam só produziram o nefasto efeito decausar desagregação, lides, violência e desassossego. Se não houvesseuma ruptura definitiva com elos ultrapassa<strong>do</strong>s e de nenhuma significaçãoàs pessoas, seu fim estaria muito próximo.Nesse senti<strong>do</strong>, as estatísticas demonstram o decréscimo esmaga<strong>do</strong>r<strong>do</strong> número de casamentos, ao passo que se avolumam as separaçõese os divórcios. É inerente à natureza humana a busca da liberdade, nota-108R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


damente quan<strong>do</strong> algo a está sufocan<strong>do</strong> e aprisionan<strong>do</strong>. Às vezes, o custodessa liberdade pode ser a própria vida, como indicam os muitos suicídiose homicídios ditos “passionais” aos quais se assiste no decorrer da históriapolicial e judiciária.As relações familiares, portanto, passaram a ser fundamentadas emrazão da dignidade de cada partícipe. A efetividade das normas constitucionaisimplica a defesa das instituições sociais que cumprem o seu papelmaior. A dignidade da pessoa humana, colocada no ápice <strong>do</strong> ordenamentojurídico, encontra na família o solo apropria<strong>do</strong> para o enraizamento e desenvolvimento,daí a ordem constitucional dirigida ao Esta<strong>do</strong> no senti<strong>do</strong>de dar especial e efetiva proteção à família, independentemente de suaespécie. Propõe-se, por intermédio da repersonalização das entidadesfamiliares, preservar e desenvolver o que é mais relevante entre os familiares:o afeto, a solidariedade, a união, o respeito, a confiança, o amor,o projeto de vida comum, permitin<strong>do</strong> o pleno desenvolvimento pessoale social de cada partícipe, com base em ideais pluralistas, solidaristas,democráticos e humanistas. Como observa Perlingieri:A família é valor constitucionalmente garanti<strong>do</strong> nos limitesde sua conformação e de não contraditoriedade aos valoresque caracterizam as relações civis, especialmente a dignidadehumana: ainda que diversas possam ser as suas modalidadesde organização, ela é finalizada à educação e à promoçãodaqueles que a ela pertencem. (PERLINGIERI, Pietro. Perfis<strong>do</strong> Direito <strong>Civil</strong>: introdução ao Direito <strong>Civil</strong> e Constitucional.Tradução Maria Cristina de Cicco. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar,2002, p. 243)Responden<strong>do</strong> àqueles que temem mais uma vez sua destruição oudissolução, objeta-se que a família contemporânea, horizontal e em redes,vem se comportan<strong>do</strong> bem e garantin<strong>do</strong> corretamente a reproduçãodas gerações. Despoja<strong>do</strong> <strong>do</strong>s ornamentos de sua antiga sacralidade, o casamento,em constante declínio, tornou-se um mo<strong>do</strong> de conjugalidadeafetiva pelo qual os cônjuges se protegem <strong>do</strong>s eventuais atos perniciososde suas respectivas famílias ou das desordens <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> exterior. É tardio,reflexivo, festivo ou útil e, frequentemente, precedi<strong>do</strong> de um perío<strong>do</strong> deunião livre, de concubinato ou de experiências múltiplas de vida comumou solitária.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 109


Aos utopistas que acreditam que a procriação será um dia a talponto diferenciada <strong>do</strong> ato carnal que os filhos serão fecunda<strong>do</strong>s fora <strong>do</strong>corpo da mãe biológica, em um útero de empréstimo e com a ajuda deum sêmen que não será <strong>do</strong> pai, argumenta-se que, para além de todasas distinções que podem ser feitas entre o gênero e o sexo, o materno eo feminino, a sexualidade psíquica e o corpo biológico, o desejo de se terum filho sempre terá algo a ver com a diferença <strong>do</strong>s sexos. Demonstramisso as declarações <strong>do</strong>s homossexuais que sentem a necessidade de daraos filhos por eles cria<strong>do</strong>s uma representação real da diferença sexual, enão apenas duas mães (uma das quais desempenharia o papel de pai) ou<strong>do</strong>is pais (um <strong>do</strong>s quais se disfarçaria de mãe).Finalmente, para os pessimistas que pensam que a civilização correrisco de ser engolida por clones, bárbaros, bissexuais ou delinquentes daperiferia, concebi<strong>do</strong>s por pais desvaira<strong>do</strong>s e mães errantes, observa-seque essas desordens não são novas – mesmo que se manifestem de formainédita – e, sobretu<strong>do</strong>, que não impedem que a família seja atualmentereivindicada como o único valor seguro ao qual ninguém quer renunciar.Ela é amada, sonhada e desejada por homens, mulheres e crianças de todasas idades, de todas as orientações sexuais e de todas as condições.É claro, porém, que o próprio princípio da autoridade e <strong>do</strong> ser “separa<strong>do</strong>r”,sobre o qual ela sempre se baseou, encontra-se atualmente emcrise no seio da sociedade ocidental. Por um la<strong>do</strong>, esse princípio se opõe,pela afirmação majestosa de sua soberania decaída, à realidade de ummun<strong>do</strong> unifica<strong>do</strong> que elimina as fronteiras e condena o ser humano à horizontalidadede uma economia de merca<strong>do</strong> cada vez mais devasta<strong>do</strong>ra,mas, por outro, incita incessantemente a restauração, na sociedade, dafigura perdida de Deus pai, sob a forma de uma tirania. Confrontada comesse duplo movimento, a família aparece como a única instância capaz,para o sujeito, de assumir esse conflito e favorecer o surgimento de umanova ordem simbólica. Sobre a família, comenta Elizabeth Roudinesco:Eis por que ela suscita tal desejo atualmente, diante <strong>do</strong> grandecemitério de referências patriárquicas desafetadas quesão o exército, a Igreja, a nação, a pátria, o parti<strong>do</strong>. Do fun<strong>do</strong>de seu desespero, ela parece em condições de se tornarum lugar de resistência à tribalização orgânica da sociedadeglobalizada. E, provavelmente, alcançará isso – sob a condição,todavia, de que saiba manter, como princípio funda<strong>do</strong>r,110R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


o equilíbrio entre o um e o múltiplo de que to<strong>do</strong> sujeito precisapara construir sua identidade. A família <strong>do</strong> futuro deveser mais uma vez reinventada.( ROUDINESCO, Elizabeth. Afamília em desordem. Tradução André Telles. Rio de Janeiro:Zahar, 2003, p. 199)Na contramão <strong>do</strong> tempo, da história e das previsões <strong>do</strong>s menosafeitos à constante alteração <strong>do</strong> comportamento social, vê-se que as pessoasbuscam a aproximação da normalização de suas relações sociais,familiares e sexuais, aconchegan<strong>do</strong>-se nos ninhos familiares, não necessariamentesob o mesmo teto (FACHIN, Luiz Edson. Curso de Direito <strong>Civil</strong>– Elementos críticos <strong>do</strong> Direito de Família. Coord. Ricar<strong>do</strong> Pereira Lira, Riode Janeiro: Renovar, 1999, p. 60), nem, por isso, deixan<strong>do</strong> de se constituirem verdadeiro núcleo familiar.Esse núcleo não tem mais, como paradigma ou motivo fundamental,a hierarquia paterna, o poder estatal, a submissão à Igreja ou qualqueroutro referencial constata<strong>do</strong> através <strong>do</strong>s tempos. Apenas, tão somente,tem o amor, a afetividade e a vontade de as pessoas permanecerem juntas,criarem seus filhos, sejam eles oriun<strong>do</strong>s de vínculos anteriores (matrimoniaisou não), de a<strong>do</strong>ção ou, simplesmente, <strong>do</strong> chamamento de pessoasestranhas ao corpo familiar sanguíneo, para a convivência pacífica evoltada à realização plena de cada membro daquele grupo, firman<strong>do</strong>-secomo pessoas únicas, <strong>do</strong>tadas <strong>do</strong>s direitos subjetivos da personalidade,individualizadas e cada qual com suas características próprias. Nada maishá – e, talvez, não haverá – que possa manter pessoas unidas, coesas,juntas, que não seja o amor e o afeto.Essa afirmação ecoa das palavras proferidas, em 1991, pelo entãoDesembarga<strong>do</strong>r e posteriormente Ministro <strong>do</strong> STJ e <strong>do</strong> STF Carlos AlbertoMenezes Direito: “Tenho para mim que o que se deve buscar é o abrigo daproteção jurídica da vida em comum. Não se pretende robustecer a uniãoilegítima, mas sim criar condições jurídicas para proteger a constituição dafamília, independente de sua origem no ato civil <strong>do</strong> casamento” (DIREITO,Carlos Alberto Menezes. "Da união estável como entidade familiar". Revista<strong>do</strong>s Tribunais, São Paulo, n. 667, maio 1991, p. 17).Não há como se negar que o Direito priva<strong>do</strong> – notadamente, o Direito<strong>Civil</strong> e mais particularmente o Direito de Família – é “um sistemaem construção”, rechea<strong>do</strong> de cláusulas gerais, que deverão se interpretar,aplicar e complementar de conformidade com as alterações e evoluçõesR. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 111


sociais e humanas, como assevera Judith Hofmeister Martins-Costa ("ODireito Priva<strong>do</strong> como um 'sistema em construção': as cláusulas gerais noProjeto <strong>do</strong> Código <strong>Civil</strong> Brasileiro". Revista da Faculdade de Direito daUFRGS, Porto Alegre, n. 15, p. 129-154, 1998).Entretanto, a sua construção só se oportunizará se houver, antes,abertura para a “desconstrução”, entendida no senti<strong>do</strong> que lhe atribuiuJacques Derrida: “Desfazer sem nunca destruir um sistema de pensamentohegemônico ou <strong>do</strong>minante, resistir à tirania <strong>do</strong> Um, resultante da forçanatural de mudança <strong>do</strong> ser humano” (DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO,Elisabeth. De que amanhã.... Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p. 9). Além disso,não é possível ignorar a notável dificuldade de se perseguir tal objetivo,como já afirmava Glória Steinem: “O primeiro problema para to<strong>do</strong>s,homens e mulheres, não é aprender, mas desaprender” (STEINEM, Glória.A revolução interior. Tradução Myriam Campelo. Rio de Janeiro: <strong>Objetiva</strong>,1992, p. 78). Afinal:Dotadas que são de grande abertura semântica, não pretendemas cláusulas gerais dar, previamente, resposta a to<strong>do</strong>sos problemas da realidade, uma vez que essas respostas sãoprogressivamente construídas pela jurisprudência. [...] Conquantotenha a cláusula geral a vantagem de criar aberturas<strong>do</strong> direito legisla<strong>do</strong> à dinamicidade da vida social, tem, emcontrapartida, a desvantagem de provocar – até que consolidadaa jurisprudência – certa incerteza acerca da efetiva dimensão<strong>do</strong>s seus contornos. (MARTINS COSTA, 1998)Não se ignora também que, para estruturar o direito com cláusulasabertas e gerais, faz-se necessário um Poder Judiciário atento às vicissitudesda população e conecta<strong>do</strong> às alterações da malha social e, principalmente,às alterações comportamentais que acarretam a modificação daprópria noção de certo e erra<strong>do</strong> das pessoas.Parece que não restam dúvidas de que, em termos de direitos fundamentais,ao menos enfoca<strong>do</strong>s sob a ótica de sua respeitabilidade efetivae concreta, ainda estamos engatinhan<strong>do</strong>. Mas, a despeito disso, afirmouPaulo Mota Pinto, juiz <strong>do</strong> Tribunal Constitucional de Portugal e <strong>do</strong>cente daFaculdade de Direito de Coimbra:[...] o reconhecimento a to<strong>do</strong> o ser humano <strong>do</strong> valor de pessoaé hoje um verdadeiro postula<strong>do</strong> axiológico <strong>do</strong> jurídico,112R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


que não deve sofrer contestação relevante, pelos menos aonível das proclamações. A personalidade <strong>do</strong> Homem é parao direito um prius, que o Direito encontra (não cria) e quedeve ser reconheci<strong>do</strong> e tutela<strong>do</strong> pela ordem jurídica – podemesmo dizer-se que o imperativo de respeito em to<strong>do</strong>s oshomens da sua dignidade de pessoa, através da atribuiçãode personalidade jurídica, resulta da consideração de umconteú<strong>do</strong> mínimo de direito natural (no senti<strong>do</strong> de Hart), ouintegra uma idéia de direito constitutivo <strong>do</strong> universo jurídico.A pessoa humana deve ser o centro das preocupações <strong>do</strong>s juristas,e o apelo que a estes é dirigi<strong>do</strong> para a sua tutela jurídicaemana <strong>do</strong> mais fun<strong>do</strong> substracto axiológico que constituio direito como tal. Importa, pois, tratar dessa tutela. (PINTO,Paulo Mota. "Notas sobre o direito ao livre desenvolvimentoda personalidade e os direitos de personalidade no direitoportuguês". In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). A Constituiçãoconcretizada – Construin<strong>do</strong> pontes com o público e o priva<strong>do</strong>.Porto Alegre: Livraria <strong>do</strong> Advoga<strong>do</strong>, 2000, p. 61)A lei fundamental, então, é que positiva os direitos concernentes àjustiça, segurança, liberdade, igualdade, propriedade, herança etc. Antes,eles estavam no Código <strong>Civil</strong> ou, como diz Pietro Perlingieri,o direito civil constitucional parece estar em busca de umfundamento ético, que não exclua o homem e seus interessesnão-patrimoniais, da regulação patrimonial que semprepretendeu ser – não se projetam a expulsão e a reduçãoquantitativa <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> patrimonial no sistema jurídicoe naquele civilístico em especial. O momento econômico,como aspecto da realidade social organizada, não é eliminável.A divergência, não certamente de natureza técnica, concerneà avaliação quantitativa <strong>do</strong> momento econômico e àdisposição de encontrar, na existência da tutela <strong>do</strong> homem,um aspecto idôneo, não a humilhar a aspiração econômica,mas, pelo menos, a atribuir-lhe uma justificativa institucionalde suporte ao livre desenvolvimento da pessoa. (PERLINGIE-RI, Pietro. Perfis <strong>do</strong> Direito <strong>Civil</strong>: introdução ao Direito <strong>Civil</strong>e Constitucional. Tradução Maria Cristina de Cicco. 3. ed. Riode Janeiro: Renovar, 2002, p. 33)R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 113


Não há, por assim dizer, qualquer possibilidade de simplesmentese ignorar, diante da notável evolução <strong>do</strong> Direito como instrumento detutela da pessoa humana, o seu valor matricial e fundamental na ordemexistencial <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, as origens biológicas e afetivas da pessoa, seu reconhecimentointerno e externo perante a sociedade, o mun<strong>do</strong> e as demaispessoas e a necessária convivência com outras pessoas, num microssistemaconstituí<strong>do</strong> pela família, berço, amparo, reduto seguro, ponto departida e chegada, porto seguro de to<strong>do</strong>s nós.O Direito <strong>Civil</strong>, portanto, há de ser mutável, flexível, poroso, permitin<strong>do</strong>que seja oxigena<strong>do</strong> e atualiza<strong>do</strong> pelas mutações sociais resultantesda própria natureza humana de buscar, inovar e descobrir. Aestagnação e a renúncia a mudanças conduzem à abdicação, ao desenvolvimento,ao progresso e à aprendizagem.O que é a aprendizagem senão o movimento entre aquilo que foihá instantes e aquilo que ainda não é? Aprender é um embate, é um rangerde espadas. Aprender é um risco atraente, é o risco de estarmos novamente– e a cada instante – além de nós mesmos, <strong>do</strong> que é conheci<strong>do</strong>,<strong>do</strong> que já fomos, <strong>do</strong> que somos. Aprender é contar com o tempo a nossofavor, ter desprendimento suficiente para se afastar <strong>do</strong>s chama<strong>do</strong>s “portosseguros” em busca <strong>do</strong> desconheci<strong>do</strong>. Somente assim se cresce. Afinal,como diz Cora Coralina, “to<strong>do</strong>s estamos matricula<strong>do</strong>s na escola da vida,onde o mestre é o tempo e o que vale na vida não é ponto de partida e sima caminhada. Caminhan<strong>do</strong> e semean<strong>do</strong>, no fim terás o que colher”.Faz-se vivo o ensinamento de Michel Serres:Partir exige um dilaceramento que arranca uma parte <strong>do</strong> corpoà parte que permanece aderente à margem <strong>do</strong> nascimento,à vizinhança <strong>do</strong> parentesco, à casa e à idéia <strong>do</strong>s usuários,à cultura da língua e à rigidez <strong>do</strong>s hábitos. Quem não se mexenada aprende. Sim, parte, divide-se em partes. Teus semelhantestalvez te condenem como um irmão desgarra<strong>do</strong>. Erasúnico e reverencia<strong>do</strong>. Tornar-te-ás vários, às vezes incoerentecomo o universo que, no início, explodiu-se, diz-se, comenorme estron<strong>do</strong>. Parte, e tu<strong>do</strong> então começa. Partir, sair.Deixar-se um dia seduzir. Tornar-se vários, desbravar o exterior,bifurcar em algum lugar. Eis as três primeiras estranhezas,as três variedades de alteridade, os três primeiros mo<strong>do</strong>sde ser e expor. Porque não há aprendizagem sem exposição.114R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


(SERRES, Michel. Filosofia mestiça. Tradução Maria Ignez DuqueEstrada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p. 27)Pensar, refletir, conhecer, partir, ficar e aprender são questões quese colocam com a crise <strong>do</strong>s nossos padrões de valor, que não é apenas ada fragilidade <strong>do</strong>s códigos até então vigentes, mas os riscos de um mo<strong>do</strong>de se conduzir segun<strong>do</strong> regras prévias e externas que retiram daqueleque age a prerrogativa de pensar para decidir o que fazer em cada situaçãoque se apresenta. Busca-se, assim, tornar concreta a afirmação deHeráclito de que “a to<strong>do</strong>s os homens é compartilha<strong>do</strong> o conhecer-se a simesmo e pensar sensatamente” (HERÁCLITO. "Fragmentos". In: Os présocráticos.4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1978, p. 62 (B-116). (ColeçãoOs Pensa<strong>do</strong>res).E esse pensamento reflexivo há de ser compartilha<strong>do</strong>, democratiza<strong>do</strong>,para que possa ganhar adeptos, opositores para o necessário tensionamento,para firmar-se, ou não, sen<strong>do</strong>, portanto, importante que sejatextualiza<strong>do</strong> e exterioriza<strong>do</strong>.E o que é fundamental para Hannah Arendt é que:Os pensamentos, para acontecer, não precisam ser comunica<strong>do</strong>s;mas não podem ocorrer sem ser fala<strong>do</strong>s – silenciosaou sonoramente, em um diálogo, conforme o caso [...] e arazão – não porque o homem seja um ser pensante, mas porqueele só existe no plural – também quer a comunicação etende a perder-se caso dela não tenha que privar; pois a razão,como observou Kant, não é de fato “talhada para isolarse,para comunicar-se”. A função desse discurso silencioso[...] é entrar em acor<strong>do</strong> com o que quer que possa ser da<strong>do</strong>aos nossos senti<strong>do</strong>s nas aparências <strong>do</strong> dia a dia; a necessidadeda razão é dar conta [...] de qualquer coisa que possa serou ter si<strong>do</strong>. Isso é proporciona<strong>do</strong> não pela sede <strong>do</strong> conhecimento[...], mas pela busca <strong>do</strong> significa<strong>do</strong>. O puro nomeardas coisas, a criação das palavras é a maneira humana deapropriação e, por assim dizer, de desalienação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> noqual, afinal, cada um de nós nasce, como um recém-chega<strong>do</strong>,como um estranho. (ARENDT, Hannah, A vida <strong>do</strong> espírito.Tradução A. Abranches, C. A. R. Almeida e H. Martins. 3ª ed.Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995, p. 187)R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 115


Assim, neste início de século, com rompimento de barreiras, obstáculos,preconceitos, e no desfraldar de novos ares, novos conhecimentose experiências, respalda<strong>do</strong>s agora pela notável abertura semântica impulsionadapelo Código <strong>Civil</strong> e suas cláusulas e normas abertas, busca-seo conceito de família, a verdadeira face da filiação, da paternidade, dafamília e <strong>do</strong>s motivos e fundamentos que conduzem as pessoas a permaneceremumas ao la<strong>do</strong> das outras, em pequenos núcleos de convivênciaou ninhos de afetividade, como dito antes, sem qualquer outro tipo deimposição legal ou moral que assim o determine.Esse porvir vem sen<strong>do</strong> descoberto e desvela<strong>do</strong> paulatinamente,com o amadurecimento <strong>do</strong>s relacionamentos e das próprias pessoas,penetradas e influenciadas pela sensibilidade e afetividade que permeiamtoda e qualquer relação entre duas ou mais delas e que são asúnicas verdadeiras condicionantes que fazem com que, ligadas ou nãopor vínculo sanguíneo, jurídico ou sexual, estejam e permaneçam juntase felizes.No entanto, a busca dessa nova e diferente fisionomia das relaçõesfamiliares e filiais, fundamentada no afeto, há de ser feita em conjuntocom sensíveis valores éticos, sob pena de se estar condenan<strong>do</strong> à morteum novo e belo filho que ainda sequer nasceu.Outra não pode ser a postura ética da jurisprudência diante de situaçõessimilares. Ainda que sejam alvo <strong>do</strong> preconceito ou se originem deatitudes havidas por reprováveis, o juiz não pode afastar-se <strong>do</strong> princípioético que deve nortear todas as decisões. O distanciamento <strong>do</strong>s parâmetroscomportamentais majoritários ou socialmente aceitáveis não podeser fonte gera<strong>do</strong>ra de favorecimentos, preconceitos e discriminações. Nãover fatos que estão diante <strong>do</strong>s olhos é manter a imagem da Justiça cega.Condenar à invisibilidade situações existentes é produzir irresponsabilidades:é olvidar que a ética condiciona to<strong>do</strong> o Direito e, principalmente, oDireito de Família.Afinal, renunciar a tu<strong>do</strong> isso, ao porvir, ao prazer da descoberta, àadrenalina <strong>do</strong> novo, é simplesmente renunciar à própria vida, comoexpressa<strong>do</strong> na letra poética da canção “Cuide bem <strong>do</strong> seu amor”, deHerbert Viana:Cuide bem <strong>do</strong> seu amorSeja quem forE cada segun<strong>do</strong>, cada momento, cada instante116R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


É quase eterno, passa devagarSe seu mun<strong>do</strong> for o mun<strong>do</strong> inteiroSua vida, seu amor, seu larCuide tu<strong>do</strong> que for verdadeiroDeixe tu<strong>do</strong> que não for passar!Mas, para assim cuidar, exigem-se um cuida<strong>do</strong>, uma atenção e umadedicação que são ingredientes certos e necessários ao espocar imorre<strong>do</strong>uro<strong>do</strong> novo, <strong>do</strong> amanhã, das promessas da modernidade e, enfim, <strong>do</strong>sonho imagina<strong>do</strong>, existente, por certo, na parte mais íntima de cada umde nós: viver ao la<strong>do</strong> de quem se ama, para dividir os dias, as horas, osmomentos bons e ruins, dedican<strong>do</strong> a vida a essa pessoa por um único eexclusivo argumento justifica<strong>do</strong>r – o amor.6. A FAMÍLIA RECONSTRUÍDA E REPERSONALIZADA NA INDIVIDUA-LIDADE DE SEUS MEMBROSProteger a dignidade <strong>do</strong> ser humano é, possivelmente, a maisnobre função <strong>do</strong> Direito.(Pietro Perlingieri)A família migrou da configuração de um modelo hierarquiza<strong>do</strong>matrimonial e patriarcal, com seu ápice no liberalismo, para um modelotípico da sociedade pós-industrial, que, da mesma forma, também nãomais atende a uma perspectiva democrática e humana, tal como reivindicadana atualidade. Configura-se, dessa forma, a crise consubstanciadaexatamente no fato de que os modelos existentes já não atendem às necessidadesjurídicas, filosóficas e ideológicas <strong>do</strong>s tempos atuais, mas, poroutro la<strong>do</strong>, ainda não se dispõe de outra configuração consagrada e aceitasocialmente.De qualquer forma, faz-se mister enfocar a família como instânciade transmissão de valores formativos <strong>do</strong> indivíduo, na construção de suaorganização subjetiva, em prol da realização <strong>do</strong> pressuposto de dignidadehumana. Desse mo<strong>do</strong>, supera-se o modelo clássico que entendia a famíliacomo ente a ser defendi<strong>do</strong>, e a família se encaminha para uma nova visãoresultante da miscigenação <strong>do</strong> público e <strong>do</strong> priva<strong>do</strong>, que só existe em função<strong>do</strong>s indivíduos que a compõem.Essa proposta desfigura a função contratual <strong>do</strong> matrimônio comoforma de construção de um núcleo familiar, priorizan<strong>do</strong> outro paradigmaR. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 117


espalda<strong>do</strong> exatamente na socioafetividade. Em outras palavras, “começama surgir os sentimentos de igualdade, o que sinaliza um movimentogradual da família-casa em direção à família-sentimental moderna.Tendia-se agora a atribuir à afeição <strong>do</strong>s pais e <strong>do</strong>s filhos, sem dúvidatão antiga quanto o próprio mun<strong>do</strong>, um valor novo: passou-se a basearna afeição toda a realidade familiar” (ARIÈS, Philippe. História social dacriança e da família. 2ª ed. Tradução Dora Flaksman. Rio de Janeiro: LTC,1981, p. 235).O estu<strong>do</strong> da família processa-se atualmente sob o signo da perplexidade,ante as surpreendentes transformações por que tem passa<strong>do</strong> aestrutura familiar na contemporaneidade. De instituição assentada emvalores tradicionais e conserva<strong>do</strong>res, hoje é influenciada pela revoluçãosexual, pelo questionamento <strong>do</strong>s papéis <strong>do</strong> homem e da mulher em sociedade,pela desvinculação <strong>do</strong> ato sexual da função de procriar, pelosavanços tecnológicos que propiciam o prolongamento da vida humanae, principalmente, pelo avanço substancial da tutela das prerrogativasinerentes ao próprio ser humano no plano mundial e pela valorização daindividualidade existencial que pretende caracterizá-la como o ninho acolhe<strong>do</strong>rde todas as horas.A <strong>do</strong>utrina mais conectada com essa realidade vem observan<strong>do</strong>que:Ressignificar a família na função baliza<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> périplo existencialé um imperativo nos dias que correm; reposicioná-lacomo guardiã de nossas identidades pessoais é condição sinequa non para a superação das ansiedades confusionais a quese está sujeito pelas características competitivas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>de hoje; revitalizá-las com o aporte de novas e mais satisfatóriasmodalidades de relacionamento entre seus membrosé indispensável para se seguir aperfeiçoan<strong>do</strong> a convivênciahumana; por fim, repensá-la é tarefa a ser por to<strong>do</strong>s compartida,por sua transcendência com a condição humana.(ZAMBERLAM, Cristina de Oliveira. Os novos paradigmas dafamília contemporânea: uma perspectiva interdisciplinar.Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 150).Mesmo admitin<strong>do</strong> que o indivíduo, pela importância transcendental,deve ser considera<strong>do</strong> e valoriza<strong>do</strong> consigo próprio, independentemente118R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


de estar envolvi<strong>do</strong> em qualquer relacionamento (de ordem familiar, denegócios, profissional etc.) com outro, não se pode negar, no entanto,que é exatamente no contexto da socialidade que surgem os conflitos deinteresses. Mas se pretende demonstrar que, independentemente desserelacionamento, o homem existe e compete consigo mesmo, no senti<strong>do</strong>de estar permanentemente em crescimento como pessoa.A busca pelo aperfeiçoamento e aprimoramento da individualidadese constitui na razão básica da existência <strong>do</strong>s direitos da personalidade.É o homem evoluin<strong>do</strong> num processo de mudança permanenterumo a si mesmo, movimento incessante de transformação e evolução.Exatamente por isso, uma das características <strong>do</strong>s direitos da personalidadeé sua vitaliciedade e, quan<strong>do</strong> os direitos de personalidade alcançam ostatus de estarem inseri<strong>do</strong>s na Constituição Federal, passam à categoriade liberdades públicas e recebem to<strong>do</strong> o sistema de proteção próprio.Para superar essa aparente dificuldade, ensina Luís Roberto Barrosoque “o princípio da dignidade da pessoa humana identifica um espaçode integridade moral a ser assegura<strong>do</strong> a todas as pessoas por sua só existênciano mun<strong>do</strong>” ("Fundamentos teóricos e filosóficos <strong>do</strong> novo DireitoConstitucional Brasileiro". Revista de Direito da Procura<strong>do</strong>ria Geral <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n. 54, 2001, p. 47). No entanto,isso não justifica a permanência das previsões constitucionais principiológicasapenas no campo abstrato, mas é preciso sua concretização, o que éobra, como dito anteriormente, de to<strong>do</strong>s: de governantes ou não e, principalmente,<strong>do</strong> intérprete. Como acentua Konrad Hesse:Toda Constituição, ainda que considerada como simplesconstrução teórica, deve encontrar um germe de sua forçamaterial no tempo, nas circunstâncias, no caráter nacional,necessitan<strong>do</strong> apenas de desenvolvimento [...] a Constituição,entendida aqui como Constituição jurídica, não deve procurarconstruir o Esta<strong>do</strong> de forma abstrata. Ela não logra produzirnada que já não esteja assente na natureza singular<strong>do</strong> presente. Quanto mais o conteú<strong>do</strong> de uma Constituiçãolograr corresponder à natureza singular <strong>do</strong> presente, tantomais seguro há de ser o desenvolvimento de sua força normativa.(HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição.Tradução Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 1991,p. 17, 18 e 20)R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 119


Nessa linha de raciocínio, encontrar-se-á o princípio da dignidadeda pessoa humana fortaleci<strong>do</strong> e ampara<strong>do</strong> pela Constituição Brasileira.Na ponderação de que to<strong>do</strong>s os princípios devem estar a ele submeti<strong>do</strong>s,esse princípio sobreleva-se a outros, de forma que a existência digna dapessoa como valor indispensável para a pacífica vida em sociedade (contratosocial) está a indicar o caminho para que seja preservada a identidadee o direito à personalidade de cada pessoa, sob pena de se estaramesquinhan<strong>do</strong> e diminuin<strong>do</strong> o valor maior sobre o qual se constrói umasociedade justa e humana, qual seja o próprio direito à vida.E, se assim o é, a ascensão <strong>do</strong> Direito Constitucional no Brasil eda própria Constituição a elemento central de to<strong>do</strong> o sistema jurídico, aoincluir o direito à dignidade humana entre os direitos fundamentais, subordinoue condicionou to<strong>do</strong> o restante das normas legais, pré ou pósexistentesà “filtragem”, de forma que a Constituição passa a ser, assim,não apenas um sistema em si – com a sua ordem, unidade e harmonia– mas também um mo<strong>do</strong> de olhar e interpretar to<strong>do</strong>s os demais ramos<strong>do</strong> Direito. Esse fenômeno, identifica<strong>do</strong> por alguns autores como “filtragemconstitucional”, consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida eapreendida sob a lente da Constituição, de mo<strong>do</strong> a realizar os valores nelaconsagra<strong>do</strong>s. A constitucionalização <strong>do</strong> direito infraconstitucional nãoidentifica apenas a inclusão da Lei Maior de normas próprias de outros<strong>do</strong>mínios, mas, sobretu<strong>do</strong>, a reinterpretação de seus institutos sob umaótica constitucional. 9O direito de personalidade, como direito fundamental, buscará suasorigens no cristianismo, visto que na Grécia, conhecida como o berço dacivilização e da democracia, esse direito sequer era considera<strong>do</strong>. Segun<strong>do</strong>informa Maurício Beuchot ("La persona y la subjetividad en la filologíay la filosofía". Revista Latinoamericana de Política, Filosofía y Derecho,México, n. 16, 1996, p. 20), a filosofia grega não conhece o homem comoser de subjetividade por completo, visto que o pensamento <strong>do</strong>s filósofoshelênicos acabou por sempre atrelar o homem ao destino ou ao objetivismo,não se alcançan<strong>do</strong> uma noção de pessoa como indivíduo racional epossui<strong>do</strong>r de uma vontade atuante no mun<strong>do</strong> fático.Fundada, então, essa concepção de pessoa, abriu-se o campo paraa fomentação de seus direitos, inicialmente por meio <strong>do</strong> pensamento9 “A principal manifestação da preeminência normativa da Constituição consiste em que toda a ordem jurídica deveser lida à luz dela e passada pelo seu crivo” (CANOTILHO e MOREIRA, 1991, p. 45).120R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


cristão, ao determinar este a dessacralização da natureza e da sociedade,libertan<strong>do</strong> o homem de ser objeto para o transformar em sujeito, porta<strong>do</strong>rde valores (pessoa). Para a <strong>do</strong>utrina cristã, o fiel é aquele que estáem relação com Deus, que fez o homem à sua imagem e semelhança.Contu<strong>do</strong>, o ser humano é <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de livre-arbítrio e deve conduzir, na vidaterrena, suas ações de acor<strong>do</strong> com essa liberdade. Permite, assim, umjuízo de apreciação meritória na ação <strong>do</strong> indivíduo, pois, agin<strong>do</strong> de formacorreta, encontrará o fiel a salvação.A pluralidade humana, afirma Hannah Arendt, “tem esse duploaspecto: o da igualdade e o da diferença” (A condição humana. 10ª ed.Tradução Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 188).Exatamente essa diferença pode se constituir no sucesso ou no fracassoda experiência da passagem <strong>do</strong> ser humano pela terra, em razão e em consequênciadireta da efetiva disposição de nos ajudarmos mutuamente, na aplicaçãodiuturna <strong>do</strong> princípio da solidariedade como forma de consecução de objetivoscomuns de felicidade e plenitude e, em última análise, da própria preservaçãoda espécie humana, densificada e mesmo condicionada à qualidade <strong>do</strong> relacionamentocom seus iguais. Afinal, já afirmava Karl Marx que:Se se pressupõe o homem como homem e sua relação com omun<strong>do</strong>, como uma relação humana, só se pode trocar amorpor amor, confiança por confiança, etc. Se se quiser gozar daarte, deve-se ser um homem artisticamente educa<strong>do</strong>; se sequer exercer influência sobre outro homem, deve-se ser umhomem que atue sobre os outros de mo<strong>do</strong> realmente estimulantee encoraja<strong>do</strong>r... Se amas sem despertar amor, isto é, seteu amor, enquanto amor, não produz amor recíproco, semediante tua exteriorização de vida como homem amantenão te convertes em homem ama<strong>do</strong>, teu amor é impotentee um infortúnio. (MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficose outros textos escolhi<strong>do</strong>s. Ed. José Arthur Gianotti,tradução de José Carlos Bruni, José Arthur Gianotti e EdgardMalagodi. 4ª, ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 198)Numa sensível progressão, vem o Direito, um tanto a reboque deoutras ciências que lhe são afins, como a Sociologia e a Psicologia, resgataro valor da relação afetiva entre pessoas.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 121


7. O RESGATE DO VALOR ENTRE AS PESSOASO que se pretende e se deve buscar, frenética e incessantemente, éa aproximação da Justiça com a justiça (ou seja, <strong>do</strong> Poder Judiciário coma equidade), resguarda<strong>do</strong>s os direitos e as prerrogativas individuais considera<strong>do</strong>scomo inatos a toda e qualquer pessoa. John Rawls, procuran<strong>do</strong>dar conta da afirmação inicial de que cada pessoa tem a inviolabilidadefundada na Justiça que nem mesmo o bem-estar da sociedade pode anular,de forma que, numa sociedade justa, os direitos assegura<strong>do</strong>s pela Justiçanão estejam sujeitos à barganha política ou ao cálculo de interessessociais, escreve:A justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como averdade o é <strong>do</strong>s sistemas de pensamento. Embora elegantee econômica, uma teoria deve ser rejeitada ou revisada senão é verdadeira; da mesma forma leis e instituições, pormais eficientes e bem organizadas que sejam, devem serreformadas ou abolidas se são injustas. Cada pessoa possuiuma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmoo bem-estar da sociedade como um to<strong>do</strong> pode ignorar.Por essa razão, a justiça nega que a perda da liberdade dealguns se justifique por um bem maior compartilha<strong>do</strong> poroutros. Não permite que os sacrifícios impostos a uns poucostenham menos valor que o total maior das vantagensdesfrutadas por muitos. Portanto, numa sociedade justa, asliberdades da cidadania igual são consideradas invioláveis;os direitos assegura<strong>do</strong>s pela justiça não estão sujeitos à negociaçãopolítica ou ao cálculo de interesses sociais. Sen<strong>do</strong>virtudes primeiras das atividades humanas, a verdade e ajustiça são indisponíveis. (RAWLS, John. Uma teoria da justiça.Tradução de Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. SãoPaulo: Martins Fontes, 2002, p. 3)É essa Justiça que se anseia, humanizada, voltada à realização <strong>do</strong>ser humano e de seus direitos fundamentais. Contu<strong>do</strong>, e exatamente porser feita e aplicada por humanos, é passível de erros e equívocos, que, sepor um la<strong>do</strong>, não podem ser extirpa<strong>do</strong>s, devem ser, por outro la<strong>do</strong>, utiliza<strong>do</strong>spara o aprimoramento <strong>do</strong> sistema, para questionamento <strong>do</strong>s méto<strong>do</strong>sutiliza<strong>do</strong>s e objetivos almeja<strong>do</strong>s, pois, afinal, como afirmou Platão,122R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


“uma vida não questionada não merece ser vivida”. A plenitude dessavivência só poderá ser atingida se buscada com liberdade, que inclui aliberdade de errar para se ter a possibilidade de recomeçar, pois, comodeclarou Mahatma Gandhi, “A liberdade não tem qualquer valor se nãoinclui a liberdade de errar”.Afinal, se, de acor<strong>do</strong> com Schopenhauer (apud ENGISH, Karl. Introduçãoao pensamento jurídico. 8ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian,2001, p. 43), o clássico representante <strong>do</strong> pessimismo filosóficoem geral, to<strong>do</strong> prazer da Terra consiste em manter afasta<strong>do</strong> o desprazer,segun<strong>do</strong> a teoria imperativista parece que tu<strong>do</strong> o que de positivo o Direitoconcede apenas consiste em não estar vincula<strong>do</strong> por imperativos, em estarliberto da penosa exigência <strong>do</strong> rigoroso dever-ser. Assim, como só nosapercebemos da meramente negativa libertação <strong>do</strong> desprazer quan<strong>do</strong> aperdemos, assim como só aprendemos a apreciar o frescor da juventude,a saúde e a energia para o trabalho quan<strong>do</strong> gradualmente desaparecem,também só damos conta da benção que representa a concessão de direitosquan<strong>do</strong> os imperativos cada vez mais nos limitam a liberdade. Apenassob o jugo <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> totalitário aprende o homem a apreciar de novo osperdi<strong>do</strong>s direitos e liberdades fundamentais.Sobre o tema, Ovídio A. Baptista da Silva desenvolve o seguinteraciocínio:Vivemos um tempo singular, que alguém qualificou de “a erada incerteza”. Além <strong>do</strong> “fim das certezas”, como disse IlyaPrigogine, um <strong>do</strong>s mais respeita<strong>do</strong>s físicos contemporâneos,nossa era notabiliza-se por uma compulsiva e cada vez maisampla destruição <strong>do</strong> que fora, na véspera, acolhi<strong>do</strong> com entusiasmo.Como já dissera Karl Marx, numa frase que se tornoucélebre, a modernidade faz com que “tu<strong>do</strong> o que sejasóli<strong>do</strong> desmanche no ar”. As coisas que pareciam perenes,mesmo as coisas sagradas, ou aquelas tidas como naturais,como a família, acabam desfazen<strong>do</strong>-se, ante a voracidadedas transformações culturais. (SILVA, Ovídio A. Baptista da."Coisa julgada relativa?" Revista <strong>do</strong>s Tribunais, São Paulo, ano93, v. 821, 2004, p. 29)Não obstante as inúmeras divergências entre as diversas teoriasformuladas sobre o tema, as clássicas ideias <strong>do</strong> dar a cada um o que é seu(suum cuique tribuere) e <strong>do</strong> tratar os iguais na medida de suas desigual-R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 123


dades constituem cerne fixo de quase todas elas. A diferença básica entreos diversos conceitos de justiça consiste no preenchimento <strong>do</strong> espaço deixa<strong>do</strong>por essas fórmulas, nos parâmetros determina<strong>do</strong>res <strong>do</strong> que é o decada um e na delimitação das desigualdades relevantes. 10 Nas palavras deLuis Recaséns Siches: “El problema capital sobre la justicia no radica en lateoría de ella, sino el la medida de estimación que ella postula” (Introducciónal estudio del derecho. México: Porruá, 1970, p. 387).Em contrapartida, para Hans Kelsen, “o anseio por justiça é o eterno anseio<strong>do</strong> homem por felicidade” (O que é Justiça? Tradução Luis Carlos Borges eVera Barkow. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 2). Como o alcance da felicidadepelos seres humanos não é proporciona<strong>do</strong> pelos mesmos bens da vida,a justiça seria um valor relativo, dependente da concepção particular de cadaindivíduo, o que impediria a construção de uma ordem social considerada justapor to<strong>do</strong>s. Entre os diversos valores que informam a conduta humana em buscada felicidade, alguns são eleitos pelo legisla<strong>do</strong>r como fundamentais.Tais valores são consubstancia<strong>do</strong>s em normas jurídicas positivas, asquais, para o jurista austríaco, são o único parâmetro de que se dispõepara avaliar, de mo<strong>do</strong> objetivo e seguro, a justiça de um evento. Sob esseprisma, o conceito de justiça transforma-se de princípio que garante a felicidadeindividual de to<strong>do</strong>s em ordem social que protege determina<strong>do</strong>sinteresses, ou seja, aqueles que são reconheci<strong>do</strong>s como dignos dessa proteçãopela maioria <strong>do</strong>s subordina<strong>do</strong>s a essa ordem. Sen<strong>do</strong> o direito postoo parâmetro para a aferição <strong>do</strong> justo, a única solução injusta seria aquelaque afastasse a aplicação <strong>do</strong> direito positivo.8. A JUSTIÇA CONECTADA À MODERNIDADE E SEUS VALORES. A RES-PONSABILIDADE DO JULGAMENTOO julgamento é uma, se não a mais importante atividade emque ocorre esse compartilhar-o-mun<strong>do</strong>.(Hannah Arendt)A justiça é muito mais utilizada para manter as minorias <strong>do</strong>minantescom a conivência de um poder tira<strong>do</strong> da classe média <strong>do</strong> que para10 As discussões modernas sobre a justiça costumam encará-la sob <strong>do</strong>is aspectos que poderíamos classificar daseguinte maneira: no seu aspecto formal, ela aparece como um valor ético-social de proporcionalidade, em conformidadecom o qual, em situações bilaterais normativamente reguladas, se exige a atribuição a alguém daquiloque lhe é devi<strong>do</strong>. Trata-se da idéia clássica <strong>do</strong> suum cuique tribuere, que reclama, porém, num segun<strong>do</strong> aspecto, adeterminação daquilo que é devi<strong>do</strong> a cada um. “A conformidade ou não com critérios sobre o que e a quem é devi<strong>do</strong>é o problema <strong>do</strong> aspecto material da justiça” (FERRAZ JÚNIOR, 1994, p. 351).124R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


servir de embate entre o máximo e o mínimo. Nessa liturgia, realmente,saem prejudicadas as categorias inferiores. 11Vê-se, sem grandes dificuldades, que a busca da justiça como equidadefunda-se numa base filosófica e moral aceitável para as instituiçõesdemocráticas. Para responder à questão de como atender às exigênciasda liberdade e da igualdade que têm como pressuposto a existência deuma sociedade formada por pessoas livres e iguais, afirma John Rawls:Para a justiça como equidade os cidadãos estão envolvi<strong>do</strong>sna cooperação social, e, portanto, são plenamente capazesde fazer isso durante toda a vida. Pessoas assim consideradastêm aquilo que poderíamos chamar de “as duas faculdadesmorais”, descritas como segue: I – Uma dessas faculdades éa capacidade de ter um senso de justiça: é a capacidade decompreender e aplicar os princípios de justiça política quedeterminam os termos eqüitativos de cooperação social, ede agir a partir deles (e não apenas de acor<strong>do</strong> com eles). II –A outra faculdade moral é a capacidade de formar uma concepção<strong>do</strong> bem: é a capacidade de ter, revisar e buscar atingirde mo<strong>do</strong> racional uma concepção <strong>do</strong> bem. Tal concepção éuma família ordenada de fins últimos que determinam a concepçãoque uma pessoa tem <strong>do</strong> que tem valor, na vida humanaou, em outras palavras, <strong>do</strong> que se considera uma vida dignade ser vivida. Os elementos dessa concepção costumamfazer parte de, e ser interpreta<strong>do</strong>s por, certas <strong>do</strong>utrinas religiosas,filosóficas ou morais abrangentes à luz das quais osvários fins são ordena<strong>do</strong>s e compreendi<strong>do</strong>s. (RAWLS, John.Justiça como equidade: uma reformulação. Organização deErin Kelly. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: MartinsFontes, 2003, p. 26)O juiz não pode prostrar-se diante <strong>do</strong> caso concreto como umamáquina insensível. Sua atividade desenvolve-se com o objetivo de pacificarcom justiça o conflito de interesses submeti<strong>do</strong> à sua apreciação.11 Michael Walzer informa que “a Justiça, quan<strong>do</strong> antônimo de tirania, responde pelas experiências mais aterrorizantes<strong>do</strong> século XX. A igualdade é o contrário <strong>do</strong> totalitarismo: a diferenciação máxima contra a coordenação máxima.O valor especial da igualdade complexa, para nós, aqui e agora, é deixar clara essa oposição, pois a igualdadesó pode ser a meta da nossa política se pudermos defini-la de um mo<strong>do</strong> que nos proteja contra a tirania modernada política, contra o pre<strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> parti<strong>do</strong>/Esta<strong>do</strong>” (WALZER, 2003, p. 434).R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 125


Para tanto, não pode o julga<strong>do</strong>r acomodar-se. Sob os influxos da lógica delo razonable, 12 o juiz moderno é desafia<strong>do</strong> a assumir, cada vez mais, umpapel ativo e criativo na interpretação da lei, adaptan<strong>do</strong>-a, em nome dajustiça, aos princípios e valores de seu tempo.É este homem <strong>do</strong> direito atual que relê o que efetivamente restoude perene, após o desmoronamento de uma secular estrutura de<strong>do</strong>gmas, afastan<strong>do</strong> de si a segurança da fossilização e da estagnação deconceitos e de normas, para admitir a abertura de castelos – ou de prisões– em prol da atenção às transformações gera<strong>do</strong>ras da crise, em prolda vivificação <strong>do</strong>s valores da vida e <strong>do</strong>s anseios atuais.É deste ser de incansável movimento e de infinitos sonhos que seestá a falar. Fala-se de sua vivacidade, sua inteligência ímpar, sua agudapercepção <strong>do</strong>s fenômenos, sua supremacia na escala biológica. Tu<strong>do</strong> issoque o colocou em pé, uma primeira vez, prossegue agigantan<strong>do</strong>-se emseu espírito, não lhe conferin<strong>do</strong> paz, serenidade ou repouso, mas, antes,incitan<strong>do</strong>-o eternamente a caminhar além, a esmiuçar segre<strong>do</strong>s e a constrangercostumes ancestrais.Esse caminhar desvenda-lhe outros mistérios, inova-lhe o espírito,estabelece novos horizontes de contemplação de sua ambientação jurídica.Fá-lo novo e faz novos os seus projetos. Por isso, novo há de ser tambémo direito que dimensiona e organiza a sua vida privada. O desafio,profetiza Luiz Edson Fachin, consiste em trocar práticas de medievo pelossaberes construí<strong>do</strong>s às portas <strong>do</strong> terceiro milênio. E este é apenas o singeloponto de partida rumo ao que abre o terceiro milênio. (Teoria crítica <strong>do</strong>Direito <strong>Civil</strong>. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 5).Não se há, contu<strong>do</strong>, de destruir, mas sim desconstruir 13 o que se12 Tal é o méto<strong>do</strong> de raciocínio de grande utilidade proposto por Luis Recaséns Siches (1970, p. 258-259). Eis suascaracterísticas: (I) é profundamente influencia<strong>do</strong> pela realidade concreta <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> em que opera; (II) está impregna<strong>do</strong>de valorações, de critérios axiológicos, os quais se referem a uma situação humana real, concreta e constituembase de apoio para a formulação de fins para a atividade jurisdicional; (III) tais fins não se apoiam somente emvalorações, mas também nas possibilidades oferecidas pela realidade humana concreta; (IV) está regi<strong>do</strong> por razõesde adequação entre (a) a realidade social e os valores, (b) entre os valores e os fins, (c) entre os fins e a realidadesocial concreta, (d) entre os fins e os meios predispostos para o alcance desses fins, a adequação <strong>do</strong>s meios, suacorreção ética e sua eficácia; (V) por fim, a lógica de lo razonable está orientada pela experiência de vida humana epela experiência histórica e se desenvolve instruída por essa experiência.13 “Utiliza<strong>do</strong> pela primeira vez por Jacques Derrida em 1967, na Gramatologia, o termo ‘desconstrução’ foi formata<strong>do</strong>da arquitetura. Significa a deposição ou decomposição de uma estrutura. Em sua definição derridiana, remete aum trabalho <strong>do</strong> pensamento inconsciente (‘isso se constrói’) e que consiste em desfazer, sem nunca destruir, um sistemade pensamento hegemônico ou <strong>do</strong>minante. Desconstruir é, de certo mo<strong>do</strong>, resistir à tirania <strong>do</strong> Um, <strong>do</strong> logos,da metafísica (ocidental) na própria língua em que é enunciada, com a ajuda <strong>do</strong> próprio material desloca<strong>do</strong>, movi<strong>do</strong>126R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


tem até agora, para que outro modelo possa emergir, possibilitan<strong>do</strong>-selançar um novo olhar a partir da perspectiva de se colocar, como centrode to<strong>do</strong> o sistema, o próprio ser humano, e não mais a propriedade, ocontrato, o patrimônio ou qualquer outro valor típico <strong>do</strong> liberalismo e <strong>do</strong>individualismo que, não se duvida nem se questiona, teve seu momento eseu valor histórico, mas não pode ainda ser aceito num mun<strong>do</strong> moderno,globaliza<strong>do</strong> e, acima de tu<strong>do</strong>, que se quer solidário e humano.A função primordial <strong>do</strong> intérprete no Direito atual é essencial paraexplicar por que determinadas palavras podem fazer várias coisas, e nãooutras. Nas palavras de Karl Larenz, interpretar é uma atividade de mediação,pela qual o intérprete traz à compreensão o senti<strong>do</strong> de um texto quese lhe torna problemático. (LARENZ, Karl. Meto<strong>do</strong>logia da ciência <strong>do</strong> Direito.Tradução José Lamego. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian,1997, p. 439).Para essa atividade, o saber jurídico ocupa papel de relevo e nãose restringe a um conjunto de códigos, mas tem de ser concebi<strong>do</strong> comoum processo de diálogo, de troca entre o ser e o mun<strong>do</strong>, necessariamenteentendi<strong>do</strong> como uma reação ao positivismo. A própria norma constitucionalnão tem existência autônoma em face da realidade, a sua essênciareside no fato de que a relação por ela regulada venha a ser concretizadana realidade. E ela se complementa com a ideia de interpretação, trazidapor Peter Häberle, de que “não existe norma jurídica, senão norma jurídicainterpretada” (Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta <strong>do</strong>sintérpretes da Constituição – Contribuição para a interpretação pluralistae “procedimental” da Constituição. Tradução Gilmar Ferreira Mendes.Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1997, p. 55).Para ele, interpretar um ato normativo nada mais é <strong>do</strong> que colocálono tempo ou integrá-lo à realidade pública, mesmo com espaço paraparticipação das potências públicas pluralistas, concretizan<strong>do</strong>-se uma interpretaçãodemocrática.Fica-se aqui, com o prima<strong>do</strong> de Paulo Bonavides (Curso de DireitoConstitucional. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 399) para quem ainterpretação jurídica, em si, é a reconstrução <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> da lei, sua elucomfins de reconstruções cambiantes. A desconstrução é o ‘que acontece’, aquilo acerca de que não sabemos sechegará a seu destino etc. Jacques Derrida lhe confere igualmente um uso gramatical: o termo designa, então, umadesorganização da construção das palavras na frase. Ver ‘Lettre à um ami japonais’ (1985) in Psyché: invention del´autre, Paris, Galilée, 1987, p. 387-95. No grande dicionário de Émile Littré, podemos ler: ‘A erudição moderna nosatesta que numa região <strong>do</strong> imóvel Oriente uma língua que havia chega<strong>do</strong> à perfeição foi desconstruída e alterada emsi mesma exclusivamente pela lei da mudança natural <strong>do</strong> espírito humano’” (DERRIDA e ROUDINESCO, 2004, p. 9).R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 127


cidação, de mo<strong>do</strong> a operar-se uma restituição <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> texto vicia<strong>do</strong>,obscuro ou não condizente com a realidade temporal-geográfica. Em verdade,a interpretação mostra o Direito viven<strong>do</strong> plenamente a fase concretae integrativa, objetivan<strong>do</strong>-se na realidade. Observa Rogério Gesta Leal:se é verdade que a Modernidade não cumpriu com suas promessasemancipatórias à civilização ocidental, cumpre verificarcomo podemos conviver e solucionar os impasses que seapresentam no âmbito das demandas sociais emergentes, todasdizen<strong>do</strong> respeito à necessidade de concretização <strong>do</strong>s direitosassegura<strong>do</strong>s pelas Cartas Políticas vigentes. (Perspectivashermenêuticas <strong>do</strong>s direitos humanos e fundamentais no Brasil.Porto Alegre: Livraria <strong>do</strong> Advoga<strong>do</strong>, 2000, p. 156)Faz-se forte a responsabilidade <strong>do</strong>s intérpretes e aplica<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Direitopara que, num Esta<strong>do</strong> democrático constitucional de direito, se a<strong>do</strong>teo sistema de cláusulas abertas 14 como feito na Constituição e no Código<strong>Civil</strong>, por exemplo, com os conceitos como “pessoa”, “direito subjetivo”,“bem jurídico” e “regular funcionamento das instituições democráticas”.Esse sistema permite modificar os significa<strong>do</strong>s sem necessidade dese alterar a lei “positiva” e, dessa forma, proceder à adequação de seustextos à realidade atual e histórica vivenciada pela sociedade no momentoe por ocasião de sua aplicação.Exatamente nesse contexto, John Rawls avança com a distinção entreum conceito de justiça e as diversas concepções de justiça. Ele afirmaque as regras jurídicastanto podem conter preceitos bem precisos, que não requeremnenhuma interpretação especial, posto que o seu significa<strong>do</strong>é sempre o mesmo, as chamadas “concepções”, queo legisla<strong>do</strong>r quis que perdurassem como decisões globais desistema, como podem incorporar ainda temas vagos, referênciasa padrões ou condutas, cuja concretização dependeessencialmente das idéias <strong>do</strong> momento, os chama<strong>do</strong>s “conceitos”,que reclamam <strong>do</strong>s juízes e <strong>do</strong>s tribunais uma com-14 Karl Larenz aponta que a necessidade de um pensamento orienta<strong>do</strong> a valores surge com a máxima intensidadequan<strong>do</strong> a lei recorre a uma pauta de valoração que carece de preenchimento valorativo (cláusula geral), para delimitaruma hipótese legal ou também uma consequência jurídica. Ver Larenz (1997, p. 310).128R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


plementação ou concretização posteriores. (Uma teoria dajustiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves.São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 22)Afinal, não se está aqui mencionan<strong>do</strong> acesso ou direito patrimonialou que possa determinar a riqueza ou a miséria de uma pessoa, mas simvalor muito maior, muito mais eleva<strong>do</strong> e essencial, que se relaciona com aprópria vida da pessoa, com seu próprio significa<strong>do</strong> no universo: a identidade<strong>do</strong> sujeito, seu reconhecimento como pessoa.Talvez esteja aí o caminho e o fundamento mais íntimo da afirmaçãode que o elo maior que pode unir duas pessoas não é o legal, o contratualou o biológico, mas sim o afetivo, que produz efeitos dura<strong>do</strong>urose plenos.A Constituição, ao aban<strong>do</strong>nar o casamento como único tipo de famíliajuridicamente tutelada, abdicou <strong>do</strong>s valores que justificavam a normade exclusão e passou a privilegiar o fundamento comum a todas asentidades, ou seja, o afeto, que é necessário para realização pessoal deseus integrantes. O advento <strong>do</strong> divórcio direto (ou a livre dissolução naunião estável) demonstrou que apenas a afetividade, e não a lei, mantémunidas essas entidades familiares.A afetividade é construção cultural que se dá na convivência,sem interesses materiais, os quais apenas secundariamente emergemquan<strong>do</strong> ela se extingue. Ela se revela em ambiente de solidariedade eresponsabilidade. Como to<strong>do</strong> princípio, ostenta fraca densidade semântica,que se determina pela mediação concretiza<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> intérprete, antecada situação real.Paulo Luiz Netto Lobo ("Entidades familiares constitucionalizadas:para além <strong>do</strong> numerus clausus". 2004 a. Disponível em: .Acessoem: 1 abr. 2004) afirma que a Constituição Federal aban<strong>do</strong>nou a ideiaclássica de que a família só se constitui pelo casamento. O autor vai maislonge quan<strong>do</strong> conclui que, mesmo as demais formas de constituição familiarprevistas na Constituição não encerram em si as únicas possibilidadesde construção <strong>do</strong> núcleo familiar e a exclusão de modelos familiaresnão expressamente previstos não estaria na Constituição, massim no olhar vesgo e retrógra<strong>do</strong> <strong>do</strong> intérprete, que não acompanhou,R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 129


na prática, a ideologia libertária e liberta<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> legisla<strong>do</strong>r constituinte.Conclui Lobo:No caput <strong>do</strong> art. 226, operou-se a mais radical transformaçãono tocante ao âmbito de vigência da tutela constitucional àfamília. Não há qualquer referência a determina<strong>do</strong> tipo defamília, como ocorreu com as constituições brasileiras anteriores.Ao suprimir a locução “constituída pelo casamento”(art. 175 da Constituição de 1967-69), sem substituí-la porqualquer outra, pôs sob a tutela constitucional “a família”, ouseja, qualquer família. A cláusula de exclusão desapareceu.O fato de, em seus parágrafos, referir a tipos determina<strong>do</strong>s,para atribuir-lhes certas consequências jurídicas, não significaque reinstituiu a cláusula de exclusão, como se ali estivessea locução “a família, constituída pelo casamento, pelaunião estável ou pela comunidade formada por qualquer <strong>do</strong>spais e seus filhos”. A interpretação de uma norma ampla nãopode suprimir de seus efeitos situações e tipos comuns, restringin<strong>do</strong>direitos subjetivos.Mais uma vez, é fundamental o papel <strong>do</strong> intérprete como elementodeterminante da realização e concretização das normas e princípios constitucionaisconsagra<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s direitos <strong>do</strong> ser humano.Essa interação, esse ajudar mútuo, solidário e recíproco constituise,em verdade, num ponto de contato e similitude até mesmo entre duasformas de governo absolutamente diversas, e mesmo antagônicas, comosão o liberalismo e o socialismo, que, na visão atualizadíssima de JohnRawls, consiste no fato de que:A ideia de utopia realista reconcilia-nos com o nosso mun<strong>do</strong>social, mostran<strong>do</strong> que é possível uma democracia constitucionalrazoavelmente justa, existin<strong>do</strong> como membro de umaSociedade <strong>do</strong>s Povos razoavelmente justa. Ela estabeleceque tal mun<strong>do</strong> pode existir em algum lugar e em algum tempo,mas não que tem de existir ou que existirá. Ainda assim,podemos sentir que a possibilidade de tal ordem política esocial, liberal e decente, é inteiramente irrelevante enquantoessa possibilidade não é concretizada.130R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


Embora a concretização, não seja, naturalmente, destituídade importância, creio que a própria possibilidade de tal ordemsocial pode, ela própria, reconciliar-nos com o mun<strong>do</strong>social. Ela não é uma mera possibilidade lógica, mas umapossibilidade que se liga às tendências e inclinações profundas<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> social. Enquanto acreditarmos, por boasrazões, que é possível uma ordem política e social razoavelmentejusta e capaz de sustentar a si mesma, dentro <strong>do</strong> paíse no exterior, poderemos ter esperança razoável de que nósou outros, algum dia, em algum lugar, a conquistaremos. (Odireito <strong>do</strong>s povos. Tradução de Luiz Carlos Borges. São Paulo:Martins Fontes, 2001, p. 167)Esse é o desafio lança<strong>do</strong> ao Direito na modernidade. A sociedadeexige dele atuação eficaz na concretização <strong>do</strong>s direitos humanos fundamentais,entre os quais está o direito à plenitude da personalidade, comoinseri<strong>do</strong> na Constituição Federal de 1988.Para se entender o espírito que se pode considerar como ideal naleitura, interpretação e aplicação <strong>do</strong> Direito como instrumento de convivênciasocial pacífica, convoca-se mais uma vez, e sempre, a lição deMiguel Reale, que, ao tentar esclarecer a relação entre o Direito e a felicidade,diz:Se os homens fossem iguais como igual é a natural inclinaçãoque nos leva à felicidade, não haveria Direito Positivo e nemmesmo necessidade de Justiça. A Justiça é um valor que só serevela na vida social, sen<strong>do</strong> conhecida a lição que Santo Tomásde Aquino nos deixou ao observar com admirável precisãoque a virtude de justiça se concretiza pela sua objetividade,implican<strong>do</strong> uma proposição “ad alterum”. (Fundamentos<strong>do</strong> Direito. 3ª ed. São Paulo: Revista <strong>do</strong>s Tribunais, 1998, p.306).Engendran<strong>do</strong>-se e acomodan<strong>do</strong>-se o sistema jurídico à realidade,com os olhos sempre volta<strong>do</strong>s ao valor precípuo e objetivo impostergável<strong>do</strong> Direito, que é a garantia efetiva <strong>do</strong>s direitos fundamentais, chega-se àconclusão de que tal valor passa pela consecução da felicidade, da plenitudee da realização pessoal e familiar, sem as quais haverá sempre umvazio a ser preenchi<strong>do</strong>, um ponto obscuro de incerteza a acompanhar aR. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 131


pessoa durante toda a vida. Essa completude só se fará possível atravésda superação de obstáculos e <strong>do</strong>gmas liga<strong>do</strong>s, normalmente, ao preconceito,ao prejulgamento e à discriminação, permitin<strong>do</strong>-se pensar numvalor maior liga<strong>do</strong> ao afeto, à relação social entre as pessoas, o qualhaverá de ser utiliza<strong>do</strong> como parâmetro ao julgamento das lides e àsolução <strong>do</strong>s conflitos.Amor daqueles que unem pessoas de forma definitiva, ainda queum dia possa vir a não mais existir, mas que tenha vali<strong>do</strong> a pena, eternoenquanto dure, que tenha si<strong>do</strong> daqueles que nos completa e nos mostraquanta beleza há a ser vivida, amor daqueles descritos pelo poeta <strong>do</strong>mMarcos Barbosa, que, de forma significativa, mostra que o princípio davida é a felicidade e, como os princípios se interpenetram, o princípio dafelicidade é o princípio <strong>do</strong> amor:Nossos caminhos são agora um só caminho, nossas almasuma só alma, os mesmos pássaros cantarão para nós, osmesmos anjos des<strong>do</strong>brarão sobre nós as suas invisibilidades.Temos agora no espelho os nossos olhos, o teu riso diráa minha alegria e o teu pranto a minha tristeza, se eu fecharos olhos, tu estarás presente e serás ao despertar, osol que desponta. Iremos depois nos descobrin<strong>do</strong> nos filhosque crescem, e não mais saberemos distinguir em cada um,os teus e os meus traços, o teu e o meu gesto, e, então, nostornaremos pareci<strong>do</strong>s, e nem o mun<strong>do</strong> e nem a guerra enem a morte poderá separar-nos. Que eu não tenha outroamparo da tua mão nem outro alimento <strong>do</strong> teu sorriso nemoutro repouso <strong>do</strong> teu peito e, quan<strong>do</strong> eu fechar os olhospara a grande noite, que sejam tuas as mãos que hão decerrá-los, para quan<strong>do</strong> os abrir para a visão de Deus possacontemplar-te como o caminho que me levou, dia após dia,à fonte de to<strong>do</strong> amor. (BARBOSA, Dom Marcos. "Cânticode núpcias". Disponível em: . Acesso em: 4 jun. 2003)9. O PRINCÍPIO FUNDAMENTAL DA IGUALDADE ENTRE AS PESSOASE A VEDAÇÃO DE DISCRIMINAÇÃOA utopia está no horizonte. Aproximo-me <strong>do</strong>is passos, ela se afasta <strong>do</strong>is132R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


passos. Caminho dez passos e o horizonte se distancia dez passos maisalém. Para que serve a utopia? Serve para isso: para caminhar.(Eduar<strong>do</strong> Galeano)Para Hannah Arendt, “a igualdade não é um da<strong>do</strong>, mas um construí<strong>do</strong>”(Entre o passa<strong>do</strong> e o futuro: o conceito de história antigo e moderno.2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 123), de forma que a to<strong>do</strong>s cabeenfatizar a busca da aplicação e da concretização <strong>do</strong>s direitos humanos,notadamente quan<strong>do</strong> alça<strong>do</strong>s ao status constitucional que, num regimedemocrático de direito, impõe, possibilita e conta com a participação ativae efetiva de to<strong>do</strong>s.É absolutamente atual a lição de Rousseau, quan<strong>do</strong> perquire, noprefácio <strong>do</strong> Discurso sobre a desigualdade <strong>do</strong>s homens: “Como conhecer,pois, a origem da desigualdade entre os homens, a não ser começan<strong>do</strong>por conhecer o próprio homem?” (apud DELBOSIN, Victor. A filosofia práticade Kant. Rio de Janeiro: Zahar, 1989, p. 99).Há um sem-número de conceitos propostos por <strong>do</strong>utrina<strong>do</strong>res pátriose estrangeiros para o que possa vir a ser direitos humanos. Mas é possívelconcluir que são aqueles inerentes à pessoa, que visam a resguardara sua integridade física e psicológica perante seus semelhantes e peranteo Esta<strong>do</strong> em geral, de forma a limitar os poderes das autoridades. Assim,garante-se o bem-estar social pela igualdade, fraternidade e proibição dequalquer espécie de discriminação. Como ressaltou Flávia Piovesan,[Discriminação] significa toda distinção, exclusão, restriçãoou preferência que tenha por objeto ou resulta<strong>do</strong> prejudicarou anular o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdadede condições, <strong>do</strong>s direitos humanos e liberdades fundamentais,nos campos político, econômico, social, cultural e civil ouem qualquer outro campo. Logo, a discriminação significasempre desigualdade. (PIOVESAN, Flávia. Temas de direitoshumanos. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 206)Uma análise, ainda que por demais sucinta, da nossa conformaçãoconstitucional, revelará que o sistema difuso é um mecanismo de controlede constitucionalidade que já fixou firmes raízes na prática institucionalbrasileira. Na atualidade, ele se densificou essencialmente por meio <strong>do</strong>recurso extraordinário (art. 102, III, CRFB) e demonstrou ser um valiosoR. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 133


instrumento processual de dinâmica constitucional, por meio <strong>do</strong> qual oscidadãos podem levantar as suas pretensões e seus questionamentos. Elecontribui para a formação <strong>do</strong> que Häberle chamou de uma “sociedadeaberta de intérpretes da Constituição” (Hermenêutica constitucional: asociedade aberta <strong>do</strong>s intérpretes da Constituição – Contribuição paraa interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. TraduçãoGilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1997, p. 55), sen<strong>do</strong>possível afirmar que:Assim, no País, nosso controle de constitucionalidade podedar-se como preliminar de mérito em qualquer processo, cívelou penal, de tal forma que to<strong>do</strong> cidadão tem o direito dese opor ou de argüir uma inconstitucionalidade e to<strong>do</strong> juizou tribunal, da primeira à última instância, não só pode, masdeve, como atividade típica e função intrínseca à jurisdiçãobrasileira, apreciar a constitucionalidade de lei ou ato normativode qualquer espécie, negan<strong>do</strong> a aplicação de ‘coman<strong>do</strong>’eiva<strong>do</strong> de inconstitucionalidade. (CATTONI DE OLIVEIRA,Marcelo Andrade. Direito Constitucional. Belo Horizonte:Mandamentos, 2002, p. 208)No senti<strong>do</strong> inverso, uma forte corrente capitaneada por Gilmar FerreiraMendes pugna pela ampliação e pre<strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> controle concentra<strong>do</strong>.Para tanto, emprega um sofistica<strong>do</strong> arsenal teórico para restringir o controledifuso e pretende demonstrar que o modelo concentra<strong>do</strong> propicia maiorsegurança jurídica, pois é mais célere e uniforme em termos processuais.Afirma Gilmar Mendes que a Constituição Federal de 1988, ao aumentar onúmero <strong>do</strong>s que possuem legitimidade ativa para a propositura de ações diretasde inconstitucionalidade, como exposto anteriormente, reduziu sensivelmenteo alcance <strong>do</strong> controle incidental/difuso, “permitin<strong>do</strong> que, praticamente,todas as controvérsias constitucionais relevantes sejam submetidasao Supremo Tribunal Federal mediante processo de controle abstrato denormas” (MENDES, Gilmar Ferreira Mendes. "O Poder Executivo e o PoderLegislativo no controle de constitucionalidade". Revista de Informação Legislativa,Brasília, n. 134, abr./jun., 1997, p. 17).As abordagens jurídicas que fortalecem demasiadamente o controlejurisdicional concentra<strong>do</strong>, em detrimento <strong>do</strong> tipo difuso ou incidental,se revelam discriminatórias.134R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


Essa última espécie de sistema de controle de constitucionalidade,em razão de sua maior abertura e proximidade com a coletividade, permiteuma constante e salutar atualização interpretativa <strong>do</strong> texto constitucional,que, em um paradigma democrático de direito, como o consubstancia<strong>do</strong>na Constituição de 1988, deve estar sempre apto a ser reli<strong>do</strong> etematiza<strong>do</strong> por to<strong>do</strong>s os seus interessa<strong>do</strong>s e destinatários.A inserção dessa forma de controle, inserida no campo paradigmático<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> democrático de direito na Constituição “cidadã” de 1988,marca uma profunda ruptura com as concepções jurídicas anteriores, jáque, à luz <strong>do</strong>s princípios consagra<strong>do</strong>s constitucionalmente, tomam enormevulto garantias fundamentais e, por isso mesmo, inafastáveis de participação<strong>do</strong>s cidadãos, na esfera política ou jurisdicional, revelan<strong>do</strong> queto<strong>do</strong>s estamos autoriza<strong>do</strong>s a sermos intérpretes <strong>do</strong> texto constitucional,respaldan<strong>do</strong> a nossa tradição de controle difuso.Em outros termos, como ensina Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira,“há muito tempo questões jurídicas deixaram de ser tão-somente umproblema de experts para se tornarem questões de cidadania” (DireitoConstitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 165).Verifica-se a dificuldade em se admitir que a sociedade civil, comoum to<strong>do</strong>, seja cointérprete necessária <strong>do</strong> texto maior, além da crençailuminista em que um méto<strong>do</strong> ou racionalidade infalível, no caso emquestão, a Ação Direita de Constitucionalidade, seria capaz de produzir,ontologicamente, certeza e segurança jurídicas, na ilusão de que uma decisão,por si só, apenas por se fundamentar no argumento da “autoridadequalificada”, 15 se impusesse, em uma inútil tentativa de se exorcizar orisco da divergência, não reconhecen<strong>do</strong> que a democracia requer essepotencial dissenso em um consenso.Como disse Peter Häberle:To<strong>do</strong> aquele que vive no contexto regula<strong>do</strong> por uma norma eque vive com este contexto é, indireta ou até mesmo diretamente,um intérprete dessa norma. O destinatário da normaé participante ativo, muito mais ativo <strong>do</strong> que se pode suportradicionalmente, <strong>do</strong> processo hermenêutico. Como não são15 “Por mais qualifica<strong>do</strong>s que sejam, os Ministros <strong>do</strong> Supremo, não possuem os atributos <strong>do</strong> semideus Hércules.É preciso lembrar que aquilo que hoje representa acréscimo de poder amanhã certamente decretará o completodesprestígio <strong>do</strong> Judiciário, incluin<strong>do</strong> também o próprio Supremo Tribunal Federal” (SOUZA CRUZ, Álvaro Ricar<strong>do</strong> de."Hermenêutica constitucional e democracia". Revista da Faculdade Mineira de Direito, Belo Horizonte, v. 3, n. 5 e6, 1 o /2 o sem., 2000, p. 32).R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 135


apenas os intérpretes jurídicos da Constituição que vivema norma, não detêm eles o monopólio da interpretação daConstituição. (Hermenêutica constitucional: a sociedadeaberta <strong>do</strong>s intérpretes da Constituição – Contribuição paraa interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição.Tradução Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: SérgioFabris, 1997, p. 15)Assim, a possibilidade de uma participação/interpretação o maisdifusa possível é considerada requisito essencial para se ter um sujeitoconstitucional democrático.Salienta-se que todas essas afirmações possuem, como pano defun<strong>do</strong>, o paradigma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> democrático de direito, no qual se devebuscar o reforço constante da tolerância com a diferença, com o outro,aferin<strong>do</strong> que a democracia é um projeto em contínua construção. Nademocracia, a sociedade civil organizada é compreendida, em si mesma,como esfera pública, possuin<strong>do</strong>, dessa maneira, a tarefa de estar em vigíliacontra essa reiterada possibilidade de privatização.Em outras palavras, em um Esta<strong>do</strong> democrático de direito plural,no qual convivem projetos de vida os mais diversos possíveis, uma saídapossível para se lidar com a complexidade que a modernidade impõe éampliar e reforçar o modelo de controle de constitucionalidade difuso,tornan<strong>do</strong> plausível que quaisquer temas ou interesses sejam nele levanta<strong>do</strong>se discuti<strong>do</strong>s e visualizan<strong>do</strong> a democracia como um processo interminável,sem exigir uma segurança definitiva, no qual os membros dessemesmo Esta<strong>do</strong> democrático de direito consigam se reconhecer comoautores <strong>do</strong> ordenamento jurídico ao qual se submetem, em uma efetivaautolegislação. 16Na esteira de tais ensinamentos, faz-se vivo o teci<strong>do</strong> jurídico-socialcomposto por pessoas, instituições e representatividades das mais diversasordens, na busca constante <strong>do</strong> aperfeiçoamento, otimização e humanização<strong>do</strong> Direito como instrumento hábil e eficaz à concretização e tutelaplena <strong>do</strong>s direitos humanos e fundamentais.16 “Desse mo<strong>do</strong>, no paradigma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Democrático de Direito, é de se requerer <strong>do</strong> Judiciário que tome decisõesque, ao retrabalharem construtivamente os princípios e regras constitutivos <strong>do</strong> Direito vigente, satisfaçam, a um sótempo, a exigência de dar curso e reforçar a crença tanto na legalidade, entendida como segurança jurídica, comocerteza <strong>do</strong> Direito, quanto ao sentimento de justiça realizada, que deflui da adequabilidade da decisão às particularidades<strong>do</strong> caso concreto” (CARVALHO, 1981, p. 482).136R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


Mas, de qualquer forma, mudanças não haveria nunca, não fossemos obstina<strong>do</strong>s, não fossem os que, embora de forma inconsciente, seguem alição <strong>do</strong> Corão: “Vá em busca <strong>do</strong> que o tiver inspira<strong>do</strong> e seja paciente”. Énecessário continuar aprenden<strong>do</strong>, desfrutar os desafios e tolerar a ambiguidade,pois, em definitivo, não existem certezas. E o que estiver sen<strong>do</strong>feito com convicção, com dedicação, com seriedade, ética e desprendimentoserá muito mais importante <strong>do</strong> que aquilo que efetivamente forconsegui<strong>do</strong>. Pelo simples fato de o estar fazen<strong>do</strong>, já será suficiente paraa sensação de se estar participan<strong>do</strong> <strong>do</strong> desenvolvimento <strong>do</strong> direito, vistocomo ciência da humanidade, voltada a atender às necessidades e expectativas<strong>do</strong> ser humano.Basta, por ora, a certeza da necessidade <strong>do</strong> caminhar, <strong>do</strong> descobrir,<strong>do</strong> porvir para evitar a assertiva de Thomas A. Edison: A nossa maior fraquezareside em que temos a tendência a aban<strong>do</strong>nar. A maneira mais segurade conseguir os objetivos é sempre: tenta uma vez mais. (apud RIBA,RIBA, Lídia Maria. Nunca se renda. São Paulo: Vergara e Riba, 2002, p. 28).Manter-se em vigília, permitir-se ser invadi<strong>do</strong> por novas ideias e novosideais, dar-se o direito de refletir, pensar, questionar e eventualmentemudar de opinião – esse parece o papel <strong>do</strong> jurista da modernidade, despi<strong>do</strong>de conceitos preconcebi<strong>do</strong>s, de feições imodificáveis, de verdadesabsolutas.Não há qualquer valor científico, cultural e humano em manter-sealiena<strong>do</strong>, alheio e de olhos venda<strong>do</strong>s para as significativas mudanças quevêm sen<strong>do</strong> verificadas em to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> e, principalmente, nas relaçõesfamiliares e afetivas.A sociedade como um to<strong>do</strong> está ansian<strong>do</strong> por um Judiciário forteo suficiente para não se deixar corromper pelas forças financeira e política,altaneiro o necessário para não se rebaixar ou se deixar levar pelavontade de agradar ou se pautar por interesses e valores outros, quenão seja a busca de sua função precípua de distribuição de justiça deforma equitativa, equilibrada e isonômica, realiza<strong>do</strong>ra da ConstituiçãoFederal e <strong>do</strong>s projetos nela inseri<strong>do</strong>s.E este Poder Judiciário se quer cada vez mais distante daquele que foiherda<strong>do</strong> <strong>do</strong>s tempos de força, de épocas em que representava nada mais<strong>do</strong> que o “braço arma<strong>do</strong>” <strong>do</strong> Poder Executivo, servil, submisso, dependentee sem a estatura moral que o caracterizasse como verdadeiro poder.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 137


É deste Judiciário frágil, estigmatiza<strong>do</strong> pelo privilégio, verga<strong>do</strong> peladecadência de escândalos envolven<strong>do</strong> seus membros, em episódios felizmenteminoritários, que o cidadão já está por demais enfastia<strong>do</strong>. O cidadão,agora, pugna veementemente por reforma, até para que possa ver oresulta<strong>do</strong> final de seus processos ainda durante sua vida, ao contrário <strong>do</strong>que ocorre atualmente.Nesse ambiente fragiliza<strong>do</strong>, correntes menos interessadas na justiçase aproveitam para lançar teses que, no fun<strong>do</strong>, representam o engessamento<strong>do</strong> Poder Judiciário, transforman<strong>do</strong>-o em mera instituição ouórgão como são a súmula vinculante, o controle externo e outros. É certoque:Muitos países estão colocan<strong>do</strong> as reformas legais e judiciaiscomo parte de seus programas de desenvolvimento. Isso éresulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> crescente reconhecimento de que o progressoeconômico e social não é atingível de forma sustentável semrespeito às regras fixadas nas leis e à consolidação democrática,e sem uma efetiva proteção <strong>do</strong>s direitos humanosamplamente definida; cada um desses pontos requer umbom funcionamento <strong>do</strong> Judiciário, que interprete e dê forçaàs leis, equânime e eficientemente. Um Judiciário efetivo éprevisível, resolve casos em um tempo razoável e é acessívelao público. (BANCO MUNDIAL. "Court performance aroundthe world: a comparative perspective". 1999. (World BankTechnical Paper, n. 430).Assim, não parece restar dúvidas de que a justiça se alcança pormeio da tutela <strong>do</strong>s direitos constitucionalmente ampara<strong>do</strong>s e da legitimidadede suas decisões.A legitimidade (ou legitimação) se alcança pela justificação, necessariamenteligada aos fundamentos <strong>do</strong>s direitos que, na lição de Ricar<strong>do</strong> LoboTorres, é um tema geral que se abre a diferentes respostas, inclusive positivistas("A Legitimação <strong>do</strong>s Direitos Humanos e os Princípios da Ponderaçãoe da Razoabilidade". In: (Org.). Legitimação <strong>do</strong>s direitos humanos. Rio deJaneiro: Renovar, 2002, p. 400) e, mencionan<strong>do</strong> Luis Roberto Barroso – paraquem parece derivar <strong>do</strong> Estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> fundamento para o da legitimação: AConstituição passa a ser encarada como um sistema aberto de princípiose regras, permeável a valores jurídicos suprapositivos, no qual as idéias de138R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


justiça e de realização <strong>do</strong>s direitos fundamentais desempenham um papelcentral. ("Fundamentos teóricos e filosóficos <strong>do</strong> novo Direito ConstitucionalBrasileiro". Revista de Direito da Procura<strong>do</strong>ria Geral <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong>Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n. 54, 2001). Ele afirma que a legitimidade<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> moderno tem que ser vista, sobretu<strong>do</strong>, a partir <strong>do</strong> equilíbrio eharmonia entre valores e princípios jurídicos afirma<strong>do</strong>s por consenso.Ricar<strong>do</strong> Lobo Torres menciona Miguel Reale, para quem a questãoda legitimidade está vinculada à própria validade ética, a qual é entendidacomo a “adequação <strong>do</strong> direito a valores e ideias aceitos pelacomunidade”. Citan<strong>do</strong> Habermas (Para a reconstrução <strong>do</strong> materialismohistórico. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 223-224), conclui que “a distinçãoentre legitimidade e legitimação, em síntese, está em que aquela seapoia no consenso sobre a adequação entre o ordenamento positivo e osvalores, enquanto a legitimação consiste no próprio processo de justificaçãoda Constituição e de seus princípios fundamentais”.Após analisar os modelos de legitimação teológico, teleológico econtratual, este vinculan<strong>do</strong> à liberdade, igualdade e fraternidade, Ricar<strong>do</strong>Lobo Torres explica que o Esta<strong>do</strong> legitima-se por intermédio da manifestaçãoda vontade geral e <strong>do</strong> contrato social, desde que prevaleça a tríade daRevolução Francesa. O autor informa que a legitimação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> advém,ainda, da liberdade, da justiça e da segurança <strong>do</strong>s direitos e que a <strong>do</strong>utrinada legitimação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> é desenvolvida por Hobbes, Locke, Rousseau eKant da seguinte forma:Na teoria de Hobbes [Leviathan] a ideia central é a segurança<strong>do</strong>s direitos. O homem no Esta<strong>do</strong> de Natureza era inimigo<strong>do</strong> homem e vivia permanentemente em guerra. Pelo contratosocial, abdica de uma parte de sua liberdade em favor<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, que, por seu turno, lhe garante a preservação <strong>do</strong>sdireitos.[...]Com Locke, há mudança de argumentação, e a liberdade ganhaespaço na legitimação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. A finalidade da união<strong>do</strong>s homens sob o Esta<strong>do</strong> é a preservação da propriedade,que deve ser obtida pela legislação promulgada e conhecidapelo povo e dirigida à garantia da paz, segurança e bem públicodas pessoas.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 139


Rousseau assenta a ideia de contrato social na liberdadecomo afirmar que “o que o homem perde pelo contrato socialé a sua liberdade natural e um direito limita<strong>do</strong> a tu<strong>do</strong>que almeja e pode obter; o que ganha é a liberdade civil e apropriedade de tu<strong>do</strong> que possui”.Na Filosofia de Kant, a liberdade ocupa também lugar dedestaque... É fruto <strong>do</strong> dever ser em que se constitui a máximade que cada qual deve transformar o seu agir em regrauniversal de conduta. A partir daí há uma certa concordânciaentre liberdade e lei, o que se faz com que o Esta<strong>do</strong> selegitime através de suas leis obtidas em liberdade. (TORRES,2002, p. 42.)A segurança jurídica fundamentada apenas na força da lei acaboupor perder sua credibilidade quan<strong>do</strong> se realçou o Esta<strong>do</strong> social, noqual preponderava a segurança social, e não a individual. Lobo Torresinforma:A liberdade já se confunde com a só legalidade, senão que vaise abrir também para o diálogo com a justiça e a segurança.A justiça perde o conteú<strong>do</strong> que se acreditou ter por intermédiode regras de ouro e passa a ser procedimental, aberta aregras que fundamentam a democracia. A segurança jurídicacompreende também a segurança social que, através deprincípios como os da dignidade humana e da cidadania, vaiganhar seu lugar na Constituição. (2002, p. 445)Nesse ponto, o autor propõe que mesmo os princípios da dignidade,da liberdade e da justiça devam sofrer a influência da ponderação, darazoabilidade, da transparência e da igualdade. Invocan<strong>do</strong> Robert Alexy,diz que a legitimação da decisão judicial só pode derivar da argumentaçãojurídica racional, que a idéia de racionalidade discursiva apenas se realizaem um Esta<strong>do</strong> Democrático Constitucional e que é impossível um Esta<strong>do</strong>Democrático Constitucional sem discurso. (2002, p. 446).Assim, as decisões emanadas <strong>do</strong> Poder Judiciário devem ser suficientementejustificadas segun<strong>do</strong> os princípios da ponderação e da razoabilidade,para que possam ser consideradas legítimas – situação que seantagoniza com a simples técnica da subsunção, eminentemente positivistae despreocupada com os direitos fundamentais da pessoa humana.140R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


Há de se manter conexão <strong>do</strong> caso em julgamento com a realidadefática e histórica, sujeitan<strong>do</strong>-o ao teste de razoabilidade que procura aadequação entre meios e fins, sopesan<strong>do</strong> as situações particulares diantede princípios constitucionais.De que justiça se fala, que justiça se quer, quais são os instrumentospara buscá-la? A essas indagações responde o magistra<strong>do</strong> Antônio Venturade forma absolutamente poética, mas pessimista:Um dia, minha bela, te disse que falaria da justiça. Olha quebela, com os cabelos desgrenha<strong>do</strong>s que bem conhecemos.Mulher desfalecida, <strong>do</strong>s desalentos. Deveria ser <strong>do</strong>s ventos.Dos justos. Dos injustos. Mandar em to<strong>do</strong>s. E não ser servilnem ao maltrapilho, nem ao Príncipe. A voz que diria, comoacalanto, à criança nascida: criança, posso não lhe oferecersempre o vento e os caminhos, mas acredita. Não darei parati o direito <strong>do</strong>s poderosos. Por isso, fechei os meus olhos.Me deram uma venda para que não se corrompessem meusolhos. Mas estou cega. Me deram balanças bem pesadas,confundiram minha cabeça. A balança está desgovernada,pobre criança assustada por balas perdidas, assustada como terror maior, num esta<strong>do</strong> democrático, já não terás teu direitoadquiri<strong>do</strong>. Portanto, esqueças, ó criança, da justiça <strong>do</strong>sfalíveis, homens das cavernas. Busque apenas o arco-íris,o pôr-<strong>do</strong>-sol. O mar, e se jogue no mar. Longe, no arco-íris,na areia... Porque a justiça foi <strong>do</strong>rmir com os animais selvagens...Porque o resto, além <strong>do</strong> arco-íris e <strong>do</strong> mar e da areia,é o denso silêncio. 17Tal justiça certamente se faz com uma série de qualidades e valores,até com o respeito ao processo dialético argumentativo que permite aojulga<strong>do</strong>r manter-se equidistante em relação às partes.Conforme acentua Otto Bachoff (Normas constitucionais inconstitucionais?.Tradução e nota prévia de José Manuel M. Car<strong>do</strong>so da Costa.Coimbra: Almedina, 1994, p. 39-41), os direitos fundamentais deixaram deser vazios ou outorga<strong>do</strong>s por concessão <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, tornan<strong>do</strong>-se direitosdiretamente aplicáveis. Antes, os direitos fundamentais só valiam no âmbitoda lei; hoje, as leis só valem no âmbito <strong>do</strong>s direitos fundamentais.17 Encaminha<strong>do</strong>, em 12 de maio de 2004, por Ventura ao autor desta dissertação, por mensagem eletrônica, paraa lista de discussão da AMB.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 141


Como a ordem jurídica é formada de mo<strong>do</strong> lento e gradual, encontran<strong>do</strong>-sena evolução histórica influência de correntes axiológicas diversase conflitantes, os princípios básicos <strong>do</strong> ordenamento jurídico podementrar em conflito quan<strong>do</strong> analisa<strong>do</strong>s perante uma situação concreta. 1810. O COMPROMISSO DO PODER JUDICIÁRIO COM A DEMOCRACIAE OS DIREITOS HUMANOSO Direito deve ser sempre uma tentativa de Direito Justo, porvisar à realização de valores ou fins essenciais ao homem eà coletividade.(Miguel Reale)A natureza fez os homens tão iguais quanto às faculdades <strong>do</strong> corpoe <strong>do</strong> espírito. Embora às vezes se encontre um homem manifestamentemais forte de corpo, ou de espírito mais vivo que outro, ainda assim,quan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> é considera<strong>do</strong> em conjunto, a diferença entre um e outrohomem não é tão considerável para que um deles possa, por causa disso,reivindicar para si algum benefício ao qual outro não possa aspirar, talcomo ele. No que tange à força <strong>do</strong> corpo, o mais fraco tem força suficientepara matar o mais forte, por maquinação secreta ou pela aliança comoutros que se encontrem ameaça<strong>do</strong>s pelo mesmo perigo.Quanto às faculdades <strong>do</strong> espírito, encontra-se igualdade aindamaior entre os homens. O que talvez possa tornar essa igualdade incrívelé apenas a concepção presunçosa da própria sabe<strong>do</strong>ria, que quaseto<strong>do</strong>s os homens acreditam possuir em maior grau <strong>do</strong> que os outros, istoé, em maior grau <strong>do</strong> que to<strong>do</strong>s os homens menos ele próprio e algunsoutros poucos que, pela fama ou por concordarem com ele, mereceramsua aprovação. Mas isso prova que os homens são iguais também nesseponto, e não desiguais. Não há, em geral, maior sinal de distribuição igualde alguma coisa <strong>do</strong> que o fato de cada homem estar contente com a suaparte. Dessa igualdade de capacidade, origina-se a igualdade de esperança18 Carlos Maximiliano afirma que tal fenômeno ocorre com freqüência, pois os princípios não disciplinam cadaum deles uma situação isolada. Diversos princípios de vertentes axiológicas distintas exercem influência sobre ummesmo caso concreto. Diz ele: “Não se encontra um princípio isola<strong>do</strong> em ciência alguma; acha-se cada um em conexãoíntima com outros. O Direito objetivo não é um conglomera<strong>do</strong> caótico de preceitos; constitui vasta unidade,organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, emborafixada cada uma em seu lugar próprio. De princípios jurídicos mais ou menos gerais deduzem corolários; uns eoutros se condicionam e restringem reciprocamente, embora se desenvolvam de mo<strong>do</strong> que constituem elementosautônomos operan<strong>do</strong> em campos diversos” (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação <strong>do</strong> Direito. 9. ed. Riode Janeiro: Forense, 1984, p. 128).142R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


de atingirmos nossos fins (HOBBES, Thomas. "Da condição natural dahumanidade, no que diz respeito à sua felicidade e desgraça". In: MORRIS,Clarence (Org.). Os grandes filósofos <strong>do</strong> Direito. São Paulo: MartinsFontes, 2002).Como, então, negar a uma pessoa o direito de saber e descobrirquem é ela, qual é sua real e verdadeira identidade, poden<strong>do</strong> ser diversadaquela que lhe informaram, que se exterioriza como única?Impõe-se, assim, ao juiz de nossos tempos adequar os instrumentosprocessuais antigos e, às vezes, anacrônicos às necessidades <strong>do</strong> direitomaterial de hoje, já que, reconhecidamente, o direito processual não éum fim em si mesmo e só se justifica como instrumento de acesso e garantiada realização plena <strong>do</strong>s direitos que emergem da ordem jurídicamaterial, de forma a buscar a concretização <strong>do</strong> direito maior de igualdade,pelo menos na possibilidade de que to<strong>do</strong>s conheçam e possam desfrutarda convivência familiar.Nessa perspectiva de estar vivencian<strong>do</strong> uma verdadeira revoluçãona aplicação <strong>do</strong> Direito, no aprimoramento da Justiça, busca-se aproximála<strong>do</strong> homem como centro de irradiação de todas as forças universais e aquem devem ser dedica<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s os esforços e dirigidas todas as açõespara garantir a efetiva concretização de seus direitos fundamentais.11. A PESSOA: VALOR-FONTE FUNDAMENTAL DO DIREITOGarantir a liberdade dentro de uma sociedade solidária é odesafio que se coloca. Liberdade para to<strong>do</strong>s e não apenaspara alguns. Liberdade que sirva aos anseios mais profun<strong>do</strong>sda pessoa humana. De mo<strong>do</strong> algum a liberdade que sejainstrumento para qualquer espécie de opressão.(João Batista Herkenhoff)Diante de tantas incertezas, revela-se fundamental a necessidadede uma reflexão crítico-construtivo desconstrutivista mais aprofundadaem direção a um sistema jurídico liberto de distorções preconceituosas eestigmatizantes que, muitas vezes, impede-nos de pensar e de ver o queestá diante de nós.Essa necessidade se revela mais forte e premente quan<strong>do</strong> esses sistemasdizem sobre as relações pessoais consistentes na união de pessoas(sem qualquer preconceito como homem/mulher, casamento etc.) não sóR. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 143


originadas na natural necessidade gregária <strong>do</strong> ser humano, mas tambémna propensão humana a socializar-se, unin<strong>do</strong>-se a seus iguais.Ao longo <strong>do</strong> tempo, o homem vem incorporan<strong>do</strong> esses valores deimportância transcendental, deixan<strong>do</strong> para trás a época em que era considera<strong>do</strong>apenas e tão somente como força de trabalho, quan<strong>do</strong> seu valorera maior ou menor, conforme seu potencial de produção.A sociedade evoluiu, o homem se modernizou e galgou atingir ostatus central na ordem jurídica mundial, a despeito de uma série de situaçõesem que se configuram o desrespeito, a agressão a seus direitosmínimos existenciais. Essas situações talvez sejam fruto de uma políticaglobalizante, fundamentada no lucro e no consumo. De qualquer forma,a sociedade vem experimentan<strong>do</strong>, ainda que a duras penas, a força preceptivada Constituição Federal em seu objetivo de garantia <strong>do</strong>s direitosfundamentais, ainda que mínimos.De qualquer forma, os movimentos internacionais volta<strong>do</strong>s à preservaçãoe à proteção <strong>do</strong>s direitos humanos vêm ganhan<strong>do</strong> força e prestígio,a ponto de que, em diversos países, inclusive o Brasil, os trata<strong>do</strong>s quecontam com a adesão formal são incorpora<strong>do</strong>s pela ordem jurídica comstatus de norma constitucional. Da mesma forma, tais direitos vêm sen<strong>do</strong>reconheci<strong>do</strong>s e incluí<strong>do</strong>s nos textos constitucionais de diversos países. Se,por um la<strong>do</strong>, tal fato pode pouco representar diante de forças atuantesque inviabilizam, impedem e dificultam sua concretização de outro, rendeensejo a que movimentos organiza<strong>do</strong>s a partir da força popular exerçampressão política cada vez mais eficaz.A atuação eficaz <strong>do</strong> Poder Público se mostra fundamental para aplenitude <strong>do</strong> exercício e a preservação da democracia, que tem comoelementos primordiais o homem e o Poder Judiciário, que deve atuarcom independência e consciência de sua importância, de forma atornar real, palpável e concreta a norma até então prevista apenas noplano da abstração.A força da hermenêutica se faz presente no senti<strong>do</strong> de buscar ainterpretação das normas legais e constitucionais de forma que propiciee possibilite o respeito aos direitos humanos e fundamentais, até mesmocomo forma de tornar concreto o mandamento de que to<strong>do</strong> o poder emana<strong>do</strong> povo, que, em certos momentos, vem sen<strong>do</strong> solapa<strong>do</strong> pelo que sepassou a denominar de “reserva <strong>do</strong> possível”.144R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


Ao juiz incumbe a tarefa de efetivação <strong>do</strong>s direitos fundamentais,ainda que dele não seja exclusiva, preservan<strong>do</strong> sempre os princípios daunidade da Constituição, sob o postula<strong>do</strong> da proporcionalidade. Algunsargumentam que, em tempos de crise, até mesmo a garantia de direitossociais mínimos poderia colocar em risco a necessária estabilidade econômica,impon<strong>do</strong>-se o “embalsamamento” <strong>do</strong> Poder Judiciário. No entanto,é importante salientar, com Alexy, que, justamente em tais circunstâncias,uma proteção de posições jurídicas fundamentais na esfera social,por menor que seja, revela-se indispensável. Talvez seja uma tarefa quemelhor caberia a Deus, visto que:Desde que Deus se retirou da vida política (e se despediu dahistória), seu cargo na estrutura funcional não foi declara<strong>do</strong>vago.Assim como outrora ELE, o povo foi desde então usa<strong>do</strong> daboca para fora e conduzi<strong>do</strong> aos campos de batalha por to<strong>do</strong>sos interessa<strong>do</strong>s no poder ou no poder-violência, sem queantes lhe tivessem pergunta<strong>do</strong>. A diferença reside no fatode que o povo poderia ter si<strong>do</strong> perfeitamente consulta<strong>do</strong>.Mas nesse caso os <strong>do</strong>nos <strong>do</strong> poder deveriam ter se contenta<strong>do</strong>com a população real, e nesse caso resultariam sempredesejos distintos, o caráter heteróclito das necessidades,a contraditoriedade <strong>do</strong>s interesses, a incompatibilidade dasintenções, em suma, a situação real. Em vez disso, e provavelmentetambém por causa disso, a despedida de Deus nãofoi aceita sem ambigüidades. E o <strong>do</strong>no <strong>do</strong> poder (juntamentecom os seus adversários que queriam tornar-se <strong>do</strong>nos <strong>do</strong> poder)criou o povo conforme a sua imagem; conforme as suasnecessidades e o seu gosto ele o criou.E a democracia? Mesmo lá onde se pensou na população ese tentou instituir seu governo, a seletividade de cada invocaçãod”o” povo (e mesmo “d”a população) acabou por se impordiabolicamente: o deus evidenciou ser dificilmente exorcizável(diferenças de informação, de cultura, de camada, de classe,de linguagem; manipulação; estrutura de vigência jurídicoinstitucional).Por trás <strong>do</strong> la<strong>do</strong> vitrine <strong>do</strong> Uno Ponto de Convergênciade todas as legitimações pel”o povo” pulula e atuaR. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 145


o politeísmo real (i.é., <strong>do</strong>s constituent groups, das classes decisoras,<strong>do</strong>s que são capazes de articulação e poder-violência(poder) entre grupos). (MÜLLER, Friedrich. Fragmento (sobre)o poder constituinte <strong>do</strong> povo. Tradução de Peter Naumann.São Paulo: Revista <strong>do</strong>s Tribunais, 2004, p. 21-22)Veja-se que, mesmo quan<strong>do</strong> se cuida <strong>do</strong> soberano poder <strong>do</strong> povo,há que se voltar os olhos para o que existe por detrás, quais são as forçasque atuam e, eventualmente, se elas servem <strong>do</strong> povo apenas e tão somentecomo massa de manobra. No entanto, com a evolução da espéciehumana, com o maior acesso às informações, com a conscientização deque o progresso de qualquer povo está a depender dele próprio, de suaforça revitaliza<strong>do</strong>ra e, até mesmo, revolucionária quan<strong>do</strong> necessário, oque só ocorre com educação e cultura, buscar-se-á um sopro de esperançapara a transformação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, em definitivo, num lugar pacífico eapto à realização <strong>do</strong> sonho maior da humanidade de viver plenamente eem paz.Neste clima de progresso e novos ares, a instituição familiar experimentasignificativas e profundas mudanças, pugnan<strong>do</strong> e vivencian<strong>do</strong>importante ruptura com os conceitos e parâmetros que a nortearam, aolongo <strong>do</strong>s séculos. Nesse processo, passou a ser vista e vivida como locusapropria<strong>do</strong> ao desenvolvimento <strong>do</strong> ser humano, quer sejam os filhos,quer os cônjuges, que, nesta versão moderna, romperam também com anecessidade <strong>do</strong> matrimônio formal, contratual e mesmo religioso, paraque sejam considera<strong>do</strong>s como verdadeiros parceiros, companheiros, enfim,pessoas que, de forma consciente e independente, resolveram viverjuntas, dedican<strong>do</strong> suas atenções, carinhos e afetos, ao mesmo tempoem que dividem angústias, temores e decepções. Exatamente nesse terrenofértil de sentimento, de afetividade, de dedicação, busca-se o “enquadramento”<strong>do</strong> ser humano na condição de companheiro.Inolvidável concluir-se, igualmente, que um novo conceito de uniãoafetiva está sen<strong>do</strong> construí<strong>do</strong>, fruto da crise caracterizada pelo fato deque os existentes já não mais atendem às características atuais dessa condição,nem dão conta de abarcá-las. Os conceitos existentes estão sen<strong>do</strong>desconstruí<strong>do</strong>s, e há um questionamento das formas contemporâneasde surgimento. No dia a dia, uma vastíssima variedade de famílias estáse constituin<strong>do</strong> pela união de pessoas que não necessariamente tenham146R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


vínculos jurídicos ou sanguíneos, mas, mesmo assim, elas formam novosnúcleos familiares – que têm como elo principal o afeto – e são passíveis,portanto, de reconhecimento e tutela.Diante das circunstâncias que passaram a regulamentar o matrimônioe sua desconstituição, com relativa facilidade, os segmentos mais conserva<strong>do</strong>resda sociedade sentenciaram a desagregação total e completada família, fruto da libertinagem, da liberdade sexual, da ânsia cada vezmaior de buscar a tão propalada liberdade. Mas verificou-se exatamenteo contrário. Após um primeiro momento em que esses receios podiamparecer justifica<strong>do</strong>s, passou-se a uma segunda fase, em que as famílias, jálibertas das amarras <strong>do</strong> contrato, ou mesmo <strong>do</strong> receio de “queimarem nofogo <strong>do</strong> Inferno ou de serem excomungadas”, passaram a formar novosnúcleos, liga<strong>do</strong>s exclusivamente, ou principalmente, por força <strong>do</strong> amor,da fraternidade, da solidariedade e <strong>do</strong> afeto.Porém, esse ingrediente fundamental, importante, essencial para amanutenção de qualquer relacionamento familiar, profissional, amoroso,contratual ou de qualquer outra ordem, é simplesmente ignora<strong>do</strong> querpelo legisla<strong>do</strong>r ordinário, quer pelo constitucional. Na verdade o que severifica é a tendência de o sistema positiva<strong>do</strong> relegar ao plano da inexistênciaaquele que se apresenta como o mais forte e talvez o únicoelemento que possibilite a manutenção e o fortalecimento <strong>do</strong>s laços familiares.No entanto, também respiran<strong>do</strong> ares de modernidade, fruto <strong>do</strong> fortalecimento<strong>do</strong> regime democrático, alicerça<strong>do</strong> na Constituição Federal e naperseverança propulsora contida na efetividade <strong>do</strong>s princípios nela inseri<strong>do</strong>s,demarca-se ordem jurídica que busca a Justiça, de forma constante e obstinada,alçan<strong>do</strong> a pessoa humana à condição de fundamento e fim de to<strong>do</strong> oDireito, como professa Miguel Reale ("A pessoa, valor-fonte fundamental <strong>do</strong>Direito". In: Nova fase <strong>do</strong> Direito Moderno. São Paulo: Saraiva, 1990)Por esse motivo, toda a normatização legal e os princípios constitucionaisencontram sua razão e origem no homem e na sua liberdade, daí opapel fundamental <strong>do</strong> Direito enquanto técnica de convivência indispensávelpara a manutenção e reforma, quan<strong>do</strong> necessária, da sociedade,fundamentadas em procedimentos que, enquanto legalidade, conferemqualidade ao exercício <strong>do</strong> poder, sen<strong>do</strong> por isso mesmo, indispensáveis,dada a relevância entre meios e fins e o nexo estreito que existe entre procedimentose resulta<strong>do</strong>s. Não se fala, aqui, da liberdade fundada no prin-R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 147


cípio da igualdade formal, segun<strong>do</strong> a concepção <strong>do</strong> liberalismo clássico,que entendia que o Esta<strong>do</strong> deveria abster-se de quaisquer intervençõesna vida econômica e na vida social. A partir <strong>do</strong> momento em que foramaboli<strong>do</strong>s os privilégios, desigualdades artificiais, cada cidadão poderia desenvolverlivremente as suas aptidões segun<strong>do</strong> as suas qualidades pessoais.Estaria, assim, garantida a igualdade de oportunidades – a igualdadeverdadeira, aquela que consiste em tratar igualmente coisas iguaise desigualmente coisas desiguais –, idealizada na República de Weimare em sua Constituição de 1919, que inaugurou, na Alemanha, o Esta<strong>do</strong>social de direito.Esses ares solidários e protetivos se fizeram sentir no Direito norte-americanopor meio da jurisprudência que se formou em torno da VEmenda da Constituição (1791), resultan<strong>do</strong> no due process of law e com ainclusão, em 1868, da XIV Emenda da cláusula equal protection of the law,que viria a ser o suporte <strong>do</strong> controle e respeito pela igualdade.Escreve a respeito Carlos Roberto Siqueira Castro:O princípio da igualdade articula-se com o princípio da dignidadeda pessoa humana, por seu significa<strong>do</strong> emblemáticoe cataliza<strong>do</strong>r da interminável série de direitos individuais ecoletivos sublima<strong>do</strong>s pelas constituições abertas e democráticasda atualidade, acabou por exercer um papel de núcleofilosófico <strong>do</strong> constitucionalismo pós-moderno, comunitário esocietário [...]. Nesse contexto de novas ordens e novas desordens,os princípios e valores ético-sociais sublima<strong>do</strong>s naConstituição, com a proeminência <strong>do</strong> princípio da dignidadede homens e mulheres, assumiram o papel de faróis deneblina a orientar o convívio e os embates humanos no nevoeirocivilizatório neste prólogo <strong>do</strong> novo milênio e de umanova era. [...] Afivela<strong>do</strong>s estão os princípios da igualdade eda dignidade da pessoa humana, enquanto elementos deutopia concreta que atendem as perspectivas constitucionalhumanitárias.Assim é que a dignidade da pessoa humana(art. 1 o , inc. II da CRFB) consta <strong>do</strong> rol <strong>do</strong>s fundamentos <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> Democrático de Direito. (apud ABREU, Sérgio. "O princípioda igualdade: a (in)sensível desigualdade ou a isonomia148R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


matizada". In: PEIXINHO, Manoel Messias; GUERRA, IsabellaFranco; NASCIMENTO FILHO, Firly (Orgs.). Os princípios daConstituição de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001,p. 253-267).Assim, no plano jurídico e em tu<strong>do</strong> o mais, o homem é a medidade todas as coisas. Nunca pareceu tão oportuna a célebre frase <strong>do</strong> sofistagrego Protágoras: O homem é a medida de todas as coisas, das coisas quesão, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são. (FALCÃO,Raimun<strong>do</strong> Bezerra. Hermenêutica. São Paulo: Malheiros, 1997).Esse homem, centro <strong>do</strong>s direitos, ainda carrega o far<strong>do</strong> <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>carcomi<strong>do</strong>, fruto de um liberalismo que pregou e conduziu ao capitalismoselvagem, que o manteve por muito tempo, apenas como valor enquantoser produtivo e consumi<strong>do</strong>r. Quan<strong>do</strong> já não mais pudesse ser uma coisaou outra, era trata<strong>do</strong> como de nenhuma serventia e simplesmente relega<strong>do</strong>ao aban<strong>do</strong>no e descarta<strong>do</strong>. Ainda que atualmente se experimenteo crescimento da visão social <strong>do</strong> Direito, não raro se veem filas de velhinhosnas portas de repartições públicas, praticamente esmolan<strong>do</strong> osdireitos pelos quais pagaram a vida toda; filas quilométricas de pessoasem busca de um emprego, ainda que de reduzida remuneração; criançasexploradas em sinais de trânsito, em busca de uma migalha para comer,longe da escola, da família e das mínimas condições de concretização <strong>do</strong>sonho <strong>do</strong>ura<strong>do</strong> de formar uma personalidade sadia, não lhes restan<strong>do</strong>outro caminho ou alternativa que não seja o único trabalho que lhes seráofereci<strong>do</strong> – a criminalidade.Não obstante, constitui a dignidade um valor universal. A despeitodas diversidades socioculturais perversas e de todas as diferenças físicas,intelectuais, psicológicas, as pessoas são detentoras de igual dignidade,embora diferentes em suas individualidades. Elas apresentam, em funçãoda humana condição, as mesmas necessidades e faculdades vitais, e o respeitonão pode ser considera<strong>do</strong> como generosidade, mas sim como deverde solidariedade imposto a to<strong>do</strong>s pela ética, e não necessariamente pelodireito, pela religião ou por outra qualquer força estruturante.Schopenhauer, em Sobre o fundamento da moral, escreveu:[o] egoísmo humano é sem limites e comanda o mun<strong>do</strong>, poiso homem quer tu<strong>do</strong> <strong>do</strong>minar, o homem relacional pretendeque tu<strong>do</strong> exista e gire em torno de seu interesse, ainda queR. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 149


esse interesse seja dirigi<strong>do</strong> a uma recompensa a ser recebidafora deste mun<strong>do</strong>. A própria cordialidade entre homens nadamais é <strong>do</strong> que a mera hipocrisia reconhecida e convencional.(SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral.São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 85)Apesar dessa visão pessimista, não há de se perder a esperança nohomem.De qualquer forma, a dignidade humana constitui princípio fundamental.Por esse motivo, independe de previsão legal (e até mesmo constitucional,pois é valor da humanidade) para que seja respeitada, mas,quan<strong>do</strong> inserida no texto constitucional, ganha visibilidade e possibilidadede aceitação, até mesmo por aqueles positivistas mais arraiga<strong>do</strong>s àcaolha e insuficiente visão de Direito.Nesse caminhar, sen<strong>do</strong> o Direito também integra<strong>do</strong> por princípiosgerais, escritos ou não, que dão suporte a to<strong>do</strong> o ordenamento jurídico,vem sen<strong>do</strong> propagada a ideia de que o Direito é um sistema não apenasde regras, mas também de princípios que operam já não mais como fontessubsidiárias, mas sim primárias e prevalentes, sobrepon<strong>do</strong>-se inclusive aostextos legais. Esse movimento convida ainda a que sejam interpreta<strong>do</strong>s deforma abrangente e expansiva, alçan<strong>do</strong> o intérprete e aplica<strong>do</strong>r da norma àcondição de responsável pela concretização <strong>do</strong>s direitos humanos.É interessante assinalar que essa tendência só passou a ser aceitacom um pouco menos de reação muito recentemente, sen<strong>do</strong> por demaisrelevante a corajosa contribuição de estudiosos (no exterior, citam-se RonaldDworkin, Robert Alexy, John Rawls e J. J. Canotilho; no Brasil, PauloBonavides, Luís Roberto Barroso, Daniel Sarmento, Miguel Reale, JoãoHerkenhoff, Luiz Edson Fachin, Gustavo Tepedino, entre outros) de umaescola progressista, humanitária e voltada à efetiva valorização <strong>do</strong> ser humanoque se dispõe a lançar o desafio à reflexão, como feito por LuizEdson Fachin: Recusar essa direção e contribuir para a sua superação significareconhecer que consciência social e mudança integram a formaçãojurídica. Representa, ainda, um compromisso com o chamamento àverdadeira finalidade <strong>do</strong> ensino e da pesquisa jurídica, um desafio quequestiona. ("Virada de Copérnico – Um convite à reflexão sobre o Direito<strong>Civil</strong> brasileiro contemporâneo". In: FACHIN, Luiz E. (Coord.). Repensan<strong>do</strong>os fundamentos <strong>do</strong> Direito <strong>Civil</strong> Brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro:Renovar, 2000, p. 319).150R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


Consideran<strong>do</strong>, portanto, sua aplicabilidade direta e imediata, osprincípios impregnam, com toda sua carga valorativa, as normas jurídicas,relacionan<strong>do</strong>-se de forma mais próxima com os direitos da personalidadee os direitos fundamentais.Pari passu com essas ideias, ganharam força as normas legais deconteú<strong>do</strong> aberto, o enfoque <strong>do</strong> ordenamento jurídico permeável, necessitan<strong>do</strong>sempre da complementação, integração e atualização, que sãofunções <strong>do</strong> intérprete. Deve-se admitir também que essa mudança de paradigmanão ocorre sem muita e forte reação de um segmento reacionário,mas ainda majoritário, que atua no Direito. Não raro, quan<strong>do</strong> o temaé posto em debate, ouve-se o argumento de que essa visão supostamenteabstracionista acarretaria insegurança na aplicação das normas, renden<strong>do</strong>ensejo ao arbítrio <strong>do</strong> intérprete. Porém, refletin<strong>do</strong> responsavelmente sobreo assunto, não se pode esquecer o fundamento de que também paraesse sistema há regras de hermenêutica.Assim, a concretização <strong>do</strong>s direitos fundamentais, entre os quais oprincípio da dignidade humana, vem ganhan<strong>do</strong>, a duras penas, fôlego erespal<strong>do</strong> da <strong>do</strong>utrina mais oxigenada, embora haja forte, porém decrescente,reação da jurisprudência, fruto <strong>do</strong> tradicionalismo que <strong>do</strong>mina ostribunais, não raro avessos a mudanças.Exatamente essa forma de pensar e de agir põe o Poder Judiciárioem xeque, afasta<strong>do</strong> da sociedade, desconhece<strong>do</strong>r <strong>do</strong> jurisdiciona<strong>do</strong>,com procedimentos arcaicos e ineficientes, com rituais extremamentelongos e demora<strong>do</strong>s, que geram desconfiança da população e lhe solapama credibilidade. Nesse contexto, já se faz tardia a oportunidade deprofunda e sensível reforma, não só nos procedimentos, mas, principalmente,na forma de pensar de seus componentes.Essa linha de argumentação indiscutivelmente demanda que sebusquem e propiciem, cada vez mais, espaços de interlocução e possibilidadede pensamento dialético e inova<strong>do</strong>r. Torna-se mister seguir ospassos <strong>do</strong> legisla<strong>do</strong>r constitucional que iluminou e pavimentou o caminhoposteriormente traça<strong>do</strong> pelo novo Código <strong>Civil</strong>, notadamente no que serefere à sua aplicação e interpretação, de forma a corresponder aos anseios<strong>do</strong>s cidadãos, servin<strong>do</strong> como sinaliza<strong>do</strong>r para a construção de umasociedade mais igualitária, mais justa, menos preconceituosa e discriminatória,na qual a família seja um verdadeiro LAR: Lugar de Afeto eRespeito.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 151


Esse debate inova<strong>do</strong>r e, de certa forma, desafia<strong>do</strong>r faz parte deuma forma diferente de pensar o Direito, não como conjunto de regraspositivadas e impositivas, aplicadas pela fórmula da subsunção, mas comoforma liberta<strong>do</strong>ra, resultante da educação continuada. Trazen<strong>do</strong> a lumeas sábias palavras de Luiz Edson Fachin, cabe recordar que, “em to<strong>do</strong> campo<strong>do</strong> saber (daí a pertinência quiçá especial com a instância jurídica),há o desafio de conhecer para transformar, pois a educação que tão sóreproduz não liberta”.É pertinente invocar ainda os ensinamentos de Paulo Freire: A educaçãoé um ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não pode temer odebate. A análise da realidade. Não pode fugir à discussão cria<strong>do</strong>ra, sobpena de ser uma farsa. (FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade.23. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 42).Áci<strong>do</strong>, mas também, há que se reconhecer, absolutamente real eatual, é o posicionamento de Marilena Chaui:as leis, porque exprimem os privilégios <strong>do</strong>s poderosos ou avontade pessoal <strong>do</strong>s governantes, não são vistas como expressãode direitos nem de vontades e decisões públicascoletivas. O poder Judiciário aparece como misterioso, envoltonum saber incompreensível e numa autoridade quasemística. Por isso mesmo, aceita-se que a legalidade seja, porum la<strong>do</strong>, incompreensível e, por outro, ineficiente (a impunidadenão reina livre e solta?) e que a única relação possívelcom ela seja a da transgressão (o famoso “jeitinho”). Comose observa, a democracia, no Brasil, ainda está por ser inventada.(op. cit. p. 408)Talvez a contribuição <strong>do</strong> Direito seja exatamente propiciar, estimulare mesmo forçar o fortalecimento <strong>do</strong> regime democrático, transpon<strong>do</strong>-oda teoria à prática e fundan<strong>do</strong> novos paradigmas origina<strong>do</strong>s narelação sincera e solidária entre as pessoas. O Direito deve se transformarnum espaço de diálogo e interlocução <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de respeito e ter, naprevalência <strong>do</strong> homem e na preponderância <strong>do</strong>s direitos a ele relativos,seu valor maior.12. EM BUSCA DE UM PARADIGMA – A AFETIVIDADEA tolerância e a liberdade na multiplicidade de formas ecaminhos a seguir para os pesquisa<strong>do</strong>res trouxe também uma152R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


nova intolerância e radicalismo daqueles que, com me<strong>do</strong> <strong>do</strong>outro, <strong>do</strong> novo, <strong>do</strong> diferente, ou mesmo com me<strong>do</strong> <strong>do</strong> antigo,<strong>do</strong> tradicional, <strong>do</strong> ainda francamente majoritário no cenáriojurídico nacional, tentam impor uma só maneira de pensar,uma só forma “teoricamente científica” de pesquisar, uma sómeto<strong>do</strong>logia, um só discurso e linguagem, uma só linha depensamento na academia.(Cláudia Lima Marques)Parece razoável, a esta altura <strong>do</strong> texto, e após tu<strong>do</strong> quanto se afirmou,questionou e discutiu, observar que os valores lança<strong>do</strong>s nas leis ena própria Constituição Federal, como fundamentais para construção eexistência de uma família (casamento ou união estável entre pessoas desexos diferentes), já não atendem às necessidades da realidade atual.As pessoas, já libertas de algemas apregoadas pelo moralismo exacerba<strong>do</strong>,por questões religiosas ou até por imposição da saúde pública(por exemplo, a necessidade de frear a epidemia da Aids), ligam-se emantêm relacionamentos estáveis, dura<strong>do</strong>uros, que frutificam e geramfilhos, que são cria<strong>do</strong>s em clima que lhes é propício à formação da personalidade,apenas e tão somente se assim o desejam, ou seja, se há umelo subjetivo, afetivo, sentimental e ético que seja suficientemente forte ecapaz de assim mantê-los.Este valor – a afetividade – está a merecer maior atenção de estudiosos<strong>do</strong> direito, da psicologia e da sociologia para que seja alça<strong>do</strong> aostatus de relevância que atualmente representa, de extrema importânciaà felicidade e à plenitude da pessoa humana, reconhecida agora comodestinatária e astro maior de to<strong>do</strong> o sistema jurídico constitucionaliza<strong>do</strong>e calca<strong>do</strong> sobre a preponderância <strong>do</strong>s seus direitos fundamentais.Não há mais como ignorar que o Direito <strong>Civil</strong> atual é outro, remodela<strong>do</strong>,com novos paradigmas, constitucionaliza<strong>do</strong> e oxigena<strong>do</strong> por valorese fundamentos diversos daqueles que apoiavam e alicerçavam o Código<strong>Civil</strong> de 1916, fruto <strong>do</strong> liberalismo exacerba<strong>do</strong> que elegeu a propriedade eo patrimônio como forças centrais <strong>do</strong> ordenamento legal, poisEste Direito <strong>Civil</strong> “repersonaliza<strong>do</strong>” que se ancora em princípiose fins para além da suposta autonomia e pretensaigualdade; sem carpir-se no futuro aconteci<strong>do</strong> ontem, saudaro reconhecimento da pessoa e <strong>do</strong>s direitos da personalida-R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 153


de, mesmo que seja para prantear os não reconheci<strong>do</strong>s, osexcluí<strong>do</strong>s de to<strong>do</strong>s os gêneros; no véu da liberdade contratualencontrar mais responsabilidade que propriedade, menosposse na formação epistemológica <strong>do</strong> núcleo familiar; efotografar a legitimidade da herança e direito de testar naconcessão que também outorga personalidade jurídica aosentes coletivos. E aí filmar o roteiro das tendências contemporâneas.(FACHIN, 2000, p. 6)Na mesma senda, pode-se colher o ensinamento de Orlan<strong>do</strong> deCarvalho, que, explican<strong>do</strong> o significa<strong>do</strong> de “repersonalização”, afirmou:É esta valorização <strong>do</strong> poder jurisgênico <strong>do</strong> homem comum –sensível quan<strong>do</strong>, como no direito <strong>do</strong>s negócios, a sua vontadefaz lei, mas ainda quan<strong>do</strong>, como no direito das pessoas, a suapersonalidade se defende, ou quan<strong>do</strong>, como no direito dasassociações, a sua sociabilidade se reconhece, ou quan<strong>do</strong>,como no direito de família, a sua afetividade se estrutura, ouquan<strong>do</strong>, como no direito das coisas e no direito sucessório, asua <strong>do</strong>minialidade e responsabilidade se potenciam – é estacentralização <strong>do</strong> regime em torno <strong>do</strong> homem e <strong>do</strong>s seus imediatosinteresses que faz <strong>do</strong> Direito <strong>Civil</strong> o foyer da pessoa, <strong>do</strong>cidadão puro e simples. (CARVALHO, Orlan<strong>do</strong>. A teoria geralda relação jurídica. Coimbra: Centelha, 1981, p. 92)Como disse Vinícius de Moraes, “a vida é a arte <strong>do</strong> encontro, apesarde tantos desencontros”. É preciso permitir que o aconchego e a afetividadesejam as forças motrizes de uma construção constante <strong>do</strong> serhumano pleno, digno, realiza<strong>do</strong>r e concretiza<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s anseios de modernidade,que resultará, finalmente, num homem feito à imagem e semelhançadaquele que nos criou a to<strong>do</strong>s, mas que, por tanto tempo, insistimosem ser exatamente o contrário <strong>do</strong> que nos foi ensina<strong>do</strong>.No entanto, ao final e ao cabo, sempre buscan<strong>do</strong> um recomeço,sem se deixar esmorecer pelas eventuais quedas, tropeços e objetivosnão atingi<strong>do</strong>s, mas, de qualquer forma, tiran<strong>do</strong> lições <strong>do</strong>s erros, na buscaconstante da convivência pacífica, humanizada e afetiva entre os seres humanosde conformidade com a realidade social atual, plúrima, múltipla,flexível e em constante movimento.154R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


Fatos marca<strong>do</strong>s por êxitos e tropeços cunham o que se pode chamarde vida, como observou Lya Luft:A história mais difícil de escrever é a nossa própria, complexa,obscura, inocente ou perversa – bem mais <strong>do</strong> que são as narrativasficcionais.Brinquei muito tempo com a idéia de dizer “sim” ou “não”a nós mesmos, aos outros, à vida, aos deuses, como parteessencial dessa escrita de nosso destino – com os naturaisintervalos de fatalidades que não se podem evitar, mas têmque ser enfrentadas.Acredito em pegar o touro pelos chifres, mas vezes demaisfiquei simplesmente deitada e ele me pisoteou com gosto.Afinal, a gente é apenas humano.Nessa difícil história nossa, de dizer sim ao negativo, ao sombrioem lugar de dizer sim ao bom, ao positivo, é o desafiomaior. Pois a questão é saber a hora de pronunciar uma ououtra palavra, de assumir uma ou outra postura.O risco de errar pode significar inferno ou paraíso.Também descobri (ou intentei?) isso de existir um ponto cegoda perspectiva humana, em que não se enxerga o outro, masapenas um la<strong>do</strong> dele: seu olho vaza<strong>do</strong>, sua boca cerrada, seucoração amargo.Sua alma árida, ah...O ponto cego das nossas escolhas vitais é aquele onde a gentepode dizer “sim” ou “não”, e nossa ambivalência não nospermite enxergar direito o que seria melhor na hora: depressa,agora.O ponto mais cego é onde a gente não sabe quem disse “não”primeiro. E to<strong>do</strong>s, ou os <strong>do</strong>is, deviam naquele momento terdito “sim”.Viver é cada dia se repensar: feliz, infeliz, vitorioso, derrota<strong>do</strong>,audacioso ou com tanta pena de si mesmo. Não é precisoinventar algo novo. Inventar o real, o que já existe. NossoR. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 155


drama é que às vezes a gente joga fora o certo e recolhe oerra<strong>do</strong>.Da acomodação brotam fantasmas que tomam a si as decisões:quan<strong>do</strong> ficamos cegos não percebemos isso, e deixamosque a oportunidade escape porque tivemos me<strong>do</strong> de dizer odifícil “sim”.O “não” também é um ponto cego por onde a gente escorrepara o escuro da resignação.O ponto mais cego de to<strong>do</strong>s é onde a gente nunca mais poderádizer “sim” para si mesmo. E aí tu<strong>do</strong> se apaga. Mas com o“sim” as luzes se acendem e tu<strong>do</strong> faz senti<strong>do</strong>.Dizer “sim” a si mesmo pode ser mais difícil <strong>do</strong> que dizer“não” a uma pessoa amada: é sair da acomodação, pegarqualquer espada – que pode ser uma palavra, um gesto, ouuma transformação radical, que custe lágrimas e talvez sangue– e sair à luta.Dizer “sim” para que o destino nos oferece significa acreditarque a gente merece algo pareci<strong>do</strong> com crescer, iluminar-se,expandir-se, renovar-se, encontrar-se, e ser feliz.Isto é: vencer a culpa, sair da sombra e expor-se a to<strong>do</strong>s osriscos implica<strong>do</strong>s, para finalmente assumir a vida. (LUFT, Lya.Pensar é transgredir. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 15.)Essas palavras, esse pensamento e, acima de tu<strong>do</strong>, esse sentimentode pacificar, de partilhar de forma fraterna e solidária os conhecimentose direitos, hão de ser aplica<strong>do</strong>s e interpreta<strong>do</strong>s na busca <strong>do</strong> consenso daconvivência respeitosa <strong>do</strong>s contrários, como professa a ancestral sabe<strong>do</strong>riachinesa que se caracteriza pela insaciável busca de integração <strong>do</strong>sopostos e da harmonização das forças, principalmente psíquicas. Segun<strong>do</strong>informa o teólogo Leonar<strong>do</strong> Boff (2004):nós ocidentais, somos herdeiros de um pensamento linearque trabalha constantemente com o princípio da identidadee de contradição, tardiamente enriqueci<strong>do</strong> pela dialética.Nossa postura antropológica nos fez imperialistas e <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>resde todas as diferenças. Ou elas são incorporadas156R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


na mesmice ocidental ou subalternizadas e até destruídas.A sabe<strong>do</strong>ria procura sempre incluir os opostos. Tal posturavem expressa pelo famoso tai-ki, o círculo dentro <strong>do</strong> qual seentrelaçam como que duas cabeças de peixe. É a presençadas duas forças universais – ying e yang (céu e terra, luz esombra, masculino e feminino) que entram na composiçãode to<strong>do</strong>s os seres. Ying e Yang concretizam o shi, a energiaprimordial e misteriosa que sustenta tu<strong>do</strong>, chamada de Tao.Tao é mais que caminho é a energia pela qual fazemos ocaminho e que possibilita qualquer realidade. (BOFF, Leonar<strong>do</strong>."Sabe<strong>do</strong>ria chinesa". Jornal <strong>do</strong> Brasil, Rio de Janeiro,28 maio 2004)Talvez seja esse o sentimento a animar to<strong>do</strong>s quantos se tenhamda<strong>do</strong> conta de que o Direito existe em função <strong>do</strong> homem, e o homem émuito mais <strong>do</strong> que matéria e patrimônio, é alma, espírito e coração. Assim,há de se iniciar (ou continuar) a séria intenção de buscar caminhosque possam conduzir à efetiva concretização <strong>do</strong>s direitos fundamentais<strong>do</strong> ser humano no interior <strong>do</strong> sistema jurídico vigente.Esse Direito mais humaniza<strong>do</strong> deve ser observa<strong>do</strong> com as lentesliberta<strong>do</strong>ras da democracia, sem compromisso com a preservação <strong>do</strong> quese ponha como afronta à pessoa como centro <strong>do</strong> universo, fonte e destinode todas as forças catalisa<strong>do</strong>ras voltadas à sua plena realização individual,familiar, coletiva e social.Há que se buscar um paradigma que atenda a realidade inafastávele impossível de se ignorar que é representada por um valor maiorque se faz forte, pujante e definitivo, que é a socioafetividade. Sem isso,continuará o sistema jurídico a gritar para sur<strong>do</strong>s, a escrever na areia dapraia, afastan<strong>do</strong>-se cada vez mais da legitimidade necessária às decisõesjudiciais.13. CONSIDERAÇÕES FINAISA globalização comporta um fenômeno mais profun<strong>do</strong> que o econômico-financeiro,o qual marcou o liberalismo patrimonial e mercantilista.Implica, sim, a inauguração de uma nova fase da história da Terrae da humanidade. Estamos mudan<strong>do</strong> de paradigma civilizacional, e issosignifica que está nascen<strong>do</strong> um outro tipo de percepção da realidade,R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 157


com novos valores, novos sonhos, nova forma de organizar os conhecimentos,novo tipo de relação social, nova forma de dialogar com anatureza e com o mun<strong>do</strong> e nova maneira de entender o ser humano noconjunto <strong>do</strong>s seres.Esse paradigma nascente nos obriga a operar progressivas travessias:importa passar da parte para o to<strong>do</strong>, <strong>do</strong> simples para o complexo, <strong>do</strong>local para o global e <strong>do</strong> nacional para o planetário. Isso nos permite perceberque to<strong>do</strong>s somos interdependentes. O destino comum foi globaliza<strong>do</strong>.Agora há uma escolha: ou cuidamos da humanidade e <strong>do</strong> homem, ounão teremos mais futuro algum. Não nos é mais permiti<strong>do</strong> pensar e vivercomo antes, sem preocupação com o amanhã, com o porvir e com o próximo,pelos quais, agora sabemos, somos to<strong>do</strong>s responsáveis. Temos quemudar as formas de nos relacionarmos, com os outros e com o planeta,como condição de nossa própria sobrevivência.Para a consolidação desse novo paradigma, é importante superar ofundamentalismo da cultura ocidental, hoje mundializada, que pretendedeter a única visão das coisas, válida para to<strong>do</strong>s. Por outra parte, o riscoque corremos nos propicia a chance de reorganizarmos, de maneira maisjusta e criativa, a humanidade e toda a cadeia da vida. Essa criatividadeestá inscrita em nosso código genético e cultural, pois só nós fomos cria<strong>do</strong>scria<strong>do</strong>res e copilotos <strong>do</strong> processo evolutivo.O efeito final será uma Terra multicivilizacional, colorida por to<strong>do</strong>tipo de culturas, de mo<strong>do</strong>s de produção, de símbolos e de caminhosespirituais, to<strong>do</strong>s eles acolhi<strong>do</strong>s como legítima expressão <strong>do</strong> humano,com direito de cidadania na grande confederação das tribos e <strong>do</strong>s povosda Terra.Por isso e para isso, há de se olhar para frente, recolher to<strong>do</strong>s ossinais que nos apontam para um desfecho feliz de nossa perigosa travessiae gestar uma atmosfera de benquerença e de irmandade que nospermita viver minimamente felizes neste pequeno planeta, escondi<strong>do</strong>num canto de uma galáxia média, no interior de um sistema solar dequinta grandeza, mas sob o arco-íris da boa vontade humana e da benevolênciadivina.No Brasil, a Constituição Federal de 1988 e o novo Código <strong>Civil</strong> Brasileirotrouxeram mudanças paradigmáticas 19 e impregnaram to<strong>do</strong> o sis-19 Fritjof Capra, físico quântico, e Thomas Kuhn, filósofo das ciências, ensinam que a noção de paradigma é normalmenteutilizada para estabelecer uma diferenciação entre <strong>do</strong>is momentos ou <strong>do</strong>is níveis <strong>do</strong> processo de conhecimentocientífico. Para um entendimento mínimo <strong>do</strong> que significa essa noção, pode-se conceituar o paradigma158R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


tema de direito priva<strong>do</strong> com a preocupação social e ética, ensejan<strong>do</strong> areleitura e a filtragem, não só <strong>do</strong> sistema legal positiva<strong>do</strong>, mas também da<strong>do</strong>utrina, para adaptá-los aos novos valores, conceitos e princípios.O Direito <strong>Civil</strong> já não mais pode ser ti<strong>do</strong>, aplica<strong>do</strong> e leciona<strong>do</strong> combase nos modelos individualistas <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong>, alicerça<strong>do</strong>s em velhos<strong>do</strong>gmas liberais. Deve, sim, permitir a construção da dignidade <strong>do</strong>homem e de uma sociedade mais justa, fraterna e igualitária.Este texto se encerra. Mas espera-se que o diálogo sobre o temaesteja apenas no início, volta<strong>do</strong> sempre à compreensão da existência<strong>do</strong> homem no mun<strong>do</strong>, a facilitação e mesmo a criação de possibilidadesde convivência plena, digna, fraterna e pacífica. Isso depende de sensíveldesenvolvimento das ciências ligadas ao comportamento humano,mesmo o Direito, que é responsável pela aplicação e interpretação dasnormas e princípios legais e constitucionais. A tarefa há de ser desempenhadaem salutar compartilhar humilde, democrático e despi<strong>do</strong> de vaidadesque a nada conduzem, aproveitan<strong>do</strong> as experiências e os saberesde outras ciências.Não há como se esquecer que, em 5 de outubro de 1988, o deputa<strong>do</strong>Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte,ladea<strong>do</strong> pelo Ministro Moreira Alves, presidente <strong>do</strong> Supremo Tribunal Federal,e por José Sarney, presidente da República, proclamou o nascimentoda Constituição Cidadã, que encerrou um ciclo de 20 anos de chumbo,alçou o ser humano ao centro de todas as atenções e elevou os direitos dapersonalidade ao status de irrenunciáveis, imprescritíveis e inalienáveis.Além disso, criou instrumentos de proteção contra agressões, violênciaou ameaça a tais direitos e, exatamente nesse ponto, idealizou umaJustiça comprometida com a legitimidade de suas decisões, com a aproximaçãoda população, imune a pressões, coações e vínculos com outrosinteresses que não sejam o da distribuição da jurisdição com equidade,equilíbrio e valorização da dignidade da pessoa humana, projetan<strong>do</strong> ocomo um modelo de ciência que serve como referência para to<strong>do</strong> um fazer científico durante uma determinadaépoca ou um perío<strong>do</strong> de tempo demarca<strong>do</strong>. A partir de um certo momento da história da ciência, o referi<strong>do</strong> modelopre<strong>do</strong>minante tende a se esgotar em função de uma crise de confiabilidade nas bases estruturantes de seuconhecimento. Então, o paradigma passa a ser substituí<strong>do</strong> por outro modelo científico pre<strong>do</strong>minante. Tambémpode ocorrer o fato de <strong>do</strong>is paradigmas disputarem o espaço de hegemonia da construção <strong>do</strong> conhecimento, <strong>do</strong>fazer científico. O paradigma precedente pode passar por uma crise de credibilidade científica, ao mesmo tempo emque o modelo paradigmático emergente ainda não é aceito pela comunidade científica internacional. Assim, <strong>do</strong>isgrandes paradigmas científicos podem conviver, em disputa ou equilíbrio, durante largos perío<strong>do</strong>s da história daciência e das sociedades (CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. São Paulo: Cultrix, 1982, KUHN, Thomas. A estruturadas revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1989).R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 159


país para o futuro e nos impon<strong>do</strong> a responsabilidade da concretização <strong>do</strong>ssonhos da modernidade.Em 11 de janeiro de 2003, entrou em vigor o Código <strong>Civil</strong> brasileiro,aclama<strong>do</strong> por Miguel Reale como a Constituição <strong>do</strong> Homem Comum,alça<strong>do</strong> à condição de valor-fonte fundamental de to<strong>do</strong> o direito e, emconsequência, centro de todas as atenções, o que vem sen<strong>do</strong> chama<strong>do</strong>de repersonalização. Sonhan<strong>do</strong> com os pés no chão e ten<strong>do</strong> os olhos noporvir, utilizou-se de cláusulas gerais, com nítida mitigação <strong>do</strong> positivismo,transforman<strong>do</strong> o juiz de mera “boca da lei” em verdadeiro soluciona<strong>do</strong>rde conflitos e alçan<strong>do</strong>-o à condição de responsável pelos resulta<strong>do</strong>s e pelasorte das pessoas cujos interesses estejam por ele sen<strong>do</strong> decidi<strong>do</strong>s.Por isso e para isso, ele haverá de proceder de forma ética e humana.Assim, o Código o muniu de instrumentos poderosos, como, porexemplo, a utilização das mencionadas cláusulas gerais, trazen<strong>do</strong> consigoum modelo comprometi<strong>do</strong> com a função social <strong>do</strong> Direito e <strong>do</strong> acesso daspessoas à ordem jurídica justa, na idealização e formação de uma sociedadesolidária e fraterna, alicerce da preservação da dignidade humana.Esse é o papel <strong>do</strong> Poder Judiciário moderno, cidadão, solidário, volta<strong>do</strong>à efetivação das tarefas que a Constituição lhe atribuiu, por meioda abertura de uma imensa janela voltada à dimensão ética, mergulha<strong>do</strong>nos direitos das partes a fim de desvelar o que há por detrás de tu<strong>do</strong>, embusca da verdadeira Justiça, fazen<strong>do</strong> desaparecer a figura <strong>do</strong> juiz inerte,descomprometi<strong>do</strong> com o destino das partes e as consequências de suasdecisões, satisfazen<strong>do</strong>-se com o fato de estarem elas de acor<strong>do</strong> com asregras procedimentais. Não há mais lugar para o juiz autômato, descompromissa<strong>do</strong>,preocupa<strong>do</strong> mais com o invólucro <strong>do</strong> que com o conteú<strong>do</strong>.De fato, a Constituição Federal desfez o mito de que só poderia sera família fruto <strong>do</strong> casamento, o que se deve a uma revolução no relacionamentoentre as pessoas e a um novo posicionamento da mulher na sociedade,ocupan<strong>do</strong> espaços e exigin<strong>do</strong> respeito. A família <strong>do</strong>s nossos dias,aberta, plural, desvinculada de valores que determinem que as pessoaspermaneçam juntas por outro motivo que não seja o benquerer e a afetividade,configura-se como o ambiente ideal para a formação sadia de seuscomponentes, convivência fraterna, solidária e digna <strong>do</strong> ser humano.Com essa ruptura, afloraram-se núcleos forma<strong>do</strong>s por pessoas quenão necessariamente mantinham entre si vínculos previstos legalmente,160R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


vin<strong>do</strong> o reconhecimento <strong>do</strong> concubinato, da união estável e da convivênciaa reboque de uma realidade social que o direito fazia questão de ignorar.Agora, mais uma vez, vê-se o direito atropela<strong>do</strong> pela evolução sociale científica, desta feita pelas técnicas de inseminação artificial, clonagem<strong>do</strong> ser humano e enfrentamento pelos homossexuais <strong>do</strong> preconceitoe da discriminação.A legitimidade das decisões jurisdicionais depende <strong>do</strong>s vínculoscom os valores sociais, temporal e geograficamente localiza<strong>do</strong>s, para quepossam ser aceitas e não impostas de forma violenta. Para isso, tanto aConstituição Federal, como o Código <strong>Civil</strong> e outras normas legais vêma<strong>do</strong>tan<strong>do</strong> o sistema de utilização de cláusulas abertas, convocan<strong>do</strong> osintérpretes à complementação e conformação da norma aos fatores concretos,permitin<strong>do</strong> a evolução e a adaptação sem que seja necessária a alteraçãode seu texto, mesmo pelo controle difuso de constitucionalidade,que parece mais aproxima<strong>do</strong> <strong>do</strong>s valores da democracia, pois possibilitao argumento de que a Constituição Federal e os princípios nela inseri<strong>do</strong>sestejam sen<strong>do</strong> violenta<strong>do</strong>s. É certo que os princípios devem merecer forçanormativa prevalente mesmo sobre as próprias normas legais ou constitucionais,pois refletem as perspectivas maiores que a sociedade desejapara seu país.Mais uma vez, a Constituição Federal incumbiu o Poder Judiciáriode velar pelos direitos fundamentais da pessoa em qualquer hipótese delesão, mesmo que originada <strong>do</strong> próprio Judiciário.Assim, faz-se necessário que a atuação jurisdicional seja muitomais <strong>do</strong> que simples exercício de subsunção e que o julgamento sejaacompanha<strong>do</strong> da profunda responsabilidade de decidir, muitas vezes,a própria vida de um número eleva<strong>do</strong> de pessoas. Para isso, deve sepautar na preservação da dignidade da pessoa como valor-fonte fundamental<strong>do</strong> Direito.Talvez seja esse o paradigma que se está a buscar e tenta-se alcançar.Um elemento que justifique e explique os motivos de pessoas estareme permanecerem juntas, visto que, no momento de evolução social atual,nem a lei, nem as decisões judiciais, nem os padrões ti<strong>do</strong>s como certosna sociedade e, muito menos, a definição sexual como homem e mulherse mostram suficientes para determinar que assim se mantenham. TalvezR. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 161


seja essa a chave para a construção de um novo tempo, deixan<strong>do</strong> paratrás a indiferença social, o desamor, a falta de responsabilidade e solidariedadecom o próximo, buscan<strong>do</strong> um ponto de equilíbrio a decifrar asmensagens que emanam <strong>do</strong> Código <strong>Civil</strong> e da Constituição. Não fazê-lo éuma omissão extremamente condenável.A manutenção <strong>do</strong>s olhos volta<strong>do</strong>s aos modelos <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> transformaráo sonho da democracia social em pomposa inutilidade. Sejamosagentes da mudança, seus protagonistas, e não meros especta<strong>do</strong>res.Não se ignora que é necessário um processo lento de mudança deparadigma, mas há que ser desfraldada a bandeira da solidariedade, àfrente de to<strong>do</strong>s os propósitos, que deve ser acompanhada, também, dabandeira <strong>do</strong> sonho, como construtora da utopia <strong>do</strong> possível, e da bandeirada luta na busca de um país melhor.Na Constituição, estão os valores eleitos pela sociedade como fundamentais,os princípios que dimensionarão o justo. Uma vez nela inseri<strong>do</strong>s,transformam-se na chave de to<strong>do</strong> o sistema, determinan<strong>do</strong> o viés aser segui<strong>do</strong> pelo intérprete na tomada de decisões <strong>do</strong>s Poderes Legislativo,Executivo e Judiciário.Haven<strong>do</strong> conflito e tensão entre princípios constitucionais, cumpreao intérprete encontrar um compromisso, pelo qual se destine, a cadaprincípio, um determina<strong>do</strong> âmbito de aplicação, não se deven<strong>do</strong>, de mo<strong>do</strong>algum, eliminar algum deles. A missão <strong>do</strong> intérprete é buscar uma soluçãoconcilia<strong>do</strong>ra, definir a área de atuação de cada um <strong>do</strong>s princípios. Nãohaven<strong>do</strong> uma única solução para todas as hipóteses, prevalecerá sempreaquele que, especificamente no caso concreto, tiver maior força. Tal prevalêncianão implica restrição em abstrato da força impositiva <strong>do</strong> princípioafasta<strong>do</strong>. Em outras circunstâncias, diante de novos fatores relevantes, oprincípio antes afasta<strong>do</strong> está pronto para ser aplica<strong>do</strong>.O processo deve ser o instrumento para garantia de que a justiçaseja aflorada e que venha à superfície o que realmente esteja camufla<strong>do</strong>nos recônditos direitos alega<strong>do</strong>s pelas partes.O direito e as relações humanas demandam abertura dialética, capilaridade,contato com os demais ramos <strong>do</strong> saber, sen<strong>do</strong> necessária a discussãodesprovida de preconceitos arraiga<strong>do</strong>s num positivismo que cegae que parece já não mais ter espaço no Direito e que deve ser submeti<strong>do</strong>,162R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


sempre, aos princípios constitucionais e aos direitos fundamentais, afrouxan<strong>do</strong>os nós que transformam o jurista num autômato e retiran<strong>do</strong> a vendacolocada na deusa Têmis – muitas vezes, pretende-se que ela seja cegapara não ver as atrocidades que são cometidas em seu nome.A Justiça não é cega. Tem os olhos abertos, é ágil, acessível, altiva,democrática e efetiva. Tiran<strong>do</strong>-lhe a venda, resta ela liberta para quepossa ver e, com olhos despertos, há de ser justa, prudente e imparcial,há de ver a impunidade, a pobreza, o choro, o sofrimento, a tortura, osgritos de <strong>do</strong>r e a desesperança <strong>do</strong>s necessita<strong>do</strong>s que lhe batem à porta.E conhece, com seus olhos espertos, de onde partem os gritos e as lamúrias,o lugar das injustiças, onde mora o desespero. Mas não só vê econhece. Ela age. Essa é a Justiça que reclama, chora, grita, sofre e se fazpresente sempre que necessário para garantir a igualdade <strong>do</strong>s direitos ea efetiva garantia quan<strong>do</strong> violenta<strong>do</strong>s. Uma Justiça que se emociona.E de seus olhos vertem lágrimas. Não por ser cega, mas pela angústiade não poder ser mais justa.Não há de ser uma utopia inatingível imaginar-se e buscar-se ummun<strong>do</strong> melhor, um mun<strong>do</strong> onde prevaleça o direito volta<strong>do</strong> à satisfaçãoplena das necessidades <strong>do</strong> ser humano, das quais a maior é a felicidade.Para isso, haverá que prevalecer a força <strong>do</strong>s sentimentos que unem aspessoas apenas pelo fato de terem seus atos guia<strong>do</strong>s pelo coração, pelaafetividade, pelo benquerer, talvez o paradigma que esteja à espera deser desvela<strong>do</strong>, o elemento justifica<strong>do</strong>r das decisões judiciais e <strong>do</strong> relacionamentoentre as pessoas.Afinal, parafrasean<strong>do</strong> Ricar<strong>do</strong> Pereira Lira, enquanto exista um parde olhos choran<strong>do</strong> as lágrimas da irresignação, enquanto mentes e coraçõesbusquem o igual acesso de to<strong>do</strong>s os bens essenciais a uma vidadigna, sistemas políticos podem ser extintos, estátuas derrubadas, mitosvarri<strong>do</strong>s, mas o socialismo democrático não perecerá, o que está a depender<strong>do</strong> proceder de cada um de nós em relação aos outros e conosco, comsolidariedade e boa-fé, de forma ética, humana e desprovida de valoresmenos nobres que em nada contribuem para a concretização <strong>do</strong>s objetivosmaiores da nação, estabeleci<strong>do</strong>s na Constituição Federal. (In FACHIN,Luiz Edson. Curso de Direito <strong>Civil</strong> – Elementos críticos <strong>do</strong> Direito de Família.Coord. Ricar<strong>do</strong> Pereira Lira, Rio de Janeiro: Renovar, 1999, prefácio)R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011 163


Apenas proceden<strong>do</strong> dessa forma, permitin<strong>do</strong>, enfim, a junção derazão e emoção que integram, indissociáveis, a condição humana e asubjetividade ineliminável na busca constante de um canto de esperançamesmo que haja tanta desesperança, estaremos vergan<strong>do</strong> as bandeirasda solidariedade, <strong>do</strong> sonho e da luta de forma a entender a mensagemda poetisa curitibana Helena Kolody: “Deus dá a to<strong>do</strong>s uma estrela. Unsfazem da estrela um sol. Outros nem conseguem vê-la”.164R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 87-164, jul.-set. 2011


O Direito Priva<strong>do</strong> à luz daSupremacia da ConstituiçãoFábio Anderson de Freitas PedroAdvoga<strong>do</strong>. Pós-Gradua<strong>do</strong> em Direito Aeronáuticopela Universidade Estácio de Sá, Mestran<strong>do</strong> emDireito na Universidade Gama Filho (RJ). Professor<strong>do</strong> Curso de Direito da Pós-Graduação Lato Sensu <strong>do</strong>Centro Universitário da Cidade (RJ) e <strong>do</strong> Curso deAdministração da Faculdade São José (RJ).“Ontem os Códigos, hoje as Constituições.”(Paulo Bonavides)IntroduçãoO Direito <strong>Civil</strong> acompanhou uma série de alterações axiológicasdesde o fenômeno da Codificação. Presenciou a consolidação das normasprivadas que anteriormente eram estabelecidas de forma esparsa epouco sistematizadas e, posteriormente, na cultura pós-moderna - que seaplicam ao Direito - a efetividade <strong>do</strong>s direitos sociais com a sobrevalorização<strong>do</strong> “ser” sobre o “ter”.Foi aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> o viés eminentemente patrimonialista e passou-se aperceber o Direito como instrumento solidarista. Isto não quer dizer que oDireito Priva<strong>do</strong> tornara-se em sua essência um Direito Social, mas a distinçãopúblico-priva<strong>do</strong> de antes atualmente possui contornos flui<strong>do</strong>s, em especial,como as Constituições promulgadas em diversos recantos <strong>do</strong> globo,valorizan<strong>do</strong> os aspectos sociais e a própria dignidade da pessoa humana.Com o Código <strong>Civil</strong> Brasileiro de 2002, traçaram-se novas diretrizesna busca de um arcabouço de normas basea<strong>do</strong> no culturalismo. Buscou-seinovar a técnica redacional até então a<strong>do</strong>tada, mas evitan<strong>do</strong> uma rupturaabrupta com o sistema jurídico então vigente, a<strong>do</strong>tou-se a técnica das cláusulasgerais, sempre que possível, o que permite ao aplica<strong>do</strong>r da normaser também seu intérprete, atenden<strong>do</strong> aos postula<strong>do</strong>s da Sociabilidade,Eticidade e Operabilidade. Em sintonia com a Constituição Federal, nãodeixa de ser um instrumento eficiente na busca por um Direito para to<strong>do</strong>s.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 165-178, jul.-set. 2011 165


O neoconstitucionalismo representou, segun<strong>do</strong> Luís Roberto Barroso,“mudanças de paradigma que mobilizaram a <strong>do</strong>utrina e a jurisprudência(...), crian<strong>do</strong> uma nova percepção da Constituição e de seu papel nainterpretação jurídica em geral” 11. Antecedentes Históricos e Sociais <strong>do</strong> NeoconstitucionalismoA <strong>do</strong>utrina, de forma uníssona, consagra que o berço histórico <strong>do</strong>neconstitucionalismo foi a Europa após a 2ª Grande Guerra e seus espequesforam impreterin<strong>do</strong> seus efeitos durante to<strong>do</strong> o século XX.Para Miguel Carbonell “El neoconstitucionalismo pretente explicarun conjunto de textos constitucionales que comiezan a surgir después dela segunda guerra mundial y sobre tu<strong>do</strong> a partir de los años setenta delsiglo XX” 2No Brasil, desde o início <strong>do</strong> século XX, algumas profundas mudançassociais foram experimentadas com as várias leis abolicionistas, com osurgimento de uma classe burguesa ainda tímida face ao grande poderioostenta<strong>do</strong> pelos coronéis, vislumbrou-se o início de um movimento de Codificaçãono Brasil, desta vez com a influência <strong>do</strong> Código de Napoleão e <strong>do</strong>Código <strong>Civil</strong> Alemão, o BGB (Bürgerliches Gesetzbuch), embora a tradiçãooitocentista oligárquica atenuasse os ideais liberais pratica<strong>do</strong>s na Europa.O Código <strong>Civil</strong> Brasileiro de 1916 teve como pontos, como marcosteóricos: a propriedade e a família patriarcal, ideais socializantes não severificam nesse ordenamento, mas sim, uma hierarquização social que serefletia, como não poderia deixar de ser, no próprio Código <strong>Civil</strong>.Socialmente, o Brasil foi marca<strong>do</strong> por ser um país de dimensõescontinentais e de grandes contradições sociais e profundas desigualdades.Com o fim da escravidão, a extensa mão de obra agora liberta, porémde baixíssima qualificação, trilhava a seguinte bifurcação: permanecia nocampo trabalhan<strong>do</strong> para os fazendeiros como escravos libertos ou caminhavampara os polos urbanos, em regra sem grande estrutura urbanísticacapaz de absorvê-los de forma digna. Diante de tal situação sujeitavam-sea empregos que não exigiam grande qualificação.1 BARROSO, Luís Roberto. "Neoconstitucionalismo e Constitucionalização <strong>do</strong> Direito: o triunfo tardio <strong>do</strong> Direito Constitucionalno Brasil". In: Revista Eletrônica sobre a Reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, nº 9, Salva<strong>do</strong>r, março-abril-maio de 2007, p. 22 CARBONELL, Miguel. "El neoconstitucionalismo: significa<strong>do</strong> y niveles de análisis". In: CARBONELL, Miguel e JARA-MILLO, Leonar<strong>do</strong> García (organiza<strong>do</strong>res) El canon neoconstitucional. Madri: Trotta, 2010, p.154.166R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 165-178, jul.-set. 2011


Neste senti<strong>do</strong> Orlan<strong>do</strong> Gomes 3 explicitaNos primeiros trinta anos da República – 1889 a 1919 – acontradição resultante <strong>do</strong> desenvolvimento desigual <strong>do</strong> capitalismo<strong>do</strong> país, que, grosso mo<strong>do</strong>, pode ser expressa nocontraste entre o litoral e o interior, não provocou crises profundas,porque o setor mais ponderável da camada socialsuperior – o <strong>do</strong>s fazendeiros – utilizou, em proveito próprio,a classe média urbana, que por sua vez, adstrita ao serviçoburocrático e militar, por falta de desenvolvimento industrial,a ela se submeteu <strong>do</strong>cilmente, para alargar as suas possibilidades.Esses interesses coincidiam, por outro la<strong>do</strong>, com os daburguesia mercantil, agin<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s em detrimento da massarural, cujas condições de vida não permitiam, sequer tivesseconsciência de sua miserável situação.O modelo <strong>do</strong> Código <strong>Civil</strong> de 1916 é edifica<strong>do</strong> sobre a valorização<strong>do</strong> individualismo e busca em movimento de Codificação alçar o Código<strong>Civil</strong> à norma máxima na esfera privatista, buscan<strong>do</strong> dentro da dicotomiapúblico-priva<strong>do</strong> uma das justificativas teóricas da supremacia <strong>do</strong> Código<strong>Civil</strong> para as relações privadas.Eugênio Facchini Neto 4 , sobre a valorização <strong>do</strong> individualismo, afirmouqueÉ nesse contexto que o individualismo é visto como valor aser prestigia<strong>do</strong>, como reação ao perío<strong>do</strong> estamental que caracterizoua era medieval, em que o valor <strong>do</strong> indivíduo estavaliga<strong>do</strong> não às suas características físicas e méritos pessoais,mas ao estamento social no qual se encontrava integra<strong>do</strong>.Assim contextualiza<strong>do</strong>, entende-se a enfática defesa queA. de Tocqueville faz desse novo valor.Os ideais liberais que nortearam o Código de Napoleão 5 e o próprioCódigo <strong>Civil</strong> Brasileiro de 1916 representaram uma busca pela chamada3 GOMES, Orlan<strong>do</strong>, Raízes históricas e sociológicas <strong>do</strong> Código <strong>Civil</strong>. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 27.4 FACCHINI NETO, Eugênio. "Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização <strong>do</strong> direito priva<strong>do</strong>". In:SARLET, Ingo Wolfgang (org.) Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Priva<strong>do</strong>. Porto Alegre: Livraria <strong>do</strong>Advoga<strong>do</strong>. 2003, p. 18.5 Referência ao Código <strong>Civil</strong> Francês que foi publica<strong>do</strong> aos 21 dias <strong>do</strong> mês de marco de 1804, sob a orientação <strong>do</strong>General Napoleão Bonaparte. A sua promulgação, concretizada em 36 leis aprovadas entre 1803/4, ratificou e corrigiua maior parte das conquistas sociais alcançadas pela sociedade civil burguesa a partir da Revolução de 1789.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 165-178, jul.-set. 2011 167


segurança jurídica, consideran<strong>do</strong> que a tendência nesse momento era a<strong>do</strong> prima<strong>do</strong> <strong>do</strong> Priva<strong>do</strong> sobre o Público. O Contrato e as Leis Civis eramconsidera<strong>do</strong>s suficientes em si para que o sistema jurídico pudesse caminharsem oscilações. A burguesia, consolidan<strong>do</strong> as conquistas e buscan<strong>do</strong>evitar retrocessos nas mudanças sociais alcançadas, <strong>do</strong>gmatizava as relaçõesprivadas em uma visão notadamente patrimonialista, reduzia decerta forma a autonomia da vontade e a própria interpretação da vontadepara os cânones por ela defendi<strong>do</strong>s e incorpora<strong>do</strong>s à legislação civil.Os Códigos representavam o eixo central <strong>do</strong> direito priva<strong>do</strong>. A ConstituiçãoFederal, embora tivesse reconhecidamente o papel de Lei mais importante<strong>do</strong> sistema normativo de um país, ficava relegada a uma função demera representatividade de ideais e princípios, enquanto que o Código <strong>Civil</strong>representava a efetividade das normas a serem seguidas pela sociedade.Numa clara inversão simbólica, o Código <strong>Civil</strong> representava o instrumentojurídico de maior relevância para a sociedade, visto que as condutas humanasestavam, em bojo, definidas no ponto de vista priva<strong>do</strong>.Esta realidade <strong>do</strong> prima<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Códigos e Estatutos, de fato, foi alteradano Brasil com a promulgação da Carta Política de 1988 que, segun<strong>do</strong>Luís Roberto Barroso, “tem propicia<strong>do</strong> o mais longo perío<strong>do</strong> de estabilidadeinstitucional da história republicana <strong>do</strong> país” 62 – A Descodificação e a Era <strong>do</strong>s EstatutosA complexidade das relações sociais representa a própria inquietação<strong>do</strong> ser humano buscan<strong>do</strong> novos avanços tecnológicos e mudanças naforma de enxergar o próprio indivíduo, quer seja nas relações intersubjetivas,quer seja na própria interação <strong>do</strong> homem com o meio ambienteem que está inseri<strong>do</strong>. Houve uma valorização <strong>do</strong> homem sobre o objeto,o próprio liberalismo que, em seu âmago, traz uma série de contradiçõesna busca de um individualismo perde espaço para sentimentos mais humanistas.Embora as revoluções socialistas não tenham obti<strong>do</strong> o êxito deseus idealiza<strong>do</strong>res, passou-se a observar que ideais socializantes começarama permear as relações sociais, com uma valorização <strong>do</strong> “ser” sobre o“ter”, ou seja, uma visão <strong>do</strong> mosaico normativo, ten<strong>do</strong> em primeiro planoo indivíduo e em segun<strong>do</strong> plano a propriedade.6 BARROSO, Luís Roberto. "Neoconstitucionalismo e Constitucionalização <strong>do</strong> Direito: o triunfo tardio <strong>do</strong> DireitoConstitucional no Brasil". In: Revista Eletrônica sobre a Reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, nº 9, Salva<strong>do</strong>r, março-abril-maio de2007, p.3.168R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 165-178, jul.-set. 2011


Percebe-se a formação de um polissistema com a edição de umconjunto de regras ocupan<strong>do</strong> espaços que o Código <strong>Civil</strong> já não conseguiapreencher. Dentre essas normas, podemos de forma exemplificativa elencar,a saber: Lei <strong>do</strong> Inquilinato, Direito Imobiliário, Lei <strong>do</strong> Parcelamento <strong>do</strong>Solo Urbano, Código de Defesa <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r, Estatuto da Criança e <strong>do</strong>A<strong>do</strong>lescente, Lei das Sociedades Anônimas, Lei de Falência e RecuperaçãoJudicial, entre tantas outras.Em um primeiro momento, esse conjunto de normas com a finalidadede dar completude ao sistema priva<strong>do</strong> eram chamadas de normasextravagantes, pois eram utilizadas para regular situações não definidasno Código <strong>Civil</strong>. Serviam para dar as diretrizes a situações ou fatos sociaisfora de uma “normalidade” prevista pelo legisla<strong>do</strong>r. Posteriormente essasnormas passaram a ter o rótulo de normas especiais, quer seja nominadascomo extravagantes, quer seja nominadas como especiais. De formacristalizada demonstram que o Código <strong>Civil</strong> não tem o condão de prevertodas as condutas humanas, o que em espécie de fato é impossível a qualquerordenamento que venha edifica<strong>do</strong> em um sistema sem flexibilidade.Afinal, o ser humano está em constante transformação, quer seja peloimplemento de novas tecnologias que são diuturnamente buscadas, querseja pela relativização de condutas morais que, ao longo <strong>do</strong> tempo, sofreramsensíveis alterações.A estrutura jurídica privada <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s passou de um eixo únicoque é o Código <strong>Civil</strong> para um conjunto de microeixos jurídicos, que sãochama<strong>do</strong>s de microssistemas. Sobre o tema Orlan<strong>do</strong> Gomes comentou:Essas tantas outras leis especiais distinguem-se <strong>do</strong> Código<strong>Civil</strong> e o enfrentam, constituin<strong>do</strong> microssistemas que introduzemnovos princípios de disciplina das relações jurídicas aque se dirigem.Sua proliferação ocasionou “a emersão de novas lógicas setoriais”.Caracterizam-se, com efeito, pela especialidade e peladiferenciação ou concretude. Promulga<strong>do</strong>s para a regênciapeculiar de determinadas classes jurídicas ou para a proteçãoparticular de uma categoria de pessoas, alguns desses diplomaslegais apanham institutos dantes integrantes <strong>do</strong> Código<strong>Civil</strong>, enquanto outros atendem a novas necessidades, semregulamentação anterior. 77 GOMES, Orlan<strong>do</strong>. Raízes Históricas <strong>do</strong> Código <strong>Civil</strong>. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.11-13.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 165-178, jul.-set. 2011 169


Em razão <strong>do</strong> ativismo de nosso legisla<strong>do</strong>r, deve-se alertar para evitarsituações em que ocorram dúvidas sobre a aplicabilidade de normasem razão de conflitos entre normas especiais e o próprio Código <strong>Civil</strong>.Nesse caso, devem-se utilizar as regras de hermenêutica já conhecidas, ouseja, a) lex posterior deroga, a lei mais recente revoga a anterior quan<strong>do</strong>expressamente dispuser ou quan<strong>do</strong> tutele um mesmo instituto jurídico; eainda b) lex specialis derogat generali, a norma especial prepondera sobrea norma geral.A passagem <strong>do</strong> monossistema para o polissistema não constitui umepisódio efêmero; muito ao contrário, representa a nova lógica jurídica,pois o Código <strong>Civil</strong> possui inegavelmente um papel de destaque nas sociedadesmodernas que utilizam a sistemática da <strong>Civil</strong> Law. Sen<strong>do</strong> assim,deve gozar de uma relativa estabilidade, o que impede a aglutinação dasvárias normas especiais que estão continuamente em transformação,buscan<strong>do</strong> acompanhar o anseio da sociedade.3 – O Movimento Neoconstitucionalista e seus Reflexos noDireito Priva<strong>do</strong>No sistema dicotômico, o espaço público representa a coletividadecom suas normas de regência, sen<strong>do</strong> a preponderante a Constituição Federal.Em outro extremo observa-se o espaço priva<strong>do</strong> também com suasnormas de regência e a norma que pre<strong>do</strong>mina é o Código <strong>Civil</strong>. A partirdessa concepção, verifica-se de um la<strong>do</strong> os publicistas e de outro la<strong>do</strong> osprivatistas com concepções axiológicas diversas, estruturan<strong>do</strong> o ordenamentonão em um sistema de eixos, mas em um sistema de paralelas.O Esta<strong>do</strong> tem assenta<strong>do</strong> suas bases existenciais em um modelo social,as Constituições têm si<strong>do</strong> impregnadas de valores a reger a sociedade,como o pluralismo cultural, a ética, a destinação de uma sociedadecalcada em valores de igualdade e respeito mútuo, dignidade da pessoahumana 8 “em que a propriedade passa a ter uma função social”. Percebeseclaramente um espaço de interseção entre as questões que envolvema sociedade e as questões que tocantes aos indivíduos.O Esta<strong>do</strong> liberal no Brasil, como leciona Paulo Lobo 9 , já estava supera<strong>do</strong>desde a Constituição de 1934 que já havia incorpora<strong>do</strong> uma or-8 A expressão dignidade da pessoa humana surgiu em 1945, no preâmbulo da Constituição das Nações Unidas, nocontexto que hoje é a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>.9 LÔBO, Paulo." A Constitucionalização <strong>do</strong> Direito <strong>Civil</strong> Brasileiro". In Direito <strong>Civil</strong> Contemporâneo: Novos problemasà luz da Legalidade Constitucional (org. Gustavo Tepedino). São Paulo: Atlas. 2008, p. 18-19.170R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 165-178, jul.-set. 2011


ganização social, que foi mais desenvolvida na Constituição de 1988. Aospoucos, os civilistas começaram a aban<strong>do</strong>nar a visão de sistema em que oCódigo <strong>Civil</strong> constituía a norma de primeira grandeza para o direito priva<strong>do</strong>e a Constituição, a norma de primeira grandeza para o Direito Público.Percebe-se então que o Direito Priva<strong>do</strong> deve ser interpreta<strong>do</strong> de acor<strong>do</strong>com as vertentes estabelecidas na Constituição Federal. Infere-se entãoque a Constituição Federal não representa uma carta política, mas o arcabouçojurídico que serve de diretriz <strong>do</strong>gmática para os to<strong>do</strong>s os ramos <strong>do</strong>Direito. Nesse senti<strong>do</strong>, para Luís Roberto BarrosoUma das grandes mudanças de paradigma ocorridas ao longo<strong>do</strong> século XX foi a atribuição à norma constitucional <strong>do</strong>status de norma jurídica. Superou-se, assim, o modelo quevigorou na Europa até mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong>, no qual aConstituição era vista como um <strong>do</strong>cumento essencialmentepolítico, um convite à atuação <strong>do</strong>s Poderes Públicos. 10El neoconstitucionalismo, entendi<strong>do</strong> como el término o conceptoque explica un fenómeno relativamente reciente dentrodel Esta<strong>do</strong> constitucional contemporáneo, parece contarcada día con más segui<strong>do</strong>res, sobre to<strong>do</strong> en el ámbito de lacultura jurídica iatliana y española, así como en diversos paísesde América Latina (particularmente en los grandes focosculturales de Argentina, Brasil, Colombia y México). Con to<strong>do</strong>,se trata de un fenómeno escasamente estudia<strong>do</strong>, cuya cabalcomprensión seguramente llevará todavía algunos años. 11La fuerza normativa de la Constitución trae como ineludibleconsequencia que no existan normas que estén al margen delcontrol de constitucionald. El fecho de que “que to<strong>do</strong> sea constitucionalmenteverificable no implica que to<strong>do</strong> sea inconstitucional”,sino que el controlde constitucionalidad obliga aque los demás poderes, aun en el ejercicio de atribuicionespropias consignadas por una Constitución, deban resguardarla razonabilidad y la proporcionalidad cuan<strong>do</strong> producen lasrespectivas normas. 1210 BARROSO, Luís Roberto. "Neoconstitucionalismo e Constitucionalização <strong>do</strong> Direito: o triunfo tardio <strong>do</strong> DireitoConstitucional no Brasil". In: Revista Eletrônica sobre a Reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, nº 9, Salva<strong>do</strong>r, março-abril-maio de2007, p. 2.11 CARBONELL, Miguel. "El neoconstitucionalismo: significa<strong>do</strong> y niveles de análisis". In: CARBONELL, Miguel eJARAMILLO, Leonar<strong>do</strong> García (organiza<strong>do</strong>res) El canon neoconstitucional. Madri: Trotta, 2010, p. 153.12 DOMINGUEZ, Andres Gil. Escritos sobre Neoconstitucionalismo.Buenos Aires: Ediar, 2009, p. 125-126.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 165-178, jul.-set. 2011 171


Partin<strong>do</strong> para uma visão metafórica, poder-se-ia dizer que a ConstituiçãoFederal é o sol de nosso sistema jurídico e to<strong>do</strong>s os demais diplomaslegais, normas consuetudinárias gravitam em torno da ConstituiçãoFederal. Em razão disso, pode-se perceber a imperatividade dasnormas constitucionais sobre todas as demais existentes em um país.Para Emerson GarciaApós um perío<strong>do</strong> relativamente longo de maturação, encontra-sesedimenta<strong>do</strong> o entendimento de que a Constituição,em especial as normas constitucionais que reconhecem osdireitos fundamentais, também projeta sua força normativasobre as relações privadas, deven<strong>do</strong> nortear a produçãoe a interpretação das leis ou, em alguns casos, regular diretamenteas relações. Toman<strong>do</strong>-se como referencial o direitopriva<strong>do</strong>, a Constituição assegura a sua subsistência, contribuipara o delineamento <strong>do</strong> seu conteú<strong>do</strong>, auxilia na fixação<strong>do</strong>s limites a serem observa<strong>do</strong>s na restrição de determina<strong>do</strong>sdireitos e, em decorrência <strong>do</strong> caráter aberto e <strong>do</strong>s valoresveicula<strong>do</strong>s pelas normas constitucionais, que permitem asua contínua atualização, estimula o seu desenvolvimento econstante adequação à realidade. 13Com a Constitucionalização <strong>do</strong> Direito, surge uma forma de ver asociedade solidarizante cujos ideais comuns se sobrepõem aos anseiosindividuais. Por oportuno, cumpre salientar que não se trata de uma desintegração<strong>do</strong> individualismo humano, mas sim, <strong>do</strong> prima<strong>do</strong> <strong>do</strong> bem comumsobre a necessidade individual.É nesse contexto que se pode perceber que, embora to<strong>do</strong>s os diplomaslegais contemplem o direito <strong>do</strong> indivíduo ter a propriedade, fica bemclara a noção de que esta propriedade deve atender a seus fins sociais.Tal pensamento não representa em si um antagonismo, mas no planoaxiológico, tem-se uma complementaridade que denota o estágio socialdemocráticoda sociedade em contraposição ao estágio <strong>do</strong> apogeu <strong>do</strong> liberalismoque norteou o Código <strong>Civil</strong> de 1916 entre outros dispositivoslegais. Ao tratar <strong>do</strong> tema, Paulo Bonavides 14 reflete que no último meio13 GARCIA, Emerson. Conflito entre Normas Constitucionais: Esboço de uma Teoria Geral, Rio de Janeiro: LumenJuris, 2008, p. 302-303.14 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, São Paulo: Malheiros, 10ª ed., 2000, p. 34172R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 165-178, jul.-set. 2011


século, institutos eminentemente priva<strong>do</strong>s em razão de seus contornospassaram a ser ordena<strong>do</strong>s pelo Direito Constitucional.Paulo Lôbo ao comentar sobre o processo de Constitucionalizaçãoassevera:O processo de constitucionalização <strong>do</strong> direito civil, assim, largamentedelinea<strong>do</strong>, não foi nem é aceito sem resistências.As correntes mais tradicionais <strong>do</strong>s civilistas reagiram negativamenteà interlocução <strong>do</strong> direito civil com o direito constitucional,entenden<strong>do</strong> que cada qual deve permanecer emseu lugar. 15É razoável o sentimento de resistência por parte da <strong>do</strong>utrina. Emprimeiro lugar, a ideia de Constitucionalização <strong>do</strong> Direito <strong>Civil</strong> representauma ruptura epistemológica <strong>do</strong> Direito. Uma estrutura social desenvolveu-secom profundas questões sociais, econômicas e políticas, com marcosteóricos bem consolida<strong>do</strong>s, como a Revolução Francesa e a própriaRevolução Industrial.Em segun<strong>do</strong> lugar, uma desqualificação em que todas as regras seriamguindadas ao plano constitucional e seu desrespeito representariaem última análise o próprio sentimento de desrespeito às normas fundamentais<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>.Não existe uma única concepção para neoconstitucionalismo. Emverdade existem neoconstitucionalismos cuja variável é a amplitude daperspectiva jusfilosófica empregada pelas inúmeras correntes <strong>do</strong>utrináriasque permeiam a ciência <strong>do</strong> direito. Neste senti<strong>do</strong> Suzanna Pozzolo comentaa ambiguidade e extensa difusão léxica entre os constitucionalistasEl término “neoconstitucionalismo”, aunque fue pensa<strong>do</strong>para identificar una perspectiva iusfilosófica antiiuspositivista,muy pronto se convirtió en un término ambiguo: su extensay vertiginosa difusión en el léxico de iusfilosófos y constitucionalistasamplió su capacidad denotativa reducien<strong>do</strong> suspontencialidades connotativas. Así, rápidamente, el téminofue emplea<strong>do</strong> para indicar fenómenos diferentes, si bienconcta<strong>do</strong>s entre ellos. 1615 LÔBO, Paulo. Op. Cit. p. 22-23.16 POZZOLO. Susanna. "Reflexiones sobre la concepción neoconstitucionalista de la constitución". In: CARBONELL,Miguel e JARAMILLO, Leonar<strong>do</strong> García (organiza<strong>do</strong>res) El canon neoconstitucional. Madri: Trotta, 2010, p.165.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 165-178, jul.-set. 2011 173


Norberto Bobbio 17 ressalta que na medida em que as legislaçõesenvelheciam percebia-se as insuficiências <strong>do</strong> sistema, ficava patente a inexistênciade um <strong>do</strong>gma da completude, que o legisla<strong>do</strong>r sem o <strong>do</strong>m daonisciência, não poden<strong>do</strong> prever e assim normatiza todas as condutas.Para Renata Domingues Barbosa Balbino 18 , os princípios deixaramde ser apenas mecanismos supletivos para adquirir a função de fontes <strong>do</strong>direito. E é exatamente esta a maior contribuição das diretrizes teóricas <strong>do</strong>novo Código <strong>Civil</strong>, a formulação de cláusulas abertas com a clara utilizaçãode princípios de matriz constitucional que produzirão jovialidade à norma,sempre acompanhan<strong>do</strong> os valores éticos em destaque na sociedade.Para Luís Prieto Sanchis, o Constitucionalismo pós-positivista promoveuuma verdadeira propagação epidêmica de sinceridade no trato dasrelações interpessoais:El constitucionalismo postpositivista ha contribui<strong>do</strong> a la propagaciónde una autentica epidemia de sinceridad, ofrecien<strong>do</strong>respal<strong>do</strong> o cobertura teórica para decir con argumentosrefina<strong>do</strong>s lo que casi to<strong>do</strong>s sabían o intuían, a asaber: quecuan<strong>do</strong> se resuelven conflictos jurídicos se están ofrecien<strong>do</strong>respuestas morales y que, por tanto, es perfectamente lógicoque en el razobamiento jurídico se conjugen argumentosprocedentes del Derecho estricto con otros deriva<strong>do</strong>s de lafilosofia de la justicia. 19O Código <strong>Civil</strong> deixou de ser a bússola das relações privadas voltadaem si mesma, como assevera Daniel Sarmento 20 “O Direito brasileirovem sofren<strong>do</strong> mudanças profundas nos últimos tempos, relacionadasà emergência de um novo paradigma tanto na teoria jurídica quanto naprática <strong>do</strong>s tribunais”. Neste senti<strong>do</strong>, os princípios designa<strong>do</strong>s na Constituiçãodeixam a distante órbita de enuncia<strong>do</strong>s a serem materializa<strong>do</strong>s emnormas infraconstitucionais e passam a ser um filtro a que to<strong>do</strong> o sistemajurídico deve ser submeti<strong>do</strong>.17 BOBBIO, Norberto. Teoria Geral <strong>do</strong> Direito, 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 27818 BALBINO, Renata Domingues Barbosa. "O Princípio da boa-fé objetiva no novo Código <strong>Civil</strong>" In Revista <strong>do</strong> Advoga<strong>do</strong>,Ano 22, n. 68. São Paulo: Associação <strong>do</strong>s Advoga<strong>do</strong>s de São Paulo. Dez. 2002, p. 11119 SANCHÍS, Luis Prieto. Constitucionalismo y Positivismo. Mexico: Fontamara, 2005. p. 94.20 SARMENTO, Daniel. “O Neoconstitucionalismo no Brasil: Riscos e possibilidades”. In: Daniel Sarmento (Org.) Filosofiae Teoria Constitucional Contemporânea. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris, 2009.174R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 165-178, jul.-set. 2011


Este fenômeno não representa o triunfo da moral sob a norma coma desconstituição total e absoluta <strong>do</strong> positivismo jurídico, mas a interpretaçãoda norma devera absorver toda a gama de espectro valorativo social,inclusive com uma ponderação de repercussão de ordem moral comuma valorização principiológica <strong>do</strong>s dispositivos legais.A questão da interpretação à luz de uma necessária leitura constitucionalé que defende María de los Ángeles Manassero ao retratar a proximidadeaxiológica entre os preceitos morais e, em vários casos, a própriaquestão <strong>do</strong>s direitos fundamentais.La interpretación constitucional es, sin lugar a dudas, la actividadue con mayor frecuencia enfrenta a los intérpretesdel derecho con la determinación del significa<strong>do</strong> de términosque encierran criterios valorativos o morales. Estos términos,uni<strong>do</strong>s a otros perfilan, en muchos casos, los derechos fundamentales.21Evidentemente que a preocupação que surge é a leitura <strong>do</strong>s excessose a formatação de uma textura jurídica tão aberta que representecontínuas e infinitas colisões entre preceitos que em última análise serãoeleva<strong>do</strong>s a ordem constitucional <strong>do</strong>s Direitos FundamentaisLa utilización de “conceptos morales” en el lenguaje jurídicositúa a cualquier tribunal frente al problema “moral” deidentificar qué “concepciones” son las más adecuadas paraaplicar tales “conceptos morales”. El Derecho como integridadespera en este punto de los intérpretes (y de los jueces enespecial) que opten por una concepción que pueda integrarsea otras intepretaciones pasadas de los mismos conceptos, deforma tal que pueda concebirse a las decisiones actuales ya las pasadas como parte de un sistema o cuerpo único deprincipios. 22O Positivismo jurídico é a herança <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Direito, cujo modeloveio sen<strong>do</strong> fatiga<strong>do</strong> até as primeiras luzes <strong>do</strong> século XX, em que, diante21 MANASSERO, María de los Ángeles. "Términos valorativos, objetividad y teoria interpretativa del drecho en la lainterpretación constitucional". In: CIANCIARDO, Juan (coord) La interpretación en la era del neoconstitucionalismo:Una aproximación interdisciplinaria. Buenos Aires: Depalma, 2006, p. 37.22 ZAMBRANO, María del Pilar. "El Liberalismos Político y la interpretaciín constitucional". In: CIANCIARDO, Juan(coord) La interpretación en la era del neoconstitucionalismo: Una aproximación interdisciplinaria. Buenos Aires:Depalma, 2006, p. 96.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 165-178, jul.-set. 2011 175


de questões como o nazismo e fascismo, havia uma resistência ao rotularto<strong>do</strong>s os atos atentatórios à dignidade da humanidade como expressãode justiça no subproduto da subsunção meramente normativista. E passamosao Esta<strong>do</strong> Constitucional em que os direitos e postula<strong>do</strong>s de humanidade,solidariedade e ética recebem uma sobrevalorização em váriossistemas constitucionais, inclusive o <strong>do</strong> Brasil.El modelo que había constitui<strong>do</strong> la referencia en los últimossiglos, al menos durante la vigencia del positivismo, era elEsta<strong>do</strong> de derecho legislativo, vertebra<strong>do</strong> y culmina<strong>do</strong> por laley. Sin embargo, dicho modelo está hoy agota<strong>do</strong>. Hoy estamosinstala<strong>do</strong>s en el Esta<strong>do</strong> constitucional de derecho, cuyacompresión demanda un nuevo tipo de respuesta teórica. Eneste conexto surge a disputa actual entre positivismo y nopostivismo,con la variante del positivismo jurídico incluyente,o entre legalismo y constitucionalismo, denominaciones querefieren los intentos de articular un modelo de comprensióndel Derecho ajusta<strong>do</strong> a la fisonomía de los sistemas politicosy jurídicos contemporáneos. 23Superioridad normativa de la Constitución. Varias tesis se derivande esta afirmación, de las que destacará: 1) La Constituciónconstituye una auténtica norma jurídica, válida y aplicable,y no una mera norma programática. 2) la Constitución noes una norma cualquiera, sino la cúspide del sistema jurídico,que ostenta primacía sobre las restantes normas, cuya validezparte y desemboca en ella; 3) to<strong>do</strong> el ordenamiento jurídicoha de interpretarse de conformidad con ella. Representa,en última instancia el criterio de validez de todas las normasjurídicas (nueva tería de la validez), y 4) to<strong>do</strong>s los poderespúblicos y ciudadanos están sujeitos a ella. De este mo<strong>do</strong>,existe una subordinación del poder legislativo a la regulaciónconstitucional. 2423 SEONANE, José Antonio. "Laconfiguración jurisprudencial de derechos fundamentales." In: CIANCIARDO, Juan(coord) La interpretación en la era del neoconstitucionalismo: Una aproximación interdisciplinaria. Buenos Aires:Depalma, 2006, p. 122-123.24 SEONANE, José Antonio. "Laconfiguración jurisprudencial de derechos fundamentales". In: CIANCIARDO, Juan(coord) La interpretación en la era del neoconstitucionalismo: Una aproximación interdisciplinaria. Buenos Aires:Depalma, 2006, p. 125.176R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 165-178, jul.-set. 2011


O Direito Priva<strong>do</strong>, receben<strong>do</strong> os influxos <strong>do</strong> neoconstitucionalismonão está imune de críticas, nem representa o total aperfeiçoamento<strong>do</strong> sistema jurídico. Uma das críticas reside na forte hierarquização <strong>do</strong>Poder Judiciário, que o coloca em posição superior a <strong>do</strong>s demais poderes,inclusive com uma latente crise de legitimidade, uma vez que no Brasil,em regra, os membros <strong>do</strong> Judiciário não representam um organismoeleito pela comunidade, mas por um funcionalismo público qualifica<strong>do</strong> notocante ao saber, mas não atrela<strong>do</strong> necessariamente à vontade popular.La implementación gradual del modelo neoconstitucional noha deja<strong>do</strong> de suscitar polémicas, como el enfrentamiento entrelas tesis optimista e escéptica frente a la atribuición defuerza vinculante a la jurisprudencia, al igual que su papel (nosólo jurídico sino también) político en la critica a la pre<strong>do</strong>minanteinfluencia del formalismo jurídico en nuestras formasde entender el derecho, en la que subyace ubna ideología queirradia todas las instituciones. 25ConclusãoO Direito Priva<strong>do</strong> foi objeto de várias alterações, sen<strong>do</strong> forja<strong>do</strong> compensamento jusfilosófico que foi atrela<strong>do</strong> a uma própria concepção deestrutura <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e de maior aproximação ou distanciamento com oliberalismo econômico ou políticas com maior apelo social, passan<strong>do</strong> <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> de Direito para o Esta<strong>do</strong> Social.A mudança meto<strong>do</strong>lógica com a inserção de várias cláusulas abertase um filtro Constitucional tem o condão de assegurar sempre um arjovial, à medida que os opera<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Direito, ou seja, advoga<strong>do</strong>s e magistra<strong>do</strong>stêm a liberdade de buscar a interpretação que seja compatívelcom o senso de justo da sociedade em determina<strong>do</strong> momento da históriaou mesmo observa<strong>do</strong> o conjunto de valores morais de uma determinadaregião ou determina<strong>do</strong> grupamento social.O Código <strong>Civil</strong> Brasileiro de 2002 passou a ser <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de uma perenidade,que é atributo que se busca em qualquer normatização, em especial,naquela cujos efeitos refletem em to<strong>do</strong> ordenamento priva<strong>do</strong> de um país.Nesse senti<strong>do</strong>, quebram-se os grilhões que escravizavam o intérpreteque agia corretamente ao simplesmente aplicar a Lei. A visão Positivista25 CARBONELL, Miguel e JARAMILLO, Leonar<strong>do</strong> García. "Desafíos y retos del canon neoconstitucional". In: CARBONELL,Miguel e JARAMILLO, Leonar<strong>do</strong> García (organiza<strong>do</strong>res) El canon neoconstitucional. Madri: Trotta, 2010, p. 12.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 165-178, jul.-set. 2011 177


<strong>do</strong> Direito representa a subsunção <strong>do</strong> Justo ao que foi Normatiza<strong>do</strong> semconsiderar as nuances de cada caso, estabelecen<strong>do</strong> um tratamento únicoe padroniza<strong>do</strong> a to<strong>do</strong>s, indistintamente de suas peculiaridades fáticas.As diretrizes a<strong>do</strong>tadas pelo Código <strong>Civil</strong> harmonizam-se com os preceitosConstitucionais e constituem verdadeiro avanço no Direito Priva<strong>do</strong>.Com a Constitucionalização <strong>do</strong> Direito <strong>Civil</strong>, a aplicação <strong>do</strong>s postula<strong>do</strong>s:eticidade, socialidade e operabilidade podem ser apresenta<strong>do</strong>spelos opera<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Direito e decidi<strong>do</strong>s pelo Judiciário com o diálogo dasfontes normativas e com uma hermenêutica orientada à luz da ConstituiçãoFederal.Como ensina Guilherme Calmon 26Observa-se que o trabalho a ser desenvolvi<strong>do</strong> é, ainda, bastanteintenso e árduo. A constitucionalização <strong>do</strong> Direito <strong>Civil</strong>é fenômeno e, simultaneamente, diretriz <strong>do</strong>s novos tempos,permitin<strong>do</strong> se alcançarem a unidade, a harmonia e a coerênciano sistema. As normas jurídicas codificadas, a despeito<strong>do</strong> esmero na sua formulação na via legislativa e da sua pertinênciaà ordem jurídica em vigor, não deixam de se revestirde algo teórico, necessitan<strong>do</strong>, assim, ser diuturnamente experimentadase avaliadas de acor<strong>do</strong> com a verificação dassuas consequências no meio social. Daí porque a atividade deinterpretação não pode se restringir às normas jurídicas, deven<strong>do</strong>abranger os fatos da vida social, bem como inserir asnormas no contexto <strong>do</strong> processo histórico global sob o prismadas necessidades sociais contemporâneas.O Código <strong>Civil</strong> Brasileiro de 2002 rompe com a <strong>do</strong>gmática oriunda<strong>do</strong> pensamento oitocentista, procura humanizar as relações intersubjetivas,realçan<strong>do</strong> o elemento subjetivo, atenden<strong>do</strong> a postula<strong>do</strong>s de boa-fé, valorizan<strong>do</strong>a ética que, por tantas vezes, foi lançada no recôndito monturoem nome da positivação e de uma suposta segurança jurídica. Com o atualcorpo normativo civil, a opção <strong>do</strong> legisla<strong>do</strong>r foi firmada no senti<strong>do</strong> decoroar a busca pela Justiça e pelo bem-estar social.26 GAMA. Guilherme Calmon Nogueira da. "Capacidade para testar, para testemunhar e para adquirir por testamento"In CARVALHO, Dimas de Messias e CARVALHO, Dimas Daniel (coord.) Direito das Sucessões. Inventário e Partilha.Minas Gerais: Del Rey. 2007, p. 238-239.178R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 165-178, jul.-set. 2011


O Requerimento de suspensãode eficácia de liminar comodes<strong>do</strong>bramento <strong>do</strong> direitofundamental <strong>do</strong> réu à tutelajurisdicional adequada *Leonar<strong>do</strong> Oliveira SoaresMestre em Direito Processual pela PUC-MG. Membroda Academia Brasileira de Direito Processual <strong>Civil</strong>.Professor de Teoria Geral <strong>do</strong> Processo e Processo<strong>Civil</strong> na Faculdade de Direito de Ipatinga(MG) FADIPA.Procura<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de Minas Gerais.A ciência moderna repudia a falsa ideia de um processo civil<strong>do</strong> autor. (Cândi<strong>do</strong> Rangel Dinamarco, Instituições de DireitoProcessual <strong>Civil</strong>).1 - CARÁTER DÚPLICE DO DIREITO DE AÇÃODiante <strong>do</strong> eleva<strong>do</strong> e varia<strong>do</strong> número de conflitos leva<strong>do</strong>s ao exame<strong>do</strong> Poder Judiciário, bem como da demora na prestação da tutela jurisdicional,é natural que as atenções 1 de quantos se interessem pelo temaestejam voltadas para a efetividade <strong>do</strong> direito de ação.No entanto, da<strong>do</strong> o caráter dúplice 2 de cogita<strong>do</strong> direito, no presenteartigo, examina-se o direito à tutela jurisdicional adequada na perspectiva<strong>do</strong> réu. Primeiro, contu<strong>do</strong>, pede-se licença para uma observação.* Artigo originariamente publica<strong>do</strong> na Revista Dialética de Direito Processual n. 87, mai. 2010. Texto revisto.Corrigiram-se notas de rodapé.1 Especificamente quanto ao procedimento que envolve a tutela de direitos coletivos latu sensu, confira-se GOMESJR., Luiz Manoel e FAVRETO, Rogério. "Anotações sobre o projeto da nova lei da ação civil pública: principais inovações".Revista de Processo. Vol. 176. São Paulo: Ed. RT, out. 2009.2 A respeito <strong>do</strong> caráter dúplice <strong>do</strong> direito de ação, confira-se FAZZALARI, Elio. Instituições de Direito Processual.Tradução de Elaine Nassif. Campinas: Bookseler, 2006. P. 505.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 179-190, jul.-set. 2011 179


2 - Uma observaçãoNo Esta<strong>do</strong> democrático de direito, nem de longe a comunidade jurídicase caracteriza pela e na uniformidade de pensamento. Bem ao contrário,é a livre circulação de teses diversas, na medida certa <strong>do</strong> grau dedesenvolvimento dessa comunidade. Sem mais, segue a exposição.3 - ORIGEM ANTIDEMOCRÁTICA DO REQUERIMENTO DE SUSPENSÃODurante o regime militar, por meio da Lei n.º 4.348/64, institui-seno direito pátrio o denomina<strong>do</strong> requerimento de suspensão,inicialmente, aplicável às liminares proferidas no procedimento demanda<strong>do</strong> de segurança 3 . Hoje, o instituto 4 se apresenta cabível parasustar efeitos de decisões liminares proferidas em ações propostascontra o Poder Público ou quem lhe faça as vezes.Em vista <strong>do</strong> contexto político à época da criação <strong>do</strong> instituto,não falta quem sustente sua inconstitucionalidade 5 . A propósito,confiram-se as palavras <strong>do</strong> eminente Desembarga<strong>do</strong>r Elpídio Donizetti6 , membro da respeitável comissão de juristas então encarregadade redigir novo Código de Processo <strong>Civil</strong> 7 , em julgamento desuspensão de segurança pela Corte Superior <strong>do</strong> egrégio Tribunal deJustiça de Minas Gerais:...Gostaria de lembrar que essa possibilidade surgiu na Lei <strong>do</strong>Manda<strong>do</strong> de Segurança nº 4.348, de 1964, mais precisamente,em 26 de junho de 64, no auge <strong>do</strong> Governo Militar sanguinário,porque não queriam que os recursos fossem paraos órgãos destinatários, que são as câmaras cíveis, e resol-3 Art. 4º da Lei n.º 4.348/64. Atualmente, art. 15 da Lei n.º 12.016/09.4 Art. 1º, caput da lei n.º 8.437/92. Não se irá examinar a possibilidade de suspensão de efeitos de sentença comapoio no art. 4º, § 4º da lei em questão.5 Por to<strong>do</strong>s, vide NERY JR, Nelson. Princípios <strong>do</strong> processo na Constituição Federal. 9 ed., revista, atualizada e ampliada.São Paulo: Ed. RT, 2009. p. 118 e ss. Com o mais absoluto respeito, no próximo item <strong>do</strong> texto, faz-se contraponto àsjudiciosas críticas ao instituto em exame formuladas pelo eminente jurista ora cita<strong>do</strong>. Pela constitucionalidade <strong>do</strong>requerimento, vide MANCUSO, Ro<strong>do</strong>lfo Carmargo de. O poder público em juízo. Execução <strong>Civil</strong>. Estu<strong>do</strong>s em homenagemao Professor Humberto Theo<strong>do</strong>ro Júnior. (Coord.) SANTOS, Ernani Fidelis <strong>do</strong>s; WAMBIER, Luiz Rodrigues;NERY JR, Nelson e ARRUDA ALVIM WAMBIER, Teresa. São Paulo: Ed. RT, 2007. P. 366.6 Na decisão, por maioria de votos, ratificou-se decisão monocrática da Presidência que suspendera decisão judicialque impunha ao Esta<strong>do</strong> de Minas Gerais obrigação de transferir presos, em virtude de superlotação de estabelecimentoprisional. Autos n.º 1.0000.08.472785-8/001(1), Relator: CARREIRA MACHADO, Data <strong>do</strong> Julgamento:14/01/2009, Data da Publicação: 15/05/2009. A respeito da (suposta) inconstitucionalidade <strong>do</strong> instituto, confira-sevoto proferi<strong>do</strong> pelo i. Ministro Marco Aurélio nos autos da suspensão de tutela antecipada 118-6. Dje 36, divulga<strong>do</strong>em 28 de fevereiro de 2008.7 Atualmente, Projeto de Lei n. 8046/2010, em tramitação na Câmara <strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s.180R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 179-190, jul.-set. 2011


veram cometer essa atribuição aos presidentes de tribunais<strong>do</strong> país, ao entendimento - verdadeiro ou não, e, hoje, querocrer que não se aplica mais - de que não poderiam manietarto<strong>do</strong>s os desembarga<strong>do</strong>res integrantes de câmaras <strong>do</strong> país,mas poderiam, em 1964, manietar to<strong>do</strong>s os presidentes detribunais de justiça, inclusive, <strong>do</strong> Supremo Tribunal Federal,e lembrada por aquela, porque não dizer, revolta de algunsministros <strong>do</strong> Supremo Tribunal Federal, em razão das investidas<strong>do</strong> Governo Militar. Então, este art. 4º da Lei 4.348 veio,para a Lei da Ação <strong>Civil</strong> Pública - também por obra e graça <strong>do</strong>Governo Militar - no art. 12, a fim de permitir aos presidentesde tribunais que suspendessem as liminares concedidas. Essaé a legalidade posta e, por questões, talvez, de conveniênciade determina<strong>do</strong>s setores da comunidade jurídica, aindanão se declarou a inconstitucionalidade deste artigo, porqueele afronta o princípio <strong>do</strong> colegia<strong>do</strong>, atribuin<strong>do</strong> a um órgãoadministrativo, a presidência de um tribunal, passan<strong>do</strong> porcima das câmaras cíveis...Para ficar com um único exemplo, não parece que a Lei n.º 4.717/65 8padeça de tal mácula pelo fato de haver si<strong>do</strong> elaborada em perío<strong>do</strong> deruptura institucional.Ou seja, não será o regime político 9 , sob cuja égide tenha si<strong>do</strong> produzidadeterminada lei, que levará necessariamente a que se conclua pelacompatibilidade ou não desta com o princípio constitucional <strong>do</strong> devi<strong>do</strong>processo legal.Se a origem histórica não leva obrigatoriamente à inconstitucionalidade<strong>do</strong> instituto, nem por isso o intérprete se verá livre da obrigação dedemonstrar a conformidade <strong>do</strong> requerimento com o texto da ConstituiçãoFederal hoje em vigor.3.1 - PROCEDIMENTO ADEQUADO AO DIREITO MATERIAL/FUNDAMENTALEXIGIDO NO PROCESSOAlém de corresponder à garantia de acesso ao Poder Judiciário, odireito de ação volta-se também contra o Poder Legislativo, ao qual8 Referida lei disciplina o procedimento da ação popular, por meio de que qualquer cidadão pode pedir, dentreoutras coisas, a anulação de ato lesivo ao patrimônio público ou à moralidade administrativa.9 A propósito da relação entre normas processuais e regime político, confira-se: BARBOSA MOREIRA, José Carlos."Reformas Processuais e Poderes <strong>do</strong> Juiz". Revista Jurídica, n. 306, Porto Alegre, abr. 2003.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 179-190, jul.-set. 2011 181


incumbe 10 a obrigação de criar procedimentos que atendam aos direitosmateriais e, por óbvio, aos direitos fundamentais reivindica<strong>do</strong>s noprocesso.Ora, se se reconhece a pertinência de regras próprias para disciplinarconflitos envolven<strong>do</strong>, v.g., direitos coletivos 11 , não soará estranho quealgo de próprio, específico se encontre no âmbito das mesmas. Bem aocontrário, a estranheza adviria exatamente da criação de procedimento“dito especial”, regi<strong>do</strong> em sua inteireza pelas normas (inclusive as que cuidam<strong>do</strong>s meios de impugnação das decisões, aí incluída a possibilidade desustação de efeitos 12 ) <strong>do</strong> modelo padrão.E a especificidade, ocioso dizer, deverá atender a legítimas expectativastanto <strong>do</strong> autor quanto <strong>do</strong> réu 13 . Uma coisa, entretanto, é a explanação<strong>do</strong>utrinária. Outra, sua concretização. Assim, o que acaba de ser dito nãoinvalida judiciosa ponderação de MARINONI 14 , segun<strong>do</strong> a qual supor que olegisla<strong>do</strong>r sempre atende às tutelas prometidas pelo direito material e àsnecessidades sociais se constitui em ingenuidade inescusável. Diz isso porque,salvo melhor juízo, constituirá ingenuidade inescusável ainda maior vislumbraro processo, em perspectiva unilateral, como instrumento predispostopelo legisla<strong>do</strong>r a dar razão ao autor que, indiscutivelmente, sempre a tem.Em suma, o particular poderá ou não 15 compatibilizar-se com aConstituição. Em si mesma considerada, a particularidade andará, porém,de mãos dadas com o conceito de ação ora exposto.10 ARENHART, Sérgio Cruz; MARINONI, Luiz Guilherme. Manual <strong>do</strong> Processo de Conhecimento. São Paulo: Revista<strong>do</strong>s Tribunais, 2007. p. 60-61.11 Expressão, aqui, a abranger os direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.12 Por exemplo, art. 12 da Lei n.º 7.347/85, que cuida <strong>do</strong> procedimento especial da ação civil pública. É certo queo requerimento de suspensão não se aplica apenas no âmbito de referi<strong>do</strong> procedimento. Realmente, já que é anatureza <strong>do</strong>s direitos em discussão que justifica, em última análise, sua previsão legal.13 No prefácio de suas valiosas Instituições de Direito Processual <strong>Civil</strong>, 6 ed. revista e atualizada. São Paulo: MalheirosEditores, 2009, v. I, Cândi<strong>do</strong> Rangel Dinamarco confessa que o direito processual fora estuda<strong>do</strong> longo tempo,inclusive por ele, a partir da ótica <strong>do</strong> autor, sem a “corresponde preocupação pelos direitos <strong>do</strong> demanda<strong>do</strong>”. Maisadiante, aponta dispositivos legais que conferem, a seu juízo, privilégios inconstitucionais à Fazenda Pública, a saber:1) prazos privilegia<strong>do</strong>s 2) ciência <strong>do</strong>s atos judiciais mediante vista <strong>do</strong>s autos (art. 236 § 2º) e não mediantepublicação na imprensa, 3) honorários de sucumbência arbitra<strong>do</strong>s em níveis inferiores 4) duplo grau de jurisdiçãoobrigatório e 5) possibilidade de sustação de efeitos da sentença em ação rescisória, apenas por parte da FazendaPública. Ob. cit., p. 216-220. Ou seja, nem mesmo o autoriza<strong>do</strong> crítico das prerrogativas legais da Fazenda Públicaarrola, entre as supostamente inconstitucionais, a autorização legal para requerer-se ao Presidente <strong>do</strong> Tribunal asuspensão de decisões em análise no presente texto. Quanto ao prazo diferencia<strong>do</strong>, vide posição oposta in BARBOSAMOREIRA, José Carlos. "O benefício da dilatação <strong>do</strong> prazo para a Fazenda Pública". Revista Forense. V. 247. Rio deJaneiro: Forense, 1974.14 MARINONI, Luiz Guilherme. "Ideias para um renova<strong>do</strong> direito processual”. Bases Científicas para um Renova<strong>do</strong>Direito Processual <strong>Civil</strong>. CARNEIRO, Athos Gusmão; CALMON, Petrônio. (ORGS). 2 ed. Salva<strong>do</strong>r: JusPODIVM,2009. P. 132.15 Nessa hipótese, o princípio constitucional <strong>do</strong> devi<strong>do</strong> processo legal prevalecerá sobre a especialidade.182R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 179-190, jul.-set. 2011


Notadamente quanto ao requerimento de suspensão 16 , poder-se-iadizer que a pessoa jurídica de direito público, na condição de ré, v.g. nobojo de ação civil pública, haveria de valer-se ou de agravo, ou de apelação,conforme a natureza da decisão proferida. Ditos recursos 17 , sabe-se,permanecem à disposição, seja <strong>do</strong> autor, seja <strong>do</strong> réu para questionar opronunciamento que lhes tenha si<strong>do</strong> desfavorável.De início, a singularidade então reside em que apenas uma daspartes pode utilizar-se <strong>do</strong> instituto. Ora, se a providência jurisdicional reclamadapelo autor for indeferida, não haverá o que suspender (decisãonegativa), pelo que a previsão legal a respeito mostrar-se-ia inócua.Se por esse prisma não se chega à inconstitucionalidade, poder-seiaafirmar que a competência outorgada ao Presidente <strong>do</strong> Tribunal configurariaviolação ao devi<strong>do</strong> processo legal, já que o reexame 18 da decisãohaveria de fazer-se pelo órgão colegia<strong>do</strong>. Dada a tendência <strong>do</strong> direito pátrio(benéfica ou não) em privilegiar os julgamentos monocráticos 19 noâmbito <strong>do</strong>s Tribunais, o princípio da colegialidade, como de resto to<strong>do</strong>e qualquer princípio, comporta temperamentos. Além disso, o princípioconstitucional <strong>do</strong> juízo competente impõe apenas que a lei, elaboradasegun<strong>do</strong> o devi<strong>do</strong> processo legislativo, estabeleça a que órgão jurisdicional20 deverá ser dirigi<strong>do</strong> o questionamento da parte, quer se trate de recurso,quer se trate de outra medida hábil a afastar o prejuízo oriun<strong>do</strong> <strong>do</strong>cumprimento imediato da decisão. Haja vista a convivência de recurso(agravo de instrumento) da decisão, cujo julgamento competirá ao órgão16 Na lição de Cândi<strong>do</strong> Rangel Dinamarco, o requerimento se constitui em incidente <strong>do</strong> processo, mais precisamenteem exceção em senti<strong>do</strong> estrito. In: "Suspensão <strong>do</strong> Manda<strong>do</strong> de Segurança pelo Presidente <strong>do</strong> Tribunal".Disponível em: http://www.direitoprocessual.org.br/site/. Consulta realizada em 25 de junho de 2009. Em recenteobra, colhe-se a seguinte passagem “Bem examina<strong>do</strong> o tema, é correto dizer que o pedi<strong>do</strong> de suspensão é umincidente que visa a tutelar interesse difuso”. DIDIER JUNIOR, Freddie; CUNHA, Leonar<strong>do</strong> José Carneiro da. Cursode Direito Processual <strong>Civil</strong>. Meios de Impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. 7 ed. Salva<strong>do</strong>r:Juspodivm, 2009. V. 3, p. 496.17 A respeito da distinção entre o objeto <strong>do</strong> agravo e o <strong>do</strong> requerimento de suspensão de liminar, confira-se artigode autoria <strong>do</strong> eminente Ministro Luiz Fux intitula<strong>do</strong> O novo microssistema legislativo das liminares contra o PoderPúblico. In: Processo e Constituição Estu<strong>do</strong>s em homenagem a José Carlos Barbosa Moreira. (Coords) FUX, Luiz;NERY JR., Nelson e ARRUDA ALVIM WAMBIER, Tereza. Revista <strong>do</strong>s Tribunais, 2006, p. 834, item 6 e p. 835, item 9.18 Por meio <strong>do</strong> requerimento de suspensão não se busca a reforma ou a invalidação da decisão, mas apenas tolherprovisoriamente sua eficácia.19 Ver art. 557 caput e § 1º-A <strong>do</strong> C.P.C.20 Sobre a natureza jurisdicional da decisão proferida no incidente, ver DIDIER JUNIOR, Freddie; CUNHA, Leonar<strong>do</strong>José Carneiro da. Ob. cit., p. 495. Do mesmo mo<strong>do</strong>, ARAÚJO, José Henrique Mouta. "Suspensões de decisões judiciaisenvolven<strong>do</strong> fornecimento de medicamentos: Um tema com variação interpretativa". Revista Dialética deDireito Processual, n. 58. São Paulo: Dialética, jan. 2008, p. 15.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 179-190, jul.-set. 2011 183


colegia<strong>do</strong> 21 , e <strong>do</strong> requerimento de suspensão ora versa<strong>do</strong>, um e outro,insista-se, disciplina<strong>do</strong>s em lei, mostra-se atendi<strong>do</strong> o princípio <strong>do</strong> juízocompetente. De mais a mais, da decisão monocrática da Presidência <strong>do</strong>respectivo Tribunal caberá recurso (agravo) a órgão colegia<strong>do</strong> <strong>do</strong> Tribunal.Decisão, saliente-se, jurisdicional, pois, caso contrário, poder-se-ia questionarmesmo a previsão de sua recorribilidade.Resta, por fim, examinar o emprego, por parte <strong>do</strong> legisla<strong>do</strong>r, deexpressões de senti<strong>do</strong> indetermina<strong>do</strong> (grave lesão à ordem, à saúde, àsegurança e à economia pública).Para não ir muito longe, o texto constitucional contempla no art.102, § 3º requisito de admissibilidade <strong>do</strong> recurso extraordinário, intitula<strong>do</strong>repercussão geral 22 . Admitida a constitucionalidade material da norma(constitucional), outro tanto poderá ser dito quanto ao conteú<strong>do</strong> da legislaçãoinfraconstitucional em análise.No caso específico, não se nega que o texto legal confira ampla margemdecisória na apreciação <strong>do</strong> requerimento (o que, registre-se, nemsempre beneficiará 23 o réu). Incidirá, contu<strong>do</strong>, em raciocínio contrário àConstituição, precisamente à promessa constitucional de tutela jurisdicionaladequada, quem afirme que a ordem, a saúde, a segurança e a economiapúblicas não devam receber tratamento processual diferencia<strong>do</strong>.Em suma, a previsão legal de suspensão de efeitos de liminar oraversada não viola o devi<strong>do</strong> processo legal constitucionalmente assegura<strong>do</strong>.Desde que, entretanto, seja observa<strong>do</strong> o procedimento que se passaa expor.3.2 - DEVIDO PROCESSO LEGAL/NECESSÁRIA OITIVA PRÉVIA DA PARTEAUTORA NO PROCESSOEm obediência ao princípio constitucional <strong>do</strong> contraditório, sustenta-seque a parte autora deve ser ouvida antes da decisão <strong>do</strong> requerimentode suspensão. Não bastasse, para que haja o deferimentode liminar em ação coletiva, impõe a lei prévia oitiva <strong>do</strong> representante daFazenda Pública. Se para o exame da providência jurisdicional pleiteada21 A decisão monocrática porventura proferida pelo Relator desafiará agravo, que será julga<strong>do</strong> pelo órgão colegia<strong>do</strong>(art. 557,§ 1º <strong>do</strong> C.P.C.).22 Dispositivo regulamenta<strong>do</strong> pela Lei federal n.º 11.418/06 e Emenda n.º 21 ao Regimento Interno <strong>do</strong> STF, datadade 03 de março de 2007.23 Basta pensar no chama<strong>do</strong> dano inverso, ou seja, nas situações em que o acolhimento <strong>do</strong> pedi<strong>do</strong> formula<strong>do</strong> norequerimento de suspensão acarrete à coletividade dano maior <strong>do</strong> que aquele que se pretendeu afastar pela via<strong>do</strong> requerimento.184R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 179-190, jul.-set. 2011


exige-se a oitiva da parte ré, natural que se ouça a parte autora, antes deapreciar-se o requerimento de suspensão <strong>do</strong>s efeitos da decisão proferida.A exigência, claro fique, não impede que haja deferimento de decisãoinaudita altera parte, segun<strong>do</strong> as peculiaridades <strong>do</strong> caso concreto 24 .Demonstradas, portanto, a constitucionalidade 25 <strong>do</strong> instituto e a sua tramitaçãosegun<strong>do</strong> os ditames <strong>do</strong> devi<strong>do</strong> processo legal.4 - USO INDISCRIMINADO DO REQUERIMENTO DE SUSPENSÃOA análise teórica que se acaba de empreender não afasta, contu<strong>do</strong>,objeção de ordem prática que se pode apresentar ao requerimento emtela: qual seja, o risco de sua utilização indiscriminada pelo Poder Público.Pois bem. Sustentar a constitucionalidade <strong>do</strong> instituto não corresponde,em absoluto, a defender sua banalização.Vale lembrar a sempre judiciosa e contundente lição de Calmon dePassos 26 a respeito das críticas então dirigidas ao procedimento ordinário:As distorções que ocorrem na prática não podem ser debitadasà disciplina <strong>do</strong> procedimento ordinário. Não é ele quemprepara mal os profissionais nas Faculdades de Direito, queos disciplina para inglês ver no exercício de suas profissões,que escancara as cancelas da Ordem, das Procura<strong>do</strong>rias e<strong>do</strong>s cargos de magistra<strong>do</strong> a to<strong>do</strong>s os candidatos ao Jardimde Infância <strong>do</strong> Direito. Não é no Decálogo que está o peca<strong>do</strong><strong>do</strong>s homens...Ou seja, assim como no procedimento ordinário, não será o usoque se faça <strong>do</strong> denomina<strong>do</strong> requerimento de suspensão que levará a concluirpela sua incompatibilidade com o devi<strong>do</strong> processo legal.Sob outra perspectiva, somente o acolhimento, por parte <strong>do</strong> Poder24 Raciocínio váli<strong>do</strong> também para o deferimento de liminar quan<strong>do</strong> da propositura de ação civil pública.25 Sem prejuízo de exame mais deti<strong>do</strong> sobre a compatibilidade constitucional da previsão de requerimento desuspensão ao Tribunal Superior, após julgamento de agravo da decisão proferida no primeiro requerimento. O mesmose diga quanto à eficácia, automática ou não, da decisão suspensiva (até o trânsito em julga<strong>do</strong> da decisão <strong>do</strong>processo em curso). Após afirmar que a suspensão ora versada é “constitucionalmente esdrúxula”, eminente juristasustenta que o desenrolar <strong>do</strong> requerimento de suspensão, sob o crivo <strong>do</strong> contraditório, poderia afastar a pecha deinconstitucionalidade. Com o mais absoluto respeito, to<strong>do</strong> procedimento jurisdicional que possa interferir na esferajurídica <strong>do</strong>s interessa<strong>do</strong>s na decisão, desde que compatível com o texto constitucional, rege-se, deve reger-se pelagarantia constitucional <strong>do</strong> contraditório. Ou seja, o respeito ao contraditório, não transmuda, por si só, o “procedimentoesdrúxulo” em constitucional. FERRAZ, Sérgio. "Manda<strong>do</strong> de Segurança: suspensão da liminar". In Processoe Constituição. Estu<strong>do</strong>s em homenagem a José Carlos Barbosa Moreira. (Coords) FUX, Luiz; NERY JR., Nelson eARRUDA ALVIM WAMBIER, Tereza. Revista <strong>do</strong>s Tribunais, 2006, p. 65 e ss.26 Comentários ao Código de Processo <strong>Civil</strong>. Rio de Janeiro: Forense, 1994. V. III, p. 17.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 179-190, jul.-set. 2011 185


Judiciário, das teses desenvolvidas nos requerimentos ensejará, estimulará,justificará, <strong>do</strong> ponto de vista prático, sua utilização.Nesse enfoque, não parece desarrazoa<strong>do</strong> sustentar que o êxito podeser usa<strong>do</strong> como argumento exatamente para afastar o abuso (suposto) emdestaque.5 - AINDA SOBRE O (SUPOSTO) USO INDISCRIMINADO (VIA DE MÃODUPLA)Nenhum tema relaciona<strong>do</strong> a processo comporta exame unilateral.Ou seja, o caráter dúplice <strong>do</strong> direito de ação, enfatiza<strong>do</strong> no início <strong>do</strong> texto,irradia consequências na análise <strong>do</strong>s demais institutos processuais.Pois bem. O acesso incondiciona<strong>do</strong> à jurisdição se constitui emgarantia constitucional (art. 5º, XXXV). Garantia síntese, na expressivadefinição de Cândi<strong>do</strong> Rangel Dinamarco. 27Não representa novidade alguma afirmar que as ações nas quais sepleiteiam direitos que interessam direta ou indiretamente à coletividadecomo um to<strong>do</strong>, tais como as que envolvem o direito à vida, representampercentual cada vez maior <strong>do</strong> rol de casos submeti<strong>do</strong>s à apreciação <strong>do</strong>Poder Judiciário.As <strong>do</strong>utrinas <strong>do</strong> chama<strong>do</strong> dano inverso, <strong>do</strong> efeito multiplica<strong>do</strong>re, sobretu<strong>do</strong>, da reserva <strong>do</strong> possível reforçam o que se acaba de dizer.Pense-se, por exemplo, nas ações propostas para exigir fornecimento(individual ou coletivo) de medicamento. Haverá abuso no exercício <strong>do</strong>direito de ação caso o ajuizamento esteja volta<strong>do</strong> para recebimento demedicamento cuja eficácia não tenha ainda si<strong>do</strong> reconhecida pelos órgãosoficiais competentes, muitas vezes de alto custo, sem que antestenham si<strong>do</strong> testadas as alternativas de tratamento disponíveis na redepública? Ou na exigência jurisdicional de medicamento disponível narede pública sem que tenha havi<strong>do</strong> prévia solicitação na via administrativa?A resposta a tais questionamentos será dada a partir de recentesdecisões jurisdicionais <strong>do</strong> egrégio Tribunal de justiça de Minas Gerais.Eis a primeira ementa:TRATAMENTO MÉDICO - ANTECIPAÇÃO DE TUTELA - AUSÊN-CIA DA PROVA INEQUÍVOCA - ATESTADO FIRMADO POR UMÚNICO MÉDICO - IMPOSSIBILIDADE DE SUA ACEITAÇÃO SE27 Nova Era <strong>do</strong> Processo <strong>Civil</strong>. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 12.186R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 179-190, jul.-set. 2011


CONTRAPOSTO A FUNDADAS RAZÕES FORNECIDAS POR SER-VIÇO MÉDICO OFICIAL. Não se pode aceitar que atesta<strong>do</strong>/relatório de um só médico - com motivação insuficiente e/ouinadequada e sem comprovação em exames cientificamenteaceitáveis - possa ser contraposto às razões da Administraçãopara efeito de autorização de tratamento não indica<strong>do</strong> pelaANVISA em detrimento daqueles disponibiliza<strong>do</strong>s pelo SUS.Em recentíssima decisão (setembro/2009) o Colen<strong>do</strong> STF examinoua questão da saúde, já com fundamento nos subsídiosretira<strong>do</strong>s da audiência pública, ten<strong>do</strong> o Ministro Gilmar Mendessalienta<strong>do</strong> que “obrigar a rede pública a financiar todae qualquer ação e prestação de saúde geraria grave lesão àordem administrativa e levaria ao comprometimento <strong>do</strong> SUS,‘’de mo<strong>do</strong> a prejudicar ainda mais o atendimento médico daparcela da população mais necessitada’’. Dessa forma, eleconsiderou que deverá ser privilegia<strong>do</strong> o tratamento forneci<strong>do</strong>pelo SUS em detrimento de opção diversa escolhida pelopaciente, ‘’sempre que não for comprovada a ineficácia ou aimpropriedade da política de saúde existente’’. (ver STF - Suspensõesde Tutela Antecipada (STAs) 175 e 178 formuladas,respectivamente, pela União e pelo município de Fortaleza;ver ainda STA 244, <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Paraná - Relator MinistroGilmar Mendes). Número <strong>do</strong> processo: 1.0707.09.189781-9/001(1) Númeração Única: 1897819-48.2009.8.13.0707, Relator:WANDER MAROTTA, Data <strong>do</strong> Julgamento: 15/12/2009,Data da Publicação: 29/01/2010.Pede-se licença para transcrever parte <strong>do</strong> voto <strong>do</strong> relator, que bemespelha a complexidade 28 da matéria, tanto que passível de ser examinada,considera<strong>do</strong> o caso concreto, em requerimento de suspensão, talcomo constou da ementa supracitada:Não se questiona a obrigação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> em assegurar assistênciaà saúde <strong>do</strong> cidadão, mas tal garantia não implica aprevalência da vontade deste em relação às possibilidades elimitações próprias à Administração. Não há direito absoluto28 ARAÚJO, José Henrique Mouta. "Suspensões de decisões judiciais envolven<strong>do</strong> fornecimento de medicamentos:Um tema com variação interpretativa". Revista Dialética de Direito Processual. N. 58. São Paulo: Dialética. jan.2008, p. 17 e ss.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 179-190, jul.-set. 2011 187


e, em razão da supremacia <strong>do</strong> interesse coletivo, bem como<strong>do</strong>s princípios previstos no art. 37 da CF, conclui-se que, aoadministra<strong>do</strong>r, cabe gerir com probidade os recursos públicos,motivo pelo qual, diante da necessidade de patrocinarum tratamento, deverá fazê-lo ao menor custo possível.Dito isto, a concessão de um tratamento pela via <strong>do</strong> Judiciário- e que sequer foi aprova<strong>do</strong> pela ANVISA - só se justificariase cabalmente demonstrada a indispensabilidade <strong>do</strong> tratamentoindica<strong>do</strong> pelo SUS, o que não é o caso, pois o Esta<strong>do</strong>informa haver alternativas terapêuticas ao tratamento experimentalprescrito pelo médico.O tema ora versa<strong>do</strong> adquire mesmo conotação de ordem política,conforme se infere das palavras <strong>do</strong> eminente Presidente <strong>do</strong> colen<strong>do</strong> SupremoTribunal Federal, Ministro Gilmar Ferreira Mendes, com as quaisdera início à audiência pública referida na ementa ora citada e que resultouno entendimento já prestigia<strong>do</strong> pelo egrégio TJMG. Naquela oportunidade,afirmou-se que:O fato é que a judicialização <strong>do</strong> direito à saúde ganhou tamanhaimportância teórica e prática que envolve não apenas os opera<strong>do</strong>res<strong>do</strong> direito, mas também os gestores públicos, os profissionaisda área de saúde e a sociedade civil como um to<strong>do</strong>.Se, por um la<strong>do</strong>, a atuação <strong>do</strong> Poder Judiciário é fundamentalpara o exercício efetivo da cidadania e para a realização <strong>do</strong>direito social à saúde, por outro, as decisões judiciais têm significa<strong>do</strong>um forte ponto de tensão perante os elabora<strong>do</strong>rese executores das políticas públicas, que se vêem compeli<strong>do</strong>sa garantir prestações de direitos sociais das mais diversas,muitas vezes contrastantes com a política estabelecida pelosgovernos para a área da saúde e além das possibilidadesorçamentárias. A ampliação <strong>do</strong>s benefícios reconheci<strong>do</strong>sconfronta-se continuamente com a higidez <strong>do</strong> sistema 29 .Feita essa breve digressão, veja-se, quanto à segunda indagação, oposicionamento <strong>do</strong> eminente constitucionalista Desembarga<strong>do</strong>r KildareCarvalho Gonçalves:29 http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/processoAudienciaPublicaSaude/anexo/Abertura_da_Audiencia PúblicaMGM.pdf. Consulta efetuada em 12 de fevereiro de 2010.188R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 179-190, jul.-set. 2011


MANDADO DE SEGURANÇA - FORNECIMENTO DE MEDICA-MENTO - REGULAR DISPONIBILIZAÇÃO - INTERESSE DE AGIR- AUSÊNCIA. Deve ser denegada a segurança relativamenteaos medicamentos busca<strong>do</strong>s por meio <strong>do</strong> manda<strong>do</strong> de segurançaque, entretanto, são regularmente disponibiliza<strong>do</strong>s eforneci<strong>do</strong>s pelo Esta<strong>do</strong>. Acolhida a preliminar, denega-se asegurança. Número <strong>do</strong> processo: 1.0000.09.493322-3/000(1)Numeração Única: 4933223-96.2009.8.13.0000, Relator:KILDARE CARVALHO, Data <strong>do</strong> Julgamento: 07/10/2009, Datada Publicação: 20/11/2009 30 .Do teor das decisões - improcedência <strong>do</strong> pedi<strong>do</strong> (primeiro caso),extinção <strong>do</strong> processo sem resolução de mérito (segun<strong>do</strong> caso) - depreende-seque tais demandas nem de longe configuram abuso de direito deação. Sustentar o contrário equivaleria a conferir interpretação restritivaà garantia fundamental de acesso à jurisdição.Não se pretende aqui analisar o acerto das decisões.Apenas se registra que o direito incondiciona<strong>do</strong> de movimentar ajurisdição existe, quer tenha razão, quer não, o autor.Daí a relevância da especialidade procedimental defendida no texto,sob a ótica <strong>do</strong> caráter dúplice <strong>do</strong> direito de ação.Dessa maneira, <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> que não será por meio de ilegítimarestrição ao exercício <strong>do</strong> direito de ação que se irá resolver a abusiva (suposta)propositura de ações, não será também por intermédio de ilegítimarestrição ao direito de ampla defesa que se irá combater a supostamenteindiscriminada utilização <strong>do</strong> requerimento de suspensão de liminar.5 - CONCLUSÕESA origem histórica <strong>do</strong> instituto não o condena irremediavelmente àvala da inconstitucionalidade.Desde que se admita que a especialidade procedimental visa aatender à promessa constitucional de acesso à jurisdição, conviver-se-ácom formas diferenciadas de procedimento.Como des<strong>do</strong>bramento natural da especialidade, despontarão meiosdiversos daqueles considera<strong>do</strong>s padrões, inclusive para impugnar efeitosde decisões jurisdicionais.30 Decisão proferida por maioria.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 179-190, jul.-set. 2011 189


O requerimento de suspensão de liminar é compatível com o TextoConstitucional vigente, desde que possibilitada a participação em contraditóriodas partes <strong>do</strong> processo.A destinação prática dada a qualquer instituto jurídico não pode sero único nem o principal parâmetro para que se avalie sua compatibilidadecom o sistema jurídico em que inserto.Não será por meio de restritiva interpretação ao exercício de garantiasconstitucionais que se dará concretude ao princípio constitucional <strong>do</strong>devi<strong>do</strong> processo legal.No Esta<strong>do</strong> democrático de direito, o réu, não menos que o autor,faz jus à tutela jurisdicional adequada.190R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 179-190, jul.-set. 2011


Principais Inovações quantoaos Meios de Impugnaçãodas Decisões Judiciais noProjeto <strong>do</strong> Novo CPC *Flávia Pereira HillTabeliã. Mestre e Doutoranda em Direito Processualpela UERJ. Professora da EMERJ.1. Introdução. Princípios nortea<strong>do</strong>res no novo sistemarecursalO Projeto <strong>do</strong> novo Código de Processo <strong>Civil</strong> dedica o Livro IV inteiramenteà regulação “Do processo nos tribunais e <strong>do</strong>s meios de impugnaçãodas decisões judiciais”. A matéria, no Código de Processo <strong>Civil</strong> de1973, atualmente em vigor, é regulada no Livro I, atinente ao Processo deConhecimento, ten<strong>do</strong> para si reserva<strong>do</strong>s os Títulos IX (Do Processo nosTribunais) e X (Dos Recursos). A opção da Comissão <strong>do</strong> Projeto <strong>do</strong> novoCPC por organizar a nova codificação em cinco Livros 1 fez com que a disciplinarecursal ganhasse um Livro próprio, destacan<strong>do</strong>-se, sob o ponto devista topológico, <strong>do</strong> Processo de Conhecimento.O Comissão de juristas a<strong>do</strong>tou, claramente, como fio condutor <strong>do</strong>Projeto <strong>do</strong> novo CPC, os princípios da celeridade, da economia processuale da busca por um menor formalismo 2 , ten<strong>do</strong> este último como limite o* Artigo elabora<strong>do</strong> a partir de Palestra ministrada pela autora no Seminário intitula<strong>do</strong> “Principais Inovações <strong>do</strong> NovoCPC – PL 8.046/10”, realiza<strong>do</strong> no dia 29/07/2011 na Fundação Escola Superior <strong>do</strong> Ministério Público <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong>Rio de Janeiro – FEMPERJ e organiza<strong>do</strong> pelo Prof. Dr. Humberto Dalla Bernardina de Pinho.1 Os cinco Livros <strong>do</strong> Projeto de novo CPC dividem-se em: Livro I – Parte Geral; Livro II – Processo de Conhecimento eCumprimento de Sentença; Livro III – Do Processo de Execução; Livro IV - Do Processo nos Tribunais e <strong>do</strong>s Meios deImpugnação das Decisões Judiciais e Livro V – Das Disposições Finais e Transitórias2 A Exposição de Motivos <strong>do</strong> Projeto declara, especificamente, o seu propósito de simplificar o sistema recursalbrasileiro, in verbis: “Na elaboração deste Anteprojeto de Código de Processo <strong>Civil</strong>, essa foi uma das linhas principaisde trabalho: resolver problemas. Deixar de ver o processo como teoria descomprometida de sua natureza fundamentalde méto<strong>do</strong> de resolução de conflitos, por meio <strong>do</strong> qual se realizam valores constitucionais. Assim, e porisso, um <strong>do</strong>s méto<strong>do</strong>s de trabalho da Comissão foi o de resolver problemas, sobre cuja existência há praticamenteunanimidade na comunidade jurídica. Isso ocorreu, por exemplo, no que diz respeito à complexidade <strong>do</strong> sistemarecursal existente na lei revogada. Se o sistema recursal, que havia no Código revoga<strong>do</strong> em sua versão originária, eraconsideravelmente mais simples que o anterior, depois das sucessivas reformas pontuais que ocorreram, se tornou,R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 191-214, jul.-set. 2011 191


espeito às garantias fundamentais <strong>do</strong> processo. E, inclusive, em prol dasnecessárias coerência e unidade da codificação, verificamos que, de fato,também a nova sistemática recursal rende homenagens a tais princípios acada inovação a<strong>do</strong>tada, conforme veremos ao longo deste trabalho.Ao declaradamente pautar os seus trabalhos nos princípios acimaindica<strong>do</strong>s, verifica-se que a Comissão — apesar de, com isso, não se eximirde críticas, mas, ao contrário, atrair para si questionamentos em torno <strong>do</strong>grau técnico e até mesmo da própria necessidade da elaboração de umanova codificação 3 — optou por imprimir alterações com caráter pragmático,ou seja, procurou implementar alterações que, a seu sentir, teriam opotencial para tornar o processo menos burocrático e formalista e, comisso, simplificá-lo para lhe imprimir um ritmo mais célere.Não causa, pois, estranheza aos profissionais <strong>do</strong> direito que a Comissãotenha empreendi<strong>do</strong> diversas alterações à luz <strong>do</strong>s princípios antesmenciona<strong>do</strong>s, particularmente no Livro dedica<strong>do</strong> ao processo nos tribunaise aos meios de impugnação das decisões judiciais, tema que ora nos interessa.Estamos há muito habitua<strong>do</strong>s às mais veementes críticas da sociedade,especialmente ao sistema recursal brasileiro, tacha<strong>do</strong> de extremamentecomplexo e fomenta<strong>do</strong>r <strong>do</strong> prolongamento desmesura<strong>do</strong> <strong>do</strong> processo.Diante disso, compreende-se que o Projeto, imbuí<strong>do</strong> <strong>do</strong> propósitode oferecer à sociedade um processo menos formal e mais célere, tenha seocupa<strong>do</strong>, com especial apuro, de simplificar a sistemática recursal e a<strong>do</strong>tarmedidas tendentes, ao menos em tese, a reduzir o impacto <strong>do</strong>s recursos naduração <strong>do</strong> processo. O objetivo de simplificar a sistemática recursal mostra-se,portanto, um desafio emblemático para os trabalhos da Comissão,representan<strong>do</strong>, com especial clareza, o propósito central de deformalizaçãoe celeridade <strong>do</strong> processo. Sob tal ponto de vista, a análise das inovações àsistemática recursal descortina, de forma particularmente ilustrativa, to<strong>do</strong>sos valores que norteiam o Projeto como um to<strong>do</strong>. Daí acreditarmos na relevânciade se analisar o Livro IV para bem compreendermos, de um mo<strong>do</strong>mais abrangente, os lineamentos gerais <strong>do</strong> Projeto.inegavelmente, muito mais complexo. (...)O novo Código de Processo <strong>Civil</strong> tem o potencial de gerar um processomais célere, mais justo, porque mais rente às necessidades sociais e muito menos complexo. A simplificação <strong>do</strong>sistema, além de proporcionar-lhe coesão mais visível, permite ao juiz centrar sua atenção, de mo<strong>do</strong> mais intenso,no mérito da causa.” (Grifos no original).3 Diversos juristas, dentre os quais o eminente processualista José Carlos Barbosa Moreira, apontam, há décadas,para a carência de levantamentos estatísticos a respeito das causas das mazelas que se buscam debelar com as reformasprocessuais. Argumenta-se, não sem razão, que a ausência de identificação precisa das causas acaba por tornaras alterações em “tiros no escuro”, sen<strong>do</strong> que, muitas vezes, a aplicação prática da nova lei termina por demonstrara sua inaptidão para contornar os problemas, eis que estes se mantêm.192R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 191-214, jul.-set. 2011


Verifica-se, ainda, emergir um outro princípio que norteou particularmentea elaboração <strong>do</strong> Livro IV, ora objeto de nosso estu<strong>do</strong>. Trata-se <strong>do</strong>prestígio à uniformização e à estabilidade da jurisprudência 4 . Identifica<strong>do</strong>até um passa<strong>do</strong> recente como expediente típico e (quase que) exclusivo<strong>do</strong> sistema de common law, o Projeto <strong>do</strong> novo CPC vem agasalhá-lo, comoforma de evitar decisões conflitantes que comprometeriam a segurançajurídica 5 e a isonomia, na medida em que busca reduzir a probabilidade deque jurisdiciona<strong>do</strong>s que estejam em idêntica situação venham a recebersoluções judiciais díspares.A especial importância dada à uniformização e à estabilidade dajurisprudência é revelada logo ao início <strong>do</strong> Livro IV, o qual é aberto com oartigo 882, encorajan<strong>do</strong> a edição de súmulas da jurisprudência <strong>do</strong>minantepelos tribunais brasileiros, bem como a aplicação, pelos órgãos jurisdicionaisinferiores, das orientações jurisprudenciais <strong>do</strong>s órgãos jurisdicionaissuperiores.A redação dispensada ao inciso I <strong>do</strong> artigo 882 <strong>do</strong> Projeto já vemreceben<strong>do</strong> críticas, segun<strong>do</strong> as quais o Projeto poderia ter avança<strong>do</strong> deforma mais significativa quanto à valorização da jurisprudência, ao argumentode que a inserção da expressão “sempre que possível” denotarianão a obrigatoriedade, mas uma mera exortação a que os tribunais editemsúmulas da jurisprudência <strong>do</strong>minante. Desde o início, vimos entenden<strong>do</strong>que, de fato, o artigo 882 representaria, acima de tu<strong>do</strong>, uma exortação,conclaman<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os magistra<strong>do</strong>s brasileiros a a<strong>do</strong>tar amplamente novosparâmetros, pauta<strong>do</strong>s pela aplicação da jurisprudência <strong>do</strong>minante <strong>do</strong>tribunal a que pertencem, bem como <strong>do</strong>s tribunais superiores.No entanto, não consideramos de pouca monta a inovação contidano artigo 882. A abertura <strong>do</strong> Livro IV com o estabelecimento denovos critérios a serem a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s pelos julga<strong>do</strong>res demonstra, a nosso4 Marinoni e Mitidiero entedem que o Projeto, ao preferir trabalhar “com o plano da jurisprudência” em vez de“explicitar a necessidade de respeito aos precedfentes em nossa ordem jurídica”, deu um passo adiante, embora pudesseter avança<strong>do</strong> ainda mais. É o que se depreende a partir <strong>do</strong> seguinte trecho de sua obra, in verbis: “É claro queainda assim dá um passo – o objetivo de promover o império <strong>do</strong> Direito entre nós, contu<strong>do</strong>, está bem mais além dapassada e, certamente, em caminho algo diverso. É imperiosa a necessidade de reconhecimento da eficácia vinculante<strong>do</strong>s fundamentos determinantes das decisões judiciais. É, enfim, imprescindível trabalhar no plano <strong>do</strong> precedente.Precedente, decisão judicial, jurisprudêcia e súmula não são termos sinônimos.” MARINONI, Luiz Guilherme.MITIDIERO, Daniel. O projeto <strong>do</strong> novo CPC – Crítica e Propostas. São Paulo: RT. 2010. P. 164. (Itálicos <strong>do</strong> original).5 A Exposição de Motivos destaca a importância dada ao tema pela Comissão, nos seguintes termos, in verbis: “Poroutro la<strong>do</strong>, haver, indefinidamente, posicionamentos diferentes e incompatíveis, nos Tribunais, a respeito da mesmanorma jurídica, leva a que jurisdiciona<strong>do</strong>s que estejam em situações idênticas, tenham de submeter- se a regrasde conduta diferentes, ditadas por decisões judiciais emanadas de tribunais diversos. Esse fenômeno fragmenta osistema, gera intranquilidade e, por vezes, verdadeira perplexidade na sociedade.” (Grifos <strong>do</strong> original).R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 191-214, jul.-set. 2011 193


ver, a importância dada à uniformização da jurisprudência pelo Projeto.Acreditamos que a localização desse dispositivo legal, logo ao início <strong>do</strong>Livro IV, mostra-se simbólica e aponta para os novos rumos que o Projetopretende dar ao processo.Acreditamos que inaugurar o Livro IV com a previsão de que os magistra<strong>do</strong>sdeverão julgar em observância à jurisprudência <strong>do</strong>minante abreum novo panorama para o processo e marca uma clara opção por parte<strong>do</strong> legisla<strong>do</strong>r brasileiro no senti<strong>do</strong> de aproximar o sistema processual brasileiro<strong>do</strong> modelo de precedentes a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> pelos países de common law.Com efeito, já dávamos sinais de uma maior aproximação com o sistemade common law ao regulamentarmos a súmula vinculante (Lei Federal nº11.417/06), a repercussão geral (Lei Federal nº 11.418/06), os recursosrepetitivos (Lei Federal nº 11.672/08), dentre outras medidas; no entanto,creditamos ao Projeto a expressa tomada de posição, logo ao início <strong>do</strong>Livro IV, pela estruturação <strong>do</strong>s julgamentos voltada abertamente à valorizaçãoda jurisprudência <strong>do</strong>minante. Trata-se, a nosso juízo, de uma inovaçãocom caráter mais amplo <strong>do</strong> que inicialmente poderíamos entender,colocan<strong>do</strong>, em verdade, o princípio da uniformização e da estabilidade dajurisprudência como um <strong>do</strong>s novos pilares <strong>do</strong> nosso sistema processual.E a abrangência dada ao tema revela-se inequivocamente inova<strong>do</strong>ra.Confirman<strong>do</strong> o propósito <strong>do</strong> Projeto de valorizar a uniformizaçãoe a estabilidade da jurisprudência, podemos apontar, ainda, a ampliaçãodas hipóteses de cabimento <strong>do</strong>s embargos de divergência perante o SuperiorTribunal de Justiça (art. 997 e ss) e a criação <strong>do</strong> chama<strong>do</strong> “Incidentede resolução de demandas repetitivas” 6 (art. 930 e ss).Feitas tais considerações gerais, passemos à análise das principaisinovações trazidas pelo Projeto quanto ao tema que propomos abordar.2. SUCUMBÊNCIA RECURSALEmbora não esteja situada no Livro IV, a primeira alteração merece<strong>do</strong>rade destaque no tocante à sistemática recursal consiste na instituição,no procedimento comum, da chamada “sucumbência recursal”, previstano §7º <strong>do</strong> art. 87 <strong>do</strong> Projeto. Segun<strong>do</strong> o Projeto, o tribunal poderá, deofício, condenar a parte que sucumbir em grau recursal ao pagamentode verba honorária específica, que não poderá totalizar mais de 25% paratoda a fase de conhecimento.6 Marinoni e Mitiero esclarecem que “os embargos de divergência têm por função uniformizar internamente ajurisprudência das cortes superiores.” Op. cit. P. 190.194R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 191-214, jul.-set. 2011


Com isso, almeja-se desencorajar a interposição de recursos infunda<strong>do</strong>spelas partes e, a partir da redução <strong>do</strong> número de recursos interpostos,busca-se imprimir maior celeridade ao processo, antecipan<strong>do</strong> otrânsito em julga<strong>do</strong> da sentença e, assim, a solução final da causa.Constata-se, portanto, que a instituição dessa inovação alinha-se aopropósito inicial da Comissão de perquirir uma maior celeridade processual.Acreditamos que somente a experiência prática poderá confirmar osucesso da iniciativa aqui a<strong>do</strong>tada, dependen<strong>do</strong>, inclusive, da postura a<strong>do</strong>tadapelos tribunais, uma vez que a reiterada instituição de sucumbênciarecursal diminuta ou ínfima acabaria por tornar a inovação letra morta.Todavia, reputamos salutar a ideia de criar um mecanismo que incentivea recorribilidade responsável e comprometida. Se, por um la<strong>do</strong>,nós, brasileiros, somos considera<strong>do</strong>s excessivamente beligerantes, malversan<strong>do</strong>a utilização <strong>do</strong>s recursos, a inovação trazida pelo Projeto temo mérito de procurar, de alguma forma, mitigar essa postura a serviçode um processo que ostente uma duração razoável, isto é, sem delongasdesnecessárias, dentre as quais, por certo, a interposição de recursos sabidamenteinfunda<strong>do</strong>s.E, a se tomar por justas as críticas comumente dirigidas à sistemáticarecursal vigente, justifica-se o des<strong>do</strong>bramento <strong>do</strong>s ônus sucumbenciaisespecificamente quanto ao grau recursal. Consideran<strong>do</strong>-se que a interposição<strong>do</strong> recurso ocasiona o des<strong>do</strong>bramento da relação processual, adian<strong>do</strong>o desfecho <strong>do</strong> processo, mostra-se razoável conceber a instituição de verbasucumbencial específica para a fase recursal. Trata-se de medida a<strong>do</strong>tadapelo Projeto que se afigura condizente com a percepção da Comissão deque a interposição de recursos desprovi<strong>do</strong>s (ou quase) de chances de êxitoseria um fator relevante para o prolongamento desnecessário <strong>do</strong> processo.3. MODULAÇÃO DE EFEITOS DA ALTERAÇÃO DE PRECEDENTEConforme destacamos no início <strong>do</strong> presente trabalho, o Projeto, noartigo 882, estabeleceu o prestígio à jurisprudência <strong>do</strong>minante, o que deveráser observa<strong>do</strong> por to<strong>do</strong>s os magistra<strong>do</strong>s brasileiros.No entanto, ao lidar com o sistema de precedentes, teve o Projetode lidar também com a possibilidade de alteração <strong>do</strong>s precedentes pelostribunais, o que acarreta uma mudança nos parâmetros utiliza<strong>do</strong>s pelosmagistra<strong>do</strong>s ao solucionar diversas causas em curso que versem sobre amesma questão jurídica.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 191-214, jul.-set. 2011 195


Os precedentes, em common law, são, em regra, retroativos, ouseja, o novo entendimento firma<strong>do</strong> se estende aos processos em curso.No entanto, forçoso reconhecer que, por vezes, a aplicação imediata <strong>do</strong>novo entendimento poderá representar vulneração da segurança jurídicae <strong>do</strong> seu consectário de previsibilidade.Por essa razão, visan<strong>do</strong> a prestigiar a segurança jurídica, previu oProjeto, no artigo 882, inciso V, a chamada modulação <strong>do</strong>s efeitos da alteração<strong>do</strong> precedente, permitin<strong>do</strong> que o tribunal, ao modificar o entendimento,ressalve a sua aplicação somente aos processos futuros, resguardan<strong>do</strong>,assim, os processos em curso, que serão julga<strong>do</strong>s em consonânciacom o entendimento sedimenta<strong>do</strong> à época de sua instauração.Isso porque os cidadãos, especialmente em uma sociedade quea<strong>do</strong>te o sistema de precedentes, soem pautar suas condutas segun<strong>do</strong> ajurisprudência <strong>do</strong>minante e, por conseguinte, a aplicação de um novo entendimento,a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> já no curso da ação, surpreenderá as partes, fazen<strong>do</strong>emergir, quan<strong>do</strong> menos, um sentimento de injustiça e insegurança,nefasto para a legitimidade <strong>do</strong> processo.4. CONSOLIDAÇÃO DOS PODERES DO RELATOR: art. 888Afinan<strong>do</strong>-se com o ideal de otimizar o processo e imprimir-lhe maiorceleridade, o Projeto consolida, no art. 888, os poderes <strong>do</strong> relator parajulgar monocraticamente, autorizan<strong>do</strong> seja da<strong>do</strong> ou nega<strong>do</strong> provimentomonocraticamente a recurso, em prestígio ao entendimento preconiza<strong>do</strong>pelos tribunais superiores ou pelo tribunal local no julgamento de casosrepetitivos, ou em incidente de resolução de demandas repetitivas ou deassunção de competência 7 - 8 - 9 .Constata-se, ainda, que, com tal medida, o Projeto busca, uma vezmais, prestigiar a uniformização de jurisprudência, um de seus princípiosbaliza<strong>do</strong>res. O Projeto não contempla o incidente de uniformização dejurisprudência (atuais arts. 476 e 479), mas traz o incidente de resoluçãode demandas repetitivas e a assunção de competência.7 Athos Gusmão Carneiro assim se posiciona a respeito <strong>do</strong> instituto da assunção de competência no Projeto, inverbis: “Assim como está redigi<strong>do</strong>, nota-se, portanto, uma equivalência com o ‘incidente de resolução de demandasrepetitivas’.” O autor defende seja restituí<strong>do</strong> ao instituto a “eficácia meramente ‘persuasiva’, e não com eficáciavinculativa.” CARNEIRO, Athos Gusmão. "O novo Código de Processo <strong>Civil</strong> – Breve Análise <strong>do</strong> Projeto Revisa<strong>do</strong> noSena<strong>do</strong>", In Repro Ano 36. Número 194. Abril 2011. São Paulo: RT. P. 165.8 Marinoni e Mitidiero elogiam a assunção de competência tal qual prevista no Projeto, nos seguintes termos: “Secompara<strong>do</strong> com o incidente de uniformização de jurisprudência, o expediente proposto pelo Projeto tem a vantagemde ser vinculante para ‘to<strong>do</strong>s os órgãos fracionários’<strong>do</strong> tribunal (art. 865, §2º ). Atende com maior fidelidade,portanto, aos imperativos de segurança e igualdade que derivam da ideia de Esta<strong>do</strong> Constitucional.” Op. cit. P. 176.9 A assunção de competência encontra-se prevista no CPC/73 no artigo 555, §1º.196R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 191-214, jul.-set. 2011


5. INCLUSÃO DE TODOS OS RECURSOS EM PAUTAO artigo 890 <strong>do</strong> Projeto dispõe que to<strong>do</strong>s os recursos previstos noLivro IV serão incluí<strong>do</strong>s em pauta — ressalva<strong>do</strong>s apenas os embargos dedeclaração, que serão coloca<strong>do</strong>s em mesa, por força <strong>do</strong> artigo 978 —, aser publicada no Diário Oficial, a fim de dar publicidade à data <strong>do</strong> julgamentoe, com isso, permitir que as partes e seus advoga<strong>do</strong>s possam a<strong>do</strong>taras providências que reputarem cabíveis ou, quan<strong>do</strong> menos, possamestar presentes ao julgamento 10 , o que merece os nossos elogios.No entanto, entendemos que o menciona<strong>do</strong> dispositivo pode acabarpor se tornar inócuo, ten<strong>do</strong> em vista a franca expansão <strong>do</strong>s julgamentoseletrônicos (plenários eletrônicos), que promovem julgamentos emambientes digitais fecha<strong>do</strong>s, acessíveis somente aos magistra<strong>do</strong>s, semque deles participem as partes e seus advoga<strong>do</strong>s, o que vem ensejan<strong>do</strong>pertinentes críticas, em razão, justamente, da vulneração ao princípio dapublicidade, princípio este que se buscou prestigiar na citada norma <strong>do</strong>Projeto. Vejamos como essa contradição será equacionada, caso o Projetoentre em vigor.6. UNIFICAÇÃO DO PRAZO RECURSALO Projeto unificou o prazo recursal em quinze dias, ressalvan<strong>do</strong>-seapenas os embargos de declaração, cujo prazo se mantém em cinco dias(art. 948, §1º). Com isso, tem-se que os recursos de agravo de instrumento,agravo interno e o agora denomina<strong>do</strong> agravo de admissão — leia-seagravo interposto contra decisão de inadmissão <strong>do</strong>s recursos excepcionais,art. 996 — são amplia<strong>do</strong>s.Mais uma vez, acreditamos que an<strong>do</strong>u bem o Projeto ao unificar osprazos recursais, pois possui o mérito de simplificar a sistemática recursal,evitan<strong>do</strong>, inclusive, equívocos por parte <strong>do</strong>s advoga<strong>do</strong>s, especialmente osmenos experientes. Ademais, os cinco dias de aumento <strong>do</strong> prazo para ainterposição de alguns recursos, como é o caso <strong>do</strong>s recursos de agravo, deum la<strong>do</strong>, não pode ser considera<strong>do</strong> um lapso extenso, a ponto de implicaro prolongamento significativo <strong>do</strong> processo, sen<strong>do</strong> certo que, de outra10 Em prol da publicidade da data de julgamento <strong>do</strong>s recursos, manifestou-se expressamente a Comissão <strong>do</strong> Anteprojetona Exposição de Motivos, descortinan<strong>do</strong> sua especial atenção quanto a essa questão, in verbis: “Prestigian<strong>do</strong>o princípio constitucional da publicidade das decisões, previu-se a regra inafastável de que à data de julgamento deto<strong>do</strong> recurso deve- se dar publicidade (= to<strong>do</strong>s os recursos devem constar em pauta), para que as partes tenhamoportunidade de tomar providências que entendam necessárias ou, pura e simplesmente, possam assistir ao julgamento.”(Grifo no original).R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 191-214, jul.-set. 2011 197


parte, mostra-se valioso e suficiente para permitir que as partes elaboremsuas razões recursais com mais apuro.7. SUPRESSÃO DO EFEITO SUSPENSIVOO Projeto implementa significativa alteração ao estabelecer, comoregra, a ausência de efeito suspensivo ope legis <strong>do</strong>s recursos, inclusive deapelação (art. 949) 11 .Em contrapartida, poderá o relator — note-se, não o juiz de 1ª instância— suspender a eficácia da decisão recorrida diante da presença,em síntese, <strong>do</strong>s requisitos <strong>do</strong> fumus boni iuris (“demonstrada a probabilidadede provimento <strong>do</strong> recurso” ou “relevância da fundamentação”– art. 949) e <strong>do</strong> periculum in mora (“risco de dano irreparável e de difícilreparação” - art. 949).Com isso, a Comissão, a um só tempo, prestigia a decisão de 1ªinstância e permite que os atos executórios possam ser deflagra<strong>do</strong>s desdelogo, impon<strong>do</strong>, assim, maior celeridade ao procedimento.O pedi<strong>do</strong> de concessão de efeito suspensivo será dirigi<strong>do</strong> ao tribunalatravés de petição avulsa, mesmo que os autos ainda estejam nainstância a quo. Impede-se, com isso, um outrora delica<strong>do</strong> “vácuo de competência”,que era fonte de insegurança, dada a suscetibilidade a divergênciasde entendimento quanto ao órgão jurisdicional competente paraapreciar o pedi<strong>do</strong> de concessão de efeito suspensivo à apelação quan<strong>do</strong>esta não fosse recebida no duplo efeito.O Projeto, em sua versão atual, cria a situação na qual o advoga<strong>do</strong>deverá interpor o recurso de apelação perante o juízo prolator da sentençaapelada, sem que tal recurso ostente efeito suspensivo. Imediatamenteapós, deverá o advoga<strong>do</strong> também elaborar petição avulsa, a ser dirigidaao tribunal competente para julgar a apelação, através da qual requer aconcessão de efeito suspensivo à apelação interposta.A partir <strong>do</strong> protocolo da petição avulsa perante o tribunal, a apelaçãopassa a ostentar um efeito suspensivo “provisório”, que se produziráaté que o relator examine o pedi<strong>do</strong> formula<strong>do</strong> na petição avulsa e, então,decida entre manter, agora com caráter permanente, o efeito suspensivoda apelação ou receber o recurso apenas no efeito devolutivo, fazen<strong>do</strong>,neste caso, cessar o efeito suspensivo “provisório” (§ 3º <strong>do</strong> art. 949).11 A opção <strong>do</strong> projeto pela concessão ope judicis de efeito suspensivo aos recursos, em vez de ope legis, é elogiadapor Marinoni e Mitidiero. Op. cit. P. 178.198R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 191-214, jul.-set. 2011


A imposição da a<strong>do</strong>ção pelo apelante de duas providências, praticamentesimultâneas, perante instâncias diversas, no intuito de permitira obtenção de efeito suspensivo, vem sen<strong>do</strong> duramente criticada, o quepode, inclusive, dar ensejo à alteração da redação <strong>do</strong> artigo 949 <strong>do</strong> Projetodurante o processo legislativo, a fim de que seja previsto que o efeitosuspensivo “provisório” se opere a partir da interposição da apelação, enão <strong>do</strong> protocolo da petição avulsa perante o tribunal.Com isso, evitar-se-ia a inquietante situação contemplada na redaçãoatual <strong>do</strong> Projeto na qual o apelante tem de se apressar em protocolara petição avulsa perante o tribunal, em uma verdadeira corrida contra otempo, visto que, muitas vezes, a eficácia da sentença apelada mantidapor apenas um dia já bastará para comprometer, definitivamente, a efetividadede um futuro acórdão que venha a reformar tal sentença em graurecursal, crian<strong>do</strong>-se, assim, uma situação irreversível.Pense-se, ainda, nos esta<strong>do</strong>s em que as petições dirigidas ao tribunaldevem ser protocoladas diretamente na capital, representan<strong>do</strong>,assim, mais um óbice ao cumprimento da sistemática <strong>do</strong> duplo peticionamentoexigi<strong>do</strong> pelo artigo 949 para a obtenção <strong>do</strong> efeito suspensivo“provisório”.8. DESERÇÃO: art. 961, §§ 1º e 2º.O Projeto, mais uma vez fiel ao propósito assumi<strong>do</strong> no senti<strong>do</strong> dedeformalizar o processo, imprime maior flexibilidade quanto à decretaçãoda deserção, admitin<strong>do</strong> que, em caso de justo impedimento para a ausênciade recolhimento das custas recursais ou em caso de preenchimentoequivoca<strong>do</strong> da guia de recolhimento, possa o vício ser sana<strong>do</strong> em cincodias (art. 961, §§ 1º e 2º).Consideramos salutar a medida a<strong>do</strong>tada, prestigian<strong>do</strong> o efetivo julgamento<strong>do</strong> recurso em detrimento da a<strong>do</strong>ção de uma postura rígida eformalista. Teremos a oportunidade de verificar que, também em outrosmomentos, o Projeto vem referendar o prestígio ao julgamento <strong>do</strong> méritorecursal em detrimento da rigidez na apreciação de requisitos formais,como é o caso, dentre outros, da nova sistemática a<strong>do</strong>tada para os recursosexcepcionais.9. PRAZO PARA PUBLICAÇÃO DO ACÓRDÃONovamente, em homenagem à celeridade, princípio este eleva<strong>do</strong>ao grau de verdadeira prioridade, caso o acórdão não seja publica<strong>do</strong> noR. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 191-214, jul.-set. 2011 199


prazo de um mês a partir da data da sessão de julgamento, as notas taquigráficasvalerão como acórdão para to<strong>do</strong>s os fins legais (art. 897, § 3º).Entendemos que, quanto a esse ponto, acertou o Projeto, uma vezque verificamos casos em que transcorre logo tempo entre a realização <strong>do</strong>julgamento e a publicação <strong>do</strong> acórdão. Com isso, a marcha processual ficaobstada, não poden<strong>do</strong> as partes interpor os recursos cabíveis ou a<strong>do</strong>tar,sen<strong>do</strong> o caso, as medidas necessárias para dar fiel cumprimento à decisão.10. RECURSOS INTERPOSTOS POR DIVERSOS LITISCONSORTESOutra previsão inserida no Projeto em homenagem à otimização e àceleridade consiste no artigo 898, segun<strong>do</strong> o qual, ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> interpostosrecursos por mais de um litisconsorte versan<strong>do</strong> sobre a mesma questãode direito, a decisão favorável ao litisconsorte (recorrente), relativa a um<strong>do</strong>s recursos, prejudica o julgamento <strong>do</strong>s demais 12 . A solução se mostracoerente, uma vez que, ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> favorável aos litisconsortes a primeiradecisão, faleceria interesse aos demais recursos.11. POSSIBILIDADE DE ALTERAÇÃO DOS VOTOS ATÉ A PROCLAMA-ÇÃO DO RESULTADOO Projeto, no §1º <strong>do</strong> art. 896, vem trazer norma expressa a respeitoda qual o CPC de 1973 não se manifesta, ao prever que os votos poderãoser altera<strong>do</strong>s pelos magistra<strong>do</strong>s até a proclamação <strong>do</strong> resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> julgamentopelo presidente. A previsão de um marco temporal para a alteração<strong>do</strong>s votos se mostra criteriosa e traz maior segurança jurídica para ojulgamento pelo colegia<strong>do</strong>.12. INTEGRAÇÃO DO VOTO VENCIDO AO ACÓRDÃOO § 3º <strong>do</strong> art. 896 <strong>do</strong> Projeto prevê expressamente que o voto venci<strong>do</strong>integra o acórdão para to<strong>do</strong>s os fins, inclusive de prequestionamento,revogan<strong>do</strong>, desse mo<strong>do</strong>, o entendimento consolida<strong>do</strong> pelo SuperiorTribunal de Justiça na Súmula 320 13 . Com isso, o Projeto majora a possibilidadede preenchimento desse requisito específico de cabimento <strong>do</strong>srecursos excepcionais, demonstran<strong>do</strong> a tendência no senti<strong>do</strong> de propiciar,tanto quanto possível, o julgamento <strong>do</strong> mérito recursal.12 Marinoni e Mitidiero elogiam a previsão, afirman<strong>do</strong> que; “O objetivo aí é primar pela igualdade entre os consortese racionalizar o trabalho jurisdicional.” Op cit. P. 75.13 Súmula 314 <strong>do</strong> STJ: “A questão federal somente ventilada no voto venci<strong>do</strong> não atende ao requisito <strong>do</strong> prequestionamento.”200R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 191-214, jul.-set. 2011


13. HOMOLOGAÇÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRAO Projeto merece cumprimentos no tocante ao processo de homologaçãode sentença estrangeira. Primeiramente, pois o instituto recebeuregulamentação mais detalhada <strong>do</strong> que aquela dispensada pelo CPC de1973, o que, por si só, não se mostra pouco, ten<strong>do</strong> em vista que o aumentodas relações sociais e comerciais entre cidadãos e empresas dediferentes países revela a crescente importância <strong>do</strong> tema para o DireitoProcessual contemporâneo e clama por normas claras e atuais 14 .Em segun<strong>do</strong> lugar, o Projeto tem o mérito de incorporar as duasprincipais inovações a<strong>do</strong>tadas pela Resolução nº 09 <strong>do</strong> Superior Tribunalde Justiça. A primeira delas, a previsão quanto ao expresso cabimentoda homologação de decisões interlocutórias estrangeiras, ainda que concedidasinaudita altera parte, contanto que seja garanti<strong>do</strong> ao requeri<strong>do</strong>contraditório posterior. A homologabilidade de decisões interlocutóriasestrangeiras possui particular importância quanto às medidas urgentes,cujo ágil cumprimento em nosso país pode se revelar indispensável paraa efetividade <strong>do</strong> processo estrangeiro ou da futura sentença estrangeiraa ser proferida naqueles autos. O tema está na ordem <strong>do</strong> dia em diversospaíses, haven<strong>do</strong> inúmeros processualistas debruçan<strong>do</strong>-se sobre essaquestão, com vistas a evitar que as fronteiras políticas <strong>do</strong>s países — eigualmente a ausência de instrumentos processuais hábeis — sirvam comouma impie<strong>do</strong>sa muralha ardilosamente utilizada por réus contumazes.Ainda no tocante ao cumprimento de decisões interlocutórias estrangeirasem nosso país, o projeto parecer ter modifica<strong>do</strong> o instrumentoadequa<strong>do</strong> para lhes conferir eficácia internamente. Se, atualmente, dadasas inovações trazidas pela mencionada Resolução nº 09 <strong>do</strong> STJ, taisdecisões se tornaram passíveis de efetivação mediante a concessão deexequatur em sede de cartas rogatórias executórias – o que, até a EmendaConstitucional nº 45/2004, sequer era possível, já que o STF entendiaque tais decisões não poderiam ser cumpridas no Brasil —, o Projeto optapor uniformizar a forma de exercício <strong>do</strong> juízo de delibação, preven<strong>do</strong> quetanto as sentenças quanto as decisões interlocutórias estrangeiras serãoobjeto <strong>do</strong> processo de homologação. Isso é salutar, a nosso ver, já que,em ambos os casos, há igualmente o exercício de juízo de delibação —14 A respeito <strong>do</strong> moderno tratamento dispensa<strong>do</strong> ao processo de homologação de sentença estrangeira, especialmenteno tocante à homologabilidade de decisões interlocutórias estrangeiras e à concessão de tutela antecipadaem processo de homologação de sentença estrangeira, remetemos o leitor para obra: HILL, Flávia Pereira. A antecipaçãoda tutela no processo de homologação de sentença estrangeira. Rio de Janeiro: GZ Editora. 2010.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 191-214, jul.-set. 2011 201


com o exame da presença <strong>do</strong>s requisitos legais para o cumprimento dadecisão estrangeira em nosso país, sem rejulgamento <strong>do</strong> mérito <strong>do</strong> processoestrangeiro — não haven<strong>do</strong> razão para que fossem exigi<strong>do</strong>s instrumentosdiversos.A segunda previsão contida no Projeto consiste na expressa previsão<strong>do</strong> cabimento de concessão de tutela de urgência pelo Superior Tribunalde Justiça em sede de processo de homologação de sentença estrangeira.Aqui, o Projeto an<strong>do</strong>u bem, garantin<strong>do</strong> que, em caso de urgência, possa orequerente pleitear a antecipação <strong>do</strong>s efeitos da futura homologação dasentença estrangeira, medida essa que, muitas vezes, será fundamentalpara garantir a efetividade da decisão de homologação a ser proferida aofinal <strong>do</strong> processo perante o Superior Tribunal de Justiça. À semelhança<strong>do</strong>s demais processos judiciais que, em determinadas circunstâncias urgentes,merecem a antecipação <strong>do</strong>s efeitos da tutela jurisdicional comoforma de resguardar a efetividade <strong>do</strong> provimento final, o processo de homologaçãode sentença estrangeira também pode adquirir tal feição, nãohaven<strong>do</strong> justificativa para colocá-lo à margem de tal garantia processual.Previu-se expressamente, ainda, a homologabilidade das sentençasarbitrais, a fim de sepultar quaisquer eventuais dúvidas quanto ao seucabimento.O projeto previu expressamente, outrossim, a homologabilidade dedecisões estrangeiras para fins de execução fiscal, caso haja trata<strong>do</strong> oupromessa de reciprocidade, amplian<strong>do</strong>, pois, o âmbito de aplicação <strong>do</strong>instituto (§ 4º <strong>do</strong> art. 914).14. AÇÃO RESCISÓRIANo tocante à ação rescisória, destacamos como sen<strong>do</strong> as principaisinovações, primeiramente, a supressão de <strong>do</strong>is fundamentos para o ajuizamentoda ação rescisória, notadamente a incompetência absoluta e ofundamento para invalidar confissão, desistência ou transação em que sebaseie a sentença 15 , elenca<strong>do</strong>s respectivamene nos incisos II e VIII <strong>do</strong> artigo485 <strong>do</strong> CPC de 1973.Em segun<strong>do</strong> lugar, o Projeto opta por substituir a menção à “violaçãoa literal disposição de lei” como fundamento para a rescisão, a<strong>do</strong>tadano inciso V <strong>do</strong> artigo 485 <strong>do</strong> CPC de 1973, passan<strong>do</strong> a a<strong>do</strong>tar comofundamento a violação à “norma jurídica”, expressa no inciso V <strong>do</strong> arti-15 A supressão deste último é elogiada por Marinoni e Mitidiero na p. 177.202R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 191-214, jul.-set. 2011


go 919 <strong>do</strong> Projeto 16 . Consideramos que, mediante tal alteração, visou oProjeto a permitir seja invoca<strong>do</strong> como fundamento não apenas a afrontaao texto expresso de lei, mas também a interpretação que lhe é dada deforma assente pelos tribunais.No entanto, tal previsão vem receben<strong>do</strong> críticas, por se entenderque a redação a<strong>do</strong>tada pelo Projeto teria amplia<strong>do</strong> exageradamente ofundamento de rescisão, permitin<strong>do</strong> a invocação, inclusive, de regulamentose portarias, ao mencionar a palavra “norma” no lugar de “lei”.Alteração digna de nota consiste na redução <strong>do</strong> prazo decadencialpara o ajuizamento da ação rescisória de <strong>do</strong>is para apenas um ano a partir<strong>do</strong> trânsito em julga<strong>do</strong> (art. 928) 17 .A Comissão justifica a redução pela metade <strong>do</strong> prazo, com lastrona segurança jurídica, ao argumento de que, quanto maior o prazo, maioro perío<strong>do</strong> no qual se poderá pretender o afastamento da coisa julgada,sen<strong>do</strong> esta um <strong>do</strong>s pilares <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> democrático de direito.No entanto, consideramos que esse tema mostra-se mais complexo,merecen<strong>do</strong> um debate mais amplo. Concordamos com o propósito deprestigiar a coisa julgada e, por conseguinte, a segurança jurídica. No entanto,questionamos se a redução <strong>do</strong> prazo decadencial consiste realmentena melhor medida para salvaguardar os valores antes menciona<strong>do</strong>s.Com efeito, reduzir o prazo decadencial para o ajuizamento da açãorescisória sem que, por outro la<strong>do</strong>, seja adequadamente equacionada ateoria da relativização da coisa julgada, parece-nos trazer mais insegurança<strong>do</strong> que estabilidade. Devemos reconhecer que a teoria da relativizaçãoda coisa julgada vem, paulatinamente, ganhan<strong>do</strong> renoma<strong>do</strong>s adeptos,embora varie a amplitude de sua aplicação. Tal teoria carece de regulamentaçãolegal, sen<strong>do</strong> relegada a uma construção <strong>do</strong>utrinária e jurisprudencialque não prima pela unicidade e coesão 18 .16 Athos Gusmão Carneiro critica a alteração, por considerar a nova expressão “muitíssimo abrangente, e convémponderar que a aceitação da ação rescisória contra normas constantes de meros decretos, regulamentos, portariasde agências regula<strong>do</strong>ras, disposições normativas editadas por autarquias etc irá contrariar os propósitos que inspiramo projeto de novo Código, de ampla proteção à estabilidade e segurança jurídicas. Em decorrência, o prazo deum ano poderá retornar ao mais adequa<strong>do</strong> prazo atual, de <strong>do</strong>is anos (art. 928 <strong>do</strong> PR).” Op cit. P. 166.17 Na Exposição de Motivos, a Comissão <strong>do</strong> Anteprojeto declara o prestígio à segurança jurídica como razão para aredução <strong>do</strong> prazo, in verbis: “Também em nome da segurança jurídica, reduziu-se para um ano, como regra geral, oprazo decadencial dentro <strong>do</strong> qual pode ser proposta a ação rescisória.”18 Remetemos o leitor a <strong>do</strong>is trabalhos com teses díspares a respeito da relativização da coisa julgada, a fim deilustrar a ausência de consenso em torno de tema assaz sinuoso e delica<strong>do</strong>. MARINONI, Luiz Guilherme. "Relativizara coisa julgada material?" Disponível no endereço eletrônico: www.abdpc.org.br. DINAMARCO, Candi<strong>do</strong> Rangel.“Relativizar a Coisa Julgada Material”. In A nova era <strong>do</strong> processo civil. São Paulo: Malheiros. 2003. P. 220-266.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 191-214, jul.-set. 2011 203


Assim sen<strong>do</strong>, indagamos se a coisa julgada e a segurança jurídica estariamverdadeiramente mais bem resguardadas mediante a redução pelametade <strong>do</strong> prazo da ação rescisória para que, com a maior exiguidade <strong>do</strong>prazo, acabe por ganhar reforço a (instável) tese da relativização da coisajulgada, caso a caso, como derradeira forma de “fazer justiça”. Ou, poroutro la<strong>do</strong>, estariam tais valores mais bem protegi<strong>do</strong>s mediante o prestígioda ação rescisória como o instrumento adequa<strong>do</strong> para se pretender arescisão da sentença transitada em julga<strong>do</strong>, contan<strong>do</strong> com fundamentosde cabimento, procedimento e prazo legal de <strong>do</strong>is anos bem defini<strong>do</strong>s?Entendemos que o descabimento <strong>do</strong> ajuizamento da ação rescisóriaem razão <strong>do</strong> decurso <strong>do</strong> exíguo prazo poderá acabar por fomentar aexpansão da aplicação da teoria da relativização da coisa julgada, o quenão nos gera simpatia. Acreditamos que a previsão de regras claras e bemdefinidas, que possam ser facilmente identificadas pelos jurisdiciona<strong>do</strong>s,consiste no melhor serviço à segurança jurídica, mormente quan<strong>do</strong> estáem jogo a coisa julgada. Todavia, cremos que o tema mereça abordagemmais aprofundada, inclusive por sua importância e gravidade, o que nãonos é permiti<strong>do</strong> alcançar nos limites deste trabalho.15. CRIAÇÃO DO INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPE-TITIVASConforme noticiamos ao início deste estu<strong>do</strong>, o Projeto criou o chama<strong>do</strong>“Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas”, previsto no art.930, atenden<strong>do</strong> a proposta de prestigiar a uniformização da jurisprudênciae afastar o risco de decisões conflitantes.O incidente será cabível quan<strong>do</strong> houver controvérsia com potencialpara gerar relevante multiplicação de processos funda<strong>do</strong>s em idênticaquestão de direito e causar insegurança jurídica. Nesse caso, o juiz de 1ªinstância, o relator, as partes, o Ministério Público ou a Defensoria Públicapoderão requerer ao Presidente <strong>do</strong> tribunal a instauração <strong>do</strong> incidente,sen<strong>do</strong> este julga<strong>do</strong> pelo plenário ou órgão especial. O acórdão <strong>do</strong> plenárioou <strong>do</strong> órgão especial deverá ser observa<strong>do</strong> por to<strong>do</strong>s os magistra<strong>do</strong>s quecompõem o respectivo tribunal, como forma de uniformizar a jurisprudênciaem seu âmbito 19 .19 Marinoni e Mitidiero consideram bem intencionada a proposta neste particular, embora entendam que não teráo condão de reduzir a carga de trabalho <strong>do</strong> Judiciário, como se almeja, já que tal incidente não impede o ajuizamentode novas demandas. Segun<strong>do</strong> os <strong>do</strong>utrina<strong>do</strong>res, a utilização <strong>do</strong> modelo norte-americano das class actions melhorse prestaria a tal finalidade. Op. cit. P. 178.204R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 191-214, jul.-set. 2011


16. EXTINÇÃO DOS EMBARGOS INFRINGENTESAtenden<strong>do</strong> a críticas em torno desse recurso, o Projeto optou porextinguir os embargos infringentes — cujo cabimento, a propósito, jáhavia se torna<strong>do</strong> mais restrito após as alterações introduzidas pela Lei10.352/01 —, prestigian<strong>do</strong>, assim, o escopo de simplificação da sistemáticarecursal. No entanto, merece registro a intensa discussão em torno <strong>do</strong>tema no Sena<strong>do</strong> Federal, durante a tramitação <strong>do</strong> Projeto, ten<strong>do</strong> váriosSena<strong>do</strong>res se manifesta<strong>do</strong> pela manutenção <strong>do</strong> recurso.17. RECURSOS DE AGRAVOConsoante destaca<strong>do</strong> no Substitutivo apresenta<strong>do</strong> pelo Sena<strong>do</strong>rValter Pereira, o Projeto rompe com a sistemática <strong>do</strong> CPC de 1973, quecontempla, no rol <strong>do</strong>s recursos <strong>do</strong> artigo 496, apenas o recurso de agravo,genericamente. O Projeto optou por prever expressamente o cabimentode agravo de instrumento, agravo interno e agravo de admissão no elenco<strong>do</strong> artigo 948, por entender que não são espécies de um mesmo gênerointitula<strong>do</strong> agravo, mas sim recursos diversos, em razão de possuírem hipótesesde cabimento, competência e sistemáticas diferentes.18. EXTINÇÃO DO AGRAVO RETIDO. RECORRIBILIDADE DIFERIDADAS DECISÕES INTERLOCUTÓRIASO Projeto extinguiu, ainda, o recurso de agravo reti<strong>do</strong>, reestruturan<strong>do</strong>a recorribilidade das decisões interlocutórias. A partir <strong>do</strong> Projeto,as decisões interlocutórias, em regra, não mais precluem. Com isso,torna-se desnecessária (e incabível) a interposição imediata de agravoreti<strong>do</strong>, deven<strong>do</strong> as decisões interlocutórias ser desafiadas somente aofinal, como preliminar <strong>do</strong> recurso de apelação ou nas contrarrazões <strong>do</strong>apela<strong>do</strong> (art. 963, parágrafo único).Com isso, conforme destaca<strong>do</strong> pela Comissão na Exposição de Motivos,mu<strong>do</strong>u-se o momento de impugnação da decisão interlocutória —passan<strong>do</strong> da interposição imediata de agravo reti<strong>do</strong> para a suscitação depreliminar em apelação/contrarrazões —, mas não o momento de seu julgamentopelo tribunal, que continua sen<strong>do</strong> por ocasião <strong>do</strong> julgamento daapelação.Entendemos que tal inovação possui o condão de simplificar a recorribilidadedas decisões interlocutórias. Afinal, se, hoje, cabe à parteratificar o agravo reti<strong>do</strong> na preliminar de apelação/contrarrazões, maisR. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 191-214, jul.-set. 2011 205


simples se afigura dispensá-la de interpor previamente o recurso de agravoreti<strong>do</strong>, concentran<strong>do</strong> a impugnação das decisões interlocutórias nopróprio recurso de apelação.19. APELAÇÃOO recurso de apelação foi objeto de algumas modificações relevantes.Primeiramente, conforme exposto anteriormente, as decisões interlocutóriaspassam a ser desafiadas, em regra, mediante preliminar daapelação ou suas contrarrazões (parágrafo único <strong>do</strong> art. 963).A apelação deixa de ostentar efeito suspensivo, como regra, caben<strong>do</strong>ao apelante requerer a sua concessão diretamente ao relator, mediantepetição avulsa, consoante vimos de esclarecer.O juízo de admissibilidade da apelação passa a ser exerci<strong>do</strong> apenaspelo tribunal (art. 965, §3º), como forma de se suprimir “um focodesnecessário de recorribilidade”, segun<strong>do</strong> a Comissão, na Exposição deMotivos. Assim sen<strong>do</strong>, extirpa-se o juízo de admissibilidade atualmenteexerci<strong>do</strong> pela instância a quo (art. 518 <strong>do</strong> CPC/1973), apto a ensejar ainterposição de agravo de instrumento (art. 522, CPC/1973).Verifica-se, outrossim, terem si<strong>do</strong> ampliadas as hipóteses da chamada“causa madura”, ou seja, as hipóteses em que é admiti<strong>do</strong> que o tribunal,no julgamento da apelação, prossiga no exame <strong>do</strong> mérito da causa.Segun<strong>do</strong> o Projeto, ao la<strong>do</strong> das hipóteses de sentenças terminativas (art.472 <strong>do</strong> Projeto), também poderá o tribunal prosseguir no julgamento <strong>do</strong>mérito da causa, caso declare a nulidade da sentença apelada por não observância<strong>do</strong>s limites <strong>do</strong> pedi<strong>do</strong> ou por falta de fundamentação e, ainda,caso reforme a sentença que reconhecer a decadência ou a prescrição(art. 965, §3º). Dessa forma, vem o Projeto, mais uma vez, homenagear aeconomia processual e a celeridade, ao evitar que os autos sejam remeti<strong>do</strong>sao juízo a quo para que seja proferi<strong>do</strong> julgamento.20. AGRAVO DE INSTRUMENTOTal qual vislumbramos na atual redação <strong>do</strong> CPC de 1973, o cabimento<strong>do</strong> agravo de instrumento continua a ser excepcional na sistemática<strong>do</strong> Projeto. No entanto, ao contrário da redação atual <strong>do</strong> CPC em vigor,que prevê, como regra, a interposição de agravo reti<strong>do</strong> contra decisõesinterlocutórias e o cabimento, em caráter excepcional, <strong>do</strong> agravo de instrumentoconforme verifique o magistra<strong>do</strong> a ocorrência de lesão grave ede difícil reparação (art. 522 <strong>do</strong> CPC/73), agora, no Projeto, a Comissão206R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 191-214, jul.-set. 2011


optou por estabelecer, como regra, a recorribilidade diferida das decisõesinterlocutórias em preliminar da apelação/contrarrazões, sen<strong>do</strong> que ashipóteses excepcionais de cabimento <strong>do</strong> agravo de instrumento passarama ser expressamente contempladas no Projeto (art. 969) 20 .De fato, muda o referencial para o cabimento <strong>do</strong> agravo de instrumento,passan<strong>do</strong> da avaliação <strong>do</strong> periculum in mora caso a caso pelo relator(ope judicis) para a expressa previsão legal das hipóteses de cabimento (opelegis). O próprio legisla<strong>do</strong>r cui<strong>do</strong>u de elencar as hipóteses consideradasgraves o suficiente para justificar a imediata recorribilidade da decisão interlocutória21 , bem como as hipóteses que, em regra, não comportam a interposiçãode recurso de apelação, como é o caso da liquidação de sentença,<strong>do</strong> cumprimento de sentença, <strong>do</strong> processo de execução e <strong>do</strong> inventário(parágrafo único <strong>do</strong> art. 969), o que tornaria inviável, portanto, a veiculaçãoda matéria como preliminar da apelação ou em suas contrarrazões.Entendemos que a previsão expressa das hipóteses de cabimento<strong>do</strong> recurso de agravo de instrumento torna a questão mais clara, evitan<strong>do</strong>os entendimentos jurisprudenciais díspares que atualmente circundam aavaliação da presença <strong>do</strong>s requisitos legais para o cabimento <strong>do</strong> agravo deinstrumento na sistemática <strong>do</strong> CPC de 1973. Destaque-se que, da<strong>do</strong> o princípioda unicidade recursal ou unirrecorribilidade, a existência de normasclaras quanto ao cabimento <strong>do</strong>s recursos mostra-se extremamente salutare põe-se a serviço, mais uma vez, da tão propalada segurança jurídica.O artigo 971, inciso I, <strong>do</strong> Projeto vem prestigiar menor formalismo,ao admitir a juntada de outro <strong>do</strong>cumento que comprove a tempestividade<strong>do</strong> agravo de instrumento, ainda que não seja a certidão de intimação,sen<strong>do</strong>, desde já, objeto de elogios por parte da <strong>do</strong>utrina 22 .O Projeto passou a prever, ainda, o cabimento de sustentação oral<strong>do</strong>s advoga<strong>do</strong>s na sessão de julgamento de agravo de instrumento que20 A Exposição de Motivos <strong>do</strong> Anteprojeto assim contempla o tema, in verbis: “Desapareceu o agravo reti<strong>do</strong>, ten<strong>do</strong>,correlatamente, altera<strong>do</strong>-se (sic) o regime das preclusões. Todas as decisões anteriores à sentença podem serimpugnadas na apelação. Ressalte-se que, na verdade, o que se modificou, nesse particular, foi exclusivamente omomento da impugnação, pois essas decisões, de que se recorria, no sistema anterior, por meio de agravo reti<strong>do</strong>, sóeram mesmo alteradas ou mantidas quan<strong>do</strong> o agravo era julga<strong>do</strong>, como preliminar de apelação. Com o novo regime,o momento de julgamento será o mesmo; não o da impugnação.”21 São elas as hipóteses de decisão interlocutória que examinar tutela de urgência ou evidência, decidir o méritoda causa, rejeitar alegação de convenção de arbitragem, decidir incidente de desconsideração da personalidadejurídica, gratuidade de justiça, exibição ou posse de <strong>do</strong>cumento ou coisa, exclusão de litisconsorte por ilegitimidade,limitação <strong>do</strong> litisconsórcio, admissão ou não de intervenção de terceiros, dentre outras previsões contidasem leis esparsas.22 Marinoni e Mitidiero elogiam o art. 971, inciso I, <strong>do</strong> Projeto, ao argumento de que evita que se “descambe emformalismo pernicioso”, prestigian<strong>do</strong> a finalidade normativa. Op. cit. P. 183.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 191-214, jul.-set. 2011 207


verse sobre questão de mérito (art. 892), sen<strong>do</strong> esta mais uma providênciabenfazeja <strong>do</strong> Projeto, em prol da garantia <strong>do</strong> contraditório.21. AGRAVO INTERNODe acor<strong>do</strong> com o Projeto, o agravo interno será cabível contra asdecisões monocráticas proferidas pelo relator, a ser julga<strong>do</strong> pelo colegia<strong>do</strong>de que faça parte, salvo nas hipóteses em que a lei reputar irrecorrível adecisão monocrática (como é o caso da decisão monocrática <strong>do</strong> relatorque aprecia a concessão de efeito suspensivo e a antecipação da tutela recursal).O Projeto congregou as hipóteses de cabimento <strong>do</strong> agravo interno,previsto no art. 557 <strong>do</strong> CPC de 1973, e <strong>do</strong> agravo regimental 23 .22. EMBARGOS DE DECLARAÇÃOO Projeto previu expressamente o cabimento <strong>do</strong>s embargos de declaraçãopara o fim de correção de erro material (art. 976). Com isso, o Projetoevita sejam os embargos de declaração, interpostos com tal finalidade,considera<strong>do</strong>s meramente protelatórios ou sejam inadmiti<strong>do</strong>s por ausênciade interesse-necessidade, uma vez que a correção de erro material podeser suscitada pela parte mediante a apresentação de simples petição.De to<strong>do</strong> mo<strong>do</strong>, entendemos que a previsão expressa de seu cabimentonão impede que a parte opte por instar o magistra<strong>do</strong> a corrigir erromaterial mediante petição avulsa, até mesmo porque é da<strong>do</strong> ao julga<strong>do</strong>rcorrigi-lo de ofício (art. 481, inciso I, <strong>do</strong> Projeto).Providência digna de registro contida no Projeto consiste na previsãoexpressa da prévia oitiva <strong>do</strong> embarga<strong>do</strong> sempre que os embargosde declaração possam ter efeito modificativo (art. 976, parágrafo único).Desse mo<strong>do</strong>, o Projeto garante a observância <strong>do</strong> princípio <strong>do</strong> contraditó-23 Mitidiero e Marinoni entendem que o projeto prevê o cabimento <strong>do</strong> agravo interno apenas “para apontar anecessidade de distinção (distinguishing) ou de superação <strong>do</strong> precedente-paradigma (overruling) é que tem cabimentoo agravo interno.” Segun<strong>do</strong> eles: “Pensar diferentemente importa manter a disciplina vigente, que patrocinainútil duplicação recursal quan<strong>do</strong> o relator julga monocraticamente.(...) É por essa razão que sugerimos a inserçãode parágrafo no art. 853 [art. 975 <strong>do</strong> Substitutivo <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong>], para explicitar que a decisão <strong>do</strong> relator tem de serconsiderada, para to<strong>do</strong>s os efeitos constitucionais e legais, como decisão <strong>do</strong> colegia<strong>do</strong>.” Op. cit. P. 184. Sem colchetesno original. Ousamos discordar <strong>do</strong>s autores, por entendermos que o princípio da colegialidade pressupõe,justamente, a possibilidade de referen<strong>do</strong> pelo colegia<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> tal possibilidade intrínseca ao princípio em questão.Cândi<strong>do</strong> Rangel Dinamarco comunga o entendimento por nós esposa<strong>do</strong> no tocante ao princípio da colegialidade.DINAMARCO, Cândi<strong>do</strong> Rangel. A Reforma da Reforma. São Paulo: Malheiros. 2002. P. 192. A respeito <strong>do</strong> princípioda colegialidade, indicamos o artigo. HILL, Flávia Pereira. “O Recurso de Agravo e a Lei No 11.187/05”. In: RevistaEletrônica de Direito Processual- REDP. V. 1. Rio de Janeiro. out/dez. 2007. Disponível no endereço eletrônico: www.redp.com.br.208R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 191-214, jul.-set. 2011


io quan<strong>do</strong> os embargos de declaração possam ter o condão de modificara solução dispensada pela decisão embargada, interferin<strong>do</strong>, assim, na esferajurídica das partes.No art. 978, previu o Projeto que os embargos de declaração interpostoscontra decisão monocrática <strong>do</strong> Relator também deverão ser julga<strong>do</strong>smonocraticamente, não pelo colegia<strong>do</strong>. Com isso, o Projeto se afastada jurisprudência <strong>do</strong>s tribunais superiores 24 , que passaram a converter osembargos de declaração interpostos em face de decisão monocrática <strong>do</strong>relator em agravo regimental, a ser julga<strong>do</strong> diretamente pelo colegia<strong>do</strong>. Oexpediente a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> pelos tribunais superiores suprime a possibilidade dea parte interpor agravo regimental autonomamente, aduzin<strong>do</strong> razões recursaisespecíficas a serem apreciadas pelo colegia<strong>do</strong> no momento oportunoe, por isso, parece-nos de duvi<strong>do</strong>sa constitucionalidade, por vulneraro devi<strong>do</strong> processo legal. Desse mo<strong>do</strong>, reputamos de to<strong>do</strong> conveniente aprevisão contida no Projeto, que vem prestigiar o devi<strong>do</strong> processo legal ea adequada participação das partes no processo.Nos embargos de declaração interpostos para fins de prequestionamento,autoriza o art. 979 <strong>do</strong> Projeto que os tribunais superiores considerema matéria prequestionada ainda que os embargos tenham si<strong>do</strong> inadmiti<strong>do</strong>s,caso o STJ ou o STF entenda que efetivamente havia o vício aponta<strong>do</strong> 25 . Comisso, o Projeto referenda a posição <strong>do</strong> STF sobre o tema, em detrimento daSúmula 211 <strong>do</strong> STJ 26 , prestigian<strong>do</strong> a economia processual, a celeridade e aa<strong>do</strong>ção de menor formalismo no trato <strong>do</strong>s recursos excepcionais.O Projeto prevê que os embargos de declaração intempestivosnão interrompem o prazo para o embargante interpor outros recursos(art. 980, §1º). A partir dessa previsão expressa, o Projeto ressalva, acontrario sensu, a interrupção <strong>do</strong> prazo recursal para o embarga<strong>do</strong> nessahipótese, colocan<strong>do</strong>-o a salvo. Do mesmo mo<strong>do</strong>, o Projeto acaba porassentar que a inadmissão <strong>do</strong>s embargos de declaração em virtude das24 STF. AP 480 ED, Relator(a):Min. CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno, julga<strong>do</strong> em 13/11/2008, DJe-241 DIVULG 18-12-2008 PUBLIC 19-12-2008 EMENT VOL-02346-01 PP-00001. STF. ED no AI 708.869-2. Pleno. Rel. Min. Ellen Gracie.Julga<strong>do</strong> em 14/04/2008. STJ. EDcl no Ag 953.657/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA,julga<strong>do</strong> em 21/02/2008, DJe 10/03/2008.25 Segun<strong>do</strong> Athos Gusmão Carneiro, “Esta norma tornará desnecessário o retorno, previsto na atual e formalistaorientação <strong>do</strong> STJ, <strong>do</strong> processo ao colegia<strong>do</strong> de origem, a fim de que seja ‘completa<strong>do</strong>’ o julgamento <strong>do</strong>s embargosde declaração, abrin<strong>do</strong>-se azo, novamente, ao recurso especial.” Op cit. P. 170.26 Súmula 211 <strong>do</strong> STJ: “Inadmissível recurso especial quanto à questão que, a despeito da oposição de embargosdeclaratórios, não foi apreciada pelo Tribunal a quo.”R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 191-214, jul.-set. 2011 209


demais causas de inadmissibilidade terá sim o condão de interromper oprazo recursal para o embargante, filian<strong>do</strong>-se à jurisprudência <strong>do</strong>minantea respeito <strong>do</strong> tema 27 .23. RECURSOS ESPECIAL E EXTRAORDINÁRIOCumpre, antes de tu<strong>do</strong>, destacar que o Projeto dispensou uma regulamentaçãomais flexível no tocante aos recursos excepcionais, quebran<strong>do</strong>a tendência atual no senti<strong>do</strong> de impor um rigorismo implacávelquanto ao exame de seus requisitos formais. Trata-se, pois, de uma verdadeiramudança de rota que o Projeto visa a empreender nesse particular,prestigian<strong>do</strong>, de forma clara, o julgamento <strong>do</strong> mérito recursal que, nestecaso, consiste em, nada mais, nada menos, o exame da questão federal ouconstitucional ventilada pelo recorrente.Em primeiro lugar, vem o Projeto admitir que, sen<strong>do</strong> tempestivo orecurso excepcional, o tribunal possa relevar um defeito formal que nãoseja grave ou venha a fixar prazo para que o vício seja sana<strong>do</strong> pelo recorrente(art. 983, §2º). Identificamos, pois, nesse dispositivo legal, níti<strong>do</strong>prestígio ao menor formalismo e à economia processual, buscan<strong>do</strong> privilegiara análise da questão federal ou constitucional ventilada no recurso(mérito recursal).Em segun<strong>do</strong> lugar, o Projeto admite que, verifican<strong>do</strong> o SuperiorTribunal de Justiça que o Recurso Especial versa sobre questão constitucional,seja aberto prazo para que o recorrente demonstre a repercussãogeral — requisito específico de admissibilidade <strong>do</strong> recurso extraordinário— e, com isso, o Recurso Especial possa ser julga<strong>do</strong> pelo Supremo TribunalFederal como se Recurso Extraordinário fosse. Poderíamos afirmar tratarse,em última análise, da aplicação <strong>do</strong> princípio da fungibilidade recursal,especificamente no tocante aos recursos excepcionais.O mesmo se aplica ao Recurso Extraordinário, admitin<strong>do</strong> o Projetoque o Supremo Tribunal Federal, ao verificar que o recurso trata, em verdade,de questão infraconstitucional, possa remetê-lo ao Superior Tribunalde Justiça para julgamento como se Recurso Especial fosse. Permite,assim, o aproveitamento <strong>do</strong>s recursos excepcionais. Do contrário, o prazopara a interposição <strong>do</strong> recurso excepcional adequa<strong>do</strong>, no mais das vezes,27 O Projeto a<strong>do</strong>ta posição intermediária, deixan<strong>do</strong> de se filiar ao posicionamento mais rigoroso a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>, dentre outrosjuristas, pelo eminente processualista José Carlos Barbosa Moreira, segun<strong>do</strong> o qual a inadmissão <strong>do</strong>s embargos dedeclaração por qualquer motivo não interrompe o prazo para a interposição <strong>do</strong>s demais recursos. BARBOSA MOREIRA,José Carlos. Comentários <strong>do</strong> Código de Processo <strong>Civil</strong>. V. V, 10. Ed. Rio de Janeiro: Forense. 2002. P. 558.210R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 191-214, jul.-set. 2011


já teria expira<strong>do</strong> e a questão não mais seria apreciada pelo tribunal superiorcompetente 28 .O Projeto promove a ampliação das hipóteses de ocorrência de repercussãogeral (art. 989, §3º), passan<strong>do</strong> a admitir, ainda, a hipótese deo recurso contrariar tese fixada em julgamento de casos repetitivos ouquestionar decisão que tenha declara<strong>do</strong> a inconstitucionalidade de trata<strong>do</strong>ou lei federal.Questão interessante é a tratada no parágrafo único <strong>do</strong> artigo 952.Dispõe o Projeto que, no caso de ter si<strong>do</strong> reconhecida a repercussão gerale a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> o recurso como paradigma ou, ainda, no caso de recursos repetitivos,eventual desistência apresentada pelo recorrente será ineficazpara o fim aponta<strong>do</strong>, não impedin<strong>do</strong> o prosseguimento <strong>do</strong> julgamento,visto que, neste caso, o interesse envolvi<strong>do</strong> transcenderá o da parte recorrente,passan<strong>do</strong> a envolver o interesse geral de unidade <strong>do</strong> direito e daotimização da função jurisdicional. Em outras palavras, a desistência teráo condão de excluir o recorrente da decisão daquele recurso, ten<strong>do</strong> emvista o princípio da demanda. No entanto, as razões recursais serão examinadaspelo tribunal superior, sen<strong>do</strong> certo que o entendimento firma<strong>do</strong>será aplica<strong>do</strong> aos demais recursos que versem sobre a questão jurídicaanalisada 29 .24. RECURSOS REPETITIVOSO projeto estende a aplicação <strong>do</strong> rito <strong>do</strong>s recursos repetitivos aoRecurso Extraordinário, além <strong>do</strong> Recurso Especial (art. 990), referendan<strong>do</strong>o propósito <strong>do</strong> Projeto de valorizar a uniformização e a estabilidade dajurisprudência, assim como a celeridade processual.25. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA:Além <strong>do</strong> cabimento em sede de recurso especial, já contempladano CPC/73, o Projeto também admitiu o cabimento <strong>do</strong>s embargos de di-28 Marinoni e Mitidiero elogiam a previsão <strong>do</strong> Projeto: “Em terceiro lugar, o Projeto propõe interessante ponte entreo Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça para viabilizar o conhecimento de recurso extraordinárioe de recurso especial interpostos equivocadamente. Também aqui o que está por debaixo das regras propostas é anecessidade de reconhecer na atuação das cortes superiores um trabalho que visa a objetivos liga<strong>do</strong>s precipuamenteà unidade <strong>do</strong> Direito, e não apenas ao interesse <strong>do</strong> recorrente.” Op. cit. P. 188. Itálico <strong>do</strong> original.29 Referendamos o entendimento preconiza<strong>do</strong> por Marinoni e Mitidiero a esse respeito. Op. cit. P. 180. Discordamos,assim, de Athos Gusmão Carneiro, para quem seria inútil admitir-se a desistência pelo recorrente nessa hipótese,pois o entendimento firma<strong>do</strong> deveria ser aplica<strong>do</strong> inclusive ao recurso em relação ao qual o recorrente haviamanifesta<strong>do</strong> a desistência. Para o jurista, melhor seria, então, que o Projeto vedasse a desistência pelo recorrentenestes casos, pois redundaria, a seu ver, na mesma consequência. Op. cit. p. 168.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 191-214, jul.-set. 2011 211


vergência para causas de competência originária <strong>do</strong> STJ, ten<strong>do</strong>, por outrola<strong>do</strong>, excluí<strong>do</strong> o seu cabimento em sede de Recurso Extraordinário.26. CONCLUSÃOAinda que se possa questionar, como já fazem alguns juristas — enós mesmos por vezes nos pegamos a meditar —, se as inovações propostaspelo Projeto <strong>do</strong> novo CPC justificam efetivamente a elaboração deuma nova codificação, ten<strong>do</strong> em vista não haver, de fato, uma rupturacom os fundamentos <strong>do</strong> Código de Processo <strong>Civil</strong> de 1973, ou, em outraspalavras, não haver uma genuína mudança de rota nos rumos <strong>do</strong> sistemaprocessual pátrio, conforme reconheci<strong>do</strong>, inclusive, de certa forma, pelaComissão na Exposição de Motivos 30 , forçoso convir que, particularmenteno tocante ao Livro IV, que ora nos propusemos a analisar, o Projeto valorizaalguns novos parâmetros para a sistematização <strong>do</strong> processo peranteos tribunais.Isso resta claro, primeiramente, a partir da inova<strong>do</strong>ra tentativa deaproveitamento <strong>do</strong>s recursos, promoven<strong>do</strong> a sua deformalização ao deixarem segun<strong>do</strong> plano, tanto quanto possível, eventuais vícios formais, a fimde que seja prestigia<strong>do</strong> o julgamento <strong>do</strong> mérito recusal. Tal perspectivamostra–se ainda mais evidente na regulação <strong>do</strong>s recursos excepcionais,revelan<strong>do</strong> uma verdadeira alteração em seu tratamento, ultrapassan<strong>do</strong> apostura marcadamente formalista com que tais recursos vêm sen<strong>do</strong> examina<strong>do</strong>s.A uniformização e a estabilidade da jurisprudência, valorizadas noProjeto, marcam também uma tomada de posição clara e inova<strong>do</strong>ra pelaComissão, na medida em que propõe, por assim dizer, uma reestruturação<strong>do</strong>s parâmetros de julgamento, evocan<strong>do</strong> a a<strong>do</strong>ção da jurisprudência<strong>do</strong>minante como um fator central para a nova sistemática processual. Emborahouvesse sinais de aproximação de nosso sistema processual ao sistemade precedentes, podemos afirmar que o Projeto eleva tal princípioa patamares ainda não alcança<strong>do</strong>s e, acrescente-se, com uma amplitudedeveras abrangente, a ponto de envolver to<strong>do</strong>s os magistra<strong>do</strong>s brasileirosa julgarem em observância ao sistema de precedentes. Diversas inovações30 Assim dispõe a Comissão na Exposição de Motivos <strong>do</strong> Anteprojeto de novo CPC, in verbis: “Sem prejuízo da manutençãoe <strong>do</strong> aperfeiçoamento <strong>do</strong>s institutos introduzi<strong>do</strong>s no sistema pelas reformas ocorridas nos anos de 1992até hoje, criou-se um Código novo, que não significa, todavia, uma ruptura com o passa<strong>do</strong>, mas um passo à frente.Assim, além de conserva<strong>do</strong>s os institutos cujos resulta<strong>do</strong>s foram positivos, incluíram-se no sistema outros tantosque visam a atribuir-lhe alto grau de eficiência.”212R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 191-214, jul.-set. 2011


a<strong>do</strong>tadas no Projeto vêm ratificar esse firme propósito, conforme vimos,como a criação <strong>do</strong> incidente de resolução de demandas repetititvas, aineficácia da desistência formulada pelo recorrente quanto a recursos excepcionaisafeta<strong>do</strong>s, a extensão <strong>do</strong> expediente de demandas repetitivaspara o recurso extraordinário, a extensão <strong>do</strong> cabimento <strong>do</strong>s embargos dedivergência para processos de competência originária <strong>do</strong> Superior Tribunalde Justiça, dentre outras.A Comissão propôs-se, ainda, a simplificar a sistemática recursal e,reconheçamos, manteve-se fiel a esse propósito. Em cumprimento a esseobjetivo traça<strong>do</strong>, o Projeto extingue o recurso de embargos infringentes,uniformiza os prazos recursais em quinze dias, concentra o exercício <strong>do</strong>juízo de admissibilidade da apelação diretamente perante o relator, prevêexpressamente as hipóteses de cabimento <strong>do</strong> recurso de agravo de instrumento,dispõe sobre a recorribilidade diferida das decisões interlocutóriasdiretamente em sede de apelação, dentre outras inovações.No intuito de imprimir maior celeridade 31 ao processo judicial, cujomaior vilão vem sen<strong>do</strong> identifica<strong>do</strong> precisamente como o regime recursal,a Comissão prevê a exclusão <strong>do</strong> efeito suspensivo <strong>do</strong>s recursos comoregra, inclusive para a apelação, a valorização <strong>do</strong> julgamento monocráticopelo relator, dentre outras medidas.Merecem registro, outrossim, previsões inseridas pela Comissão nointuito de pacificar divergências <strong>do</strong>utrinárias e jurisprudenciais ou explicitar,na codificação, entendimentos que vêm sen<strong>do</strong> aplica<strong>do</strong>s, trazen<strong>do</strong>,assim, maior segurança para o jurisdiciona<strong>do</strong>, como ao explicitar o cabimento<strong>do</strong>s embargos de declaração para a correção de erros materiais,deteminar o julgamento monocrático <strong>do</strong>s embargos de declaração interpostoscontra decisão monocrática <strong>do</strong> relator, prever o prévio contraditórioem favor <strong>do</strong> embarga<strong>do</strong> caso os embargos de declaração possam terefeitos modificativos, prever (e assim limitar) a ausência de efeito interruptivopara o embargante quanto aos embargos de declaração ti<strong>do</strong>s porintempestivos, apenas para citar alguns.Outro mérito a ser credita<strong>do</strong> ao Projeto consiste na regulação maisdetalhada <strong>do</strong> processo de homologação de sentença estrangeira, abar-31 Interessantes e pertinentes ponderações vêm sen<strong>do</strong> tecidas por juristas a respeito da (super)valorização da celeridadepela sociedade contemporânea, especialmente se tomarmos em consideração a salutar segurança jurídica, acujo serviço também se coloca o Direito Processual. A nosso sentir, a Comissão posicionou-se claramente a respeitodesse delica<strong>do</strong> embate, penden<strong>do</strong> para a valorização da celeridade processual, em resposta aos reclamos <strong>do</strong>sjurisdiciona<strong>do</strong>s.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 191-214, jul.-set. 2011 213


can<strong>do</strong> as principais inovações trazidas pela Resolução nº 09 <strong>do</strong> SuperiorTribunal de Justiça, a demonstrar a sensibilidade da Comissão quanto àpremência de um tema outrora esqueci<strong>do</strong> no Brasil e que se apresenta naordem <strong>do</strong> dia em diferentes países.Enfim, podemos asseverar que a Comissão estabeleceu os princípiosnortea<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Projeto e procurou estruturá-lo em consonânciacom tais valores. Pode-se até questioná-las, mas cremos que a Comissãomanteve-se fiel às suas premissas e mostrou-se coerente e comprometidacom os valores por ela considera<strong>do</strong>s como prioritários.Particularmente quanto à sistemática recursal, embora haja pontosa merecer maior reflexão, conforme destacamos ao longo <strong>do</strong> presentetrabalho, entendemos que o Projeto se mostra afina<strong>do</strong> com as principaisreivindicações que vêm sen<strong>do</strong> feitas por juristas e, especialmente, por cidadãosleigos, procuran<strong>do</strong> deformalizar, simplificar e acelerar um sistemarecursal considera<strong>do</strong> vagaroso e complexo. Por óbvio, qualquer consideraçãoa respeito da efetividade das normas e de sua aptidão para aplacaros problemas aponta<strong>do</strong>s depende igualmente da sua aplicação diuturnapor parte <strong>do</strong>s profissionais <strong>do</strong> direito, recain<strong>do</strong> em seu colo a responsabilidadepor imprimir contornos concretos à nova codificação, por ora emtramitação.Para nós, opera<strong>do</strong>res <strong>do</strong> direito, receber um novo Código de Processo<strong>Civil</strong> com os olhos volta<strong>do</strong>s para a vetusta codificação não pode serconsiderada a postura mais recomendável ou construtiva. Ainda que tenhamosressalvas ou críticas — que são salutares, por fomentarem o debatee o aperfeiçoamento —, ou mesmo questionemos a necessidade deum novo Código, oxalá consigamos nos unir em torno <strong>do</strong> maior aproveitamento<strong>do</strong>s aprimoramentos e inovações salutares que, inegavelmente, anova codificação, uma vez em vigor, poderá nos trazer. Uma vez em vigoro novo Código, pensemos em seus avanços e extraiamos deles to<strong>do</strong> o seupotencial para melhorar o sistema processual brasileiro. Assim, to<strong>do</strong>s osesforços envida<strong>do</strong>s com a elaboração de um novo CPC, que tem envolvi<strong>do</strong>a to<strong>do</strong>s nós, terão si<strong>do</strong> verdadeiramente proveitosos e nos permitirão,verdadeiramente, dar um passo à frente.214R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 191-214, jul.-set. 2011


Contrato de Leasing deVeículos: Verdades eMentiras sobre o ValorResidual Garanti<strong>do</strong> (VRG)Paulo Gustavo Rebello HortaDesembarga<strong>do</strong>r (aposenta<strong>do</strong>) <strong>do</strong> TJRJ. Consultor de Chalfin,Goldberg e Vainboim Advoga<strong>do</strong>s Associa<strong>do</strong>s.Paulo MaximilianMestre em Direito. Professor da EMERJ. Sócio de Chalfin,Goldberg e Vainboim Advoga<strong>do</strong>s Associa<strong>do</strong>s.INTRODUÇÃOO leasing 1 , como se perceberá <strong>do</strong>ravante, aperfeiçoa-se através deum mix de contratos 2 , motivo pelo qual suscita enormes controvérsias tantono campo prático, quanto no teórico. Passan<strong>do</strong> de forma rápida por questõeshistóricas e conceituais, o presente artigo tem como foco analisar as polêmicasquestões referentes ao Valor Residual Garanti<strong>do</strong>, apresentan<strong>do</strong> odebate e as posições <strong>do</strong>utrinárias e jurisprudenciais sobre cada assunto.1. HISTÓRICOEmbora haja divergências <strong>do</strong>utrinárias sobre a criação <strong>do</strong> contratode leasing 3 , fato é que o mesmo se proliferou a partir <strong>do</strong> famoso Lend1 “Leasing, <strong>do</strong> inglês norte-americano, é composto <strong>do</strong> sufixo ing, que exprime ação verbal, e <strong>do</strong> verbo to lease,traduzi<strong>do</strong> como ato de alugar ou arrendar. O loca<strong>do</strong>r é o lessor, e o locatário o lessee. No Brasil, chama<strong>do</strong> de arrendamentomercantil, as partes são o arrendante, ou arrenda<strong>do</strong>r, e o arrendatário. Numa tentativa de aportuguesar,Bulgarelli sugere lísingue. Em termos de tradução, sugiro lísin, com to<strong>do</strong> o respeito ao mestre. Mas parece quedevemos ficar mesmo é com o original leasing ‐, inclusive em termos de marketing. (MARIANI, Irineu. "Leasingem Tópicos", Revista da AJURIS, v. 26, n. 79, p. 125-147, set. 2000). No presente texto, a denominação leasing foia<strong>do</strong>tada como correta.2 FÁBIO KONDER COMPARATO. "Contrato de Leasing", RT, n. 389, p. 10, 1968.3 ARNOLDO WALD, em interessantíssimo artigo denomina<strong>do</strong> “Histórico e desenvolvimento <strong>do</strong> leasing” (Revista Forense,v. 250, ano 71, 1975, p. 14-26) aponta que, para os autores que consideram o referi<strong>do</strong> contrato como formapeculiar de locação, a origem <strong>do</strong> instituto remonta à antiguidade. Outros, como por exemplo IVO TEIXEIRA GICOJÚNIOR ("Elementos <strong>do</strong> Contrato de Arrendamento Mercantil e a Propriedade <strong>do</strong> Arrendatário", texto colhi<strong>do</strong> da internet<strong>do</strong> site Jus Navigandi (www1.jus.com.br/<strong>do</strong>utrina/texto.aspid=627)), afirmam que tais posições estão equivocadas,pois o leasing teria surgi<strong>do</strong> recentemente como forma de equacionar o problema de algumas empresas queR. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 215-239, jul.-set. 2011 215


and Lease Act (aprova<strong>do</strong> pelo Congresso norte-americano em 11.03.1941e publica<strong>do</strong> durante a 2 a Guerra Mundial), através <strong>do</strong> qual o presidenteFRANKLIN DELANO ROOSEVELT determinou um empréstimo de armamentose outros materiais bélicos para os países alia<strong>do</strong>s, com a (até entãoinédita) condição de que, terminada a guerra, os mesmos deveriam devolverou adquirir o material empresta<strong>do</strong>.No gancho da prática utilizada pelo governo durante a guerra, o californianoD. P. BOOTHE JUNIOR, comerciante <strong>do</strong> ramo de condicionamentode alimentos, que tinha com o governo um contrato com volumosa encomenda,viu-se impossibilita<strong>do</strong> de cumprir com sua obrigação por falta demaquinário e, não possuin<strong>do</strong> o capital necessário para adquirir tais equipamentos,optou pelo aluguel. Percebeu, então, que havia uma perspectivamaior para os financia<strong>do</strong>res, fazen<strong>do</strong> surgir um novo “nicho” comerciala ser explora<strong>do</strong> se os mesmos passassem a comprar equipamentos e, comisso, alugassem os mesmos aos clientes. Assim, como se verifica no cita<strong>do</strong>artigo de ARNOLDO WALD 4 , colhen<strong>do</strong> informações da Revista Fortune,em 1952, D. P. BOOTHE JUNIOR e alguns de seus amigos criaram a UnitedStates Leasing, que com um capital inicial de US$ 20.000,00, passou, jáno ano de 1954, a realizar operações no valor de US$ 3.000.000,00. Em1961, a outra empresa criada pelo pioneiro, a Boothe Leasing Corporation,que partira de um capital inicial de US$ 400.000,00, alcança a marcade impressionantes 2.700 clientes, movimentan<strong>do</strong> US$ 66.000.000,00 eaumentan<strong>do</strong> o seu capital para US$ 8.000.000,00, ou seja, vinte vezes ovalor inicialmente aplica<strong>do</strong>.Posteriormente, as empresas de leasing foram se multiplican<strong>do</strong> e,assim como ocorrera com as empresas de cartões de crédito, a atividadefoi “encampada”, direta ou indiretamente, pelas instituições financeiras.CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, de forma apertada, expõe a evoluçãoe a a<strong>do</strong>ção da matéria no Brasil. Ensina ter a prática si<strong>do</strong> a<strong>do</strong>tadapela primeira vez no ano de 1967, com a empresa Rent-a-Maq, ten<strong>do</strong>permaneci<strong>do</strong> em caráter experimental até mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s anos 70 5 . Todavia,necessitavam de financiamento sem, no entanto, desmobilizar seu capital. Para IRINEU MARIANI (op. cit., p. 125):“No Direito contemporâneo, surgiu na década de 1890, na Inglaterra, a hire-purchase (locação-compra), contratopratica<strong>do</strong> com máquinas de costura pela Singer, e também pelas fábricas de vagões de locomotivas. Merece<strong>do</strong>rade maior crédito é a corrente que aponta o renting, surgi<strong>do</strong> no Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s na década de 20 como verdadeiroantecessor <strong>do</strong> leasing. No renting os deveres <strong>do</strong> loca<strong>do</strong>r haviam si<strong>do</strong> amplia<strong>do</strong>s, uma vez que neste também haviaa garantia de assistência técnica, revisões, consertos etc..4 WALD, Arnol<strong>do</strong>. Op. cit., p. 155 Em 25 de setembro de 1970 foi fundada a ABEL - Associação Brasileira das Empresas de Leasing que tinha (comocontinua ten<strong>do</strong>), entre seus objetivos, justamente explicar, difundir a prática e estabelecer o aperfeiçoamento dalegislação sobre a matéria.216R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 215-239, jul.-set. 2011


mesmo ten<strong>do</strong> alcança<strong>do</strong> uma enorme evolução 6 , a prática <strong>do</strong> leasing seguiaao desamparo de qualquer legislação, ao passo que, em 1974, buscan<strong>do</strong>estabelecer obrigações tributárias para o contrato em questão, foieditada a Lei 6.099, de 12 de setembro de 1974, que definia o leasing 7 ,renomean<strong>do</strong>-o como Arrendamento Mercantil.Com a edição da mencionada legislação 8 , o leasing ganhou o merca<strong>do</strong>e passou a ser ofereci<strong>do</strong> à sociedade, tornan<strong>do</strong>-se excelente opçãopara os que buscavam iniciar ou expandir seus negócios, sem, no entanto,comprometer o capital a ser investi<strong>do</strong>.2. CONCEITO 9 e natureza jurídicaEm que pese certa inconformação por parte da <strong>do</strong>utrina com a denominaçãoa<strong>do</strong>tada no direito positivo (arrendamento) 10 , no que tange àconceituação, não há grande dissonância. De forma completa, ROBERTORUOZI 11 , cita<strong>do</strong> por ÁLVARO ANTÔNIO S. B. DE AQUINO 12 , ensina que6 Segun<strong>do</strong> noticia Caio Mário da Silva Pereira (op. cit., p. 384): “Para se ter a idéia <strong>do</strong> desenvolvimento desta atividade,basta lembrar que, em 1973, tínhamos 620 milhões em leasing; em 1974, passamos à casa de um bilhão; e já em1975, marchávamos para três bilhões; em 1978, vencíamos a barreira de onze bilhões. Já ten<strong>do</strong> da<strong>do</strong>s à mão, possodizer a quanto orça o movimento atual, ,um bilhão e quinhentos milhões de dólares.”7 LEI 6.099/74: ART. 1º: “O tratamento tributário das operações de arrendamento mercantil reger-se-á pelas disposiçõesdesta Lei. Parágrafo único. Considera-se arrendamento mercantil a operação realizada entre pessoas jurídicas,que tenha por objeto o arrendamento de bens adquiri<strong>do</strong>s a terceiros pela arrenda<strong>do</strong>ra, para fins de uso próprio daarrendatária e que atendam às especificações desta.”8 Ressalte-se a importância da LEI n.º 7.132, de 26 de outubro de 1983, que alterou o conceito da legislação anterior,vin<strong>do</strong> a permitir a celebração <strong>do</strong> contrato de arrendamento entre uma instituição financeira e uma pessoa física, oque antes era impossível. Dispõe o artigo da Lei nova: “Considera-se arrendamento mercantil, para os efeitos destaLei, o negócio jurídico realiza<strong>do</strong> entre pessoa jurídica, na qualidade de arrendatária, e que tenha por objeto o arrendamentode bens adquiri<strong>do</strong>s pela arrenda<strong>do</strong>ra, segun<strong>do</strong> especificações da arrendatária, e para uso próprio desta”.9 Colhe-se <strong>do</strong> site <strong>do</strong> Banco Central – BACEN (www.bcb.gov.br/htms/bc_atende/leasing.shtm) a seguinte explicação:“As empresas vende<strong>do</strong>ras de bens costumam apresentar o leasing como mais uma forma de financiamento, mas ocontrato deve ser li<strong>do</strong> com atenção, pois trata-se de operação com características próprias. O leasing, também denomina<strong>do</strong>arrendamento mercantil, é uma operação em que o proprietário (arrenda<strong>do</strong>r, empresa de arrendamentomercantil) de um bem móvel ou imóvel cede a terceiro (arrendatário, cliente, “compra<strong>do</strong>r”) o uso desse bem por prazodetermina<strong>do</strong>, receben<strong>do</strong> em troca uma contraprestação. Esta operação se assemelha, no senti<strong>do</strong> financeiro, a umfinanciamento que utilize o bem como garantia e que pode ser amortiza<strong>do</strong> num determina<strong>do</strong> número de “aluguéis”(prestações) periódicos, acresci<strong>do</strong>s <strong>do</strong> valor residual garanti<strong>do</strong> e <strong>do</strong> valor devi<strong>do</strong> pela opção de compra. Ao final <strong>do</strong>contrato de arrendamento, o arrendatário tem as seguintes opções: - comprar o bem por valor previamente contrata<strong>do</strong>;- renovar o contrato por um novo prazo, ten<strong>do</strong> como principal o valor residual; - devolver o bem ao arrenda<strong>do</strong>r.”10 “Envolven<strong>do</strong> uma operação financeira, forçoso é ressaltar que o nomen iuris – arrendamento mercantil – não éadequa<strong>do</strong>. Melhor seria designá-lo de arrendamento financeiro” (Álvaro Antônio Sagulo Borges de Aquino, Leasing– <strong>Responsabilidade</strong> <strong>Civil</strong>, Revista Forense, v. 324, p. 5); “No seminário realiza<strong>do</strong> pelo IDORT em São Paulo, Ary Oswal<strong>do</strong>Mattos Filho exclamava: ‘de maneira arbitrária o leasing para mim é arrendamento. Aqueles que encontrarem umapalavra melhor para batizar esse cristão não batiza<strong>do</strong> ainda, estejam à vontade” (Waldírio Bulgarelli, ContratosMercantis, 4ª ed., São Paulo: Atlas, 1986).11 RUOZI, Roberto, Il leasing, p. 23.12 Álvaro Antônio Sagulo Borges de Aquino, op. cit., p. 6.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 215-239, jul.-set. 2011 217


“O leasing é uma operação de financiamento a médio ou a longo prazo,calçada em um contrato de locação de bens móveis ou imóveis. Integraessa operação um intermediário financeiro que intervém entre o produtor<strong>do</strong> bem objeto <strong>do</strong> contrato e a empresa que dele necessita, adquirin<strong>do</strong><strong>do</strong> primeiro o referi<strong>do</strong> bem e ceden<strong>do</strong>-o em locação à segunda, o qual seobriga, irretratavelmente, a pagar ao intermediário financeiro um determina<strong>do</strong>número de prestações periódicas, por conta de uma importânciaglobal superior ao custo <strong>do</strong>s bens, cuja propriedade, ao término <strong>do</strong> contrato,pode ser transferida a título oneroso, <strong>do</strong> intermediário financeiro àempresa locatária, por iniciativa desta última.”Já no que concerne à natureza jurídica <strong>do</strong> contrato 13 , sem prejuízodas respeitadas opiniões transcritas no rodapé, esclarece-se que o contratonão é de locação, pois neste, ao contrário <strong>do</strong> que ocorre no leasing,o risco de perecimento corre por conta <strong>do</strong> proprietário (loca<strong>do</strong>r). Não éde reserva de <strong>do</strong>mínio, pois existe a tríplice opção (renovar, devolver ouadquirir). E tampouco é de mútuo, já que não ocorre a transferência depropriedade. Conclui-se, então, tratar-se de contrato mercantil típico 14 ,13 IVO TEIXEIRA GICO JUNIOR sintetiza brilhantemente várias outras posições: “J. A. Penalva Santos (RevistaForense, v. 250, Ano 71. Abr/Jun. 1975, p. 47.) seguin<strong>do</strong> transição civilista, caracterizou-o como sen<strong>do</strong> complexo,sinalagmático, composto de um financiamento e arrendamento de bens, com cláusula de opção tríplice; WaldírioBulgarelli (Contratos Mercantis. 9ª ed., Atlas, 1997, p. 375) entende que é “um contrato consensual, bilateral, oneroso,e de execução sucessiva, e firma<strong>do</strong> intuitu personae”; Arnal<strong>do</strong> Rizzar<strong>do</strong> (Leasing –Arrendamento Mercantil noDireito Brasileiro. 3ª ed., RT, 1997, p. 147) o vê como “um contrato de natureza econômica e financeira, pelo qual aempresa cede em locação a outrem um bem móvel ou imóvel, mediante o pagamento de determina<strong>do</strong> preço”; para,Caio Mário (Instituições de Direito <strong>Civil</strong>, 10ª ed., v. 3, Forense, p. 147), é “uma espécie de ‘locação-venda’(locatiomixta cum vendiotione)”; P. R. Tavares Paes (Leasing. 2ª ed., RT, 1993., p. 21) admite a natureza “complexa, abrangen<strong>do</strong>uma locação, uma compra e venda (que não é essencial <strong>do</strong> leasing, pois existe sem essa opção, eventualmenteum mandato; Arnold Wald (A Introdução <strong>do</strong> Leasing no Brasil. RT, v. 415, a. 59, p. 10.) diz que “Trata-se, na realidade,de uma fórmula intermediária entre a compra e venda e a locação, exercen<strong>do</strong> função parecida com a vendacom reserva de <strong>do</strong>mínio e com a alienação fiduciária, embora oferecen<strong>do</strong> ao utiliza<strong>do</strong>r <strong>do</strong> bem, maior leque dealternativas no caso de não querer ficar com a propriedade <strong>do</strong> equipamento após um primeiro prazo de utilização.Em caminho um pouco diverso, Orlan<strong>do</strong> Gomes (Contratos. 7ª ed., Forense, 1979, p. 569-570), apesar de reconhecertratar-se de “uma operação financeira destinada a proporcionar aos empresários o acesso aos bens de produção,o caracteriza como uma contrato “mais próximo da locação, cujas regras se lhe aplicam se não há próprias, sen<strong>do</strong>a distinção entre ambos fundamentalmente causal, mas sen<strong>do</strong> ambos de conteú<strong>do</strong> semelhante. Outra posição interessanteé a <strong>do</strong>s que defendem ser um contrato complexo por conter elementos de outros contratos típicos comolocação, a promessa de compra e venda, a compra e venda a prestação e o financiamento, to<strong>do</strong>s coliga<strong>do</strong>s (CarlosAntônio Farias de Souza. "Contratos de Leasing". Revista Informatizada Data Venia: www.datavenia.com.br. inf.br.nº21. Ano IV . jan., 1999, p. 2.). Há posições ainda mais curiosas e isoladas, mas não menos importantes, como a deWashington Luiz da Trindade (Leasing: Negócio Jurídico Fiduciário. Salva<strong>do</strong>r Ltda., 1974., p. 67), que exalta exageradamentea garantia real que representa o contrato de mo<strong>do</strong> a resumi-lo em um dito aspecto fiduciário, para ele oleasing, pela sua visível base fiduciária, distingue-se de outros negócios complexos, não precisamente pela locação,mas pela administração e utilidade produtiva de coisa alheia, em proveito <strong>do</strong> institui<strong>do</strong>r ou de uma entidade financia<strong>do</strong>ra,e de cuja administração o contrato retira o seu benefício ou vantagem, inclusive pela cláusula de opção devenda, fazen<strong>do</strong>-a e movimentan<strong>do</strong>-a juridicamente, para ter a livre disposição da coisa inicialmente locada.”14 Embora não conte com disciplina específica no regramento civil, possui norma que trata de seu enquadramentotributário (Lei nº 6.099/74 com a redação alterada pela Lei nº 7.132/83), além de diversas Resoluções <strong>do</strong> ConselhoMonetário Nacional (Resoluções <strong>do</strong> Conselho Monetário Nacional nº s 2.309, de 1996, 2.465, de 1998, 2.595, de218R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 215-239, jul.-set. 2011


ilateral, oneroso, sinalagmático (obrigações recíprocas), comutativo(obrigações equilibradas), em princípio intuitu personae (transferênciasó com o consentimento da outra parte) e misto ou híbri<strong>do</strong>.3. Forma de CONTRATAÇÃO, fases e requisitos necessáriosAtualmente, a operação encontra-se bastante facilitada uma vezque, na busca de novos merca<strong>do</strong>s, as instituições financeiras passaram anão mais aguardar de forma passiva o comparecimento <strong>do</strong>s consumi<strong>do</strong>rescom solicitações de financiamento mas, ao revés, começaram a se fazerpresentes (através de prepostos ou convênios operacionais) em todas asgrandes revende<strong>do</strong>ras e agências de automóveis, firmas de informática emobiliário nas quais o cliente já preenche o contrato de leasing, apresentan<strong>do</strong><strong>do</strong>cumentação e fican<strong>do</strong>, apenas, no aguar<strong>do</strong> da confirmação deliberação de seu crédito com a instituição.Entenden<strong>do</strong> des<strong>do</strong>brar-se a operação em cinco fases, assim explicaWALDÍRIO BULGARELLI:“1. A preparatória, ou seja, a proposta <strong>do</strong> arrendatário à empresade leasing ou vice versa; 2. Essencial, constituída pelo acor<strong>do</strong> de vontadesentre ambas; 3. Complementar, em que a empresa de leasing comprao bem ou equipamento ajusta<strong>do</strong> com o arrendatário; 4. Também essencial,que é o arrendamento propriamente dito, entregan<strong>do</strong> a empresa deleasing ao arrendatário o bem ou equipamento; 5. A tríplice opção <strong>do</strong>usuário, ou seja, ao termo <strong>do</strong> contrato de arrendamento, continuar o arrendamento,dá-lo por termina<strong>do</strong>, ou adquirir o objeto <strong>do</strong> arrendamento,compensan<strong>do</strong> as parcelas pagas a título de arrendamento e feita adepreciação.” 15Como bem expõe CAIO MÁRIO 16 , a Lei n.º 6.099/74 fixou os seguintesrequisitos para o contrato de leasing: a) prazo; b) valor de cada contraprestaçãopor perío<strong>do</strong>s determina<strong>do</strong>s, não superiores a um semestre; c)opção de compra ou faculdade de renovação reconhecida ao arrendatário;d) preço para opção de compra ou critério para sua fixação.1999, 2.659, de 1999, e 3.175, de 2004) e Portarias <strong>do</strong> Ministério da Fazenda (Portarias <strong>do</strong> Ministério da Fazendanº s 564, de 1978 e 140, de 1984).15 BULGARELLI, Waldírio. Op. cit., p. 353.16 PEREIRA, Caio Mário da Silva Pereira."Leasing (arrendamento mercantil)", Revista Forense, v. 287. P. 09R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 215-239, jul.-set. 2011 219


4. TRÍPLICE OPÇÃO AO TÉRMINO DO CONTRATOA grande característica distintiva <strong>do</strong> leasing se dá ao término <strong>do</strong>prazo fixa<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> diferentemente <strong>do</strong>s demais contratos (financiamento,alienação fiduciária etc.), o arrendatário terá uma tríplice opção: renovar,devolver ou adquirir. Como menciona MARCO ANTÔNIO IBRAHIM:“...a cláusula potestativa que confere tríplice opção ao arrendatário é averdadeira essentialia negotii, por isso que fundamental para a higidezjurídica <strong>do</strong> contrato de Leasing, dada sua tipicidade legal 17 ”.5. ESTRUTURA DO PREÇO PAGO (CONTRAPRESTAÇÃO, VRG E VR)Ensina JOSÉ F. L. MIRANDA LEÃO 18 , cita<strong>do</strong> por ARNOLD WALD:“...o preço <strong>do</strong> arrendamento mercantil não se sujeita ao valor <strong>do</strong> bemarrenda<strong>do</strong>, mas decorre de uma equação financeira em que são considera<strong>do</strong>so valor de aquisição <strong>do</strong> bem, o custo <strong>do</strong> capital investi<strong>do</strong> e o lucro espera<strong>do</strong>pelo arrenda<strong>do</strong>r. Esta somatória deve ser equivalente à soma dascontraprestações devidas pelo arrendatário com o valor residual <strong>do</strong> bem.”Verifica-se, então, que, na composição <strong>do</strong> preço, são leva<strong>do</strong>s emconsideração os seguintes aspectos: (a) valor de aquisição <strong>do</strong> bem; (b) custosde captação desses recursos; (c) despesas inerentes à operação; (d) depreciação<strong>do</strong> bem; (e) lucro da operação e (f) riscos <strong>do</strong> contrato.Dessa forma, visan<strong>do</strong> a cobrir o investimento e ainda proporcionarlucro, houvesse o valor pago pelo arrendatário em (1) contraprestaçãoe (2) Valor Residual (VR), sen<strong>do</strong> aquela referente à locação <strong>do</strong> veículo eeste ao valor a ser efetivamente gasto, ao término <strong>do</strong> contrato, caso hajaa opção de adquirir o bem.Ocorre que, em razão da alta depreciação sofrida pelos veículos,passaram as instituições arrenda<strong>do</strong>ras a não mais recuperar o valorinvesti<strong>do</strong> (pago antecipadamente à revende<strong>do</strong>ra) na operação, quan<strong>do</strong>os arrendatários não ficavam com o bem, o que acontecia pelo exercícioda opção ao término ou quan<strong>do</strong> houvesse inadimplência durante o cumprimento<strong>do</strong> contrato.Consertan<strong>do</strong> tal situação, foram editadas as Portarias MF n.º564/78 e 184/84, seguidas pela Resolução 980/84 e, por fim, a Resolução17 IBRAHIM, Marco Antônio. Op. cit., p. 64.18 LEÃO, José F. L. Miranda. "Leasing Financeiro". Publica<strong>do</strong> no site http://www.direitobancario.com.br. Acesso emdez/2001.220R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 215-239, jul.-set. 2011


2.309/96 <strong>do</strong> BACEN 19 , que estabeleciam uma nova espécie de valorresidual, o chama<strong>do</strong> Valor Residual de Garantia (adiante denomina<strong>do</strong>apenas VRG), justamente para esses casos em que o arrendatário nãoficasse com o bem. 20O que se estabeleceu, em verdade, foi uma nova função 21 para oValor Residual (VR), que passou a ser tanto o preço contratualmenteestipula<strong>do</strong> para exercício da opção de compra (VR), quanto o valor contratualmentegaranti<strong>do</strong> pelo arrendatário, como mínimo que será recebi<strong>do</strong>pela arrenda<strong>do</strong>ra na venda a terceiros <strong>do</strong> bem arrenda<strong>do</strong>, na hipótese denão ser exercida a opção de compra (VRG) 22 . Nesse caso, após a alienação(a um terceiro), o arrendatário pode ser chama<strong>do</strong> a “completar” o valorpercebi<strong>do</strong> na venda, até o montante garanti<strong>do</strong> (VRG).A distinção entre o VR (valor residual) e o VRG (valor residual degarantia) é óbvia na estrutura <strong>do</strong> contrato de leasing, já ten<strong>do</strong>, há bastantetempo, si<strong>do</strong> objeto de julga<strong>do</strong>s proferi<strong>do</strong>s por iterativa jurisprudência:“(...) No contrato de leasing, o valor residual é o preço contratualestipula<strong>do</strong> para o exercício da opção de compra enquantoo valor residual garanti<strong>do</strong> é obrigação assumidapelo arrendatário, quan<strong>do</strong> da contratação <strong>do</strong> arrendamentomercantil, no senti<strong>do</strong> de garantir que o arrenda<strong>do</strong>r receba,ao final <strong>do</strong> contrato, a quantia mínima final de liquidação <strong>do</strong>negócio, em caso de o arrendatário optar por não exercerseu direito de compra e, também, não desejar que o contrato19 BACEN: RES. 2.309/96: Art. 7. Os contratos de arrendamento mercantil devem ser formaliza<strong>do</strong>s por instrumentopúblico ou particular, deven<strong>do</strong> conter, no mínimo, as especificações abaixo relacionadas: VII - as despesas e os encargosadicionais, inclusive despesas de assistência técnica, manutenção e serviços inerentes a operacionalidade <strong>do</strong>s bensarrenda<strong>do</strong>s, admitin<strong>do</strong>-se, ainda, para o arrendamento mercantil financeiro: a) a previsão de a arrendatária pagarvalor residual garanti<strong>do</strong> em qualquer momento durante a vigência <strong>do</strong> contrato, não caracterizan<strong>do</strong> o pagamento <strong>do</strong>valor residual garanti<strong>do</strong> o exercício da opção de compra; b) o reajuste <strong>do</strong> preço estabeleci<strong>do</strong> para a opção de comprae o valor residual garanti<strong>do</strong>.20 Sobre o assunto, recomenda-se a leitura de excelente artigo publica<strong>do</strong> na Revista de Direito <strong>do</strong> TJRJ (v. 50,p. 63-70), de autoria <strong>do</strong> Magistra<strong>do</strong> Marco Antônio Ibrahim ("A diferença entre VRG e preço da opção de compra nocontrato de leasing e sua descaracterização pela antecipação <strong>do</strong> valor residual").21 A<strong>do</strong>tan<strong>do</strong> essa posição, ATHOS GUSMÃO CARNEIRO ("O contrato de leasing financeiro e as ações revisionais",Revista de Direito Bancário e <strong>do</strong> Merca<strong>do</strong> de Capitais, São Paulo, n. 2, item 32) e JUDITH MARTINS-COSTA ("Oscontratos de leasing financeiro, a qualificação jurídica da parcela denominada Valor Residual Garanti<strong>do</strong> – VRG e asua dupla função: complementação de preço e garantia", Revista de Direito Bancário e <strong>do</strong> Merca<strong>do</strong> de Capitais,São Paulo, n. 49, p. 134).22 “Encontra-se, assim, no valor residual, uma dupla função, pois a figura biparte-se funcionalmente, só se poden<strong>do</strong>especificar qual delas será atuada quan<strong>do</strong> <strong>do</strong> exercício, pelo arrendatário, <strong>do</strong> direito formativo de escolha entre asalternativas “comprar o bem”ou “devolver o bem””. (JUDITH MARTINS-COSTA, op. cit., p. 134).R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 215-239, jul.-set. 2011 221


seja prorroga<strong>do</strong>.(...)” (STJ – 4ª Turma, REsp. 249.340/SP, Rel.Min. Sálvio de Figueire<strong>do</strong> Teixeira, DJU 07.08.2000) 23Também apontan<strong>do</strong> a diferenciação assim escreveram MARCOANTÔNIO IBRAHIM e SERGIO CAVALIERI FILHO:“Enquanto o valor residual vincula<strong>do</strong> ao preço pela opção decompra se destina a complementar o retorno <strong>do</strong> capital investi<strong>do</strong>pela arrenda<strong>do</strong>ra na hipótese de opção pela compra, o VRG ,ao revés, é resíduo exigível quan<strong>do</strong> a opção não for pela compra,mas pela extinção <strong>do</strong> contrato. Isto é, ao fim da locação 24 .”“... o VRG não se confunde com a opção de compra. Como sevê da sua própria definição normativa (Portaria nº 564/78 <strong>do</strong>Ministério da Fazenda), trata-se de uma forma de o arrendatáriogarantir ao arrenda<strong>do</strong>r uma quantia mínima de amortização<strong>do</strong> valor residual <strong>do</strong> bem, caso, no final <strong>do</strong> contrato, nãorenove o arrendamento nem exerça a opção de compra. 25 ”E, ainda na mesma direção, a lição de JUDITH MARTINS-COSTA:“Se o arrendatário opta por adquirir o bem, esse “resíduo”servirá para liquidar o valor da opção de compra, marcan<strong>do</strong>,assim, a extinção da relação de leasing e o início da relaçãode compra e venda. Portanto, atua, nessa medida, nãocomo garantia, mas como “o preço contratual estipula<strong>do</strong>para o exercício da opção de compra (Conforme Portaria MF564/1978), já que, feita essa opção, o arrendatário paga adiferença entre o que já amortizou e aquilo que o contratoestabelece como parâmetro, poden<strong>do</strong> este ser o sal<strong>do</strong> nãodeprecia<strong>do</strong> ou o preço <strong>do</strong> bem.Se, diversamente, o arrendatário opta por devolver o bem, aarrenda<strong>do</strong>ra deverá vendê-lo. A venda <strong>do</strong> veículo a terceiros23 CONSTA DO VOTO: “Assim, a opção de compra é o direito potestativo <strong>do</strong> arrendatário de, ao final <strong>do</strong> contrato,consolidar em si o <strong>do</strong>mínio e a posse indireta <strong>do</strong> bem, enquanto valor residual é o preço contratual estipula<strong>do</strong> parao exercício da opção de compra, que deve constar expressamente <strong>do</strong> contrato (ou o critério para sua fixação),conforme prevê o art. 5º, d, da Lei 6.099/74”24 MARCO ANTÔNIO IBRAHIM, "A diferença entre VRG e preço da opção de compra no contrato de leasing e suadescaracterização pela antecipação <strong>do</strong> valor residual", Revista de Direito, v. 50, p. 65.25 SERGIO CAVALIERI FILHO, Programa de direito <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r, São Paulo: Atlas, 2008, p. 191.222R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 215-239, jul.-set. 2011


não cobrirá, normalmente, o desgaste no bem, já que os bens– ainda que de consumo durável – se desgastam pelo uso,poden<strong>do</strong> esse desgaste levar inclusive à sua “extinção” <strong>do</strong>ponto de vista econômico. Se for um automóvel, por exemplo,haverá, ainda, despesas com a guarda <strong>do</strong> veículo, seuconserto, o anúncio da venda e toda a atividade correlata àpretendida alienação. Consequentemente, a função <strong>do</strong> VRGserá a de atuar como uma garantia de preço mínimo, ou cauçãoem dinheiro, instituída em prol <strong>do</strong> arrenda<strong>do</strong>r em vista<strong>do</strong>s riscos da obsolescência, risco esse que é <strong>do</strong> arrendatário,bem como os deriva<strong>do</strong>s de eventual inadimplência e, ainda,os referentes às despesas correlatas à guarda e conservação,asseguran<strong>do</strong> igualmente o lucro, móvel de toda e qualqueratividade mercantil, de mo<strong>do</strong> que o arrenda<strong>do</strong>r receba, porfim, valor equivalente ao capital emprega<strong>do</strong> para a obtenção<strong>do</strong> bem junto ao fornece<strong>do</strong>r, acresci<strong>do</strong> <strong>do</strong>s interesses financeiroscorrespondentes.” 26Assim, verifica-se, com facilidade, a diferença existente entre opçãode compra (VR) e a garantia de retorno <strong>do</strong> investimento (VRG), poden<strong>do</strong>-seconcluir – ante a utilização de denominação comum - que há um valorresidual com, no entanto, duas funções distintas.6. Questões polêmicas. AS VERDADES E AS MENTIRAS6.1 Cobrança antecipada <strong>do</strong> Valor Residual – Solução final <strong>do</strong> E. SuperiorTribunal de JustiçaDe acor<strong>do</strong> com o que se acha estabeleci<strong>do</strong> no art. 7º da Resoluçãonº 2.309/1996 <strong>do</strong> Conselho Monetário Nacional 27 , não haveria qualquervedação em se antecipar, total ou parcialmente os valores estipula<strong>do</strong>s atítulo de VR.26 JUDITH MARTINS-COSTA, "Os contratos de leasing financeiro, a qualificação jurídica da parcela denominadaValor Residual Garanti<strong>do</strong> – VRG e a sua dupla função: complementação de preço e garantia", Revista de DireitoBancário e <strong>do</strong> Merca<strong>do</strong> de Capitais, São Paulo, n. 49, p. 133.27 “Os contratos de arrendamento mercantil devem ser formaliza<strong>do</strong>s por instrumento público ou particular, conten<strong>do</strong>,no mínimo, as especificações abaixo relacionadas: (...) VII – as despesas e os encargos adicionais, inclusive despesasde assistência técnica, manutenção e serviços inerentes à operacionalidade <strong>do</strong>s bens arrenda<strong>do</strong>s, admitin<strong>do</strong>-seainda para o arrendamento mercantil financeiro: a) a previsão de a arrendatária pagar valor residual garanti<strong>do</strong>, emqualquer momento durante a vigência <strong>do</strong> contrato, não caracterizan<strong>do</strong> o pagamento <strong>do</strong> valor residual garanti<strong>do</strong>o exercício da opção de compra; b) o reajuste <strong>do</strong> preço estabeleci<strong>do</strong> para a opção de compra e o valor residualgaranti<strong>do</strong> (...);”R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 215-239, jul.-set. 2011 223


Todavia, voltan<strong>do</strong> ao que foi afirma<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> da análise da naturezajurídica, pelo fato de a grande característica <strong>do</strong> contrato fundar-sena possibilidade da tríplice escolha pelo arrendatário 28 , parte da <strong>do</strong>utrinapassou a entender que o pagamento antecipa<strong>do</strong> <strong>do</strong> VR terminaria pordescaracterizar o contrato de leasing, vez que fustigava sua causa e principalrazão de existência.Defenden<strong>do</strong> a possibilidade da antecipação, posicionaram-se IVESGANDRA DA SILVA MARTINS 29 , ITAMAR DUTRA 30 , ATHOS GUSMÃO CAR-NEIRO 31 , RODOLFO DE CAMARGO MANCUSO 32 e NEIDE APARECIDA DEFÁTIMA RESENDE 33 .Em Março de 1999, a SDE/MJ 34 editou a Portaria n.º 03/99 que, emaditamento ao rol enunciativo <strong>do</strong>s incisos <strong>do</strong> artigo 51 <strong>do</strong> CPDC, dispunha,em seu item 15, sobre a nulidade das cláusulas que: “Estabeleçam, emcontrato de arrendamento mercantil (leasing) a exigência <strong>do</strong> pagamentoantecipa<strong>do</strong> <strong>do</strong> valor residual garanti<strong>do</strong> (VRG), sem a previsão de devoluçãodesse montante, corrigi<strong>do</strong> monetariamente, se não exercida a opçãode compra <strong>do</strong> bem”.Com isso, restou aumentada a tendência jurisprudencial de nãoadmitir a antecipação sem que com isso se demudasse o contrato paracompra e venda parcelada. No Superior Tribunal de Justiça, à época,apenas os Ministros Carlos Alberto Direito 35 e Ari Pargendler 36 (ambos da28 “Fábio Konder Comparato, expon<strong>do</strong> entendimento diverso daquele que apresentara por ocasião de seu pioneiroestu<strong>do</strong> (in RT 389/7, publica<strong>do</strong> em 1968 e, portanto, antes da promulgação da Lei n.º 6.099/74) destaca que a verdadeiracausa, o escopo permanente <strong>do</strong> negócio, em to<strong>do</strong>s os casos é justamente essa alternativa deixada à escolha <strong>do</strong>arrendatário. É ela, como elemento in obligatione – e não apenas in executione ‐ que diferencia substancialmente oLeasing de to<strong>do</strong>s os demais negócios jurídicos típicos.” (IBRAHIM, Marco Antônio. Op. cit., p. 64).29 MARTINS, Ives Gandra da Silva. "As operações de arrendamento mercantil e a natureza jurídica <strong>do</strong> instituto à luz<strong>do</strong> Direito Tributário" ‐ Parecer, Revista LTR, v. 59, p. 312.30 DUTRA, Itamar. Leasing ‐ perdas e danos. Solivros, 1997, p. 21.31 CARNEIRO, Athos Gusmão. "O contrato de Leasing financeiro e as ações revisionais". Revista de Direito Bancárioe <strong>do</strong> Marca<strong>do</strong> de Capitais, p. 30.32 MANCUSO, Ro<strong>do</strong>lfo de Camargo. "Leasing", RT, 199, p. 155.33 RESENDE, Neide Aparecida de Fátima. O leasing financeiro no Código de Defesa <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r, Saraiva, 2001, p. 60.34 Secretaria de Direito Econômico <strong>do</strong> Ministério da Justiça.35 “1. A jurisprudência das Turmas que compõem a 2ª Seção, ressalvada a minha posição, firmou-se no senti<strong>do</strong>de que a cobrança antecipada <strong>do</strong> Valor Residual Garanti<strong>do</strong> (VRG) desqualifica o contrato de leasing para compra evenda, o que inviabiliza não só o deferimento de liminar, mas, também, a própria ação de reintegração de posse.2. A descaracterização <strong>do</strong> contrato de leasing para compra e venda, tema devidamente prequestiona<strong>do</strong>, conduz aojulgamento de extinção <strong>do</strong> processo por impossibilidade jurídica <strong>do</strong> pedi<strong>do</strong> reintegratório, presente o art. 267, VI,§ 3º, <strong>do</strong> Código de Processo <strong>Civil</strong>. 3. Recurso especial conheci<strong>do</strong> e provi<strong>do</strong>”. (STJ – 3ª T., REsp. 302.448-SP, Rel. Min.Carlos Alberto Menezes Direito, j. 26.06.2001)36 ”Contrato de leasing. Valor residual de garantia. A cobrança antecipada <strong>do</strong> VRG não descaracteriza o contratode arrendamento mercantil para compra e venda. Juros. Limitação. Nulidade. A disposição <strong>do</strong> Decreto 22.626/33,224R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 215-239, jul.-set. 2011


3ª Turma) seguiam com posição dissonante, ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong>, então, pacificadaa questão no julgamento <strong>do</strong>s Embargos de Divergência no Recurso Especialn.º 230.239-RS 37 , que serviu, inclusive, como precedente para edição,em maio de 2002, da súmula n.º 263:“A cobrança antecipada <strong>do</strong> valor residual (VRG) descaracterizao contrato de arrendamento mercantil, transforman<strong>do</strong>-oem compra e venda a prestação” 38Tal posicionamento, a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> pelo Superior Tribunal de Justiça, queobviamente se proliferou através das decisões <strong>do</strong>s Tribunais locais, fezcom que o número de contratos sofresse uma queda vertiginosa (videgráficos abaixo 39 ), o que levou as Instituições à interposição de centenasde recursos buscan<strong>do</strong> a revisão <strong>do</strong> entendimento.limitativa da taxa de juros, não se aplica às instituições financeiras, poden<strong>do</strong> aquela ser restringida por determinação<strong>do</strong> Conselho Monetário Nacional. Incidência da Súmula 596 <strong>do</strong> STF. Interpretação da Lei 4.595/64. (STJ – 3ª T.,REsp. 164.918-RS, Relator p/ Acórdão Min. Ari Pargendler, j. 03.08.2000)37 EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. PROCESSO CIVIL E CIVIL. ARRENDAMENTO MERCANTIL. “LEASING” FINANCEIRO.AÇÃO DE REVISÃO CONTRATUAL. DEMUDAÇÃO DO CONTRATO PELO PAGAMENTO ANTECIPADO DO “VALORRESIDUAL GARANTIDO”. Compra e venda a prestações. Art. 11, § 1° da lei n. 6.099/74. Item 15 da Portaria n. 3, de19-03-1999, da Secretaria de Direito Econômico <strong>do</strong> Ministério da Justiça. Arts. 6°, I e 10 da Resolução n. 2.309, de28-08-1996 <strong>do</strong> Banco Central <strong>do</strong> Brasil. Ausência de limitação de juros de 12% a.a. Legalidade <strong>do</strong>s juros contratuaispactua<strong>do</strong>s. Súmula n. 168/stj. - Pacificada a tese de que a obrigação contratual de antecipação <strong>do</strong> VRG - ou o adiantamento“da parcela paga a título de preço de aquisição” - faz infletir sobre o contrato o disposto no § 1° <strong>do</strong> art. 11,da Lei 6.099/74, operan<strong>do</strong> demudação, ope legis, no contrato de arrendamento mercantil para uma operação decompra e venda a prestação, com financiamento, cabe o indeferimento liminar de embargos de divergência, pelaSúmula n. 168/STJ. - Há o desaparecimento da figura da promessa unilateral de venda e da respectiva opção, porqueimposta a obrigação de compra desde o início da execução <strong>do</strong> contrato ao arrendatário. (STJ – 2ª Seção, AERESP230.239-RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 23.05.2001)38 São os seguintes os outros precedentes da súmula 263 <strong>do</strong> STJ: REsp. 172432-RS, Rel. Min. César Asfor Rocha,j. 16.11.1999; REsp. 181095-RS, Rel. Min. Ruy Rosa<strong>do</strong> de Aguiar, j. 09.08.1999; STJ – 3ª T., REsp. 196209-RS, Rel. Min.Waldemar Zveiter, j. 09.11.1999; STJ – 4ª T., REsp. 196873-RS, Rel. Min. Aldir Passarinho, j. 19.10.2000.39 Da<strong>do</strong>s forneci<strong>do</strong>s pela ABEL – Associacão Brasileira das Empresas de Leasing.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 215-239, jul.-set. 2011 225


E, então, a discussão sobre a cobrança antecipada <strong>do</strong> VRG voltouà tona em maio de 2003, por ocasião <strong>do</strong> julgamento <strong>do</strong>s Embargos deDivergência no Recurso Especial de nº 213.828/RS 40 , no qual a Corte Especial<strong>do</strong> Superior Tribunal de Justiça afastou o uso da súmula 263, ten<strong>do</strong>si<strong>do</strong> a mesma cancelada pela 2 a Seção em agosto daquele ano, quan<strong>do</strong><strong>do</strong> julgamento <strong>do</strong>s Recursos Especiais de nº 443.143/GO e 470.632/SP.Assim, em maio de 2004, uma nova súmula, a de nº 293, foi editada, como seguinte teor: “A cobrança antecipada <strong>do</strong> valor residual garanti<strong>do</strong> (VRG)não descaracteriza o contrato de arrendamento mercantil 41 .”Atualmente, não há mais campo para essa polêmica, já existin<strong>do</strong>,inclusive, Enuncia<strong>do</strong>s de Tribunais Estaduais 42 sobre o tema.6.2. Impossibilidade de Devolução <strong>do</strong> VRG antes da entrega <strong>do</strong> veículoJá se verificou que, em alguns casos, os arrendatários manifestaram nocurso <strong>do</strong> contrato a vontade de devolver o veículo ao término <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>, istoé, antecipan<strong>do</strong> o exercício de uma das escolhas possíveis e, com isso (mesmona posse <strong>do</strong> veículo), pretenden<strong>do</strong> suspender o pagamento das parcelas40 “Arrendamento Mercantil. Leasing. Antecipação <strong>do</strong> Pagamento <strong>do</strong> Valor Residual Garanti<strong>do</strong>. Descaracterizaçãoda natureza contratual para compra e venda à prestação. Lei 6.099/94, Art. 11, § 1o. não ocorrência. Afastamentoda Súmula 263/STJ. 1. O pagamento adianta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Valor Residual Garanti<strong>do</strong> - VRG não implica necessariamenteantecipação da opção de compra, posto subsistirem as opções de devolução <strong>do</strong> bem ou prorrogação <strong>do</strong> contrato.Pelo que não descaracteriza o contrato de leasing para compra e venda à prestação. 2. Como as normas de regêncianão proíbem a antecipação <strong>do</strong> pagamento da VRG que, inclusive, pode ser de efetivo interesse <strong>do</strong> arrendatário, deveprevalecer o princípio da livre convenção entre as partes. 3. Afastamento da aplicação da Súmula263/STJ. 4. Embargosde Divergência acolhi<strong>do</strong>s. (STJ – 2a Seção – EREsp. 213.828/RS, Rel. Min. Edson Vidigal, j. 07/05/2003)41 PRECEDENTES: EREsp. 213.828-RS, CE, j. 07/05/03; REsp. 163.845-RS, 3ª T., j. 15.06.99; REsp. 164.918-RS, 3ª T., j.03.08.2000, REsp. 280.833-RO, 4ª T., 26.08.2003.42 Enuncia<strong>do</strong> nº 67 <strong>do</strong> TJRJ: “A cobrança antecipada <strong>do</strong> valor residual (VRG) pelo arrenda<strong>do</strong>r não descaracteriza ocontrato de arrendamento mercantil (LEASING).226R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 215-239, jul.-set. 2011


vincendas <strong>do</strong> VRG e receber de volta aquelas anteriormente pagas.Tal prática não está em conformidade com o pactua<strong>do</strong> e, muito menos,prevista na legislação de referência. Ten<strong>do</strong> se concluí<strong>do</strong> pela licitudede ajuste contratual com cobrança de forma adiantada <strong>do</strong> VRG (o que sedá, normalmente, através de entrada e diluição <strong>do</strong> restante no mesmo númerode parcelas da locação), a alteração em exame certamente violaria oprincípio de que as partes devem respeitar in totum o pactua<strong>do</strong>, sem considerarque, por ter aceita<strong>do</strong> efetuar o adiantamento <strong>do</strong> VRG, o arrendatárioacabou por negociar taxas de juros em patamares diferencia<strong>do</strong>s 43 .Ponha-se em relevo que a questão não é tão simples. Mesmo antecipan<strong>do</strong>o consumi<strong>do</strong>r sua decisão de não ficar (no futuro) com o veículo,qual é a garantia existente de que cumprirá seu dever de devolvero bem? Existe, além de sua vontade, o fator imprevisível e, nesse lapsotemporal, o veículo pode se envolver em acidente (deterioração) ou seralvo de furto/roubo.Nesse senti<strong>do</strong> têm si<strong>do</strong> as decisões <strong>do</strong> Superior Tribunal de Justiça:“Agravo no recurso especial. Ação de restituição de valoresde contrato de arrendamento mercantil. Devolução <strong>do</strong> VRG. -É possível a devolução <strong>do</strong> VRG, pago antecipadamente, apósa resolução <strong>do</strong> contrato de arrendamento mercantil e desdeque restituí<strong>do</strong> o bem na posse da arrendante. Precedentes.Agravo não provi<strong>do</strong>.” (STJ – 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi,AgRg no REsp. 960.532-RJ, j. 14.11.2007) 44“... Não tem amparo legal algum, determinar, na ação de reintegraçãode posse, que seja feita a devolução antecipada <strong>do</strong>VRG, sen<strong>do</strong> certo que, reintegrada a arrenda<strong>do</strong>ra na posse<strong>do</strong> bem, deve ela providenciar a venda <strong>do</strong> mesmo no merca<strong>do</strong>.A partir daí é que se vai cuidar da devolução <strong>do</strong> VRG, tu<strong>do</strong>43 “Considere-se, ainda (e isso pode ser comprova<strong>do</strong> por to<strong>do</strong>s que tenham experiência própria em adquirir bens,por exemplo, automóveis, pelo sistema de leasing), que os custos operacionais mais baratos desse tipo de operaçãofinanceira são benéficos ao consumi<strong>do</strong>r, que acaba ten<strong>do</strong> acesso a um crédito mais favorável <strong>do</strong> que as operaçõesde financiamento normais. E é de tal monta essa vantagem que as prestações pagas pelos arrendatários, incluídaa parcela <strong>do</strong> VTG, são menores que as parcelas de um simples financiamento bancário de mesmo valor e idênticoprazo” (STJ – 4 a Turma, EResp. 213.828, Rel. Min. Salvio de Figueire<strong>do</strong> Teixeira).44 No mesmo senti<strong>do</strong>: STJ – 3 a Turma, REsp. 470.512/DF, Rel. Min. Castro Filho, j. 17/11/2003, STJ – 4ª Turma, AgRgno Ag 732.639/RS, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, j. 15/5/2006, TJRJ – 5ª Câm., Apel. 0020584-75.2008.8.19.0205,Rel. Des. Katya Monnerat. TJRJ – 16ª Câm., Apel. 0009727-76.2008.8.19.0202, Rel. Des. Lin<strong>do</strong>lpho de MoraisMarinho.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 215-239, jul.-set. 2011 227


na dependência <strong>do</strong> sal<strong>do</strong>. A devolução determinada no cursoda ação de reintegração, sem mais nem menos, contamina aprópria estrutura <strong>do</strong> contrato de arrendamento mercantil...”(STJ – 3 a Turma, REsp. nº 294.779, Rel. Min. Carlos AlbertoMenezes Direito, j. 04.02.2002)Conclui-se, então, que o ponto de partida para se tratar de eventualrestituição de valores antecipa<strong>do</strong>s de VRG é a devolução <strong>do</strong> veículo àempresa arrendante.6.3. Quan<strong>do</strong> o VRG pode/deve ser devolvi<strong>do</strong>Estabelecida no item 5 supra a premissa de que o VRG não se confundecom opção de compra, passa-se a explicar em que momento e condiçõesse torna possível a devolução <strong>do</strong>s valores adianta<strong>do</strong>s pelo consumi<strong>do</strong>r.Para tanto, faz-se necessária uma divisão de acor<strong>do</strong> com a situação<strong>do</strong> contrato, cumpri<strong>do</strong> ou não cumpri<strong>do</strong> (adimplente ou inadimplente),esclarecen<strong>do</strong>-se que o termo “cumpri<strong>do</strong>” refere-se ao prazo estipula<strong>do</strong>para o término <strong>do</strong> contrato.6.3.1. Contrato cumpri<strong>do</strong> com todas as parcelas adimplidasTermina<strong>do</strong> o contrato, deve o arrendatário, em caso de não optarpor ficar com o bem, devolvê-lo à arrenda<strong>do</strong>ra e esta, na forma <strong>do</strong> contratoe da lei regente, alienar o veículo em leilão, com vistas a obter o maiorvalor possível. Feito isso, deve realizar-se o encontro das contas. De umla<strong>do</strong> o valor estipula<strong>do</strong> pelas partes como valor mínimo de garantia (que éo próprio VRG) e de outro a soma <strong>do</strong>s valores antecipa<strong>do</strong>s com o produtoda venda <strong>do</strong> bem.228R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 215-239, jul.-set. 2011


Sobre a questão, assim ensina ANTÔNIO FLAVIO LEITE GALVÃO:“O raciocínio acerca da devolução <strong>do</strong> VRG antecipa<strong>do</strong> nãopode ser desenvolvi<strong>do</strong> da maneira simplista, a exemplo deque vem sen<strong>do</strong> feito por alguns opera<strong>do</strong>res de direito queassim pensam: o arrendatário, em razão da reintegração deposse, não adquiriu o bem, logo a empresa de ‘leasing’ develhe devolver referi<strong>do</strong> VRG.A esse raciocínio falta uma premissa: a operação de ‘leasing’,não é de mero arrendamento, mas, sim, de arrendamentomercantil financeiro.Isso significa que a empresa de ‘leasing’ deve recuperar, nomínimo, o valor (atualiza<strong>do</strong>) que despendeu (capital aplica<strong>do</strong>)para adquirir o bem indica<strong>do</strong> pelo arrendatário, acresci<strong>do</strong> dascontraprestações mensais não pagas e, ainda, ser ressarcidadas despesas, antes de a ele fazer a devolução de qualquernumerário, a que título for. (...)Somente na hipótese em que a soma <strong>do</strong>s valores recebi<strong>do</strong>spela empresa de ‘leasing’ ultrapasse o montante <strong>do</strong>s valorespor ela suporta<strong>do</strong>s para a realização da operação e sua posteriorrescisão, é que deverá haver a devolução ao arrendatárioda quantia que vier a sobejar.” 45Nesse exato diapasão, a lição de MARCO ANTÔNIO IBRAHIM:“Assim, se ao final <strong>do</strong> contrato a arrendatária optar pela devolução<strong>do</strong> bem arrenda<strong>do</strong>, deverá aguardar que a empresaefetive a venda <strong>do</strong> bem. Se o valor da venda for inferior aovalor residual garanti<strong>do</strong> (VRG) estipula<strong>do</strong>, a arrendatáriaficará obrigada pela diferença entre este e o valor da venda,haja vista que é da essência <strong>do</strong> leasing financeiro a recuperação,pelo arrenda<strong>do</strong>r, da totalidade <strong>do</strong> capital emprega<strong>do</strong>na aquisição <strong>do</strong> bem arrenda<strong>do</strong> durante o prazo contratualda operação, e adicionalmente, obtenha um retorno sobre45 ANTÔNIO FLÁVIO LEITE GALVÃO, "Leasing financeiro – VRG antecipa<strong>do</strong> e sua devolução ao arrendatário no casode reintegração de posse". Revista de Direito Bancário e <strong>do</strong> Merca<strong>do</strong> de Capitais, Ano 8, n. 29, julho-setembro de2005, p. 346.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 215-239, jul.-set. 2011 229


os recursos investi<strong>do</strong>s. (art. 5º, inciso I <strong>do</strong> Anexo à Res. nº2.309/96 <strong>do</strong> Banco Central) 46 ”Entendimento esse que encontrou aceitação em julgamentos <strong>do</strong>Superior Tribunal de Justiça 47 e também nas Câmaras Cíveis <strong>do</strong> TJRJ:“ (...) Nem se diga que o arrendatário, na hipótese de adiantamento<strong>do</strong> VRG, sofra prejuízo irreparável. Ao final <strong>do</strong> contrato,mesmo que não seja efetua<strong>do</strong> o referi<strong>do</strong> adiantamento,deverá pagar à arrenda<strong>do</strong>ra a diferença entre o VRGe o valor obti<strong>do</strong> da venda <strong>do</strong> bem a terceiros, quan<strong>do</strong> estefor inferior àquele. Optan<strong>do</strong>, entretanto, pela compra, já teráquita<strong>do</strong> a importância necessária, não precisan<strong>do</strong> desembolsarqualquer valor.” (STJ – 3ª Turma, Rel. Min. Carlos AlbertoMenezes Direito, REsp. 213.828/RS, DJU 26.03.2001)“...só caberá devolução <strong>do</strong> valor residual garanti<strong>do</strong> e consequentecompensação se a quantia obtida com a venda <strong>do</strong>bem a terceiro for superior ao valor pago antecipadamentepelo arrendante.” (STJ – 3ª Turma, REsp. 373.674/PR, votovistada Min. Nancy Andrighi, j. 29.06.04)Apelação Cível. Rito Sumário. Ação de Reintegração dePosse. Contrato de Arrendamento Mercantil. Rescisão <strong>do</strong>Negócio Jurídico. Pagamento antecipa<strong>do</strong> <strong>do</strong> Valor ResidualGaranti<strong>do</strong>. Sentença que determinou a devolução <strong>do</strong> VRGpago antecipadamente pela demandada. Insurgência da arrendanteneste tocante. Acolhimento de sua irresignaçãodiante das vicissitudes <strong>do</strong> contrato de arrendamento mercantil.Pagamento antecipa<strong>do</strong> <strong>do</strong> Valor Residual Garanti<strong>do</strong>que possui efeito de garantia de ressarcimento ao arrendante<strong>do</strong> valor despendi<strong>do</strong> para a aquisição <strong>do</strong> bem, paraque ao final <strong>do</strong> contrato receba a quantia mínima final deliquidação <strong>do</strong> negócio. De tal forma, impõe-se a devolução<strong>do</strong> Valor Residual Garanti<strong>do</strong> no que sobejar da venda <strong>do</strong>46 MARCO ANTÔNIO IBRAHIM, "A diferença entre VRG e preço da opção de compra no contrato de leasing e suadescaracterização pela antecipação <strong>do</strong> valor residual", Revista de Direito, v. 50, p. 65.47 Ainda sobre o ponto, confira-se trecho <strong>do</strong> voto proferi<strong>do</strong> pela Ministra Nancy Andrighi no julgamento <strong>do</strong> REsp373.674/PR: “Com efeito, observan<strong>do</strong> o voto vence<strong>do</strong>r proferi<strong>do</strong> pelo e. Min. Edson Vidigal no julgamento <strong>do</strong> Respnº 213.828, pela Corte Especial, verifica-se que a eventual devolução da quantia paga, antecipadamente, a título devalor residual garanti<strong>do</strong> dependerá <strong>do</strong> valor obti<strong>do</strong> com a venda <strong>do</strong> bem.”230R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 215-239, jul.-set. 2011


objeto <strong>do</strong> contrato. Recurso a que se dá provimento. (TJRJ –8ª Câm., Apel. 0006202-22.2009.8.19.0212, Rel. Des. LuizFelipe Francisco, j. 08.02.2011)Apelação Cível. Reintegração de Posse. Arrendamento Mercantil.Pedi<strong>do</strong> Contraposto. Devolução <strong>do</strong> VRG em razão darescisão <strong>do</strong> contrato. Possibilidade. Necessidade de reformaparcial da sentença. (…) 4. O contrato de leasing confere aoarrendatário três possibilidades ao final <strong>do</strong> ajuste: a devolução<strong>do</strong> bem, extinguin<strong>do</strong>-se a relação contratual, sua compraou a sua renovação. 5. O valor residual garanti<strong>do</strong> é para assegurara importância que o bem deverá ter no fim <strong>do</strong> contrato,já previamente estabeleci<strong>do</strong> pelas partes, a fim de perfazer opreço final de aquisição <strong>do</strong> mesmo, pago de forma acopladae diluída às prestações periódicas. 6. Ten<strong>do</strong> em vista que coma rescisão <strong>do</strong> contrato, extirpa-se <strong>do</strong> arrendatário seu direitoa uma manifestação futura de intenção de compra <strong>do</strong> bem,deve ser devolvi<strong>do</strong> o valor pago a título de VRG. Precedentes<strong>do</strong> STJ. 7. Necessidade de se ressalvar o entendimento a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>pelo voto vence<strong>do</strong>r proferi<strong>do</strong> pelo e. Min. Edson Vidigalquan<strong>do</strong> <strong>do</strong> julgamento <strong>do</strong> Resp nº 213.828, pela Corte Especial,no senti<strong>do</strong> de que somente será possível a devolução <strong>do</strong>VRG quan<strong>do</strong> o valor obti<strong>do</strong> com a venda <strong>do</strong> bem a terceirofor igual ou superior a quantia paga antecipadamente peloarrendatário. 8. Desprovimento <strong>do</strong> recurso.so. (TJRJ – 8ªCâm., Apel. 0002742-77.2008.8.19.0045, Rel. Des. MonicaDi Piero, j. 29.03.2011)“Apelação – Arrendamento Mercantil. Rescisão <strong>do</strong> contrato– Devolução <strong>do</strong> VRG pago antecipadamente. Impossibilidade.Sen<strong>do</strong> o VRG uma garantia de renda mínima dadaao arrendante pelo arrendatário, caso não ocorra a opçãoda compra, somente após a venda <strong>do</strong> bem a terceiros é quese poderá aferir a existência de eventual crédito ou débitoem favor ou em prejuízo <strong>do</strong> arrendatário.” (TJRJ – 13ª Câm.,Apel. 2003.001.36649, Rel. Des. José de Samuel Marques, j.18.02.2004) 4848 Constan<strong>do</strong> <strong>do</strong> voto a seguinte fundamentação: “O VRG (Valor Residual de Garantia), como o próprio nome diz,tem por finalidade garantir ao arrendante, ao final <strong>do</strong> contrato, caso não seja exercida a opção de compra, que esteaufira uma quantia mínima, resguardan<strong>do</strong>-se de eventuais prejuízos. Como é sabi<strong>do</strong>, os bens arrenda<strong>do</strong>s sofrem odesgaste natural <strong>do</strong> uso e a depreciação pelo decurso <strong>do</strong> tempo, os quais, tratan<strong>do</strong>-se de automóvel, são por demaisR. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 215-239, jul.-set. 2011 231


Nos casos em que o contrato é cumpri<strong>do</strong> até o seu final, terá oarrendatário pago, invariavelmente, to<strong>do</strong> o valor estipula<strong>do</strong> como garantia(VRG) e, portanto, receberá como devolução o valor auferi<strong>do</strong> com aalienação <strong>do</strong> veículo. Essa é a forma prescrita no contrato e deverá serrespeitada. Entender de maneira diversa, ou seja, devolver ao consumi<strong>do</strong>ro valor total antecipa<strong>do</strong> e deixar a empresa arrendante com o produtoda alienação seria por demais perverso, vez que, lembre-se, a empresainvestiu (pagan<strong>do</strong> à vende<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> veículo) o valor <strong>do</strong> bem na data <strong>do</strong> início<strong>do</strong> contrato e, por isso, não poderia recebê-lo, muitos meses depois,totalmente deprecia<strong>do</strong> (pelo tempo).Explica-se a questão através <strong>do</strong> seguinte exemplo (com valores reaisretira<strong>do</strong>s da Tabela FIPE 49 ): Em abril de 2006, Caio celebrou contrato deleasing com o Banco XYZ, ten<strong>do</strong> como objeto um veículo Volkswagen GolCity, Mi, TotalFlex, zero Km. Para tanto, o Banco pagou à loja de veículos opreço <strong>do</strong> bem, R$ 26.180,00, e o arrendatário comprometeu-se a pagar 60parcelas mensais acompanhadas da antecipação <strong>do</strong> VRG (60 vezes 1/60<strong>do</strong> valor <strong>do</strong> veículo, ou seja, R$ 436,33). Caio cumpriu o contrato e, aolongo <strong>do</strong>s 5 anos, pagou todas as parcelas, mas, ao término <strong>do</strong> contrato,em abril de 2011, optou por devolver o veículo à empresa e receber devolta to<strong>do</strong>s os valores pagos pela antecipação <strong>do</strong> VRG. Ocorre que, emabril de 2011, o veículo não vale mais o valor pago pela Arrendante e simR$ 18.476,00. Some-se a isso o fato (notório) de que nos leilões os veículossofrem depreciação de 20 a 40%. Assim, utilizan<strong>do</strong>-se uma perdamédia de 30%, o valor auferi<strong>do</strong> na venda seria de R$ 12.933,20, ou seja,bem distante <strong>do</strong> investimento inicial.INVESTIMENTORECUPERADOSValor <strong>do</strong> veículo (valor <strong>do</strong> VRG) R$ 26.180,00VRG pago durante o contrato R$ 26.180,00 (60 x R$ 436,33)Valor recupera<strong>do</strong> (leilão <strong>do</strong> carro) R$ 12.933,20RESULTADO DA OPERAÇÃO (-) R$ 13.246,80E, por fim, não se diga que tal depreciação é calculada como custo<strong>do</strong> investimento e inserida no valor das parcelas da locação pois, como seacentua<strong>do</strong>s. No presente caso, a sentença determinou, de plano, a devolução <strong>do</strong> VRG ao arrendatário diante darescisão <strong>do</strong> contrato, entendimento este que não pode prosperar sem agredir a própria natureza <strong>do</strong> instituto, o qualvisa, repita-se, a garantir ao arrendante uma quantia mínima por eventual desvalorização ou desgaste <strong>do</strong> bem. (...)Conforme se vê, somente com a venda efetiva <strong>do</strong> veículo a terceiros, por preço superior ao VRG pactua<strong>do</strong>, é quepoderá auferir o arrendatário algum crédito pela soma paga, antecipadamente, a título de VRG.”49 http://www.fipe.org.br/web/index.asp?aspx=/web/indices/veiculos.232R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 215-239, jul.-set. 2011


sabe, além <strong>do</strong> baixo custo (talvez uma das operações com menores taxas<strong>do</strong> merca<strong>do</strong>) aquelas remuneram, tão somente, o custo (financeiro) <strong>do</strong>empréstimo, vez que se trata de leasing financeiro 50 .6.3.2. Contrato resolvi<strong>do</strong> antes <strong>do</strong> prazo estipula<strong>do</strong>Por vezes, o arrendatário não consegue cumprir sua obrigação contratualaté o fim, tornan<strong>do</strong>-se inadimplente ou, mesmo estan<strong>do</strong> em diacom as parcelas, decide encerrar o contrato e devolver o veículo ao arrenda<strong>do</strong>rantes <strong>do</strong> prazo.Quan<strong>do</strong> isso ocorre, na mesma forma <strong>do</strong> que foi exposto no itemanterior, o bem é reintegra<strong>do</strong> ao arrendante, que deverá vendê-lo a quemoferecer o melhor preço (leilão) e, então, após a transformação <strong>do</strong> bemrecupera<strong>do</strong> em dinheiro, passa-se à fase da “prestação das contas” com ointuito de averiguar-se a existência de crédito ou dívida <strong>do</strong> arrendatário.“... Não tem amparo legal algum, determinar, na ação de reintegraçãode posse, que seja feita a devolução antecipada <strong>do</strong>VRG, sen<strong>do</strong> certo que, reintegrada a arrenda<strong>do</strong>ra na posse<strong>do</strong> bem, deve ela providenciar a venda <strong>do</strong> mesmo no merca<strong>do</strong>.A partir daí é que se vai cuidar da devolução <strong>do</strong> VRG, tu<strong>do</strong>na dependência <strong>do</strong> sal<strong>do</strong>. A devolução determinada no cursoda ação de reintegração, sem mais nem menos, contamina aprópria estrutura <strong>do</strong> contrato de arrendamento mercantil...”(STJ – 3 a Turma, REsp. nº 294.779, Rel. Min. Carlos AlbertoMenezes Direito, j. 04.02.2002)Nesse caso, considera<strong>do</strong> o aspecto econômico, se de um la<strong>do</strong> oveículo ainda possui valor maior <strong>do</strong> que o previsto ao término <strong>do</strong> contrato(pelo menor interregno entre aquisição e devolução), de outro, o valor<strong>do</strong> VRG não terá si<strong>do</strong> quita<strong>do</strong>, justamente por existir parcelas em aberto.Surgem, então, situações absurdas a justificar a máxima cautela na análiseda questão.Utilize-se, como exemplo, precedente proveniente de ação tramitadano XXVII JEC da Comarca da Capital <strong>do</strong> Rio de Janeiro 51 , em queo Autor celebrara, em 16 de março de 2010, um contrato de leasing de50 Nesse senti<strong>do</strong>, vide o RE 592.905/SC, Rel. Min. Eros Grau.51 processo nº 0083449-62.2011.8.19.0001.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 215-239, jul.-set. 2011 233


um veículo avalia<strong>do</strong> em R$ 33.300,00 52 (valor pago à loja) cujo preço foiparcela<strong>do</strong> da seguinte forma: (i) R$ 8.000,00 de adiantamento <strong>do</strong> VRG; (ii)60 parcelas mensais de R$ 491,83 e, (iii) 60 parcelas mensais de R$ 421,66a título de adiantamento <strong>do</strong> VRG. Nesse caso, o VRG, semelhante ao valor<strong>do</strong> veículo, foi fixa<strong>do</strong> em R$ 33.300,00 (soma <strong>do</strong>s itens i e iii). Alegan<strong>do</strong>problemas particulares, o consumi<strong>do</strong>r pagou apenas a primeira parcela esomente veio a devolver o veículo em janeiro de 2010, ten<strong>do</strong> o mesmo si<strong>do</strong>leiloa<strong>do</strong> e, em razão <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> no qual se encontrava 53 , alcançou apenaso valor de R$ 16.971,91 54 .A conta, simplificada pela ausência das atualizações monetárias, éa seguinte:INVESTIMENTORECUPERADOSValor <strong>do</strong> Veículo = VRG (vide contrato) R$ 33.300,00VRG pago à vista (vide contrato) R$ 8.000,00VRG pago durante o contrato R$ 421,66 (1 x R$ 421,66)Parcela paga durante o contrato R$ 491,83 (1 x R$ 491,83)Valor recupera<strong>do</strong> com leilão <strong>do</strong> carro R$ 16.971,91RESULTADO DA OPERAÇÃO (-) R$ 7.414,60Mas, assim como se verifica usualmente nas ações promovidas emface das empresas arrendantes, o arrendatário pretendia desmontar a estrutura<strong>do</strong> contrato assina<strong>do</strong> e receber de volta os valores pagos a títulode adiantamento <strong>do</strong> VRG. Nesse caso a conta seria a seguinte:INVESTIMENTORECUPERADOSValor <strong>do</strong> veículo (vide contrato) R$ 33.300,00Parcela paga durante o contrato R$ 491,83 (1 x R$ 491,83)Valor recupera<strong>do</strong> com leilão <strong>do</strong> carro R$ 16.971,91RESULTADO DA OPERAÇÃO (-) R$ 15.836,26E, como o valor recupera<strong>do</strong> no leilão <strong>do</strong> carro foi pago pelo novoadquirente, forçosamente se conclui que, caso fosse a<strong>do</strong>tada a absurdatese de devolução <strong>do</strong> VRG, pelo simples fato <strong>do</strong> não exercício da opçãode compra, o consumi<strong>do</strong>r teria pago a bagatela de R$ 491,83 para ficar nouso e posse <strong>do</strong> veículo durante longos 10 meses, equivalente a menos deR$ 50,00 mensais como despesa pelo uso <strong>do</strong> carro.52 Pela Tabela FIPE, o veículo valia, na época, R$ 32.577,00.53 Amassa<strong>do</strong> na porta e com arranhões no para-choque.54 Pela Tabela FIPE, o veículo valia, na época, R$ 30.814,00. Com a usual desvalorização de 40%, chega-se ao valorde R$ 18.488,00.234R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 215-239, jul.-set. 2011


Talvez, pela frieza <strong>do</strong>s números, se consiga demonstrar que, conformejá reconheci<strong>do</strong> de mo<strong>do</strong> expresso pelo E. STJ 55 , a natureza <strong>do</strong> VRG nãoé exclusivamente de antecipação da opção de compra <strong>do</strong> bem, ostentan<strong>do</strong>– de acor<strong>do</strong> com a destinação <strong>do</strong> veículo - natureza diversa, de garantiade recebimento de um valor mínimo para evitar significativo prejuízo daarrenda<strong>do</strong>ra com a operação.6.4. O VRG como forma de pagamento (compensação) <strong>do</strong> sal<strong>do</strong> deve<strong>do</strong>rSe de um la<strong>do</strong> há enorme controvérsia e dificuldade para seentender e aceitar que o VRG possui função garanti<strong>do</strong>ra, de outro, não háqualquer dúvida em classificá-lo como forma de pagamento, lembran<strong>do</strong>-seque, para a maioria <strong>do</strong>s opera<strong>do</strong>res <strong>do</strong> direito, o VRG seria sinônimode opção de compra (numa clara confusão conceitual com o VR – ValorResidual 56 ).Assim, quan<strong>do</strong> o contrato não chega ao seu fim em razão de descumprimentoda obrigação pelo arrendatário, geran<strong>do</strong> débitos referentesàs parcelas mensais, tal valor (crédito da empresa arrenda<strong>do</strong>ra) deve serabati<strong>do</strong> <strong>do</strong> montante arrecada<strong>do</strong> a título de VRG.Tal entendimento encontra amparo em pacificada jurispridência <strong>do</strong> STJ.CIVIL E PROCESSUAL. RECURSO ESPECIAL. AGRAVO. ARREN-DAMENTO MERCANTIL. RESOLUÇÃO DO CONTRATO. VRG.DEVOLUÇÃO OU COMPENSAÇÃO.POSSIBILIDADE. PRECE-DENTES. IMPROVIMENTO. I. Com a resolução <strong>do</strong> contrato ea reintegração <strong>do</strong> bem na posse da arrenda<strong>do</strong>ra, possível adevolução <strong>do</strong>s valores pagos a título de VRG à arrendatária55 “Após o término <strong>do</strong> pagamento das parcelas, tem o arrendatário a opção de comprar o bem, ten<strong>do</strong> que pagaro Valor Residual previamente estabeleci<strong>do</strong>. Se ele não quiser optar pela compra, nem renovar o contrato, devedevolver o bem ao arrenda<strong>do</strong>r, que terá como uma garantia mínima por parte <strong>do</strong> arrendatário o Valor ResidualGaranti<strong>do</strong>, na venda <strong>do</strong> bem a um terceiro. Assim, se o bem for vendi<strong>do</strong> por um preço equivalente ao VRG, nadase tem a acertar; caso vendi<strong>do</strong> por um valor inferior, deverá o arrendatário pagar a diferença à arrenda<strong>do</strong>ra. (...) Aantecipação <strong>do</strong> pagamento <strong>do</strong> valor residual não implica necessariamente na opção de compra, haja vista que, se notérmino <strong>do</strong> contrato, o arrendatário não se interessar pela compra, por se encontrar o bem com tecnologia superadaou por qualquer outro motivo, terá a quantia devolvida ou não, de acor<strong>do</strong> com o preço que o bem for vendi<strong>do</strong> a umterceiro. Caso vendi<strong>do</strong> pelo mesmo valor <strong>do</strong> VRG ou por preço superior, será totalmente devolvi<strong>do</strong> ao arrendatárioo valor <strong>do</strong> VRG por ele antecipa<strong>do</strong>; caso vendi<strong>do</strong> por valor inferior, receberá o arrendatário apenas a diferença.” (STJ- Embargos de Divergência em REsp. 245.704/RS, Relator para acórdão Ministro Edson Vidigal, DJ de 29.9.2003)56 “Grande parte das dúvidas relativas ao VRG advém da confusão entre as hipóteses de “depósito de valor residual”e “opção de compra”. Trata-se, contu<strong>do</strong>, de figuras diversas, haven<strong>do</strong>, por igual, distinção funcional “interna”à figura denominada “valor residual”, distinção que opera caso o arrendatário opte pela aquisição <strong>do</strong> bem ou porsua devolução” (JUDITH MARTINS-COSTA, "Os contratos de leasing financeiro, a qualificação jurídica da parceladenominada Valor Residual Garanti<strong>do</strong> – VRG e a sua dupla função: complementação de preço e garantia", Revistade Direito Bancário e <strong>do</strong> Merca<strong>do</strong> de Capitais, São Paulo, n. 49, p. 132).R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 215-239, jul.-set. 2011 235


ou sua compensação com o débito remanescente. Precedentes.II. Agravo improvi<strong>do</strong>. (AgRg. no REsp. 601.175/SP,Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTA TURMA,julga<strong>do</strong> em 29.06.2006, DJ 04.09.2006 p. 274) 57 .6.5. Argumentação equivocada de ocorrer enriquecimento sem causa <strong>do</strong>s arrendantesnos casos de retenção <strong>do</strong> VRGÉ muito comum encontrar decisões que determinam a devolução<strong>do</strong> VRG escoradas na seguinte fundamentação:“... se o consumi<strong>do</strong>r pagava o VRG de mo<strong>do</strong> adianta<strong>do</strong> e, independentementeda motivação, não vai ficar com o veículo,que foi devolvi<strong>do</strong> ao Banco, nada mais natural que o recebimentodesses valores, sob pena de enriquecimento sem causada Instituição Financeira...Essa, talvez, seja a maior de todas as falácias. O argumento é simplistae não se sustenta diante da análise técnica <strong>do</strong> contrato e da corretaconfiguração da função <strong>do</strong> VRG.Como já se demonstrou, o VRG não possui a exclusiva função de“antecipação da opção de compra”, deven<strong>do</strong> ser, também, entendi<strong>do</strong>como garantia de valor mínimo a ser recebi<strong>do</strong> caso o arrendatário nãofique com o veículo 58 .As conclusões <strong>do</strong> parágrafo acima, somadas aos exemplos descritosnos itens 6.3.2 e 6.3.3, já servem para demonstrar que o enriquecimentoseria <strong>do</strong> arrendatário, uma vez que o menciona<strong>do</strong> argumento, em verdade,incentiva o descumprimento <strong>do</strong> contrato, ten<strong>do</strong> em vista que, após a retomada<strong>do</strong> bem, será, ainda, ao arrendatário restituí<strong>do</strong> o valor <strong>do</strong> VRG.Evidente, pois, que, durante o perío<strong>do</strong> de uso e gozo <strong>do</strong> bem, terá pagoapenas a parcela relativa à contraprestação, o que tornaria o leasing um57 Nesse mesmo senti<strong>do</strong>: TJRJ - 3 a Câm., Apel. 0004631-73.2008.8.19-0075, Rel. Des. Mario Assis Gonçalves,j. 03.12.2010; TJRJ - 4 a Câm., Apel. 0001570-96.2006.8.19.0069, Rel. Des. Monica Tolle<strong>do</strong>, j. 13.10.2009; TJRJ - 9 aCâm., Apel. 0056405-30.2006.8.19.0038, Rel. Des. Roberto Abreu, j. 06.11.2009; TJRJ - 17 a Câm., Apel. 0002627-29.2009.8.19.0075, Rel. Des. Marcia Alvarenga, j. 13.05.2010; TJRJ - 18 a Câm., Apel. 0015847-20.2008.8.19.0208,Rel. Des. Leila Albuquerque, j. 08.09.2010; TJRJ - 19 a Câm., Apel. 0010024-74.2008.8.19.0205, Rel. Des. Denise LevyTredler, 31.08.2009.58 “O Valor Residual Garanti<strong>do</strong> – VRG não se confunde com Opção de Compra, ao contrário: pelo fato de a compraao final <strong>do</strong> contrato ter caráter opcional para o arrendatário, sen<strong>do</strong> portanto um evento incerto, o VRG é uma formade o arrendatário garantir ao arrendante que este, caso não seja exercida a referida opção, auferirá certa quantiamínima.” (JORGE R. G. CARDOSO, "Aspectos controverti<strong>do</strong>s <strong>do</strong> arrendamento mercantil". Cadernos de DireitoTributário e Finanças Públicas, n. 5, São Paulo: RT, ou-dez. 1993)236R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 215-239, jul.-set. 2011


contrato de aluguel sem prazo determina<strong>do</strong> e de custo bastante inferiorao pratica<strong>do</strong> por outro mo<strong>do</strong> de financiamento.E, sobre a demonstração de que não ocorre tal “lucro indevi<strong>do</strong>”,assim leciona ANTONIO FLÁVIO LEITE GALVÃO:“Apesar de não ser <strong>do</strong> gosto <strong>do</strong>s advoga<strong>do</strong>s e de, até mesmo,parecer não ser de boa técnica processual, não há como deixarde se fazer essa demonstração em Juízo, caso a caso, sob penade o arrendamento mercantil financeiro ser visto como umaautêntica “caixa preta” que, intencionalmente, não é abertapara encobrir indevi<strong>do</strong> lucro da empresa de leasing que, duplamente,se beneficia da anormal situação de rescisão contratual,ou seja, com a reintegração de posse (retoman<strong>do</strong> o bem)e com a apropriação <strong>do</strong> VRG antecipa<strong>do</strong> (não o devolven<strong>do</strong>),quan<strong>do</strong>, no mais das vezes, inexiste, na realidade, tal lucro,haven<strong>do</strong> sim, prejuízo com o inadimplemento <strong>do</strong> contrato, eisque, sequer o valor de custo/aquisição <strong>do</strong> bem, acresci<strong>do</strong> dascontraprestações mensais não pagas até a data da reintegraçãode posse e das despesas, é recupera<strong>do</strong>.”Outro argumento bastante explora<strong>do</strong> pelos arrendatários é o deque o veículo “voltou ao patrimônio <strong>do</strong> arrenda<strong>do</strong>r”. Este, com o devi<strong>do</strong>respeito àqueles que o utilizam, não resiste a um singelo raciocínio, pois,a uma, o veículo nunca saíra <strong>do</strong> patrimônio da Instituição Financeira, quefigurava como proprietária-loca<strong>do</strong>ra e, a duas, o veículo obrigatoriamentedeixará o patrimônio da arrenda<strong>do</strong>ra por causa da obrigatoriedadede levá-lo a leilão, para posterior “prestação de contas”.O que não pode ser desconsidera<strong>do</strong> – sob pena de equivocada inversãode papéis - é o fato de que a Instituição Financeira cumpre comsua obrigação, de forma integral, no início <strong>do</strong> contrato, quan<strong>do</strong> adquire(pagan<strong>do</strong> o preço à revende<strong>do</strong>ra) o veículo escolhi<strong>do</strong> pelo arrendatárioe, que o problema referente ao VRG somente se dá quan<strong>do</strong> este rompe oacorda<strong>do</strong> e deixa de cumprir a sua única obrigação: pagar as parcelas <strong>do</strong>contrato até o seu término.SÍNTESE E PROPOSIÇÕESTen<strong>do</strong> passa<strong>do</strong> pelas questões históricas, conceito, natureza jurídica,formas de efetuação, fases, estrutura de preço e, ainda, analisa<strong>do</strong> asquestões mais polêmicas acerca <strong>do</strong> VRG, finaliza-se o presente artigo comR. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 215-239, jul.-set. 2011 237


a proposição das seguintes VERDADES e MENTIRAS:MENTIRAS:A antecipação <strong>do</strong> pagamento de VRG desconfigura o contrato e otransforma em simples compra a prazo.A restituição <strong>do</strong>s valores adianta<strong>do</strong>s a título de VRG é consequêncialógica da devolução <strong>do</strong> veículo à empresa arrendante.A empresa arrendante enriquece imotivadamente quan<strong>do</strong> recebe devolta o veículo e não retorna os valores percebi<strong>do</strong>s como VRG adianta<strong>do</strong>.VERDADES:O VRG não se confunde com a opção de compra 59 .O VRG possui a natureza de garantia de retorno e se constitui emelemento ínsito ao equilíbrio <strong>do</strong> contrato, pois, se de um la<strong>do</strong> assegura aoarrenda<strong>do</strong>r o recebimento de um valor previamente ajusta<strong>do</strong> com o arrendatário,de outro dá a este último a garantia de que nada mais lhe serácobra<strong>do</strong>, ao final <strong>do</strong> contrato, acaso opte pela aquisição <strong>do</strong> bem.Eventual devolução de VRG somente poderá ser paga após alienaçãoe “acerto de contas”.São nulas as cláusulas que estipulam a “perda” <strong>do</strong>s valores pagos atítulo de VRG, deven<strong>do</strong> as referidas quantias servir como parte <strong>do</strong> pagamento<strong>do</strong> preço em caso de escolha (<strong>do</strong> arrendatário) pela aquisição <strong>do</strong>bem, ou, serem utilizadas no “acerto de contas”.É possível a compensação <strong>do</strong>s valores pagos a título de VRG com odébito remanescente <strong>do</strong> contrato”. 60CONCLUSÃOAnte o exposto e, diante das complexidades e peculiaridades <strong>do</strong> assunto,fica a certeza de que o mesmo vem sen<strong>do</strong> incorretamente analisa<strong>do</strong>por grande parte da jurisprudência pátria, que insiste em considerar59 A Res. 2.309/96 <strong>do</strong> BACEN, em seu art. 5º, inciso I, define o arrendamento mercantil financeiro como aquele emque “as contraprestações e demais pagamentos previstos no contrato, devi<strong>do</strong>s pela arrendatária, sejam normalmentesuficientes para que a arrenda<strong>do</strong>ra recupere o custo <strong>do</strong> bem arrenda<strong>do</strong> durante o prazo contratual da operação e, adicionalmente,obtenha um retorno sobre os recursos investi<strong>do</strong>s”. O inciso III <strong>do</strong> mesmo artigo estabelece que “o preçopara o exercício da opção de compra seja livremente pactua<strong>do</strong>, poden<strong>do</strong> ser, inclusive, o valor de merca<strong>do</strong> <strong>do</strong> bemarrenda<strong>do</strong>”. Já o art. 7º, inciso VII, letra a, <strong>do</strong> mesmo normativo deixa claro que é possível estabelecer “a previsão de aarrendatária pagar valor residual garanti<strong>do</strong> em qualquer momento durante a vigência <strong>do</strong> contrato, não caracterizan<strong>do</strong>o pagamento <strong>do</strong> valor residual garanti<strong>do</strong> o exercício da opção de compra”. Por fim, a portaria nº 564, de 1978, <strong>do</strong>Ministério da Fazenda, estabelece o Valor Residual Garanti<strong>do</strong> como “preço contratualmente estipula<strong>do</strong> para exercícioda opção de compra, ou valor contratualmente garanti<strong>do</strong> pela arrendatária como mínimo que será recebi<strong>do</strong> pela arrenda<strong>do</strong>rana venda a terceiros <strong>do</strong> bem arrenda<strong>do</strong>, na hipótese de não ser exercida a opção de compra”.60 AgRg no AG 960.513/RJ, Relator Ministro Fernan<strong>do</strong> Gonçalves, DJ de 9.12.2008.238R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 215-239, jul.-set. 2011


o VRG unicamente como opção de compra, olvidan<strong>do</strong>-se de que o arrendamentomercantil é financeiro e, justamente por isso, o VRG desempenhatambém função de garantia de retorno.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 215-239, jul.-set. 2011 239


Tag along:Uma análise à luz daEscola <strong>do</strong> Realismo CientíficoJorge LoboMestre em Direito da Empresa pela UFRJ, Doutor eLivre-Docente em Direito Comercial pela UERJ, Procura<strong>do</strong>rde Justiça (aposenta<strong>do</strong>) MP-RJ.“Não é desde o início que os Deuses revelam tu<strong>do</strong> aos mortais.Mas, com o correr <strong>do</strong> tempo, descobrimos, procuran<strong>do</strong>,o melhor”. (Xenófanes)I – O mito1. O tag along visa à proteção aos minoritários na alienação de controlede companhia aberta 1 .2. Este é o mito; a realidade, todavia, é outra, como veremos aofinal; antes, porém, cumpre (a) dissertar sobre o ágio, o tag along e a OPA,(b) recordar a profunda e interminável divergência a respeito <strong>do</strong> direitoao ágio e a propósito <strong>do</strong> tag along na <strong>do</strong>utrina, na jurisprudência e naslegislações pátria e alienígena, e (c) esclarecer que sigo, neste estu<strong>do</strong>, aEscola <strong>do</strong> Racionalismo Científico e perfilho a lição <strong>do</strong> maior filósofo daciência <strong>do</strong> século XX, Sir. Karl Popper, que ensinou: “Só há um elementode racionalidade nas tentativas de conhecer o mun<strong>do</strong>: o exame crítico dasteorias. Elas, em si, são conjecturas. Não sabemos, apenas conjecturamos.Se me perguntassem: ‘Como você sabe? Não sei, só conjecturo. Se vocêsestiverem interessa<strong>do</strong>s em meu problema, ficarei muito contente se criticaremminha conjectura; se me oferecerem contrapropostas, tentareicriticá-las’” 2 .1 Tratarei, apenas, <strong>do</strong> tag along na cessão e transferência de controle majoritário nas companhias abertas. Sobrea alienação de controle minoritário, leia-se o estu<strong>do</strong> “Transferência de controle nas companhias sem controla<strong>do</strong>rmajoritário”, de Eduar<strong>do</strong> Secche Munhoz, in Poder de Controle e outros temas de direito societário e merca<strong>do</strong>de capitais, coordena<strong>do</strong> por Rodrigo R.M. de Castro e Luiz A.N.M. Azeve<strong>do</strong>, 1ª. ed., São Paulo: Quartier Latin, p.317 e segs.2 Textos Escolhi<strong>do</strong>s Popper, Ed. PUC Rio, 2010, 1ª ed., p. 30.240R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 240-260, jul.-set. 2011


II – Noções fundamentaisA – Ágio3. A LSA trata <strong>do</strong> ágio no art. 13, § 2º, que disciplina a emissão deações nominativas de companhias abertas e fechadas com ágio, fixan<strong>do</strong>,taxativamente, a sua destinação: o montante total <strong>do</strong> ágio nas emissõesde ações constituirá reserva de capital (art. 182), e, também, no artigo254-A, que regula a OPA obrigatória, eis que pressupõe haver embuti<strong>do</strong>no preço das ações de controle um ágio ou prêmio. Neste trabalho, voudissertar apenas sobre o ágio na OPA obrigatória.4. Nas companhias abertas com ações negociadas no merca<strong>do</strong>de valores mobiliários, o preço das ações ordinárias de propriedade <strong>do</strong>sminoritários e das ações preferenciais é fixa<strong>do</strong> nos pregões diários daBMF&BOVESPA, e por isso se diz que ele corresponde ao valor bursátil oude merca<strong>do</strong> da ação. 35. O preço das ações ordinárias integrantes <strong>do</strong> bloco de controle,entretanto, é estabeleci<strong>do</strong> com base no valor econômico da ação,calcula<strong>do</strong>, em geral, em função das perspectivas de rentabilidade dacompanhia 4 .6. Note-se, porém, que, quan<strong>do</strong> se trata de alienação <strong>do</strong> controleacionário de companhia aberta, ao preço das ações <strong>do</strong>s controla<strong>do</strong>res,adiciona-se, em regra 5 , um ágio ou sobrevalor ou sobrepreço ou prêmio(de controle), que o adquirente se dispõe a pagar para passar a deter amaioria <strong>do</strong>s votos nas deliberações da assembleia geral e o poder de elegera maioria <strong>do</strong>s administra<strong>do</strong>res e de gerir os negócios sociais, o quelevou o emérito Fábio Konder Comparato a lecionar: “... o que se transferenuma cessão de controle não é um bloco de ações, e sim o poder de <strong>do</strong>minaçãoe disposição de uma empresa.” 63 “Indica<strong>do</strong>r usa<strong>do</strong> para medir o valor de merca<strong>do</strong> de to<strong>do</strong>s os ativos cota<strong>do</strong>s em uma determinada bolsa de valores.É calcula<strong>do</strong> soman<strong>do</strong>-se o valor de merca<strong>do</strong> de cada ação, obti<strong>do</strong> como o resulta<strong>do</strong> da multiplicação <strong>do</strong> número deações pela cotação de fechamento no perío<strong>do</strong> deseja<strong>do</strong>. No caso da BOVESPA, a bolsa paulista divulga informaçõescom periodicidade diária, semanal e mensal, tanto em reais como em dólares norte-americanos”. (www.igf.com.br/aprende/glossario/glo-Resp,aspx?id=549 – Glossário Financeiro <strong>do</strong> IGF {intelect gerenciamento financeiro}).4 A propósito das noções de valor patrimonial, valor de merca<strong>do</strong> e valor econômico da companhia, leia-se o excelenteestu<strong>do</strong> “Reflexões sobre o direito de recesso na LSA”, de autoria <strong>do</strong> Prof. Francisco Antunes Maciel Müssnich,in Reforma da LSA, por mim coordena<strong>do</strong>, Rio de Janeiro, Forense, 2002, p. 287 e segs.5 Há séria discussão se a venda de controle sem ágio gera o direito de saída conjunta conforme bem exposto porMarcos Andrey de Sousa, “O direito de saída conjunta e os preferencialistas”, in Sociedade Anônima, coordena<strong>do</strong>por Rodrigo R. M. de Castro e Leandro S. de Aragão, Quartier Latin, 1ª ed., p. 285/286.6 O Poder de Controle na Sociedade Anônima, São Paulo, Saraiva, 1983, 3ª. ed., p. 226.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 240-260, jul.-set. 2011 241


B – Tag along7. No Brasil, os minoritários de companhias abertas 7 têm o direitode saída conjunta ou simultânea (tag-along rights ou co-sale rights) 8 e odireito de receber 80% (oitenta por cento) <strong>do</strong> valor pago por ação comdireito a voto integrante <strong>do</strong> bloco de controle por força da norma jurídica<strong>do</strong> art. 254-A da LSA.C – OPA8. Há duas espécies de oferta pública de aquisição de ações (OPA):a OPA obrigatória, imposta pelos arts. 254-A da LSA e 2º, III, da InstruçãoCVM nº 361, de 2002, que garante aos minoritários o tag along 9 , e a OPAvoluntária, prevista nos arts. 257 da LSA e 2º, V, da Instrução CVM nº 361,de 2002, que visa à tomada hostil ou contra a vontade <strong>do</strong>s controla<strong>do</strong>res<strong>do</strong> coman<strong>do</strong> de companhia aberta.III – Direito ao ágio9. No país e no exterior, três correntes de opinião se formaram acerca<strong>do</strong> beneficiário ou cre<strong>do</strong>r <strong>do</strong> ágio: uma proclama que o ágio pertenceexclusivamente aos controla<strong>do</strong>res; outra, que o ágio deve ser partilha<strong>do</strong>entre controla<strong>do</strong>res e minoritários; a terceira, que o ágio deve ser ratea<strong>do</strong>entre to<strong>do</strong>s os acionistas da companhia aberta.A) Direito ao ágio na <strong>do</strong>utrina(a) O ágio pertence exclusivamente aos controla<strong>do</strong>res10. Alfre<strong>do</strong> Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira declararam, apropósito <strong>do</strong> valor econômico <strong>do</strong> bloco de controle de companhia aberta:7 Não se justifica a distinção feita pelo art. 254-A da LSA entre companhias abertas e fechadas — além da odiosadistinção entre minoritários e preferencialistas —, eis que as fechadas são as que mais necessitam <strong>do</strong> tag alongdevi<strong>do</strong> à absoluta falta de liquidez de suas ações, conforme ressalta<strong>do</strong> na crítica contundente de Mauro RodriguesPentea<strong>do</strong>, in “Apontamentos sobre a alienação de controle de companhias abertas”, RDM, 1989, out.-dez., nº 76,p. 17 e segs.8 “Tag-along or co-sale rights — the right of an investor to require other shareholders (usually founders or majorityshareholders) who desire to sell their shares to a third party to require, as a condition to such sale, the thirdparty to also purchase the investors shares for the same price per share.” (Kenneth J. Lebrun, Penn Law “Universityof Pennsylvania Law School” – http://www.law.upenn.edu/journals/jil/articles/volume 23/issuez/lebrun23u.pa.int´lecon.l.213(2002)-PDF#SEARCH=%22tag%22).9 Cfr. Roberta Nioac Pra<strong>do</strong>, in Oferta Pública de Ações Obrigatória nas S.A., São Paulo, Quartier Latin, 2005, p. 96 esegs.; o meu livro Direitos <strong>do</strong>s Acionistas, São Paulo, Campus, 2011, p. 26 e segs., e Carlos Augusto da Silveira Lobo,“Alienação de Controle de Companhia Aberta”, in Direito das Companhias, coordena<strong>do</strong>res Alfre<strong>do</strong> Lamy Filho eJ.L.Bulhões Pedreira, Forense, 2009, p. 1998 e segs.242R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 240-260, jul.-set. 2011


(1º) “... toda economia de merca<strong>do</strong> atribui valor econômico aocontrole da companhia, independentemente <strong>do</strong> valor unitário das ações,que o asseguram”;(2º) “... o valor das ações resulta <strong>do</strong> direito que confere de participaçãonos lucros e no acervo líqui<strong>do</strong> da companhia, enquanto que o controledecorre <strong>do</strong> poder de determinar e definir suas políticas...”;(3º) “o Anteprojeto reconhece a realidade <strong>do</strong> poder <strong>do</strong> acionistacontrola<strong>do</strong>r para atribuir-lhe responsabilidades próprias, <strong>do</strong>s quais nãoparticipam os acionistas minoritários”, e,(4º) “... seria, pois, incoerente se se, pretendesse, para efeitos detransferência desse poder, negar a sua existência e proibir o merca<strong>do</strong> delhe atribuir valor econômico.” 1011. Fábio Konder Comparato 11 , embora admitin<strong>do</strong> que, na vendadas ações de controle, a tendência <strong>do</strong>s países desenvolvi<strong>do</strong>s é garantirtratamento equitativo aos acionistas de igual categoria:(1º) declarou-se contrário à partilha <strong>do</strong> ágio entre to<strong>do</strong>s os acionistas,(2º) pôs em dúvida as causas que legitimariam os não controla<strong>do</strong>res“pretender essa igualdade de status com os titulares <strong>do</strong> controle, se, àqueles,não se atribuem, em estrita lógica, os mesmos deveres e responsabilidadesinerentes ao exercício <strong>do</strong> poder de coman<strong>do</strong> na empresa” 12 , e,(3º) propôs que a lei garantisse aos não controla<strong>do</strong>res o direito de recessopelo valor contábil de suas ações e a criação de normas para reprimiro insider trading pratica<strong>do</strong> por diretores ou controla<strong>do</strong>res da companhia epessoas a eles ligadas 13 .12. Luiz Leonar<strong>do</strong> Cantidiano assseverou que, em princípio, os minoritáriose preferencialistas não têm direito ao ágio, por isso não há falarem OPA, ressalvan<strong>do</strong>, entretanto, que será indispensável a OPA se a transferência<strong>do</strong> controle objetivar a extinção da companhia através de cisãototal, fusão ou incorporação.” 1410 “Fundamentos da Reforma das S/A”, AEDE- SBERJ, Rio de Janeiro, 1976, 1ª ed., p. 22-23, apud Mauro RodriguesPentea<strong>do</strong>, “Apontamentos sobre a alienação <strong>do</strong> controle de companhias abertas”, RDM, ano XXVIII, 1989,v. 76, p. 17.11 O Poder de Controle na Sociedade Anônima, São Paulo, Ed. Revista <strong>do</strong>s Tribunais, 1976, p. 253-258.12 Ob. cit., p. 258.13 Idem, p. 261.14 “Alienação e aquisição de controle”, RDM, ano XXIV, 1985, nº 59, p. 62.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 240-260, jul.-set. 2011 243


13. Roberta Nioac Pra<strong>do</strong>, em sua primorosa monografia “OfertaPública de Ações Obrigatória nas SA”, afirmou: “...significan<strong>do</strong> a alienaçãouma simples mudança de controla<strong>do</strong>r, não enten<strong>do</strong> que deva haver ofertapública a nenhum acionista, seja ele ordinário ou preferencial. (...)” 1514. Nos EUA, prevalece a opinião de que somente os controla<strong>do</strong>resfazem jus ao prêmio de controle 16 , salvo se caracterizada fraude ou atosde má-fé, eis que, consoante Lewis D. Solomon e Alan R. Palmiter, “a regrageral é a de que os acionistas podem vender suas ações pelo preço queconseguirem, incluí<strong>do</strong> neste o prêmio não disponível aos outros acionistas.Os acionistas controla<strong>do</strong>res não precisam dividir esse prêmio” 17 .14.1. Para Easterbrook e Fischel, 18 os minoritários não se oporãoà alienação de controle se ela puder levar a uma administração maiseficiente, capaz de tornar a companhia mais rentável e suas ações maisvalorizadas.14.2. Steven L. Emanuel, em profunda análise <strong>do</strong> tema, destaca quea situação de poder ostentada pelo controla<strong>do</strong>r na companhia - e só porele - tem valor econômico e que os controla<strong>do</strong>res hesitariam na alienaçãocaso não recebessem nenhum prêmio, já que conta, com vantagens nãodesfrutadas pelos minoritários, advertin<strong>do</strong> que há exceções ao direito <strong>do</strong>scontrola<strong>do</strong>res de vender suas ações livremente 19 , como, v.g., (a) exceçãode pilhagem (the “looting” exception); (b) exceção de venda de voto (the“sale of vote” exception) e (c) desvio de uma oportunidade coletiva(“diversion of collective opportunity). 20(b) O ágio deve ser partilha<strong>do</strong> entre controla<strong>do</strong>res e minoritários15. Arnol<strong>do</strong> Wald propugnou: “... a oferta pública prevista no art.254, embora represente um ônus para o adquirente <strong>do</strong> controle, pode sersaudável por representar o veículo através <strong>do</strong> qual o valor <strong>do</strong> controle édistribuí<strong>do</strong> entre to<strong>do</strong>s os acionistas com direito a voto.” 2115 P. 10516 Robert W. Hamilton, The Law of Corporations, St. Paul, Minnesota, 1987, p. 359, apud Osmar Brina Corrêa Lima,O acionista minoritário no direito brasileiro, Rio de Janeiro, Forense, 1994, p. 79.17 Corporations. Examples and Explanations, Aspen Law & Business, Second Edition, 1994, p. 411-420.18 Corporate Control Transactions, 91 Yale L. J. 737, 1982, apud Lewis D. Solomon e Alan R. Palmiter, ob cit., p.411-420.19 Corporations, NY, Emanuel Publishing Corp., 1997, 3 rd Edition, p. 240-249.20 Ob. cit., p. 245.21 “A proteção <strong>do</strong>s acionistas minoritários na alienação <strong>do</strong> controle de companhias abertas”, Revista da CVM, 4/2,n. 13, 1986, apud Mauro Rodrigues Pentea<strong>do</strong>, ob. cit.. p. 19.244R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 240-260, jul.-set. 2011


16. Egberto Lacerda Teixeira e José Alexandre Tavares Guerreiroponderaram: “... as transferências de controle, envolven<strong>do</strong> vultosos ágiospagos apenas aos controla<strong>do</strong>res, podem ainda mais desestimular o investimentoacionário. Daí entendermos que a solução a<strong>do</strong>tada na lei valecomo medida pragmática, ten<strong>do</strong> em vista as condições <strong>do</strong> momento históricoe as características peculiares da conjuntura, justifican<strong>do</strong>-se em faceda experiência verificada em anos recentes em nosso país.” 2217. Modesto Carvalhosa advertiu: “... o acionista minoritário, emboranormalmente não tome a iniciativa de promover a capitalização dasociedade, empresta seu esforço para tal mister; ademais, esse tipo deacionista experimenta os efeitos da política de autocapitalização da companhia,usualmente realizada pelo controla<strong>do</strong>r. É, portanto, copartícipeda valorização patrimonial da empresa, merecen<strong>do</strong> portanto tratamentoigualitário, quan<strong>do</strong> da alienação de seu controle.” 2318. Segun<strong>do</strong> Guilherme Döring Cunha Pereira, o City Code on Takeoversand Mergers inglês deu um tratamento pioneiro às ofertas públicaspara aquisição de controle de uma companhia, fixan<strong>do</strong> como ideia fundamentalgarantir as mesmas condições oferecidas ao alienante aos acionistasde classes idênticas 24 .(c) O ágio deve ser ratea<strong>do</strong> entre to<strong>do</strong>s os acionistas19. Waldirio Bulgarelli ensinou: “... o não controla<strong>do</strong>r, que não recebeudividen<strong>do</strong>s durante muito tempo, pela política imposta pelo controla<strong>do</strong>rde fortalecer a empresa, tem direito a reclamar quan<strong>do</strong> o controla<strong>do</strong>r,aproveitan<strong>do</strong>-se <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s dessa mesma política, vende comágio astronômico as suas ações de controle” 25 , observan<strong>do</strong>, ainda, que,“ao vender o controle (...) com grandes lucros, está-se venden<strong>do</strong>, subjacentemente,os intangíveis e mais propriamente o aviamento da empresa” 26 ,para concluir que “o certo será a distribuição, ao menos <strong>do</strong> ágio, entreto<strong>do</strong>s que contribuíram para o fortalecimento da empresa.” 2722 Das Sociedades Anônimas no Direito Brasileiro, São Paulo, Ed. Bushatsky, 1979, 1ª ed., v.2, p. 743.23 Apud Mauro Rodrigues Pentea<strong>do</strong>, loc. cit., fazen<strong>do</strong> referência a “Oferta Pública de Aquisição de Ações”, tese,São Paulo, 1978, p. 142-143.24 John H. Farrar, "Company Law", Londres, Butterworths, 1985, p. 521, apud Guilherme Döring Cunha Pereira,Alienação <strong>do</strong> poder de controle acionário, São Paulo, Saraiva, 1995, p. 135.25 Regime jurídico da proteção às minorias nas S/A, Rio de Janeiro, Renovar, 1998, p.158.26 Idem, p.159.27 Idem, p.160.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 240-260, jul.-set. 2011 245


20. Nélson Cândi<strong>do</strong> Motta advogou: “... admitir que as ações preferenciais,porque não votam, tenham menos direitos — salvos os direitospolíticos — <strong>do</strong> que as ações ordinárias equivale a reconhecer que o direitode voto possa ser causa de desigualdade entre acionistas, quer em relaçãoao patrimônio da sociedade, quer em relação ao tratamento que alei manda dispensar a to<strong>do</strong>s, indistintamente, nos casos de alienação decontrole de companhia aberta.” 2821. Leslie Amen<strong>do</strong>lara declarou que, se os acionistas minoritáriostêm o direito de participar <strong>do</strong> “prêmio de controle” porque “haviam contribuí<strong>do</strong>com a formação <strong>do</strong> capital e investi<strong>do</strong> seus recursos nos negócios” 29 ,esse direito deve ser estendi<strong>do</strong> aos preferencialistas, já que eles tambémparticiparam da integralização <strong>do</strong> capital social.22. Norma Parente repudiou, com veemência, a redação e o espírito<strong>do</strong> art. 254-A da LSA: “... é lamentável que esse direito não tenha si<strong>do</strong>estendi<strong>do</strong> ao acionista preferencial. Em termos patrimoniais, a sua contribuiçãotem o mesmo valor que a <strong>do</strong>s demais acionistas. É injusto que odireito de vender em conjunto com o controla<strong>do</strong>r não tenha si<strong>do</strong> outorga<strong>do</strong>.Penso que esse direito deveria ter si<strong>do</strong> partilha<strong>do</strong> entre minoritáriosordinários e preferencialistas.” 3023. Berle e Means sustentaram que o controle é um bem social, porisso o valor pago como ágio pelo bloco de controle era propriedade deto<strong>do</strong>s os acionistas da empresa e, por isso, deveria ser partilha<strong>do</strong> entreto<strong>do</strong>s os acionistas da companhia. 3124. William D. Andrews frisou que to<strong>do</strong>s os acionistas com ações deespécie e classe iguais devem ter oportunidade de aliená-las igualmente ede partilhar o premium proporcionalmente à sua participação no capital,por ser o poder de controle um bem da companhia. 3228“Alienação de controle de instituições financeiras. Acionistas minoritários. Notas para uma interpretação sistemáticada Lei das S.A.”, RDM, ano XXI, 1982, v. 46, p. 41.29 Os direitos <strong>do</strong>s acionistas minoritários: com alterações da Lei 9.457/97, São Paulo, Editora STS, 1998, p. 105.30 “Principais Inovações Introduzidas pela Lei 10.303, de 31 de outubro de 2001, à Lei de Sociedades por Ações”,in Reforma da Lei das Sociedades Anônimas, cit., p. 39.31 Apud Roberta Nioac Pra<strong>do</strong>, "Da obrigatoriedade por parte <strong>do</strong> adquirente <strong>do</strong> controle de sociedade por açõesde capital aberto de fazer simultânea oferta pública, em iguais condições, aos acionistas minoritários — art. 254 daLei 6.404/76 e Resolução CMN 401/76 — É efetivo mecanismo de proteção aos minoritários?" (RDM, Anexo XXXVI(Nova Série), abril/junho/1997, p. 98.32 “The stockholder’s right to equal opportunity in the sale of shares”, Harvard Law Review, 78/ 505-563, 1965, apudRoberta Nioac Pra<strong>do</strong>, art. cit., p. 98.246R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 240-260, jul.-set. 2011


25. André Tunc lecionou que os controla<strong>do</strong>res não merecem termais vantagens <strong>do</strong> que aqueles que possuem ações da mesma espéciee classe, 33 esclarecen<strong>do</strong> que o princípio de que um acionista é livre paravender suas ações pelo preço que lhe for ofereci<strong>do</strong> esbarra, no caso dacessão de controle, em um dever fiduciário, portanto, a venda de ações deum acionista que dirige a sociedade comporta a alienação de uma funçãoou, pelo menos, <strong>do</strong> poder de designar quem a exercerá, aduzin<strong>do</strong> que, sea venda for por preço maior que o da bolsa, por compreender a funçãode coman<strong>do</strong>, haverá, então, um proveito ilícito, que deve ser restituí<strong>do</strong> àsociedade. 34B – Direito ao ágio na jurisprudência(a) Direito ao ágio na jurisprudência brasileira26. No perío<strong>do</strong> de vigência <strong>do</strong> tratamento igualitário previsto norevoga<strong>do</strong> art. 254 da LSA, a 1 a Turma <strong>do</strong> Tribunal Federal de Recursos, aojulgar a Apelação Cível nº 140.587-RJ, decidiu condenar a CVM a pagar aosminoritários valor equivalente à diferença entre o valor por eles obti<strong>do</strong> navenda de suas ações e aquele consegui<strong>do</strong> pelos controla<strong>do</strong>res 35 .27. A Primeira Turma <strong>do</strong> Superior Tribunal de Justiça, ao julgar oRecurso Especial nº 2.276 – RJ, que tratava de participação ou não <strong>do</strong>spreferencialistas no prêmio de controle, concluiu que a oferta pública sóalcançava as ações com direito de voto, já que as preferenciais têm garantidasoutras vantagens, dispostas na Lei nº 6.404 36 .28. Ainda o Superior Tribunal de Justiça, numa decisão relativaà incorporação <strong>do</strong> Banco Financial de Mato Grosso, envolven<strong>do</strong> ofertapública prévia para aquisição de controle, estendeu-a aos acionistas semvoto, por considerar a natureza da sociedade (que necessitava de autorização)e entender que a aquisição <strong>do</strong> controle era uma providência preliminarà incorporação 37 .33 André Tunc, “Le droit américain des sociétés anonymes”, Économica: Paris, 1985, p. 158-159.34 Ob. cit., p. 156-158.35 Apelação Cível n.º 140.587 – Rio de Janeiro (Registro n.º 8.803.699) Relator: Min. Dias Trindade, in Nelson Eizirik.Sociedades Anônimas: jurisprudência, Rio de Janeiro, Renovar, 1996, p. 743-746.36 Recurso Especial n.º 2.276 – Rio de Janeiro (Registro n.º 90.0001659-2) Relator Min. Garcia Vieira, in NelsonEizirik, ob. cit., p. 367-372.37 José Edwal<strong>do</strong> Tavares Borba, Direito Societário, 6ª ed. rev. aum. e atual., Rio de Janeiro, Renovar, 2001,p. 475-476 (nota de rodapé 1), citan<strong>do</strong> matéria da Gazeta Mercantil de 21.10.93, p. 35.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 240-260, jul.-set. 2011 247


(b) Direito ao ágio na jurisprudência norte-americana29. William A. Klein e J. Mark Ramseyer, em seu ótimo livro “BusinessAssociations. Agency, Partnerships, and Corporations” 38 , citamdiversos casos de alienação de controle, envolven<strong>do</strong> pagamento deágio, julga<strong>do</strong>s pelas Cortes americanas, como Perlman v. Feldmann eFrandsen v. Jensen-Sundquist Agency, Inc 39 .(c) Direito ao ágio na jurisprudência francesa30. Em caso de alienação de controle por operação complexa,em duas etapas (aquisição de ações e posterior subscrição em aumentode capital), o Tribunal de grande instance de Paris, em julgamentode 20 de janeiro de 1988, decidiu que a oferta pública não era necessária,por considerar que, “se a obrigação de manter a cotação deve serobservada quan<strong>do</strong> a compra atinge uma quantidade de títulos suscetívelde dar o controle da sociedade emissora, este não é o caso quan<strong>do</strong>o controle é consegui<strong>do</strong> por uma operação complexa, cuja venda <strong>do</strong>stítulos corresponde apenas a um <strong>do</strong>s elementos, excluin<strong>do</strong> qualquertransferência de ações.” 40IV – Tag along nas legislações brasileira e estrangeira31. Após ser votada na Câmara <strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s e no Sena<strong>do</strong> Federal,a Subemenda Substitutiva às Emendas de Plenário e ao Primeiro Substitutivoao Projeto de Lei nº 3.115, de 1997, artigo 254-A, passou a dispor:“Art. 254-A. A alienação, direta ou indireta, <strong>do</strong> controle de companhiaaberta somente poderá ser contratada sob a condição, suspensiva ou resolutiva,de que o adquirente se obrigue a fazer oferta pública de aquisiçãodas ações com direito a voto de propriedade <strong>do</strong>s demais acionistasda companhia, de mo<strong>do</strong> a lhes assegurar o preço no mínimo igual a 80%(oitenta por cento) <strong>do</strong> valor pago por ação com direito a voto, integrante<strong>do</strong> bloco de controle.38 Westbury (New York), The Foundation Press, Inc., 1997, Third Edition, p. 644 e segs.39 No primeiro caso, a Corte decidiu que Feldmann, como acionista controla<strong>do</strong>r, não poderia apropriar-se sozinho<strong>do</strong> valor <strong>do</strong> ágio, pois a venda de ações resultou no sacrifício de elementos intangíveis da companhia. No segun<strong>do</strong>,o Tribunal não vislumbrou uma efetiva venda de ações na operação e sim a aquisição <strong>do</strong> First Bank of Grantsburg(controla<strong>do</strong>r da companhia).40 Revue Trimestrielle de Droit Commercial et de Droit Économique, Paris, Sirey, 1989, p. 80.248R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 240-260, jul.-set. 2011


31.1. Hoje, em decorrência de extensa regulamentação da BMF&BOVESPA, a situação <strong>do</strong> tag along no país é a seguinte 41 :TAG ALONG NO BRASILLSA: art. 254-ABM&FBOVESPA TradicionalBM&FBOVESPA Nível 1BM&FBOVESPA MaisBM&FBOVESPA Novo Merca<strong>do</strong>BM&FBOVESPA Nível 280% Minoritários80% Minoritários80% Minoritários100% Minoritários100% Minoritários100% Minoritários e PreferencialistasSite: http://www.bmfbovespa.com.br/empresas/pages/empresas_segmentos-de-listagem.aspA) Tag along na legislação estrangeira(a) Legislações que asseguram o tag along apenas aos minoritários31.2. Na Itália 42 e Argentina 43 são destinatários da oferta públicaobrigatória de ações os titulares de ações ordinárias com direito devoto, razão pela qual somente os minoritários têm garanti<strong>do</strong> o direitode saída conjunta.(b) Legislações que garantem o tag along a minoritários e preferencialistas32. Na Alemanha 44 , Inglaterra 45 , Portugal 46 e Espanha 47 , na linhapreconizada pela Diretiva 2004/25 <strong>do</strong> Parlamento Europeu e <strong>do</strong> Conselhode 21 de abril de 2004, relativa às ofertas públicas obrigatóriasde aquisição de ações de companhias abertas; na França 48 , México 49 ,41 Saliente-se que as companhias integrantes <strong>do</strong> Novo Merca<strong>do</strong> não possuem ações preferenciais, assim como nãopodem ser emitidas e negociadas ações preferenciais pelas sociedades que integram o Bovespa Mais.42 Art. 106 <strong>do</strong> TUIF “Testo único in matéria di intermediazione finanziaria”.43 Art. 23 <strong>do</strong> Decreto 677/2001, conjuga<strong>do</strong> com os arts. 5° e 9° da Resolución General n° 401, só sen<strong>do</strong> obrigatóriaa OPA após a aquisição de 30% das ações ordinárias.44 Seção 35, § 2º da German Securities Acquisition and Takeover Act (Wertpapiererwerbs- und Übernahmegesetz) ,de 20 de dezembro de 2001.45 N° 9.1 <strong>do</strong> “Rule 9” – Mandatory bid rule – <strong>do</strong> City Code on Takeovers and Mergers.46 Art. 187 <strong>do</strong> Código de Valores Mobiliários – Decreto-Lei n.° 486/99, de 13 de Novembro.47 Alínea a e caput <strong>do</strong> artigo 60 da Ley 24/1988 del Merca<strong>do</strong> de Valores, de 28 de Julio.48 Lei nº 898.531, de 02.08.1989.49 Art. 98 da Ley del Merca<strong>do</strong> de Valores, publicada en el Diario Oficial de La Federacíon del 30 de diciembrede 2005.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 240-260, jul.-set. 2011 249


Chile 50 , China 51 e Japão 52 são destinatários da OPA os minoritários e ospreferencialistas.32.1. A propósito <strong>do</strong>s “direitos de saída em empresas de venturecapital” na Alemanha, Carsten Bienz e Uwe Walz, após profunda investigaçãoque envolveu 494 contratos entre empresas de venture capital,concluíram que os direitos de saída, em particular o drag-along e o tagalong,eram minuciosamente previstos em contratos especiais, atravésdas chamadas drag-along and tag-along clauses, em especial em acor<strong>do</strong>sde acionistas, nos planos de negócios e em contratos de mútuo, com afinalidade de (a) prevenir litígios, (b) atuar na governança da empresa,(c) fiscalizar os serviços e (d) garantir o direito de saída conjunta com osmajoritários 53 , este previsto na German Securities Acquisition and TakeoverAct (Wertpapiererwerbs- und Übernahmegesetz), na Seção 35, § 2º.32.2. Destaque-se que, na França, desde 1973, há normas legaise regulamentares que tornam a oferta pública obrigatória nos casos dealienação de controle de companhia aberta, haven<strong>do</strong>: (a) a AssociationFrançaise des Banques edita<strong>do</strong> “normas determinan<strong>do</strong> que, quan<strong>do</strong>houvesse transferência de controle acionário de uma instituição financeiracom alienante identifica<strong>do</strong>, os minoritários deveriam alienar suasações, obrigatoriamente, junto com o bloco de controle, pelo mesmopreço e condições” 54 ; (b) em 2 de agosto de 1989, a Lei 89-531 da<strong>do</strong>competência ao Conselho das Bolsas de Valores para regular as ofertaspúblicas e obrigou “aquele que adquirisse mais de 1/3 das ações votantesde uma empresa (...) a fazer oferta pública de compra <strong>do</strong>s 2/3restantes pela chamada garantie de cours” 55 , e, por fim; (c) em maiode 1992, a oferta de compra foi estendida a todas as ações, votantesou não 56 .50 Alinha b <strong>do</strong> art. 199 conjuga<strong>do</strong> com o art. 199 bis da Ley n° 18.045 – Ley de Merca<strong>do</strong> de Valores.51 Artigo 85 da Securities Law of the People’s Republic of China.52 Artigo 27-13, Parágrafo 4 da Financial Instruments and Exchange Law.53 http://www.mm.uni-frankfurt.de/fileadmin/Publikationen/exitrights_jems_rev2_16_11_2009.pdf.54 Roberta Nioac Pra<strong>do</strong>, art. cit., p.102.55 Idem, p. 103.56 Loc. cit.250R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 240-260, jul.-set. 2011


32.3. No Japão, o interessa<strong>do</strong> na aquisição deverá formular a OPAsomente após haver adquiri<strong>do</strong> 2/3 das ações votantes 57 , sem, entretanto,ficar obriga<strong>do</strong> ao pagamento de prêmio a minoritários e preferencialistas 58 .32.4. Na China, a OPA pode ser dispensada pelo Conselho de Esta<strong>do</strong> 59 .32.5. Segun<strong>do</strong> pesquisa da OCDE – Organização para Coordenação<strong>do</strong> Desenvolvimento Econômico na Ásia, lá não prevalece o princípio <strong>do</strong>tratamento igualitário devi<strong>do</strong> à sua difícil execução prática e à possibilidadede “travar” a bolsa de valores e de prejudicar a economia. 60(c) Legislação norte-americana33. Não há norma legal no direito norte-americano que torne obrigatóriaa oferta pública na alienação de controle de uma companhia egaranta o tag along 61 , sen<strong>do</strong> a proteção aos acionistas minoritáriosexpressa apenas nas regras de disclosure e de insider trading, nos princípiosda lealdade e da boa-fé e nas sanções aos atos fraudulentos.33.1. A propósito, Simone Azeve<strong>do</strong> destaca: “... o merca<strong>do</strong> americano,considera<strong>do</strong> o mais desenvolvi<strong>do</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, não prevê o direitoao tag along a partir das negociações privadas de controle, mas, apenas,que, quan<strong>do</strong> a proposta de aquisição se dá através de uma oferta pública,esta seja uma operação aberta a to<strong>do</strong>s os acionistas e promovidaem igualdade de condições de preço.” 6233.2. Simone Azeve<strong>do</strong> esclarece ainda que,“no trabalho intitula<strong>do</strong>“Vendas Eficientes e Ineficientes de Controle Corporativo”, o professorLucian Arye Bebchuk, da Harvard Law Scholl, avalia que as ofertas mandatóriasde ações podem impedir aquisições com eleva<strong>do</strong> potencial de agregar57 Artigo: Anderson Mori & Tomotsune, “Pitfalls in Japan’s New Tender Offer Regime”, p. 2, website: http://www.amt-law.com/pdf/bulletins2_pdf/070427_1.pdf.58 Artigo: Yoshinori Ono, Kazuyoshi Furusumi, Hiroki Yamada, “Tender Offer Regulations in Japan”, p. 2, website:http://www.jurists.co.jp/ja/topics/<strong>do</strong>cs/newsletter_200911_cbt_en.pdf.59 Art. 81 da Securities Law of the People’s Republic of China, que pode ser visualiza<strong>do</strong> no seguinte website: http://www.csrc.gov.cn/pub/csrc_en/laws/rfdm/statelaws/200904/t20090429_102757.htm.60 Idem, p. 27.61 “O tag-along rights é um <strong>do</strong>s meios — contratuais e não legais - de que dispõem os investi<strong>do</strong>res para obtercertas garantias para a venda de suas ações em uma venda privada, ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> put rights e <strong>do</strong> drag-along rights”,conforme deixou evidencia<strong>do</strong> Kenneth J. Lebrun, fonte cit., p. 236. Sobre a matéria, leia-se a dissertação de GabrilleSantos Cordeiro, sob a orientação <strong>do</strong> Prof. Julian Fonseca Peña Chediak, “Aplicação <strong>do</strong> art. 254-A da LSA”, no site daPUC-RJ- Departamento de Direito, e, também, Roberta Nioac Pra<strong>do</strong>, art. cit. p. 97/101.62 Simone Azeve<strong>do</strong>, “Tag along emplaca em outros países da América Latina”, Revista Capital Aberto, edição: ano1, Abril/2004, pág. 27. No mesmo senti<strong>do</strong>, Kenneth J. Lebrun, fonte cit., p. 235. Também Kenneth J. Lebrun, deixaclaro que, no Japão, o tag along é um direito exclusivamente contratual (idem, p. 236).R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 240-260, jul.-set. 2011 251


valor às companhias na medida em que tornam as transferências decontrole extremamente caras para o compra<strong>do</strong>r.” 63V- Síntese da controvérsia34. Portanto, a propósito <strong>do</strong> direito ao prêmio e da disciplina <strong>do</strong> tagalong, há:(a) os que sustentam que não cabe falar em ágio ou sobrepreço,porém em prêmio de controle, que deve pertencer, única e exclusivamente,aos controla<strong>do</strong>res, eis que o preço das ações integrantes <strong>do</strong> bloco decontrole corresponde à soma <strong>do</strong> valor econômico das ações cedidas etransferidas aos adquirentes e <strong>do</strong> prêmio atribuí<strong>do</strong> ao poder de comandaros destinos da companhia aberta;(b) os que asseveram que o controle é um bem intangível, um ativosocial da companhia, os quais, a sua vez, se dividem em duas correntes:uma defende a tese de que o ágio, que os adquirentes estão dispostos apagar para deter o controle da companhia aberta, deve ser ratea<strong>do</strong> entrecontrola<strong>do</strong>res e minoritários; outra argumenta que, se o controle é um bemsocial, to<strong>do</strong>s os acionistas, independentemente da espécie de ações quepossuam, devem beneficiar-se com a venda <strong>do</strong> controle e participar <strong>do</strong> rateio<strong>do</strong> ágio;(c) legislações que asseguram o tag along somente aos minoritários;outras, aos minoritários e preferencialistas; outras, que o admitemexclusivamente através de cláusula contratual; outras, que o ignoram,como vimos no item IV supra.VI – A filosofia de René Descartes35. Essa controvérsia, aqui e alhures, hoje como ontem, fez-me lembrara advertência <strong>do</strong> funda<strong>do</strong>r <strong>do</strong> movimento cartesiano, ao destacar:“... é raro que, nas ciências, se encontre alguma questão sobre a qual aspessoas hábeis não tenham fica<strong>do</strong> amiúde em desacor<strong>do</strong>. Mas, toda vezque <strong>do</strong>is homens formulam sobre a mesma coisa juízos contrários, é certoque um ou outro, pelo menos, esteja engana<strong>do</strong>”. 6436. Como não me convenci <strong>do</strong>s argumentos das três correntes,escrevi o artigo “Interpretação realista da alienação de controle da com-63 Art. cit., p. 27.64 René Descartes, Regras para orientação <strong>do</strong> espírito, trad. Bras., Martins Fontes, 1999, p. 6 e 7.252R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 240-260, jul.-set. 2011


panhia aberta” 65 , inspira<strong>do</strong> na Escola <strong>do</strong> Realismo Científico, que transcrevoa seguir, com a devida vênia, para conhecimento de eventuaisinteressa<strong>do</strong>s.VII - Interpretação realista 66 da alienação de controle decompanhia aberta37. O controle é um bem intangível da companhia, cujo valor,a título de ágio, sobrevalor, sobrepreço ou prêmio, deve ser partilha<strong>do</strong>entre controla<strong>do</strong>res e minoritários e, até mesmo, preferencialistas, ou ocontrole é um valor econômico inerente exclusivamente às ações ordináriascom direito de voto que compõem o bloco de coman<strong>do</strong>, fazen<strong>do</strong> jusao ágio ou prêmio apenas os controla<strong>do</strong>res?38. Se pregarmos que o ágio ou prêmio, correspondente ao poderde controle, integra o preço <strong>do</strong> bloco de coman<strong>do</strong> e, portanto, deve pertencertão somente aos controla<strong>do</strong>res, ou se advogarmos que o controleé um sucedâneo da valorização patrimonial da companhia e, por conseguinte,o ágio deve ser partilha<strong>do</strong> entre controla<strong>do</strong>res e minoritários, ouse sustentarmos que a lei deve assegurar a controla<strong>do</strong>res, minoritários epreferencialistas, indistintamente, o direito à percepção <strong>do</strong> ágio, pois o65 Publica<strong>do</strong> in Reforma da Lei das Sociedades Anônimas, Forense, 2002, p. 505 a 524, por mim coordena<strong>do</strong>.66 No final <strong>do</strong> século XIX, Oliver Holmes, juiz da Suprema Corte <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s da América, lançou os fundamentosda Escola de Jurisprudência Sociológica Americana, depois desenvolvi<strong>do</strong>s por Benjamin Car<strong>do</strong>so e RoscoePound, haven<strong>do</strong> Pound, de forma lapidar e inova<strong>do</strong>ra, defendi<strong>do</strong> que (a) o Direito “é uma ciência de engenhariasocial”; (b) “o Direito deve ser estável e, sem dúvida, não pode permanecer inalterável”; (c) “a tarefa <strong>do</strong> Direito naresolução <strong>do</strong>s conflitos de interesses é eminentemente prática, eficaz, executiva”; (d) “a tarefa de engenharia social<strong>do</strong> Direito é ajustar os interesses em conflito, detectan<strong>do</strong> os de maior prioridade sobre os demais”; (e) para valorarum problema jurídico ou conflito litigioso é necessário captar o senti<strong>do</strong> e o alcance de fatos abrangi<strong>do</strong>s pelo problema”(apud Maria da Conceição Ferreira Magalhães, A Hermenêutica Jurídica, Forense, 1989, p. 80/84).Inspiran<strong>do</strong>-se em Holmes, Car<strong>do</strong>so e Pound, eminentes juristas americanos criaram a Escola <strong>do</strong> Realismo Jurídico, que,ultrapassan<strong>do</strong> a Escola Sociológica, sustenta ser o direito real, efetivo, concreto o declara<strong>do</strong> pelos tribunais ao julgaremcasos concretos e não produto de um méto<strong>do</strong> silogístico-dedutivo, frio e mecânico, puramente lógico-racional.Enquanto nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s da América as Escolas Sociológica e Realista granjeavam adeptos, na Europa se fortaleciae expandia, por inspiração das ideias <strong>do</strong> Círculo de Viena, da escola de Upsala e de Cambridge, a Escola <strong>do</strong> RealismoEmpírico, à frente Alf Ross, Lundstedt e o sueco Olivecrona, segun<strong>do</strong> a qual os juristas não devem pautar-se pelo idealismometafísico, que sustenta poder chegar-se ao conhecimento imediatamente através da razão e independente <strong>do</strong>ssenti<strong>do</strong>s e da experiência (o denomina<strong>do</strong> conhecimento a priori), mas pelo Realismo Científico, que nega ser possívelatingir-se o conhecimento apenas exercitan<strong>do</strong> a faculdade da razão, em especial no campo <strong>do</strong> Direito, em que deveprevalecer o estu<strong>do</strong>, a observação e a verificação <strong>do</strong>s fatos e fenômenos sociais, aos quais se aplicará o Direito positivopelos tribunais e se tornará eficaz a norma por sua aceitação por parte da consciência jurídica popular.Ao referir-me a “interpretação realista” da questão <strong>do</strong> prêmio na alienação de controle de companhia aberta,preten<strong>do</strong>, inspira<strong>do</strong> nos cânones das Escolas de Jurisprudência Sociológica Americana, <strong>do</strong> Realismo Jurídico, <strong>do</strong>Realismo Empírico, enfim <strong>do</strong> Realismo Científico, abordar o tema de forma “eminentemente prática, eficaz, executiva”,ten<strong>do</strong> em conta “o senti<strong>do</strong> e o alcance <strong>do</strong>s fatos abrangi<strong>do</strong>s pelo problema” (cfr. Roscoe Pound), “o Direitoreal, efetivo, concreto” e não o elabora<strong>do</strong> de forma apriorística, pois, a meu ver, no campo <strong>do</strong> Direito, o que deveprevalecer é o estu<strong>do</strong>, a observação e verificação <strong>do</strong>s fatos e fenômenos sociais e se a sua aplicação pelos tribunaisfará Justiça às partes.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 240-260, jul.-set. 2011 253


controle é um bem social, estaremos enuncian<strong>do</strong> uma proposição apriorística67 , porque formulada sem conhecermos mais e melhor as circunstâncias<strong>do</strong> caso e independentemente das forças que, de fato, devemmotivar a aplicação <strong>do</strong> Direito, e emitin<strong>do</strong> um juízo de valor 68 , sempredita<strong>do</strong> “por predileções de ordem pessoal” 69 e basea<strong>do</strong> na razão prática,que, como diz Kant, por ser prática, deixa de ser razão e passa a servontade, e, exatamente por ser vontade e não verdade, a questão <strong>do</strong> ágio,no II PND e na CDE-14/74, mereceu um tratamento; no Anteprojeto e noProjeto de Lei das S.A., outro; sob o império <strong>do</strong> art. 254 original, com aredação da Emenda Lehmann, outro; após a Lei nº 9.457/97, outro; como Projeto Kapaz-Kandir, outro, e, por fim, na sua definitiva redação, outro,quase se poden<strong>do</strong> dizer que, no caso <strong>do</strong> indigita<strong>do</strong> art. 254 revoga<strong>do</strong> ouo atual 254-A, a vontade e a razão (teórica ou pura) estão dissociadas,o que inevitavelmente acarretou, na vigência <strong>do</strong> revoga<strong>do</strong> art. 254, e estáacarretan<strong>do</strong>, na <strong>do</strong> art. 254-A, flagrantes injustiças.39. Por isso, penso que:1º) se, de forma apriorística, estabelecer-se que:(a) o ágio pertence exclusivamente aos ordinaristas quedetêm o coman<strong>do</strong> da companhia, eis que o poder de controletem valor econômico e integra o preço final das ações <strong>do</strong>scontrola<strong>do</strong>res, ou,(b) na alienação de controle de companhia aberta, deve-segarantir aos titulares de classes idênticas as mesmas condiçõesde preço, forma e prazo de pagamento, ou, ainda,(c) o ágio deve ser partilha<strong>do</strong> entre controla<strong>do</strong>res, minoritáriose preferencialistas, eis que, além de o controle ser umativo social, to<strong>do</strong>s os acionistas, independente da classe deações, contribuíram para o desenvolvimento da empresa,com certeza absoluta estar-se-á crian<strong>do</strong> a possibilidade de o juiz, compeli<strong>do</strong>a ignorar as condições peculiares e as circunstâncias especiais <strong>do</strong>67 Para Alf Ross, as proposições distinguem-se em apriorísticas e empíricas. “As proposições apriorísticas sãoverdadeiras tão só em virtude de sua forma e, por isso, são tautológicas ou analíticas, pois nada dizem a respeito<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>... As proposições empíricas só possuem valor enquanto possam refletir a realidade <strong>do</strong>s fatos, deven<strong>do</strong>,portanto, ser verificadas por meio da experiência” (Alaôr Caffé Alves, apresentação à edição brasileira da obraDireito e Justiça, de Alf Ross, Ed. Edipro, 1ª ed., p. 10).68 Segun<strong>do</strong> Alaôr Caffé Alves, para Ross, os juízos de valor “são subjetivos, expressões de sentimentos e desejos enão vincula<strong>do</strong>s a propriedades reais <strong>do</strong> objeto”, ob. cit., p. 9.69 Karl Popper, A Lógica da Pesquisa Científica, Ed. Cultrix, 2ª. ed., p. 39.254R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 240-260, jul.-set. 2011


caso concreto submeti<strong>do</strong> a seu julgamento, aplicar uma norma que nãofará Justiça a controla<strong>do</strong>res, minoritários e preferencialistas;2º) a questão <strong>do</strong> ágio na alienação de controle de companhia abertadeve ser resolvida não pelo Direito in abstrato, mas pelo Direito concretoem ação; não por juízos de valor, mas por juízos de realidade; não por proposiçõesapriorísticas, mas por proposições empíricas, com base nos cânones<strong>do</strong> neoempirismo lógico e, em especial, nos da Escola <strong>do</strong> RealismoCientífico, que é uma tentativa de superar a alternativa entre o realismopsicológico da Escola de Uppsala e o realismo comportamentista ou sociológicoamericano, para o qual “constitui princípio elementar da ciência anecessária definição de um objeto de acor<strong>do</strong> com qualidades objetivas enão de acor<strong>do</strong> com quaisquer avaliações apriorísticas baseadas em juízosde valor”. 7040. Destarte, com fundamento nos ensinamentos da Escola <strong>do</strong> RealismoCientífico, em especial quan<strong>do</strong> enfatiza que, “na ciência jurídica, sedeve sustentar que o direito é um fato social, cuja existência e descriçãosomente podem ser equacionadas em termos puramente fáticos, sensíveise empíricos, sem necessidade de se recorrer a princípios morais, racionaisou ideológicos” 71 , e partin<strong>do</strong> da premissa de que não se deve, aprioristicamente,formular uma norma legal definin<strong>do</strong> se o ágio, pago pelo poderde controle, cabe (a) só ao controla<strong>do</strong>r, (b) ao controla<strong>do</strong>r e aos minoritáriosou, então, (c) ao controla<strong>do</strong>r, minoritários e preferencialistas, pensoque o art. 254-A deveria ter instituí<strong>do</strong> um princípio geral sobre a matéria,cometen<strong>do</strong>, primeiro, à CVM 72 e à jurisprudência, em segunda e definitiva70 Alf Ross, ob. cit., p. 96. Recorde-se, ademais, por oportuno, que, na multiplicidade das filosofias, o ceticismoprovocou uma separação meto<strong>do</strong>lógica entre os juízos de realidade e os juízos de valor, sen<strong>do</strong> que os juízos derealidade seriam a expressão de um conhecimento objetivo, empírico e racionalmente funda<strong>do</strong>, enquanto os juízosde valor, conforme, por to<strong>do</strong>s, repita-se, ensinou Perelman, por definição são irracionais, não obstante, acentue-se,por indiscutível, que uma análise mais profunda e isenta de paixões concluirá que os juízos de realidade não sãointeiramente independentes <strong>do</strong>s juízos de valor, daí não poder haver um fosso entre os juízos de realidade e os juízosde valor, mas, por igual, não se poder preferir estes em prejuízo daqueles.71 Alf Ross, ob. cit., p. 11.72 Para que não se diga, sem conhecer da<strong>do</strong>s concretos, que é inviável o exame pela CVM de TODOS os casos dealienação de controle da companhia aberta, por ela supostamente não possuir adequada infraestrutura e corpo técnicoem número suficiente para desincumbir-se bem dessa atribuição, cumpre esclarecer que estão registradas naCVM como companhias abertas apenas 998 sociedades (novembro de 2000), sen<strong>do</strong> que somente 465 companhias(novembro de 2000) têm ações negociadas em bolsa e, ademais, como ressalta<strong>do</strong> por Modesto Carvalhosa, a CVMsempre lutou para “dar consistência ao preceito (<strong>do</strong> art. 254), notadamente quan<strong>do</strong> tratou da matéria da transferênciaindireta de controle”(Comentários à Lei de Sociedades Anônimas, cit., v. cit., p. 145), o que é explicita<strong>do</strong> noParecer nº 86/82, objeto <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> de Luiz Leonar<strong>do</strong> Cantidiano, publica<strong>do</strong> na RDM, ano XXXIV, 1985, v. 56, p. 59.A CVM, por fim, firmou ainda orientação no senti<strong>do</strong> de: (a) o art. 254 só se aplicar na venda ou permuta de açõescujos titulares estejam no efetivo exercício <strong>do</strong> controle (Parecer CVM-SJU nº 58/78); (b) para garantir o pagamentode igual preço aos minoritários, ter competência de verificar o cálculo <strong>do</strong> preço pago às ações <strong>do</strong>s controla<strong>do</strong>res (ParecerCVM-SJU nº 09/83); (c) mesmo não ten<strong>do</strong> havi<strong>do</strong> pagamento de ágio na alienação de controle, ser obrigatóriaR. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 240-260, jul.-set. 2011 255


instância, o exame e a solução de eventuais conflitos de interesses surgi<strong>do</strong>sentre os acionistas de companhia aberta quanto o direito ao rateio<strong>do</strong> ágio, com apoio em juízos de realidade, não poden<strong>do</strong> pairar dúvidade que o próprio merca<strong>do</strong> encontrará meios de se proteger e de evitarlitígios. 73VIII – O mito e a realidadeA - O mito41. O mito - repitamo-lo – é: o tag along tem por finalidade protegeros acionistas minoritários na alienação de controle de companhiaaberta. 74B - O tag along nos EUA 7542. O tag along, literalmente, “seguir de perto”, expandiu-se nomerca<strong>do</strong> de capitais norte-americano em decorrência <strong>do</strong> crescimento <strong>do</strong>sfun<strong>do</strong>s de private equity e <strong>do</strong> aumento da participação de investi<strong>do</strong>resa oferta pública aos minoritários, para que exerçam, queren<strong>do</strong>, o direito de alienação de suas ações pelo preço pagoaos controla<strong>do</strong>res (Parecer CVM-SJU nº 79/83).73 Por fim, como, de novo ressalta<strong>do</strong> por Roberta Nioac Pra<strong>do</strong> (ob. cit., p. 101), a solução a<strong>do</strong>tada no Direito americanofoi a de deixar o legisla<strong>do</strong>r fundar-se em princípios gerais e, para a <strong>do</strong>utrina e jurisprudência, a análise e decisãocasuística, já que o próprio merca<strong>do</strong> é capaz de regular-se.74 Conheço a pesquisa da APIMEC-SP – Associação <strong>do</strong>s Analistas Profissionais de Investimento e Merca<strong>do</strong> de Capitaisde São Paulo que concluiu ser o tag along o item mais importante na avaliação <strong>do</strong>s analistas de merca<strong>do</strong> sobregovernança corporativa.Mas conheço e respeito também as observações da BM&FBOVESPA <strong>do</strong> teor seguinte: “Tag along – Qual o la<strong>do</strong> ruimda história? Embora o tag along seja uma maneira de proteger os direitos <strong>do</strong>s acionistas minoritários e de melhorara liquidez das ações ordinárias, ele também trás alguns pontos desfavoráveis.O custo de aquisição de companhias fica bem mais eleva<strong>do</strong>, pois além de adquirir as ações <strong>do</strong> bloco controla<strong>do</strong>r,o compra<strong>do</strong>r terá que oferecer também, no mínimo, 80% desse valor aos outros acionistas detentores de açõesordinárias.Outro ponto importante é a respeito <strong>do</strong> alto grau de especulação que passa a envolver supostos anúncios de aquisiçõese trocas de controle entre companhias. Como sempre existe a expectativa de que uma companhia será vendidapor valores acima <strong>do</strong> que o merca<strong>do</strong> está pratican<strong>do</strong>, principalmente em tempos de crise, os investi<strong>do</strong>res corrempara comprar essas ações, na esperança de embolsar os lucros gera<strong>do</strong>s pela diferença entre o preço da oferta e ovalor atual das cotações.Isso gera uma alta absurda <strong>do</strong>s preços no curto prazo, mas caso a negociação entre as partes não se concretize, to<strong>do</strong>esse movimento especulativo vai por água abaixo e pode trazer enormes prejuízos.” (BM&FBOVESPA – http://www.investpedia.com.br/artigo/O+que+e+Tag+Along.aspx).75 De acor<strong>do</strong> com o site http://www.meionorte.com/merca<strong>do</strong>financeiro/analise-tag-along-o-que-e-isso-103081.html, o tag along é um “mecanismo que teve origem provável nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, por volta das primeiras décadas<strong>do</strong> século XX. Naquela época, em diversos casos de fraudes nas aquisições de empresas negociadas em bolsa devalores, os tribunais norte-americanos concederam o direito de pequenos acionistas reaverem as diferenças de valoresentre os preços pagos por suas ações e os preços pagos aos controla<strong>do</strong>res (sócios majoritários) das empresas.Em 1948, o tag along surge também no Direito Britânico com a regulamentação da aquisição entre das ou maisempresas, fican<strong>do</strong> prevista a aquisição compulsória também das ações <strong>do</strong>s minoritários pelo compra<strong>do</strong>r das ações<strong>do</strong>s controla<strong>do</strong>res.”256R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 240-260, jul.-set. 2011


institucionais no capital social das corporations com a finalidade de, atravésde cláusula contratual, alinhar os interesses de controla<strong>do</strong>res e minoritáriose garantir o direito potestativo de os minoritários retirarem-se dacompanhia em idênticas condições de preço, forma e prazo de pagamento,quan<strong>do</strong> os controla<strong>do</strong>res decidissem transferir o controle societário. 7643. O tag along é, outrossim, nos EUA, um eficiente mecanismo degovernança corporativa, razão pela qual, quan<strong>do</strong> os controla<strong>do</strong>res resolvemvender o controle acionário para terceiro de igual i<strong>do</strong>neidade moral,poder econômico e competência técnica, os minoritários, ao invés deexercerem o tag along, renovam o acor<strong>do</strong> de acionistas e permanecemna empresa 77 , por entenderem que o compra<strong>do</strong>r agregará valor à companhia,conforme ocorreu, recentemente, com as ações da Martha StewartLiving Omimedia, que subiram 24% em um só dia, logo após a empresa demídia e merchandising anunciar que seus acionistas desejavam vendê-laou formar nova sociedade 78 .44. Nos EUA, portanto, o tag along funda-se nos princípios da autonomiada vontade, <strong>do</strong> consensualismo, da lealdade, da boa-fé e da forçaobrigatória <strong>do</strong>s contratos e põe controla<strong>do</strong>res e minoritários em nível deabsoluta igualdade, pois equaliza seus direitos políticos e patrimoniais, egarante o direito de saída simultânea àqueles que decidirem não se “associar”aos novos controla<strong>do</strong>res.C - O tag along no Brasil45. No Brasil, o tag along está, essencial e visceralmente, liga<strong>do</strong> aoprêmio de controle ou ágio, que o terceiro se dispõe a pagar para adquiriro poder de coman<strong>do</strong> da companhia, não se atentan<strong>do</strong> para sua importânciaestratégica 79 , nem, tampouco, valorizan<strong>do</strong> o fato inconteste de ele serum importante instrumento de governança corporativa.46. Mas, indaga-se: o que levou o país a afastar-se da autênticavocação <strong>do</strong> tag along e a transformá-lo em mera compensação financeirapara os minoritários, quan<strong>do</strong> os controla<strong>do</strong>res alienam o poder de man<strong>do</strong>de companhia aberta?76 Tag-along rights is a mandatory bid rule providing minority shareholders the right to sell their shares in the sameconditions of controlling shareholders in case of control transfers, conforme Alexandre Di Miceli da Silveira, School ofEconomics, Mangement and Acconting, University of São Paulo, Corporate Governance Myths in Brazil: An Analysisof Common Statements Made by Market Practitioners.77 Cfr. Carta Dynamo 36, <strong>do</strong> 4º trimestre de 2002, publicação da DYNAMO Administração de Recursos Ltda., e,ainda, Alexandre Di Miceli da Silveira, estu<strong>do</strong> cit., p. 778 O Globo, de 27/05/2011, p. 30.79 Cfr. sustenta a Carta DYNANO nº 36, p. 2.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 240-260, jul.-set. 2011 257


47. Em última e derradeira instância, foi o meio simples, fácil, objetivoe rápi<strong>do</strong> imagina<strong>do</strong> pelos legisla<strong>do</strong>res, com o aval <strong>do</strong> Poder Executivo,de prevenir e/ou punir práticas ilícitas de caráter financeiro, administrativoe contábil <strong>do</strong>s controla<strong>do</strong>res, as quais elevam, por vezes, o prêmiode controle a inimagináveis três dígitos, quan<strong>do</strong>, na prática internacional,ele é, em média, de 20%. 8048. Com efeito, os especialistas em merca<strong>do</strong> de capitais enunciamuma série de expedientes fraudulentos utiliza<strong>do</strong>s pelos controla<strong>do</strong>resque se beneficiam particularmente e, por conseguinte, prejudicam acompanhia, os demais acionistas e os cre<strong>do</strong>res sociais, tais como 81 : (a)o caixa da companhia, que pertence a to<strong>do</strong>s os acionistas, destinar-seà construção de uma nova unidade, e, quan<strong>do</strong> da venda dessa unidadedentro de uma alienação de controle, os controla<strong>do</strong>res receberemum prêmio proporcional ao valor da unidade já então integrada ao ativoda companhia; (b) na hora de pagar o prêmio de controle em umaaquisição, a companhia usar recursos próprios que pertencem a to<strong>do</strong>sos acionistas, e se, na venda <strong>do</strong> controle, o prêmio for muito eleva<strong>do</strong>,significa que, na parcela referente àquele ativo, o custo foi socializa<strong>do</strong>,mas os lucros privatiza<strong>do</strong>s, isto é, reparti<strong>do</strong>s desigualmente; (c) quantomais baixo estiver o preço das ações no merca<strong>do</strong>, melhor a perspectivapara o prêmio de controle, pois há um forte estímulo ao artesanato dasfalsas más notícias e às manipulações contábeis; (d) negócios com partesrelacionadas aos controla<strong>do</strong>res; (e) retenção de recursos em caixa;(f) diluição injustificada da participação <strong>do</strong>s minoritários; (g) distribuiçãode dividen<strong>do</strong>s seguida de chamada de capital; (h) concessão de mútuospara os controla<strong>do</strong>res; (i) pagamento desses mútuos com ativos supervaloriza<strong>do</strong>s;(j) cobrança de taxa de administração pelos controla<strong>do</strong>res;(k)custeio de gastos pessoais;(l) benefícios que são apropria<strong>do</strong>s privadamentepelos controla<strong>do</strong>res embora sejam gera<strong>do</strong>s pela empresa como,por exemplo, infraestrutura operacional para negócios particulares e representaçãojunto à mídia, políticos e autoridades.49. Seria o tag along a melhor — não a mais fácil ou a mais simplesou a mais rápida — solução para evitar ou punir o uso abusivo desses artifíciosfraudulentos, os quais, nos EUA, são chama<strong>do</strong>s de tunneling, isto é,80 Cfr. Carta DYNAMO nº 26, <strong>do</strong> 1º trimestre de 2000, p. 3.81 Exemplos extraí<strong>do</strong>s das Cartas DYNAMO nºs 26 e 36.258R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 240-260, jul.-set. 2011


“caminho por onde escoa valor da empresa para o controla<strong>do</strong>r”? 8250. Não. A solução correta, juridicamente perfeita, é munir o Esta<strong>do</strong>de mecanismos legais e regulamentares eficientes para combater o insidertrading e fiscalizar e lutar contra o abuso, o desvio e o excesso de poderde coman<strong>do</strong> <strong>do</strong>s controla<strong>do</strong>res e, após o devi<strong>do</strong> processo legal, punir,exemplarmente, administrativa, civil e penalmente 83 os controla<strong>do</strong>res quehajam expropria<strong>do</strong> bens e direitos da sociedade, que pertencem, igualmente,a controla<strong>do</strong>res, minoritários e preferencialistas 84 , ou obti<strong>do</strong>, parasi ou para outrem, ou hajam propicia<strong>do</strong> a terceiros, indevidas vantagensfinanceiras.51. Os gráficos das movimentações de ações imediatamente apóso rumor de uma OPA, divulga<strong>do</strong>s pela BMF@BOVESPA, demonstram que,com a OPA, o preços das ações ON e PN se “descolam”, se afastam, distanciam-seem um “jogo de soma zero”, deixan<strong>do</strong> claro que: (1) os minoritáriosperdem; os insiders enriquecem; (2) os minoritários perdem; ospreferencialistas especula<strong>do</strong>res enriquecem; (3) se acentua a volatilidadedas ações, afetan<strong>do</strong> a credibilidade <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>; (4) o preço das açõesON e PN deixam de ter como parâmetro os fundamentos da companhia;(5) a bolsa se assemelha a um cassino, pois os preços não são estabeleci<strong>do</strong>sem função da performance da empresa.D - A realidade52. Por tu<strong>do</strong> isso, concluo que, na realidade, o tag along é, no país:(1º) uma intervenção indevida <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> no <strong>do</strong>mínio econômico enas relações privadas de companhias abertas e investi<strong>do</strong>res que atuam nomerca<strong>do</strong> de ações, numa atuação típica <strong>do</strong> “Esta<strong>do</strong>-babá”, deturpação <strong>do</strong>“Esta<strong>do</strong> social”, <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> providência, que deveria estar se ocupan<strong>do</strong>, comafinco, basea<strong>do</strong> em planejamento estratégico plurianual, com as gigantescasquestões de ordem macroeconômica nacionais (saúde, saneamentobásico, educação, segurança pública, meio ambiente, etc.), e não as questõesde microeconomia (proibição da venda de remédios para emagrecer,elaboração da Lei da Palmada, limitação <strong>do</strong> direito de propriedade, sob82 Cfr. citada Carta DYNAMO nº 26.83 Exemplo <strong>do</strong> funcionamento das normas dessa natureza temos na condenação, em primeiro grau de jurisdição,<strong>do</strong> empresário Ricar<strong>do</strong> Mansur, controla<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Mapin e <strong>do</strong> banco Crefisul, pela prática, segun<strong>do</strong> o jornal ValorEconômico de 31.10.2011, página 34, de gestão fraudulenta e desvio de bens.84 No Anexo III, relaciono as cominações de ordem pecuniária, impostas pela CVM e BOVESPA, administrativa, civile penal a que estão sujeitos os controla<strong>do</strong>res com base em pesquisa realizada pelo bacharel em direito Antonio deFaria Guimarães, forma<strong>do</strong> pela Universidade Candi<strong>do</strong> Mendes.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 240-260, jul.-set. 2011 259


o pretexto de sua função social e da liberdade de contratar, sob o argumentode proteger os mais fracos, proibição <strong>do</strong> bronzeamento artificial e<strong>do</strong> uso de cigarros eletrônicos, imposição às indústrias de alimentos deredução <strong>do</strong>s teores de açúcar, sal e gorduras em certos produtos, etc.);(2º) uma odiosa restrição ao livre-arbítrio e à capacidade de escolhae decisão de pessoas dispostas a correr riscos em busca de maiores ganhosem operações mercantis de alienação de controle de companhia aberta;(3º) uma violação <strong>do</strong> princípio constitucional da liberdade individuale <strong>do</strong>s princípios da autonomia da vontade e <strong>do</strong> consensualismo,esteios <strong>do</strong> Direito das Obrigações;(4º) uma violação <strong>do</strong> direito de propriedade <strong>do</strong>s controla<strong>do</strong>res dedisporem de bens que possuem a seu livre alvedrio e <strong>do</strong> direito de contratar<strong>do</strong>s interessa<strong>do</strong>s na compra de controle de companhia aberta;(5º) espolia<strong>do</strong>r em relação aos controla<strong>do</strong>res, perversos com osadquirentes de controle acionário e iníquo com os preferencialistas;(6º) odioso privilégio para os minoritários, se o fundamento econômico<strong>do</strong> tag along for — como dizem ser — a contribuição <strong>do</strong>s acionistaspara o desenvolvimento e enriquecimento das companhias;(7º) prejudicial aos minoritários rendeiros e ótima oportunidadede enriquecer para os acionistas minoritários e preferencialistas especula<strong>do</strong>res;(8º) fomenta<strong>do</strong>r da cobiça e da ganância <strong>do</strong>s insiders, eis que estimulaa especulação com ações ordinárias às vésperas <strong>do</strong> anúncio da OPAobrigatória;(9º) nocivo à companhia aberta, pois provoca a falta de liquidez dasações ordinárias nos pregões das bolsas de valores após a OPA e, por isso,desestabiliza o merca<strong>do</strong> de capitais;(10º) concentra<strong>do</strong>r <strong>do</strong> controle em grupos oligárquicos, quan<strong>do</strong> seo quer disperso, e eficaz mecanismo <strong>do</strong> fechamento <strong>do</strong> capital de companhiasabertas;(11º) óbice à reorganização de uma empresa em dificuldades econômico-financeiras,enfim,(12º) um expediente para garantir aos detentores de ações ordináriasnão integrantes de bloco de controle apenas um ganho financeiro,desprezan<strong>do</strong> os atributos estratégicos e de governança corporativa <strong>do</strong> tagalong, as suas verdadeiras virtudes.260R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 240-260, jul.-set. 2011


O Panorama Contemporâneoda Execução Penal *Álvaro Mayrink da CostaDesembarga<strong>do</strong>r (aposenta<strong>do</strong>) <strong>do</strong> TJ/RJ. Presidente<strong>do</strong> Fórum Permanente de Execução Penal e Professorda EMERJ.INTROITOO aprofundamento <strong>do</strong> saber, em contínua e reflexiva clarificação edensificação, torna-se viável através de a discussão crítica cair, na expressãode Winfred Weiner, no "fascínio da criatividade". A finalidade principaldesta palestra objetiva lançar um olhar crítico sobre o panorama contemporâneoda execução penal, diante <strong>do</strong> futuro <strong>do</strong> destino das prisões eda substituição ou abolição parcial das penas privativas de liberdade, pormodelos menos aflitivos e mais pedagógicos, numa sociedade em contínuomovimento transformista, ao curso das décadas <strong>do</strong> século XXI.1. Se a conduta viola os padrões de intolerabilidade, diante <strong>do</strong> conflitode interesses entre os indivíduos, colocan<strong>do</strong> em risco a paz social, oEsta<strong>do</strong> se vê legitima<strong>do</strong> a criar instrumentos rigorosos de controle. Criminalizam-sedetermina<strong>do</strong>s tipos de comportamentos desviantes, objetivan<strong>do</strong>a proteção de bens e interesses relevantes, buscan<strong>do</strong> a defesasocial, através da edição de leis. Ressalte-se, que as mais graves sançõesjurídico-penais, a pena e as medidas de segurança, operam em situaçõesde excepcionalidade, a fim de garantir a segurança jurídica e proporcionara convivência pacífica na macrossociedade.2. A pena constitui-se em um <strong>do</strong>s instrumentos mais característicosde que o Esta<strong>do</strong> dispõe para impor suas normas de contenção comportamental,reconhecen<strong>do</strong>-se a vinculação axiológica expressada entre a funçãoda pena e a função <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Conclui-se que, não só a pena comoo delito, encontra seu fundamento na concepção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Social e Democráticode Direito. É uma exigência traumática, contu<strong>do</strong> ainda imprescindível,repetidamente um mal necessário, objetivan<strong>do</strong> a punição como*Palestra proferida na 206ª Reunião <strong>do</strong> Fórum Permanente da Execução Penal, no Auditório da Escola da Magistratura<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio de Janeiro, em 2.6.2011.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 261-270, jul.-set. 2011 261


uma finalidade socialmente útil, numa relação de causa e não de finalidade,cuja teoria é um mar de questionamentos irrespondíveis, que setorna uma amarga necessidade de uma comunidade de seres imperfeitoscomo são os homens.3. É a principal consequência jurídica <strong>do</strong> injusto penal, causa e fundamentojustifica<strong>do</strong>r, constituin<strong>do</strong>-se no seu antecedente lógico e pressupostonormativo. Dentro <strong>do</strong> espectro global da discussão temática, poderse-iaafirmar que, nos tempos contemporâneos, objetiva-se aperfeiçoá-la,quan<strong>do</strong> imprescindível, e substituí-la, quan<strong>do</strong> oportuno e possível, pormedidas alternativas à pena privativa de liberdade.4. O legisla<strong>do</strong>r procura com a ameaça penal que os destinatáriosdiretos da norma se abstenham de atuar e, ao mesmo tempo, mostra ato<strong>do</strong>s os membros da comunidade a necessidade <strong>do</strong> respeito aos bensjurídicos para tornar viável a ordem e a segurança da convivência social.É a resposta pela realização <strong>do</strong> ato punível, consciente o autor da reprovabilidadeda conduta típica, pois poderia ter obra<strong>do</strong> de forma diversa,traduzin<strong>do</strong>-se a gravidade <strong>do</strong> ato e a culpabilidade <strong>do</strong> autor.5. Na execução, o fundamento da pena tem como patamar o títuloexecutório, a decisão condenatória, com a perda ou a diminuição de direitos<strong>do</strong> condena<strong>do</strong> e, no seu decurso, a busca de sua (re)inserção futurae harmônica com os padrões macrossociais toleráveis. A pena não objetivaa <strong>do</strong>r, deixan<strong>do</strong> livre o condena<strong>do</strong> para recusar a proposta estatal,hipótese em que objetiva somente neutralizá-lo por determina<strong>do</strong> tempopara a tranquilidade social.6. No modelo <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Social e Democrático de Direito, no qualnos inserimos política e juridicamente, a pena deverá cumprir uma missãopolítica de regulamentação ativa da vida social, a fim de garantir umfuncionamento satisfatório, mediante a proteção <strong>do</strong>s bens jurídicos,constituin<strong>do</strong>-se na última etapa <strong>do</strong> controle social. Assim, confere-se umafunção de prevenção <strong>do</strong>s atos que atentem contra esses bens e não sobreuma hipotética necessidade ético-jurídica, respeitan<strong>do</strong>-se os limites quegarantam que a prevenção será exercida em benefício e sob o controle deto<strong>do</strong>s os cidadãos.7. A política penitenciária é a arte de saber qual o tratamento adequa<strong>do</strong>e em que condições deverá ser aplicada, a fim de atingir o máximode eficácia na luta contra a criminalidade, buscan<strong>do</strong> desestimular a reincidência.A política criminal deve ser reconhecida através de processos262R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 261-270, jul.-set. 2011


que observem: a) o princípio da legalidade; b) o princípio da referênciaconstitucional (“princípio da congruência ou da analogia substancialentre a ordem axiológica constitucional e a ordem <strong>do</strong>s bens jurídicos”);c) o princípio da culpa (princípio da dignidade pessoal); d) o princípio dasociabilidade (solidariedade); e) o princípio da preferência pelas reaçõesnão detentivas. Sustenta-se a mesma hierarquia jurídico-científica entrea problemática das consequências jurídicas e a <strong>do</strong>utrina <strong>do</strong> injusto, advogan<strong>do</strong>-seentre ambas uma unidade funcional.8. É necessário, para a compreensão <strong>do</strong> injusto penal, reconhecera questão social-comunitária e a pluralidade de expectativas, individuaise sociais, antagônicas. Há uma pluralidade de protagonistas, diante desseconflito real, com interesses legítimos e expectativas: a vítima (reparação<strong>do</strong> dano); o delinquente (ressocialização) e a comunidade (a paz social).Daí surgem modelos ou paradigmas da resposta penal <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>: a) dissuasório(prevenir a criminalidade); b) ressocializa<strong>do</strong>r (reinserir e reabilitar ocondena<strong>do</strong>); c) integra<strong>do</strong>r (reparação <strong>do</strong> dano, conciliação e paz social).9. O modelo dissuasório (a) apresenta sérias limitações pela incompatibilidadeestrutural com os princípios informa<strong>do</strong>res <strong>do</strong> ordenamentojurídico (efeito puramente intimidatório da pena), enquanto o modeloressocializa<strong>do</strong>r (b), de origem humanística, destaca-se pelo seu realismo,importan<strong>do</strong>-se somente pelo impacto efetivo <strong>do</strong> castigo, absorven<strong>do</strong>a questão social <strong>do</strong> problema penal; já o modelo integra<strong>do</strong>r (c), maiscompleto, teoricamente alcança o objetivo-alvo <strong>do</strong> modelo estratégicodas políticas públicas de segurança. Visa a capacitar o recluso para, nofuturo, levar uma vida com responsabilidade social sem o cometimentode novos delitos.10. A execução da pena objetiva proteger a sociedade da comissãode novos injustos penais. O êxito da socialização é o que atende aobinômio correção <strong>do</strong> indivíduo e segurança social. O que se espera <strong>do</strong>egresso não é apenas abster-se da realização de novos injustos, não reincidir,mas sim tornar-se um cidadão pleno de suas responsabilidadesperante a comunidade.11. Considera-se que o conceito de ressocialização é ambíguo e impreciso,mas que a polêmica não é vazia ou meramente acadêmica. Sobtal bandeira, encontramos o antirretribucionismo, concepção assistencial<strong>do</strong> Direito Penal, e o neorretribucionismo, versão contemporânea e atualizada<strong>do</strong> retribucionismo, que constitui uma faceta pior como expressãoR. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 261-270, jul.-set. 2011 263


<strong>do</strong> Direito Penal liberal. O descrédito da pena de prisão é uma secularconsequência da crise <strong>do</strong> sistema prisional que atinge toda a sociedade,sob o aparato de terror repressivo, questionan<strong>do</strong> na teoria e na prática oconceito de ressocialização. Aduza-se que a massa carcerária, pobre emiserável, nem sequer foi inserida no contexto social, viven<strong>do</strong> marginalizadadas pautas macrossociais. A grande onda de construções de penitenciáriasde segurança máxima sufoca qualquer pretensão ressocializa<strong>do</strong>ra,pois o mal da prisão é a própria prisão, o mal da pena é a própria pena.12. Bacigalupo recorda que o conceito de ressocialização se converteem sinônimo de execução humanitária <strong>do</strong> castigo. Os programasressocializa<strong>do</strong>res máximos não respondem à ideia de autodeterminação,mas só de imposição, assumin<strong>do</strong> a pena, objetivos autoritários e imprópriosde manipulação <strong>do</strong> indivíduo, com o custo de sua liberdade e deoutros direitos fundamentais, constituin<strong>do</strong>-se em atividade abusiva <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong>. A questão apresenta facetas positivas e negativas. As positivas setraduzem nos aspectos humanísticos da função penal, pois num Esta<strong>do</strong>social e intervencionista, as assistências são a arma, capaz de minorar ofracasso da pena retributiva, e a política criminal ressocializa<strong>do</strong>ra seriaa terceira via para a solução da utopia retribucionista. De outro la<strong>do</strong>, asnegativas constituem uma função penal exclusivamente dirigida para aressocialização comprometen<strong>do</strong> as exigências da prevenção geral, vistoque não se pode esquecer os interesses macrossociais e a vítima <strong>do</strong> injustopenal. A execução da pena deve possibilitar a (re)inserção futura, o querequer uma intervenção eficaz, que exige um sóli<strong>do</strong> modelo conceitualcom programas estrutura<strong>do</strong>s, claros e dura<strong>do</strong>uros.13. Hassemer, defensor da prevenção geral positiva limita<strong>do</strong>ra,destaca que sobre o conceito de (re)ssocialização gravita a circunstânciada relevante impossibilidade de se poder apontar resulta<strong>do</strong>s mensuráveis,não se esquecen<strong>do</strong> de que o Direito Penal da resposta social tem a necessidadede buscar uma justificativa, o que aumenta a carga sobre os finsda pena imposta aos condena<strong>do</strong>s para a realização <strong>do</strong>s objetivos propaga<strong>do</strong>s.Em concreto, as penas de prisão estigmatizam e desassociam, poisa educação para a liberdade não se realiza através de sua privatização. Osistema prisional isola o condena<strong>do</strong> e o neutraliza social e politicamente,constituin<strong>do</strong>-se em uma instituição de controle e vigilância total.14. A crise <strong>do</strong> pensamento ressocializa<strong>do</strong>r é resultante da contradiçãode que, dentro da prisão tradicional, jamais se poderá levar avante264R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 261-270, jul.-set. 2011


um programa de reforma <strong>do</strong> apena<strong>do</strong>, não oportunizan<strong>do</strong> a sua inserçãopela manutenção da exclusão social e da estigmatização <strong>do</strong> cárcere.Continua-se, no início da segunda década <strong>do</strong> século XXI, a repetir umainverdade de que ao retirar o indivíduo <strong>do</strong> convívio macrossocial se desejaressocializá-lo no contexto deletério da microssociedade.15. Os juristas ainda não conseguiram resolver a complexa temáticade aspirações contemporâneas que gravitam sobre a velha questãoe continuam perseguin<strong>do</strong> soluções românticas ou pseu<strong>do</strong>-realistas querepousam na volta ao museu da história. Contemporaneamente, aindaencontramos um pensamento como de Jakobs sustentan<strong>do</strong> que o Esta<strong>do</strong>,para lutar eficazmente contra o inimigo, deve impor penas desproporcionadase draconianas, penalizar condutas inócuas ou distantes de seremuma real e efetiva ameaça ou perigo ao bem jurídico, eliminan<strong>do</strong> o mínimode custas garantistas e direitos ao indivíduo no processo penal. Ao seuentender, diante da sociedade contemporânea de risco, a única via seriadirigir o Direito Penal para o restabelecimento através da pena da vigênciada norma violada, revitalizan<strong>do</strong> a confiança <strong>do</strong>s cidadãos na segurançanormativa. O que se questiona é a compatibilidade com o Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Direitoe o reconhecimento e respeito aos direitos fundamentais.16. Ferrajoli escreve que o grau de dureza tolerável das penas estádiretamente liga<strong>do</strong> ao grau de desenvolvimento cultural de cada ordenamento,sen<strong>do</strong> possível a longo prazo imaginar-se uma drástica duração <strong>do</strong>tempo de prisão, buscan<strong>do</strong>-se manter o condena<strong>do</strong> no cárcere. A pena deprisão impõe a aflição física e psicológica (solidão, isolamento, disciplinacarcerária, perda da sociabilidade e da afetividade, enfim, da identidade).Para Ferrajoli, tais sofrimentos físicos e mentais retiram os requisitos deigualdade, legalidade e jurisdicionalidade. A instituição carcerária “se temtransforma<strong>do</strong> numa sociedade metade selvagem e metade disciplinar”,concluin<strong>do</strong> que a prisão é “uma instituição ao mesmo tempo antiliberal,desigual, atípica, extralegal e extrajudicial” e, em parte, “lesiva para adignidade das pessoas, penosa e inutilmente aflitiva”. Arremata que “oprojeto de abolição da prisão não se confunde com o projeto de aboliçãoda pena” e que a superação da prisão só poderá ocorrer em um processogradual liga<strong>do</strong> às bases culturais e à redução das bases sociais de violência,com a etapa da minimização da duração da pena.17. A execução da pena só é admissível se tem por finalidade ocontrole social, buscan<strong>do</strong> a reinserção social <strong>do</strong> condena<strong>do</strong> (prevençãoR. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 261-270, jul.-set. 2011 265


geral positiva limita<strong>do</strong>ra). Se a pena tem si<strong>do</strong> historicamente combatida,principalmente as penas privativas da liberdade de curta duração, é porquenão possui nenhuma força de intimidação sobre o condena<strong>do</strong>, e nãopode exercer qualquer ação educa<strong>do</strong>ra, porque o encarceramento, teoricamente,deve ter uma certa duração para qualificar mão de obra <strong>do</strong>condena<strong>do</strong>, e, se possível, também teoricamente, corrigi-lo das pautasdesviantes. De outro la<strong>do</strong>, familiariza-se com a vida penitenciária, quegeralmente influi sobre o seu ego de uma forma tão profunda que chegaa corrompê-lo. Acomoda-se à nova situação da vida deletéria, produto dainstituição total (introdução na subcultura da prisão).18. Tratar-se-á, antes de tu<strong>do</strong>, de evitar o encarceramento, provisórioou definitivo; no primeiro, restringin<strong>do</strong> a custódia provisória só noscrimes <strong>do</strong>losos puni<strong>do</strong>s com pena privativa de liberdade superior a quatroanos; e, no segun<strong>do</strong>, substituin<strong>do</strong> por pena alternativa à pena privativa deliberdade, quan<strong>do</strong> houver possibilidade de evitar a contaminação deletéria<strong>do</strong> cárcere e suas consequências. Advoga-se a substituição <strong>do</strong> regimeaberto pela prisão <strong>do</strong>miciliar com o monitoramento eletrônico e, passan<strong>do</strong>as três etapas <strong>do</strong> sistema progressivo a serem: fecha<strong>do</strong>, semiaberto elivramento condicional.19. A prisão exige <strong>do</strong> apena<strong>do</strong> uma total submissão e a perda desua personalidade. O interno aceita o totalitarismo da instituição prisionale a ele se submete, sucumbin<strong>do</strong>. A subcultura da prisão é responsávelpela desintegração moral e social, incapacitan<strong>do</strong> para a inserção, constituin<strong>do</strong>-se,pois, em fator de reincidência. No estágio contemporâneo, ocumprimento da pena de prisão é simplesmente um episódio trágico paraquem a suporta e um fator constante de conflito, colocan<strong>do</strong> em risco apaz e a segurança pública. A vida na prisão se caracteriza pela subculturaespecífica. Sabe-se que os programas de intervenção suscitam problemasdesde o mecanismo <strong>do</strong> contracontrol (subculturas carcerárias) até odéficit de generalização <strong>do</strong>s programas carcerários.20. A prisionalização é o processo de assimilação que sofre o apena<strong>do</strong><strong>do</strong>s valores da subcultura carcerária. A microssociedade apresentaum processo de aculturação, no qual o apena<strong>do</strong> vai paulatinamente seadaptan<strong>do</strong> aos usos e costumes próprios para poder sobreviver. A<strong>do</strong>ta novoshábitos de vida, dita<strong>do</strong>s pela subcultura carcerária, que incontestavelmentemodelam a personalidade constituin<strong>do</strong>-se em fator adverso à suareinserção. No processo de prisionalização muito contribui a personalidade266R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 261-270, jul.-set. 2011


e o status socioeconômico <strong>do</strong> apena<strong>do</strong> diante da submissão <strong>do</strong>s valoresnegativos impostos para o convívio carcerário durante longo tempo dereclusão. As instituições são, além de organizações formais, sistemas sociaisinformais, com códigos de comportamento bem defini<strong>do</strong>s, que proporcionamambiente para a aprendizagem de novas respostas sociais ereforço ou inibição de antigas respostas.21. Não há efetivos e dura<strong>do</strong>uros programas de inserção, mas demero e simples encarceramento ou enjaulamento, geran<strong>do</strong> grupos ecoman<strong>do</strong>s marginais de autoproteção, que se configuram em fortes braços<strong>do</strong> crime organiza<strong>do</strong> nas grandes metrópoles. É básico melhorar a atualsituação das unidades prisionais e das entidades exclusivas para a internaçãode a<strong>do</strong>lescentes infratores. Contemporaneamente, é mais fácil criminalizaros excluí<strong>do</strong>s, que perderam suas referências políticas ou sindicaisfican<strong>do</strong> em total esta<strong>do</strong> de desproteção política e jurídica na hipótesede conflito legal, facilitan<strong>do</strong>, assim, os abusos e desvios em seu prejuízo.Há evidente desordem <strong>do</strong>s modelos e paradigmas, consequência de umacrise da política criminal.22. O objetivo da execução penal mais relevante é o de criar oportunidadespara futura (re)integração social, buscan<strong>do</strong> em uma estratégiademocrática de forma participativa capacitar o encarcera<strong>do</strong>, estimulan<strong>do</strong>-oa vencer a sensação de exclusão por meio de opções, respeita<strong>do</strong>o direito de ser diferente. Ao ser recolhi<strong>do</strong> ao cárcere é obriga<strong>do</strong> a abdicarde parte de sua cidadania, fraturan<strong>do</strong> sua personalidade, passan<strong>do</strong> ainteriorizar condicionamentos infrassociais da massa carcerária e assimilarhábitos e valores integrantes da cultura prisional. O rigor segregatóriopleno e contínuo, ao la<strong>do</strong> da carência <strong>do</strong> real e efetivo interesse macrossocialno processo de (re)inserção, veda uma nova opção de vida.23. A questão carcerária não pode ser resolvida no interior da microssociedade,como instituição total, pois o problema deve ser compartilha<strong>do</strong>por toda a sociedade. No Direito Penal estão inscritos os princípiosde humanidade e de interesse público, sen<strong>do</strong> o cárcere um processo fali<strong>do</strong>de socialização, principalmente no regime fecha<strong>do</strong> em unidades de segurançamáxima, no cumprimento de longas penas privativas de liberdade.Deve-se incitar a autoestima <strong>do</strong> encarcera<strong>do</strong> para que possa alimentara esperança na liberdade, vencen<strong>do</strong> a sensação de incapacidade para aopção por nova vida, através <strong>do</strong> respeito e <strong>do</strong> apoio, desmistifican<strong>do</strong> aR. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 261-270, jul.-set. 2011 267


crença de que só a marginalidade e a delinquência são as únicas possibilidadesde sua sobrevivência.24. A nossa Lei de Execução Penal estatui como objetivo a seralcança<strong>do</strong> “proporcionar condições para a harmônica integração social <strong>do</strong>condena<strong>do</strong> e <strong>do</strong> interna<strong>do</strong>”, ao passo que o art. 59 <strong>do</strong> Código Penal pátrioindica que o juiz penal ao aplicar a pena há de graduá-la “conforme sejanecessário e suficiente para a reprovação e prevenção <strong>do</strong> crime”. A finalidade(re)integra<strong>do</strong>ra está diretamente ligada à modalidade da execução<strong>do</strong> cumprimento das penas privativas de liberdade, das quais infelizmenteainda não se pode abdicar, deven<strong>do</strong>, em um Esta<strong>do</strong> Democrático deDireito, a prevenção ser exercida em benefício e sob o controle de to<strong>do</strong>sos cidadãos.25. Nos segmentos contemporâneos, busca-se a melhora <strong>do</strong> condena<strong>do</strong>,que constitui o objetivo mais eleva<strong>do</strong> da política criminal. Mediantea aplicação da pena, procura-se influenciar no apena<strong>do</strong> a reinserção sociale, por consequência, a não reincidência. Para os seus defensores, apena deve ter uma função educativa e não aflitiva, a fim de transformaro delinquente em um novo homem, respeita<strong>do</strong>r da ordem social e da lei.Embora a reinserção esteja escrita em vários diplomas legais, normativose constitucionais, é inimaginável que a prisão possa produzir cidadãos <strong>do</strong>mestica<strong>do</strong>spela disciplina punitiva para conviverem nos padrões dita<strong>do</strong>spela sociedade <strong>do</strong>minante e, ainda depois de estigmatiza<strong>do</strong>s e desqualifica<strong>do</strong>s,para o labor produtivo. O discurso oficial legitima<strong>do</strong>r das funçõesobjetivas da pena não resiste à avaliação crítica.26. A teoria agnóstica da pena sustenta não possuir qualquer funçãoou justificação jurídica, sen<strong>do</strong> tão só um ato político de poder, vistoque não se pode justificar o injustificável. Repetin<strong>do</strong> Tobias Barreto:“o conceito de pena não é um conceito jurídico, mas um conceito político”.A pena busca, mediante condicionamentos naturais e uma meto<strong>do</strong>logiade informação, conscientizar o apena<strong>do</strong> a aceitar os valores da macrossociedade,separan<strong>do</strong> os questionamentos que possam traduzir um impasseexistencial entre o delinquente e os valores impostos e aceitos pela comunidadesocial <strong>do</strong>minante.27. Para que a crise da violência urbana e rural possa ser repensada,é necessário que haja conscientização popular e vontade política deconstruir um sistema prisional moderno, seguro e não corrupto, pois sãoinacreditáveis as condições sub-humanas em que os condena<strong>do</strong>s vivem nas268R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 261-270, jul.-set. 2011


concentra<strong>do</strong>ras de presos e xadrezes distritais ou em estabelecimentospenitenciários superlota<strong>do</strong>s, na maior ociosidade e promiscuidade, alimentan<strong>do</strong>,por meio de suas organizações criminosas de sobrevivência,planos e atos de ataque à sociedade aberta, para angariar fun<strong>do</strong>s de sobrevivênciacarcerária. De nada valem os esforços isola<strong>do</strong>s, momentâneose não contínuos <strong>do</strong> Poder Público para sufocar focos de criminalidade semque exista uma política penitenciária séria em que o conjunto da sociedadese conscientize e participe eficazmente para reverter o quadro negroda crise.28. O movimento de desjurisdicionalização abarca o conjunto deprocessos formais ou informais de controle, buscan<strong>do</strong> uma solução parao conflito jurídico-penal fora <strong>do</strong> sistema formal de aplicação da normapenal pela justiça criminal, objetivan<strong>do</strong> impedir o efeito estigmatizanteda pena e <strong>do</strong> cárcere, estimulan<strong>do</strong> a participação na execução de políticascriminais comunitárias. Os <strong>do</strong>is processos, a criminalização e a prisionalização,constituem, na verdade, aspectos correlatos <strong>do</strong>s amplos efeitos detreinamento da vida carcerária. O controle social é fundamental, constituin<strong>do</strong>-seem uma ferramenta de limitação e ao mesmo tempo de opçõescomportamentais no processo de socialização.29. O panorama contemporâneo da execução penal, visto pelasmodernas regras penitenciárias europeias para o tratamento <strong>do</strong> preso(2006), elege como princípios fundamentais que as pessoas privadas deliberdade devem ser tratadas com o devi<strong>do</strong> respeito aos direitos humanose que conservam to<strong>do</strong>s os direitos que não lhes foram retira<strong>do</strong>s pela decisãojudicial de detenção provisória ou de condenação criminal. As restriçõesimpostas devem ser reduzidas estritamente ao necessário e devemser proporcionais aos objetivos legítimos pelos quais foram impostos.A vida prisional deve basear-se nos aspectos positivos da vida exterior daprisão, sen<strong>do</strong> que esta deve ser gerenciada de mo<strong>do</strong> que facilite a futurareintegração. A cooperação com os serviços sociais externos deve ser incentivada,assim como a participação da sociedade civil na vida penitenciária.Todas as prisões devem ser objeto de inspeção e controle governamentalregular, bem como devem ser submetidas à fiscalização de umaautoridade independente. A privação da liberdade constitui uma puniçãoem si mesma, por isso o regime <strong>do</strong>s presos condena<strong>do</strong>s não deve agravaros sofrimentos inerentes à prisão. Os procedimentos disciplinares devemser o mecanismo de último recurso e a sanção não pode envolver umaR. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 261-270, jul.-set. 2011 269


interdição total <strong>do</strong>s contatos com a família. Cada estabelecimento devedispor de uma biblioteca destinada a to<strong>do</strong>s os presos, dispon<strong>do</strong> de verbaspara recursos varia<strong>do</strong>s recreativos e educativos. O direito de liberdade depensamento, de consciência e de religião deve ser respeita<strong>do</strong>. Os presostêm direito a se comunicarem tão frequentemente quanto possível, porcarta, por telefone ou por outros meios de comunicação, com suas famílias,com terceiros e com representantes de organismos exteriores, assimcomo receber visitas destas pessoas.30. Sabe-se que a prisão é deletéria: não educa, não socializa, nãodá condições à inserção social; portanto, a pena de prisão deve ser substituídapor restritivas de direitos em maior escala, incentivan<strong>do</strong>, pelo mérito,a progressão de regime e o livramento condicional, restringin<strong>do</strong> ocárcere tão só em relação aos porta<strong>do</strong>res de comportamentos desviantesde especial gravidade, intolera<strong>do</strong>s pela macrossociedade, como forma decontrole direto da segurança e paz social, através de uma intervençãogarantista, assegura<strong>do</strong>s os direitos humanos e as assistências diante deum Esta<strong>do</strong> Social e Democrático de Direito.31. A marca <strong>do</strong> século XXI será o aumento de condutas criminalizadase de suas violações; porém, as penas serão menos aflitivas, asrespostas serão amplamente modificadas, ao se reconhecer o fracassodas penas privativas de liberdade, as quais serão substituídas por umrico arsenal de consequências jurídicas, manti<strong>do</strong> o pressuposto de umaconduta punível, mas não poden<strong>do</strong> mais retroagir à direção tradicional.A macrossociedade <strong>do</strong> século XXI terá que encontrar no seu processo dedesenvolvimento formas estruturais e de organização que não mais pleiteiema pena e as suas consequências danosas.32. Registre-se que, ao fazer uma pergunta a Michel Focault, Brochierfez a seguinte observação: “(...) estou impressiona<strong>do</strong> com o fato deque as prisões estão dentro das cidades e ninguém as vê. Ou que, quan<strong>do</strong>as vê, se pergunta, destraidamente, se se trata de uma prisão, de umaescola, de uma caserna ou de um hospital?”Ninguém quer ver a prisão.270R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 261-270, jul.-set. 2011


Acolher é Proteger,Recolher é CrimeSiro DarlanDesembarga<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Tribunal de Justiça <strong>do</strong> Rio deJaneiro e Membro da Associação Juízes para a Democracia.A Declaração de Genebra de 1924 estabeleceu à Humanidade o deverde observância aos direitos de crianças, <strong>do</strong> qual se infere o dever prestacionalde assegurar-lhes a proteção, assim como o dever de abstençãode práticas perniciosas.Em 20 de novembro de 1959, a Organização das Nações Unidasa<strong>do</strong>tou a Declaração Universal <strong>do</strong>s Direitos da Criança, posteriormenteratificada pelo Brasil. Tal <strong>do</strong>cumento, em consonância à proteção especialenunciada na Declaração de Genebra, expõe que “a humanidadedeve à criança o que de melhor tiver a dar”, indican<strong>do</strong> em seu PrincípioII e VII que:“(...) II- A criança tem o direito de ser compreendida e protegida,e deve ter oportunidades para seu desenvolvimentofísico, mental, moral, espiritual e social, de forma sadia e normale em condições de liberdade e dignidade. As leis devemlevar em conta os melhores interesses da criança. (...)”Reafirman<strong>do</strong> as diretivas da Declaração Universal <strong>do</strong>s Direitos daCriança, o Artigo 3 1. prevê que “(...) Todas as ações relativas às crianças,levadas a efeito por autoridades administrativas ou órgãos legislativos,devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança. (...)”O melhor interesse da criança se consolida como disposição degrande amplitude, que indica a prioridade em se concretizar os direitosgaranti<strong>do</strong>s às crianças, vez que se deve, sob quaisquer circunstâncias, consideraras melhores soluções possíveis para essa parcela da população.A Constituição Federal de 1988 contempla a proteção <strong>do</strong>s direitosfundamentais antes mesmo de apresentar as normas organiza<strong>do</strong>ras daatividade estatal, revelan<strong>do</strong> o seu compromisso à consecução daqueles.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 271-277, jul.-set. 2011 271


O artigo 5º, § 1º, da CRFB estabelece que as normas sobre os direitoshumanos têm aplicabilidade imediata:“(...)§ 1º - As normas defini<strong>do</strong>ras <strong>do</strong>s direitos e garantias fundamentaistêm aplicação imediata.(...)”A efetivação <strong>do</strong>s direitos fundamentais concerne aos custos <strong>do</strong>s direitos.Em uma sociedade em que os recursos são escassos, implementarum direito fundamental, especialmente os sociais, é tarefa que exasperaos limites <strong>do</strong>s critérios jurídicos de proteção <strong>do</strong> direito para invadir a inevitávelrelevância <strong>do</strong>s fatos.A Carta Magna prevê, em seu artigo 227, o arcabouço <strong>do</strong> atualregramento acerca da garantia de direitos de crianças e a<strong>do</strong>lescentes,in verbis:“É dever da família, da sociedade e <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> assegurar àcriança e ao a<strong>do</strong>lescente, com absoluta prioridade, o direitoà vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização,à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdadee à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los asalvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,violência, crueldade e opressão.”Preleciona o Professor Wilson Donizeti Liberatti:“Nossos Tribunais têm reiteradamente, e com acerto, firma<strong>do</strong>entendimento reconhecen<strong>do</strong> que o interesse da criança e<strong>do</strong> a<strong>do</strong>lescente deve prevalecer sobre qualquer outro interesse,quan<strong>do</strong> seu destino estiver em discussão”(LIBERATTI, WILSON DONIZETI. Comentários ao Estatuto daCriança e <strong>do</strong> A<strong>do</strong>lescente. São Paulo: Malheiros Editores,1993, p. 17.)Dispõe o artigo 1º da Lei 8069/90:“Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao a<strong>do</strong>lescente”.Crianças e a<strong>do</strong>lescentes passaram a ser considera<strong>do</strong>s cidadãos, sujeitosde direitos, com direitos pessoais e sociais garanti<strong>do</strong>s, desafian<strong>do</strong>272R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 271-277, jul.-set. 2011


os governos em todas as suas esferas a formularem e implementarempolíticas públicas, especialmente dirigidas a esse segmento, amparadasna destinação privilegiada de recursos.Nesse senti<strong>do</strong>, já tive oportunidade de mencionar que a soluçãopara problemas que envolvam crianças e a<strong>do</strong>lescentes não perpassa poratitude repressiva. Ao revés, deve ser realizada mediante a consecução depolíticas públicas, cuja realização impõe a apreciação principiológica emto<strong>do</strong>s os níveis e esferas de atuação pública.Ao Poder Legislativo impõe a discricionariedade regrada de prevera legislação pertinente à previsão de normas gerais que atendam aos finspropostos em sede constitucional, de mo<strong>do</strong> que to<strong>do</strong>s os direitos conferi<strong>do</strong>sàs crianças sejam alcança<strong>do</strong>s, sen<strong>do</strong> certo que tais regras devem estarbalisadas pela estrutura principiológica de garantia <strong>do</strong> melhor interessedas crianças.Ao Poder Judiciário incumbe garantir a constitucionalidade e a legalidade<strong>do</strong>s atos realiza<strong>do</strong>s, ten<strong>do</strong> sempre em consideração a perspectivade atuação em favor de crianças e a<strong>do</strong>lescentes, destinatárias das normaspreventivas e protetivas.Por sua vez, não pode o Poder Executivo, imbuí<strong>do</strong> de ponto de vistarepressivo, pretender realizar faxina social, mediante o recolhimento dascrianças, como alhures já referi, de mo<strong>do</strong> que sejam crianças expurgadasda sociedade. A solução não passa pela exclusão <strong>do</strong>s indivíduos, a consideraçãodistorcida e dissociada da previsão constitucional.Ao contrário, impõe o respeito a sua condição de pessoa em desenvolvimento,mediante a previsão, garantia e execução de políticas públicasque permitam a crianças e a<strong>do</strong>lescentes o alcance de seus direitos.Nesse senti<strong>do</strong>, cabe afirmar que o Ministério Público detém atribuiçõeslegais para impor a adequada realização de políticas públicas emprol de crianças, assim como para impedir o vilipêndio acintoso de seusdireitos.Nem se afirme que se estaria adentran<strong>do</strong> o mérito administrativo.Isso porque o resguar<strong>do</strong> <strong>do</strong> mérito administrativo presume a sua legalidade.No caso de recolhimento de crianças, não ten<strong>do</strong> por ótica o seumelhor interesse, mas tão somente a maquiagem social, verifica-se ailegalidade, sen<strong>do</strong> de atribuição <strong>do</strong> Judiciário a sua apreciação para finsde expurgar o equívoco <strong>do</strong> ato.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 271-277, jul.-set. 2011 273


Em consonância com a recente reforma <strong>do</strong> Código Penal, Lei12.403/2011, cabe desde logo dizer que a prisão preventiva poderá serdecretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, porconveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da leipenal, quan<strong>do</strong> houver prova da existência <strong>do</strong> crime e indício suficiente deautoria.Assim, como leciona a <strong>do</strong>utrina, o periculum libertatis e o fumuscommissi delicti são o fundamento e o requisito da preventiva, respectivamente.A nova Lei 12.403, de 04/05/2011, que alterou o parágrafo único<strong>do</strong> art. 313 <strong>do</strong> CPP, prevê que também será admitida a prisão preventivaquan<strong>do</strong> houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quan<strong>do</strong> estanão fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, deven<strong>do</strong> o presoser coloca<strong>do</strong> imediatamente em liberdade após a identificação, salvo seoutra hipótese recomendar a manutenção da prisão.O mestre Guilherme de Souza Nucci, na sua obra, Prisão e Liberdade,sobre a nova lei, assevera que o direito ao silêncio liga-se ao contextoda imputação, mas não à identificação <strong>do</strong> indicia<strong>do</strong> ou réu. Ainda, ressalvaque a Lei 12.037/2009 prevê as hipóteses nas quais se pode identificar oindicia<strong>do</strong> ou réu, criminalmente, colhen<strong>do</strong> suas impressões dactiloscópicase sua fotografia.O <strong>do</strong>utrina<strong>do</strong>r Aury Lopes Junior, no seu livro O novo regime jurídicoda prisão processual, liberdade provisória e medidas cautelaresdiversas, salienta, com propriedade que lhe é peculiar, que o dispositivoem questão não autoriza a prisão preventiva para averiguações e que talartigo deve ser interpreta<strong>do</strong> em conjunto com a Lei 12.037/90, que regulamentoua identificação criminal prevista no art. 5º, LVIII, da CF.O mestre Aury ressalva que, não sen<strong>do</strong> apresenta<strong>do</strong> qualquer <strong>do</strong>cumentocivil ou militar, ou nas hipóteses <strong>do</strong> art. 3º da Lei 12.037, seráo suspeito submeti<strong>do</strong> à identificação criminal e, dependen<strong>do</strong> <strong>do</strong> caso, àprisão preventiva (desde que cabível).Como se vê, a prisão preventiva, quan<strong>do</strong> houver dúvida sobre aidentidade civil, somente poderá ser decretada na ausência de qualquer<strong>do</strong>cumento civil ou militar, ou nas hipóteses <strong>do</strong> art. 3º da Lei 12.037 (taiscomo o <strong>do</strong>cumento apresentar rasura ou tiver indício de falsificação, entreoutros), desde que seja cabível.274R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 271-277, jul.-set. 2011


Cediço que a prisão preventiva somente tem cabimento nos crimes<strong>do</strong>losos puni<strong>do</strong>s com pena privativa de liberdade máxima superior a 04anos; se o suspeito tiver si<strong>do</strong> condena<strong>do</strong> por outro crime <strong>do</strong>loso comsentença transitada em julga<strong>do</strong>; se o crime envolver violência <strong>do</strong>mésticae familiar contra a mulher, criança, i<strong>do</strong>so, enfermo ou pessoa com deficiência,para garantir a execução das medidas protetivas de urgências, ou sehouver descumprimento de qualquer das obrigações impostas por forçade outras medidas cautelares.Fora as hipóteses de cabimento acima mencionadas, a prisão preventiva,quan<strong>do</strong> houver dúvida sobre a identidade civil ou quan<strong>do</strong> a pessoanão fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, é ilegal, sobpena de afronta ao princípio da presunção da inocência.Não se pode prender apenas para identificação pessoal.Como bem esclarece Silvio César Arouk Gemaque “ninguém podeser preso preventivamente apenas porque não tenha como comprovarsua identidade, sem que haja qualquer indício de prática de crime (...)”.Finalizan<strong>do</strong>, cumpre então dizer que a nova lei não pode autorizar aprisão de qualquer pessoa tão somente pelo fato de a mesma não fornecerelementos para a sua devida identificação pessoal, somente se poden<strong>do</strong>aceitá-la, desde que cabível, conforme as hipóteses acima mencionadas.Sob esse enfoque, deve-se analisar a real natureza <strong>do</strong> denomina<strong>do</strong>“Protocolo <strong>do</strong> Serviço Especializa<strong>do</strong> em Abordagem Social no âmbito daProteção Social Especial de Média Complexidade ” que está sen<strong>do</strong> implementa<strong>do</strong>pelo Poder Executivo <strong>do</strong> Município <strong>do</strong> Rio de Janeiro.Diz o cita<strong>do</strong> <strong>do</strong>cumento (Resolução smas nº 20, de 27 de maio de2011, publica<strong>do</strong> no Diário Oficial Eletrônico <strong>do</strong> Município de 30.05.2011),no seu artigo 5º, inciso XV, in verbis:“Art. 5º - São considera<strong>do</strong>s procedimentos <strong>do</strong> Serviço Especializa<strong>do</strong>em Abordagem Social, deven<strong>do</strong> ser realiza<strong>do</strong>s pelasequipes <strong>do</strong>s CREAS/Equipe Técnica/Equipe de Educa<strong>do</strong>res:(...)XV – acompanhar to<strong>do</strong>s os a<strong>do</strong>lescentes aborda<strong>do</strong>s à Delegaciade Proteção à Criança e ao A<strong>do</strong>lescente - DPCA, paraverificação de existência de manda<strong>do</strong> de busca e apreensãoe após acompanhá-los à Central de Recepção para acolhimentoemergencial;”(...)(grifei)R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 271-277, jul.-set. 2011 275


Cediço que a apreensão em flagrante <strong>do</strong> a<strong>do</strong>lescente infrator é medidadrástica de privação de liberdade, em relação a qual devem ser rigorosamenteobserva<strong>do</strong>s os direitos e garantias previstos no ECA, sob penade responsabilização.Registre-se que, há que deixar claro, a criança (até 12 anos de idadeincompletos) não será apreendida em flagrante pela polícia por práticade ato infracional, mas apenas o a<strong>do</strong>lescente (de 12 até 18 anos de idadeincompletos). Segun<strong>do</strong> o artigo 105 <strong>do</strong> ECA, ao ato infracional pratica<strong>do</strong>por criança corresponderão as medidas previstas no art. 101 (medidasprotetivas ou de proteção em espécie), a serem aplicas pelo ConselhoTutelar (art. 136, I) ou Juiz da Infância e Juventude (art. 262). Pelo oraexposto, depreende-se que, prima facie, inexistirá manda<strong>do</strong> de busca eapreensão expedi<strong>do</strong> em desfavor de criança, logo, a dita abordagem, parao efeito previsto no inciso acima referi<strong>do</strong>, atinge ou deveria atingir apenaso a<strong>do</strong>lescente.Por outro la<strong>do</strong>, nos termos <strong>do</strong> ECA (art. 106, caput), em normaadaptada <strong>do</strong> art. 5º, LXI, da Constituição, o a<strong>do</strong>lescente somente será priva<strong>do</strong>de sua liberdade em duas hipóteses: 1) em caso de flagrante deato infracional ou 2) por ordem escrita e fundamentada da autoridadejudiciária competente.Ora, se a apreensão ou a “abordagem” <strong>do</strong> a<strong>do</strong>lescente não se deuem razão de flagrante de ato infracional, sua condução coercitiva à DPCApara verificação de existência de manda<strong>do</strong> de busca e apreensão representaclaro desrespeito às garantias constitucionais e infraconstitucionais.A apreensão em flagrante <strong>do</strong> a<strong>do</strong>lescente está regulada no ECA,mais precisamente, no Título VI: Do Acesso à Justiça, Capítulo III: Dos Procedimentos,Seção V: Da Apuração de Ato Infracional Atribuí<strong>do</strong> a A<strong>do</strong>lescente,valen<strong>do</strong> salientar que aplicam-se subsidiariamente as normasgerais previstas no Código de Processo Penal e leis processuais esparsaspertinentes (cf. art. 152).Assim, somente se houver dúvida sobre a idade real <strong>do</strong> a<strong>do</strong>lescente,cuja identificação não foi obtida e que alega ser menor de 18 anos,como tal será ele trata<strong>do</strong>, inclusive na lavratura <strong>do</strong>s respectivos procedimentos,até esclarecimento através <strong>do</strong> órgão de identificação ou períciamédico-legal. A identificação compulsória, em consonância com o art. 5º,LVIII, da CF ocorre nos termos <strong>do</strong> art. 109 <strong>do</strong> ECA, que dispõe que: “O a<strong>do</strong>lescentecivilmente identifica<strong>do</strong> não será submeti<strong>do</strong> a identificação com-276R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 271-277, jul.-set. 2011


pulsória pelos órgãos policiais, de proteção e judiciais, salvo para efeito deconfrontação, haven<strong>do</strong> dúvida fundada”. (grifei) Realizada a identificaçãoao arrepio da hipótese legal, configura-se a responsabilidade penal <strong>do</strong> art.232 <strong>do</strong> ECA.Deve-se, portanto, evitar a vulgarização da apreensão <strong>do</strong> a<strong>do</strong>lescente,estabelecen<strong>do</strong>-a como uma rotina de abordagem social, sob o falsoaspecto de que se está cumprin<strong>do</strong> a norma legal. O Poder Público, comogaranti<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s direitos <strong>do</strong>s a<strong>do</strong>lescentes apreendi<strong>do</strong>s, deve repelir qualqueratitude que vise a expor a imagem e identidade destes, e deve pautarseus esforços e ações no senti<strong>do</strong> de priorizar a proteção integral a quefazem jus.Destarte, o ECA constitui paradigma de enfrentamento proporcionale garantista das questões que envolvem a infância e juventude, e, comotal, deve ser o instrumento legal utiliza<strong>do</strong> por aqueles que são incumbi<strong>do</strong>spela ordem constitucional de assegurar, com absoluta prioridade, os direitosdas crianças e <strong>do</strong>s a<strong>do</strong>lescentes.Dessa forma, conclui-se que as ações de recolhimento de a<strong>do</strong>lescentesrealizadas ao arrepio <strong>do</strong> ECA com a aplicação subsidiária <strong>do</strong> parágrafoúnico <strong>do</strong> art. 313 <strong>do</strong> CPP, e a implementação <strong>do</strong> famigera<strong>do</strong> “Protocolo<strong>do</strong> Serviço Especializa<strong>do</strong> em Abordagem Social”, em detrimento<strong>do</strong>s interesses superiores <strong>do</strong>s a<strong>do</strong>lescentes, são incabíveis, inconcebíveise flagrantemente ilegais, uma vez que afrontam a <strong>do</strong>utrina da proteçãointegral e contrariam os princípios de interpretação insculpi<strong>do</strong>s no art. 6ºda Lei 8.069/90 e no art. 227 da Constituição Federal.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 271-277, jul.-set. 2011 277


Interrogatório Judicial:a entrevista prévia ereservada com defensor ea participação das partesEduar<strong>do</strong> Francisco de SouzaJuiz Federal substituto. Vara Federal de Nova Friburgo.I -Natureza jurídica <strong>do</strong> interrogatório: um antigo debateEmbora o vigente Código de Processo Penal situe o interrogatóriojudicial no título referente à prova, a <strong>do</strong>utrina tem debati<strong>do</strong> sua natureza:se meio de prova ou mero ato de defesa.Ao tempo <strong>do</strong> processo de cunho inquisitorial, o interrogatório estavaliga<strong>do</strong> à confissão <strong>do</strong> acusa<strong>do</strong>, tratan<strong>do</strong>-se aquele <strong>do</strong> momento, por excelência,em que o juiz deveria obter a confissão <strong>do</strong> acusa<strong>do</strong>. Este, aliás, erareduzi<strong>do</strong> à condição de mero objeto <strong>do</strong> processo, pois sua posição dificilmenteautorizaria considerá-lo como sujeito de direitos. A importância daconfissão era tanta que lhe era cunha<strong>do</strong> o apeli<strong>do</strong> de “regina probatium”,ou seja, figurava, entre os meios de prova, como uma rainha, cuja majestadenão era passível de ponderação.Em contraposição a esse modelo, o sistema acusatório repudia acolocação <strong>do</strong> acusa<strong>do</strong> em situação de completa submissão. Caracteriza-se,na lição de ADA PELEGRINI GRINOVER 1 como um processo de partes, emque a relação processual, tríplice, coloca em pé de igualdade a acusação ea defesa, nitidamente separadas <strong>do</strong> juiz.Dessarte, o interrogatório melhor se define como um ato essencialmentede defesa, sobretu<strong>do</strong>, de autodefesa, visto que no processo penal,ao la<strong>do</strong> da defesa técnica, exercida pelo advoga<strong>do</strong>, hodiernamente indispensável(art. 133, CF), o acusa<strong>do</strong> pode defender-se pessoalmente. O in-1 GRINOVER, Ada Pellegrini. "Influência <strong>do</strong> Código de Processo Penal para Ibero-América na legislação latino-americana.Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 1, 1993, p. 41-63.278R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 278-289, jul.-set. 2011


terrogatório é o momento propício para o diálogo direto entre o acusa<strong>do</strong>e o juiz, na expressão de RENÉ ARIEL DOTTI 2 .Na <strong>do</strong>utrina, encontram-se defensores <strong>do</strong> interrogatório comomeio exclusivamente de defesa 3 , bem como aqueles que oferecem a soluçãoconciliatória, ou seja, o interrogatório é meio de defesa, sem deixarde ser meio de prova 4 .Parece-nos que o interrogatório essencialmente se destina a ser atode defesa, e, simultaneamente, é meio de prova, poden<strong>do</strong> o juiz levar emconta as declarações <strong>do</strong> acusa<strong>do</strong> para fundamentar decreto condenatório,mormente em razão <strong>do</strong> princípio da comunhão da prova, o que nãoseria possível caso se tratasse de exclusivo meio de defesa.Pode-se detectar, especialmente com a Constituição Federal de1988, em cujo art. 5º há uma série de direitos/garantias relaciona<strong>do</strong>s aoprocesso penal (v.g., contraditório e ampla defesa, direito ao silêncio,vedação às provas ilícitas entre outros), como também em razão de sucessivasalterações no Código de Processo Penal, que o sistema acusatóriovem se firman<strong>do</strong> como o modelo regente de nossas instituições jurídicocriminais.Aliás, o próprio momento em que, atualmente, se realiza o interrogatório,que passou a ser efetiva<strong>do</strong> ao final da instrução (art. 400, <strong>do</strong> CPP)corrobora o caráter bifronte <strong>do</strong> instituto, ser meio de prova e meio dedefesa, pois o acusa<strong>do</strong> tem a oportunidade de falar após conhecer to<strong>do</strong>o acervo probatório, visto que lhe é assegura<strong>do</strong>, inclusive, presenciar odepoimento das testemunhas, salvo no caso de sua presença causar-lhessério temor. Anteriormente à Lei 11.719/2008, o acusa<strong>do</strong> era cita<strong>do</strong> einterroga<strong>do</strong> em sequência. O momento em que o interrogatório é realiza<strong>do</strong>foi objeto de interessante debate na <strong>do</strong>utrina, conforme lição deNILZARDO CARNEIRO LEÃO 5 :“Terá que ser leva<strong>do</strong> em conta também o momento em queserá realiza<strong>do</strong> o interrogatório, sua proximidade ou não com2 DOTTI, René Ariel. "A presença <strong>do</strong> defensor no interrogatório". Disponível em http://online.sintese.com. Acessoem: 2.9.2011.3 “Se o acusa<strong>do</strong> pode calar-se não se pode dizer seja o interrogatório um meio de prova” (TOURINHO FILHO, Fernan<strong>do</strong>da Costa. Manual de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 451).4 Julio Fabbrini MIRABETE (Processo Penal. 8ª ed. São Paulo: Atlas, 1998, p. 277) posiciona-se nesse senti<strong>do</strong>, bemcomo ensina que tal corrente tornou-se a majoritária.5 CARNEIRO LEÃO, Nilzar<strong>do</strong>. "Do interrogatório <strong>do</strong> acusa<strong>do</strong>". Arquivo Forense, v. XXXVIII, 1959, p. 48.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 278-289, jul.-set. 2011 279


a data <strong>do</strong> fato delituoso. Os clássicos afirmam que tanto maisobjetivo será o interrogatório quanto mais próximo estiver<strong>do</strong> crime; corrente outra sustenta tese contrária: deve ser retarda<strong>do</strong>um pouco, para que haja maior fixação <strong>do</strong>s fatos namente <strong>do</strong> interroga<strong>do</strong>, surgin<strong>do</strong> daí o sentimento de culpa”.Curioso notar que antes mesmo <strong>do</strong> vigente Código de Processo Penal,fortemente marca<strong>do</strong> pela ideologia <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Novo, o processo penalbrasileiro conheceu uma fase liberal. Na lição de EDUARDO ESPÍNOLAFILHO 6 , “já se foram os tempos em que era proclamada, com alarde, aintangibilidade <strong>do</strong> direito <strong>do</strong> réu no interrogatório, reputa<strong>do</strong> única e exclusivamentemeio de defesa”, exemplifican<strong>do</strong> tal fase com a citação daexposição de motivos <strong>do</strong> Decreto n. 848, de 1890, em que o Min. CamposSalles condenava a figura <strong>do</strong> juiz que buscava a confissão <strong>do</strong> acusa<strong>do</strong>, extorquidaà força de uma sagacidade criminosa.Mesmo não se esquecen<strong>do</strong> dessa primitiva fase liberal, o sistemacriminal de justiça somente ganhou mais sóli<strong>do</strong>s contornos democráticosna presente era, aproveitan<strong>do</strong>-se da relativa estabilidade de nossasinstituições pós 1998, embora ainda careça de aperfeiçoamento. No quetange ao interrogatório, pode-se, a partir da legislação vigente, identificaraspectos em que se transparece o modelo acusatório.O art. 185 <strong>do</strong> CPP, ao dizer que “O acusa<strong>do</strong> que comparecer perantea autoridade judiciária, no curso <strong>do</strong> processo penal, será qualifica<strong>do</strong>e interroga<strong>do</strong> na presença de seu defensor, constituí<strong>do</strong> ou nomea<strong>do</strong>”deixa claro que o comparecimento <strong>do</strong> acusa<strong>do</strong> é facultativo (extensão,aliás, <strong>do</strong> direito ao silêncio, bem como <strong>do</strong> direito de ser acompanha<strong>do</strong> pordefensor, inclusive nomea<strong>do</strong> pelo juiz, caso não disponha de meios paraconstituir um de sua confiança). Por sua vez, deve ser adverti<strong>do</strong> <strong>do</strong> “direitode permanecer cala<strong>do</strong> e de não responder perguntas que lhe foremformuladas” (art.186), sem que tal possa ser interpreta<strong>do</strong> em seu desfavor.No presente trabalho, enfocaremos primordialmente duas inerências<strong>do</strong> sistema acusatório refletidas no interrogatório: o direito <strong>do</strong> acusa<strong>do</strong> aentrevistar-se prévia e reservadamente com seu advoga<strong>do</strong> antes <strong>do</strong> ato ea participação das partes e advoga<strong>do</strong>s no ato.6 ESPÍNOLA FILHO, Eduar<strong>do</strong>. Código de processo penal brasileiro anota<strong>do</strong>. Edição histórica. Rio de Janeiro: EditoraRio, 1976, p. 17-18.280R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 278-289, jul.-set. 2011


II – direito à entrevista prévia e reservadaO art. 185, § 5º, <strong>do</strong> CPC, estabelece que:“em qualquer modalidade de interrogatório, o juiz garantiráao réu o direito de entrevista prévia e reservada com oseu defensor; se realiza<strong>do</strong> por videoconferência, fica tambémgaranti<strong>do</strong> o acesso a canais telefônicos reserva<strong>do</strong>s paracomunicação entre o defensor que esteja no presídio e o advoga<strong>do</strong>presente na sala de audiência <strong>do</strong> Fórum, e entre estee o preso”.O direito de entrevista prévia e reservada com o seu defensor já estavaprevisto no Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992, que promulgoua Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São Joséda Costa Rica), de 22 de novembro de 1969 7 , e restou melhor delinea<strong>do</strong>pela Lei nº 10.792, de 1º de dezembro de 2003, que modificou o CPP.Está intimamente liga<strong>do</strong> à garantia constitucional da ampla defesa,que exige o oferecimento ao acusa<strong>do</strong> <strong>do</strong> maior número possível demeios para sua concretização. Seu surgimento complementa a garantiade que qualquer acusa<strong>do</strong> deve ter assegura<strong>do</strong> o acompanhamento de umdefensor. A entrevista prévia, que deve ser assegurada pelo magistra<strong>do</strong>,também foi instituída em benefício <strong>do</strong> advoga<strong>do</strong> (cuja indispensabilidadefoi realçada pela Constituição), mormente quan<strong>do</strong> se trata de acusa<strong>do</strong>spresos, cujo acesso nem sempre é facilita<strong>do</strong> pelo sistema prisional, possibilitan<strong>do</strong>ao profissional o cumprimento de seu mister 8 .A entrevista com o defensor representa ainda a confluência entre aautodefesa e a defesa técnica, em que esta, exercida pelo defensor, podeafinar-se com aquela. Com efeito, na conversa reservada com o seu cliente,o advoga<strong>do</strong> poderá ouvi-lo, elucidar-lhe o teor da acusação e indicar-lheuma estratégia de defesa, além de ser uma oportunidade de tranquilizar oacusa<strong>do</strong>, momento pedagógico para instruí-lo <strong>do</strong>s seus direitos, mormenteo de permanecer cala<strong>do</strong>, bem como conscientizá-lo de que se eventualmentefaltar com a verdade não sofrerá penalidades por tal conduta 9 .7 Artigo 8º - Garantias judiciais...d) direito <strong>do</strong> acusa<strong>do</strong> de defender-se pessoalmente ou de ser assisti<strong>do</strong> por um defensor de sua escolha e de comunicar-se,livremente e em particular, com seu defensor;8 Observe-se, entretanto, que não há obrigatoriedade de requisição de acusa<strong>do</strong> preso para mera entrevista com odefensor, desvinculada <strong>do</strong> interrogatório. (TJRJ; HC 0019670-73.2010.8.19.0000; Rel. Des. Antonio Carlos NascimentoAma<strong>do</strong>; DORJ 13/10/2010)9 Embora não se trate de um direito de mentir, pode-se dizer que se trata de uma faculdade, pois, conformeR. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 278-289, jul.-set. 2011 281


O direito à entrevista deve ser assegura<strong>do</strong>, estan<strong>do</strong> na esfera deliberdade <strong>do</strong> acusa<strong>do</strong> ou de seu defensor fazer usá-lo, caben<strong>do</strong> ao juizapenas advertir o acusa<strong>do</strong> da existência de tal direito, não haven<strong>do</strong> que sefalar em determinação de ofício. Cumpre notar que se tal direito não forassegura<strong>do</strong>, poderá implicar nulidade <strong>do</strong> ato, nulidade esta que se revestede caráter relativo 10 . Realmente, a nulidade só deve ser reconhecida casocomprova<strong>do</strong> o prejuízo para a defesa, conforme o princípio pas de nullitésans grief, a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> pelo art. 563 <strong>do</strong> CPP 11 , prejuízo que não ocorrerá, porexemplo, se o acusa<strong>do</strong> permanecer cala<strong>do</strong> durante o interrogatório.Há certa ponderação na jurisprudência no senti<strong>do</strong> de que o direitoà entrevista prévia e reservada é vocaciona<strong>do</strong> em especial para o acusa<strong>do</strong>quem tem defensor nomea<strong>do</strong> pelo juízo 12 , notadamente quan<strong>do</strong> seencontra preso, sen<strong>do</strong> no mais das vezes a primeira oportunidade paraconversar com o defensor.Nesse passo, a garantia deve ser flexibilizada quan<strong>do</strong> se trata de réuque responde em liberdade e com advoga<strong>do</strong> constituí<strong>do</strong> 13 , pois quan<strong>do</strong><strong>do</strong> interrogatório já travou contato com seu defensor. Quer dizer, não éque o juiz não deva assegurar-lhe tal direito; apenas, se eventualmentenão formular tal advertência, nessas condições, não há que se falar emnulidade.O direito à entrevista, inclusive, tem o condão de sanar víciodecorrente de ausência de citação <strong>do</strong> réu preso 14 , que apenas fora requi-FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO, (ob. cit, p. 452), “o réu, se quiser ser interroga<strong>do</strong>, poderá mentir à vontade”,nada lhe acontece, salvo se fizer uma auto-acusação falsa ou uma denunciação caluniosa.10 Há jurisprudência reconhecen<strong>do</strong> que a infringência a tal direito implica nulidade absoluta (STJ; HC 82350;Rel. Maria Thereza De Assis Moura; DJE 08/06/2009).11 Art. 563 - Nenhum ato será declara<strong>do</strong> nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para adefesa.12 “O direito de entrevista prévia e reservada entre o réu e seu defensor está liga<strong>do</strong> ao interrogatório <strong>do</strong> acusa<strong>do</strong>e não à audiência de instrução e julgamento. A garantia possibilita ao réu que não possua advoga<strong>do</strong> constituí<strong>do</strong>conversar antecipadamente com o defensor nomea<strong>do</strong>, para que possa ser orienta<strong>do</strong> sobre as conseqüências de suasdeclarações, de mo<strong>do</strong> a não prejudicar sua defesa.” (STF; HC 99684; Rel. Min. Ellen Gracie).13 “EMENTA (...) O defensor público e o dativo são os principais destinatários da norma, pois, na maioria <strong>do</strong>s casos,conhecem o réu somente no momento <strong>do</strong> interrogatório. No tocante ao defensor constituí<strong>do</strong>, a utilização dessagarantia, embora possível, praticamente inexiste, uma vez que ele é cientifica<strong>do</strong> da data da audiência muito tempoantes, o que lhe assegura a oportunidade de conversar antecipadamente com seu cliente e orientá-lo. Evidentemente,haven<strong>do</strong> necessidade, pode requerer ao juiz que tal entrevista prévia lhe seja facultada. VII - In casu, tantoo magistra<strong>do</strong> quanto o representante <strong>do</strong> MPF retiraram-se da sala de audiência por ocasião da entrevista, permanecen<strong>do</strong>apenas o acusa<strong>do</strong>, seu defensor e os policiais que faziam a escolta. A permanência <strong>do</strong>s policias ocorreupor motivos de segurança pública, uma vez que as dependências <strong>do</strong> Fórum não asseguravam a prática <strong>do</strong> ato semo risco de uma eventual fuga ou para a segurança em geral.” (TRF 3ª Reg.; HC 29891; Rel. Juiz Cotrim Guimarães;DJF3 CJ1 08/10/2009).14“HABEAS CORPUS. FURTO QUALIFICADO TENTADO (ARTIGO 155, § 4º, INCISO III, COMBINADO COM O ARTIGO 14,II, TODOS DO CÓDIGO PENAL). ACUSADO PRESO. CITAÇÃO PESSOAL (ARTIGO 360 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL).282R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 278-289, jul.-set. 2011


sita<strong>do</strong> para o interrogatório. Durante o ato, o juiz, ao esclarecer, mediantea leitura da denúncia, reforça<strong>do</strong> pela entrevista prévia com o advoga<strong>do</strong>,supre a falta de citação, cuja finalidade é não apenas integrar o acusa<strong>do</strong>na relação processual, mas também informa-lhe acerca <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> daacusação, essencial para que possa exercitar seu direito de defesa.Tal direito, na dicção da lei, deve ser assegura<strong>do</strong> qualquer que sejaa modalidade de interrogatório judicial, inclusive aquele que se opera porvideoconferência, ten<strong>do</strong> a lei se preocupa<strong>do</strong> em garantir “o acesso a canaistelefônicos reserva<strong>do</strong>s para comunicação entre o defensor que estejano presídio e o advoga<strong>do</strong> presente na sala de audiência <strong>do</strong> Fórum, e entreeste e o preso” (art. 185, § 5º, fine, CPC).Submete-se a limites, não sen<strong>do</strong> reconheci<strong>do</strong> na fase policial 15 ,ante o caráter inquisitivo desta. Operacionaliza-se pela disponibilizaçãode uma sala, ou mesmo pela simples retirada <strong>do</strong> juiz e <strong>do</strong>s demais da salade audiência, ou através de tecnologia adequada, como a estabelecidapor “meio de interfone, livre de interferência de qualquer agente bioló-NULIDADE. REGULARIZAÇÃO DA EIVA PELO COMPARECIMENTO DO RÉU (ARTIGO 570 DA LEI PROCESSUAL PENAL).NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO DE PREJUÍZO. EIVA NÃO RECONHECIDA. "1. Não se desconhece a existência dejulga<strong>do</strong> desta colenda Quinta Turma no senti<strong>do</strong> de que a ausência de citação <strong>do</strong> acusa<strong>do</strong> que se encontra preso écausa de nulidade absoluta (HC HC 69.838/PI, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julga<strong>do</strong> em28/05/2008, DJe 04/08/2008). 2. Conforme decidi<strong>do</strong> no referi<strong>do</strong> precedente, com o avento da Lei 10.792/2003, quealterou a redação <strong>do</strong> artigo 360 <strong>do</strong> Código de Processo Penal, não é mais suficiente a simples requisição <strong>do</strong> acusa<strong>do</strong>preso, impon<strong>do</strong>-se a sua citação pessoal. 3. Contu<strong>do</strong>, no caso em análise, não houve apenas a requisição <strong>do</strong> paciente,mas sim a determinação de sua citação pessoal, que só não ocorreu por ele não se encontrar no estabelecimentoprisional aponta<strong>do</strong> no respectivo manda<strong>do</strong>. 4. Ademais, na própria ata <strong>do</strong> interrogatório constou expressamenteque o paciente teria compareci<strong>do</strong> em razão de citação que estaria certificada, embora tal <strong>do</strong>cumento não conste<strong>do</strong>s autos. 5. Ainda que assim não fosse, depreende-se que, após qualificar o paciente, o Juiz de Direito possibilitoua entrevista reservada entre ele e sua defensora, razão pela qual se tem como cumprida a finalidade <strong>do</strong> artigo 360<strong>do</strong> Código de Processo Penal - que impõe a citação pessoal <strong>do</strong> réu que estiver encarcera<strong>do</strong> -, já que, antes de serinquiri<strong>do</strong>, teve conhecimento da acusação contra si formulada, poden<strong>do</strong> conversar em particular com membro daDefensoria Pública, restan<strong>do</strong> observa<strong>do</strong>s os princípios da ampla defesa e <strong>do</strong> contraditório. 6. Ademais, é necessáriofrisar que mesmo que se considere hipótese de eiva absoluta a inexistência de citação <strong>do</strong> acusa<strong>do</strong> preso, a própriaLei Processual Penal, no artigo 570, estabelece a possibilidade de regularização da falta ou nulidade <strong>do</strong> referi<strong>do</strong> atoprocessual. 7. Ressalta-se que, atualmente, até mesmo em casos de nulidade absoluta, <strong>do</strong>utrina e jurisprudênciatêm exigi<strong>do</strong> a comprovação de prejuízo para que a mácula possa ser reconhecida. 8. Por conseguinte, ainda que seconsidere não ter havi<strong>do</strong> a citação pessoal <strong>do</strong> paciente, que estava preso, para ser interroga<strong>do</strong>, e mesmo que se entendaque tal ausência constitui nulidade absoluta, o certo é que a Defensoria Pública impetrante não demonstrouqualquer prejuízo à defesa, o que impossibilita o reconhecimento da citada eiva”. (STJ; HC 138142; Rel. Min. JorgeMussi; DJE 16/11/2010).“A possibilidade de entrevista reservada <strong>do</strong> réu com seu Defensor antes <strong>do</strong> interrogatório, introduzida pela Lei10.792/03, buscou resguardar ao acusa<strong>do</strong>, desprovi<strong>do</strong> de Advoga<strong>do</strong> constituí<strong>do</strong>, o direito de receber orientações deum Defensor Público ou Dativo, destinatários prioritários da norma, nomea<strong>do</strong> para o ato; na verdade, o Advoga<strong>do</strong>constituí<strong>do</strong> já terá ti<strong>do</strong> a oportunidade de conversar com seu cliente, orienta<strong>do</strong>-o das consequências de suas declaraçõesem juízo e da linha de defesa a ser a<strong>do</strong>tada. 2. 3. Ademais, eventual alegação de inobservância ao art. 185, § 2o.<strong>do</strong> CPP, quan<strong>do</strong> o réu já é assisti<strong>do</strong> por Advoga<strong>do</strong> constituí<strong>do</strong>, representa nulidade relativa, de sorte que depende decomprovação concreta <strong>do</strong> prejuízo sofri<strong>do</strong>” (STJ; HC 152060; Rel. Napoleão Nunes Maia Filho; DJE 06/09/2010).15 TJRS; ACr 70027663962; Rel. Des. Carlos Alberto Etcheverry; DOERS 15/04/2009.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 278-289, jul.-set. 2011 283


gico, ou seja, respeitan<strong>do</strong>-se a privacidade e sigilo que são inerentes aoexercício da advocacia” 16 .O CPP determina que “Haven<strong>do</strong> mais de um acusa<strong>do</strong>, serão interroga<strong>do</strong>sseparadamente” (art. 191), o que deve ser compatibiliza<strong>do</strong> com odireito de entrevista reservada com o advoga<strong>do</strong>. Tal determinação perderiasenti<strong>do</strong> se o advoga<strong>do</strong> que assistiu o depoimento <strong>do</strong> corréu pudesseentrevistar-se com seu cliente que ainda não depôs. A lei fala em entrevistaprévia, mas não diz se prévia ao interrogatório de cada réu ou aosinterrogatórios em geral.A necessidade de se impedir que um acusa<strong>do</strong> presencie o interrogatóriode outro é tão premente que levou EDUARDO ESPÍNOLA FILHO 17 ,em sua clássica obra, a ensinar que:“Entendemos que, a fim de manter-se, com to<strong>do</strong> rigor, a finalidadedessa separação, o advoga<strong>do</strong> de um <strong>do</strong>s co-réus, aindanão interroga<strong>do</strong>, não deve ser admiti<strong>do</strong> a assistir o interrogatório<strong>do</strong>s outros, pois terá elementos verdadeiramente preciosospara instruí-lo.”Repare-se que a advertência <strong>do</strong> provecto professor estaria maisadequada à época em que não se reconhecia a plenitude <strong>do</strong> direito aosilêncio, muito menos a existência <strong>do</strong> direito de entrevista pessoal, queserve justamente para possibilitar o réu a instruir o acusa<strong>do</strong>. Nesse passo,o art. 191 <strong>do</strong> CPP, que trata da inquirição em separa<strong>do</strong>, deveria sofrer umareleitura, no senti<strong>do</strong> de que sua teleologia seria apenas para evitar queum acusa<strong>do</strong> fosse influencia<strong>do</strong> pelo depoimento <strong>do</strong> outro 18 , não sen<strong>do</strong>veda<strong>do</strong> o conhecimento <strong>do</strong> teor <strong>do</strong> depoimentos por parte <strong>do</strong>s demaisacusa<strong>do</strong>s.Nesse ponto, o caráter de meio de prova, também inerente aointerrogatório, não pode ser negligencia<strong>do</strong>, sob o argumento de ser ointerrogatório meio de defesa. É preciso conciliá-los, preservar a vertenteprobatória <strong>do</strong> interrogatório implica reconhecer o caráter histórico queenvolve o processo criminal, e a prova judicial destina-se a hercúlea tare-16 STJ; HC 130894; Rel. Min. Jorge Mussi; DJE 14/06/2010.17 ESPINOLA FILHO, op. cit., p. 14.18 “Interrogatório em separa<strong>do</strong>: é a forma correta de se evitar que haja influência de um co-réu sobre outro,levan<strong>do</strong>-os, muitas vezes, a confissões ou acusações falsas.” (NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penalcomenta<strong>do</strong>. São Paulo: RT, 2008, p. 423).284R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 278-289, jul.-set. 2011


fa, de reconstrução de uma realidade já passada no tempo 19 . A fim de preservara atuação <strong>do</strong> juiz nesse processo de reconstrução passa<strong>do</strong>, parecenosque é lícito ao legisla<strong>do</strong>r erigir meios, tal como a inquirição separada,que em nada prejudica o direito de defesa <strong>do</strong> acusa<strong>do</strong>.Veja-se que a inquirição separada preserva a igualdade das partes,pois, <strong>do</strong> contrário, privilegiar-se-ia uma das partes, a que restar a ser ouvidapor último, em detrimento daquela ouvida inicialmente, em arrepioà paridade das armas.É prudente que o juiz, antes de iniciar os interrogatórios, advirtaaos advoga<strong>do</strong>s e acusa<strong>do</strong>s que, caso queiram exercer o direito de entrevista,o façam naquele momento, sob pena de preclusão.A presença <strong>do</strong> advoga<strong>do</strong> no interrogatório <strong>do</strong> corréu será objeto demaiores consideração no tópico seguinte.III – Da participação no interrogatório: “Chamada <strong>do</strong> Corréu”e forma de inquiriçãoEm um primeiro momento, negou-se até mesmo ao advoga<strong>do</strong> <strong>do</strong>interroga<strong>do</strong> a possibilidade de participar <strong>do</strong> interrogatório, conformeantiga redação <strong>do</strong> art. 188.Com o advento da Lei n. 10.792/2003, o dispositivo passou a permitiruma participação das partes no interrogatório, através de esclarecimentos,sob controle <strong>do</strong> julga<strong>do</strong>r:“Art. 188 Após proceder ao interrogatório, o juiz indagarádas partes se restou algum fato para ser esclareci<strong>do</strong>, formulan<strong>do</strong>as perguntas correspondentes se o entender pertinentee relevante.”A nova redação salienta o caráter bifronte <strong>do</strong> interrogatório, pois,sen<strong>do</strong> também meio de prova, possibilitou-se às partes, inclusive o advoga<strong>do</strong><strong>do</strong> interroga<strong>do</strong>, explorar o testemunho deste. Neste ponto, ointerrogatório submete-se ao princípio da comunhão da prova 20 , peloqual não é uma prova exclusiva de uma das partes, e sim uma prova <strong>do</strong>processo, que pode ser usa<strong>do</strong> tanto para favorecer quanto para prejudicaro interroga<strong>do</strong>.19 OLIVEIRA, Eugenio Pacceli de e FISCHER, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência.2ªed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2011, p. 426.20 STJ; HC 100.792; Rel. Min. Felix Fischer; DJE 30/06/2008.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 278-289, jul.-set. 2011 285


Nesse ponto, interessante constatar que na Itália, a própria lei, emdemonstração de lealdade perante o acusa<strong>do</strong> 21 , impõe que seja o acusa<strong>do</strong>adverti<strong>do</strong> que suas declarações poderão ser usadas em seu desfavor 22 .Com efeito, o silêncio <strong>do</strong> acusa<strong>do</strong> não pode lhe prejudicar, o que não querdizer que suas declarações não possam ser usadas contra ele.O CPP faculta ao acusa<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> nega a imputação, indicar “seconhece a pessoa ou pessoas a quem deva ser imputada a prática <strong>do</strong> crime”(art. 187); bem como, “se confessar a autoria, será pergunta<strong>do</strong> sobreos motivos e circunstâncias <strong>do</strong> fato e se outras pessoas concorreram paraa infração, e quais sejam” (art. 190). Quanto à situação disciplinada nesteúltimo dispositivo, a <strong>do</strong>utrina denomina de “chamada de corréu”,“delação” ou “chamamento de cúmplice”.Respeitável <strong>do</strong>utrina entende ser inadmissível tal delação comofonte de prova, fundan<strong>do</strong>-se sobretu<strong>do</strong> em razão de não admitir a lei,quan<strong>do</strong> <strong>do</strong> interrogatório, a intervenção <strong>do</strong> acusa<strong>do</strong>r, nem <strong>do</strong> defensor 23 .A jurisprudência, entretanto, se firmou no senti<strong>do</strong> de ser válidaa delação <strong>do</strong> corréu, “desde que amparada por outros elementos deprova” 24 . Num primeiro momento, entretanto, não se admitiu a participação<strong>do</strong>s advoga<strong>do</strong>s <strong>do</strong> corréu no interrogatório <strong>do</strong>s demais acusa<strong>do</strong>s,sob o argumento de que:“EMENTA...Não existe amparo legal para a participação deAdvoga<strong>do</strong> no interrogatório de Corréu de que não é Patrono,com a finalidade de formular questionamentos. 2. Qualqueralegação de Corréu, durante o interrogátorio, que porventuraincrimine exclusivamente outro Acusa<strong>do</strong>, pode ser contestadaem momento oportuno, durante a instrução <strong>do</strong> processo-crime.”(STJ; HC 96.100;Relª Minª Laurita Vaz; DJE 13/12/2010)O entendimento em apreço mostra-se contraditório, pois ao tempoem que considera a delação <strong>do</strong> corréu fonte de prova, a subtrai <strong>do</strong> contraditório,visto que impede àqueles que podem ser prejudica<strong>do</strong>s por taldelação o direito de participar da sua produção.21 TONINI, Paolo. Manuale di procedura penale. 11ª ed. Milão: Giuffré Editore, 2010, p. 125-126.22 “Art. 64. (Regole generali per l’interrogatorio). 3. Prima che abbia inizio l’interrogatorio, la persona deve essereavvertita che:a) le sue dichiarazioni potranno sempre essere utilizzate nei suoi confronti”.23 TOURINHO FILHO, op. cit., p. 455.24 TRF 3ª R.; ACR 11374; Relª Juíza Cecilia Mello; DJU 30/01/2004.286R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 278-289, jul.-set. 2011


Assim, com esteio no princípio <strong>do</strong> contraditório, em cujo núcleoconceitual está o direito de participar e contribuir na formação <strong>do</strong> acervoprobatório, os tribunais passaram a admitir a participação <strong>do</strong>s advoga<strong>do</strong>s,com direito de fazer reperguntas: “a decisão que impede que o defensorde um <strong>do</strong>s réus repergunte ao outro acusa<strong>do</strong> ofende os princípios constitucionaisda ampla defesa, <strong>do</strong> contraditório e da isonomia, geran<strong>do</strong> nulidadeabsoluta” 25 . Nessa esteira, reconheceu-se obrigatória a intimaçãode corréus e seus defensores para o interrogatório <strong>do</strong> outro réu, sob penade ofensa ao direito à plenitude de defesa e ao tratamento igualitário daspartes 26 .Nesse passo, é interessante notar a solução dada pelo Direito italiano,que fez constar em seu Código de Processo Penal 27 que, no caso dedelação de corréu, o juiz fará ao interroga<strong>do</strong> a advertência de que ele serevestirá da condição de testemunha em relação a tal fato.No Brasil, todavia, há precedentes que refutam a atribuição de testemunhaao interroga<strong>do</strong>, que jamais poderia se submeter ao compromissode dizer a verdade:“PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. CO-RÉUDELATOR. TESTEMUNHA DE DEFESA. (...). Construção jurisprudencialfirmada no senti<strong>do</strong> de que a condição de co-réuconstitui impedimento para testemunhar nos autos, por gozaro acusa<strong>do</strong>, no processo, da prerrogativa constitucional demanter-se em silêncio, sem que tal ato lhe importe qualquersanção. No caso vertente, os elementos colhi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> co-réunão têm, isoladamente, aptidão para embasar um Decretopenal condenatório. Seu valor é aferi<strong>do</strong> em harmonia com osdemais elementos carrea<strong>do</strong>s aos autos, obti<strong>do</strong>s na fase préprocessualou decorrentes da instrução criminal. Ordem quese denega.” (TRF 2ª R.; HC 3971; Proc. 2005.02.01.002636-2;RJ; Primeira Turma Especial; Rel. Juiz Sergio Feltrin Correa;Julg. 15/06/2005; DJU 24/06/2005; Pág. 451)25 STF; HC 101.648; Relª Minª Carmen Lúcia; DJE 09/02/2011.26 STJ; HC 172.390; Rel. Min. Gilson Dipp; DJE 01/02/2011.27 Art. 64. (Regole generali per l’interrogatorio). 3. Prima che abbia inizio l’interrogatorio, la persona deve essereavvertita che:c) se renderà dichiarazioni su fatti che concernono la responsabilità di altri, assumerà, in ordine a tali fatti, l’ufficio ditestimone, salve le incompatibilità previste dall’articolo 197 e le garanzie di cui all’articolo 197-bis.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 278-289, jul.-set. 2011 287


Com efeito, não se admite a oitiva de corréu na qualidade de testemunhaou, mesmo, de informante, com exceção apenas <strong>do</strong> corréucolabora<strong>do</strong>r ou delator, na chamada delação premiada, prevista na Leinº 9.807/1999 28 .Entendeu-se pela possibilidade, no entanto, de ser arrola<strong>do</strong>como testemunha em processo diverso:“HABEAS CORPUS. INTERROGATÓRIO DO RÉU. MEIO DE DEFE-SA. RÉU REVEL QUE COMPARECE EM JUÍZO DEVE SER OUVIDO.CO-RÉU EM PROCESSO DIVERSO OUVIDO COMO TESTEMU-NHA DE DEFESA. POSSIBILIDADE. ASSEGURADO DIREITO DENÃO AUTO-INCRIMINAR-SE. (...) 2- Não há vedação de o corréuem outra ação penal ser ouvi<strong>do</strong> como testemunha emfeito diverso cujos fatos não são completamente idênticos. Sedepõe na qualidade de testemunha, tem também direito aosilêncio quan<strong>do</strong> a resposta à indagação possa incriminá-lo ouacarretar-lhe grave dano ou ainda quan<strong>do</strong> deva guardar sigiloprofissional, bem como de serem assisti<strong>do</strong>s por advoga<strong>do</strong>e o de não serem compeli<strong>do</strong>s a firmar termo de compromissolegal como testemunha, sem que tal recusa constitua motivopara prisão em flagrante, por desobediência (art. 330 <strong>do</strong> CP)ou falso testemunho (art. 342 <strong>do</strong> CP). 3- Ordem concedida.”(TRF 3ª R.; HC 0018673-36.2011.4.03.0000; Rel. Des. Fed.José Lunardelli; DEJF 01/09/2011)Questão interessante, que afeta a forma de participação das partes,assegurada pela novel redação <strong>do</strong> art. 188, diz respeito ao mo<strong>do</strong> comodeve ser toma<strong>do</strong> o depoimento. É que o CPP passou a admitir que odefensor inquira diretamente a testemunha e o interroga<strong>do</strong>, no rito <strong>do</strong>tribunal <strong>do</strong> Júri:“Art. 212. As perguntas serão formuladas pelas partes diretamenteà testemunha, não admitin<strong>do</strong> o juiz aquelas que pudereminduzir a resposta, não tiverem relação com a causa ouimportarem na repetição de outra já respondida.”“Art. 474. A seguir será o acusa<strong>do</strong> interroga<strong>do</strong>, se estiverpresente, na forma estabelecida no Capítulo III <strong>do</strong> Título VII<strong>do</strong> Livro I deste Código, com as alterações introduzidas nestaSeção. (Altera<strong>do</strong> pela L-011.689-2008)28 TRF 5ª R.; HC 4299; Rel. Des. Fed. Francisco Cavalcanti; DEJF 08/07/2011.288R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 278-289, jul.-set. 2011


§ 1º O Ministério Público, o assistente, o querelante e odefensor, nessa ordem, poderão formular, diretamente,perguntas ao acusa<strong>do</strong>.”Há quem entenda ser cabível a indagação direta <strong>do</strong> interroga<strong>do</strong>pelas partes, qualquer que seja o rito 29 . Nesse ponto, se não bastasse a carênciade expressa autorização legal, pois a indagação direta só é admitidapelo CPP no rito <strong>do</strong> Tribunal <strong>do</strong> Júri, a faceta de ato de defesa recomendaque a participação das partes sofra o filtro judicial com maior intensidadequan<strong>do</strong> se trata de perguntas formuladas pela acusação, a fim de evitarcoação ou indagações capciosas, o que impõe a manutenção <strong>do</strong> sistemapresidencialista no interrogatório. A permissão da indagação direta, noTribunal <strong>do</strong> Júri, em nosso sentir, se deve a peculiar condição deste processo,em que há uma participação popular em sua composição, cujosintegrantes julgam com base na consciência.Para finalizar este tópico, relativo a participação das partes nointerrogatório, cumpre fazer uma consideração sobre o papel <strong>do</strong> juiz noato. Muito embora o sistema acusatório identifique o processo criminalcomo um processo de partes, no qual é veda<strong>do</strong> a iniciativa probatóriapor parte <strong>do</strong> juiz, conforme escólio de AFRANIO DA SILVA JARDIM 30 , nãoreputamos correto atribuir ao juiz uma função passiva e acrítica frenteo interrogatório.Ao dialogar com o acusa<strong>do</strong>, deve o juiz manter-se atento à postura<strong>do</strong> interroga<strong>do</strong>, seu tom de voz, suas reações às perguntas, à clareza desua exposição, ten<strong>do</strong> o tirocínio de questionar eventual incoerência nanarrativa, ou, na feliz lição <strong>do</strong> Professor NILZARDO CARNEIRO LEÃO 31 ,“a função <strong>do</strong> julga<strong>do</strong>r, no interrogatório, não é, rotineiramente, de simplesescuta<strong>do</strong>r da narração <strong>do</strong> fato pelo acusa<strong>do</strong>, deve ser empregadatoda atenção possível.”29 FEITOSA, Denílson. Direito Processual Penal. Teoria, crítica e práxis. 6ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2009, p. 745.30 JARDIM, Afrânio da Silva. Direito Processual Penal. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 322.31 CARNEIRO LEÃO, op. cit., p. 48.R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 278-289, jul.-set. 2011 289


NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE ARTIGOS1 - Os textos devem ser envia<strong>do</strong>s por correio eletrônico, para o endereçoemerjpublicacoes@tjrj.jus.br;2 - Fontes: no corpo <strong>do</strong> texto - Times New Roman – 12 nas citações longas e notas de rodapé – 10 cor preta (exceto para gráficos);3 - Margens: esquerda e superior de 3 cm; direita e inferior de 2 cm;4 - Espaços no corpo <strong>do</strong> trabalho: 1,5;5 - Espaço simples, nos seguintes casos: citações literais de mais de três linhas, notas, referências;6 - Destaques: itálico ou negrito;7 - Numeração de páginas - iniciada a partir da segunda folha da introdução,embora a inicial seja contada;8 - Fazer referências às fontes de consulta através de citações no texto ouem notas de rodapé, observan<strong>do</strong> que: a primeira citação de uma obra deverá ter a sua referência completa.Exemplo:ÚLTIMO SOBRENOME <strong>do</strong> autor (exceto Filho, Neto, Júnior),Prenome e outros sobrenomes (abrevia<strong>do</strong>s ou não). Título. Local:editora, ano. página 1 . as citações subsequentes da mesma obra podem ser feitas de formaabreviada, com as seguintes expressões:a) Idem (id) – mesmo autor 2b) Opus citatum (op. cit.) – obra citada 31 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Lesão nos contratos. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959. p. 24.2 Idem, 2001, p. 19.3 RODRIGUES, op.cit., p. 40.290R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 14, n. 55, p. 290, jul.-set. 2011

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!