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<strong>ISSN</strong> <strong>2236</strong>-<strong>8957</strong><str<strong>on</strong>g>Revista</str<strong>on</strong>g> da EMERJv. 15 - n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g> - 2012Outubro/Novembro/DezembroRio <strong>de</strong> JaneiroR. EMERJ Rio <strong>de</strong> Janeiro v. 15 n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g> p. 1-272 out.-<strong>de</strong>z. 2012


© 2012 EMERJEscola da Magistratura do Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro - EMERJTRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - TJERJ<str<strong>on</strong>g>Revista</str<strong>on</strong>g> doutrinária <strong>de</strong>stinada ao enriquecimento da cultura jurídica do País.C<strong>on</strong>selho Editorial:Min. Luiz Fux; Min. Luis Felipe Salomão; Min. Marco Aurélio Bellizze, Des. SergioCavalieri Filho; Des. Letícia <strong>de</strong> Faria Sardas; Des. Jessé Torres Pereira Júnior;Des. Geraldo Prado.Coor<strong>de</strong>nação: Des. Leila Mariano.Produção Gráfico-Editorial: Divisão <strong>de</strong> Publicações da EMERJ.Editor: Irapuã Araújo (MTb MA00124JP); Programação Visual: Jaque<strong>line</strong> Diniz;Capa: Georgia Kitsos; Revisão Ortográfica: Suely Lima, Ana Paula Mara<strong>de</strong>i e SergioSilvares.<str<strong>on</strong>g>Revista</str<strong>on</strong>g> da EMERJ. v. 1, n. 1 - Rio <strong>de</strong> Janeiro: EMERJ, 1998 -v.Trimestral.<strong>ISSN</strong> 1415-4951 (versão impressa)<strong>ISSN</strong> <strong>2236</strong>-<strong>8957</strong> (versão <strong>on</strong>-<strong>line</strong>)v. 1, n. 4, 1998: Anais da 4ª Semana <strong>de</strong> Integração Jurídica InteramericanaNúmero Especial 2003: Anais dos Seminários EMERJ Debate o NovoCódigo Civil, parte I, fevereiro a junho/2002.Número Especial 2004: Anais dos Seminários EMERJ Debate o NovoCódigo Civil, parte II, julho/2002 a abril/2003.Edição Especial 2007: Comemorativa do Octogésimo Ano do Código <strong>de</strong>Menores Mello Mattos.1. Direito - Periódicos. I. Rio <strong>de</strong> JaneirO (Estado). <strong>Tribunal</strong> <strong>de</strong> Justiçado Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Escola da Magistratura do Estado do Rio <strong>de</strong>Janeiro.CDD 340.05CDU 34(05)Os c<strong>on</strong>ceitos e opiniões expressos nos trabalhos assinados são <strong>de</strong> resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong>exclusiva <strong>de</strong> seus autores. É permitida a reprodução total ou parcial dos artigos <strong>de</strong>starevista, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que citada a f<strong>on</strong>te.Todos os direitos reservados à Escola da Magistratura do Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro - EMERJRua Dom Manuel, nº 25 - Rio <strong>de</strong> Janeiro/RJ CEP: 20010-090Telef<strong>on</strong>es: (21) 3133-3400 / 3133-3365www.emerj.tjrj.jus.br - emerjpublicacoes@tjrj.jus.br


Diretoria da EMERJ Diretora-GeralDesª. Leila Maria Carrilo Cavalcante Ribeiro Mariano C<strong>on</strong>selho C<strong>on</strong>sultivoDesª. Maria Augusta Vaz M<strong>on</strong>teiro <strong>de</strong> FigueiredoDes. Milt<strong>on</strong> Fernan<strong>de</strong>s <strong>de</strong> SouzaDes. Jessé Torres Pereira JúniorDes. Geraldo Luiz Mascarenhas PradoDes. Ricardo Couto <strong>de</strong> CastroDes. Elt<strong>on</strong> Martinez Carvalho Leme Presi<strong>de</strong>nte da Comissão AcadêmicaDes. Luis Gustavo Grandinetti Castanho <strong>de</strong> Carvalho Comissão <strong>de</strong> Iniciação e Aperfeiçoamento <strong>de</strong> MagistradosDes. Luiz Fernando Ribeiro <strong>de</strong> CarvalhoDesª. Elisabete Filizzola AssunçãoDes. Heleno Ribeiro Pereira NunesDes. Wagner Cinelli <strong>de</strong> Paula FreitasDes. Claudio Brandão <strong>de</strong> OliveiraDes. Claudio Luis Braga Dell’OrtoDes. Paulo <strong>de</strong> Oliveira Lanzellotti Bal<strong>de</strong>z Coor<strong>de</strong>nador <strong>de</strong> Estágio da EMERJDes. Eds<strong>on</strong> Aguiar <strong>de</strong> Vasc<strong>on</strong>celos Secretária-Geral <strong>de</strong> EnsinoRosângela Pereira N. Mald<strong>on</strong>ado <strong>de</strong> Carvalho Assessora da Diretora-GeralD<strong>on</strong>atila Arruda Câmara do ValeR. EMERJ Rio <strong>de</strong> Janeiro v. 15 n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g> p. 1-272 out.-<strong>de</strong>z. 2012


Sumário7 Apresentação9 Introdução13 A I<strong>de</strong>ologia da Reforma PenalProf. Dr. Juarez Cirino dos Santos28 Proteção aos Direitos FundamentaisMinistro Sebastião Reis Júnior46 O princípio da lesivida<strong>de</strong> na Reforma PenalProf. Ms. Tiago Joffily59 Análise Criminológica do CotidianoProfª. Drª. Vera Regina Pereira <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>72 Stalking e a Criminalização do CotidianoProf. Dr. Alexandre Morais da Rosa80 Da Aplicação da Pena no Anteprojeto do CódigoPenal BrasileiroProf. Ms. Alci<strong>de</strong>s da F<strong>on</strong>seca Neto94 A Política Criminal da Exclusão na ReformaProf. Dr. Alexandre Fabiano Men<strong>de</strong>s108 A Reforma das Medidas <strong>de</strong> SegurançaProfª. Maria Lúcia Karam115 Execução Penal e PLS-236Prof. Dr. Maurício Stegemann Dieter126 Delação Premiada no Projeto <strong>de</strong> Reforma do CódigoPenal: nova roupagem, antigos problemasProf. Dr. Le<strong>on</strong>ardo Isaac Yarochewsky143 A Resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> Penal da Pessoa JurídicaProf. Dr. Guilherme José Ferreira da SilvaR. EMERJ Rio <strong>de</strong> Janeiro v. 15 n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g> p. 1-272 out.-<strong>de</strong>z. 2012


156 Em Defesa da Lei <strong>de</strong> Resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> Político-Criminal:o caso do anteprojeto <strong>de</strong> Código PenalProf. Dr. Salo <strong>de</strong> Carvalho161 Projeto <strong>de</strong> código penal. A reforma da parte geralProf. Dr. Juarez Tavares190 Os crimes c<strong>on</strong>tra a vida na ReformaDes. Sérgio <strong>de</strong> Souza Verani199 Análise crítica dos crimes <strong>de</strong> perigo no Projeto <strong>de</strong>Código PenalProfª. Drª. Ana Elisa Liberatore Silva Bechara210 A Reforma dos Crimes Patrim<strong>on</strong>iaisProf. Dr. Luís Wan<strong>de</strong>rley Gazoto218 Projeto <strong>de</strong> reforma do Código Penal: crimes c<strong>on</strong>tra adignida<strong>de</strong> sexual (Título IV, Capítulos I e II)Prof. Dr. Paulo Queiroz229 Organizações Criminosas: O Novo Tipo <strong>de</strong> MilíciaProf. Dr. Alexandre Wun<strong>de</strong>rlich239 Criminalização dos jogos <strong>de</strong> azar: A c<strong>on</strong>tradição entrelei e realida<strong>de</strong> socialProfª. Drª. Katie Arguello251 A relação entre o Direito Penal e o Processo Penal noprojeto do novo Código Penal: c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rações geraisProf. Dr. Geraldo Prado261 A Relação entre a Doutrina e a Jurisprudência sob aóptica do GarantismoMinistro Og Fernan<strong>de</strong>s272 Carta Aberta ao C<strong>on</strong>gresso Naci<strong>on</strong>al sobre aReforma Penal (PLS 236)R. EMERJ Rio <strong>de</strong> Janeiro v. 15 n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g> p. 1-272 out.-<strong>de</strong>z. 2012


ApresentaçãoA Escola da Magistratura do Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro, fiel a suavocação <strong>de</strong> perene fórum <strong>de</strong> estudos e <strong>de</strong>bates jurídicos, enc<strong>on</strong>tra-segratificada em ter albergado evento da relevância do Seminário Crítico daReforma Penal.Aqui recebemos os mais c<strong>on</strong>ceituados profissi<strong>on</strong>ais <strong>de</strong> todo o país,Juristas, Professores, Magistrados, Advogados, Procuradores, Promotores,Defensores Públicos, que muito c<strong>on</strong>tribuíram para análise crítica do Anteprojeto<strong>de</strong> Código Penal (PLS nº 236/2012), o qual se enc<strong>on</strong>tra em tramitaçã<strong>on</strong>o Senado Fe<strong>de</strong>ral, com vistas à reforma integral do referido Co<strong>de</strong>x.Assim, imbuída do mesmo espírito <strong>de</strong>mocrático que abrigou a AudiênciaPública realizada pela Comissão Especial Externa do Senado Fe<strong>de</strong>ral,a qual, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo a ampla participação no processo <strong>de</strong> criação do projeto<strong>de</strong> reforma, recebeu e acolheu proposições da comunida<strong>de</strong> jurídica e<strong>de</strong> toda a coletivida<strong>de</strong>, a EMERJ sediou o Seminário crítico às propostas,na busca do aprimoramento e acerto das alterações a serem adotadas,tendo sempre como norte a c<strong>on</strong>secução <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> mais justa.Esta compilação é o produto fi<strong>de</strong>digno <strong>de</strong>sse enc<strong>on</strong>tro, que c<strong>on</strong>toucom a brilhante coor<strong>de</strong>nação científica do Professor Doutor Juarez Tavares,e cujo c<strong>on</strong>teúdo, proveniente da <strong>de</strong>gravação das palestras proferidas, seráenviado aos representantes dos três Po<strong>de</strong>res, no intuito <strong>de</strong> c<strong>on</strong>tribuir paraampla discussão neste momento <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> análise e reflexão.Empenhamos os mais sinceros agra<strong>de</strong>cimentos a todos que c<strong>on</strong>tribuírampara realização <strong>de</strong>sta edição especial.Desembargadora Leila MarianoDiretora-Geral da EMERJR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 7, out.-<strong>de</strong>z. 2012 7


IntroduçãoNos dias 11, 12 e 13 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2012, a Escola da Magistraturado Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro, sob a direção da Desembargadora LeilaMariano, promoveu um Seminário Crítico da Reforma Penal. O objetivodo seminário, cujos pr<strong>on</strong>unciamentos fazem parte <strong>de</strong>sta publicação, era<strong>de</strong>spertar a atenção dos estudiosos do direito penal para os problemas relaci<strong>on</strong>adosao Projeto <strong>de</strong> Código Penal em tramitação no Senado Fe<strong>de</strong>ral(PLS 236/2012). Este projeto visa a reformar integralmente o atual CódigoPenal, tanto na Parte Geral, quanto na Parte Especial, mediante uma alteraçã<strong>on</strong>a estrutura da aplicação da lei penal, da teoria do <strong>de</strong>lito e da pena,bem como uma modificação dos enunciados criminalizadores, a criação<strong>de</strong> novos tipos penais e a incorporação <strong>de</strong> tipos penais hoje esparsos nalegislação extravagante. Um projeto <strong>de</strong> código penal, se c<strong>on</strong>vertido emlei, afeta toda a socieda<strong>de</strong> brasileira, pois passa a regular, <strong>de</strong> forma muitointensa e grave, o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> intervenção do Estado, em seu grau maiselevado. Não é sem motivo que em outros países, quando organizados<strong>de</strong>mocraticamente, os projetos <strong>de</strong> código penal passem por percucienteanálise da comunida<strong>de</strong> jurídica e dos cidadãos, <strong>de</strong> modo a po<strong>de</strong>remresguardar direitos individuais e coletivos, que po<strong>de</strong>m ser objeto <strong>de</strong> incriminaçõesin<strong>de</strong>vidas ou se subordinar a esquemas teóricos imprecisose incertos. Apenas para citar uma referência: a alteração da parte geraldo código penal alemão, que entrou em vigor em 1975, foi produto <strong>de</strong>uma l<strong>on</strong>ga discussão, iniciada com o projeto governamental <strong>de</strong> 1962 ecriticamente <strong>de</strong>senvolvida no projeto alternativo <strong>de</strong> 1966, este último <strong>de</strong>lavra <strong>de</strong> uma plêia<strong>de</strong> <strong>de</strong> penalistas. Entendia-se que uma alteração <strong>de</strong>ssaenvergadura não po<strong>de</strong>ria ser feita <strong>de</strong> afogadilho, senão apenas <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>muita reflexão. Observe-se que até hoje as lições do projeto alternativoecoam por todos os cantos, principalmente pela ruptura que propunhana natureza da pena e em sua relação com a estrutura do <strong>de</strong>lito. No Brasil,o projeto <strong>de</strong> alteração da Parte Geral, com comissão c<strong>on</strong>stituída em1980 e posto em vigor com a Lei 7.209/84, ainda que nos últimos anosdo período autoritário, também foi produto <strong>de</strong> uma l<strong>on</strong>ga caminhada.Po<strong>de</strong>-se dizer que esse trâmite se inicia com o projeto Hungria <strong>de</strong> 1962,o qual passou por diversas comissões revisoras, a penúltima das quaissob a presidência <strong>de</strong> Aníbal Bruno e composta por Nels<strong>on</strong> Hungria, HélioR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 9-12, out.-<strong>de</strong>z. 2012 9


Tornaghi e Heleno Fragoso, para, por <strong>fim</strong>, dar lugar ao Código Penal <strong>de</strong>1969, revogado sem haver entrado em vigência. Por seu turno, no quetoca ao projeto <strong>de</strong> 1981, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> publicado, submeteu-se ele por cerca<strong>de</strong> quase quatro anos a intensa crítica acadêmica. Essa crítica começa a seexpressar principalmente em um c<strong>on</strong>gresso <strong>de</strong> âmbito naci<strong>on</strong>al, realizadoem Brasília, em 1981, sob os auspícios do C<strong>on</strong>selho Naci<strong>on</strong>al <strong>de</strong> PolíticaCriminal e Penitenciária e a presidência <strong>de</strong> Francisco <strong>de</strong> Assis Toledo, oqual se <strong>de</strong>stinava a apresentar o projeto à comunida<strong>de</strong> jurídica brasileira.Em sequência, foram produzidas no projeto inicial várias alterações antesque fosse submetido ao Parlamento.Os trabalhos que se <strong>de</strong>senvolveram nesse seminário da EMERJc<strong>on</strong>taram, na abertura, com a c<strong>on</strong>ferência do Prof. Dr. Juarez Cirino dosSantos, enfocada na i<strong>de</strong>ologia da reforma penal. Juarez Cirino dos Santosbrindou a todos os presentes com uma exposição <strong>de</strong>nsa, escorreita eabrangente sobre os princípios que uma reforma penal <strong>de</strong>veria aten<strong>de</strong>r,vindo a <strong>de</strong>mostrar como esses princípios – da legalida<strong>de</strong>, da proporci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>,da necessida<strong>de</strong>, da dignida<strong>de</strong> da pessoa humana e da proteção<strong>de</strong> bem jurídico, entre outros – foram <strong>de</strong>satendidos no projeto. Por outrolado, <strong>de</strong>stacou a subserviência do projeto à legislação extravagante ecomo essa legislação se vê incorporada ao texto sem qualquer correçãocrítica. Salientou também como o projeto volta a enaltecer a pena comoúnico recurso a ser usado pelo Estado no c<strong>on</strong>trole das infrações, o queindica seu retrocesso diante do que, hoje, leci<strong>on</strong>am as correntes criminológicas.Ainda na abertura, o seminário c<strong>on</strong>tou com a importante participaçãodo Ministro Sebastião Reis, do Superior <strong>Tribunal</strong> <strong>de</strong> Justiça, o qual fezuma exposição acerca da proteção <strong>de</strong> direitos fundamentais e a necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> uma <strong>de</strong>limitação mais precisa sobre os processos <strong>de</strong> criminalizaçãoa ser levada a efeito pelos tribunais.Nos dias subsequentes foram realizados os painéis, com relevantesc<strong>on</strong>tribuições do Dr. Tiago Joffily (UERJ), sobre o princípio da lesivida<strong>de</strong>no projeto; da Profª Drª Vera Regina Pereira <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> (UFSC), com umaanálise criminológica da reforma; do Dr. Alexandre Morais da Rosa (TJ/SC),sobre “stalking” e a criminalização do cotidiano; do Prof. Dr. Alci<strong>de</strong>s daF<strong>on</strong>seca Neto (EMERJ), sobre a aplicação da pena no projeto; do Prof. Dr.Alexandre Men<strong>de</strong>s (PUC/RJ), sobre a política criminal <strong>de</strong> exclusão nareforma; da Drª Maria Lúcia Karam (TJ/RJ), sobre as medidas <strong>de</strong> segurança10R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 9-12, out.-<strong>de</strong>z. 2012


na reforma; do Prof. Dr. Maurício Dieter (Uni-Curitiba), sobre a execuçãoda pena no projeto; do Prof. Dr. Le<strong>on</strong>ardo Yarochewski (PUC/MG), sobrea <strong>de</strong>lação premiada; do Prof. Dr. Guilherme José Ferreira da Silva (PUC/MG), sobre a resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal da pessoa jurídica; do Dr. Sergio Verani(Des. TJ/RJ), sobre a reforma dos crimes c<strong>on</strong>tra a vida; da Profª DrªAna Elisa Liberatore da Silva Bechara (USP), sobre os crimes <strong>de</strong> perigo noprojeto; do Dr. Luís Wan<strong>de</strong>rley Gazoto (MPF), sobre a reforma dos crimespatrim<strong>on</strong>iais; do Prof. Dr. Cláudio Brandão (UFPE), sobre a reforma doscrimes c<strong>on</strong>tra a administração pública; do Prof. Dr. Paulo Queiroz (CEUB),sobre a reforma dos crimes c<strong>on</strong>tra a dignida<strong>de</strong> sexual; do Prof. Dr. AlexandreWun<strong>de</strong>rlich (PUC/RS), sobre organizações criminosas; da Profª. DrªKatie Arguello (UFPR), sobre a criminalização dos jogos <strong>de</strong> azar e a <strong>de</strong>sc<strong>on</strong>formida<strong>de</strong>entre lei penal e realida<strong>de</strong> social e do Prof. Dr. Geraldo Prado(UFRJ), sobre a relação entre processo penal e direito penal na reforma.Cada uma <strong>de</strong>ssas intervenções mereceria uma análise mais profunda erigorosa, a qual, infelizmente, não po<strong>de</strong> ser feita nesta simples introdução.Posso dizer, no entanto, que os pr<strong>on</strong>unciamentos expressos nessespainéis buscaram realizar uma crítica global da reforma, naqueles temasmais can<strong>de</strong>ntes, e c<strong>on</strong>stituem uma c<strong>on</strong>tribuição altamente relevante parao direito brasileiro e para as gerações, que um dia, quiserem se aprofundarnas discussões penais mais avançadas.Afora os painéis, proferiu c<strong>on</strong>ferência o Prof. Dr. Salo <strong>de</strong> Carvalho,sobre o tema “As penas na reforma”. Salo <strong>de</strong> Carvalho, com sua percuciência,<strong>de</strong>m<strong>on</strong>strou o sentido punitivista do projeto, o qual retroce<strong>de</strong>em vários aspectos, ao eliminar o livramento c<strong>on</strong>dici<strong>on</strong>al, ao possibilitara c<strong>on</strong>versão da pena <strong>de</strong> multa em prisão, ao ampliar os prazos para aprogressão <strong>de</strong> regime e ao manter o instituto da reincidência, que o colocamem c<strong>on</strong>tradição com o Pacto <strong>de</strong> São José e com a própria tendênciada doutrina e da jurisprudência, que têm atenuado os rigores do vigentecódigo penal.O seminário foi encerrado com uma c<strong>on</strong>ferência significativa e muitoproveitosa do Ministro Og Fernan<strong>de</strong>s, do Superior <strong>Tribunal</strong> <strong>de</strong> Justiça,sobre a acolhida nos tribunais superiores da teoria do garantismo penal.Nessa c<strong>on</strong>ferência, ficou c<strong>on</strong>signada a assertiva <strong>de</strong> que o garantismopenal <strong>de</strong> Ferrajoli tem tido uma influência marcante em várias <strong>de</strong>cisõesprolatadas no STJ e, l<strong>on</strong>ge <strong>de</strong> c<strong>on</strong>stituir uma palavra <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m políticaou uma teoria da moda, tomada em muitos casos <strong>de</strong> modo pejorativo,R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 9-12, out.-<strong>de</strong>z. 2012 11


fornece elementos preciosos para um julgamento mais raci<strong>on</strong>al dos casosc<strong>on</strong>cretos.Esse evento não teria sido possível sem a colaboração <strong>de</strong> muitaspessoas. Cabe, aqui, ressaltar <strong>de</strong> imediato, a postura <strong>de</strong>mocrática, corretae liberal da Desembargadora Leila Mariano, que durante todos os momentos<strong>de</strong>m<strong>on</strong>strou que, sob sua direção, a Escola da Magistratura estáaberta ao <strong>de</strong>bate, ao enunciado <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias novas, à c<strong>on</strong>gregação <strong>de</strong> esforçospara aperfeiçoar as leis, à elaboração <strong>de</strong> uma doutrina jurídica capaz<strong>de</strong> servir <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo à judicatura e a ressuscitar a necessária relação entreteoria e prática. Igualmente, <strong>de</strong>vem-se agra<strong>de</strong>cimentos ao DesembargadorPaulo Bal<strong>de</strong>z, aos juízes Rubens Casara, Marcos Peixoto, Alci<strong>de</strong>s daF<strong>on</strong>seca Neto, aos professores Geraldo Prado e Luís Gustavo GrandinettiCastanho <strong>de</strong> Carvalho, bem como a todas as entida<strong>de</strong>s que colaborarampara o evento, como a Associação dos Magistrados do Estado do Rio <strong>de</strong>Janeiro, o Ministério da Justiça, a Associação do Defensores Públicos doRio <strong>de</strong> Janeiro, a Or<strong>de</strong>m dos Advogados do Brasil, Seção do Rio <strong>de</strong> Janeiro,e o Instituto dos Advogados Brasileiros.Rio <strong>de</strong> Janeiro, setembro <strong>de</strong> 2012Juarez TavaresProfessor Titular <strong>de</strong> Direito Penal daUniversida<strong>de</strong> do Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro12R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 9-12, out.-<strong>de</strong>z. 2012


A I<strong>de</strong>ologia daReforma PenalProf. Dr. Juarez Cirino dos SantosGraduado em Direito pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Paraná.Mestrado pela PUC. Doutorado pela UFRJ. Pósdoutoradopela Universitati <strong>de</strong>s Saarlan<strong>de</strong>s, US, ImSaarbrücken, Alemanha. Professor Adjunto da UFPR.Quero começar saudando o Desembargador Paulo Bal<strong>de</strong>z, que presi<strong>de</strong>esta seção e, no seu nome, pedir permissão para saudar todos osmeus amigos, professores, juízes, advogados presentes neste SeminárioCrítico sobre a Reforma Penal.Um gran<strong>de</strong> amigo meu, amigo <strong>de</strong> muitos aqui, que infelizmente jáse foi, e que figura entre os gran<strong>de</strong>s filósofos do Século XX, sem dúvidao maior criminólogo do Século XX, que foi Alessandro Baratta, tambémgran<strong>de</strong> amigo do Brasil – aqui veio muitas vezes –, costumava dizer: “<strong>de</strong>vemostratar as pessoas com muito carinho, com todo afeto, porque sãopessoas.” Tenho vários amigos na Comissão <strong>de</strong> Juristas da Reforma Penale, pessoalmente, c<strong>on</strong>tinuo tratando-os com todo carinho, com todo respeitoe com todo afeto, mas acrescentava Alessandro Baratta, com relaçãoàs suas i<strong>de</strong>ias, que <strong>de</strong>vemos ser implacáveis, porque elas produzemefeitos no mundo. Tratá-los bem, enquanto pessoas, mas nenhuma complacênciacom relação a suas i<strong>de</strong>ias. E se trata aqui <strong>de</strong> trabalhar este tema,“A I<strong>de</strong>ologia da Reforma Penal”, que a comissão científica <strong>de</strong>ste seminário,cujo diretor científico é o Prof. Dr. Juarez Tavares, me atribuiu.Assim me vi pensando o c<strong>on</strong>ceito <strong>de</strong> I<strong>de</strong>ologia e enc<strong>on</strong>trei na Theorie<strong>de</strong>s kommunikativen Han<strong>de</strong>lns <strong>de</strong> Habermas, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que a lei, nasocieda<strong>de</strong> capitalista, serve para manter a estrutura <strong>de</strong> classes da socieda<strong>de</strong>,<strong>de</strong>terminada pela relação fundamental capital/trabalho assalariado.Um outro gran<strong>de</strong> jurista e filósofo, Michel Miaille, que esteve aqui no Rio<strong>de</strong> Janeiro há algum tempo – eu estava fazendo mestrado na PUC –, diziaem seu livro Introducti<strong>on</strong> critique au Droit, que a i<strong>de</strong>ologia na socieda<strong>de</strong>capitalista existe sob a forma do Direito. Então, falar da i<strong>de</strong>ologia <strong>de</strong> umprojeto <strong>de</strong> reforma, é falar das i<strong>de</strong>ias centrais que c<strong>on</strong>duzem esse projeto.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 13-27, out.-<strong>de</strong>z. 2012 13


Se a i<strong>de</strong>ologia, no capitalismo, existe na forma da lei, <strong>de</strong>vemos buscaressa i<strong>de</strong>ologia <strong>de</strong>ntro do Projeto <strong>de</strong> reforma. E a forma mais a<strong>de</strong>quadapara <strong>de</strong>finir a i<strong>de</strong>ologia do Projeto <strong>de</strong> reforma, é examiná-lo a partir dosprincípios fundamentais do Direito Penal, que dizem muito mais do queparece, à primeira vista. Examinar o Projeto a partir <strong>de</strong> princípios que permitemuma visão integral das propostas <strong>de</strong> mudanças da Parte Geral e naParte Especial. Portanto, examiná-lo a partir dos princípios da legalida<strong>de</strong>,da culpabilida<strong>de</strong>, da lesivida<strong>de</strong>, da proporci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong> e da humanida<strong>de</strong>para verificar em que medida esses princípios são observados ou respeitados,em que medida são incorporados ou realizados no Projeto. É possíveldizer o seguinte: na medida em que uma lei penal se <strong>de</strong>ixa reger por essesprincípios, tem-se uma lei <strong>de</strong>mocrática; caso c<strong>on</strong>trário, se uma lei penalnão se rege por esses princípios, ou <strong>de</strong>sc<strong>on</strong>si<strong>de</strong>ra esses princípios, entãotemos uma lei penal autoritária.Ao ler o Projeto pela primeira vez, quando um jornalista queria umaentrevista, fiquei tão chocado, que <strong>de</strong>i a entrevista, publicada com o seguintetítulo: “Somos o país que mais pune no mundo”. A nossa reaçãoemoci<strong>on</strong>al diante do projeto é <strong>de</strong> <strong>de</strong>cepção, em seguida, <strong>de</strong> perplexida<strong>de</strong>e, no final, ficamos indignados. A dificulda<strong>de</strong> quando temos que falarsobre o Projeto é superar essa indignação, para po<strong>de</strong>r a<strong>de</strong>quadamenteexprimir o que pensamos.Os princípios que orientam esta abordagem do projeto – e pelosquais pensamos que po<strong>de</strong>mos indicar a i<strong>de</strong>ologia que o orientou – mostramque estamos diante <strong>de</strong> um “m<strong>on</strong>strengo”. O projeto é todo disforme, umaespécie <strong>de</strong> projeto Quasimodo <strong>de</strong> “O corcunda <strong>de</strong> Notre Dame”. Mas, precisamosdizer alguma coisa além das expressões emoci<strong>on</strong>ais sobre o Projeto.Sendo assim, vamos trabalhar a partir <strong>de</strong>sses princípios. Por exemplo, quandopensamos no princípio da legalida<strong>de</strong>, normalmente não atentamos parao fato <strong>de</strong> que na base da legalida<strong>de</strong> está o tipo <strong>de</strong> injusto. E o tipo penal éa realização técnica do princípio da legalida<strong>de</strong>. Este princípio tem a função<strong>de</strong> <strong>de</strong>m<strong>on</strong>strar a existência do tipo <strong>de</strong> injusto, excluído nas justificações; aomesmo tempo, o tipo <strong>de</strong> injusto é importante porque é o tipo legal, o tipopenal no sentido mais estrito, que é objeto da c<strong>on</strong>sciência ou do c<strong>on</strong>hecimentodo injusto, excluído no erro <strong>de</strong> proibição inevitável.Todos sabemos que o princípio da legalida<strong>de</strong>, com relação ao tipo<strong>de</strong> injusto, proíbe a retroativida<strong>de</strong>, exceto a benéfica; proíbe a analogiaem <strong>de</strong>sfavor do réu, proíbe o costume, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que não beneficie o acusado.14R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 13-27, out.-<strong>de</strong>z. 2012


E compreen<strong>de</strong> uma dimensão da maior significação que quero explorar,aqui. É a última proibição: proíbe imprecisão na lei penal, proíbe leis penaisimprecisas, obscuras. Um jurista c<strong>on</strong>servador, mas absolutamente insuspeito,como WELZEL, dizia que o maior perigo para o princípio da legalida<strong>de</strong>são as leis in<strong>de</strong>finidas e obscuras, porque permitem interpretaçõesjudiciais idiossincráticas e não permitem realizar a função principal da leipenal, ou seja, o c<strong>on</strong>hecimento do injusto penal. Como po<strong>de</strong> o sujeito –que é o <strong>de</strong>stinatário da lei penal, não o juiz, mas o cidadão – en<strong>fim</strong>, comopo<strong>de</strong> o cidadão c<strong>on</strong>hecer o injusto, se a lei é obscura, se a lei é in<strong>de</strong>finida?Isto surge como um imperativo, como uma necessida<strong>de</strong>, no sentido <strong>de</strong>que não se po<strong>de</strong> negligenciar o princípio da legalida<strong>de</strong>.E aqui temos, esta é a primeira c<strong>on</strong>statação que nos <strong>de</strong>prime aolermos o projeto, a sistemática, a ampla violação <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>sdobramentodo princípio da legalida<strong>de</strong>, que proíbe leis penais imprecisas, incertas,obscuras. E observamos isso no Projeto, por exemplo, nos crimes cibernéticos.Quanto a estes crimes – nunca vi isso –, artigos dão <strong>de</strong>finições<strong>de</strong> c<strong>on</strong>ceitos <strong>de</strong> sistema informático, <strong>de</strong> dados informáticos, <strong>de</strong> provedor<strong>de</strong> serviço, <strong>de</strong> dados <strong>de</strong> tráfego são vários itens do projeto dando essesc<strong>on</strong>ceitos – e se nós, como advogados, não c<strong>on</strong>seguimos enten<strong>de</strong>r essalinguagem técnica, então como o povo vai enten<strong>de</strong>r? O Projeto apresentadois artigos, os chamados acesso in<strong>de</strong>vido (a essas informações) e a sabotageminformática, como interferência in<strong>de</strong>vida no sistema informático<strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> dados, produzindo grave entrave, impedimento, interrupçãoou perturbação informática. Então, quem vai enten<strong>de</strong>r os limitesdo permitido e do proibido, aqui? Isso é apenas exemplificativo, pois seriacansativo enumerar os tipos penais cujo c<strong>on</strong>teúdo não se enten<strong>de</strong>.Nos crimes c<strong>on</strong>tra a paz pública, vem a questão do terrorismo. OProf. Juarez Tavares e eu participamos <strong>de</strong> um seminário no Ministério daJustiça, há alguns anos, que tratava <strong>de</strong>ssa questão, e o Ministrou retirouo projeto <strong>de</strong> lei, mas agora o Projeto do CP volta para <strong>de</strong>finir o terrorismo.Ora, o terrorismo é um problema político, que se resolve a partir <strong>de</strong>negociações, <strong>de</strong> tratados, <strong>de</strong> c<strong>on</strong>venções internaci<strong>on</strong>ais, mas não atravésdo Direito Penal, que não tem nenhuma função <strong>de</strong> c<strong>on</strong>trole sobre isso. ODireito Penal resolveria os problemas dos palestinos, por exemplo? En<strong>fim</strong>,o problema <strong>de</strong>sse c<strong>on</strong>flito é dos árabes e dos israelitas, ou mesmo dosEstados Unidos, mas não é do Brasil. Os alemães, que <strong>de</strong>finiram o crime<strong>de</strong> terrorismo, hoje se arrepen<strong>de</strong>m <strong>de</strong> terem feito isso, porque não c<strong>on</strong>-R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 13-27, out.-<strong>de</strong>z. 2012 15


Então vem o princípio da culpabilida<strong>de</strong> – e aqui tem muita coisa.Falamos <strong>de</strong> legalida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> culpabilida<strong>de</strong> e se a legalida<strong>de</strong> é a base do tipo<strong>de</strong> injusto, temos a culpabilida<strong>de</strong> e o tipo <strong>de</strong> injusto. A culpabilida<strong>de</strong> temum papel importantíssimo. Assim como no princípio da legalida<strong>de</strong>, nos crimesem geral, não há injusto sem lei, segundo o princípio da culpabilida<strong>de</strong>não há pena sem culpa. É interessante, já no artigo 1º o Projeto <strong>de</strong>fine oprincípio da legalida<strong>de</strong> e coloca um parágrafo – não entendo por que colocaramesse parágrafo, pois ele não tem nenhuma função – que dispõe:não há pena sem culpabilida<strong>de</strong>. Mas isso é óbvio, porque se o crime é essaintegração <strong>de</strong> injusto e culpabilida<strong>de</strong>, não há pena sem culpabilida<strong>de</strong>, ouseja, não há pena sem culpa. Se era para colocar um princípio (a culpabilida<strong>de</strong>),então por que não colocaram todos os princípios, no Projeto?Deveriam ter colocado no artigo 1 o o princípio da legalida<strong>de</strong>, no artigo 2 o oprincípio da culpabilida<strong>de</strong>, no artigo 3 o o princípio da lesivida<strong>de</strong>, no artigo4 o o princípio da proporci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong> – e assim não precisaria repetir emoutras normas que não há crime sem ofensa real ou potencial a bem jurídicoetc. Se aqui se assume o princípio da lesivida<strong>de</strong>, isso estaria resolvido,sem precisar repetir em normas específicas. Na Espanha, segundo fuiinformado, a esquerda política elaborou um Projeto <strong>de</strong> Código Penal queapresenta exatamente essa proposta: o direito penal tem <strong>de</strong> ser regidopor esses princípios, que vão informar toda a c<strong>on</strong>strução legislativa.O princípio da culpabilida<strong>de</strong> apareceu neste p<strong>on</strong>to, porque existiaou existe em membros da Comissão uma noção equivocada da culpabilida<strong>de</strong>como pressuposto da pena. Isso veio do René Dotti, passou para oDamásio <strong>de</strong> Jesus e, <strong>de</strong>pois, para parte da Escola Paulista. Para eles, só aculpabilida<strong>de</strong> é pressuposto da pena, quer dizer, a tipicida<strong>de</strong>, a antijuridicida<strong>de</strong>,não são c<strong>on</strong>dições objetivas <strong>de</strong> punibilida<strong>de</strong> etc., mas só a culpabilida<strong>de</strong>.Aliás, segundo essa noção, o c<strong>on</strong>ceito <strong>de</strong> crime é reduzido ao injusto,ou seja, tipicida<strong>de</strong> e antijuridicida<strong>de</strong>, não entram na culpabilida<strong>de</strong>.Só eles pensam assim. No mundo inteiro se pensa diferente. Po<strong>de</strong>seadotar a teoria bipartida, ou a teoria tripartida <strong>de</strong> crime, mas, em qualquercaso, parte-se <strong>de</strong>ssas duas noções, do injusto e da culpabilida<strong>de</strong>. Ateoria bipartida unifica tipicida<strong>de</strong> e antijuridicida<strong>de</strong> no âmbito do injusto,não havendo diferença c<strong>on</strong>ceitual entre ambas. E a teoria tripartida enten<strong>de</strong>que são c<strong>on</strong>ceitos in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes e que cumprem funções políticocriminaisdiferentes, como é a posição do Roxin. Assim também está nomeu livro e no livro do Prof. Juarez Tavares.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 13-27, out.-<strong>de</strong>z. 2012 17


morre. Logo, temos uma lesão corporal dolosa com um resultado produzidopor culpa (ou imprudência). Se os dois crimes fossem punidos separadamente,teríamos uma pena pequena, mas no caso <strong>de</strong> crime qualificadopelo resultado, a pena é absurdamente <strong>de</strong>sproporci<strong>on</strong>al: a pena mínimaseria <strong>de</strong> quatro anos, segundo o Código, o que viola o princípio da culpabilida<strong>de</strong>.Se o Projeto adotou o princípio da culpabilida<strong>de</strong>, por que nãoextinguiu os crimes qualificados pelo resultado, que violam o princípio daculpabilida<strong>de</strong>?E temos a questão da actio libera in causa, que é muito maltratadano Brasil, porque não existe uma disciplina legal a<strong>de</strong>quada. A actio liberain causa existe em dois momentos: um momento inicial, <strong>de</strong> autoincapacitaçãotemporária para cometer um crime <strong>de</strong>terminado, e <strong>de</strong>pois, noestado <strong>de</strong> incapacitação temporária, o cometimento <strong>de</strong>sse crime <strong>de</strong>terminado,por dolo ou imprudência. Isso é o que representa a actio liberain causa – e não a hipótese comum, do sujeito que chega a um bar, bebe<strong>de</strong>mais e dá uma garrafada na cabeça do compadre, matando-o, <strong>de</strong>finido<strong>de</strong>pois como dolo direto, crime <strong>de</strong> homicídio qualificado. Para essashipóteses, a lei penal alemã tem uma solução original, o crime chamadoVollrausch (embriaguez plena): se o sujeito comete um crime em estado<strong>de</strong> inimputabilida<strong>de</strong> por embriaguez voluntária ou culposa, recebe umapena até 5 anos <strong>de</strong> privação <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> – e não como no Brasil, em que apena é <strong>de</strong> 12 a 30 anos, por homicídio qualificado por motivo fútil. Então,naquelas hipóteses específicas não reguladas pela actio libera in causa,teríamos essa solução – o que seria uma coisa mo<strong>de</strong>rna.E a questão da reincidência – alguém aqui falou da reincidênciacomo uma espécie <strong>de</strong> “bruxa” –, venho criticando a reincidência há muitotempo, tanto a reincidência real quanto a reincidência ficta. Na verda<strong>de</strong>,a reincidência real exprime muito mais a falha do Estado no projeto técnicocorretivo da prisão, como projeto <strong>de</strong> correção do c<strong>on</strong><strong>de</strong>nado. Masno Projeto <strong>de</strong> reforma, a reincidência infecta tudo. A reincidência afeta,porque prejudica ou atrasa a progressão <strong>de</strong> regime, ou seja, impe<strong>de</strong>, exigemais tempo, dificulta a progressão entre os regimes, do regime fechadopara o semiaberto e <strong>de</strong>ste para o aberto. A c<strong>on</strong>sequência será o aumento<strong>de</strong>smesurado da população carcerária, pois as pessoas c<strong>on</strong><strong>de</strong>nadasvão ficar muito mais tempo na prisão, por causa <strong>de</strong> uma bobagem, umacriação positivista que não significa nada, e que, na verda<strong>de</strong>, c<strong>on</strong>stituium bis in i<strong>de</strong>m, pois o sujeito está sendo punido duas vezes pelo mesmoR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 13-27, out.-<strong>de</strong>z. 2012 19


fato. Primeiro, foi punido pelo fato anterior; agora, a reincidência agravaa pena do fato posterior. No Projeto, a reincidência funci<strong>on</strong>a como umaespécie <strong>de</strong> culpabilida<strong>de</strong> pela c<strong>on</strong>duta da vida, não só agravando a pena,mas afetando todos os direitos, todos os privilégios ou benefícios que oc<strong>on</strong><strong>de</strong>nado possa ter. Em c<strong>on</strong>clusão, a reincidência infringe o princípio daculpabilida<strong>de</strong> – ou inversamente, o princípio da culpabilida<strong>de</strong> excluiria areincidência. A reincidência ficta <strong>de</strong>ve ser um indiferente penal.E a questão do erro <strong>de</strong> proibição? O Prof. Juarez Tavares vai falarsobre isso, mas quero menci<strong>on</strong>ar que aband<strong>on</strong>amos uma posição melhor,<strong>de</strong>finida pela teoria limitada da culpabilida<strong>de</strong>, para adotarmos umaposição pior, da teoria extrema da culpabilida<strong>de</strong>. Agora, o erro <strong>de</strong> tipopermissivo é tratado como qualquer erro <strong>de</strong> proibição: se evitável, reduz;se inevitável, exclui a culpabilida<strong>de</strong>. E ficamos imersos nesse impossíveljuízo <strong>de</strong> evitabilida<strong>de</strong>, uma coisa inteiramente subjetiva, porque não temosum critério para medir a evitabilida<strong>de</strong> do erro. Na teoria limitada,existe uma vantagem: se o sujeito pratica um fato em situação <strong>de</strong> erro <strong>de</strong>tipo permissivo, não interessa se o erro é evitável ou inevitável, porqueimediatamente exclui o dolo, restando a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> imputação porimprudência (ou culpa), se existir a forma legal respectiva – o que é algocompletamente diferente. Eu c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>ro isso muito simpático, porque reduza repressão penal. São inc<strong>on</strong>vincentes as razões para a alteração docritério da lei penal vigente, segundo a teoria limitada da culpabilida<strong>de</strong>.E a questão da criminalização da pessoa jurídica? Toda a teoriainternaci<strong>on</strong>al mostra ser impossível a resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal da pessoajurídica, isso porque a pessoa jurídica é incapaz <strong>de</strong> ação e incapaz <strong>de</strong> culpabilida<strong>de</strong>.C<strong>on</strong>tudo, no Projeto, alguns juristas são a<strong>de</strong>ptos da resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong>penal da pessoa jurídica – o que, me perdoem a expressão, é umagran<strong>de</strong> bobagem. Em primeiro lugar, a resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal é fundadana psicologia individual, estou falando resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> pessoal fundadaem dolo ou culpa. Resp<strong>on</strong>sabilizar penalmente a pessoa jurídica é omesmo que atribuir resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal a coisas. Isso não é possívele também não é necessário. Afinal, para punir a pessoa jurídica é precisoque a infração seja cometida por <strong>de</strong>cisão do representante legal ou <strong>de</strong> órgãocolegiado. Nessas hipóteses, segundo a lei penal, seria possível punira pessoa jurídica. Então, para que estabelecer um processo penal c<strong>on</strong>traa pessoa jurídica, se o problema po<strong>de</strong> ser resolvido como simples efeito20R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 13-27, out.-<strong>de</strong>z. 2012


da c<strong>on</strong><strong>de</strong>nação? Ora, se o presi<strong>de</strong>nte, o administrador, o supervisor dapessoa jurídica forem c<strong>on</strong><strong>de</strong>nados como pessoas físicas, po<strong>de</strong> se aplicarqualquer medida c<strong>on</strong>tra a pessoa jurídica, como efeito da c<strong>on</strong><strong>de</strong>nação,<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a multa, a suspensão, até a interdição ou extinção. Assim, não haveriaqualquer problema, mas um processo penal c<strong>on</strong>tra a pessoa jurídica,além <strong>de</strong> apresentar problemas insolúveis, é também <strong>de</strong>snecessário. Nalinha do Projeto, temos que mudar o Direito Penal para adaptar à pessoajurídica. E, segundo o Projeto, não são apenas os crimes ambientais, temostambém os crimes c<strong>on</strong>tra a Administração Pública, c<strong>on</strong>tra a or<strong>de</strong>mec<strong>on</strong>ômica, c<strong>on</strong>tra o sistema financeiro – ou seja, o Projeto parece quereracabar com os princípios do Direito Penal do fato e da culpabilida<strong>de</strong>.E agora, o princípio da lesivida<strong>de</strong> – ou, como diz o Projeto, o princípioda ofensivida<strong>de</strong>. Na verda<strong>de</strong>, eu já antecipei isso, o projeto fala, noartigo 14, que o fato criminoso exige ofensa potencial ou efetiva a <strong>de</strong>terminadobem jurídico. Agora, vamos procurar na Parte Especial, essesfatos ofensivos a bens jurídicos, como ofensa efetiva ou potencial <strong>de</strong> bensjurídicos. E, <strong>de</strong> novo, a realida<strong>de</strong> é aquela imensa <strong>de</strong>cepção. Vamos fazerapenas algumas indicações exemplificativas, a começar pela referênciada Dra. Fernanda Tortima sobre o cambismo. Imaginem, o cambista nãopo<strong>de</strong> mais ven<strong>de</strong>r ingressos, porque está ven<strong>de</strong>ndo ingressos por valoresque não corresp<strong>on</strong><strong>de</strong>m ao valor impresso no bilhete. Mas, se o sujeitocompra o bilhete do cambista e sabe que o preço do cambista é superiorao impresso, então c<strong>on</strong>sente no fato e o c<strong>on</strong>sentimento exclui o tipo oujustifica o fato, <strong>de</strong>sfazendo o injusto. O c<strong>on</strong>sentimento do ofendido é umacláusula <strong>de</strong> exclusão da tipicida<strong>de</strong> ou <strong>de</strong> justificação do fato. Sendo assim,nada explica o crime <strong>de</strong> cambismo no Projeto – ou <strong>on</strong><strong>de</strong> está a ofensivida<strong>de</strong>(ou lesivida<strong>de</strong>) do fato?E tem mais: o crime <strong>de</strong> intimidação vexatória – que é o famosobullying. Agora, não se po<strong>de</strong> mais brincar com as pessoas, que já te olhamatravessado e te imputam isto ou aquilo. A criminalização do bullying pareceuma brinca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> mau-gosto.E os crimes <strong>de</strong> perigo abstrato – por que não foram extintos? O projetoestá cheio <strong>de</strong> crimes <strong>de</strong> perigo abstrato. E crimes erigidos sobre bensjurídicos duvidosos – quem usou essa expressão foi o Luís Greco, aliás,numa crítica notável ao Projeto –, como os crimes c<strong>on</strong>tra a paz pública(<strong>on</strong><strong>de</strong> aparece a punição excessiva da posse <strong>de</strong> arma <strong>de</strong> fogo), os crimesc<strong>on</strong>tra a saú<strong>de</strong> pública etc.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 13-27, out.-<strong>de</strong>z. 2012 21


Ainda no âmbito do princípio da ofensivida<strong>de</strong>, a esperança seriaatribuir relevância penal explícita ao princípio da insignificância. É o princípioda lesivida<strong>de</strong> que exige uma lesão relevante do bem jurídico para atipicida<strong>de</strong> do fato, porque lesões insignificantes não são suficientes paraa tipicida<strong>de</strong>. E o que fizeram? Criaram uma norma que não só é obscura,mas que também c<strong>on</strong>tém exigências excessivas: o artigo 28, §1º, dispõeque, para c<strong>on</strong>figurar a insignificância, é necessário uma mínima ofensivida<strong>de</strong>da c<strong>on</strong>duta do agente (por que não “pequena”?), um reduzidíssimograu <strong>de</strong> reprovabilida<strong>de</strong> da c<strong>on</strong>duta (por que não apenas “reduzido”?) e ainexpressivida<strong>de</strong> da lesão jurídica provocada (por que não “pequena expressão”?).Acabaram com o princípio da insignificância.Sabem o que falta no Projeto? É humanida<strong>de</strong>, amor ao próximo. Émuito fácil fazer uma lei e colocar uma pena <strong>de</strong> 5 ou <strong>de</strong> 10 anos <strong>de</strong> prisão,porque é o outro, um estranho, que cumpre a pena e fica sofrendo, nãoé o Legislador.Quanto ao princípio da proporci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>, não temos norma específicaque o institua: não está <strong>de</strong>finido na C<strong>on</strong>stituição, mas é <strong>de</strong>duzido <strong>de</strong>seus enunciados mais gerais. Talvez, o princípio da igualda<strong>de</strong> fundamentea proporci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>. Então, esse princípio, mediante os critérios da a<strong>de</strong>quação,da necessida<strong>de</strong> e da avaliação (ou proporci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong> c<strong>on</strong>creta),proíbe excessos punitivos, o chamado übermassverbot – mas não incluia proibição <strong>de</strong> insuficiência <strong>de</strong> punição, como preten<strong>de</strong>m alguns juristasbrasileiros. Segundo ensina Robert Alexy, o princípio da proporci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>exerce a função <strong>de</strong> otimizar as possibilida<strong>de</strong>s da realida<strong>de</strong> e do Direito. Sea Comissão <strong>de</strong> Juristas tivesse se <strong>de</strong>tido no princípio da proporci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>– como diz ter feito, mas não fez –, <strong>de</strong>scobriria, no plano da otimizaçãoda realida<strong>de</strong>, os princípios da a<strong>de</strong>quação e da necessida<strong>de</strong>, integrantesdaquele. O princípio da a<strong>de</strong>quação pergunta o seguinte: a pena criminal éum meio a<strong>de</strong>quado para proteção do bem jurídico? Se a resposta for sim,então temos um meio a<strong>de</strong>quado, entre outros, por exemplo, do DireitoCivil, ou do Direito Administrativo. E seguimos com o princípio da necessida<strong>de</strong>,novamente perguntando: essa pena, <strong>de</strong>finida como meio a<strong>de</strong>quado,é também um meio necessário para a proteção <strong>de</strong> bens jurídicos? E sea resposta é afirmativa, já temos a pena como um meio a<strong>de</strong>quado e ummeio necessário, mas não temos o terceiro elemento, o da otimização daspossibilida<strong>de</strong>s do direito, chamado princípio da avaliação ou da proporci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>c<strong>on</strong>creta, que propõe a pergunta: se a pena cominada, c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>-22R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 13-27, out.-<strong>de</strong>z. 2012


ada a<strong>de</strong>quada e necessária para proteção do bem jurídico, é igualmenteproporci<strong>on</strong>al à lesão do bem jurídico? Essa pergunta po<strong>de</strong> ocorrer tant<strong>on</strong>o nível legislativo (cominação), como no nível judicial (aplicação), parasaber se a pena cominada ou aplicada é proporci<strong>on</strong>al à lesão abstrata ouc<strong>on</strong>creta do bem jurídico – ou seja, tanto do p<strong>on</strong>to <strong>de</strong> vista abstrato da lei,quanto no p<strong>on</strong>to <strong>de</strong> vista c<strong>on</strong>creto da aplicação judicial. Assim, o princípioda proporci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong> proíbe penas excessivas ou <strong>de</strong>sproporci<strong>on</strong>ais emface do <strong>de</strong>svalor da ação (dolo ou imprudência) e do <strong>de</strong>svalor do resultado(lesão do bem jurídico). Mas, c<strong>on</strong>forme indicado, não po<strong>de</strong> ser usadoem sentido c<strong>on</strong>trário, como proibição <strong>de</strong> insuficiência, ou <strong>de</strong> criminalizaçãomínima, como preten<strong>de</strong>m certos teóricos do Direito. Idêntico errocometem os que usam o princípio da legalida<strong>de</strong> para impedir aplicação dapena abaixo do mínimo legal, no caso <strong>de</strong> circunstâncias atenuantes obrigatórias.O princípio da legalida<strong>de</strong> é estabelecido em favor do acusado,proíbe pena acima do máximo, mas não abaixo do mínimo.Fazer leis é muito diferente <strong>de</strong> aplicar leis, mas quero dizer o seguinte.Em relação à proibição <strong>de</strong> penas excessivas, verificamos que o Projetose caracteriza por um punitivismo <strong>de</strong>svairado, <strong>de</strong>smedido, absurdo eirresp<strong>on</strong>sável. Medir o tamanho das penas parece uma coisa simples, abstrata,mas cumprir uma pena <strong>de</strong> 5 ou <strong>de</strong> 10 anos, por exemplo, c<strong>on</strong>tandoos dias e as horas, com a família lá fora, as filhas se prostituindo para sobreviver,é um sofrimento infinito. E voltamos, novamente, para as penasexcessivas dos crimes hedi<strong>on</strong>dos e <strong>de</strong> todos os crimes da parte especialdo Projeto. E o excesso <strong>de</strong> rigor imposto pela reincidência, que restringeou exclui a progressão do regime. E ainda a questão da reunificação <strong>de</strong>penas: o sujeito, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> c<strong>on</strong><strong>de</strong>nado por vários crimes, perfazendo umtotal superior a 30 anos, a pena é unificada em 30 anos. Então, se o c<strong>on</strong><strong>de</strong>nadopratica novo crime após o início do cumprimento da pena, faz-sea reunificação em 30 anos, <strong>de</strong>sprezando-se o tempo <strong>de</strong> pena já cumprido.No Projeto, sabem o que fizeram? Aumentaram o limite máximo para40 anos, no caso <strong>de</strong> reunificação das penas. Agora, além <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezar otempo <strong>de</strong> pena cumprido no limite <strong>de</strong> 30 anos – que já é um absurdo, emtermos internaci<strong>on</strong>ais –, aumentaram esse limite para 40 anos, no caso<strong>de</strong> reunificação por novo crime após início <strong>de</strong> execução da pena. E o pior,é que os autores do Projeto acreditam na pena como instrumento <strong>de</strong> correção<strong>de</strong> problemas sociais, ou como forma raci<strong>on</strong>al <strong>de</strong> enfrentamento <strong>de</strong>problemas sociais.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 13-27, out.-<strong>de</strong>z. 2012 23


Por último, o princípio da humanida<strong>de</strong>. O princípio da humanida<strong>de</strong>está na C<strong>on</strong>stituição, ligado ao princípio da dignida<strong>de</strong> da pessoa humana,inscrito no artigo 1º, inciso III. O princípio da humanida<strong>de</strong> proíbe a cominação,a aplicação ou a execução <strong>de</strong> penas cruéis. Por exemplo, pena<strong>de</strong> morte, perpétua, trabalhos forçados, banimento, castração, mutilaçãoetc. Mas po<strong>de</strong>mos perguntar: existe pena mais cruel do que a reunificaçãodas penas, que eleva o máximo para 40 anos, quando se pratica umnovo crime após o início <strong>de</strong> execução ? Isso é cruel, como cruel tambémé o RDD.E as medidas <strong>de</strong> segurança? O prazo mínimo é igual à pena cominadaao fato praticado pelo inimputável. Isso é um avanço, porque o CódigoPenal vigente não prevê essa limitação. O Projeto incorpora uma propostainspirada em alguns autores, como Miguel Reale Jr. e outros, no sentido<strong>de</strong> que a duração da medida <strong>de</strong> segurança <strong>de</strong>ve ser igual à duração dapena cominada ao fato. Mas por que não seguir a orientação da 5 a CâmaraCriminal do TJ gaúcho, que propõe um critério melhor: o prazo da medida<strong>de</strong> segurança <strong>de</strong>ve ser igual ao da pena que seria aplicada, em c<strong>on</strong>creto,se o sujeito fosse imputável. Faz-se um cálculo da pena aplicável, se o autorfosse imputável, e a medida <strong>de</strong> segurança não po<strong>de</strong> ser superior a essapena. Isso parece justo, então por que não adotar? O que propõe o Projetoviola o princípio da humanida<strong>de</strong>, pois diz assim: nos crimes com violênciaou grave ameaça, a duração da medida <strong>de</strong> segurança é <strong>de</strong> 30 anos,se persistir a periculosida<strong>de</strong>. E se o fato praticado for uma simples lesãocorporal, o inimputável <strong>de</strong>ve permanecer internado durante 30 anos?Ainda sobre o Projeto, as referências são exemplificativas, nãoexaustivas – afinal, <strong>on</strong><strong>de</strong> abrirmos o Projeto, enc<strong>on</strong>traremos motivos paracrítica. O Projeto violou todos os princípios do Direito Penal, não seguiunenhum dos princípios do Direito Penal. É absolutamente autoritário, repressivo,punitivo. As críticas não são algo p<strong>on</strong>tual, isolado ou casual, osproblemas ac<strong>on</strong>tecem em massa, <strong>de</strong> forma sistemática, aos m<strong>on</strong>tões, <strong>de</strong>cambulhada, <strong>de</strong> enxurrada, por toda a parte.Agora, retomando o princípio da proporci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>ríamostalvez perguntar: essa reforma do Código Penal, é a<strong>de</strong>quada? Evi<strong>de</strong>ntemente,não. É absolutamente ina<strong>de</strong>quada a reforma proposta, por razõespolíticas, científicas, i<strong>de</strong>ológicas. Para ser breve: seria muito melhor <strong>de</strong>ixartudo como está. Vamos completar a pergunta: essa reforma é necessária?Quanto à Parte Geral do Código Penal, posso resp<strong>on</strong><strong>de</strong>r, com toda24R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 13-27, out.-<strong>de</strong>z. 2012


sincerida<strong>de</strong>, que não é necessária. Não precisamos <strong>de</strong> uma reforma daParte Geral, precisávamos somente <strong>de</strong> pequenos ajustes, por exemplo,na questão do erro <strong>de</strong> proibição, nas penas restritivas <strong>de</strong> direito (maiorclareza e ampliação <strong>de</strong> hipóteses), en<strong>fim</strong>, pequenas coisas que po<strong>de</strong>riamser resolvidas com facilida<strong>de</strong>.Agora, quanto à Parte Especial, a reforma seria necessária? Nestep<strong>on</strong>to, temos <strong>de</strong> c<strong>on</strong>cordar: ela é necessária. A incorporação da legislaçãoextravagante, c<strong>on</strong>forme o princípio da codificação, para que todosos aplicadores e os <strong>de</strong>stinatários do Direito Penal saibam <strong>on</strong><strong>de</strong> estão asnormas penais, isso é importante. Mas essa comissão <strong>de</strong> juristas per<strong>de</strong>ua oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer uma verda<strong>de</strong>ira reforma da Parte Especial: umaincorporação seletiva da legislação esparsa no Código Penal. Mas o quefizeram foi pegar toda a legislação penal extravagante, inclusive lei penaisda época da ditadura militar, permeadas <strong>de</strong> tipos penais mal escritos, compenas absurdas e jogar tudo isso, embutir tudo isso, no Projeto. Foi issoo que fizeram, sem nenhuma seleção, sem nenhum critério crítico, semuma verda<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>scriminalização ou <strong>de</strong>spenalização, por exemplo, doscrimes <strong>de</strong> bagatela, dos crimes <strong>de</strong> <strong>de</strong>tenção ou <strong>de</strong> ação penal privada eoutros que precisam ser banidos do Código Penal. Ao c<strong>on</strong>trário, em vez <strong>de</strong>reduzir, ampliaram o Direito Penal, elevando c<strong>on</strong>travenções à categoria <strong>de</strong>crimes. Mas para fazer uma <strong>de</strong>scriminalização radical é preciso coragem– além <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r que o Direito Penal não po<strong>de</strong> resolver problemassociais. Na verda<strong>de</strong>, como mostra a Criminologia, o sistema criminalé criminogênico, reproduz e amplia a criminalida<strong>de</strong>. Precisamos enc<strong>on</strong>traroutras respostas, seguindo a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> Radbruch, sempre citada por SandroBaratta, segundo a qual não precisamos <strong>de</strong> um Direito Penal melhor, mas<strong>de</strong> qualquer coisa melhor do que o Direito Penal.E não só <strong>de</strong>scriminalização, mas também <strong>de</strong>spenalização, porquea vítima não está interessada na punição, mas na reparação do dano ouna restituição da coisa. E também <strong>de</strong>sinstituci<strong>on</strong>alização, no sentido <strong>de</strong><strong>de</strong>sinstituci<strong>on</strong>alizar a execução das penas e das medidas <strong>de</strong> segurança<strong>de</strong>tentivas. Hoje, a Itália tem a lei Basaglia, que aboliu os manicômiosjudiciários. Basaglia, como todos sabem, foi um psiquiatra, também umcriminólogo, que assumiu a direção <strong>de</strong> um hospital psiquiátrico, um manicômio,na Itália, e chegou à c<strong>on</strong>clusão <strong>de</strong> que as doenças mentais, comoa esquizofrenia, são problemas vinculados à falta <strong>de</strong> amor. Chamou osparentes resp<strong>on</strong>sáveis pelos doentes e disse-lhes que o problema dos do-R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 13-27, out.-<strong>de</strong>z. 2012 25


entes era a falta <strong>de</strong> amor. E que se tratados com carinho, seriam pessoasnormais. E pediu que levassem seus doentes para casa, <strong>on</strong><strong>de</strong> a imensamaioria se restabeleceu e nunca mais voltou para o manicômio. Essa experiênciaoriginou a lei Basaglia, que extinguiu os manicômios judiciários,na Itália. No Brasil, também todos sabemos, o chamado Hospital <strong>de</strong> Custódiae Tratamento Psiquiátrico é um “inferno”, não existe imagem e cheiropior. Então, por que não acabar com isso, aqui também? Mas, no projeto,pelo c<strong>on</strong>trário, criaram ainda mais problemas, inclusive com aumento <strong>de</strong>tempo <strong>de</strong> internação.E por falar <strong>de</strong> <strong>de</strong>sinstituci<strong>on</strong>alização, o Projeto acabou com a suspensãoc<strong>on</strong>dici<strong>on</strong>al da pena e com o livramento c<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>al. Por quê?Esses institutos po<strong>de</strong>riam ser revitalizados e otimizados. No mundo inteiro,aplica-se o livramento c<strong>on</strong>dici<strong>on</strong>al (ou parole), aplica-se o sursis(ou probati<strong>on</strong>), mas o Projeto preten<strong>de</strong> acabar com esses institutos, noBrasil. On<strong>de</strong> estão com a cabeça? On<strong>de</strong> entra a criminologia? E a políticacriminal?Então, finalmente, vocês po<strong>de</strong>m perguntar: mas o Projeto não temméritos? E eu resp<strong>on</strong>do: sim, o Projeto tem alguns méritos. Ninguém po<strong>de</strong>negar que a <strong>de</strong>scriminalização da droga foi um ato <strong>de</strong> coragem. Aplaudo a<strong>de</strong>scriminalização da posse <strong>de</strong> drogas para c<strong>on</strong>sumo pessoal e <strong>de</strong> plantaspara preparar drogas para c<strong>on</strong>sumo pessoal. Também merece aplauso a<strong>de</strong>scriminalização do aborto, nas hipóteses <strong>de</strong> risco para a vida ou saú<strong>de</strong>da mãe, <strong>de</strong> gravi<strong>de</strong>z lesiva da dignida<strong>de</strong> ou por métodos não c<strong>on</strong>sentidos,<strong>de</strong> feto anencefálico ou com anomalias graves e, especialmente, por v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong>da gestante sem c<strong>on</strong>dições psicológicas para a maternida<strong>de</strong>, até a12 a . semana <strong>de</strong> gestação. Claro, aqui existe a oposição religiosa, trata-se<strong>de</strong> questão carregada <strong>de</strong> emoções, mas não é possível c<strong>on</strong>tinuar o genocídioque a proibição do aborto produz. São milhões <strong>de</strong> mães que morremou sofrem lesões muito sérias porque não po<strong>de</strong>m fazer o aborto noSUS. No caso <strong>de</strong> aborto por v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> da gestante, nós nos aproximamosda lei alemã, que é ainda mais simples: até a décima segunda semana<strong>de</strong> gestação, se a gestante manifestar a v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> <strong>de</strong> abortar, após passarpor um procedimento prévio <strong>de</strong> ac<strong>on</strong>selhamento, recebe um atestado epratica o aborto em qualquer hospital. Neste p<strong>on</strong>to, o Projeto representaum avanço.Por último, a questão da eutanásia também merece palmas: apermissão da ajuda passiva à morte <strong>de</strong> pacientes terminais que querem26R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 13-27, out.-<strong>de</strong>z. 2012


morrer, com o prévio c<strong>on</strong>sentimento <strong>de</strong>les – aliás, o que já ocorre emhospitais, com a suspensão <strong>de</strong> métodos paliativos em pacientes terminais,precedido <strong>de</strong> c<strong>on</strong>sentimento. O Código Penal <strong>de</strong>ve disciplinar essaquestão, atualmente regulada pelo Código Civil, que fundamenta a intervençãocirúrgica e o tratamento médico, em geral, no c<strong>on</strong>sentimento dopaciente. Não obstante, todas essas mudanças meritórias po<strong>de</strong>riam serintroduzidas por uma simples lei penal – sem necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um novoCódigo Penal.Os <strong>de</strong>feitos do Projeto são muito maiores do que seus méritos. OProjeto <strong>de</strong> reforma do Código Penal, não é somente um esforço inútil. Émais do que isso: representa um menoscabo à inteligência jurídica brasileira.É uma agressão c<strong>on</strong>tra os direitos humanos do cidadão. É um momento<strong>de</strong>plorável na história do Direito Penal brasileiro, que nos expôs àchacota e ao ridículo universal. Ou, nas palavras, <strong>de</strong> Luís Greco, nos expôsà gargalhada do mundo. Em c<strong>on</strong>clusão – e sinceramente: espero que esseprojeto não se transforme em lei. Seria uma <strong>de</strong>sgraça naci<strong>on</strong>al. Muitoobrigado! R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 13-27, out.-<strong>de</strong>z. 2012 27


Proteção aos DireitosFundamentaisMinistro Sebastião Reis JúniorSuperior <strong>Tribunal</strong> <strong>de</strong> Justiça - STJEspecialista em Direito Público pela PUC/MG.Temos c<strong>on</strong>stantemente a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> flagrar c<strong>on</strong>hecidose <strong>de</strong>sc<strong>on</strong>hecidos e a nós mesmos nesse processo <strong>de</strong> c<strong>on</strong><strong>de</strong>nar.O prazer do veredicto negativo é sempre inequívoco.Trata-se <strong>de</strong> um prazer ru<strong>de</strong> e cruel, que não se <strong>de</strong>ixa perturbarpor coisa alguma. Um veredicto somente é um veredictose proferido com uma segurança algo sinistra. Desc<strong>on</strong>hecea clemência, da mesma forma como <strong>de</strong>sc<strong>on</strong>hece a cautela.Chega-se a ele com rapi<strong>de</strong>z, e que tal se dê sem reflexão éalgo perfeitamente a<strong>de</strong>quado à sua essência. A paixão queo veredicto revela está ligada à sua velocida<strong>de</strong>. O veredictoinc<strong>on</strong>dici<strong>on</strong>al e o veloz são os que se <strong>de</strong>senham como prazerno rosto daquele que c<strong>on</strong><strong>de</strong>na. [...] O juiz sentencia c<strong>on</strong>tinuamente,por assim dizer. Seu veredito é a lei. O que ele julgasão coisas bastante específicas; seu extenso saber acerca dobem e do mal provém <strong>de</strong> uma l<strong>on</strong>ga experiência. Mas aquelesque não são juízes – aqueles que ninguém <strong>de</strong>signou nem<strong>de</strong>signaria em sã c<strong>on</strong>sciência para tal cargo –, mesmo essesse atrevem sem cessar a proferir veredictos, e em todas asáreas. Nenhum c<strong>on</strong>hecimento objetivo é exigido para tanto:po<strong>de</strong>m-se c<strong>on</strong>tar nos <strong>de</strong>dos aqueles que reservam parasi seus veredictos porque <strong>de</strong>les se enverg<strong>on</strong>ham. Essa enfermida<strong>de</strong><strong>de</strong> julgamento é uma das mais disseminadas entreos homens, acometendo praticamente a todos. 11 CANETI, Elias – Prêmio Nobel <strong>de</strong> Literatura em 1981, citado por René Ariel Dotti, in Curso <strong>de</strong> Direito Penal, partegeral, 4ª ed., p. 92, grifo nosso.28R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 28-45, out.-<strong>de</strong>z. 2012


A ocorrência <strong>de</strong> um imenso número <strong>de</strong> fatores <strong>de</strong>terminantesda criminalida<strong>de</strong> violenta em nível mundial, por um lado, ea liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> informação, por outro, têm provocado vagas<strong>de</strong> insegurança coletiva que são multiplicadas ao infinito pelosmeios <strong>de</strong> comunicação por satélite. A reação a esse fenômeno,no plano interno, tem como resposta imediata oacréscimo <strong>de</strong> propostas <strong>de</strong> medidas repressivas. Os crimesclassificados como hedi<strong>on</strong>dos são apresentados pelos massmedia e por alguns políticos como um fenômeno terrível, gerador<strong>de</strong> insegurança e causado pela suposta dulcificação dalei penal. O remédio c<strong>on</strong>tra esse mal não seria outro senão oimplemento <strong>de</strong> reformas ditadas pela i<strong>de</strong>ologia da repressão,fulcrada em severos regimes punitivos e que aparecem sob acapa <strong>de</strong> movimento <strong>de</strong> lei e <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m. 2O pior que po<strong>de</strong>ria ac<strong>on</strong>tecer aos regimes liberais e pluraristasdo Oci<strong>de</strong>nte seria, a pretexto do terrorismo, afastarem-sedos gran<strong>de</strong>s princípios jurídicos que tanto lhes custou c<strong>on</strong>quistare sedimentar nas suas C<strong>on</strong>stituições, nas suas leis enas suas culturas cívicas. O pior que po<strong>de</strong>ria ac<strong>on</strong>tecer seria,afinal, a pretexto do terrorismo, ficarem abalados os fundamentosdo Estado <strong>de</strong> Direito. 3O terrorismo semeia o terror nas estruturas fundantes doDireito C<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>al e do Direito Penal. Estes dois direitosparecem mesmo transportar a cruz da ruptura antropológicaque os dilacera. O golpe fractal vai até tão fundo que,segundo alguns autores, são as próprias raízes ônticas dodireito penal (e, também, como veremos, do direito c<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>al)a sofrer com os exorcismos e os estigmas dosnovos slogans securitários tais como o law and or<strong>de</strong>r, ZeroTollerance e Broken Windows. 42 DOTTI, René Ariel. Op. cit., p. 90, grifo nosso.3 MIRANDA, Jorge. "Os direitos fundamentais e o terrorismo", in Escritos vários sobre Direitos Fundamentais. Principia,fl. 501, grifo nosso.4 CANOTILHO, Joaquim José Gomes. "Terrorismo e direitos fundamentais", in Estudos sobre direitos fundamentais,fl. 233, grifo nosso.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 28-45, out.-<strong>de</strong>z. 2012 29


De toda forma, nada mais perigoso para a Democracia e parao Estado <strong>de</strong> Direito do que o vilipêndio ao direito <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa,fundado em uma difusa ânsia pela c<strong>on</strong><strong>de</strong>nação, pela prisão,por um espetáculo que satisfaça os mais íntimos <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong>vingança.Garantir o direito <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa é assegurar a raci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>da punição. É fazer valer o mais importante limite ao arbítrio.Não por acaso tal direito está previsto na C<strong>on</strong>stituição,no Pacto <strong>de</strong> San José da Costa Rica, na Declaração Universaldos Direitos do Homem e nos mais diversos tratados ec<strong>on</strong>venções. É um direito humano c<strong>on</strong>trapor à acusaçãoargumentos, recursos e disposições legais que favoreçamo acusado.Querer impedir o uso <strong>de</strong> boas <strong>de</strong>fesas diante da avassaladoraansieda<strong>de</strong> pela c<strong>on</strong><strong>de</strong>nação, além <strong>de</strong> ilegal, é covar<strong>de</strong>e imoral. Quando a socieda<strong>de</strong>, o Estado, a mídia voltam suasbaterias c<strong>on</strong>tra o acusado, resta-lhe o advogado <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa,muitas vezes o último e único a lhe escutar, ouvir sua versão,e levá-la a Juízo para um julgamento justo. Como dizia Carnelutti“a essência, a dificulda<strong>de</strong>, a nobreza da advocacia éesta: sentar-se sobre o último <strong>de</strong>grau da escada, ao lado doacusado, quando todos o ap<strong>on</strong>tam”. Retirar-lhe até isso, atéesse último e no mais das vezes solitário apoio, é instituci<strong>on</strong>alizaro linchamento. 5Essas citações são <strong>de</strong> literatos (Elias Caneti), penalistas (René ArielDotti, Alberto Zacharias Tor<strong>on</strong>, Pierpaolo Cruz Bottini e Celso Sanches Vilardi)e c<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>alistas (Canotilho e Jorge Miranda). Elas revelam umarealida<strong>de</strong> que, pelo que percebo, atinge hoje as principais <strong>de</strong>mocraciasmundiais.Todas mostram o surgimento <strong>de</strong> um sentimento <strong>de</strong> vingança, impotência,raiva, que toma c<strong>on</strong>ta da socieda<strong>de</strong> como um todo e que quaseobriga o legislador e a própria justiça a imporem um Direito Penal expan-5 TORON, Alberto Zacharias; BOTTINI, Pierpaolo Cruz; VILARDI Celso Sanches. "Po<strong>de</strong>m os advogados <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r pessoasmás?" Disp<strong>on</strong>ível em www.c<strong>on</strong>jur.com.br. Acesso em 6/6/2012, grifo nosso.30R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 28-45, out.-<strong>de</strong>z. 2012


si<strong>on</strong>ista, sempre usando a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se garantir e preservar a ‘segurançados cidadãos’ como motivo.Direitos e garantias individuais c<strong>on</strong>quistados, às duras penas, aol<strong>on</strong>go do tempo, estão sendo colocados em segundo plano, em razão dossentimentos <strong>de</strong> insegurança e vingança que afligem a socieda<strong>de</strong>.René Dotti ensina-nos que “em muitas situações o abuso da liberda<strong>de</strong><strong>de</strong> informar estimula o sentimento <strong>de</strong> insegurança e a vaga <strong>de</strong> anomiaquando a divulgação dos crimes mais graves estabelece a massificaçãoda resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> criminal e a subversão do princípio da presunção <strong>de</strong>inocência.” 6Janio <strong>de</strong> Freitas, ao analisar recentemente a cobertura pela imprensado julgamento do chamado ‘Mensalão’, diz, em outras palavras, que opróprio Supremo <strong>Tribunal</strong> Fe<strong>de</strong>ral po<strong>de</strong> ser objeto <strong>de</strong> pressão por parteda mídia; pressão esta que eventualmente po<strong>de</strong> inibir sua liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong><strong>de</strong>cidir, uma das garantias presentes em um Estado Democrático:Os trabalhos jornalísticos com esforço <strong>de</strong> equilíbrio estão emminoria quase comovente.Na hipótese mais complacente com a imprensa, aí c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>radostambém o rádio e a TV, o sentido e a massa <strong>de</strong> reportagense comentários resulta em pressão forte, com duasdireções.Uma , sobre o Supremo. Sobre a liberda<strong>de</strong> dos magistrados<strong>de</strong> exercerem sua c<strong>on</strong>cepção <strong>de</strong> justiça, sem influências, inc<strong>on</strong>scientesmesmo, <strong>de</strong> fatores externos ao julgamento, qualquerque seja.Essa é a c<strong>on</strong>dição que os regimes autoritários negam aos magistradose a <strong>de</strong>mocracia lhes oferece.Dicotomia que permite pesar e medir o quanto há <strong>de</strong> apego à<strong>de</strong>mocracia em <strong>de</strong>terminados modos <strong>de</strong> tratar o julgamentodo mensalão, seus réus e até o papel da <strong>de</strong>fesa.6 Op. cit., p. 94.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 28-45, out.-<strong>de</strong>z. 2012 31


O outro rumo da pressão, é claro, a opinião pública que seforma sob as influências do que lhe ofereçam os meios <strong>de</strong>comunicação.Se há indução <strong>de</strong> animosida<strong>de</strong> c<strong>on</strong>tra os réus e advogados,na hora <strong>de</strong> um julgamento, a resposta prevista só po<strong>de</strong> ser aexpectativa <strong>de</strong> c<strong>on</strong><strong>de</strong>nações a granel e, no resultado alternativo,<strong>de</strong>cepção exaltada, com a c<strong>on</strong>sequência <strong>de</strong> louvação ourepulsa à instituição judicial. 7Neste c<strong>on</strong>texto, como diz Silva Sanches,pelo menos uma dimensão do Direito Penal vem se <strong>de</strong>senvolvend<strong>on</strong>a linha <strong>de</strong> um Direito Penal <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa c<strong>on</strong>tra perigos.Isso, muito provavelmente, se <strong>de</strong>ve à <strong>de</strong>sorientação normativae ao medo do crime que experimentam gran<strong>de</strong>s camadasda socieda<strong>de</strong>, assim como às necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> c<strong>on</strong>trole<strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> riscos. O importante é não ignorar essatendência, levá-la a sério e enfrentar o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> c<strong>on</strong>struirum Direito da segurança que atenda às exigências do Estado<strong>de</strong> Direito. 8O Estado está sendo <strong>de</strong>rrotado pelo crime organizado. Organizaçõescriminosas apresentam-se mais estruturadas e aparelhadas que amáquina estatal. O tráfico <strong>de</strong> drogas tomou c<strong>on</strong>ta da socieda<strong>de</strong>, o medodo cidadão comum atingiu níveis nunca antes vistos. Ele se sente inseguro<strong>de</strong> fazer as ações mais corriqueiras do dia a dia como andar <strong>de</strong> ônibus ouir a um restaurante e passa a exigir do Estado uma ação <strong>de</strong> força, uma<strong>de</strong>m<strong>on</strong>stração <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e c<strong>on</strong>trole.O fato é que o Estado não toma mais a iniciativa; age hoje provocadopela mídia e pela socieda<strong>de</strong>.Surgem leis p<strong>on</strong>tuais que, em reação ao reclamo social, muitas vezespopulista, criam novos tipos penais, c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rando fatos que, em período<strong>de</strong> normalida<strong>de</strong>, não mereceriam atenção (posso citar o bullying,7 Jornal a Folha <strong>de</strong> São Paulo, 31.07.20128 In "Aproximação ao direito penal c<strong>on</strong>temporâneo". <str<strong>on</strong>g>Revista</str<strong>on</strong>g> dos Tribunais. 2011, p. 77.32R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 28-45, out.-<strong>de</strong>z. 2012


que, pelo projeto <strong>de</strong> Código Penal apresentado recentemente po<strong>de</strong>rátornar-se crime), ou penalizam com maior rigor tipos já existentes (Lei <strong>de</strong>Crimes Hedi<strong>on</strong>dos, por exemplo, que impõe o regime fechado como únicopara cumprimento <strong>de</strong> penas em razão <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados crimes), sem ocuidado <strong>de</strong> respeitar uma estrutura penal já existente.Para René Ariel Dotti estamos diante <strong>de</strong> uma legislação <strong>de</strong> pânico.9 Já para o Prof. Antônio Baptista G<strong>on</strong>çalves, “o resultado prático é umverda<strong>de</strong>iro Frankenstein normativo, ou melhor, uma completa colcha <strong>de</strong>retalhos <strong>de</strong> normas, estas, que são criadas para resp<strong>on</strong><strong>de</strong>rem problemasimediatos, mas que não têm uma c<strong>on</strong>exão com o sistema em si.” 10A reforma <strong>de</strong> leis penais parece ser uma resposta mais simples aoreclamo popular, sendo para o Estado mais cômodo achar um culpado (ocriminoso) e puni-lo, remediando, ou tentando remediar, um problemado que soluci<strong>on</strong>á-lo na sua origem, que em sua gran<strong>de</strong> parte é <strong>de</strong> causasocial e ec<strong>on</strong>ômica.Esse fenômeno é c<strong>on</strong>statado por André Luis Callegari e FernandaArruda Dutra:Uma c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>ração que não se po<strong>de</strong> olvidar é a trazida porBaratta quando coloca em jogo a eficiência do Direito Penal ea eficiência do pacto social, principalmente quando entram emjogo <strong>de</strong>terminadas normas <strong>de</strong> caráter meramente publicitário,mas, que em c<strong>on</strong>trapartida, trazem como reflexo, outrasnormas que suprimem direitos e garantias individuais.Isso fica claramente <strong>de</strong>m<strong>on</strong>strado em nosso país como as legislaçõespróprias <strong>de</strong> emergência, que visam ‘acalmar’ a populaçãoou ‘c<strong>on</strong>ter’ um <strong>de</strong>terminado tipo <strong>de</strong> criminalida<strong>de</strong>,porém, trazem sob um manto cinzento a supressão <strong>de</strong> direitose garantias fundamentais prec<strong>on</strong>izados na Carta Política. Veja-se,por exemplo, a Lei dos Crimes Hedi<strong>on</strong>dos, <strong>on</strong><strong>de</strong> o caráterpublicitário ganhou força, porém não se <strong>de</strong>m<strong>on</strong>strou umaefetivida<strong>de</strong> com a edição da referida lei. 119 Op.cit., p. 95.10 "Direito Penal do inimigo e a globalização: quando a exceção se torna a regra – uma análise crítica", LEX – Jurisprudênciado Superior <strong>Tribunal</strong> <strong>de</strong> Justiça e Tribunais Regi<strong>on</strong>ais Fe<strong>de</strong>rais, n. 266, fl. 12.11 In "Direito Penal do Inimigo e Direitos Fundamentais". <str<strong>on</strong>g>Revista</str<strong>on</strong>g> dos Tribunais. Ano 96, v. 862, agosto <strong>de</strong> 2007, p.431, grifo nosso.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 28-45, out.-<strong>de</strong>z. 2012 33


Como disse recentemente o Prof. Miguel Reale Junior o erro estáem você estabelecer uma punição, uma interferência do Direito Penal emfatos que <strong>de</strong>vem ser enfrentados pelo processo educaci<strong>on</strong>al, processo <strong>de</strong>educação na escola, processo <strong>de</strong> educação na família, e não com a repressãopenal. Imaginar que trazer punição do Direito Penal para resolver ascoisas, que vamos dormir tranquilos porque o Direito Penal está resolvendotudo. É a ausência dos c<strong>on</strong>troles informais, a escola, a igreja, a família,o sindicato, o clube, a associação do bairro, a vizinhança etc. São todasformas naturais, sociais, <strong>de</strong> c<strong>on</strong>trole social. Quando os c<strong>on</strong>troles informaisjá não atuam, se reforça o Direito Penal como salvação. Passa a ser o<strong>de</strong>saguador <strong>de</strong> todas as expectativas. 12 .O fato é que o crime surge e cresce <strong>on</strong><strong>de</strong> o Estado se mostra falho,inseguro, ausente. No Brasil, é notório o fenômeno que atinge as nossasfavelas, <strong>on</strong><strong>de</strong> o crime organizado – o tráfico – supre a carência do Estado,oferecendo o que este não c<strong>on</strong>segue prover – segurança, hierarquia, or<strong>de</strong>m,saú<strong>de</strong>, educação.Como diz Alexandre <strong>de</strong> Moraes,uma <strong>on</strong>da propagandística dirigida especialmente às massaspopulares, por aqueles que, preocupados em <strong>de</strong>sviar aatenção dos graves problemas sociais e ec<strong>on</strong>ômicos, tentamencobrir que estes fenômenos <strong>de</strong>sgastantes do tecido socialsão evi<strong>de</strong>ntemente, entre outros, os principais fatores que<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>iam o aumento não tão <strong>de</strong>senfreado e inc<strong>on</strong>trolávelquando alar<strong>de</strong>iam da criminalida<strong>de</strong>. 13A solução que se apresenta é o expansi<strong>on</strong>ismo do Direito Penal coma relativização <strong>de</strong> direitos, o que po<strong>de</strong> fazer surgir, a título <strong>de</strong> se protegero ‘estado <strong>de</strong> direito’, um regime totalitário, opressor, em que os fins justificamos meios. O Direito Penal, que tem natureza subsidiária, c<strong>on</strong>stituindoa ultima ratio, torna-se o remédio para todos os males, c<strong>on</strong>vertendo-sena prima ratio.12 In http://www.c<strong>on</strong>jur.com.br/2012-set-02/entrevista-miguel-reale-junior-<strong>de</strong>cano-faculda<strong>de</strong>-direito-usp13 Citado por Ant<strong>on</strong>io Baptista G<strong>on</strong>çalves, in "Direito Penal do inimigo e a globalização: quando a exceção se tornaa regra – uma análise crítica", LEX – Jurisprudência do Superior <strong>Tribunal</strong> <strong>de</strong> Justiça e Tribunais Regi<strong>on</strong>ais Fe<strong>de</strong>rais.Ano 23, outubro <strong>de</strong> 2011, n. 266, fl. 23.34R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 28-45, out.-<strong>de</strong>z. 2012


Estamos diante <strong>de</strong> um c<strong>on</strong>fr<strong>on</strong>to entre prevenção e garantias –“quanto maior prevenção, maior <strong>de</strong>trimento <strong>de</strong> garantias; quanto maiormaximização das garantias, menor funci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong> preventiva” 14 –, em queparece predominar o entendimento <strong>de</strong> que “é mais importante hoje ce<strong>de</strong>rgarantias para aumentar a segurança” 15 .Surgem e ganham força, mesmo que <strong>de</strong> modo não ostensivamenteassumido, práticas próprias do ‘direito penal do inimigo’, em que o indivíduoé c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rado como um potencial perigo à socieda<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>ndosec<strong>on</strong>tra ele agir não só <strong>de</strong> modo repressivo, mas também preventivo,aplicando-se-lhe, antecipadamente, uma sanção ou uma medida <strong>de</strong> segurança.Tudo para se garantir a paz social. Há “uma ampla antecipação dapunibilida<strong>de</strong>, pela adoção <strong>de</strong> uma perspectiva fundamentalmente prospectiva,pelo incremento notável das penas, e pelo relaxamento ou supressão<strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadas garantias processuais individuais.” 16Com o direito penal do inimigo passamos a ter duas categorias <strong>de</strong>cidadãos: aqueles tutelados pelo – po<strong>de</strong>mos assim chamar – Direito Penalordinário, que são as pessoas que praticam o crime <strong>de</strong> modo esporádico,eventual, que cometem um erro; e aqueles tratados por um Direito Penalpróprio, mais rigoroso, em que os direitos individuais são relegados a segundoplano, que são os indivíduos que <strong>de</strong>vem ser impedidos <strong>de</strong> <strong>de</strong>struiro or<strong>de</strong>namento jurídico vigente, por serem reinci<strong>de</strong>ntes, criminosos habituais,profissi<strong>on</strong>ais do crime e integrantes <strong>de</strong> organização criminosa, ouseja, os ‘inimigos’.Não nego que, como cidadão, a reação imediata, natural ao crimeque hoje assola a nossa socieda<strong>de</strong>, muitas vezes cometido por meios cruéis,<strong>de</strong>sumanos, abusivos, seja esta que hoje existe: expansi<strong>on</strong>ismo dodireito penal, com o incremento das penas e sanções como a solução maiseficaz e como a resposta necessária para punir os resp<strong>on</strong>sáveis pela intranquilida<strong>de</strong>que hoje toma c<strong>on</strong>ta <strong>de</strong> todos nós.Entretanto a emoção não po<strong>de</strong> prep<strong>on</strong><strong>de</strong>rar. Tal reação é natural eesperada por parte do cidadão comum, vítima <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> crime – quese equipara a uma indústria estruturada e organizada – e que se tornamais violento a cada dia que passa; mas não po<strong>de</strong> tal reação ser a do Estado,que legisla e aplica as leis.14 CRESPO, Eduardo Demetrio. "O ‘Direito Penal do inimigo’" DARF NICHT SEIN. <str<strong>on</strong>g>Revista</str<strong>on</strong>g> da Associação Brasileira <strong>de</strong>Professores <strong>de</strong> Ciências Penais. Ano 3, janeiro-junho <strong>de</strong> 2006, fl. 126.15 ZAFFARONI, citado por Eduardo Demetrio Crespo. Op. cit., fl. 126.16 CRESPO, Eduardo Demetrio. Op. cit., fl. 133.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 28-45, out.-<strong>de</strong>z. 2012 35


Pertinente o alerta <strong>de</strong> Callegari e Fernanda Dutra:O direito penal do inimigo <strong>de</strong>fendido por Jakobs, c<strong>on</strong>forme jáabordado, tem como um <strong>de</strong> seus pressupostos a separaçãodo direito penal dos cidadãos e o direito penal do inimigo. Entretanto,tal posição não se coaduna com o Estado <strong>de</strong> Direito.A justificação da proteção do cidadão através <strong>de</strong> políticas <strong>de</strong>segurança com restrição <strong>de</strong> direitos fundamentais sempre forama justificativa enc<strong>on</strong>trada por Estados autoritários paracombater o que alegavam ser caos e a insegurança.Em qualquer parte do globo, observamos cidadãos amedr<strong>on</strong>tadosseja pelo terrorismo, pelo tráfico ou pela máfia. A i<strong>de</strong>ia<strong>de</strong> que estes ‘inimigos’ como os <strong>de</strong>nomina Jakobs, que se negama ingressar no estado <strong>de</strong> cidadania, não gozem dos mesmosdireitos assegurados ao cidadão é <strong>de</strong>veras tentadora. Os‘inimigos’ não foram signatários do pacto social e, portanto,não po<strong>de</strong>m participar dos benefícios assegurados por este.Mas não po<strong>de</strong>mos ser imediatistas. A questão <strong>de</strong>ve ser c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>radaatravés das c<strong>on</strong>sequências advindas a l<strong>on</strong>go prazo. Eneste caso, a preocupação se torna ainda maior.[...]Este direito penal <strong>de</strong> exceção pregado por Jakobs vai <strong>de</strong> enc<strong>on</strong>troaos princípios liberais basilares do Estado <strong>de</strong> Direito.Por mais grave e <strong>de</strong>sumana que tenha sido a c<strong>on</strong>duta <strong>de</strong> uminfrator, a ninguém, nem ao Estado é permitido tratá-lo comoum ser <strong>de</strong>sprovido dos mais elementares direitos. A partir domomento em que permitimos esta violação com justificaçãoexcepci<strong>on</strong>al estaremos abrindo perigoso prece<strong>de</strong>nte para queoutras restrições venham a ser feitas, sempre com a justificativa<strong>de</strong> proteção dos cidadãos. 17O Direito Penal tem que se atualizar, tem que resp<strong>on</strong><strong>de</strong>r à novarealida<strong>de</strong>, não se nega esse fato mas isso não significa que <strong>de</strong>va fazê-lo<strong>de</strong> modo precipitado, instintivo, p<strong>on</strong>tual, EMOTIVO. As soluções <strong>de</strong>vem17 Op. cit., p. 438/439.36R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 28-45, out.-<strong>de</strong>z. 2012


ser coerentes com uma estrutura normativa já existente. Não po<strong>de</strong>mospermitir que modificações p<strong>on</strong>tuais criem <strong>de</strong>sproporci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>s inaceitáveis,em que crimes menores sejam punidos com mais rigor do quecrimes maiores ou em que a punição se imp<strong>on</strong>ha <strong>de</strong> forma abstrata, genérica,sem se c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rar a situação c<strong>on</strong>creta e pessoal do infrator e ascircunstâncias do crime.Além do mais,o Direito Penal <strong>de</strong>ve acompanhar a dinâmica social procurandoadaptar-se às necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> proteção <strong>de</strong> bens e <strong>de</strong>interesses valorizados pela socieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que a tutela porparte <strong>de</strong> outros ramos do Direito tenha se mostrando inócua,isto tendo em vista o seu caráter subsidiário. Por outrolado, sua abrangência não po<strong>de</strong> ser ilimitada e <strong>de</strong>scriteriosaalcançando quaisquer c<strong>on</strong>dutas, pois <strong>de</strong>ve ser sua atuaçãoter como parâmetros seus princípios e postulados, instituídosa favor da preservação da liberda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> outros direitos individuais,que po<strong>de</strong>rão ser violados se a dogmática penal nãofoi obe<strong>de</strong>cida. 18Exemplos <strong>de</strong>sse abuso <strong>de</strong> leis penais são os dispositivos legais recentemente<strong>de</strong>clarados inc<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>ais pelo Supremo <strong>Tribunal</strong> Fe<strong>de</strong>ralque impediam ao c<strong>on</strong><strong>de</strong>nado por tráfico <strong>de</strong> drogas, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntementedo tamanho da pena, a substituição por penas restritivas <strong>de</strong> direito ou aadoção <strong>de</strong> outro regime que não aquele mais gravoso – o fechado.Nossa Suprema Corte enten<strong>de</strong>u que tais dispositivos ofendiam oprincípio c<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>al da individualização da pena. Eles são a mostraviva e recente <strong>de</strong> que o legislador não po<strong>de</strong> agir <strong>de</strong> forma impensada,refletindo única e exclusivamente uma v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> popular <strong>de</strong> vingança e anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>m<strong>on</strong>stração <strong>de</strong> força e po<strong>de</strong>r. Existem princípios que<strong>de</strong>vem ser c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rados e respeitados.Como escreve Jorge Miranda, “os direitos apenas po<strong>de</strong>m sofrer limitesem nome da or<strong>de</strong>m pública, quando tal seja exigido pela preservaçãoda or<strong>de</strong>m c<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>al <strong>de</strong>mocrática; tal como, em c<strong>on</strong>trapartida, os18 OLIVEIRA, Ant<strong>on</strong>io Claudio Mariz <strong>de</strong>. "Reflexões sobre os crimes ec<strong>on</strong>ômicos". <str<strong>on</strong>g>Revista</str<strong>on</strong>g> Brasileira <strong>de</strong> CiênciasCriminais, n. 11, Ano 3, jul-set 1995, fl. 98.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 28-45, out.-<strong>de</strong>z. 2012 37


direitos não po<strong>de</strong>m ser exercidos em liberda<strong>de</strong> e igualda<strong>de</strong> sem or<strong>de</strong>mpública.” 19Mais adiante, diz ele, ainda, que:por imperativo quer da verda<strong>de</strong> e da legalida<strong>de</strong>, quer do respeitoque é <strong>de</strong>vido à dignida<strong>de</strong> <strong>de</strong> qualquer pessoa, mesmoquando culpada, um Estado <strong>de</strong> Direito tem <strong>de</strong> se adstringir a<strong>de</strong>terminadas regras, como sejam:a) Em caso algum, po<strong>de</strong> alguém per<strong>de</strong>r ou ser privado, <strong>de</strong>finitivaou temporariamente, <strong>de</strong> todos os seus direitos e liberda<strong>de</strong>s;b) Em caso algum, po<strong>de</strong> haver restrição, suspensão ou privaçãoindividual <strong>de</strong> direitos como direito à vida ou à integrida<strong>de</strong>física, os direitos dos arguidos ou a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> religião (art.4º, nº 1, do Pacto Internaci<strong>on</strong>al <strong>de</strong> Direitos Civis e Políticos,art. 15, nº 1, da C<strong>on</strong>venção Europeia dos Direitos do Homem,art. 19, nº 6, da C<strong>on</strong>stituição portuguesa);c) Tão pouco é admissível a privação com carácter perpétuoou com duração ilimitada ou in<strong>de</strong>finida <strong>de</strong> qualquer direitoou liberda<strong>de</strong>;d) Nenhuma medida <strong>de</strong> polícia po<strong>de</strong> efectivar o c<strong>on</strong>teúdo essencialdos direitos, salvo em estado <strong>de</strong> sítio;e) Aos tribunais cabe, e apenas a eles, a aplicação <strong>de</strong> quaisquersanções criminais, e a lei <strong>de</strong>finidora da sua competênciatem <strong>de</strong> ser geral, abstracta e anterior ao crime;f) Deve ser garantido o direito <strong>de</strong> recurso para um tribunalsuperior. 20A realida<strong>de</strong> que nos apresenta, porém, é outra. A ‘segurança docidadão’ endossa o uso cada vez mais c<strong>on</strong>stante <strong>de</strong> ações preventivas erepressivas, agora legitimadas por restrições legais e, às vezes, c<strong>on</strong>stitu-19 "Direitos Fundamentais e Polícia", in Escritos vários sobre Direitos Fundamentais. Principia. 1ª ed., p. 461.20 Op. cit., fl. 496.38R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 28-45, out.-<strong>de</strong>z. 2012


ci<strong>on</strong>ais, ações essas que restringem, e não simplesmente limitam direitosfundamentais. Como diz Canotilho:É fácil <strong>de</strong> ver que a <strong>de</strong>sestabilização do sistema penal, nosseus princípios e na sua dogmática, equivale também a umaradical alteração dos princípios fundantes e dos princípios estruturantesdo direito c<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>al. A própria natureza e caracterizaçãodos dois direitos como ‘direitos fragmentários’,um porque (o direito c<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>al) se <strong>de</strong>ve c<strong>on</strong>ceber como‘or<strong>de</strong>m quadro fundamental’, outro (o direito penal) porquese autolimita como ultima ratio à proteção dos bens jurídicoscriminais nos quadros do or<strong>de</strong>namento jurídico-c<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>al,sofre os efeitos da expansão do ‘inimigo’. A pressão recaisobre as C<strong>on</strong>stituições, obrigando-as a rever os respectivostextos, sobretudo no âmbito das liberda<strong>de</strong>s e das garantias,transformando as regras em excepções e as excepções emregras (exemplo: quanto às hipóteses <strong>de</strong> violação do domicílio,quanto à interceptação das comunicações, quanto à vigilânciada privacida<strong>de</strong>, quanto à extradição <strong>de</strong> naci<strong>on</strong>ais). Oestado <strong>de</strong> direito <strong>de</strong>mocrático-c<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>al volta a albergaro estado <strong>de</strong> exceção como estado <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>, sem as restriçõesdo ‘direito <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>’. O direito penal abre-sea novos tipos <strong>de</strong> ilícito e acolhe c<strong>on</strong>ceitos <strong>de</strong> eficácia quepõem em dúvida a sua radical autolimitação <strong>de</strong> direito <strong>de</strong>ultima ratio em instrumento <strong>de</strong> polícia e <strong>de</strong> cruzada c<strong>on</strong>traos ‘inimigos’. Com as mutações naturais da sua historicida<strong>de</strong>,um direito penal <strong>de</strong> permanência evolui para um direitopenal <strong>de</strong> emergência. 21Na verda<strong>de</strong>, ouso dizer que <strong>de</strong>vemos nos perguntar também: Qualo “valor mais nobre”? O valor <strong>de</strong> proteção à intimida<strong>de</strong> das pessoas ouo da busca da verda<strong>de</strong> nos processos? Qual o limite da relativização dosdireitos fundamentais? Quais os “limites” do direito à prova? O “modo<strong>de</strong> agir” po<strong>de</strong> valer mais do que o “resultado”? Como <strong>de</strong>vem ser vistas asregras probatórias?De um lado, busca-se a preservação da intimida<strong>de</strong>, da privacida<strong>de</strong>e <strong>de</strong> seus c<strong>on</strong>sectários (inviolabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sigilo <strong>de</strong> dados e das comuni-21 CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Op. cit., p. 237, grifo nosso.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 28-45, out.-<strong>de</strong>z. 2012 39


cações telefônicas, bancário e fiscal), entre outros direitos individuais; <strong>de</strong>outro, temos a segurança da coletivida<strong>de</strong> e o po<strong>de</strong>r-<strong>de</strong>ver do Estado <strong>de</strong>reprimir práticas <strong>de</strong>litivas.Frente a essas reflexões, nada melhor, então, do que nos socorrerdos ensinamentos dos mestres Ada Pellegrini Grinover, Antônio MagalhãesGomes Filho e Antônio Scarance Fernan<strong>de</strong>s, que assinalam:Uma or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rações também leva à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>se colocarem limites ao direito à prova: o processo só po<strong>de</strong>fazer-se <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma escrupulosa regra moral, que rege aativida<strong>de</strong> do juiz e das partes.[...]E é exatamente no processo penal, <strong>on</strong><strong>de</strong> avulta a liberda<strong>de</strong>do indivíduo, que se torna mais nítida a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> secolocarem limites à ativida<strong>de</strong> instrutória. A dicotomia <strong>de</strong>fesasocial/direitos <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> assume frequentemente c<strong>on</strong>otaçõesdramáticas no juízo penal; e a obrigação <strong>de</strong> o Estadosacrificar na medida menor possível os direitos <strong>de</strong> pers<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>do acusado transforma-se na pedra <strong>de</strong> toque <strong>de</strong> umsistema <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>s públicas.[...]É por isso que a investigação e a luta c<strong>on</strong>tra a criminalida<strong>de</strong><strong>de</strong>vem ser c<strong>on</strong>duzidas <strong>de</strong> uma certa maneira, <strong>de</strong> acordocom um rito <strong>de</strong>terminado, na observância <strong>de</strong> regras preestabelecidas.Se a finalida<strong>de</strong> do processo não é a <strong>de</strong> aplicara pena ao réu <strong>de</strong> qualquer modo, a verda<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve ser obtida<strong>de</strong> acordo com uma forma moral inatacável. O método,através do qual se indaga, <strong>de</strong>ve c<strong>on</strong>stituir, por si só, um valor,restringindo o campo em que se exerce a atuação do juiz edas partes.Assim entendido, o rito probatório não c<strong>on</strong>figura um formalismoinútil, transformando-se, ele próprio, em um escopo aser visado, em uma exigência ética a ser respeitada, em uminstrumento <strong>de</strong> garantia para o indivíduo. A legalida<strong>de</strong> na40R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 28-45, out.-<strong>de</strong>z. 2012


disciplina da prova não indica um retorno ao sistema da provalegal, mas assinala a <strong>de</strong>fesa das formas processuais emnome da tutela dos direitos do acusado: as velhas regras daprova legal apresentavam-se como regras para a melhor pesquisada verda<strong>de</strong>; seu valor era um valor <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>. Hoje,bem pelo c<strong>on</strong>trário, as regras probatórias <strong>de</strong>vem ser vistascomo normas <strong>de</strong> tutela da esfera pessoal <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>: seuvalor é um valor <strong>de</strong> garantia.[...]O que releva notar é que uma coisa são as regras legais sobreavaliação judicial, hoje superadas; outra, bem diversa, sãoas regras <strong>de</strong> admissibilida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> exclusão <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadosmeios <strong>de</strong> prova. Estas últimas <strong>de</strong>vem ser aceitas e estabelecidas,ainda que no plano da investigação dos fatos possamrepresentar algum sacrifício.[...]É suficiente um instante <strong>de</strong> reflexão para perceber que omodo <strong>de</strong> agir não po<strong>de</strong> valer mais do que o resultado. Doisprocessos po<strong>de</strong>m ser imaginados: um, em que a dignida<strong>de</strong>do homem é aviltada; outro, em que é respeitada. Este últimotorna tolerável até mesmo os inevitáveis erros.Por isso é que o termo “verda<strong>de</strong> material” há <strong>de</strong> ser tomadoem seu sentido correto: <strong>de</strong> um lado, no sentido da verda<strong>de</strong>subtraída à influência que as partes, por seu comportamentoprocessual, queiram exercer sobre ela; <strong>de</strong> outro lado, nosentido <strong>de</strong> uma verda<strong>de</strong> que, não sendo “absoluta” ou “<strong>on</strong>tológica”,há <strong>de</strong> ser antes <strong>de</strong> tudo uma verda<strong>de</strong> judicial, práticae, sobretudo, não uma verda<strong>de</strong> obtida a todo preço: umaverda<strong>de</strong> processualmente válida. 22A questão em <strong>de</strong>bate, como se po<strong>de</strong> perceber, não é simples; é, naverda<strong>de</strong>, extremamente <strong>de</strong>licada justamente por envolver direitos funda-22 "As Nulida<strong>de</strong>s no Processo Penal". <str<strong>on</strong>g>Revista</str<strong>on</strong>g> dos Tribunais. 12ª ed., p. 123/125, grifo nosso.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 28-45, out.-<strong>de</strong>z. 2012 41


mentais. Minha colega Ministra Maria Thereza, por ocasião do julgamentodo HC n. 137.349, disse que é indispensável observar os fundamentos da“proporci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>”, sob pena <strong>de</strong> se “banalizar” e até mesmo “vulgarizar”muitas das “garantias c<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>ais”, como a que está assentada noart. 5º, X, da C<strong>on</strong>stituição Fe<strong>de</strong>ral: Direito à intimida<strong>de</strong> e à privacida<strong>de</strong>.Não tenho como discordar.Não muito distante da realida<strong>de</strong> cotidiana, vê-se, em alguns casos,a persecução penal por instrumentos que visam a<strong>de</strong>ntrar na intimida<strong>de</strong>ou na privacida<strong>de</strong> do indivíduo com o escopo <strong>de</strong> utilizar o material obtid<strong>on</strong>essa persecução, na via processual penal, como meio <strong>de</strong> prova, fortalecendoe elucidando os fatos para que o ius puniendi do Estado tenha seu<strong>de</strong>sfecho c<strong>on</strong>cretizado e a justiça, em tese, seja alcançada.Nesses mol<strong>de</strong>s e tentando estabelecer limites para essa persecução,o próprio Estado fixa parâmetros objetivos e positivados a <strong>fim</strong> <strong>de</strong>tentar resguardar alguns preceitos humanos, como a intimida<strong>de</strong>, a privacida<strong>de</strong>etc.Premissas c<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>ais como a do art. 5º, XII, da C<strong>on</strong>stituiçãobrasileira, que dispõe sobre a inviolabilida<strong>de</strong> do sigilo das comunicaçõestelefônicas, ressalvado por or<strong>de</strong>m judicial nas hipóteses estabelecidas porlei; a do inciso X da mesma or<strong>de</strong>m c<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>al, que menci<strong>on</strong>a acercada inviolabilida<strong>de</strong> à intimida<strong>de</strong>, à vida privada etc; a do inciso LIV, quedispõe que “ninguém será privado da liberda<strong>de</strong> ou <strong>de</strong> seus bens sem o<strong>de</strong>vido processo legal” e do inciso LVI da C<strong>on</strong>stituição Fe<strong>de</strong>ral, que diz:“são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”; sãotodas garantias c<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>ais que, ao l<strong>on</strong>go da história, com um garridoesforço da socieda<strong>de</strong>, foram c<strong>on</strong>quistadas para assim permanecerem, enem mesmo o Estado, sem justo motivo, po<strong>de</strong>rá violá-las.Portanto, <strong>de</strong>vem o Estado-juiz (magistrado), o Estado-administração(representante do Ministério Público), a autorida<strong>de</strong> policial, os coligadosnuma or<strong>de</strong>m reta com po<strong>de</strong>res <strong>de</strong> investigação se ater à or<strong>de</strong>m jurídicalimitadora e garantidora dos interesses pessoais do indivíduo para, assim,sem ultrapassar essas garantias, colaborar para o processo <strong>de</strong> uma formalegal, fornecendo materiais probatórios sem vícios legais e válidos para atrilha processual criminal.Tais garantias não po<strong>de</strong>m ser objeto <strong>de</strong> restrições fundadas apenasem atenção ao anseio popular por uma resposta ao crescendo da criminalida<strong>de</strong>.42R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 28-45, out.-<strong>de</strong>z. 2012


Esse alerta é importante, porque a ‘segurança do cidadão’ e a‘satisfação do interesse público’ são sempre usadas como <strong>de</strong>sculpas nãoapenas para alterações legislativas, como a criação a toque <strong>de</strong> caixa <strong>de</strong>leis que criam tipos penais e restringem direitos, mas também para aprópria atuação do Po<strong>de</strong>r Judiciário, que ‘interpreta’ muitas vezes <strong>de</strong>forma mais ampla exceções a direitos garantidos em lei ou mesmo naprópria C<strong>on</strong>stituição.Não é necessário muito esforço para citar um exemplo. A legislaçãoque cuida das interceptações telefônicas é clara ao estabelecer queestas po<strong>de</strong>m ocorrer por um período <strong>de</strong> quinze dias, prorrogável por maisquinze dias. Não <strong>de</strong>morou muito e, em que pese a existência <strong>de</strong> algumasvozes <strong>de</strong>stoantes e isoladas, a jurisprudência do Supremo <strong>Tribunal</strong> Fe<strong>de</strong>rale a do Superior <strong>Tribunal</strong> <strong>de</strong> Justiça firmaram o entendimento <strong>de</strong> que esseprazo não é peremptório, po<strong>de</strong>ndo a interceptação ser prorrogada porprazo in<strong>de</strong>terminado, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que <strong>de</strong> forma justificada.O respeito efetivo pelos direitos individuais e pelas garantias fundamentaisoutorgadas pela or<strong>de</strong>m jurídica aos cidadãos representa, emgeral, o sinal mais expressivo e o indício mais veemente <strong>de</strong> que se c<strong>on</strong>solida,<strong>de</strong> maneira real, o quadro <strong>de</strong>mocrático <strong>de</strong><strong>line</strong>ado na C<strong>on</strong>stituiçãoFe<strong>de</strong>ral.A restrição <strong>de</strong> um direito c<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>almente previsto <strong>de</strong>ve ser“excepci<strong>on</strong>al, expressamente estabelecida em lei e guardar proporci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>,o que significa dizer que a medida restritiva <strong>de</strong>ve ser a<strong>de</strong>quada,necessária e proporci<strong>on</strong>ada aos fins a que se <strong>de</strong>stina”.O Ministro Ilmar Galvão (Supremo <strong>Tribunal</strong> Fe<strong>de</strong>ral) <strong>de</strong>ixou-nosensinamento preciso quando analisou a valida<strong>de</strong> <strong>de</strong> provas obtidas <strong>de</strong>forma ilícita:É indubitável que a prova ilícita, entre nós, não se revesteda necessária id<strong>on</strong>eida<strong>de</strong> jurídica como meio <strong>de</strong> formação <strong>de</strong>c<strong>on</strong>vencimento do julgador, razão pela qual <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong>sprezada,ainda que em prejuízo da apuração da verda<strong>de</strong>, noprol do i<strong>de</strong>al maior <strong>de</strong> um processo justo, c<strong>on</strong>dizente como respeito <strong>de</strong>vido a direitos e garantias fundamentais dapessoa humana, valor que se sobreleva em muito ao que érepresentado pelo interesse que tem a socieda<strong>de</strong> em umaeficaz repreensão aos <strong>de</strong>litos. É um pequeno preço que seR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 28-45, out.-<strong>de</strong>z. 2012 43


paga por viver-se em estado <strong>de</strong> direito <strong>de</strong>mocrático. A justiçapenal não se realiza a qualquer preço. Existem, na buscada verda<strong>de</strong>, limitações impostas por valores mais altos quenão po<strong>de</strong>m ser violados, ensina Heleno Fragoso, em trecho<strong>de</strong> sua obra Jurisprudência Criminal, transcrita pela <strong>de</strong>fesa.A C<strong>on</strong>stituição brasileira, no art. 5º., inc. LVI, com efeito, dispõe,a todas as letras, que são inadmissíveis, no processo, asprovas obtidas por meios ilícitos. 23Não po<strong>de</strong>mos permitir que a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se garantir a segurançado cidadão seja usada como <strong>de</strong>sculpa pelo Estado para c<strong>on</strong>tinuar seomitindo quanto às ações necessárias para se soluci<strong>on</strong>ar, na origem, osproblemas <strong>de</strong>correntes do crime organizado. O fato é que é extremamentecômodo e c<strong>on</strong>veniente que a única solução que se veja para o aumentocrescente <strong>de</strong>ssa criminalida<strong>de</strong> organizada, qualquer que seja a sua natureza(drogas, crimes ec<strong>on</strong>ômicos, jogos etc), seja o expansi<strong>on</strong>ismo penal.E digo isso também porque não c<strong>on</strong>sigo ver qualquer resultado prátic<strong>on</strong>o endurecimento penal; até porque é sabido que nosso país nãopossui hoje um sistema penitenciário capaz <strong>de</strong> receber a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong>presos que sofrerão as c<strong>on</strong>sequências do excesso <strong>de</strong> criminalização e penalização.Ou seja, no fundo, estaremos estimulando a criação e o aperfeiçoamento<strong>de</strong> novos profissi<strong>on</strong>ais do crime diante da <strong>de</strong>plorável estruturacarcerária, <strong>on</strong><strong>de</strong> se juntam em um só ambiente criminosos profissi<strong>on</strong>ais,homicidas, estupradores, traficantes, e aqueles do ‘baixo claro’, iniciantes,que acabam sendo cooptados pelos mais antigos e experientes, muitasvezes até em razão <strong>de</strong> revolta.C<strong>on</strong>cluo, citando Crespo, para quemo chamado discurso das garantias não é uma espécie <strong>de</strong> luxoao qual cabe renunciar em tempos <strong>de</strong> crise, e nem uma tesec<strong>on</strong>servadora. Em minha opinião é um discurso claramenteprogressista e crítico, porque preten<strong>de</strong> salvaguardar um mo<strong>de</strong>lo<strong>de</strong> direito penal estritamente vinculado às garantias doestado <strong>de</strong> direito que <strong>de</strong>vem reger todas as pessoas. Substituira ‘raci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong> valorativa’ inerente a este por uma‘raci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong> pragmática’, justamente quando faz falta <strong>de</strong>-23 Ação Penal n. 307-3/DF, DJ 13/10/1995, grifo nosso.44R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 28-45, out.-<strong>de</strong>z. 2012


fen<strong>de</strong>r esses princípios, é uma forma <strong>de</strong> dar vali<strong>de</strong>z a umatransformação dos parâmetros político-criminais altamentediscutível. Sem dúvida são muitas as faces do direito penale uma que não é possível esquecer em nenhum caso, é a <strong>de</strong>protetor e garantista.” 24Garantir a segurança do cidadão, acho eu, é garantir a eficácia <strong>de</strong>direitos e garantias fundamentais, e não os fragilizar aos poucos <strong>de</strong> modoa permitir, eventualmente, o surgimento <strong>de</strong> um regime autoritário oumesmo totalitário.24 Op. cit., p. 130.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 28-45, out.-<strong>de</strong>z. 2012 45


O princípio da lesivida<strong>de</strong>na Reforma PenalProf. Ms. Tiago JoffilyMestre em Direito pela Universida<strong>de</strong> do Estado doRio <strong>de</strong> Janeiro, na qual é doutorando em Direito Penal.Promotor <strong>de</strong> Justiça do Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro.Autor do livro Direito e Compaixão: discursos <strong>de</strong>(<strong>de</strong>s)legitimação do po<strong>de</strong>r punitivo estatal.A leitura do texto revela que o Projeto c<strong>on</strong>ta com retrocessos evi<strong>de</strong>ntes(como, p. ex., a introdução do instituto da barganha em nossoor<strong>de</strong>namento jurídico), erros crassos (como, p. ex., a punição do crime<strong>de</strong> lesão corporal praticado com culpa temerária com o dobro da penaprevista para o crime <strong>de</strong> lesão corporal dolosa) e, também, com algunspoucos avanços verda<strong>de</strong>iros (como, p. ex., a <strong>de</strong>scriminalização da posse<strong>de</strong> drogas para uso pessoal).Nesta fala, c<strong>on</strong>tudo, gostaria <strong>de</strong> me <strong>de</strong>dicar a uma outra figura tambémabundante no Projeto <strong>de</strong> novo Código Penal: a dos falsos avanços(ou dos retrocessos enrustidos).Esses falsos avanços estão presentes em vários p<strong>on</strong>tos do Projeto ese caracterizam pela incorporação formal <strong>de</strong> institutos limitadores do po<strong>de</strong>rpunitivo já amplamente aceitos na doutrina e jurisprudência pátrias,mas sempre <strong>de</strong> forma c<strong>on</strong>dici<strong>on</strong>ada, numa espécie <strong>de</strong> recuo estratégicodo punitivismo para preservá-lo naquilo que ainda é possível.Um exemplo claro <strong>de</strong>sses falsos avanços é o art. 96, § 2º, do Projeto,que limita o prazo <strong>de</strong> duração das medidas <strong>de</strong> segurança ao máximo<strong>de</strong> pena cominada ao <strong>de</strong>lito em abstrato, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que este não tenha sidopraticado com violência ou grave ameaça à pessoa.Embora o Código atual não <strong>de</strong>fina nenhum prazo máximo <strong>de</strong>duração para as medidas <strong>de</strong> segurança, é absolutamente tranquilo nadoutrina que nenhuma pessoa (imputável ou não) po<strong>de</strong> ficar com sualiberda<strong>de</strong> restringida em caráter in<strong>de</strong>finido. Quanto a isso, a própriaC<strong>on</strong>stituição da República é absolutamente clara ao dispor, no art. 5º,inciso XLVII, que não há no Brasil pena <strong>de</strong> caráter perpétuo. Assim, não46R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 46-58, out.-<strong>de</strong>z. 2012


há dúvidas <strong>de</strong> que as medidas <strong>de</strong> segurança (que também são penasem sentido lato) não po<strong>de</strong>m ter duração in<strong>de</strong>finida. O que é, <strong>de</strong> fato,c<strong>on</strong>trovertido na doutrina, hoje, é qual o prazo máximo <strong>de</strong> duração dasmedidas <strong>de</strong> segurança a ser observado, vez que, até agora, nenhum éexpressamente previsto no Código. Pois bem. É nesse c<strong>on</strong>texto que oProjeto vem afirmar que os prazos serão os mais alargados possíveis:a) tratando-se <strong>de</strong> crime sem violência ou grave ameaça, o prazo será omáximo cominado ao crime em abstrato, ainda que, em função das circunstânciasdo caso c<strong>on</strong>creto, seja absolutamente seguro que nenhumapessoa, por mais imputável que fosse, receberia pena acima do mínimolegal; b) tratando-se <strong>de</strong> crime <strong>de</strong> maior potencial ofensivo praticado comviolência ou grave ameaça a pessoa (perseguição obssessiva ou stalking,por exemplo 1 ), o prazo será o máximo admitido em todo o or<strong>de</strong>namento(30 anos), o que é bastante ilustrativo <strong>de</strong> como o Projeto, muitas vezes,“avança” dando dois passos atrás.Outro exemplo bastante claro <strong>de</strong> falso avanço c<strong>on</strong>stante do Projetodiz respeito à positivação do princípio da insignificância, realizada no art.28, § 1º, assunto, este sim, já diretamente relaci<strong>on</strong>ado com o tema <strong>de</strong>minha apresentação.A princípio, po<strong>de</strong>ria parecer aos menos avisados que a inclusão nopróprio texto legal <strong>de</strong>ssa hipótese <strong>de</strong> exclusão da tipicida<strong>de</strong> (ou da antijuridicida<strong>de</strong>),até então trabalhada somente no campo da doutrina e dajurisprudência, seria um verda<strong>de</strong>iro avanço em termos <strong>de</strong> c<strong>on</strong>tenção dopo<strong>de</strong>r punitivo, uma vez que evitaria a c<strong>on</strong><strong>de</strong>nação <strong>de</strong> pessoas pela prática<strong>de</strong> c<strong>on</strong>dutas que não afetam <strong>de</strong> forma significativa a esfera <strong>de</strong> existência<strong>de</strong> ninguém. Nada obstante, o tratamento dispensado pelo Projeto aoprincípio da insignificância <strong>de</strong>svirtuou <strong>de</strong> tal maneira o instituto, que, daforma como está previsto, ele já não se presta mais à tarefa <strong>de</strong> excluir daintervenção punitiva estatal c<strong>on</strong>dutas que afetem bens jurídicos apenas<strong>de</strong> forma irrisória, mas sim ao propósito c<strong>on</strong>trário <strong>de</strong> legitimar meras <strong>de</strong>sobediênciasao comando c<strong>on</strong>tido no tipo incriminador.No art. 28, § 1º, diz o Projeto que não há fato criminoso quandocumulativamente se verificarem as seguintes c<strong>on</strong>dições:1 Art. 147. Perseguir alguém, <strong>de</strong> forma reiterada ou c<strong>on</strong>tinuada, ameaçando-lhe a integrida<strong>de</strong> física ou psicológica,restringindo-lhe a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> locomoção ou, <strong>de</strong> qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>ou privacida<strong>de</strong>: Pena – prisão, <strong>de</strong> dois a seis anos. Parece a própria <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> como é o maluco (direitopenal do autor).R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 46-58, out.-<strong>de</strong>z. 2012 47


a) mínima ofensivida<strong>de</strong> da c<strong>on</strong>duta do agente;b) reduzidíssimo grau <strong>de</strong> reprovabilida<strong>de</strong> do comportamento;c) inexpressivida<strong>de</strong> da lesão jurídica provocada.Há, neste dispositivo, uma série <strong>de</strong> inc<strong>on</strong>gruências que gostaria <strong>de</strong>analisar e que são bastante ilustrativas da falta <strong>de</strong> rigor técnico, e tambémlógico, que marca todo o texto do Projeto.Para melhor visualizar essas inc<strong>on</strong>gruências, no entanto, parece útilrecorrer a dois outros dispositivos.O primeiro <strong>de</strong>les é o art. 14, caput, que <strong>de</strong>fine fato criminoso como:O fato criminosoArt. 14. A realização do fato criminoso exige ação ou omissão,dolosa ou culposa, que produza ofensa, potencial ouefetiva, a <strong>de</strong>terminado bem jurídico.De cara, há nesse dispositivo uma c<strong>on</strong>tradição lógica que não posso<strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ap<strong>on</strong>tar. Diz o art. 14 que não há fato criminoso sem que se“produza ofensa, potencial ou efetiva, a <strong>de</strong>terminado bem jurídico”.Ora, o produto <strong>de</strong> qualquer coisa só po<strong>de</strong> ser algo que efetivamenteocorreu, do c<strong>on</strong>trário, não é um produto, mas sim uma mera possibilida<strong>de</strong>,uma expectativa. Da mesma forma, aquilo que existe apenas comopotência não po<strong>de</strong> ser c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rado já como um produto <strong>de</strong> algo, pois aindanão tem existência real.Desta forma, ao c<strong>on</strong>dici<strong>on</strong>ar a existência do fato criminoso à produção<strong>de</strong> uma ofensa potencial, o Projeto incorre em uma c<strong>on</strong>tradição lógica,pois uma situação como esta é simplesmente impossível. Nada po<strong>de</strong>já ser e ainda não ser ao mesmo tempo. A menos que se esteja falando <strong>de</strong>um tipo penal quântico.Bom. Colocando <strong>de</strong> lado essa improprieda<strong>de</strong> lógica, quero chamaratenção para duas c<strong>on</strong>sequências jurídicas da regra insculpida no art. 14:primeiro, que não há crime sem ofensa a bem jurídico, o que po<strong>de</strong>riasugerir, ao menos aparentemente, um compromisso rigoroso do Projetocom o princípio da lesivida<strong>de</strong>; segundo, que o elemento da culpabilida<strong>de</strong>não compõe o c<strong>on</strong>ceito analítico <strong>de</strong> crime, sendo apenas uma c<strong>on</strong>diçãopara a imposição <strong>de</strong> pena.48R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 46-58, out.-<strong>de</strong>z. 2012


Essa última c<strong>on</strong>sequência, aliás, vem c<strong>on</strong>firmada pelo parágrafoúnico do art. 1º (artigo que trata do princípio da legalida<strong>de</strong>), em que restouexpressamente c<strong>on</strong>signado que “não há pena sem culpabilida<strong>de</strong>”.Aparte a questão da obscura correlação vislumbrada pelos autoresdo Anteprojeto entre os princípios da legalida<strong>de</strong> e da culpabilida<strong>de</strong> (aqual não foi esclarecida na Exposição <strong>de</strong> motivos) 2 , o fato é que a introdução<strong>de</strong>ssa novida<strong>de</strong> no texto nada mais é do que uma tentativa <strong>de</strong> impor(agora via legislativo) um c<strong>on</strong>ceito <strong>de</strong> crime absolutamente minoritári<strong>on</strong>a doutrina brasileira, segundo o qual o <strong>de</strong>lito seria formado apenas pelac<strong>on</strong>duta típica e ilícita, sendo a culpabilida<strong>de</strong> mera c<strong>on</strong>dição para a aplicaçãoda pena (René Ariel Dotti, Damásio <strong>de</strong> Jesus etc).Não vou aqui tratar do acerto, ou não, <strong>de</strong>sse p<strong>on</strong>to <strong>de</strong> vista doutrinário.O que me parece relevante <strong>de</strong>stacar é a absoluta inc<strong>on</strong>gruênciaque existe entre estes dois dispositivos – art. 1º, parágrafo único, e art. 14,caput, – e aquele que trata do princípio da insignificância.Ora, <strong>de</strong> acordo com o art. 14, caput, c/c art. 1º, parágrafo único, ocrime seria c<strong>on</strong>stituído exclusivamente pela c<strong>on</strong>duta (ação ou omissão),dolosa ou culposa, que produza ofensa a <strong>de</strong>terminado bem jurídico. Semofensa a bem jurídico, portanto, não há fato criminoso. Por mais reprovável(leia-se culpável) que uma c<strong>on</strong>duta qualquer possa ser, ela não é criminosase não produz ofensa a bem jurídico, diz o art. 14, caput, sendo certoque a culpabilida<strong>de</strong> serve apenas para estabelecer a medida da pena a serimposta, e não para fundamentar a incriminação (ou injusto, o que dá nomesmo para o código), arremata o art. 1º, parágrafo único.Ocorre que, ao tratar do princípio da insignificância, o art. 28, § 1º,incluiu <strong>de</strong>ntre os requisitos cumulativos para a exclusão do fato criminosoo “reduzidíssimo grau <strong>de</strong> reprovabilida<strong>de</strong> do comportamento” (alínea b),causando enorme perplexida<strong>de</strong> para quem vinha tentando acompanhar alógica utilizada nos artigos prece<strong>de</strong>ntes.É que, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> afirmar, categoricamente, nos artigos 1º e 14, quenão há crime sem ofensa a bem jurídico, o Projeto resolve abrir uma exceçãoa essa regra, afirmando que, ainda que em <strong>de</strong>terminado caso c<strong>on</strong>creto2 Uma explicação possível para essa curiosa combinação dos princípios da legalida<strong>de</strong> e da culpabilida<strong>de</strong> num mesmodispositivo legal talvez esteja na necessida<strong>de</strong>, que se auto-impôs a Comissão, <strong>de</strong> encerrar a Parte Geral do Códigoem 120 artigos, <strong>de</strong> modo a possibilitar que a Parte Especial fosse iniciada com a tipificação do <strong>de</strong>lito <strong>de</strong> homicídi<strong>on</strong>o mesmo art. 121, cujo indicativo numérico já teria ingressado, segundo a apresentação do Relator Geral, “no‘patrimônio imaterial’ dos aplicadores e estudiosos do Direito Penal”, ao lado dos arts. 155 (furto), 157 (roubo) e171 (esteli<strong>on</strong>ato).R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 46-58, out.-<strong>de</strong>z. 2012 49


a ofensa seja irrisória, insignificante, <strong>de</strong>sprezível, haverá crime <strong>de</strong>s<strong>de</strong>que o comportamento do sujeito seja em alguma medida reprovável.Assim, por exemplo, seria criminosa a c<strong>on</strong>duta daquele que, aproveitando-seda c<strong>on</strong>dição <strong>de</strong> cego da vítima, subtrai-lhe a caneta BIC que estatraz no bolso.O problema é que, se o que c<strong>on</strong>fere a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> crime a <strong>de</strong>terminadasc<strong>on</strong>dutas é o fato <strong>de</strong>la ser ofensiva a bens jurídicos (art. 14,caput), então <strong>de</strong> <strong>on</strong><strong>de</strong>, afinal, <strong>de</strong>corre a natureza criminosa da c<strong>on</strong>dutadaquele que furta uma simples caneta BIC?A resposta a essa indagação é dada pelo Projeto nas entrelinhas,mas isso não a torna menos preocupante: o caráter criminoso da c<strong>on</strong>dutasurge da pura e simples violação ao comando legal; da audácia do sujeito<strong>de</strong> <strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>cer, <strong>de</strong> forma reprovável, a or<strong>de</strong>m impositiva c<strong>on</strong>tida no tipopenal.Com isso, já é possível antever em que medida a inserção do princípioda lesivida<strong>de</strong> no caput do art. 14 po<strong>de</strong> também ser c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rada umfalso avanço, pois não passa <strong>de</strong> uma frase <strong>de</strong> efeito, sem efeito vinculantesequer para os <strong>de</strong>mais dispositivos do próprio Projeto.A análise das duas outras alíneas do art. 28, § 1º, aliás, c<strong>on</strong>firmaesta tese <strong>de</strong> que o princípio da lesivida<strong>de</strong>, estampado no caput do art. 14,não passa <strong>de</strong> um falso avanço.As duas outras c<strong>on</strong>dições para a exclusão do fato criminoso combase no princípio da insignificância são: a) a mínima ofensivida<strong>de</strong> da c<strong>on</strong>duta;e c) a inexpressivida<strong>de</strong> da lesão jurídica provocada.A ofensa a bem jurídico (alínea a) e a lesão jurídica provocada poruma c<strong>on</strong>duta (alínea c) são expressões tidas por sinônimas na doutrina.Aparentemente, o que quis o Projeto distinguir entre as alíneas “a”e “c” do art. 28, §1º, foi a potencial afetação do bem jurídico, como característicada c<strong>on</strong>duta típica, <strong>de</strong> um lado, e a efetiva afetação do bemjurídico, como resultado causal da prática da c<strong>on</strong>duta potencialmentelesiva, <strong>de</strong> outro. Desta forma, para que se possa afastar a tipicida<strong>de</strong> (oua ilicitu<strong>de</strong>, não se sabe ao certo) <strong>de</strong> uma c<strong>on</strong>duta com base no princípioda insignificância é preciso que ela, além <strong>de</strong> apresentar reduzidíssima reprovabilida<strong>de</strong>:(i) apresente uma potencialida<strong>de</strong> lesiva mínima; e (ii) nãochegue a afetar o bem jurídico, c<strong>on</strong>cretamente, <strong>de</strong> forma expressiva.Essa distinção entre potencialida<strong>de</strong> lesiva, como parte integrante do<strong>de</strong>svalor da ação, e lesivida<strong>de</strong> efetiva (dano ou perigo c<strong>on</strong>creto <strong>de</strong> dano),50R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 46-58, out.-<strong>de</strong>z. 2012


como parte do <strong>de</strong>svalor do resultado, foi difundida nas últimas duas décadasjuntamente com uma específica teoria da imputação objetiva – ado funci<strong>on</strong>alismo teleológico <strong>de</strong> Roxin – que é também explicitamenteacolhida no Projeto (art. 14, parágrafo único).Segundo essa c<strong>on</strong>cepção (que é muito mais antiga do que funci<strong>on</strong>alismoem si, rem<strong>on</strong>tando à obra <strong>de</strong> Wilhelm Gallas e, em última análise, ado próprio Karl Binding), a periculosida<strong>de</strong> seria como um atributo objetivodo <strong>de</strong>svalor da ação, aferível segundo o critério da prognose póstuma, ouseja, ex ante factum, <strong>de</strong> modo a evi<strong>de</strong>nciar que não basta para c<strong>on</strong>figuraçãodo <strong>de</strong>svalor da ação a simples exteriorização da v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> c<strong>on</strong>tráriaà norma incriminadora; além disso, é preciso que a c<strong>on</strong>duta voluntariamenteexteriorizada seja objetivamente capaz <strong>de</strong> lesi<strong>on</strong>ar bens jurídicos,ainda que, na prática, o tipo legal dispense a ocorrência <strong>de</strong>sse resultadodanoso ou c<strong>on</strong>cretamente perigoso para o aperfeiçoamento do <strong>de</strong>lito.Esse critério da periculosida<strong>de</strong> ex ante da c<strong>on</strong>duta vem tendo aceitaçãocrescente nas doutrinas alemã e espanhola, ao argumento <strong>de</strong> quecom ele seria possível c<strong>on</strong>ciliar a existência <strong>de</strong> incriminações baseadas nopuro <strong>de</strong>svalor da ação, sem que se tenha que romper <strong>de</strong> forma absolutacom o princípio da lesivida<strong>de</strong>.O argumento é mais ou menos o seguinte: há <strong>de</strong> fato incriminaçõesque não exigem a ocorrência <strong>de</strong> qualquer resultado lesivo ou c<strong>on</strong>cretamenteperigoso para o bem jurídico (como seria o caso dos crimes <strong>de</strong>perigo abstrato, p. ex.). Isso, no entanto, não quer necessariamente dizerque tais incriminações sejam expressão do puro arbítrio estatal, na forma<strong>de</strong> meras violações do comando legal, meras <strong>de</strong>sobediências. Na verda<strong>de</strong>,dirão os a<strong>de</strong>ptos <strong>de</strong>ssa corrente, na medida em que a c<strong>on</strong>duta proibidaseja idônea para lesi<strong>on</strong>ar bens jurídicos, isso já é o suficiente para satisfazero princípio da lesivida<strong>de</strong>. Afinal, se o direito penal tem por missãoproteger bens jurídicos <strong>de</strong> eventuais lesões, não há por que aguardar queesse resultado in<strong>de</strong>sejado chegue efetivamente a ocorrer para que se autorizea intervenção punitiva estatal. Melhor, e muito mais lógico, é agirpreventivamente, à vista <strong>de</strong> meras ações potencialmente lesivas.Ao que tudo indica, foi esse o entendimento que o Projeto quis acolherao dispor no art. 14, caput, que não há fato criminoso sem, ao menos,ofensa potencial a bem jurídico <strong>de</strong>terminado.Ocorre que, ao tratar da tentativa, o Projeto vem com mais umanovida<strong>de</strong>.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 46-58, out.-<strong>de</strong>z. 2012 51


A <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> tentativa c<strong>on</strong>tinua a mesma, seguindo a tradição objetivista,que rem<strong>on</strong>ta ao Código Imperial <strong>de</strong> 1830, <strong>de</strong> acordo com a qualnão há tentativa sem início da execução. A novida<strong>de</strong> trazida pelo Projetoestá na positivação do que se <strong>de</strong>ve enten<strong>de</strong>r por “início da execução”. Dizo art. 24:Início da execuçãoArt. 24. Há o início da execução quando o autor realiza umadas c<strong>on</strong>dutas c<strong>on</strong>stitutivas do tipo ou, segundo seu plano <strong>de</strong>litivo,pratica atos imediatamente anteriores à realização dotipo, que exp<strong>on</strong>ham a perigo o bem jurídico protegido.Nesse dispositivo, como se vê, o Projeto volta a tratar da ofensa aobem jurídico, afirmando que, só haverá início da execução e, logo, tentativapunível quando a c<strong>on</strong>duta expuser a perigo o bem jurídico protegido.O Projeto, no entanto, não explica qual tipo <strong>de</strong> perigo ao bem jurídicoseria exigido para a caracterização da tentativa. É preciso que seja um perigoc<strong>on</strong>creto (ou, como diz o Projeto, efetivo), quer dizer, próximo à lesão<strong>de</strong> bem jurídico <strong>de</strong>terminado, ou basta ser um perigo potencial, avaliadoex ante factum, com base na pura potencialida<strong>de</strong> lesiva da c<strong>on</strong>duta, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<strong>de</strong> qualquer avaliação sobre a efetiva interferência na esfera <strong>de</strong>proteção <strong>de</strong> algum bem jurídico específico? Em outras palavras, é precisohaver resultado <strong>de</strong> perigo ou basta haver periculosida<strong>de</strong> da c<strong>on</strong>duta?Uma interpretação sistemática dos arts. 14 e 24 do Projeto po<strong>de</strong>riasugerir, à primeira vista, que bastaria a periculosida<strong>de</strong> da c<strong>on</strong>duta paraque se c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rasse iniciada a execução do <strong>de</strong>lito. Se a mera ofensa potencialsatisfaz o princípio da lesivida<strong>de</strong> para fins <strong>de</strong> c<strong>on</strong>sumação, não háqualquer razão para que não o satisfaça também nas hipóteses <strong>de</strong> crimemeramente tentado. Afinal, pune-se o crime c<strong>on</strong>sumado <strong>de</strong> forma maisgrave do que o crime tentado exatamente porque naquele a ofensa aobem jurídico ocorre <strong>de</strong> forma plena, enquanto neste <strong>de</strong> forma apenasparcial. E, se isso é assim, seria ilógico exigir do <strong>de</strong>lito tentado um grau<strong>de</strong> ofensa ao bem jurídico maior (perigo c<strong>on</strong>creto) do que aquele exigidopara a própria figura c<strong>on</strong>sumada (perigo potencial).Ocorre que esse tipo <strong>de</strong> interpretação c<strong>on</strong>duz a resultados práticosinsustentáveis, na medida em que permite o enquadramento <strong>de</strong>praticamente toda e qualquer c<strong>on</strong>duta humana como uma tentativa punível<strong>de</strong> <strong>de</strong>lito.52R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 46-58, out.-<strong>de</strong>z. 2012


É que, <strong>de</strong> um lado, já não se exige que a c<strong>on</strong>duta realizada se enquadre,sequer <strong>de</strong> forma parcial, na figura típica, bastando que seja imediatamenteanterior à realização do tipo, segundo o plano <strong>de</strong>litivo do autor.De outro lado, tampouco se exige que o bem jurídico tenha sequer sidoexposto a uma situação <strong>de</strong> perigo efetivo, mas apenas que a criação <strong>de</strong>ssasituação <strong>de</strong> perigo seja uma c<strong>on</strong>sequência possível da c<strong>on</strong>duta realizada.Com isso, chega-se ao extremo <strong>de</strong> punir como crime, ainda que naforma tentada, c<strong>on</strong>dutas a um só tempo atípicas e inofensivas, ao argumento<strong>de</strong> que elas, no futuro, po<strong>de</strong>m, segundo o plano do autor, vir a setornar típicas e, quem sabe, até efetivamente perigosas.A prevalecer um entendimento como este, estaríamos introduzindoem nosso or<strong>de</strong>namento jurídico figura equivalente a <strong>de</strong> um “<strong>de</strong>lito <strong>de</strong> perigoabstrato quase típico”, ou seja, hipótese em que o legislador fundamentaa incriminação na mera possibilida<strong>de</strong> estatística <strong>de</strong> ofensa ao bemjurídico, sem ao menos exigir enquadramento formal da c<strong>on</strong>duta realizadaem algum dos tipos <strong>de</strong> perigo abstrato em vigor. Basta que, segundoo plano do autor, a c<strong>on</strong>duta abstratamente perigosa seja imediatamenteanterior à realização do tipo, ou seja, quase típica.Prefiro acreditar que o Projeto não quis chegar tão l<strong>on</strong>ge e que operigo exigido pelo art. 24 ao bem jurídico seja um perigo c<strong>on</strong>creto <strong>de</strong>lesão; quer dizer, um resultado <strong>de</strong> perigo, tal como, aliás, sempre foi <strong>de</strong>nossa tradição jurídica, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Hungria até Miguel Reale Jr, <strong>de</strong>ntre outros.Mas, se for assim, aí é que a coisa fica <strong>de</strong>finitivamente c<strong>on</strong>fusa.Senão vejamos:• Nos crimes c<strong>on</strong>sumados: o Projeto se c<strong>on</strong>tenta com a merapotencialida<strong>de</strong> lesiva para a caracterização do injusto, c<strong>on</strong>formeexpressamente previsto art. 14;• Nos crimes tentados: o Projeto exige a efetiva colocação dobem jurídico em uma situação <strong>de</strong> perigo c<strong>on</strong>creto, c<strong>on</strong>formeinterpretação menos pior do art. 24;• Nas hipóteses insignificantes, tentadas ou c<strong>on</strong>sumadas:o Projeto simplesmente prescin<strong>de</strong> <strong>de</strong> qualquer ofensa, potencialou efetiva, mantendo o caráter criminoso da c<strong>on</strong>dutacom base na simples reprovabilida<strong>de</strong> da c<strong>on</strong>duta.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 46-58, out.-<strong>de</strong>z. 2012 53


Toda essa c<strong>on</strong>fusão, é bom que se diga, não foi criada nem inventadapelos autores do Projeto.Esse c<strong>on</strong>fr<strong>on</strong>to entre um direito penal voltado para aquilo que jáocorreu (a ofensa) e um direito penal voltado para aquilo que se temepossa vir a ocorrer (o medo da ofensa) é uma característica do direito penalc<strong>on</strong>temporâneo, que, não à toa, atravessa uma fase <strong>de</strong> profunda criseem seus c<strong>on</strong>ceitos.A doutrina atual, <strong>de</strong> forma bastante simplificada, po<strong>de</strong> ser divididaem dois gran<strong>de</strong>s grupos, diante da situação <strong>de</strong> crise ora vivenciada: <strong>de</strong> umlado, há os que acreditam que, por vivermos, <strong>de</strong> fato, numa socieda<strong>de</strong>baseada na produção e distribuição <strong>de</strong> riscos, o direito penal não po<strong>de</strong>assumir outra função que não a <strong>de</strong> instrumento último <strong>de</strong> c<strong>on</strong>trole <strong>de</strong>ssesmesmos riscos, <strong>de</strong> modo a preservar uma esfera <strong>de</strong> c<strong>on</strong>vivência segura,na qual as pessoas possam viver sem serem esmagadas pelo medo <strong>de</strong> setornarem, a qualquer momento, vítimas da c<strong>on</strong>cretização <strong>de</strong> algum dosmuitos riscos existentes; <strong>de</strong> outro lado, há os que acreditam que ao direitopenal não cabe esse papel <strong>de</strong> gerenciamento <strong>de</strong> riscos (e medos),simplesmente por que ele não tem capacida<strong>de</strong> operativa para tanto. Osmuitos riscos criados pela socieda<strong>de</strong> capitalista tardia (ou pós-industrial),se é que <strong>de</strong> fato existem, <strong>de</strong>correm <strong>de</strong> sua própria forma organizativa,não po<strong>de</strong>ndo o direito penal intervir para alterar essa realida<strong>de</strong>, senão aopreço <strong>de</strong> reafirmá-la. Assim, para evitar a criação <strong>de</strong> riscos ainda maiorespara o Estado <strong>de</strong> direito, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m os a<strong>de</strong>ptos <strong>de</strong>ssa segunda correnteque o direito penal se mantenha fiel aos princípios liberais que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> oiluminismo, servem <strong>de</strong> mecanismo <strong>de</strong> c<strong>on</strong>trole da intervenção punitivaestatal, <strong>de</strong>ntre os quais <strong>de</strong>staca-se o princípio da lesivida<strong>de</strong>.As duas correntes partem <strong>de</strong> p<strong>on</strong>tos <strong>de</strong> vista político-criminais diametralmenteopostos, mas c<strong>on</strong>cordam em um p<strong>on</strong>to: o direito penal, <strong>de</strong>fato, passa por uma situação <strong>de</strong> crise.Para os <strong>de</strong>fensores do direito penal do risco, a crise se <strong>de</strong>ve à persistência<strong>de</strong> alguns princípios liberais nos or<strong>de</strong>namentos jurídicos que impe<strong>de</strong>mque o direito penal assuma uma forma prevenci<strong>on</strong>ista ótima, em quetodos os seus institutos estejam funci<strong>on</strong>almente dirigidos ao objetivo <strong>de</strong>prevenir a ocorrência <strong>de</strong> riscos. Para os críticos do direito penal do risco,por outro lado, a crise se <strong>de</strong>ve ao esfacelamento dos princípios liberais,em razão da repetida edição <strong>de</strong> tipos penais sem qualquer referência alesões ou perigos <strong>de</strong> fato ocorridos, mas apenas a c<strong>on</strong>dutas que, seja por54R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 46-58, out.-<strong>de</strong>z. 2012


presunção legal, seja por avaliações estatísticas, são, no máximo, idôneaspara lesi<strong>on</strong>ar bens jurídicos, mas que, em nenhuma medida, chegaram aatingi-lo ainda, nem mesmo <strong>de</strong> forma perigosa.Pois bem. A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> lesivida<strong>de</strong> como mera periculosida<strong>de</strong>, que oProjeto tentou mas não c<strong>on</strong>seguiu adotar <strong>de</strong> forma rigorosa, nada maisé do que um esforço no sentido <strong>de</strong> superar esse impasse. De um lado,quer-se a<strong>de</strong>rir a um direito penal mo<strong>de</strong>rno, ajustando seus c<strong>on</strong>ceitos aoenfoque prospectivo <strong>de</strong> prevenção <strong>de</strong> riscos. De outro lado, não se queradmitir que, assim agindo, se está efetivamente abrindo mão <strong>de</strong> princípiosimprescindíveis à tarefa crítica <strong>de</strong> limitação do po<strong>de</strong>r punitivo estatal.O problema é que essa c<strong>on</strong>ciliação entre o princípio da lesivida<strong>de</strong>,<strong>de</strong> um lado, e as pretensões <strong>de</strong> proteção antecipada <strong>de</strong> bens jurídicos,<strong>de</strong> outro, é simplesmente impossível <strong>de</strong> ser realizada na prática, a menosque se queira chamar <strong>de</strong> lesivida<strong>de</strong> aquilo que, <strong>de</strong>finitivamente, não representaainda (e sequer se sabe se um dia representará) qualquer tipo <strong>de</strong>ofensa para o bem jurídico.Essa <strong>de</strong>scaracterização do princípio da lesivida<strong>de</strong> acaba repercutindoem toda a estrutura do <strong>de</strong>lito, a começar pela própria <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> bemjurídico.Um passeio pela Parte Especial do Projeto <strong>de</strong>m<strong>on</strong>stra bem os efeitosque essa transformação do princípio da lesivida<strong>de</strong> provoca sobre ai<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> bem jurídico.A partir do momento em que já não se exige a afetação danosa ouperigosa do bem jurídico para a caracterização do injusto, torna-se praticamenteirresistível a edição <strong>de</strong> tipos penais vinculados a bens jurídicoscuja afetação c<strong>on</strong>creta não é sequer imaginável no mundo real. É que, àmedida em que a afetação c<strong>on</strong>creta do bem jurídico é <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo dispensadapelo próprio tipo legal, não há mais razão para se preocupar se elepo<strong>de</strong>, ou não, vir a ser lesado no futuro. Pertencendo a potencialida<strong>de</strong>lesiva ao campo das c<strong>on</strong>jecturas, das meras possibilida<strong>de</strong>s, sua vinculaçãocom os efeitos causais da c<strong>on</strong>duta acaba, cedo ou tar<strong>de</strong>, revelando-sedispensável 3 .O crime <strong>de</strong> direção <strong>de</strong> veículo sem permissão ou habilitação, previst<strong>on</strong>o art. 204 do Projeto, é um bom exemplo disso que eu estou falando.3 A substituição do nexo causal por critérios normativos <strong>de</strong> imputação objetiva é outra c<strong>on</strong>sequência <strong>de</strong>sse processo<strong>de</strong> relativização do princípio da lesivida<strong>de</strong>.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 46-58, out.-<strong>de</strong>z. 2012 55


Nele, está tipificada a c<strong>on</strong>duta daquele que dirige veículo automotor, semhabilitação para tanto, “exp<strong>on</strong>do a dano potencial a segurança viária”.Ora, se a c<strong>on</strong>duta expõe a dano potencial é porque <strong>de</strong>ve ser aomenos possível que, em algum caso c<strong>on</strong>creto, ela chegue a c<strong>on</strong>cretizar odano cuja ocorrência se está querendo prevenir. Ocorre que causar lesãoefetiva à segurança viária é algo que ninguém, em sã c<strong>on</strong>sciência, c<strong>on</strong>seguiriasequer imaginar o que seja. Se a ação <strong>de</strong> c<strong>on</strong>duzir um veículoautomotor sem habilitação apenas expõe a dano potencial a segurançaviária, o que é preciso ocorrer para que esse dano passe da forma <strong>de</strong> umasimples potência para a forma <strong>de</strong> uma efetiva lesão? Uma <strong>de</strong>rrapagem?Um aci<strong>de</strong>nte? A morte <strong>de</strong> um? O ferimento <strong>de</strong> muitos?A segurança viária, como c<strong>on</strong>ceito estritamente i<strong>de</strong>al que é, nãopo<strong>de</strong> ser objeto <strong>de</strong> lesão por parte <strong>de</strong> c<strong>on</strong>dutas individuais. E, se ela nãoé passível <strong>de</strong> lesão, não há que se falar em potencialida<strong>de</strong> lesiva da c<strong>on</strong>dutaem relação a tal bem jurídico, uma vez que a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> lesãosimplesmente inexiste na prática. Trata-se, na verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> um artifícioc<strong>on</strong>struído pela doutrina (e, agora, acolhido pelo legislador) apenas como propósito <strong>de</strong> justificar a incriminação <strong>de</strong> c<strong>on</strong>dutas que não afetam, <strong>de</strong>forma alguma (sequer potencialmente), bens jurídicos efetivamente existentesna socieda<strong>de</strong>. Trata-se, no dizer da doutrina alemã mais recente, <strong>de</strong>um falso bem jurídico coletivo.Como se vê, sem que se saiba exatamente o que significa bem jurídico,<strong>de</strong> nada adianta afirmar que não há crime sem ofensa a <strong>de</strong>terminadobem jurídico, pois é sempre possível inventar novos bens jurídicospara legitimar incriminações que não afetam, <strong>de</strong> forma alguma, pessoas<strong>de</strong> carne e osso.Mas o problema não se esgota na <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> bem jurídico. O próprioprincípio da culpabilida<strong>de</strong> acaba sendo afetado por essa proposta <strong>de</strong>substituição do princípio da lesivida<strong>de</strong> por uma avaliação ex ante acercada potencialida<strong>de</strong> lesiva da c<strong>on</strong>duta.É que meras potencialida<strong>de</strong>s não são passíveis <strong>de</strong> medição precisa,<strong>de</strong> modo a permitir uma avaliação sobre a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pena corresp<strong>on</strong><strong>de</strong>nteao mal praticado.Ora, se tudo o que compõe o injusto é uma mera expectativa <strong>de</strong>ofensa, a pena proporci<strong>on</strong>al a essa c<strong>on</strong>duta <strong>de</strong>veria também se limitar auma mera expectativa <strong>de</strong> pena: uma pena em potencial.56R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 46-58, out.-<strong>de</strong>z. 2012


Mas não é isso o que ocorre na prática. Diante da predisposição<strong>de</strong> cortar o mal pela raiz, <strong>de</strong> prevenir as lesões enquanto elas não passam<strong>de</strong> meros cálculos estatísticos acerca <strong>de</strong> perigos futuros, o que olegislador faz – e o Projeto segue claramente essa tendência – é punirjá <strong>de</strong> forma exemplar aquilo que nenhum mal representa ainda paraquem quer que seja. Muitas vezes, c<strong>on</strong>dutas que importam em perigopotencial a bens jurídicos são punidas <strong>de</strong> forma mais grave do queaquelas que colocam em perigo c<strong>on</strong>creto ou que efetivamente lesi<strong>on</strong>amesses mesmos bens, <strong>de</strong>ixando claro que a imposição <strong>de</strong> pena não temmais qualquer vinculação com a medida da culpabilida<strong>de</strong> do agente,mas apenas com o propósito preventivista <strong>de</strong> c<strong>on</strong>trole inc<strong>on</strong>dici<strong>on</strong>al <strong>de</strong>riscos, custe o que custar.Para ficar num único exemplo, basta menci<strong>on</strong>ar que o arremesso<strong>de</strong> objeto c<strong>on</strong>tra veículo <strong>de</strong> transporte individual em movimento é punidocom pena <strong>de</strong> 2 a 5 anos (art. 200, § 1º), ainda que o objeto arremessadosequer passe perto do veículo em movimento. Agora, se o objetoatingir o para-brisa e colocar em perigo c<strong>on</strong>creto a vida, a integrida<strong>de</strong>física ou a saú<strong>de</strong> dos passageiros, aí a hipótese passar a ser <strong>de</strong> crime <strong>de</strong>periclitação da vida e da saú<strong>de</strong> (art. 130), punido com pena <strong>de</strong> 6 mesesa 2 anos <strong>de</strong> prisão.Ainda que este último dispositivo seja textualmente subsidiário (“seo fato não c<strong>on</strong>stitui crime mais grave”), é curioso notar que, para o Projeto,mais grave não é o crime que atinge o bem jurídico <strong>de</strong> forma maispróxima à lesão, mas o que é punido com maior pena, o que apenas c<strong>on</strong>firmaque já não há mais qualquer relação lógica entre o mal causado pelac<strong>on</strong>duta do agente e a medida da pena que lhe é imposta. A gravida<strong>de</strong> <strong>de</strong>uma c<strong>on</strong>duta não é mais <strong>de</strong>finida pelo mal que ela representa para terceiros,mas sim pelo tanto <strong>de</strong> pena arbitrariamente atribuído pelo Estado.É claro que alguém po<strong>de</strong> argumentar que a potência c<strong>on</strong>tida nac<strong>on</strong>duta <strong>de</strong> arremessar objeto c<strong>on</strong>tra veículo em movimento abrangeresultados possíveis mais graves do que a simples ocorrência <strong>de</strong> perigoc<strong>on</strong>creto. Isso, no entanto, serve apenas para <strong>de</strong>m<strong>on</strong>strar que, na i<strong>de</strong>ia<strong>de</strong> potência, cabe o mundo, cabem todos os nossos medos e anseios, quesão infinitos. Mas cabe também o que é <strong>de</strong>sprezível, insignificante. Cabeo perigo c<strong>on</strong>creto e também o que sequer perigo c<strong>on</strong>creto é ainda. E éexatamente por isso que o c<strong>on</strong>ceito <strong>de</strong> periculosida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> mera potencialida<strong>de</strong>lesiva, não po<strong>de</strong> servir <strong>de</strong> critério suficiente para a imposição <strong>de</strong>R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 46-58, out.-<strong>de</strong>z. 2012 57


pena, pois, com base nela, a punição será sempre <strong>de</strong>smedida, antecipada,irraci<strong>on</strong>al.Para finalizar, porque o tempo nos obriga, gostaria <strong>de</strong> dizer quetoda essa discussão acerca do c<strong>on</strong>teúdo mínimo do injusto penal é aindauma questão em aberto na doutrina naci<strong>on</strong>al e estrangeira, não havendoqualquer indício <strong>de</strong> solução a curto prazo.É exatamente por isso, aliás, que a positivação <strong>de</strong>sses novos c<strong>on</strong>ceitosno Código Penal não parece ser uma medida <strong>de</strong>sejável, máximese realizada da forma como foi feita pela Comissão, sem qualquer tipo<strong>de</strong> reflexão prévia, a toque <strong>de</strong> caixa, em clara c<strong>on</strong>tradição com princípiosliberais já arraigados em nossa tradição jurídico-penal. 58R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 46-58, out.-<strong>de</strong>z. 2012


Análise Criminológicado CotidianoProfª. Drª. Vera Regina Pereira <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>Pós-Doutora em Criminologia e Direito Penal pela Universida<strong>de</strong><strong>de</strong> Buenos Aires e pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Paraná.Doutora e Mestre em Direito pelo Programa <strong>de</strong> Pós-Graduaçãoem Direito da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Catarina. Especialistaem Direito pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Santa Cruz do Sul.Professora titular da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Santa Catarinaem nível <strong>de</strong> Ensino (Doutorado, Mestrado, Especialização eGraduação em Direito), Extensão (Coor<strong>de</strong>nadora do ProjetoUniversida<strong>de</strong> sem Muros) e Pesquisa (nas linhas <strong>de</strong> c<strong>on</strong>trolesocial, sitema <strong>de</strong> justiça penal, cidadania e direitos humanos).Professora visistante no Instituto Internaci<strong>on</strong>al <strong>de</strong> SociologiaJurídica <strong>de</strong> Oñati, Espanha. Pesquisadora do CNPq.Bom dia a todos!Na pessoa do professor Juarez Tavares, coor<strong>de</strong>nador cientifico <strong>de</strong>steseminário, na pessoa dos meus queridos colegas magistrados e professoresRubens Casara e Alexandre Moraes da Rosa, na pessoa <strong>de</strong>sses três magistradosacadêmicos e professores, eu quero saudar a todos os meus colegas<strong>de</strong>sta mesa, autorida<strong>de</strong>s já nominadas, e dizer da h<strong>on</strong>ra com que aqui compareço.Quero saudar a todos os presentes e parto <strong>de</strong>sse trio Juarez Tavares,Rubens Casara e Alexandre Moraes da Rosa, porque, a meu ver, eles c<strong>on</strong>stituemuma referência nobre que tem, através da sua palavra, da sua escrita,da sua sentença, dos seus livros, <strong>de</strong> seus pareceres e <strong>de</strong> suas salas <strong>de</strong> aulas;tem escrito uma das melhores páginas da aca<strong>de</strong>mia e da magistratura brasileiras,páginas memoráveis, em nome da dignida<strong>de</strong> das nossas instituições.Eu quero dizer que me sinto muito à v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> <strong>de</strong> estar aqui numseminário que se propõe crítico da reforma penal e quero iniciar saudandoo <strong>Tribunal</strong> <strong>de</strong> Justiça do Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro e a Escola da Magistraturado Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro por esta que eu c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>ro seja umanotável e corajosa iniciativa.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 59-71, out.-<strong>de</strong>z. 2012 59


Acho que a nossa primeira tarefa como palestrantes <strong>de</strong> um evento<strong>de</strong> tamanha magnitu<strong>de</strong> e resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> é iniciar situando o lugar danossa fala. Ao me propor falar aqui sobre “análise criminológica da reformapenal ”, eu <strong>de</strong>vo iniciar dizendo <strong>de</strong> qual Criminologia eu falo e <strong>de</strong> quelugar eu falo, porque acredito que existem múltiplas lupas para se olhara reforma em curso, o anteprojeto apresentado à socieda<strong>de</strong> brasileira, eo c<strong>on</strong>teúdo da nossa fala, da nossa análise, vai <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r dos paradigmasque nós elegermos para fazer essa análise. Nosso olhar vai <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r dalupa que nós utilizarmos.Então, eu quero <strong>de</strong>ixar claro que falo da Criminologia <strong>de</strong>senvolvidacom base no paradigma do c<strong>on</strong>trole social e nuclearmente em nome dosresultados da Criminologia crítica, do criticismo criminológico <strong>de</strong>senvolvidoa partir da década <strong>de</strong> <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g> do século XX, na Europa e América do Norte,na América Latina e no Brasil, e que tem cinquenta anos <strong>de</strong> páginas acumuladas,<strong>de</strong> análises acumuladas sobre como funci<strong>on</strong>a o sistema penal(Lei, Polícia, Ministério Público, Justiça, Defensoria, Advocacia, Prisão,saberes), porque o funci<strong>on</strong>amento do sistema penal é o gran<strong>de</strong> objetodo criticismo criminológico, da Criminologia <strong>de</strong> base crítica. Portanto, nóstemos um acúmulo histórico <strong>de</strong> análises e resultados que não po<strong>de</strong>mosmais ignorar, sob pena <strong>de</strong> nós produzirmos discursos e ações <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong>atraso epistemológico e político. Eu vou me referir aqui ao acúmulocrítico produzido em cinquenta anos na Europa e América do Norte, naAmérica Latina e no Brasil, e vou dizer que esse saber elevou a Criminologiaà sua maturida<strong>de</strong> criminológica, a partir <strong>de</strong> uma solene crítica ao positivismoque dominou e ainda é dominante no mundo e no senso comumoci<strong>de</strong>ntal.Vou falar <strong>de</strong> acúmulo criminológico, vou falar <strong>de</strong> maturida<strong>de</strong> criminológica,para me referir ao que se tem <strong>de</strong> c<strong>on</strong>solidado em torno dacompreensão dos nossos sistemas punitivos.A principal c<strong>on</strong>vergência <strong>de</strong>sse acúmulo é uma c<strong>on</strong>clusão sobre a<strong>de</strong>slegitimação dos atuais sistemas punitivos do nosso mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> sistemapenal. A c<strong>on</strong>clusão da <strong>de</strong>slegitimação sobre a qual eu vou basear toda aminha reflexão aqui, que é apoiada numa premissa básica da literaturacriminológica secular, que é c<strong>on</strong>tradição entre as funções <strong>de</strong>claradas dosistema penal, as funções que ele <strong>de</strong>clara cumprir e não cumpre (promessas<strong>de</strong>claradas e não cumpridas) e funções realmente cumpridas, que elecumpre latentemente, sem <strong>de</strong>clarar.<str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 59-71, out.-<strong>de</strong>z. 2012


Essa c<strong>on</strong>tradição estrutural está na base <strong>de</strong> toda Criminologia críticae vai produzir uma primeira gran<strong>de</strong> c<strong>on</strong>clusão, que é a da eficáciainvertida dos nossos sistemas penais. A <strong>de</strong>slegitimação, então, po<strong>de</strong> sersintetizada em linhas gerais e muito sumariamente no seguinte.A marca do sistema penal é a eficácia invertida, ou seja, a c<strong>on</strong>tradiçãoestrutural entre funções <strong>de</strong>claradas pelo nosso sistema que não instrumentaliza,que não cumpre, mas que subsiste com eficácia simbólica,que tem histórica força simbólica e funções reais que instrumentaliza sem<strong>de</strong>clarar, embora estejam hoje <strong>de</strong>snudadas.O sistema penal é, portanto, diz a crítica criminológica cumulada,estruturalmente incapaz <strong>de</strong> cumprir as funções que legitimam sua existênciahistórica, que são: proteger bens jurídicos, combater e prevenir acriminalida<strong>de</strong> através das funções <strong>de</strong>claradas da pena, notadamente dapena <strong>de</strong> prisão. Quais são as funções? São elas retributivas e preventivas,prevenção geral e especial, notoriamente o mito da ressocialização, queé <strong>de</strong>nunciado pelo acúmulo criminológico crítico. E não po<strong>de</strong> cumpri-lasprecisamente porque a função real dos nossos sistemas punitivos não é o“combate à criminalida<strong>de</strong>”, a “c<strong>on</strong>strução social da criminalida<strong>de</strong> e do criminoso”,é a <strong>de</strong>limitação do inimigo interno da socieda<strong>de</strong>. A função real, afunção <strong>de</strong>clarada é combater, e combater bem, protegendo bens jurídicos<strong>de</strong> vítimas, cumprindo funções nobres através da pena e da prisão. A funçãoreal é c<strong>on</strong>struir a criminalida<strong>de</strong>. E essa c<strong>on</strong>strução é essencialmenteviolenta, seletiva e <strong>de</strong>sigual; a seletivida<strong>de</strong> do sistema penal é <strong>de</strong> baseclassista, racista e sexista. Na América Latina, a <strong>de</strong>slegitimação do sistemapenal é muito mais radical (<strong>de</strong> raiz) e visível. Na América Latina, as penassão <strong>de</strong> uma cruelda<strong>de</strong> exorbitante. Os sistemas penais latino-americanose o sistema penal brasileiro é um notável sistema <strong>de</strong> violência. Aqui, a <strong>de</strong>slegitimação,como tem dito Zaffar<strong>on</strong>i, é empírica, e o fato <strong>de</strong>slegitimanteé a morte, sendo os nossos sistemas penais um “genocídio em ato”, um“genocídio em marcha”. Basta um olhar e uma aproximação aos nossosinput do sistema (a polícia) e output do sistema (a prisão) para comprovarque a violência física aberta é a marca dos nossos sistemas penais, muitoembora a resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> por isso seja do Estado e <strong>de</strong> todos nós, operadoresnos diversos níveis do sistema.E a radicalida<strong>de</strong> da seletivida<strong>de</strong> como lógica estrutural <strong>de</strong> funci<strong>on</strong>amentodos nossos sistemas penais nos dá retratos estatísticos históricosdos quais nós não po<strong>de</strong>mos nos <strong>de</strong>svencilhar. A seletivida<strong>de</strong> dos nossos sis-R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 59-71, out.-<strong>de</strong>z. 2012 61


temas penais se nutre <strong>de</strong> um núcleo duro e claro que os próprios sistemaspenitenciários brasileiros e o senso comum vem <strong>de</strong>mostrando há muitotempo: as prisões são para os três P’s, ou seja, sessenta por cento da criminalizaçãodos nossos sistemas é por crimes patrim<strong>on</strong>iais, nuclearmentefurtos e roubos simples e qualificados, c<strong>on</strong>temporaneamente associados,no capitalismo globalizado neoliberal, ao tráfico <strong>de</strong> drogas, acompanhados<strong>de</strong> alguns crimes patrim<strong>on</strong>iais estatisticamente mais representativos(extorsão), crimes c<strong>on</strong>tra a vida (homicídios e lesões corporais) e crimesanteriormente <strong>de</strong>signados como sexuais (estupro e atentado violento aopudor), hoje, c<strong>on</strong>tra a dignida<strong>de</strong> sexual; ou seja, a seletivida<strong>de</strong> se nutre <strong>de</strong>duas mãos <strong>de</strong> fatos típicos e isso está atestado empiricamente, fotograficamente.Portanto, tem um núcleo duro <strong>de</strong> c<strong>on</strong>dutas e <strong>de</strong> pessoas (crimese estereótipo <strong>de</strong> criminosos) que c<strong>on</strong>figura a seletivida<strong>de</strong> do sistema penal,<strong>de</strong>m<strong>on</strong>strando que ele é um exercício <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, c<strong>on</strong>trole e domínio e,ainda, é um sistema <strong>de</strong> reprodução <strong>de</strong> marginalização social. A seletivida<strong>de</strong>é um espelho da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> classe, os incluídos penalmente nasprisões são os excluídos socialmente do mercado <strong>de</strong> trabalho e do sistemasocial; mas a seletivida<strong>de</strong> é também um espelho da dominação <strong>de</strong> gênero,expressando e reproduzindo não apenas o capitalismo e a luta <strong>de</strong> classes,mas o patriarcado e a assimetria <strong>de</strong> gênero, o racismo e a discriminaçãoracial. O sistema penal expressa e reproduz todos os “ismos’ presentesna socieda<strong>de</strong>: o capitalismo, através da criminalização da pobreza e doshumil<strong>de</strong>s e o patriarcalismo, através da histórica imunização das mulheresà criminalização (e da sua inserção na vitimização), quadro que começa ase modificar, pois a criminalização das drogas está levando as mulheres aparir seus filhos nas prisões, produzindo uma mudança na criminalizaçãohistórica <strong>de</strong> gênero <strong>de</strong> um sistema que, além <strong>de</strong> classista, é patriarcal. Solenementepatriarcal, e solenemente racista, não nos enganemos.Por <strong>fim</strong>, as c<strong>on</strong>clusões sobre a <strong>de</strong>slegitimação são muito mais complexas,e uma página especialmente dolorosa é a que <strong>de</strong>screve o “horror”prisi<strong>on</strong>al, que precisamos focar agora para falar da existência da eficáciainvertida <strong>de</strong> prisões que cumprem alguma função socialmente útil, masviolam sistematicamente os direito humanos dos c<strong>on</strong><strong>de</strong>nados, para muitoalém da liberda<strong>de</strong> atingida pela cautelar ou c<strong>on</strong><strong>de</strong>nação. A pena privativa<strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> no Brasil é um horror, não tem adjetivação. Ela viola todos osdireitos humanos, todos os princípios c<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>ais, ela mata. E Zafar<strong>on</strong>ifoi o primeiro a <strong>de</strong>nunciar claramente que o genocídio, que o extermínio,62R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 59-71, out.-<strong>de</strong>z. 2012


que a cruelda<strong>de</strong> com base na tortura é a lógica <strong>de</strong> funci<strong>on</strong>amento dossistemas penais latino-americanos. E que o genocídio <strong>de</strong>ve ser o objetocentral da Criminologia na região.Então, no centro da <strong>de</strong>slegitimação teórica e empírica do sistemapenal está o horror prisi<strong>on</strong>al e, ainda, o horror policial. Eu não vou me <strong>de</strong>ternas questões que são muito claras neste Rio <strong>de</strong> Janeiro tão c<strong>on</strong>flitivoe que tantas dificulda<strong>de</strong>s tem passado com a violência <strong>de</strong> seus aparelhospolicial e prisi<strong>on</strong>al.E é importante <strong>de</strong>ixar claro que a violência da prisão e da polícianão se limita aos c<strong>on</strong>trolados e criminalizados, ela se esten<strong>de</strong> aos c<strong>on</strong>troladores,aos trabalhadores da prisão e da polícia. Praticamente não háquem trabalhe nesse sistema que não seja violentado, dos policiais aosagentes carcerários, até juízes, promotores, advogados, professores, todosnós <strong>de</strong>veríamos ter direito a uma terapia pessoal para po<strong>de</strong>r trabalharnum sistema <strong>de</strong> tanta produção <strong>de</strong> dor.E as vítimas? As vítimas têm ocupado uma gran<strong>de</strong> e expressiva páginada <strong>de</strong>slegitimação, porque as vitimas existem em proporção cada vezmaior, precisamente porque o sistema penal não as protege, precisamenteporque ele chega “<strong>de</strong>pois” do crime e seu mo<strong>de</strong>lo (punitivo individual)não tem nenhum impacto positivo sobre o c<strong>on</strong>flito e os danos por eleproduzido. Se nós tivéssemos tido, ao l<strong>on</strong>go <strong>de</strong> um século e meio <strong>de</strong> historiaoci<strong>de</strong>ntal, um sistema penal protetor, nós não estaríamos hoje aqui,replicando o mesmo discurso <strong>de</strong>clarado, em busca das mesmas promessass<strong>on</strong>egadas.Dito isso, e retomando a minha proposta, ou seja, partindo da <strong>de</strong>slegitimaçãoe do acúmulo criminológico crítico, partindo da maturida<strong>de</strong>criminológica, indago agora: qual é o lugar do Direito Penal no sistemapenal e qual é a resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> do Direito Penal na <strong>de</strong>slegitimação dosistema punitivo?O Direito Penal, dogmaticamente c<strong>on</strong>cebido (entendido como leipenal e saber dos juristas ou técnica jurídica dogmática), é visto comoum dique <strong>de</strong> c<strong>on</strong>tenção da violência do po<strong>de</strong>r punitivo estatal, que teria opo<strong>de</strong>r <strong>de</strong> impor limite à arbitrarieda<strong>de</strong> da pena. O topoi da “limitação”, da“raci<strong>on</strong>alização”, é um topoi histórico (não é, Professor Juarez Tavares?),em nome do qual o discurso dogmático fala para impor uma justificaçãogarantidora ao Direito Penal, que simultaneamente legitima a totalida<strong>de</strong>do sistema penal e que, além do mais, é associada à função <strong>de</strong>claradaR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 59-71, out.-<strong>de</strong>z. 2012 63


<strong>de</strong> proteção <strong>de</strong> bens jurídicos que interessariam igualmente a todos oscidadãos.Des<strong>de</strong> uma perspectiva criminológica crítica, o Direito Penal não éum limite externo ao sistema penal, ele é um elemento interno.O Direito Penal como lei e discurso técnico-jurídico é programaçãocriminalizadora do po<strong>de</strong>r punitivo, é programação simbólica, é o discursoque enuncia as promessas e, portanto, quando nós falamos <strong>de</strong> DireitoPenal, nós estamos falando da matriz do sistema penal, cuja mão estápresente na coresp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> histórica pela seletivida<strong>de</strong>, pela <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>,pela cruelda<strong>de</strong>, pelo extermínio.Então, o Direito Penal não está no camarim, fora da história, o DireitoPenal está <strong>de</strong>ntro, ele é a matriz (primária) da criminalização, e matrizseletiva.C<strong>on</strong>seqüentemente, o Direito Penal é político, e reformá-lo é umato político (exercido por políticos e juristas); a linguagem da reforma penal,embora se expresse como técnico-jurídica, é a linguagem do político.Então, discutir a reforma do Direito Penal (Código penal, lei penal) é discutira reprogramação da palavra do po<strong>de</strong>r punitivo do Estado a partirdo exercício <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> juristas e políticos (comissão reformadora), édiscutir a reformatação do campo da c<strong>on</strong>strução social da criminalida<strong>de</strong>,da criminalização primária, que é um c<strong>on</strong>struído.É isso que nós estamos trazendo ao <strong>de</strong>bate neste seminário. E, portanto,nós não po<strong>de</strong>mos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> uma perspectiva criminológica crítica, partirda reforma como um dado, nós temos <strong>de</strong> partir <strong>de</strong>la também comoum c<strong>on</strong>struído. Nós temos que discutir a reforma como uma c<strong>on</strong>struçãosocial e política e ao invés <strong>de</strong> passar mecanicamente à exegese do seu produto,que são as leis penais, com a avi<strong>de</strong>z hermenêutica com que o faz,por exemplo, o penalista dogmático, nós <strong>de</strong>vemos então problematizar ac<strong>on</strong>strução: este é o objetivo <strong>de</strong> uma análise criminológica que se prop<strong>on</strong>hacritica. Problematizar a c<strong>on</strong>strução através <strong>de</strong> um, adianto, <strong>de</strong> umapalavra firme pelo não. Nós não aceitamos essa reforma e não há comoum penalista, c<strong>on</strong>victamente, crítico, firmemente c<strong>on</strong>vencido das c<strong>on</strong>clusõescriminológicas do último século e <strong>de</strong>ste que a<strong>de</strong>ntramos, receber estetanque simbólico <strong>de</strong> guerra interna que é o anteprojeto apresentado, semuma enorme sensação <strong>de</strong> <strong>de</strong>rrota, sem uma enorme sensação <strong>de</strong> luto. Eeu quero <strong>de</strong>ixar isso claro, porque eu estou enlutada como criminóloga,como cidadã e como mãe, professora, pessoa da República Brasileira.64R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 59-71, out.-<strong>de</strong>z. 2012


Eu vou percorrer rapidamente os objetivos da reforma do códigopenal (c<strong>on</strong>duzida por várias comissões superpostas), e vou tentar c<strong>on</strong>trastaros objetivos <strong>de</strong>clarados <strong>de</strong>ssa reforma com realida<strong>de</strong> nua e crua dosistema penal brasileiro, criminologicamente analisada. Eu vou focar a exposições<strong>de</strong> motivos, porque para a Criminologia crítica nenhum p<strong>on</strong>to <strong>de</strong>partida é tão importante para a análise <strong>de</strong> como as instituições funci<strong>on</strong>amquanto o lugar da <strong>de</strong>claração (do discurso <strong>de</strong>clarado) e, sendo o DireitoPenal o lugar da produção dos discursos, o lugar do simbolismo e das promessas,a exposição <strong>de</strong> motivos tem para nós um valor analítico especial.Dizem os reformadores na exposição <strong>de</strong> motivos, in verbis:“A tarefa da comissão prevista no requerimento 756 é:1. atualizar o código penal, sendo “imprescindível” uma releiturado sistema penal à luz da C<strong>on</strong>stituição, tendo em vista asnovas perspectivas pós-1988; da mesma maneira, “o atrasodo código penal fez com que inúmeras leis esparsas fossemcriadas para aten<strong>de</strong>r a necessida<strong>de</strong>s prementes [quais?],como c<strong>on</strong>sequência tem-se o prejuízo total da sistematizaçãoe organização dos tipos penais e da proporci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong> daspenas, o que gera gran<strong>de</strong> insegurança jurídica ocasi<strong>on</strong>adapor interpretações <strong>de</strong>senc<strong>on</strong>trada, jurisprudência c<strong>on</strong>traditóriase penas injustas. Algumas vezes muito baixas para crimesgraves e outras altas para <strong>de</strong>litos menores.A comissão <strong>de</strong> reforma penal aceitou portanto as seguintestarefas:1. Mo<strong>de</strong>rnizar o código penal;2. Unificar a legislação penal esparsa;3. Estudar a compatibilida<strong>de</strong> dos tipos penais hoje existentescom a C<strong>on</strong>stituição <strong>de</strong> 1988, <strong>de</strong>scriminalizando c<strong>on</strong>dutas e senecessário, prevendo novas figuras típicas;4. Tornar proporci<strong>on</strong>ais as penas <strong>de</strong> diversos crimes a partir<strong>de</strong> sua gravida<strong>de</strong> relativa e buscar formas alternativas nãoprisi<strong>on</strong>ais <strong>de</strong> sanção penal.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 59-71, out.-<strong>de</strong>z. 2012 65


Tais critérios elencados pela Comissão formam um c<strong>on</strong>juntoque c<strong>on</strong>cebe um Direito Penal mais voltado para sua funci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>social, [não se diz qual é], em sentido forte, [tampoucose sabe o que é isso], c<strong>on</strong>juntamente com o respeitocom a dignida<strong>de</strong> da pessoa humana. Ou seja, um sistemacom perfeita sint<strong>on</strong>ia com a C<strong>on</strong>stituição <strong>de</strong> 1988 e que traduzuma leitura rigorosa do c<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>alismo penal.”Esses são os objetivos <strong>de</strong>clarados da reforma, que também reafirmaque o <strong>fim</strong> do Direito Penal é a proteção dos bens jurídicos.Antes <strong>de</strong> prosseguir, eu quero dizer que toda a crítica criminológicapotente que se po<strong>de</strong> fazer à reforma penal tem que ser, emprincípio,<strong>de</strong>spers<strong>on</strong>alizada, mas não <strong>de</strong>sresp<strong>on</strong>sabilizada, eis que nãoimplica, em absoluto, qualquer <strong>de</strong>srespeito pessoal aos profissi<strong>on</strong>ais queintegram a comissão , nem ao c<strong>on</strong>junto dos seus esforços, mas implica,sim, a preocupação com resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong>s. Trata-se <strong>de</strong> uma crítica paradigmática,uma crítica que c<strong>on</strong>cebe os reformadores como sujeitos i<strong>de</strong>ologicamentefalados por paradigmas, e como reformam no exercício <strong>de</strong>um po<strong>de</strong>r suas escolhas corresp<strong>on</strong>sabilizam: o “ornitorrinco” punitivoque estão entregando à socieda<strong>de</strong> é <strong>de</strong> resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> do po<strong>de</strong>r sociale político que neste momento exercem.Dito isto, prossigo com a exata sensação <strong>de</strong> que existem váriasc<strong>on</strong>stituições no Brasil, porque a c<strong>on</strong>stituição com a qual a Criminologiatrabalha não parece ser a mesma com que os reformadores trabalharam.Então, qual é o foco aqui? Uma releitura do sistema penal à luz daCriminologia mostra que há uma radical c<strong>on</strong>tradição entre sistema penale C<strong>on</strong>stituição, que o sistema penal não resiste ao mais leve toque c<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>al,especialmente a prisão; que as nossas prisões não cumpremsuas funções <strong>de</strong>claradas, violam sistematicamente os princípios c<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>aise os direitos humanos dos presos, produzem violência e morte:são inc<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>ais, estão <strong>de</strong>slegitimadas.A C<strong>on</strong>stituição lida à luz dos reformadores chega a uma c<strong>on</strong>clusãoinversa: o p<strong>on</strong>to <strong>de</strong> partida da reforma, e isso é muito grave, é o da legitimida<strong>de</strong>ou legitimação do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> punir. A reforma penal parte da solenenegação da <strong>de</strong>slegitimação da pena e da pena <strong>de</strong> prisão. E, além disso,silencia completamente a discussão quanto aos fins da pena, dogmatizaas mesmas funções <strong>de</strong>slegitimadas, parte dos velhos dogmas da pena e a66R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 59-71, out.-<strong>de</strong>z. 2012


introduz subrepticiamente,subterraneamente, na esfera que <strong>de</strong>clara <strong>de</strong>competência residual (“se necessário,[ prever] novas figuras típicas”);introduz a maior criminalização <strong>de</strong> que se tem notícia na história daRepública Brasileira.Senão vejamos. A preocupação <strong>de</strong>clarada dos reformadores é dogmática,técnico-jurídica e formalista, mas a funci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong> latente é eficientista-punitivista.O objetivo <strong>de</strong>clarado dos legisladores é a mo<strong>de</strong>rnização e a sistematizaçãoda legislação penal, a c<strong>on</strong>strução <strong>de</strong> um sistema atualizado,coerente e harmônico, como se num passe <strong>de</strong> mágica, reor<strong>de</strong>nando oquebra-cabeças da “colcha <strong>de</strong> retalhos” em que a legislação penal <strong>de</strong> fatose tornou, emergisse a “ segurança jurídica” e uma tal “funci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>social em sentido forte” que, apesar <strong>de</strong> em momento algum explicitada,supõe-se falada pela i<strong>de</strong>ologia eficientista-punitivista ( mais eficiência nocombate à criminalida<strong>de</strong>) precisamente porque, subrepticiamente, subterraneamentese c<strong>on</strong>traban<strong>de</strong>ia, para <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ssa reforma que seriatécnico-jurídica, a maior criminalização <strong>de</strong> que se tem c<strong>on</strong>hecimento nahistoria republicana: o que era para ser um sistema raci<strong>on</strong>alizado aparececomo um “ornitorrinco” punitivo que c<strong>on</strong>solida a velha com uma nova ea<strong>de</strong>nsada criminalização do cotidiano e o uso radicalizado da pena <strong>de</strong> prisão,esquecendo-se da prometida busca <strong>de</strong> alternativas <strong>de</strong> c<strong>on</strong>trole.No primeiro sentido, os juristas-políticos e os políticos-juristasensaiam colocar em prática um autêntico “mo<strong>de</strong>lo napoleônico do direito”.E aparece aqui o primeiro gran<strong>de</strong> imperador <strong>de</strong>ssa reforma queé Napoleão!Metodologicamente, o paradigma no qual está encerrada a reformaé o paradigma dogmático e seu método técnico-juridico, com o qual adogmática ensina os juristas a não ver a realida<strong>de</strong>. Ela é uma reforma metodologicamentemurada, feita em gabinetes e se <strong>de</strong>senvolve no camarimda história, mas baseada no pressuposto <strong>de</strong> que a falta <strong>de</strong> sistematização,coerência e unida<strong>de</strong> sejam as culpadas pelas disfunci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>s do sistemapenal. No trânsito da abstração murada à funci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong> da reformasó outro imperador brasileiro, que a seguir apresentarei, po<strong>de</strong>rá fazer ac<strong>on</strong>exão.Essa reforma representa então o sucesso do simbolismo e reafirmaa eficácia invertida do sistema penal. Se nós chegamos até aqui comessa capacida<strong>de</strong> punitiva é porque as funções <strong>de</strong>claradas do DireitoR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 59-71, out.-<strong>de</strong>z. 2012 67


Penal (protetoras das vítimas potenciais e garantidoras dos direitos dosacusados) são um sucesso histórico, a prisão é um sucesso histórico, nãoobstante toda a sua <strong>de</strong>slegitimação. Se nós chegamos até aqui é porquehá um gran<strong>de</strong> pacto <strong>de</strong> c<strong>on</strong>tinuida<strong>de</strong> sustentado politicamente a reformapenal. Relegitima-se o sistema penal <strong>de</strong>slegitimado.Eu c<strong>on</strong>cluiria, portanto, que a reforma penal em curso é portadora<strong>de</strong> uma função não <strong>de</strong>clarada eficientista, punitivista, por <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> umafunção <strong>de</strong>clarada tecnicista, sendo produzida a partir <strong>de</strong> quatro déficitsfundamentais, graves déficits.O primeiro déficit é o déficit empírico: a reforma se produz medianteum corte com a realida<strong>de</strong> empírica do funci<strong>on</strong>amento do sistema penale da prisão. Este déficit empírico faz com que os juristas possam se colocarno camarim da história.O segundo déficit é o déficit teórico, <strong>de</strong> teoria crítica: a reforma produztambém um ensaio da surdo-mu<strong>de</strong>z em relação à crítica criminológicae a todas as críticas <strong>de</strong> todos os <strong>de</strong>mais saberes acadêmicos e populares,que mostram a inc<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong> das penas e a <strong>de</strong>slegitimação.O terceiro déficit, que me chama muita atenção, é um déficit dialógico:a reforma se produz mediante este déficit com o próprio po<strong>de</strong>rque está pretendo punir mais. Quando eu falo <strong>de</strong> déficit dialógico, e essedéficit me espanta, eu me refiro ao seguinte: ao mesmo tempo em quese <strong>de</strong>senvolve no Brasil uma comissão plural reformando o código penalno sentido panpenalista, se <strong>de</strong>senvolve no Brasil, paralelamente, um projetodo Ministério da Justiça, já <strong>de</strong>cenário, nomeado <strong>de</strong> Central <strong>de</strong> Penase Medidas Alternativas, criado há <strong>de</strong>z anos para fazer expandir a aplicaçãodas penas e medidas alternativas, incluindo a c<strong>on</strong>strução <strong>de</strong> novosmo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> c<strong>on</strong>trole, como justiça restaurativa, justamente em face dac<strong>on</strong>clusão da violência da prisão e da assunção da sua <strong>de</strong>slegitimação.Então, não tem diálogo com a Central <strong>de</strong> Penas e Medidas Alternativasdo Ministério da Justiça. Em segundo lugar, c<strong>on</strong>struiu-se no Brasil umaC<strong>on</strong>ferência Naci<strong>on</strong>al <strong>de</strong> Segurança Pública entre os anos <strong>de</strong> 2007 e 2008 ,<strong>de</strong>stinada a questi<strong>on</strong>ar o paradigma punitivo vigente em segurança pública,com cujos resultados, complexos e fecundos, a comissão não dialoga.Eu participei <strong>de</strong>ssa C<strong>on</strong>ferência Naci<strong>on</strong>al <strong>de</strong> Segurança Pública e participodos trabalhos da Central <strong>de</strong> Penas e Medidas Alternativas do Ministério daJustiça, ambos trabalhos instituci<strong>on</strong>ais ten<strong>de</strong>ntes à redução do punitivismoe à busca <strong>de</strong> solução alternativa para os c<strong>on</strong>flitos. Em terceiro lugar,68R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 59-71, out.-<strong>de</strong>z. 2012


a comissão <strong>de</strong> reforma do código penal não dialoga com o C<strong>on</strong>selhoNaci<strong>on</strong>al <strong>de</strong> Justiça (CNJ), que peregrina pelo Brasil <strong>de</strong>nunciando, vistoriandoe, em alguns casos, indicando o fechamento <strong>de</strong> prisões exterminadorase genocidas.Por último, há um déficit <strong>de</strong> diálogo <strong>de</strong>sta comissão com a CPI dosistema prisi<strong>on</strong>al, e isto é assustador, porque a CPI do sistema prisi<strong>on</strong>al,que é uma CPI do po<strong>de</strong>r legislativo, produziu recentemente uma gran<strong>de</strong>empreitada <strong>de</strong> análise das prisões brasileiras e produziu um ví<strong>de</strong>o estarrecedorque se chama “O grito das prisões”, que começa com uma pocilganum estado do nor<strong>de</strong>ste <strong>on</strong><strong>de</strong> os presos cumprem pena. Quer dizer, asituação do sistema penal brasileiro é um atentado aos direito humanos;a tragédia prisi<strong>on</strong>al brasileira chama atenção <strong>de</strong> todos os organismos internaci<strong>on</strong>ais,ela chama a atenção da ONU, ela chama a atenção da AnistiaInternaci<strong>on</strong>al, ela chama a atenção do CNJ, ela chama a atenção daMagistratura, da Promotoria, <strong>de</strong> todos, exceto da comissão reformadora,ou seja, ela ignora a <strong>de</strong>slegitimação. Então, não há diálogo com nenhuma<strong>de</strong>ssas instâncias que vêm do mesmo po<strong>de</strong>r que reforma, no interior dopróprio po<strong>de</strong>r estatal que reforma. Existe uma fratura entre as diversasinstâncias governamentais.Vejam bem, o paradoxo <strong>de</strong>ste déficit <strong>de</strong> diálogo interno com asvárias instâncias do po<strong>de</strong>r e comissões nomeadas para produzir menospena é que a comissão nomeada para produzir mais pena opera um cortena teoria e na empiria e, assim, opera com a “boa c<strong>on</strong>sciência” <strong>de</strong> queuma boa reforma intrassistêmica nos c<strong>on</strong>duzirá ao paraíso. Essa reformanoelística po<strong>de</strong> seguir assim prometendo os mesmos presentes ao seincorporar a figura do “Papai Noel”.Po<strong>de</strong>mos lançar mão aqui da pergunta feita por Agostinho Ramalho<strong>de</strong> Marques Neto: “quem nos salvará da b<strong>on</strong>da<strong>de</strong> dos b<strong>on</strong>s?” Sim, porqueesta reforma não é feita por nós (professores, advogados, promotores,juízes) nem para nós; nós aqui somos os c<strong>on</strong>troladores; esta reforma nãoé feita para nossos filhos, essa reforma é feita para os filhos da rua, paraos órfãos <strong>de</strong> pai e mãe, para os órfãos <strong>de</strong> Estado que são perenementeadotados pela violência do c<strong>on</strong>trole punitivo. Esta reforma não é feitapara nós, nós somos os gestores <strong>de</strong>sta reforma e ficamos c<strong>on</strong>fortavelmenteprotegidos nos gabinetes do po<strong>de</strong>r e também <strong>on</strong><strong>de</strong> damos aula, nauniversida<strong>de</strong>, <strong>on</strong><strong>de</strong> produzimos <strong>de</strong>cisões para perpetuar a tragédia doshumil<strong>de</strong>s. Entretanto, nós somos a elite que tem uma gigantesca resp<strong>on</strong>-R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 59-71, out.-<strong>de</strong>z. 2012 69


sabilida<strong>de</strong> com o produto <strong>de</strong>ssa reforma murada, e perdão, irresp<strong>on</strong>sável.É <strong>de</strong> uma gigantesca irresp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> produzir numa república um campo<strong>de</strong> criminalização com esse potencial criminalizador <strong>de</strong>sc<strong>on</strong>hecendosea história e a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa socieda<strong>de</strong>. Porque, <strong>de</strong>sculpem o meupessimismo, mas eu só c<strong>on</strong>sigo ver tragédias no <strong>fim</strong> do túnel. Quais sãoas c<strong>on</strong>sequências <strong>de</strong> um programa criminalizador <strong>de</strong>ssa potência? Eu nãovou entrar na análise individualizada dos artigos, até para não fortalecero programa criminalizador, e nós não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>spen<strong>de</strong>r tanta energiafazendo isso. Qual é a potência da reforma diante do funci<strong>on</strong>amento dopo<strong>de</strong>r punitivo como o que nós temos, e criminologicamente já explicitado?É a potência seletiva e genocida. Se há um sistema <strong>de</strong> ilegalida<strong>de</strong> quenão respeita princípios que trata o ser humano como um objeto <strong>de</strong> mercadoria,<strong>de</strong> mercado, qual é a potência da reforma? Ela vai potencializar aseletivida<strong>de</strong> estigmatizante e o genocídio, além <strong>de</strong> ser um tiro no pé.Quero agora falar para <strong>de</strong>ntro do meu sistema <strong>de</strong> justiça; nós, professoresuniversitários, somos a matriz i<strong>de</strong>ológica do sistema <strong>de</strong> justiça,porque nós formamos os operadores da or<strong>de</strong>m que têm sido os juristasem todos os tempos e a nossa resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong>; a nossa palavra talveztenha a maior resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> do que qualquer outra porque nós somosmatriz i<strong>de</strong>ológica. Nós temos a resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dizer que, além<strong>de</strong> potencializar a dor do outro, <strong>de</strong> potencializar a crise <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong>do sistema, essa reforma é um tiro no pé para nós mesmos porque elavai agudizar a crise <strong>de</strong> funci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong> do próprio sistema <strong>de</strong> justiça. Nãoexiste sistema <strong>de</strong> justiça que tenha, agora vou falar funci<strong>on</strong>almente, quetenha capacida<strong>de</strong> operaci<strong>on</strong>al <strong>de</strong> assimilar tamanho programa criminalizador.É incompatível estruturalmente com qualquer capacida<strong>de</strong>. Então,essa reforma vai agudizar os sintomas <strong>de</strong> crise <strong>de</strong> ineficiência do judiciário,<strong>de</strong> crise <strong>de</strong> impunida<strong>de</strong> numa socieda<strong>de</strong> que tem meio milhões <strong>de</strong>c<strong>on</strong><strong>de</strong>nados ( homens pobres e <strong>de</strong> cor).Essa não é, em <strong>de</strong>finitivo, uma reforma republicana; é uma reformaimperial. Se o primeiro imperador da reforma é Napoleão, Napoleão vive;o segundo, agora acrescento, é José Sarney. Nós temos que ir à matrizda reforma, ou seja, o gran<strong>de</strong> imperador é José Sarney, que presi<strong>de</strong> umacomissão do Senado para a reforma do código penal. Os juristas parecembobos da corte em torno <strong>de</strong> José Sarney. Quem é José Sarney, senão umadas heranças mais fi<strong>de</strong>dignas da oligarquia escravocrata; senão um político<strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte que sustenta a lei e a or<strong>de</strong>m a qualquer preço, i<strong>de</strong>ólogo70R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 59-71, out.-<strong>de</strong>z. 2012


da ditadura militar quer ser agora o i<strong>de</strong>ólogo do po<strong>de</strong>r punitivo da <strong>de</strong>mocracia.José Sarney é o i<strong>de</strong>ólogo da reforma penal e nós estamos aqui gravitandoem torno <strong>de</strong> oligarquias. O po<strong>de</strong>r jurídico-penal neste momentoestá refém do po<strong>de</strong>r político. Além disso, essa reforma não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar<strong>de</strong> ser vista como uma gran<strong>de</strong> reserva <strong>de</strong> mercado, para o mercado doc<strong>on</strong>trole do crime, ou seja, Marx disse claramente, e <strong>de</strong>pois Nils Christieretomou a tese, que.. o criminoso produz não só crimes, mas tambémproduz o direito criminal e, além disso, o inevitável compêndio no qualesse mesmo professor lança suas c<strong>on</strong>ferências no mercado geral comomercadorias. A má c<strong>on</strong>sciência do bom penalista não nos <strong>de</strong>ixa esqueceresse fato evi<strong>de</strong>nte.” Certamente, manuais interpretativos do Código jásão feitos na tecedura do sentido das palavras da lei penal. Tem muitomercado do c<strong>on</strong>trole do crime para se <strong>de</strong>senvolver em torno <strong>de</strong>ssa reforma,porque a oferta <strong>de</strong> crimes e penas é inesgotável.Estamos diante <strong>de</strong> um pacto político-criminal medíocre <strong>de</strong> c<strong>on</strong>tinuida<strong>de</strong>,que não aceitamos; nós temos que c<strong>on</strong>struir um pacto políticocriminal<strong>de</strong> <strong>de</strong>sc<strong>on</strong>tinuida<strong>de</strong>, e essa c<strong>on</strong>strução está sendo feita no Brasil,inclusive, como referi, por <strong>de</strong>ntro do próprio po<strong>de</strong>r governamental e legislativo.Temos que barrar a votação <strong>de</strong>ste Anteprojeto no C<strong>on</strong>gresso Naci<strong>on</strong>al;nós temos que reservar um rec<strong>on</strong>hecimento à reforma no limite queela merece, que é a <strong>de</strong> ter feito uma gran<strong>de</strong> compilação. E aí nós temos orosto do nosso ornitorrinco e, a partir daí, lutar para diminuir e não é por<strong>de</strong>ntro do Direito Penal, não é por <strong>de</strong>ntro do sistema penal.Eu queria finalizar dizendo que, <strong>de</strong>ntre as múltiplas infelicida<strong>de</strong>s d<strong>on</strong>osso relator geral dos trabalhos, ele <strong>de</strong>dicou esta reforma, pessoalmente,a duas das gran<strong>de</strong>s vítimas da violência no Brasil, os meninos João Hélioe Ives Ota. Nenhum ser humano <strong>de</strong>ixaria <strong>de</strong> se solidarizar com a mortetrágica <strong>de</strong>sses meninos e com a dor dos seus familiares, mas esta <strong>de</strong>dicatóriatem o rosto da seletivida<strong>de</strong> classista, por isso eu quero <strong>de</strong>dicar aminha fala a todas as vítimas da violência do sistema penal, especialmentea todas as meninas e meninos anônimos que morrem cotidianamentena nossa socieda<strong>de</strong>, aos órfãos <strong>de</strong> pai, <strong>de</strong> mãe e <strong>de</strong> Estado, e que têmque enc<strong>on</strong>trar na nossa voz uma representação <strong>de</strong> dignida<strong>de</strong> na nossasocieda<strong>de</strong>. O sistema penal que nós temos é indigno e nós não po<strong>de</strong>mosreplicar a indignida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa reforma.Muito obrigada pela paciência com que me escutaram.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 59-71, out.-<strong>de</strong>z. 2012 71


Stalking e a Criminalizaçãodo CotidianoProf. Dr. Alexandre Morais da RosaDoutor em Direito (UFPR), com estágio <strong>de</strong> pós-doutoramentoem Direito (Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra e UNI-SINOS). Mestre em Direito (UFSC). Professor Adjunto<strong>de</strong> Processo Penal e do CPGD (mestrado) da UFSC.Juiz <strong>de</strong> Direito (SC). Coor<strong>de</strong>na o Grupo <strong>de</strong> PesquisaJudiciário do Futuro.Stalking é a <strong>de</strong>finição daquilo que nós <strong>de</strong>nunciamos na criminologiacrítica há tempos! Isso porque o stalking, na proposta do novo Código Penal,art. 147, nada mais é do que: perseguir alguém, <strong>de</strong> forma reiterada ouc<strong>on</strong>tinuada, ameaçando-lhe física ou psicologicamente, restringindo-lhe acapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> locomoção ou <strong>de</strong> qualquer forma, invadindo ou perturbandosua esfera <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> ou privacida<strong>de</strong>. Essa é a função não <strong>de</strong>claradado sistema penal, ou seja, fazer stalking com os seleci<strong>on</strong>ados/estigmatizados,os <strong>de</strong> sempre.E o sintoma disso, a saber, a criminalização do nosso cotidiano,nessa perspectiva, nada mais é, ao meu juízo, do que a <strong>de</strong>mocratizaçãoinvertida do sistema penal a partir <strong>de</strong> duas lógicas que rapidamenteexporei aos senhores. A primeira lógica é a do custo benefício, a saber,usar o sistema penal como máquina <strong>de</strong> c<strong>on</strong>trole social, não só nosistema penal, mas também <strong>de</strong> programas sociais assistenciais, americanizando,por assim dizer, nossa realida<strong>de</strong>. Todos sabemos que essanovida<strong>de</strong> criminosa surgiu pelos arroubos <strong>de</strong> fãs em Hollywood, comoveremos. Acredita-se, assim, que punição e c<strong>on</strong>trole social máximo sãoos mecamismos para manutenção da or<strong>de</strong>m. Essa lógica da punição temalguns requisitos bem interessantes, porque o sujeito <strong>de</strong> fato – e eu nãotenho muita dúvida disso – ele acredita que o Direito Penal serve paraalguma coisa! Ingênua ou i<strong>de</strong>ologicamente, acredita que se po<strong>de</strong> formataras pessoas ortopedicamente.72R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 72-79, out.-<strong>de</strong>z. 2012


No que se refere ao direito penal, a lógica é a seguinte: nós temosum filho, ele mete a mão na tomada, damos uma palmada. O filho vai láe mete a mão <strong>de</strong> novo, nós damos duas palmadas, damos três palmadase vamos aumentando as palmadas, porque quando chegar no número<strong>de</strong> palmadas X, ele não botará mais a mão na tomada. É como se ele colocasseo <strong>de</strong>do na tomada porque essa fosse uma forma <strong>de</strong> enfrentar osistema. A lógica é: quanto mais palmadas, menor a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> elecolocar a mão na tomada! Logo chegamos ao patamar da criação <strong>de</strong> tipospenais. A lógica parte do individualismo metodológico extremado, peloqual, como dito, a or<strong>de</strong>m está garantida. Perguntem para o meu avô o queele quer: ele quer or<strong>de</strong>m; perguntem para o vizinho o que ele quer: elequer segurança; perguntem para qualquer um o que ele quer: ele quersegurança! E nós do direito penal somos <strong>de</strong>mandados como os gran<strong>de</strong>scapazes <strong>de</strong> promover essa segurança, não fosse ela ingênua e, por vezes,cínica. Porque todas as tentativas <strong>de</strong> criminalização significam o quê? Anão resolução do problema! Qualquer um que tenha lidos duas linhas <strong>de</strong>Alessandro Baratta ou Vera Andra<strong>de</strong> sabe disso.Hoje a Lei Maria da Penha (todos nós aceitamos que a mulher precisa<strong>de</strong> proteção, mas não do jeito que está), com a <strong>de</strong>cisão do STF – noque se refere à indisp<strong>on</strong>ibilida<strong>de</strong> da ação penal – a mulher não faz maisregistro. Isso ac<strong>on</strong>teceu em Portugal! É óbvio. Gran<strong>de</strong> parte das mulheresnão quer encarcerar os seus maridos/companheiros. Elas querem resolverum problema que é da or<strong>de</strong>m da (im)possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> c<strong>on</strong>vivência.Hoje, quem trabalha em Juizado da Violência Doméstica sabe que houveuma retração no registro das ocorrências. Partindo da premissa <strong>de</strong> quepena resolve e é a resposta correta, a proteção do sistema diminuiu. Hác<strong>on</strong>sequências nas <strong>de</strong>cisões tomadas, mesmo as aparentemente <strong>de</strong> boaféou politicamente corretas.Essa perspectiva <strong>de</strong> criminalização faz com que eles acreditem, sinceramente,que o direito penal, com o aumento das punições, diminuirá oscrimes. O resultado é a transformação <strong>de</strong> c<strong>on</strong>dutas cotidianas em crime.A explosão da criminalização da vida diária, dos amores, dos ódios, en<strong>fim</strong>,para além do que se <strong>de</strong>ve esperar do Direito Penal como última ratio!Aí surge a criminalização do stalking, nominado <strong>de</strong> perseguição insidiosa.A orientação <strong>de</strong> m<strong>on</strong>ografia po<strong>de</strong> trazer algumas surpresas, com<strong>on</strong>o caso do stalking, escrita por Jamil Nadaf. Ele pesquisou a trajetóriaR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 72-79, out.-<strong>de</strong>z. 2012 73


da c<strong>on</strong>strução teórica <strong>de</strong>m<strong>on</strong>strando a possível pertinência <strong>de</strong>mocrática.Claro que <strong>de</strong>ve ser lida como m<strong>on</strong>ografia. Mas é o sintoma <strong>de</strong> que a m<strong>on</strong>ografiapo<strong>de</strong> servir para algo bom.Daí que uma mulher chamada Rebeca Schaeffer foi perseguida; perseguidaporque ela era atriz. A Re<strong>de</strong> Globo tem esse problema aqui noJardim Botânico justamente porque as pessoas se apaix<strong>on</strong>am, as pessoassão interessadas no glamour, ilu<strong>de</strong>m-se pelas imagens <strong>de</strong> c<strong>on</strong>sumo <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>.Estar apaix<strong>on</strong>ado é um estado <strong>de</strong> suspensão, <strong>de</strong> fascínio, iniciadopelo enc<strong>on</strong>tro. Que é muito bom! Que se pu<strong>de</strong>sse durar para sempre, masnão dura, esse é o problema! A erotomania, na verda<strong>de</strong>, gera alguma coisaque Freud já tinha trabalhado na psicanálise, isto é, a perspectiva <strong>de</strong> osujeito se apaix<strong>on</strong>ar por alguém e nesse lugar achar que o sujeito vive paraele. Erotomania é mais ou menos isso: ilusão <strong>de</strong> amor e compulsão eróticacom o objeto/sujeito, revelada, todavia, pelo lugar da impotência. Entãoele vive com i<strong>de</strong>ias fixas <strong>de</strong> amor e que dominam a cena <strong>de</strong> sua realida<strong>de</strong>.Quando se trata <strong>de</strong> pessoas públicas, isso ac<strong>on</strong>tece com maior rigor.Retomando, pois: uma atriz chamada Rebeca Schaeffer, emHollywood, na Califórnia – essa é uma tipificação hollywoodiana – começoua ser perseguida e as perseguições significaram a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ela ser intimidada e, ao final, o sujeito chegou a matá-la. Assim, a Califórniafez a primeira tipificação do que viria a ser o stalking, o que veio<strong>de</strong>pois a ser passado para outros países. Hoje nós temos essa tipificaçãodo stalking na Índia, Inglaterra, Austrália, Itália, Canadá, China e Japão. NoEUA, o stalking po<strong>de</strong> chegar à pena <strong>de</strong> 20 anos no estado do Texas.O que vem a ser na verda<strong>de</strong> a tipificação real do stalking? Alguémque persegue seguidamente outro, intimidando, gerando medo, causandotemor. Tem uma amiga minha, que mora em Curitiba, que há 6 anosum cara a persegue. O cara era apaix<strong>on</strong>ado por ela, “ficou” com ela, e elanão quis mais. O cara mudou para o apartamento na frente do <strong>de</strong>la, namesma altura. O cara manda flores todos os dias. Ela tem um telef<strong>on</strong>e queo cara liga para ela 40 vezes todos os dias. Ela vai para algum lugar, o caraaparece; ela vai viajar para o exterior, o cara surge no lugar em que elaestá. O cara não faz nada ativamente, mas ela vê o cara o tempo inteiro.Parece uma perseguição <strong>de</strong>ssa or<strong>de</strong>m. Uma pergunta: isso se resolve peloDireito Penal? O que se falou por aqui, nesse seminário, <strong>de</strong>mostra que o74R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 72-79, out.-<strong>de</strong>z. 2012


direito penal como solução <strong>de</strong> c<strong>on</strong>dutas do cotidiano é um embuste. Masse vai lá criminalizar, com dois anos <strong>de</strong> pena. Essa é a solução do direitopara questões transce<strong>de</strong>ntes como essa? Vamos fazer uma transação penalou qualquer coisa do gênero, o direito penal serve para isso?No Brasil, não se possui tipificação expressa, salvo na Lei MariaPenha, que, pelo artigo sétimo, dá a enten<strong>de</strong>r que stalking é a perseguiçãoda mulher; estaria presente no caso dos ex-cônjuges. Dá para resolverpor outras maneiras? Dá! Se tem feito ações <strong>de</strong> in<strong>de</strong>nização por danomoral, <strong>de</strong> impedimento <strong>de</strong> se chegar perto, várias ações <strong>de</strong> obrigação <strong>de</strong>fazer, <strong>de</strong> não fazer, que resolvem a questão. O que tem sido trazido aqui éa moda da nova tipificação. O stalking está na moda.A minha percepção é que a comissão, com todo respeito, c<strong>on</strong>tratouas pessoas do IBGE, as quais saíram pelo mundo assim: c<strong>on</strong>heces algumtipo penal que não está no código? – Ah, c<strong>on</strong>heço! Anotou e colocou noprojeto <strong>de</strong> código. Aí fizeram um censo mundial e <strong>on</strong><strong>de</strong> tinha um tipo penaldiferente, trouxeram. Porque é um projeto <strong>de</strong> encarcerização mesmo.Só que esse projeto <strong>de</strong> encarcerização, e aí é que eu acho que a análiseec<strong>on</strong>ômica do direito po<strong>de</strong> nos ajudar, traz um custo estatal inviável. Éimpossível sustentar o sistema com o que se tem <strong>de</strong> criminalização nova!E é impossível dar cabo do primeiro mês <strong>de</strong> criminalização disso (novoCódigo Penal). O que vem aqui é alguma coisa que tem o seu segundo passo.Com o aumento da entrada, ou seja, dos tipos penais, da criminalizaçãoprimária e secundária (cotidiano), não havendo espaço para prisões,em breve, o m<strong>on</strong>itoramento eletrônico surgirá como o novo eldorado. Om<strong>on</strong>itoramento eletrônico é o segundo passo por assim dizer. A segundalógica. Não é se pren<strong>de</strong>r, mas m<strong>on</strong>itorar por razões ec<strong>on</strong>ômicas, dado ocusto reduzido e aparentemente mais flex.Um parênteses. O IBDFAM (gosto muito da Maria Berenice, do Rodrigoda Cunha Pereira), daquele povo lá que acha que o princípio da felicida<strong>de</strong>está por trás das reformas do direito <strong>de</strong> família, mas que não se dác<strong>on</strong>ta <strong>de</strong> que carrega uma frau<strong>de</strong> em algumas questões. São manipuladospelo discurso ec<strong>on</strong>ômico. Esse é o discurso do cara que chega em casa 3da manhã e diz que o pneu furou. Não é essa a verda<strong>de</strong>; ele estava emoutro lugar. Aqui no direito <strong>de</strong> família, a lógica é a seguinte: os artigos daanálise ec<strong>on</strong>ômica do direito da década <strong>de</strong> 80 diziam que as pessoas casadasfazem poupança (quem casa quer casa etc...). A i<strong>de</strong>ia era flexibilizarR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 72-79, out.-<strong>de</strong>z. 2012 75


as regras do casamento. Tanto assim que no mundo inteiro hoje se po<strong>de</strong>casar e separar. No Brasil, o que era alguma coisa “prisão perpétua” até1977, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>squite, separação, divórcio. Hoje o cara casa sexta e separasegunda. Por quê? Por que todo mundo tem o direito a ser feliz? Não!Porque isso faz com que o mercado gire, há separação <strong>de</strong> riqueza, transaçõescomerciais... Normalmente, quando separa, se fica mais jovem, maisb<strong>on</strong>ito, mais magro e se c<strong>on</strong>some muito mais. O c<strong>on</strong>sumo, a lógica docusto-benefício, entrou aqui. Em relação aos portadores <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>sespeciais, o final das instituições totais não tem nada com Goffman ouMichel Foucault. Isso é uma c<strong>on</strong>ta ec<strong>on</strong>ômica. Os portadores <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>sespeciais são agentes ec<strong>on</strong>ômicos nulos, não servem para nada,dizem os ec<strong>on</strong>omistas. Só geram custo estatal e coletivo. Mandar para<strong>on</strong><strong>de</strong>? Para a família <strong>de</strong>les. O argumento foi: as instituições totais e tal.O que se verificou é que as pessoas colocadas em casa morreram, gran<strong>de</strong>parte <strong>de</strong>las morreram e isso ec<strong>on</strong>omicamente é viável. Matar gente queec<strong>on</strong>omicamente é inviável é, para o sistema, um benefício; é positivo.E isso não foi uma invenção minha; Hayek escreveu isso no livro “Direito,Legislação e Liberda<strong>de</strong>”. Po<strong>de</strong>-se explicar da seguinte forma: aqueleque tem uma empresa com 30 anos <strong>de</strong> existência e não c<strong>on</strong>segue pagarsuas c<strong>on</strong>tas; o que nós fazemos? Falimos a empresa. Uma pessoa quetem 30 anos e não c<strong>on</strong>segue comer o seu prato <strong>de</strong> comida; que morra! Éduro <strong>de</strong> assimilar, mas é a lógica do sistema neoliberal. A segunda lógicaé esta, a lógica aqui do sistema penal é: manter uma certa or<strong>de</strong>m. Só queesse discurso <strong>de</strong> uma certa or<strong>de</strong>m é um discurso autoritário que veio, nahistória recente, garantir a or<strong>de</strong>m e a disciplina, ceifando liberda<strong>de</strong>s. Éa prometida or<strong>de</strong>m mitigadora <strong>de</strong> um certo discurso <strong>de</strong> caos e violênciac<strong>on</strong>stitutivos, todavia.Em relação ao stalking, essa tipificação traz c<strong>on</strong>sigo algumas coisasinteressantes: “são ações reiteradas <strong>de</strong> um curso <strong>de</strong> c<strong>on</strong>dutas para perseguição,mas que essas ameaças po<strong>de</strong>m ser levadas a sério e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>mdo medo da vítima. Agora, maravilha! O cara sai na noite para c<strong>on</strong>heceruma mulher e pergunta para ela assim: - Você tem muito medo? Sofre <strong>de</strong>pânico? É? Porque <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> mandar uma carta para a mulher, um e-mail,for lá no Facebook <strong>de</strong>la (porque tem também cyberstalking..., o cara põealguma coisa no Facebook e a mulher vai lá e curte tudo...) mas tudo isso,percebam só, no Facebook curtir foto, comentar tudo, vai virar cyberstalking.Vai se po<strong>de</strong>r criminalizar uma pessoa como essa, que na verda<strong>de</strong>76R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 72-79, out.-<strong>de</strong>z. 2012


estaria, <strong>de</strong> alguma maneira, apaix<strong>on</strong>ada ou interessada por outras coisas...As portas dos registros <strong>de</strong> ocorrências <strong>de</strong>ssa or<strong>de</strong>m são enormes...Além do que o objeto do processo <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do medo da vítima...É claro que tem c<strong>on</strong>dutas <strong>de</strong> incomodação. E os argumentos queeles usam..., a comissão na verda<strong>de</strong> não usa argumento nenhum. Eu fuiler as razões para se colocar o stalking: é porque no mundo mo<strong>de</strong>rno...,não é bem por aí. Não diz muitas coisas nas razões.Mas tem algumas coisas interessantes... A pergunta é se isso <strong>de</strong>fato tem que dizer com o direito penal? Um exemplo: O cara se separouda mulher. Foi numa sala <strong>de</strong> bate-papo e disse que o s<strong>on</strong>ho <strong>de</strong>le, passando-sepor ela, assim, s<strong>on</strong>ho da mulher, era ser estuprada por um <strong>de</strong>sc<strong>on</strong>hecidoe <strong>de</strong>u o en<strong>de</strong>reço da ex-mulher. Seis caras apareceram na porta<strong>de</strong>la querendo estuprá-la. Aí o cara foi c<strong>on</strong><strong>de</strong>nado por stalking! A respostapenal resolve, <strong>de</strong> alguma maneira, a questão? Porque nós temos aqui éum sintoma da criminalização do cotidiano, mas uma criminalização quenos gera um medo às avessas. Um medo <strong>de</strong> nós não po<strong>de</strong>rmos mais nosrelaci<strong>on</strong>ar. Isso é alguma coisa fantástica do p<strong>on</strong>to <strong>de</strong> vista coletivo, dadoque faz com que nem aquilo que seria a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estar por trás <strong>de</strong>um computador, po<strong>de</strong> implicar. Gera, no seu cúmulo, o medo <strong>de</strong> se relaci<strong>on</strong>are <strong>de</strong>sfaz, cada vez mais, o projeto político <strong>de</strong> se sentir engajado emalgo coletivo. O individualismo impera...Outro exemplo. Nós temos aqui, hoje em dia, situações do cotidianoque são entendidas como o stalking americano: tem um sujeito que mandou8 mil mensagens no Twitter dizendo que queria matar uma lí<strong>de</strong>r religiosa.É o discurso do ódio que no Brasil é tão intolerado. Esses dias euresp<strong>on</strong>di por uma vara <strong>de</strong> registros públicos e autorizei o registro do “InstitutoCannabis Sativa”, o qual preten<strong>de</strong> discutir a legalização da mac<strong>on</strong>ha.Liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão! Não interessa se eu sou c<strong>on</strong>tra ou a favor. Queremse manifestar pela legalização da pena <strong>de</strong> morte; é liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão,pelo aborto; liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão, agora se for pela mac<strong>on</strong>ha não po<strong>de</strong>.Por quê? Porque nós não temos uma cultura <strong>de</strong>mocrática em relação a issotudo. Depois eu <strong>de</strong>feri o primeiro casamento homo em Florianópolis. Entãoagora eu sou chamado pejorativamente <strong>de</strong> um juiz garantista, gay e mac<strong>on</strong>heiro!O estereótipo está marcado lá, garantista, gay e mac<strong>on</strong>heiro. Tudoporque as pessoas não c<strong>on</strong>seguem viver sem ap<strong>on</strong>tar a falta no outro. E aliberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão é tão mal compreendida no Brasil.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 72-79, out.-<strong>de</strong>z. 2012 77


As classificações americanas do stalking indicadas pela doutrina são<strong>de</strong> morrer <strong>de</strong> rir, não fossem trágicas. Eles acham que qualquer um quefaça qualquer coisa que o outro não autorize acaba significando stalking.Então no Brasil, um país <strong>de</strong>sta dimensão, com as culturas que foram afirmadaspela Vera Andra<strong>de</strong> anteriormente, qualquer c<strong>on</strong>duta que signifiquechegar próximo a alguém, mandar um e-mail, po<strong>de</strong> no segundo e-mail, por essa circunstância, gerar um boletim <strong>de</strong> ocorrência e batizar osujeito no sistema penal. Na verda<strong>de</strong>, o que me parece aqui é que haveráuma <strong>de</strong>mocratização do acesso ao sistema penal mediante a colocação<strong>de</strong> tipos penais como esse, que no fundo são o sintoma da criminalização<strong>de</strong>mocrática do nosso cotidiano.A Vera Andra<strong>de</strong> fez com que eu apren<strong>de</strong>sse algumas coisas nos seuscursos e livros. E e uma <strong>de</strong>las foi que a gente tem que levar a coisa a sério.Então, quando ela falava do Alessandro Barata era preciso levá-lo asério. Mas quando se fala, <strong>de</strong> regra, no ambiente forense, <strong>de</strong> Barata, amaioria pensa que é animal noturno <strong>de</strong> hábitos rastejantes... e isso écomplicado. O cara acha que o mito da caverna é fantasia <strong>de</strong> escola <strong>de</strong>samba, Canotilho para juntar com miçanga para fazer fantasia. O sujeitopossui um “gap” teórico, e esse “gap” teórico é um problema serio. Porqueesse “gap” teórico faz com que ele vá seguindo as modas da estaçãojurispru<strong>de</strong>ncial...., as modas da estação significam hoje, ao meu juízo, umgran<strong>de</strong> problema da magistratura. Para se passar num c<strong>on</strong>curso, <strong>de</strong> regra,<strong>de</strong>ve-se saber regras.... direito posto.... ou seja, quase nada da complexida<strong>de</strong>do fenômeno jurídico. Passei no c<strong>on</strong>curso da magistratura em 98 enão fosse estudar na aca<strong>de</strong>mia, c<strong>on</strong>tinuaria a ser um mero reprodutor <strong>de</strong>repositórios <strong>de</strong> jurisprudência.... açoitado, atualmente, pela lógica da gestão<strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s produtivas...., quase não se <strong>de</strong>cidindo mais nada... Todosnós sabemos! Não fosse a assessoria, hoje nós estaríamos perdidos. E aassessoria funci<strong>on</strong>a numa lógica <strong>de</strong> eficiência, para não termos sentençasreformadas... e gente, <strong>de</strong> regra, que tem qualificação, mas não é muitodiferente daquilo que se espera: produtivida<strong>de</strong> sem reflexão. Então nóstemos uma gestão hoje da eficiência, da eficiência tratada por um sistemaque enten<strong>de</strong> a pena como alguma coisa benéfica, capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>volver aor<strong>de</strong>m e a disciplina. É uma lógica que significa a morte e talvez seja essaa nossa gran<strong>de</strong> função, fazer morrer via sistema penal, agora com as entradasmaiores diante da proposta do novo Código Penal.78R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 72-79, out.-<strong>de</strong>z. 2012


Eu tenho uma proposta que é motivo <strong>de</strong> risos, até acho que po<strong>de</strong>ser mesmo. A lógica é assim: cabe quantos presos? 200. Tem quantasvagas? 50. Quantas varas criminais tem? 50. Um preso por vara. Invertera lógica. Você tem um limite <strong>de</strong> pena por mês. Só po<strong>de</strong> c<strong>on</strong><strong>de</strong>nar a 45anos. Ah, é? Não po<strong>de</strong> ser 50? Não! Tem que ser 45 porque o sistemanão aceita mais. Só c<strong>on</strong><strong>de</strong>na no limite que po<strong>de</strong> assimilar. É muito malucoisso?? É porque não estamos lá presos! O projeto, da forma queestá, além dos insuperáveis erros teóricos, significa criminalizar o cotidiano<strong>de</strong> maneira abusiva e incompatível com a Criminologia Crítica,ainda que atenda a uma or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> que mesmo os reformadores talveznem saibam. Mas a ignorância faz vítimas, sempre. Mais vale perecerpelos extremos do que pelas extremida<strong>de</strong>s, dizia um sujeito chamadoJean Baudrillard.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 72-79, out.-<strong>de</strong>z. 2012 79


Da Aplicação da Pena noAnteprojeto do CódigoPenal BrasileiroProf. Ms. Alci<strong>de</strong>s da F<strong>on</strong>seca NetoMestre em Direito pela UCAM, Juiz titular da 11ªVara Criminal da Comarca da Capital e Professor<strong>de</strong> Direito Penal da EMERJ, da Fundação Escola daDefensoria Pública e da PUC-RJ.“A melhor reforma do Direito Penal seria a <strong>de</strong> substituí-lo,não por um Direito Penal melhor, mas por qualquer coisa melhorque o Direito Penal”Gustav RadbruchFoi com muita alegria que recebi o c<strong>on</strong>vite para participar do SeminárioCrítico do Anteprojeto do Código Penal, organizado pela Escola daMagistratura do Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro.A realização do evento foi i<strong>de</strong>alizada pelos meus amigos, DesembargadorPaulo Bal<strong>de</strong>z e Juiz Rubens Casara, sob a coor<strong>de</strong>nação acadêmica<strong>de</strong> um dos maiores juristas <strong>de</strong>ste país, o querido Professor DoutorJuarez Tavares.Daí a satisfação <strong>de</strong> participar do seminário, com a missão <strong>de</strong> discutiracerca da aplicação das penas no citado Anteprojeto, sem no entanto tera pretensão <strong>de</strong> esgotar o assunto ou <strong>de</strong> discorrer sobre todos os aspectosdo novo texto, pois alguns p<strong>on</strong>tos ainda <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m <strong>de</strong> maior reflexão eseria prematuro e irresp<strong>on</strong>sável tecer certas críticas <strong>de</strong>sprovidas <strong>de</strong> maiormeditação.Assim que fiz a primeira leitura do novo texto, fiquei bastante preocupadocom os rumos do pensamento jurídico-penal no Brasil, pois verifi-80R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 80-93, out.-<strong>de</strong>z. 2012


quei, com certa perplexida<strong>de</strong>, que as premissas adotadas revelaram umai<strong>de</strong>ologia extremamente c<strong>on</strong>servadora, presente nos corações e mentesdos ilustres membros que compuseram a Comissão <strong>de</strong> Reforma.De fato, pu<strong>de</strong> perceber nitidamente que o gran<strong>de</strong> pilar do novotexto é um viés punitivo e encarcerador. Para tanto, basta afirmar queo instituto do livramento c<strong>on</strong>dici<strong>on</strong>al, o instrumento da execução penalque <strong>de</strong>sempenha um papel extremamente importante para proporci<strong>on</strong>arque o c<strong>on</strong><strong>de</strong>nado se reintegre o mais rapidamente ao seu meio social,simplesmente foi abolido.Em todos os países do mundo foram criados diversos recursos <strong>de</strong>sencarceradores,justamente diante da notória percepção <strong>de</strong> que a pena<strong>de</strong> prisão tem um efeito criminógeno e não exerce sua função aparente<strong>de</strong> recuperar o apenado.Além disso, outro sustentáculo teórico e punitivo no qual se baseiao Anteprojeto é a c<strong>on</strong>trovertida figura da reincidência penal, erigida àc<strong>on</strong>dição <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>ira “Prima D<strong>on</strong>na” do texto reformador.De fato, a reincidência não só foi mantida, como também teve osseus efeitos alargados, em prejuízo do réu, com a criação <strong>de</strong> uma subespécie:a reincidência <strong>de</strong>corrente <strong>de</strong> crime cometido com violência ou graveameaça à pessoa.Com efeito, ao tratar do sistema progressivo <strong>de</strong> cumprimento <strong>de</strong>pena, o Anteprojeto menci<strong>on</strong>a, em seu artigo 47, I, que a progressão ocorrerá<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> cumprido, no regime anterior, um terço da pena, em caso<strong>de</strong> reincidência.Mas logo <strong>de</strong>pois, no inciso III, alínea “a”, está prevista a necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> cumprimento, em regime anterior, da meta<strong>de</strong> da pena, quando o“c<strong>on</strong><strong>de</strong>nado for reinci<strong>de</strong>nte em crime praticado com violência ou graveameaça à pessoa ou em crime que tiver causado grave lesão à socieda<strong>de</strong>”.Nem é preciso aprofundar o tema para po<strong>de</strong>r afirmar que este últimoenunciado, “grave lesão à socieda<strong>de</strong>”, é vago, impreciso, subjetivo e que,com toda certeza, será resp<strong>on</strong>sável por muitas injustiças que serão cometidasem nome do movimento da Lei e da Or<strong>de</strong>m ou sob o manto dai<strong>de</strong>ologia da Defesa Social.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 80-93, out.-<strong>de</strong>z. 2012 81


Por outro lado, ao tratar do regime inicial <strong>de</strong> cumprimento dapena, mais uma vez resplan<strong>de</strong>cem a reincidência e a obrigação <strong>de</strong> queo crime seja cometido sem violência ou grave ameaça à pessoa, comoc<strong>on</strong>dições para que o réu tenha direito ao Regime Aberto (artigo 49, IIIdo Anteprojeto).Como se não bastassem todos os gravames causados pela reincidência,ela passa à categoria <strong>de</strong> circunstância prep<strong>on</strong><strong>de</strong>rante, uma vezque a atenuante relaci<strong>on</strong>ada à menorida<strong>de</strong> penal simplesmente <strong>de</strong>sapareceudo anteprojeto! A menorida<strong>de</strong> penal, verda<strong>de</strong>ira tradição do nossoor<strong>de</strong>namento jurídico, agora <strong>de</strong>saparece. Foi expurgada do novo texto.Para os membros da Comissão <strong>de</strong> Reforma, pouco importa se o indivíduo,maior <strong>de</strong> <strong>de</strong>zoito e menor <strong>de</strong> vinte e um anos, não tem a sua pers<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>psicossocial completa. Acrescente-se que a proeminência <strong>de</strong>sta atenuantesempre foi aceita, pacificamente, pela doutrina e pela jurisprudência<strong>de</strong> todos os Tribunais do país.Assim, com a inexplicável exclusão da menorida<strong>de</strong> penal, a reincidênciaassume, como já assinalado, o c<strong>on</strong>torno <strong>de</strong> circunstância prep<strong>on</strong><strong>de</strong>ranteno c<strong>on</strong>curso entre atenuantes e agravantes. Esta parece ter sido aintenção dos i<strong>de</strong>alizadores do projeto: Fazer com que a reincidência semprec<strong>on</strong>duza ao aumento da pena-base, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da presença<strong>de</strong> qualquer atenuante.E o que me causa ainda mais espécie é notar que na Exposição <strong>de</strong>Motivos do Anteprojeto é dito que houve a preocupação em incorporara jurisprudência dos Tribunais Superiores. Porém, a meu juízo – e afirmoaqui, não há <strong>de</strong> modo algum o objetivo <strong>de</strong> externar qualquer crítica <strong>de</strong>natureza pessoal aos membros da Comissão, mas apenas a <strong>de</strong> estabelecercríticas <strong>de</strong> índole i<strong>de</strong>ológica- os i<strong>de</strong>alizadores do Anteprojeto, ao que tudoindica, esqueceram-se <strong>de</strong> que muito em breve o Supremo <strong>Tribunal</strong> Fe<strong>de</strong>ralestará julgando a c<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong> da reincidência, c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>radapor muitos doutrinadores e magistrados como violadora dos princípios daculpabilida<strong>de</strong> e do n<strong>on</strong> bis in i<strong>de</strong>m. Assim, é interessante <strong>de</strong>stacar a poucaou nenhuma importância que a Comissão c<strong>on</strong>fere a este julgamento, hajavista que, <strong>de</strong>clarado o caráter inc<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>al da reincidência, o Anteprojetoper<strong>de</strong> um <strong>de</strong> seus principais alicerces teóricos.De outro lado, nota-se que um outro centro das atenções do Anteprojetoé o <strong>de</strong> punir mais severamente os crimes cometidos com violência82R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 80-93, out.-<strong>de</strong>z. 2012


ou grave ameaça à pessoa, esquecendo-se, talvez, os nobres membrosda Comissão, <strong>de</strong> que os crimes que envolvem a prática <strong>de</strong> corrupção, especialmentequando cometidos por agentes públicos, muito embora nãosejam executados mediante ameaça ou violência, causam muito mais malefíciosà socieda<strong>de</strong> do que a gran<strong>de</strong> maioria dos crimes patrim<strong>on</strong>iais, porexemplo.Para tanto, basta voltar os olhos para os <strong>de</strong>litos que ora são objeto<strong>de</strong> julgamento pelo Supremo <strong>Tribunal</strong> Fe<strong>de</strong>ral. Atualmente, hoje sãojulgados membros que pertenceram ao mais alto escalão da República eque, aparentemente, vinham sistematicamente lesando os cofres públicoshá muitos anos. Tais crimes, quando banalizados pelas práticas públicascorriqueiras, corroem o pouco <strong>de</strong> credibilida<strong>de</strong> que o Sistema Penalainda possui.Assim sendo, os critérios escolhidos para a imposição do regimeinicial e <strong>de</strong> progressão da pena, mais gravosos para o agente, produzirão,a médio prazo, o efeito <strong>de</strong> causar um encarceramento em larga escalaneste país e é sempre bom lembrar que o Brasil já é o segundo país – atrásapenas dos Estados Unidos- que mais <strong>de</strong>tentos possui, quase todos provenientesda classe subalterna e c<strong>on</strong><strong>de</strong>nados por crimes patrim<strong>on</strong>iais.Há que se indagar? É correta essa i<strong>de</strong>ologia c<strong>on</strong>servadora e punitivaque norteia a criação do novo Código Penal Brasileiro? A meu sentir, aresposta é negativa. Aliás, o Anteprojeto não só caminha na c<strong>on</strong>tramão dahistória, como também se afigura c<strong>on</strong>traditório com a legislação vigente,haja vista que a recente Lei nº 12.403, <strong>de</strong> 4 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2011, modificadora<strong>de</strong> vários dispositivos do Código <strong>de</strong> Processo Penal, teve o claro objetivo<strong>de</strong> diminuir o número <strong>de</strong> presos provisórios em nossas prisões. Ouseja, uma vez aprovado o Anteprojeto tal como foi apresentado, a políticacriminal brasileira estará se prop<strong>on</strong>do a diminuir o número <strong>de</strong> <strong>de</strong>tentosprovisórios e se esforçando ao máximo para aumentar os presos <strong>de</strong>finitivamentec<strong>on</strong><strong>de</strong>nados.Já no que c<strong>on</strong>cerne à forma <strong>de</strong> aplicação das penas, o anteprojetomanteve o sistema trifásico. No entanto, pelo exame do artigo 75 do citadotexto, novamente sobressai o seu caráter retrógrado e punitivo, eisque foi mantida a c<strong>on</strong>cepção <strong>de</strong>satualizada <strong>de</strong> uma finalida<strong>de</strong> retributivapreventivada pena.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 80-93, out.-<strong>de</strong>z. 2012 83


Mantém-se, <strong>de</strong>sse modo, a ultrapassada i<strong>de</strong>ologia da pena comocritério <strong>de</strong> retribuição. Assim sendo, sem a<strong>de</strong>ntrar nas teorias que procuram<strong>de</strong>slegitimar a pena <strong>de</strong> prisão, até porque não é esta a intenção dopresente trabalho, é possível c<strong>on</strong>statar que no Brasil ainda se preten<strong>de</strong>fundamentar a pena num caráter <strong>de</strong> mera retribuição, ou seja, a pena,principalmente a privativa <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, c<strong>on</strong>tinuará a ser entendida comoum ato <strong>de</strong> punição, <strong>de</strong> puro castigo.De acordo com o que é propugnado pela doutrina mo<strong>de</strong>rna, o c<strong>on</strong>ceito<strong>de</strong> reprovação <strong>de</strong>veria ser estruturado, ao menos programaticamente,na i<strong>de</strong>ia central <strong>de</strong> prevenção. Todavia, no atual Anteprojeto, a reprovaçãovem amparada como medida <strong>de</strong> punição e <strong>de</strong>sta forma reflete umpensamento ultrapassado e carcomido pelo tempo.Além disso, a reprovação, como medida <strong>de</strong> punição, representa umpensamento nitidamente inc<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>al, por ser incompatível com anossa Carta Política 1Assim sendo, diante dos princípios <strong>de</strong>mocráticos esculpidos emnossa C<strong>on</strong>stituição, é inadmissível preten<strong>de</strong>r que um magistrado imp<strong>on</strong>hauma sentença penal c<strong>on</strong><strong>de</strong>natória, cujo fundamento seja a retribuiçãoentendida como castigo. Na verda<strong>de</strong>, o critério <strong>de</strong> retribuição somentepo<strong>de</strong> assumir e refletir um caráter preventivo, atrelado umbilicalmenteao critério <strong>de</strong> culpabilida<strong>de</strong>, isto é, a pena <strong>de</strong>ve ser aplicada nos estritostermos da culpabilida<strong>de</strong> do agente e com o olhar voltado para a recuperaçãodo apenado.A título <strong>de</strong> comparação, é sempre importante o exame do Direito Comparadoe, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sta ótica, é essencial a leitura do Código Penal Alemão,editado em 1976, cujo parágrafo 46, está assim redigido: “a culpabilida<strong>de</strong> doautor será o fundamento da medição da pena. Deverão ser c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rados osefeitos <strong>de</strong>rivados da pena para a vida futura do autor na socieda<strong>de</strong>”. Vê-se,pois, que o Código Penal alemão, vigente há quase quarenta anos, fundamentaa aplicação da pena tão somente sob a perspectiva da prevenção,voltada para a recuperação do c<strong>on</strong><strong>de</strong>nado. E o referido Código, é precisoafirmar aqui, aboliu completamente o instituto da reincidência penal.1 “A referência à reprovação, no sentido <strong>de</strong> retribuição, como fundamento da pena é incompatível com um Estado<strong>de</strong>mocrático <strong>de</strong> direito subordinado a <strong>de</strong>terminados fins protetivos da pessoa, em atenção à sua dignida<strong>de</strong> e cidadania(Art. 1º, II e II, CF), ao seu bem-estar (art. 3º, IV, CF) e à prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II, CF)”.Tavares, Juarez. “Culpabilida<strong>de</strong> e individualização da pena” (Cem anos <strong>de</strong> reprovação. Ed. Revan. 1ª Edição. Rio <strong>de</strong>Janeiro. 2011. Página. 132).84R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 80-93, out.-<strong>de</strong>z. 2012


Enquanto isso, em terras brasileiras, no ano <strong>de</strong> 2012, é apresentadoao Senado Fe<strong>de</strong>ral um Anteprojeto que preten<strong>de</strong> gerir os c<strong>on</strong>flitos <strong>de</strong>interesse do século XXI, no qual ainda predomina a mensagem da penacomo instrumento <strong>de</strong> punição, castigo, vingança.Ultrapassado este p<strong>on</strong>to, cumpre examinar, neste passo, algumas dascircunstâncias judiciais, presentes no artigo 75 do citado Anteprojeto.Numa primeira leitura, encheu-me <strong>de</strong> alegria perceber que foramexcluídas as circunstâncias judiciais relaci<strong>on</strong>adas à “c<strong>on</strong>duta social”, “pers<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>”e aos “antece<strong>de</strong>ntes”.Como é sabido, o c<strong>on</strong>ceito <strong>de</strong> c<strong>on</strong>duta social, compreendido como“o comportamento do agente, no seio da socieda<strong>de</strong>”, <strong>de</strong>ve ser repudiadoe afastado por c<strong>on</strong>stituir-se num puro juízo moral, que não se coadunacom o princípio da culpabilida<strong>de</strong>. 2Além do mais, a menção à c<strong>on</strong>duta social do indivíduo representauma clara e odiosa manifestação <strong>de</strong> um Direito Penal do Autor, em c<strong>on</strong>traposiçãoao Direito Penal do Fato. Na verda<strong>de</strong>, aumentar a sanção combase na c<strong>on</strong>duta social é resp<strong>on</strong>sabilizar o agente por aquilo que ele é (oupor aquilo que se pensa que ele é) e não por aquilo que ele fez 3 .Além <strong>de</strong> tudo isso, parece-me anti<strong>de</strong>mocrático estabelecer umpostulado genérico <strong>de</strong> “boa c<strong>on</strong>duta social”, pois o padrão que indica osb<strong>on</strong>s comportamentos é c<strong>on</strong>struído a partir <strong>de</strong> valores pertencentes àclasse dominante. Será que possuíam boa c<strong>on</strong>duta social aquelas “pessoash<strong>on</strong>estas, <strong>de</strong>centes, cegas e <strong>de</strong>sastrosas que votaram em Hitler, noano <strong>de</strong> 1933? 4 .Já a circunstância representada pela pers<strong>on</strong>alida<strong>de</strong> do agente, assimcompreendida “como o c<strong>on</strong>junto <strong>de</strong> características exclusivas <strong>de</strong> cada2 “A C<strong>on</strong>stituição da República Fe<strong>de</strong>rativa do Brasil, que tem um <strong>de</strong> seus fundamentos na ‘dignida<strong>de</strong> da pessoahumana’, garantiu-lhe aut<strong>on</strong>omia moral a partir da inviolabilida<strong>de</strong> da liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> c<strong>on</strong>sciência e <strong>de</strong> crença, da proibição<strong>de</strong> toda privação <strong>de</strong> direitos em razão <strong>de</strong> c<strong>on</strong>vicção filosófica ou política, da livre manifestação <strong>de</strong> pensamentoe expressão <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> intelectual, artística, científica e <strong>de</strong> comunicação, e da inviolabilida<strong>de</strong> da intimida<strong>de</strong> e davida privada(artigo 5º, IV, V, VIII, IX e X). A primeira c<strong>on</strong>sequência disso é a absoluta interdição, para o Estado, <strong>de</strong>impor qualquer moral; aí resi<strong>de</strong> um in<strong>de</strong>scartável compromisso do Estado secularizado” (Batista, Nilo. Cem Anos <strong>de</strong>Reprovação. Ed. Revan. 1ª Edição. Rio <strong>de</strong> Janeiro. 2011, Páginas 173 e 174).3 “No momento da cominação da pena na sentença c<strong>on</strong><strong>de</strong>natória, o sistema revela toda sua perversida<strong>de</strong> ao admitiro emprego <strong>de</strong> elementos essencialmente morais, <strong>de</strong>sprovidos <strong>de</strong> significado, sem averiguabilida<strong>de</strong> probatória e,c<strong>on</strong>sequentemente, isentos <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> refutação empírica” (Carvalho, Salo De. Aplicação da Pena e Garantismo.Editora Lumen Juris. 3ª Edição. Rio <strong>de</strong> Janeiro. 2004. Páginas 31 e 32).4 Citação <strong>de</strong> Richard Rorty, menci<strong>on</strong>ada no livro <strong>de</strong> Alexandre Morais da Rosa, intitulado Decisão Penal: A bricolage<strong>de</strong> Significantes. Editora Lumen Juris. 1ª Edição. Rio <strong>de</strong> Janeiro. 2006. Página 352).R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 80-93, out.-<strong>de</strong>z. 2012 85


ser humano”, igualmente viola o princípio do Direito Penal do Fato, hajavista que, mais uma vez, o magistrado é chamado a emitir um juízo <strong>de</strong>valor moral sobre caracteres individuais do autor e não sobre a c<strong>on</strong>dutapor ele cometida, o que também ofen<strong>de</strong> o princípio c<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>al da Culpabilida<strong>de</strong>.Além disso, ao majorar a pena-base em face da pers<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>,resquício da etiologia positivista do século XIX, o juiz assume o papel <strong>de</strong>diagnosticar, radiografar o interior do indivíduo, c<strong>on</strong>quanto ele não tenhaqualquer c<strong>on</strong>hecimento técnico para fazê-lo, o que invariavelmente c<strong>on</strong>duzo magistrado a valer-se <strong>de</strong> termos vagos, imprecisos e genéricos 5 , oque impe<strong>de</strong> qualquer possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> refutação e comprovação, <strong>de</strong>ntrodo processo, culminando por traduzir-se em afr<strong>on</strong>ta aos princípios da AmplaDefesa e do C<strong>on</strong>traditório.Mas não param por aqui as críticas à aludida circunstância. O examenegativo da pers<strong>on</strong>alida<strong>de</strong> do réu também serve como instrumento paraque a pena seja regrada além dos limites da culpabilida<strong>de</strong>, o que tambémse c<strong>on</strong>trapõe aos princípios da legalida<strong>de</strong> e da proporci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong> 6 .Todavia, em que pese a eliminação <strong>de</strong> tais circunstâncias, minhaalegria <strong>de</strong>sapareceu ao perceber que os “antece<strong>de</strong>ntes” foram <strong>de</strong>slocadosda c<strong>on</strong>dição <strong>de</strong> circunstâncias judiciais e inseridos como agravantesgenéricas, c<strong>on</strong>soante se po<strong>de</strong> notar pela dicção do artigo 77, II.Entretanto, não houve um mero <strong>de</strong>slocamento sistemático, uma vezque agora os antece<strong>de</strong>ntes passam a ser <strong>de</strong>finidos da seguinte maneira:“os antece<strong>de</strong>ntes ao fato, assim c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rados as c<strong>on</strong><strong>de</strong>nações transitadasem julgado que não geram reincidência ou quando esta for <strong>de</strong>sc<strong>on</strong>si<strong>de</strong>radana forma do artigo 79, parágrafo único, <strong>de</strong>ste Código”.Na primeira hipótese não há maiores problemas, pois é hoje pacificamenteaceito que a sentença do primeiro crime, quando transite em julgadoapós a ocorrência do segundo <strong>de</strong>lito, sirva como indicativo <strong>de</strong> maus5 “Duvida-se, pois, da própria possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> c<strong>on</strong>hecimento da pers<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>, porque, afora a inexistência <strong>de</strong>um padrão para comparações, se rec<strong>on</strong>hece que ela é dinâmica, que nasce e se c<strong>on</strong>strói, permanentemente, como indivíduo, sempre à mercê dos estímulos e dos traumas <strong>de</strong> toda or<strong>de</strong>m” (Boschi, José Ant<strong>on</strong>io Paganella, ob. cit.,p. 173).6 “Inicialmente, po<strong>de</strong>-se dizer que a pers<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>, como critério <strong>de</strong> prevenção geral ou especial, não po<strong>de</strong> implicara fixação da pena além dos limites impostos pela culpabilida<strong>de</strong>, pois isso importaria em violação aos princípiosobjetivos da legalida<strong>de</strong> e da proporci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong> (Tavares, Juarez, ob. cit., p. 148.).86R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 80-93, out.-<strong>de</strong>z. 2012


antece<strong>de</strong>ntes, quando por ocasião da prolação da sentença c<strong>on</strong><strong>de</strong>natóriado segundo <strong>de</strong>lito.Mas a outra situação é extremamente perversa para com o réu. Naparte em que está proposta que haverá maus antece<strong>de</strong>ntes quando a c<strong>on</strong><strong>de</strong>naçãotransitada em julgado for <strong>de</strong>sc<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rada, o que se está afirmandoé que, agora, através <strong>de</strong> lei, a chamada prescrição quinquenal da reincidênciapassará a ser c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rada como fator <strong>de</strong> maus antece<strong>de</strong>ntes.É sabido, por um lado, que a <strong>de</strong>nominada prescrição quinquenal dareincidência já era entendida como indicativo <strong>de</strong> maus antece<strong>de</strong>ntes, <strong>de</strong>acordo com a jurisprudência pacífica do Supremo <strong>Tribunal</strong> Fe<strong>de</strong>ral, mashá uma gran<strong>de</strong> diferença entre jurisprudência e lei. A jurisprudência, pelasua própria natureza, po<strong>de</strong> modificar-se rapidamente. A lei, ao c<strong>on</strong>trário,é feita para ser perene. Assim sendo, enquanto entendida como mera jurisprudência,dito pensamento po<strong>de</strong>ria ser rapidamente modificado, <strong>de</strong>acordo com o que clama, inclusive, toda a doutrina penal brasileira. Naverda<strong>de</strong>, a jurisprudência dominante <strong>de</strong> hoje po<strong>de</strong> nem existir amanhã.Não obstante, transformada em lei, referido posici<strong>on</strong>amento perduraráe se incorporará ao arcabouço jurídico-penal brasileiro, em claroprejuízo para o cidadão.De fato, não se está discutindo sobre uma questão <strong>de</strong> menor importância.Muito ao c<strong>on</strong>trário. Sempre sustentei a arbitrarieda<strong>de</strong> do posici<strong>on</strong>amentodominante por vislumbrar nele uma clara afr<strong>on</strong>ta à lei vigente,haja vista que, se a prescrição da reincidência po<strong>de</strong> transformar-se emmaus antece<strong>de</strong>ntes, <strong>de</strong> que adianta para o réu a ocorrência da prescrição,cuja característica é apagar, é fazer <strong>de</strong>saparecer os efeitos jurídicos antesexistentes?Doravante, se aprovado o Anteprojeto, o indivíduo que já é estigmatizadopor sua c<strong>on</strong>dição <strong>de</strong> reinci<strong>de</strong>nte, c<strong>on</strong>tinuará a ser taxado como<strong>de</strong>linquente até o final <strong>de</strong> sua vida. O rótulo discriminatório apenas mudará<strong>de</strong> nome. É a isso que se chama processo <strong>de</strong> seletivida<strong>de</strong>. O indivíduocomeça a se comportar, na vida social, como um ser diferente, comoalguém que carrega uma mácula e que o distingue dos <strong>de</strong>mais. Ele passa aser visto e a se comportar como se estivesse em posição <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>no meio em que vive.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 80-93, out.-<strong>de</strong>z. 2012 87


A c<strong>on</strong>sequência disso, segundo mostram inúmeras pesquisas, é quedito indivíduo acaba iniciando uma verda<strong>de</strong>ira carreira criminosa, vistoque o próprio Estado não lhe <strong>de</strong>ixa outra opção 7 .E o mais grave, o que a mim mais causa indignação é que, <strong>de</strong> acordocom o novo texto, os maus antece<strong>de</strong>ntes adquirem uma c<strong>on</strong>otação perpétua,vez que não foi previsto um termo final para a abolição dos mausantece<strong>de</strong>ntes, neste caso.Quanto às atenuantes, o mais significativo, como já ap<strong>on</strong>tado, é o<strong>de</strong>saparecimento da menorida<strong>de</strong>. Mas a ida<strong>de</strong> do idoso, c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rado àdata da sentença, como fator <strong>de</strong> atenuante, aumenta para setenta e cincoanos. Quantos c<strong>on</strong><strong>de</strong>nados ainda estarão vivos para receber a aludidaatenuante?Importa também <strong>de</strong>stacar o artigo 76 do Anteprojeto, que certamentese transformará em objeto <strong>de</strong> muita c<strong>on</strong>trovérsia na doutrina e najurisprudência, se aprovado. Ele trata da fixação <strong>de</strong> alimentos e está assimredigido: “Na hipótese <strong>de</strong> homicídio doloso ou culposo ou <strong>de</strong> outro crimeque afete a vida, o juiz, ao proferir sentença c<strong>on</strong><strong>de</strong>natória, fixará alimentosaos <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes da vítima, na forma da lei civil”.Se é na forma da lei civil, cuida-se do artigo 948, II, do Código Civil,isto é, fixação <strong>de</strong> pensão. Assim, é absolutamente previsível que logosurjam aqueles que dirão que o artigo é inc<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>al por violação aoPrincípio da Correlação, por vulneração ao Princípio do Devido ProcessoLegal, etc.Mas se o juiz preten<strong>de</strong>r se esforçar para aplicar o ap<strong>on</strong>tado dispositivo,preocupado com a situação dos <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes da vítima, aindaassim ocorrerão objeções e discussões. Por exemplo, quem terá legitimida<strong>de</strong>para requerer? O Ministério Público ou o Assistente <strong>de</strong> Acusação?Porém o que me parece um gran<strong>de</strong> complicador é o fato <strong>de</strong> que o juizcriminal terá <strong>de</strong> expandir a instrução. Afinal, o valor da pensão <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ráda prova dos ganhos da vítima. Tudo isso à luz do c<strong>on</strong>traditório e da ampla7 “Não só as normas <strong>de</strong> direito penal se formam e se aplicam seletivamente, refletindo as relações <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>existentes, mas o direito penal exerce, também, uma função ativa, <strong>de</strong> reprodução e <strong>de</strong> produção, com respeito às relações<strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>. Em primeiro lugar, a aplicação seletiva das sanções penais estigmatizantes, e, especialmenteo cárcere, é um momento superestrutural essencial para a manutenção da escala vertical da socieda<strong>de</strong>. Incidind<strong>on</strong>egativamente sobretudo sobre o status social dos indivíduos pertencentes aos estratos sociais mais baixos, elaage <strong>de</strong> modo a impedir sua ascensão social” (Baratta, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. 2ªedição. 1999, ed. Freitas Bastos. Rio <strong>de</strong> Janeiro. p. 168).88R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 80-93, out.-<strong>de</strong>z. 2012


<strong>de</strong>fesa. Deste modo, a instrução criminal, c<strong>on</strong>cebida para obe<strong>de</strong>cer aosprincípios da c<strong>on</strong>centração, oralida<strong>de</strong> e celerida<strong>de</strong>, terá necessariamenteque se al<strong>on</strong>gar e não po<strong>de</strong>rá ser resolvida através <strong>de</strong> uma audiência una,como <strong>de</strong>termina a atual lei processual penal, até porque a instrução teránatureza mista, isto é, também será uma instrução <strong>de</strong> matéria cível. Antevejosérios problemas, especialmente nas hipóteses <strong>de</strong> réus presos. Restasaber como se comportará a jurisprudência dos Tribunais.Uma outra questão preocupante, porém perfeitamente compreensíveldiante dos i<strong>de</strong>ais c<strong>on</strong>servadores do Anteprojeto, é verificar que todasas agravantes relaci<strong>on</strong>adas ao c<strong>on</strong>curso <strong>de</strong> pessoas agora se transformamem causa especial <strong>de</strong> aumento <strong>de</strong> pena, <strong>de</strong> acordo com o artigo 38 § 4º.E o pior <strong>de</strong> tudo é que a fração <strong>de</strong> aumento irá <strong>de</strong> um sexto a dois terços,ou seja, aquilo que hoje é agravante e que po<strong>de</strong> até ser compensado comuma atenuante, passa a ter aplicação obrigatória.Já nas hipóteses <strong>de</strong> redução obrigatória da pena, o projeto sempreé espartano; as reduções da reprimenda no projeto são as menorespossíveis, como no caso <strong>de</strong> diminuição da reprimenda nas hipóteses <strong>de</strong>rec<strong>on</strong>hecimento do dolo eventual, cuja redução é estabelecida em atéum sexto (artigo 20). De acordo com a minha compreensão, portanto, apossibilida<strong>de</strong> abstrata <strong>de</strong> imposição <strong>de</strong> penas tão elevadas viola os Princípiosda Proporci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>, da Culpabilida<strong>de</strong> e da Dignida<strong>de</strong> da PessoaHumana.Prosseguindo com a leitura, no artigo 84 começa o cálculo da pena,com a manutenção do sistema trifásico, mas com a particularida<strong>de</strong> <strong>de</strong>que as circunstâncias agravantes e atenuantes observem “os limites legaiscominados”.O que <strong>de</strong>sperta a atenção aqui, mais uma vez, é a preocupaçãocom a jurisprudência dos Tribunais Superiores, ou melhor, com a jurisprudênciados Tribunais Superiores <strong>de</strong>sfavorável aos réus. Mais uma vez, oque antes era apenas jurisprudência passa a ser lei. Explico.O texto legal <strong>de</strong>termina que o juiz, ao aplicar a pena-base, nãopossa reduzi-la aquém do mínimo legal, em razão das atenuantes. Ora,em que pese este respeitável entendimento, a sanção <strong>de</strong>ve ser reduzidaaquém do mínimo legal para que ela não seja aplicada acima da medidaR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 80-93, out.-<strong>de</strong>z. 2012 89


<strong>de</strong> culpabilida<strong>de</strong> do agente. Pena que não esteja atrelada à culpabilida<strong>de</strong>não é pena. É castigo 8 .Porém, aqueles que não c<strong>on</strong>cordam com o entendimento por mimesposado, normalmente o rebatem com a afirmação <strong>de</strong> que a pena tambémnão será aumentada, além do máximo, pela agravante. C<strong>on</strong>tudo, asduas situações, que aparentemente c<strong>on</strong>stituem os dois lados da mesmamoeda, na verda<strong>de</strong> se apresentam completamente diferentes.O impedimento para a elevação da pena, além do máximo, pelaagravante, está relaci<strong>on</strong>ado ao Princípio da Proporci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>.De fato, é completamente <strong>de</strong>sarrazoado supor que o juiz vá aplicara reprimenda no máximo para, <strong>de</strong>pois, elevá-la em razão <strong>de</strong> uma agravante.Entretanto, o mais grave, ilegal e injusto é trazer as duas situaçõespara o mesmo patamar jurídico com o intuito <strong>de</strong> igualá-las. Isto porque,em razão do princípio da Proporci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>, rarissimamente o magistradoaplica a pena no máximo cominado abstratamente à espécie. Todavia,com muita frequência, por rec<strong>on</strong>hecer um nível normal <strong>de</strong> culpabilida<strong>de</strong><strong>de</strong>corrente da violação do tipo penal, o magistrado aplica a pena-base emsua quantida<strong>de</strong> mínima. Disso <strong>de</strong>corre que a equiparação equivocada dasduas situações é extremamente prejudicial ao réu e claramente violadorados princípios da Culpabilida<strong>de</strong> e da Individualização da pena.Mas não termina aqui. Há mais.Outro p<strong>on</strong>to que c<strong>on</strong>tinua a merecer duras críticas é o posici<strong>on</strong>amento<strong>de</strong> que o óbice para reduzir a sanção aquém do mínimo legal, pelaatenuante, <strong>de</strong>corre do princípio da legalida<strong>de</strong>.Como é possível se falar em violação do princípio da Reserva Legalse as atenuantes são aplicadas na segunda fase <strong>de</strong> regramento e não noprimeiro estágio <strong>de</strong> dosimetria? De fato, ao aplicar a pena-base, está o juizadstrito aos parâmetros abstratamente previstos pelo legislador, <strong>de</strong> modoque não po<strong>de</strong> ele estabelecer qualquer sanção que não esteja inserida naescala penal previamente prevista em lei.8 “Nesse aspecto, aten<strong>de</strong>ndo a que a pena não po<strong>de</strong> ultrapassar a medida da culpabilida<strong>de</strong>, nada obsta a que ascircunstâncias atenuantes e os critérios <strong>de</strong> prevenção geral e especial possam c<strong>on</strong>duzir à diminuição da própriapena-base, inclusive aquém do mínimo cominado ao <strong>de</strong>lito. A pena-base po<strong>de</strong>, assim, ser diminuída pelas atenuantesgenéricas e pelos critérios <strong>de</strong> prevenção geral e especial relaci<strong>on</strong>ados no artigo 59 do CP”. (Tavares, Juarez, CemAnos <strong>de</strong> Reprovação. Ed. Revan, 2011, p. 139).90R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 80-93, out.-<strong>de</strong>z. 2012


A partir <strong>de</strong>ste p<strong>on</strong>to, entretanto, a dosimetria prossegue através <strong>de</strong>um processo trifásico, em que a segunda etapa é justamente a fixação dasatenuantes e das agravantes.Assim sendo, não é lógico nem jurídico que o juiz permaneça engessadoà pena abstratamente prevista em lei, justamente porque, nasegunda fase <strong>de</strong> dosimetria, ele tem <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> regrar e individualizar apena, com a obrigação <strong>de</strong> respeitar, sobretudo, as regras c<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>ais<strong>de</strong> cumprimento obrigatório.Além disso, a menci<strong>on</strong>ada redução é operada em benefício do réu,<strong>de</strong> modo que se apresenta como absolutamente falsa a assertiva <strong>de</strong> quehaveria vulneração ao princípio do nullum crimen nulla poena sine lege,caso a pena fosse trazida para aquém do mínimo legal, uma vez que estecitado “valor” c<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>al, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os tempos do Rei João Sem Terra, foicriado para limitar e até para impedir o arbitrário exercício do jus puniendiestatal, em <strong>de</strong>trimento do cidadão e não po<strong>de</strong> este mesmo princípio serutilizado para negar um direito legalmente assegurado a todo cidadão queeventualmente esteja na posição <strong>de</strong> réu numa ação penal. 9Em outras palavras, afigura-se como uma inaceitável inversão <strong>de</strong>valores que um princípio c<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>al cunhado para proteger o cidadão,c<strong>on</strong>tra o Estado, possa agora ser utilizado c<strong>on</strong>tra o mesmo cidadão, a favordo Estado!!!Por outro lado, negar a ap<strong>on</strong>tada redução também c<strong>on</strong>duz à violaçãodo princípio c<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>al da Individualização da Pena, como sepo<strong>de</strong> observar do seguinte exemplo: Imagine-se que uma ação penal sejaproposta em face <strong>de</strong> três réus e que, ao final, os três acusados sejam c<strong>on</strong><strong>de</strong>nados,pelo mesmo crime, em coautoria <strong>de</strong>litiva. O magistrado aplica,então, a pena mínima para os três e esta se torna <strong>de</strong>finitiva. Porém, o primeiroc<strong>on</strong>fessou, o segundo é maior <strong>de</strong> setenta e cinco anos e o terceir<strong>on</strong>ão possui qualquer atenuante a seu favor. Indaga-se: É justo, é legal, é legítimoque os três acusados recebam a mesma reprimenda simplesmentepor causa <strong>de</strong> uma vedação inc<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>al, imposta pela jurisprudência eque agora se quer referendar através do Anteprojeto do Código Penal?9 Com efeito, o Superior <strong>Tribunal</strong> <strong>de</strong> Justiça editou o verbete <strong>de</strong> súmula nº 231 e através <strong>de</strong>le impediu que a penabasefosse reduzida aquém do mínimo legal como <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> qualquer atenuante, ao argumento <strong>de</strong> que aalegada redução criaria um sistema <strong>de</strong> “ampla in<strong>de</strong>terminação que é incompatível com o princípio da reserva legal epossibilita c<strong>on</strong>stantes tratamentos infundadamente diferenciados” (Recurso Especial nº 146.056/RS).R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 80-93, out.-<strong>de</strong>z. 2012 91


Assim, mais importante do que qualquer Anteprojeto, qualquer artigo<strong>de</strong> lei, súmula, ou jurisprudência com força <strong>de</strong> repercussão geral, é oestrito cumprimento <strong>de</strong> nossa C<strong>on</strong>stituição da República, <strong>de</strong> modo queserá sempre possível a citada redução da pena sempre que for necessárioindividualizá-la e a<strong>de</strong>quá-la aos limites da culpabilida<strong>de</strong> do agente.Millôr Fernan<strong>de</strong>s disse uma vez que “o problema não é apenas caminharna estrada certa. Temos que arriscar também na c<strong>on</strong>tramão”. Esteé o procedimento que procuro adotar. Trilhar muitas vezes pela c<strong>on</strong>tramãopara chegar ao lugar certo.Nesta altura, como ressaltei inicialmente, é preciso dizer que nãoprocurei examinar todos os aspectos do novo texto, até porque o presenteartigo é fruto da palestra que proferi no Seminário Crítico da Reformado Código Penal e, evi<strong>de</strong>ntemente, havia uma limitação <strong>de</strong> tempo.Portanto, prosseguindo ainda com relação a um p<strong>on</strong>to específico,que é o instituto do crime c<strong>on</strong>tinuado, verda<strong>de</strong>ira forma especial <strong>de</strong> c<strong>on</strong>curso<strong>de</strong> crimes, pu<strong>de</strong> observar que o Anteprojeto per<strong>de</strong>u uma gran<strong>de</strong>oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aperfeiçoar, <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnizar tão importante instrumento<strong>de</strong> aplicação das penas.Efetivamente, o novo texto mantém a menção aos “crimes da mesmaespécie”, principal núcleo <strong>de</strong> referência da estrutura típica da c<strong>on</strong>tinuida<strong>de</strong><strong>de</strong>litiva, sem que tenha havido qualquer preocupação com uma nova <strong>de</strong>finiçãosobre o seu alcance, <strong>de</strong> forma que a expressão “crimes da mesmaespécie”, cuja função é produzir tipicida<strong>de</strong>s homogêneas, c<strong>on</strong>tinuará a ser<strong>de</strong>finida como sempre o foi <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> quarenta do século passado,isto é, englobando somente os crimes previstos no mesmo dispositivo legal,incluindo-se aí os tentados, c<strong>on</strong>sumados ou qualificados 10 .Entretanto, com o passar dos anos, a maioria esmagadora dos doutrinadoresbrasileiros, com a c<strong>on</strong>tribuição <strong>de</strong>ste autor 11 , passou a sustentarque os crimes da mesma espécie não só se c<strong>on</strong>stituem naqueles quelesi<strong>on</strong>am o mesmo bem jurídico, como também nos que apresentam homogeneida<strong>de</strong>objetiva, isto é, uma afinida<strong>de</strong> modal que <strong>de</strong>ve envolver os<strong>de</strong>litos sequenciais que compõem o crime c<strong>on</strong>tinuado.10 Neste sentido: Hungria, Néls<strong>on</strong>. Crime c<strong>on</strong>tinuado. Novas Questões Jurídico-penais. Rio <strong>de</strong> Janeiro, EditoraNaci<strong>on</strong>al <strong>de</strong> Direito, 1945, p. 99.11 Crime C<strong>on</strong>tinuado. Rio <strong>de</strong> Janeiro. Editora Lumen Juris. 2004, p. 84 a 86.92R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 80-93, out.-<strong>de</strong>z. 2012


Na verda<strong>de</strong>, não era mesmo possível esperar o surgimento <strong>de</strong> umare<strong>de</strong>finição mais liberal e abrangente, afinada com o pensamento mo<strong>de</strong>rno,pois isso propiciaria c<strong>on</strong>ferir maior amplitu<strong>de</strong> ao referido instituto,justamente o que não preten<strong>de</strong>u fazer a Comissão <strong>de</strong> juristas.Com efeito, a manutenção do texto antigo está a serviço do caráterpunitivo do Anteprojeto e a maior prova disso é <strong>de</strong> que houve mudançasem relação ao crime c<strong>on</strong>tinuado, nos termos do § 2º do artigo 88, com oclaro objetivo <strong>de</strong> reduzir o seu âmbito <strong>de</strong> incidência.Segundo o novo texto, ele não se aplicará mais aos crimes dolososque afetem a vida, bem como ao estupro.Dessa maneira, os membros da Comissão aten<strong>de</strong>m aos clamoresda opinião pública – talvez fosse melhor chamá-la <strong>de</strong> “opinião publicada”-uma vez que os meios <strong>de</strong> comunicação procuram induzir as massas a acreditarna falácia <strong>de</strong> que, quanto maior a pena, melhor estará protegida asocieda<strong>de</strong>.Assim sendo, a opção pela aplicação cumulativa das penas, nos casosjá citados, causará o incremento <strong>de</strong> sanções mais duras, quase sempre<strong>de</strong>sproporci<strong>on</strong>ais e <strong>de</strong>sumanas.Desta maneira, mesmo correndo o risco <strong>de</strong> ser repetitivo, cabemais uma vez a indagação: On<strong>de</strong> po<strong>de</strong>m ser enc<strong>on</strong>trados, no Anteprojeto,os princípios c<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>ais da Proporci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>, Culpabilida<strong>de</strong> e Humanida<strong>de</strong>?Talvez eu não esteja procurando nos lugares certos ou, então,talvez os meus c<strong>on</strong>ceitos sobre os referidos princípios estejam <strong>de</strong>fasadosou equivocados.Por <strong>fim</strong>, eu encerro o meu escrito com a nítida intenção <strong>de</strong> enfatizaros meus temores e as minhas preocupações com o novo texto através doqual se preten<strong>de</strong> alterar o Código Penal brasileiro.Porém, tenho a mais absoluta certeza <strong>de</strong> que muitos juristas, quasetodos mais ilustrados do que eu, também caminham na mesma direção:Ap<strong>on</strong>tar, fundamentadamente, o viés punitivo <strong>de</strong> um Anteprojeto<strong>de</strong> Código Penal que a socieda<strong>de</strong> brasileira não precisa e muito menosmerece.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 80-93, out.-<strong>de</strong>z. 2012 93


A Política Criminal daExclusão na ReformaProf. Dr. Alexandre Fabiano Men<strong>de</strong>sDoutor em Direito da Cida<strong>de</strong> pela Universida<strong>de</strong> doEstado do Rio <strong>de</strong> Janeiro - UERJ. Mestre em Criminologiapela Universida<strong>de</strong> Cândido Men<strong>de</strong>s - UCAM.Professor <strong>de</strong> Direito Urbanístico - PUC/RJ. Coeditor da<str<strong>on</strong>g>Revista</str<strong>on</strong>g> Lugar Comum: Estudos <strong>de</strong> Mídia, Cultura eDemocracia.Queria agra<strong>de</strong>cer, antes <strong>de</strong> qualquer coisa, o c<strong>on</strong>vite. Acho que éuma ótima oportunida<strong>de</strong> po<strong>de</strong>rmos discutir o Código Penal. Muito meh<strong>on</strong>ra estar aqui fazendo essa intervenção e queria cumprimentar os colegas<strong>de</strong> mesa e também o público presente.Bom, claro que o tema geral seria o da política da exclusão, mas sóirei c<strong>on</strong>centrar um pouco o foco no crime <strong>de</strong> terrorismo, que veio previst<strong>on</strong>o projeto <strong>de</strong> reforma. Obviamente, é um tema polêmico, eu acho quenão é por acaso que <strong>de</strong>vamos trabalhar esse assunto, pois o tipo <strong>de</strong> terrorism<strong>on</strong>ão é uma mera previsão <strong>de</strong> mais um crime, mas muito mais umadinâmica <strong>de</strong> trabalhar o direito penal e processo penal e, num c<strong>on</strong>juntogeral, o uso legítimo da força. Na verda<strong>de</strong>, ele não é apenas um crime, eleé uma forma <strong>de</strong> repensar – até infelizmente – alguns dispositivos ligados àpolítica criminal, por isso acho importante falar um pouco sobre ele.Antes <strong>de</strong> mais nada, vou falar também do meu p<strong>on</strong>to <strong>de</strong> vista; eusou professor <strong>de</strong> Direito Urbanístico, aí vocês se perguntam o porquê <strong>de</strong>um professor <strong>de</strong> Direito Urbanístico estar falando <strong>de</strong> Direito Penal. Na verda<strong>de</strong>,eu trabalho muito com movimento social urbano, principalmente apartir do trabalho que tive na Defensoria Pública, no Núcleo <strong>de</strong> Terras eHabitação. Durante quatro anos c<strong>on</strong>heci toda essa luta e acabei cada vezmais entusiasmado com a área e hoje eu ocupo a posição um pouco estranha<strong>de</strong> falar <strong>de</strong> Política Criminal e um pouco <strong>de</strong> Política Urbana também.Em primeiro lugar, a melhor maneira <strong>de</strong> se chegar a um <strong>de</strong>bate sobreterrorismo é falar não apenas da sua tipicida<strong>de</strong>, não apenas da sua94R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 94-107, out.-<strong>de</strong>z. 2012


previsão, mas também sobre a visão <strong>de</strong> política que há por <strong>de</strong>trás do crime<strong>de</strong> terrorismo.Desse modo, eu apresentarei alguns pressupostos da chamadadoutrina <strong>de</strong> segurança. Acho muito importante o que se falou pela manhãsobre uma forma dogmática sobre a Parte Geral, em referência à palestrado meu amigo Tiago Joffily que tratou muito bem <strong>de</strong> algumas mudançassobre a <strong>de</strong>finição, a tentativa e o princípio da lesivida<strong>de</strong>, que cada vezmais ampliam esses c<strong>on</strong>ceitos para uma visão <strong>de</strong> potencialida<strong>de</strong>, e não <strong>de</strong>ato. Cada vez mais o Direito Penal se aproxima <strong>de</strong>ssa mera potencialida<strong>de</strong>.Isso foi bem estudado pela manhã, não vou precisar reprisar isso.Não há como trabalhar isso <strong>de</strong> uma maneira simplesmente dogmática;não é uma escolha teórica que <strong>de</strong> repente foi feita porque alguémacha que algum jurista tem atributos melhores do que outro e faz essaescolha, mas é uma visão <strong>de</strong> política e <strong>de</strong> segurança que vem até mesmosendo sedimentada no Direito Internaci<strong>on</strong>al e na Política Internaci<strong>on</strong>al.O primeiro p<strong>on</strong>to que nós temos que levar em c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>ração é oda mutação com que já trabalhei há quinze anos na teoria política, que éexatamente a passagem do Estado-Nação para um movimento <strong>de</strong> globalização.Posso citar aquilo que alguns autores – um que eu gosto que é oAnt<strong>on</strong>io Negri – chamam <strong>de</strong> Império, c<strong>on</strong>ceito que po<strong>de</strong>ria explicar bema passagem do momento em que o Estado-Nação, não que ele <strong>de</strong>ixe <strong>de</strong>existir, começa a trabalhar com um arranjo, que não é um arranjo próprio<strong>de</strong> soberania naci<strong>on</strong>al, mas um arranjo global.E, em segundo lugar – claro que a política não trabalha sozinha – háuma distribuição dos mecanismos <strong>de</strong> produção, dos arranjos produtivos,que diluem a ec<strong>on</strong>omia, as unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> produção por todo território global.Por exemplo, meu celular é m<strong>on</strong>tado na China e o <strong>de</strong>sign é da Califórnia;isso mostra como é a ec<strong>on</strong>omia hoje, o c<strong>on</strong>teúdo imaterial <strong>de</strong>le écaliforniano e o c<strong>on</strong>teúdo material é chinês.É importante fazer essa menção rápida, porque não posso per<strong>de</strong>rmuito tempo. O Código Penal em vários momentos traz para figuras comoo terrorismo uma proteção muito maior, <strong>de</strong> uma proprieda<strong>de</strong> imaterial,isso faz parte <strong>de</strong>sse arranjo, que faz parte <strong>de</strong> acordos e discussões queac<strong>on</strong>tecem até no âmbito internaci<strong>on</strong>al. Po<strong>de</strong>-se até pensar que há umaproteção menor com relação ao patrimônio, as penas diminuíram comR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 94-107, out.-<strong>de</strong>z. 2012 95


elação ao roubo, furto, mas também há uma nova entrada na nova ec<strong>on</strong>omiadas ilegalida<strong>de</strong>s, vamos dizer assim, <strong>de</strong> uma nova proteção que éantecipada pelo Projeto. Com relação à proprieda<strong>de</strong> imaterial, por exemplo,há uma preocupação do novo código com a questão da re<strong>de</strong>, da informática,do ciberterrorismo, uma proteção da proprieda<strong>de</strong> imaterial, quefaz parte hoje, da produção do capitalismo.O que nos interessa aqui, primeiro, é um c<strong>on</strong>ceito que tem a vercom o terrorismo, que é o Estado permanente <strong>de</strong> guerra. No livro Multidão,mais uma vez citando o Professor Ant<strong>on</strong>io Negri, está posta a seguintequestão: “Uma das c<strong>on</strong>sequências <strong>de</strong>sse novo tipo <strong>de</strong> guerra é que oslimites da guerra se tornam in<strong>de</strong>terminados em termos espaciais e temporais.A guerra é <strong>de</strong> uma época antiga, c<strong>on</strong>tra um Estado-Nação e tinhaclaras <strong>de</strong>limitações espaciais e temporais. A guerra hoje em dia, em c<strong>on</strong>traste,se dá c<strong>on</strong>tra um c<strong>on</strong>ceito ou c<strong>on</strong>tra um c<strong>on</strong>junto <strong>de</strong> práticas, maisou menos como uma guerra <strong>de</strong> religião, e não tem limites.”O que ele está querendo dizer é que os Estados Unidos quando vãobombar<strong>de</strong>ar o Afeganistão não diz que está em guerra c<strong>on</strong>tra o Afeganistão,ele diz que está em guerra c<strong>on</strong>tra um grupo terrorista, ele diz que estáem guerra c<strong>on</strong>tra uma prática, que, eventualmente, ele entra em guerracom aquele território para libertar aquele povo <strong>de</strong>sse grupo terrorista.Isso muda completamente a visão <strong>de</strong> guerra no ambiente internaci<strong>on</strong>al.Isso está no centro da <strong>de</strong>scrição do terrorismo.Tem um artigo <strong>de</strong> R<strong>on</strong>ald Dworkin, escrito dois anos <strong>de</strong>pois doatentado às Torres Gêmeas, que mostra muito bem isso. Os Estados Unidosuma hora falam que há uma guerra, mas não é bem uma guerra; elesaté criaram um terceiro tipo <strong>de</strong> figura, que é o combatente ilegal que nãoestá previsto na C<strong>on</strong>venção <strong>de</strong> Genebra, que não é um soldado nem umcivil. Essa in<strong>de</strong>terminação é uma das características principais <strong>de</strong>ssa c<strong>on</strong>junturapara fugir da C<strong>on</strong>venção <strong>de</strong> Genebra. E, para fugir da aplicação direitopenal cria-se a figura do combatente ilegal, fruto exatamente <strong>de</strong>ssac<strong>on</strong>fusão que é o estado permanente <strong>de</strong> guerra, em que não se sabe maisqual é o limite temporal e espacial.Há uma c<strong>on</strong>fusão, há uma recusa <strong>de</strong> trabalhar com c<strong>on</strong>ceitos queeram tradici<strong>on</strong>ais, tais como inimigo externo ou as chamadas classes pe-96R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 94-107, out.-<strong>de</strong>z. 2012


igosas. Hoje, não há como <strong>de</strong>terminar <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sse paradigma, o que oEstado-Nação fazia antes <strong>de</strong>finia um inimigo externo, que era outro país,e internamente dizia que tinha problemas com classes perigosas, compessoas que causavam algum distúrbio, cometiam alguns crimes, eramsediciosas. Hoje, as coisas se misturaram; tanto é que um cidadão po<strong>de</strong>ser muito bem c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rado um inimigo <strong>de</strong>ntro do seu próprio Estado.Então, aquela visão antiga <strong>de</strong> que o cidadão que colaborasse como inimigo externo é o traidor, mas, por outro lado, diante <strong>de</strong> um inimigoexterno po<strong>de</strong>ríamos até formar um exército com as classes perigosas, quefoi muito feito, vamos pegar a <strong>de</strong>liquência para formar um exército, paraajudar no exército, já que nosso inimigo é externo, essa dicotomia nãofunci<strong>on</strong>a mais.E há uma série <strong>de</strong> c<strong>on</strong>sequências importantes <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ssa visão. Euma <strong>de</strong>las é que exatamente por essa distinção não funci<strong>on</strong>ar mais, existeuma insegurança total com relação à presença <strong>de</strong>sse perigo, ou seja, operigo do terrorismo está em todos os lugares, em todos os momentos,ele po<strong>de</strong> aparecer em qualquer momento. Essa é inclusive uma frase doD<strong>on</strong>ald Rumsfeld, Secretário <strong>de</strong> Defesa dos Estados Unidos. Diz ele: “Enfrentamosnesse novo século um sério <strong>de</strong>safio, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r nosso país c<strong>on</strong>trao <strong>de</strong>sc<strong>on</strong>hecido, um certo invisível e inesperado.” Ele está falando exatamentesobre o terrorismo. O inimigo se torna da or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> uma presençaque, ao mesmo tempo, é ausente, po<strong>de</strong> estar em todos os lugares.E, por outro lado, esse medo se difun<strong>de</strong>, a presença do inimigo sedifun<strong>de</strong>, você há uma chamada para colaboração global <strong>de</strong> toda humanida<strong>de</strong>c<strong>on</strong>tra esse crime. Porque é importante dizer que o perigo se difun<strong>de</strong>;a tendência é que as noções <strong>de</strong> periculosida<strong>de</strong> do indivíduo se difun<strong>de</strong>pelo próprio sistema, talvez por isso o código possa até abrir mão do c<strong>on</strong>ceito<strong>de</strong> pers<strong>on</strong>alida<strong>de</strong> do infrator, que é um c<strong>on</strong>teúdo do chamado <strong>de</strong>linqüente.O perigo está presente na <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> tentativa, na <strong>de</strong>finição <strong>de</strong>lesivida<strong>de</strong>, na <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> como a gente olha para o sistema penal, comose olha para as finalida<strong>de</strong>s do sistema penal.Então, ele não está mais encarnado na imagem anedótica que oLombroso fazia <strong>de</strong> uma figura com um olho, orelha p<strong>on</strong>tiaguda ou com oqueixo um pouco largo ou com os <strong>de</strong>dos al<strong>on</strong>gados. Nós não precisamosmais <strong>de</strong>ssa figura porque o medo e a periculosida<strong>de</strong> já diluíram <strong>de</strong>ntroR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 94-107, out.-<strong>de</strong>z. 2012 97


do sistema, e talvez seja por isso que as teorias sistêmicas façam sucessohoje em dia na prevenção do risco.Portanto, <strong>de</strong> forma sintética, é o que se po<strong>de</strong> dizer do novo c<strong>on</strong>textoglobal em que se verifica o terrorismo.Eis como alguns autores clássicos tratam do termo terrorismo, emalgumas frases: “O termo terrorismo é insatisfatório. É emotivo, muitocarregado politicamente, falta uma universal ou mesmo genérica aceitaçãoc<strong>on</strong>sensual. Qualificar um ato <strong>de</strong> terrorista diz mais sobre a perspectivapolítica daquele que o qualifica do que ao ato em si.” Essa frase, essetrecho é <strong>de</strong> um livro <strong>de</strong> Joseph Lambert <strong>de</strong> 1990, um livro c<strong>on</strong>hecido, noqual ele aborda a questão dos reféns do direito internaci<strong>on</strong>al, Terrorismand Hostages in Internati<strong>on</strong>al Law.Agora, outro trecho <strong>de</strong> outro livro: “Terror e terrorismo não sãopalavras que se referem a um claro, bem <strong>de</strong>finido e i<strong>de</strong>ntificado c<strong>on</strong>junto<strong>de</strong> eventos fáticos, essas palavras também não <strong>de</strong>sfrutam <strong>de</strong> um c<strong>on</strong>sens<strong>on</strong>a doutrina do direito.” Isso já foi dito em 1975 no artigo clássico <strong>de</strong>Mallins<strong>on</strong> sobre terrorismo: "The c<strong>on</strong>cept of public purpose terror in internati<strong>on</strong>alLaw", que é muito citado.O Professor Nilo Batista, que foi meu professor, diz que: “Apoiad<strong>on</strong>um estudo <strong>de</strong> Alfred Rubin, Heleno Fragoso nos explicava, o gran<strong>de</strong>mestre estava na ocasião namorando o labelling approach, [que é umaperspectiva da criminologia], que as razões pelas quais o rótulo terroristaé aplicado num caso e não num outro, parece pouco a ver com a naturezados atos. Elas <strong>de</strong>rivam do interesse da reação oficial a tais atos. É <strong>de</strong>sc<strong>on</strong>certantepara o pensamento jurídico que o <strong>de</strong>scarrilamento argelino <strong>de</strong>um trem que teve o efeito colateral <strong>de</strong> matar e ferir alguns inocentes sejaclassificado como terrorismo e sobre Hiroshima não se fala nada.”Ele está aqui mostrando a relativida<strong>de</strong> do c<strong>on</strong>ceito. Po<strong>de</strong>-se citarum milhão <strong>de</strong> exemplos históricos <strong>de</strong> como o c<strong>on</strong>ceito <strong>de</strong> terrorismo éaplicado a dadas circunstâncias e ninguém c<strong>on</strong>segue <strong>de</strong>finir bem o queé: a Argélia é um <strong>de</strong>les, no Brasil, até nossa Presi<strong>de</strong>nta po<strong>de</strong> ser outro.Na Itália, até o próprio Prof. Ant<strong>on</strong>io Negri foi c<strong>on</strong><strong>de</strong>nado, cumpriu prisão,uma história toda complicada, e a participação <strong>de</strong>le foi simplesmenteser o “mentor” intelectual <strong>de</strong> grupos <strong>de</strong> esquerda, por isso c<strong>on</strong>seguiramqualificá-lo <strong>de</strong> terrorista.98R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 94-107, out.-<strong>de</strong>z. 2012


O Professor Schimdt, nos anos 1970, organizou uma enciclopédiapolítica que trouxe alguns verbetes e ele iria elaborar justamente o verbeteterrorismo. Para ele não havia como <strong>de</strong>finir terrorismo. Logo, eleenviou cartas para vários cientistas políticos dizendo: “Olha, queria quevocê <strong>de</strong>finisse terrorismo”. Segundo ele, foram enviadas 109 <strong>de</strong>finiçõesdiferentes sobre o que era terrorismo, o que impossibilitou durante muitotempo a elaboração do verbete e ele <strong>de</strong>sistiu <strong>de</strong> assumir o compromisso<strong>de</strong> <strong>de</strong>finir o tema.Bom, nós sabemos que, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ssa flui<strong>de</strong>z toda, obviamente oque é mais importante é a disputa política sobre o c<strong>on</strong>ceito. O i<strong>de</strong>al seriaque não trabalhassemos com o c<strong>on</strong>ceito, mas pragmaticamente, noâmbito internaci<strong>on</strong>al há uma disputa sobre ele. Há trinta anos, os paísesafricanos, árabes e islâmicos lutam na ONU por uma c<strong>on</strong>ceituação <strong>de</strong> terrorismopara que alguns atos que eles c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>ram <strong>de</strong> resistência não fossemc<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rados como terroristas. Eles dizem: “Olha, não é terrorismolutar c<strong>on</strong>tra a opressão, não é terrorismo realizar uma resistência c<strong>on</strong>tra ocol<strong>on</strong>ialismo, não é terrorismo reagir c<strong>on</strong>tra a ocupação, seja a qual títulofor, <strong>de</strong> algum Estado estrangeiro sobre o nosso Estado. É claro que elesestão preocupados com Israel e com toda a política internaci<strong>on</strong>al.E eles ainda dizem o seguinte: nós temos que qualificar tambématitu<strong>de</strong>s, iniciativas do Estado como iniciativas terroristas, por exemplo,bombar<strong>de</strong>ar população civil, porque isso é c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rado o uso da força porum Estado e não é c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rado ato <strong>de</strong> terrorismo.Há uma disputa em torno do assunto, e é claro que eles estão visandoa Israel. Tentar qualificar alguns atos como terroristas e legitimaralgumas resistências c<strong>on</strong>tra opressões externas.Mas o fato é que a gente assiste a esse <strong>de</strong>bate. E qual é a realida<strong>de</strong>atual? Ontem foi o aniversário <strong>de</strong> 11 anos do 11 <strong>de</strong> setembro. Em funçãodo ataque às Torres Gêmeas, você tem a ONU é pressi<strong>on</strong>ada para retomaro que seria uma C<strong>on</strong>venção, que eles chamam <strong>de</strong> exaustiva, sobreterrorismo. Já existem basicamente doze c<strong>on</strong>venções sobre o tema e eleschegaram à c<strong>on</strong>clusão que <strong>de</strong>veria haver uma C<strong>on</strong>venção exaustiva quetratasse mesmo da qualificação do terrorismo.Em 2001, a proposta inicial foi feita pela Índia. Em 2007, a ONUrecebeu uma nova proposta e esse Comitê, que se chama Comitê Ad hoc,R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 94-107, out.-<strong>de</strong>z. 2012 99


até hoje não chegou a nenhuma c<strong>on</strong>clusão. Todo ano vocês po<strong>de</strong>m acessaro relatório, que ele sempre termina assim: “Nós temos que chegar auma <strong>de</strong>finição, nós já estamos há <strong>de</strong>z anos aqui e nada se fez para c<strong>on</strong>seguirc<strong>on</strong>cluir o rascunho <strong>de</strong>ssa C<strong>on</strong>venção”. Mas eles já imbutiram <strong>de</strong>ntro<strong>de</strong>sse rascunho dois c<strong>on</strong>ceitos principais: primeiro, que eu acho fundamentale nós vamos chegar lá e <strong>de</strong>pois vamos enten<strong>de</strong>r o porquê, elessempre falam em danos sérios c<strong>on</strong>tra a pessoa ou danos sérios c<strong>on</strong>tra aproprieda<strong>de</strong> privada ou pública quando esta possui sentido estratégico ouuma utilização pública, no c<strong>on</strong>texto <strong>de</strong> gerar pânico ou terror à populaçãoou, no c<strong>on</strong>texto, <strong>de</strong> tentar pressi<strong>on</strong>ar os Estados a adotarem posição quenão adotariam se não fosse por esse método.Portanto, a nossa reforma até que foi bem audaciosa ao querer <strong>de</strong>finiro terrorismo sem esperar a c<strong>on</strong>clusão <strong>de</strong>sses <strong>de</strong>bates. E eu chegueiaté a matéria não foi porque eu a estivesse estudando atualmente, masfoi porque há um temor muito sério <strong>de</strong> que os movimentos sociais e algumasativida<strong>de</strong>s políticas sejam qualificadas como terrorismo. Mas, en<strong>fim</strong>,ao se iniciar o estudo e percebe-se, primeiro, que há revogação da Lei<strong>de</strong> Segurança Naci<strong>on</strong>al. Isso é o relator quem diz como se fosse um feitoextraordinário. Dentro da nossa visão, não é tão extraordinário assim, nosentido <strong>de</strong> que, para se <strong>de</strong>slocar um paradigma da <strong>de</strong>fesa social para umparadigma da segurança, a Lei <strong>de</strong> Segurança Naci<strong>on</strong>al é atrasada mesmo.Por exemplo, na primeira parte da lei fala-se <strong>de</strong> traição, e as autorida<strong>de</strong>snão estão querendo muito saber disso, elas querem é a <strong>de</strong>finição dasegurança global.Então, a lei é revogada e essa torção ac<strong>on</strong>tece <strong>de</strong> forma muito claraquando se verifica o inciso III do artigo que trata sobre o que é c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>radoterrorismo. Primeiro diz o caput: “causar terror na população mediante asc<strong>on</strong>dutas <strong>de</strong>scritas no parágrafo <strong>de</strong>ste artigo quando:” aí vem inciso III: “foremmotivadas por prec<strong>on</strong>ceito <strong>de</strong> raça, cor, etnia, religião, naci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>,sexo, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>,... ou por razões políticas, filosóficas ou religiosas”.Há um <strong>de</strong>slocamento, porque o chamado atentado c<strong>on</strong>tra a segurançanaci<strong>on</strong>al ocorria sempre c<strong>on</strong>tra o Estado-Nação, e agora vê-se peloinciso III que não, que po<strong>de</strong> ser por motivos i<strong>de</strong>ológicos, religiosos, sempremotivados por prec<strong>on</strong>ceito. Isso já mostra o <strong>de</strong>slocamento da visãodo Estado Naci<strong>on</strong>al para Segurança Global. É claro que no primeiro momentopo<strong>de</strong>-se achar muito bom, mas temos que estar atentos às novas100R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 94-107, out.-<strong>de</strong>z. 2012


questões que estão surgindo, e uma <strong>de</strong>las é a legitimida<strong>de</strong> do discurso <strong>de</strong>segurança a partir <strong>de</strong> uma visão abstrata dos direitos humanos e <strong>de</strong>ssestipos <strong>de</strong> motivação.Mas ainda não é isso que eu queria enfatizar. Vamos c<strong>on</strong>tinuar falandosobre o causar terror. Todos que falam <strong>de</strong> terrorismo falam que causarterror é um c<strong>on</strong>ceito eminentemente subjetivo. Como trabalhar isso?Alguns tentam fazer uma diferenciação entre pânico, medo e terror, mastodo mundo c<strong>on</strong>corda que terror na população é algo muito subjetivo.Para Regina Duarte, por exemplo, a eleição do presi<strong>de</strong>nte Lula po<strong>de</strong> tersido um ato <strong>de</strong> terrorismo! Porque ela tem medo <strong>de</strong> um m<strong>on</strong>te <strong>de</strong> coisas,ela agora tem medo dos índios, ela tem esse sentimento <strong>de</strong> pânico muitoforte. Qual vai ser o parâmetro a ser utilizado para <strong>de</strong>finir esse terror?Após pesquisar no Código Francês, que tem o tipo do terrorismo, noCódigo Espanhol, no Código Português, nas doze C<strong>on</strong>venções que existemno âmbito internaci<strong>on</strong>al, até mesmo no chamado Patriot Act americano, oAto Patriótico <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2001, verifiquei que em nenhum lugar existeo que existe no paragrafo 3º, mais para o final, que diz: “incendiar, <strong>de</strong>predar,saquear, explodir, [agora atenção total] ou invadir bem público ou privado”.“Invadir bem público ou privado” não existe em nenhum lugar, euaté gostaria <strong>de</strong> saber como é que a comissão <strong>de</strong> juristas, os resp<strong>on</strong>sáveisda Comissão chegaram ao verbo invadir, me causa curiosida<strong>de</strong>, pois mesmoem legislações que são duríssimas, como a da Espanha, em nenhummomento faz-se alusão a invadir bem público ou privado, isso é uma coisabrasileira. Já começamos a ficar <strong>de</strong>sc<strong>on</strong>fiados, pois sempre que se fala eminvasão <strong>de</strong> bem público ou privado aqui estamos tocando em assunto polêmico.Sabemos que a <strong>de</strong>fesa do latifúndio é uma das gran<strong>de</strong>s questõespolíticas não resolvidas no Brasil.Mas mesmo assim, não só em relação ao termo “invadir”, mas tambéma qualificação que se dá ao “bem público ou privado”. Quando examinamostoda a legislação que existe sobre terrorismo, percebemos queo dano à proprieda<strong>de</strong> é visto <strong>de</strong> uma maneira qualificada pelo seus usosestratégicos. Por exemplo, a ONU fala o tempo todo sobre instalações públicase privadas ou locais <strong>de</strong> uso público do povo, ou, como em váriasc<strong>on</strong>venções especificas, para proteger aeroportos, plataformas marítimas,plataformas <strong>de</strong> petróleo, sempre há uma função estratégica ligada aesse bem. Eu não estou justificando aqui a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> existência doR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 94-107, out.-<strong>de</strong>z. 2012 101


crime <strong>de</strong> terrorismo; estou dizendo que mesmo quando existe essa previsão,a ofensa à proprieda<strong>de</strong> é vista <strong>de</strong> uma forma qualificada, pelo papelque essa proprieda<strong>de</strong> exerce. E, no Brasil, para variar, o “bem público ouprivado” surge sem nenhum tipo <strong>de</strong> c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>ração em relação a essa qualificação,a chamada função social da proprieda<strong>de</strong>.Mesmo quando o projeto fala da proteção ao sistema <strong>de</strong> informática,aos bancos <strong>de</strong> dados que é algo que faz parte da mudança a respeitoda qual eu falei no início. De acordo com ela, é muito importante a proteçãoda re<strong>de</strong> porque a ec<strong>on</strong>omia hoje passa pela re<strong>de</strong>. Eu me lembro <strong>de</strong>Foucault, que falava <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>slocamento do sistema <strong>de</strong> punição basead<strong>on</strong>o suplício para aquele sistema baseado na disciplina, ele dizia: “Houveuma mudança fundamental no regime <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> nesse momento, osilegalismos eram relaci<strong>on</strong>ados à proprieda<strong>de</strong>, e era fundamental protegera proprieda<strong>de</strong> privada. Por exemplo, coisas móveis que estão estocadasem algum armazém ou indústria. É fundamental fazer alguma vigilânciasobre essa proprieda<strong>de</strong>”.E hoje, nós temos a proprieda<strong>de</strong> imaterial circulando o tempo todopela re<strong>de</strong>, gerando valor, e há a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> proteger esse ambiente<strong>de</strong> re<strong>de</strong>.Então, o crime <strong>de</strong> ciberterrorismo atinge em cheio alguns movimentosfundamentais; são movimentos que ac<strong>on</strong>tecem hoje na internetc<strong>on</strong>tra os códigos fechados, c<strong>on</strong>tra os softwares fechados, c<strong>on</strong>tra o regime<strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> que nos amarra completamente. Que acabam, até mesmocom a liberda<strong>de</strong> na re<strong>de</strong>, com o compartilhamento <strong>de</strong> informações,i<strong>de</strong>ias e c<strong>on</strong>teúdo. En<strong>fim</strong>, a gente vai também falar um pouco sobre isso,mas enxergamos também o terrorismo na mera interferência no sistema<strong>de</strong> informática e banco <strong>de</strong> dados.Fico pensando no que vai ac<strong>on</strong>tecer com o An<strong>on</strong>ymmus, por exemplo,que trabalha <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ssa linha da luta <strong>de</strong>ntro da re<strong>de</strong> com essa qualificação<strong>de</strong> ciberterrorismo.No paragrafo 4º, vê-se a cópia <strong>de</strong> alguns verbos que também existemnas c<strong>on</strong>venções, mas que o legislador brasileiro dispõe: sabotar ofunci<strong>on</strong>amento ou apo<strong>de</strong>rar-se com grave ameaça ou violência c<strong>on</strong>tra apessoa do c<strong>on</strong>trole total ou parcial <strong>de</strong>, aí vem um m<strong>on</strong>te <strong>de</strong> coisas, comunicação,transporte, posse, aeroportos e por aí vai. Apo<strong>de</strong>rar-se, o famoso102R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 94-107, out.-<strong>de</strong>z. 2012


po<strong>de</strong>r físico sobre a coisa, isso nos lembra a posse na teoria subjetiva, achamada teoria subjetiva <strong>de</strong> Savigny. Umas das questões mais importantesera o po<strong>de</strong>r físico sobre a coisa, e mais uma vez nós optamos não porum dano sério, como diz a ONU, mas por um simples exercício da posse,um apo<strong>de</strong>rar-se <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ssa linha que até hoje é minoritária, da teoriasubjetiva. Mas, en<strong>fim</strong>, mais um exemplo <strong>de</strong> como anda mal a reforma.Então, chegamos, com todas essas <strong>de</strong>sc<strong>on</strong>fianças, ao que diz o paragrafo7º: “não c<strong>on</strong>stitui crime <strong>de</strong> terrorismo a c<strong>on</strong>duta individual oucoletiva <strong>de</strong> pessoas movidas com propósitos sociais ou reivindicatórios,<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que os objetivos e meios sejam compatíveis e a<strong>de</strong>quados com suafinalida<strong>de</strong>”.Todo mundo diz que esse paragrafo 7º é a exclusão dos movimentossociais. Uma leitura atenta mostra que a exclusão, na verda<strong>de</strong>, é uma inclusão.Não precisa ser um filósofo do Direito para ler alguns autores e saberque a exceção não está fora do direito, mas está na chamada “suspensão”.Nesse caso, até inclui, diretamente a exceção tem um propósito bem específico.Permitam-me colocar a c<strong>on</strong>trario sensu que fica bem claro isso:“c<strong>on</strong>stitui crime <strong>de</strong> terrorismo a c<strong>on</strong>duta individual ou coletiva <strong>de</strong> pessoasmovidas pelos propósitos sociais ou reivindicatórios no caso em que os objetivose meios sejam incompatíveis ou ina<strong>de</strong>quados com sua finalida<strong>de</strong>”.Então, isso é uma inclusão. É só ler-se a c<strong>on</strong>trario sensu, se os meioforem incompatíveis ou ina<strong>de</strong>quados, então o movimento social po<strong>de</strong> serterrorista, é o que está dizendo esse parágrafo. E como vai ser aferir aquestão da proporci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong> dos meios é algo extremamente aberto. Oque é um meio proporci<strong>on</strong>al a<strong>de</strong>quado, um instrumento a<strong>de</strong>quado. Então,fala-se que o garantismo tem que ter uma função fundamental nisso;alguns juízes que já querem, eu vou mostrar alguns exemplos, c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>raros movimentos sociais como terroristas.Mas o próprio projeto mostrará muito bem a sua visão. No artigo162, aumenta-se a pena <strong>de</strong> esbulho possessório; aliás, per<strong>de</strong>u-se umaoportunida<strong>de</strong> imensa <strong>de</strong> tratar o tema <strong>de</strong> forma diferente, pois não se faznenhuma c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>ração com relação à função social da proprieda<strong>de</strong>, daposse, não se faz nenhuma c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>ração especial nos mol<strong>de</strong>s do que hojese verifica na teoria da função social da posse, em que se diz que nem hácomo manusear os interditos proibitórios sem encarar a função social.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 94-107, out.-<strong>de</strong>z. 2012 103


E há a tutela penal do c<strong>on</strong>flito fundiário, que eu acho absurda, acho que<strong>de</strong>vemos caminhar para outro tipo <strong>de</strong> tutela. Há inclusive um projeto <strong>de</strong>reforma do Código <strong>de</strong> Processo Civil para alterar o artigo 927, para mexernos c<strong>on</strong>flitos fundiários e evitar a visão repressiva, <strong>de</strong> forma criminal, emrelação ao esbulho possessório.Vamos voltar, o projeto aumenta a pena para dois anos e a justificada seguinte forma: “esses crimes formam mantidos inclusive com o aumento<strong>de</strong> pena na figura do esbulho possessório no escopo <strong>de</strong> não sugerirque as disputas sobre posse e proprieda<strong>de</strong> sejam resolvidas por meiosclan<strong>de</strong>stinos ou violentos”. Ele mesmo diz que não é o meio a<strong>de</strong>quadopara resolver os c<strong>on</strong>flitos fundiários ou esbulho possessório seja lá o quefor isso, já que também não existe nenhuma vinculação à nenhuma teoriada função social.Portanto, o próprio código já mostra sua visão, a meu ver, sobreessa questão e nós vamos ter muitos problemas se esse código for aprovado,em razão <strong>de</strong>ssa perspectiva <strong>de</strong> exclusão que inclui mas não exclui.E, por outro lado, há um histórico <strong>de</strong> pesquisas que mostram umvocabulário eminentemente persecutório com relação aos movimentossociais. Há um artigo da Professora Vera, <strong>de</strong> 1999, sobre “A criminalizaçãodo MST” trazendo essa discussão.Porém, em uma coincidência que seria até boa para mim, porquecomprova o que estou dizendo, mas não é boa politicamente, hoje eu recebia notícia <strong>de</strong> que uma sentença foi divulgada na re<strong>de</strong> <strong>de</strong> advogados populares.Uma sentença sobre reintegração <strong>de</strong> posse do MST. Desculpem,mas terei que ler no meu celular porque acabou <strong>de</strong> chegar: “numa oposiçãosistemática c<strong>on</strong>tra a proprieda<strong>de</strong> e amparada pela vista permissiva dogoverno fe<strong>de</strong>ral (nem sei se é tão permissiva assim), cujo partido pariu efomentou suas estripulias éticas durante os anos do governo FHC, o movimentoa que pertence o réu c<strong>on</strong>jugou com sucesso métodos <strong>de</strong> guerrilhaa ataques <strong>de</strong> organizações terroristas; a proprieda<strong>de</strong>, direito natural porexcelência, <strong>de</strong>ve aten<strong>de</strong>r a sua função social, atributo rec<strong>on</strong>hecido <strong>de</strong>s<strong>de</strong>1988. Entretanto, num retrospecto histórico <strong>de</strong> direito da proprieda<strong>de</strong>,po<strong>de</strong>mos perceber várias nuances, que vão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a c<strong>on</strong>cepção liberal atéa posição <strong>de</strong> Proudh<strong>on</strong>, para qual a proprieda<strong>de</strong> é um roubo, sustentáculoteórico do <strong>de</strong>senvolvimento a respeito do assunto <strong>de</strong> várias correntes socialistassobretudo Marxistas. O movimento a que pertence o réu c<strong>on</strong>fere104R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 94-107, out.-<strong>de</strong>z. 2012


em o tom revoluci<strong>on</strong>ário, o qual, <strong>de</strong> nítida colaboração Bolchevista, quepor si só é suficiente para <strong>de</strong>m<strong>on</strong>strar a injustiça da ameaça <strong>de</strong> moléstia.”E seguem outras coisas, que o movimento financia assentamentos, partesepara um amplo campo semântico <strong>de</strong> comparação <strong>de</strong> movimento sociale atos terroristas. Essa <strong>de</strong>cisão foi divulgada hoje, não estou aqui falandoque talvez ou uma vez ou outra ac<strong>on</strong>teça isso. Eu recentemente fui advogado<strong>de</strong> um caso que era do movimento <strong>de</strong> sem teto em que um militantefoi preso por resistência foi sentenciado. O Ministério Público o <strong>de</strong>nuncioupor resistência, mas, no final da sentença, o juiz aplicou o artigo 40do CPP, solicitando a extração <strong>de</strong> peças para apurar [aí diz: por se tratar <strong>de</strong>uma suposta organização criminosa, isso é no movimento do sem teto],para extrair peças para apurar crimes <strong>de</strong> cárcere privado, esbulho possessório,dano e tudo mais. Mas qualificando o movimento social como organizaçãocriminosa, isso foi mês passado. Nós não temos muito tempo parapesquisar, mas talvez uma vez por semana tenhamos <strong>de</strong>cisões assim.E a terceira questão, sobre a questão dos movimentos. A primeirafoi como aferir a proporci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>; o próprio código mostra a sua visão<strong>de</strong> que po<strong>de</strong> haver problemas; a segunda, é o histórico <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões quetodo dia recebemos, comparando a ativida<strong>de</strong> e o movimento social aoterrorismo. A terceira, ainda é mais problemática, é como qualificar essesnovos movimentos. há quem o chame <strong>de</strong> novíssimos movimentos, dare<strong>de</strong>, da internet, o chamado hacker ativismo, nós c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>ramos isso ummovimento social tradici<strong>on</strong>al, pois ele não é centralizado, não tem umaestrutura, não tem uma organização, ele é simplesmente difuso, como are<strong>de</strong> é difusa. Os ativistas às vezes são adolescentes, são jovens que se c<strong>on</strong>ectame não se apresentam publicamente como um movimento social,mas mobilizam socialmente a re<strong>de</strong>; nós os rec<strong>on</strong>hecemos como movimentosocial para excluir ou simplesmente qualquer tipo <strong>de</strong> ato c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>radociberterrorismo já vai ser logo c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rado com relação à ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssesnovos movimentos sociais. Essa é a terceira preocupação.Só queria, para reforçar o argumento, trazer uma <strong>de</strong>finição dos autoresque tentam classificar o crime <strong>de</strong> terrorismo, os que ainda fazemesse esforço intelectual, como por exemplo, Luiz Regis Prado. Ele tenta diferenciaro crime político do terrorismo, ele fala: “ainda que da utilização<strong>de</strong> meios fortemente <strong>de</strong>strutivos resulte a aniquilação ou <strong>de</strong>sestabilizaçãodo sistema político social vigente, o terrorismo não se c<strong>on</strong>fun<strong>de</strong> com o <strong>de</strong>litopolítico nem po<strong>de</strong> ser a ele equiparado, isso porque o <strong>de</strong>lito terroristaR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 94-107, out.-<strong>de</strong>z. 2012 105


evela tal cruelda<strong>de</strong>, sobretudo na seleção dos meios executórios e na forma<strong>de</strong> utilização”. Mesmo que o projeto do novo código quisesse se aterà doutrina que existe sobre o tema - esse artigo é facilmente enc<strong>on</strong>trado- não po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong> forma alguma prever simplesmente invasão <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>ou interferência nos sistemas <strong>de</strong> informática, <strong>de</strong> dados, como crime<strong>de</strong> terrorismo, como ac<strong>on</strong>tece hoje na tentativa <strong>de</strong> <strong>de</strong>finição da ONU.Com relação à questão da pena, vejam bem, a Lei <strong>de</strong> SegurançaNaci<strong>on</strong>al para esse mesmo tipo <strong>de</strong> c<strong>on</strong>duta – existem c<strong>on</strong>dutas parecidas,elas até falam em atos terroristas, mas sem classificações – traz uma pena<strong>de</strong> três a <strong>de</strong>z anos. A Lei <strong>de</strong> Segurança Naci<strong>on</strong>al em nenhum momentofala em invasão <strong>de</strong> bem público ou privado; ela fala em <strong>de</strong>vastar, saquear,extorquir, roubar, sequestrar, manter em cárcere privado, não fala em invasão<strong>de</strong> bem público ou privado. Fala na pena <strong>de</strong> três a <strong>de</strong>z anos. A penapelo nosso Código vai ser <strong>de</strong> oito a quinze anos po<strong>de</strong>ndo ser ampliada.Também tem uma lei <strong>de</strong> 1952, que diferencia a pena entre os “cabeças”e os meros participantes do movimento. Ela também, em nenhummomento, fala <strong>de</strong> invasão, estabelece, também a pena <strong>de</strong> três a oito anosaos “cabeças” e <strong>de</strong> dois a seis anos aos <strong>de</strong>mais agentes. “Cabeças” é otermo que a própria lei usava.Houve uma exasperação no aumento <strong>de</strong>ssa pena, com relação aocrime <strong>de</strong> terrorismo, no projeto do novo código penal.Até em homenagem a essas gran<strong>de</strong>s figuras que existem na internet,na re<strong>de</strong>, eu c<strong>on</strong>versei recentemente com o Professor <strong>de</strong> Comunicação daUFRJ, Ricardo Antoun, que está escrevendo sobre o hacker ativismo. Eleme disse: “Alexandre, se não fosse o hacker ativismo, nós teríamos umainternet militar e absolutamente fechada <strong>de</strong>ntro da ec<strong>on</strong>omia capitalista”,ou seja, não teríamos essa esfera <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> trocar e compartilhar. Senão fossem esses caras, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os anos 1980, nesse trabalho ininterrupto,diário, nós teríamos uma internet militar ou totalmente mercadológica.Espero que ele lance logo esse livro para sabermos mais sobre o assunto.Eu vou terminar citando exatamente um pr<strong>on</strong>unciamento <strong>de</strong> umhacker que foi c<strong>on</strong><strong>de</strong>nado nos anos 1980 nos Estados Unidos. Ele era chamado<strong>de</strong> The Mentor, e dizia o seguinte: “Nós fazemos uso sem pagar <strong>de</strong>um serviço que po<strong>de</strong>ria ser acessível e barato se não fosse dominado poraproveitadores e glutões do lucro e vocês nos chamam <strong>de</strong> criminosos.106R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 94-107, out.-<strong>de</strong>z. 2012


Nós investigamos e vocês nos chamam <strong>de</strong> criminosos. Nós corremos atrás<strong>de</strong> c<strong>on</strong>hecimento e vocês nos chamam <strong>de</strong> criminosos. Nós existimos semcor, sem naci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>, sem religião e vocês nos chamam <strong>de</strong> criminosos.Vocês c<strong>on</strong>stroem bombas atômicas. Vocês fazem guerra. Vocês matam.Vocês trapaceiam. Vocês mentem para nós e tentam nos fazer crer que épara nosso bem. E mesmo assim nós somos criminosos. Sim, eu sou umcriminoso. Meu crime é a curiosida<strong>de</strong>. Meu crime é julgar as pessoas peloque elas falam e pensam e não por suas aparências. Meu crime é ser maisinteligente que você. Saber seus segredos, algo pelo qual vocês nunca meperdoarão. Eu sou um hacker e esse é meu manifesto.”Obrigado!R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 94-107, out.-<strong>de</strong>z. 2012 107


A Reforma das Medidas<strong>de</strong> SegurançaProfª. Maria Lúcia KaramJuíza <strong>de</strong> Direito (aposentada) do TJERJ.Muito obrigada pelo c<strong>on</strong>vite. É sempre um prazer estar aqui naEscola da Magistratura. O projeto <strong>de</strong> reforma do Código Penal brasileiroapresentado pela comissão <strong>de</strong> juristas formada pelo Senado Fe<strong>de</strong>ral, comtramitação já iniciada naquela casa legislativa (Projeto <strong>de</strong> Lei do Senado236 <strong>de</strong> 2012), c<strong>on</strong>serva a vigente previsão da imposição <strong>de</strong> medidas <strong>de</strong>segurança <strong>de</strong> internação ou tratamento ambulatorial a portadores <strong>de</strong>enfermida<strong>de</strong>s mentais que se revelem inimputáveis autores <strong>de</strong> c<strong>on</strong>dutaspenalmente ilícitas.Tais medidas, <strong>de</strong>nominadas no projeto “internação compulsória emestabelecimento a<strong>de</strong>quado” ou “sujeição a tratamento ambulatorial” –este último po<strong>de</strong>ndo, em qualquer fase, ser c<strong>on</strong>vertido em internação “seessa providência for necessária para fins curativos” –, são apresentadaspela comissão, em seus comentários à sua c<strong>on</strong>servadora proposta, como“providência <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa social aplicada àqueles que tiveram sua inimputabilida<strong>de</strong>rec<strong>on</strong>hecida em razão <strong>de</strong> doença mental ou <strong>de</strong>senvolvimentomental incompleto.”Única novida<strong>de</strong> relevante na proposta disciplinar das medidas <strong>de</strong>segurança (artigos 95 a 98 do projeto), como <strong>de</strong>stacam os próprios comentáriosda comissão, é a introdução <strong>de</strong> limites temporais para sua duraçãomáxima; limites esses que, no entanto, po<strong>de</strong>m acabar se <strong>de</strong>sfazendoem uma admitida perpetuida<strong>de</strong>.Assim é que as regras dos §§ 1º a 3º do proposto artigo 96 estabelecemque, cumprido o prazo mínimo <strong>de</strong> um a três anos, a medida <strong>de</strong> segurançaperdurará enquanto não for averiguada, mediante perícia médica,a cessação da periculosida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que não ultrapasse o limite máximoda pena cominada ao fato criminoso praticado, ou o prazo <strong>de</strong> trinta anos,quando se tratar <strong>de</strong> c<strong>on</strong>dutas praticadas com violência ou grave ameaçaà pessoa, salvo se a infração for <strong>de</strong> menor potencial ofensivo. Atingido108R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 108-114, out.-<strong>de</strong>z. 2012


esse limite máximo – e, nesse p<strong>on</strong>to, vale ter presente que, em se tratando<strong>de</strong> um culpável imputável, raramente teria este ficado privado <strong>de</strong>sua liberda<strong>de</strong> por tanto tempo, sendo, felizmente, incomum a imposiçãoda pena em seu limite máximo –, ainda po<strong>de</strong>rá o Ministério Público ou oresp<strong>on</strong>sável legal pelo inculpável inimputável requerer, no juízo cível, oprosseguimento da internação.Diante <strong>de</strong> quadros como o vigente e como esse agora proposto, ficafácil compreen<strong>de</strong>r por que psiquiatras, juristas e outros integrantes daluta antimanicomial vêm questi<strong>on</strong>ando a inimputabilida<strong>de</strong> e reivindicandoo rec<strong>on</strong>hecimento <strong>de</strong> resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal dos portadores <strong>de</strong> enfermida<strong>de</strong>smentais, propugnando que a justiça os trate como os <strong>de</strong>maisréus em processos penais.Parece-me, no entanto, que outro <strong>de</strong>va ser o enfoque quando seestá diante <strong>de</strong> portadores <strong>de</strong> enfermida<strong>de</strong>s mentais que efetivamenteafetem sua capacida<strong>de</strong> psíquica <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r o caráter penalmente ilícitoda c<strong>on</strong>duta praticada e/ou <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminar-se <strong>de</strong> acordo com esse entendimento.Naturalmente, a inimputabilida<strong>de</strong> não po<strong>de</strong> ser uma mecânica eautomática <strong>de</strong>corrência da presença <strong>de</strong> uma enfermida<strong>de</strong> mental. Nemtodas as enfermida<strong>de</strong>s mentais implicam capacida<strong>de</strong> psíquica <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>re querer, ou mesmo sua redução. O rec<strong>on</strong>hecimento <strong>de</strong> tal incapacida<strong>de</strong>psíquica <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> investigação das dinâmicas psicológicas, daavaliação do c<strong>on</strong>texto <strong>de</strong> vida e história social do indivíduo, <strong>de</strong> modo a severificar se, no caso c<strong>on</strong>creto, tinha ele ou não a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>ro valor e o significado da sua c<strong>on</strong>duta, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> avaliar suasc<strong>on</strong>sequências, bem como a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> livremente c<strong>on</strong>trolar suaspróprias pulsões.C<strong>on</strong>cretamente verificada, porém, essa impossibilida<strong>de</strong> – e, assim,a incapacida<strong>de</strong> psíquica –, estará efetivamente c<strong>on</strong>figurada a inimputabilida<strong>de</strong>a impedir o rec<strong>on</strong>hecimento da prática <strong>de</strong> crime diante da inviabilida<strong>de</strong><strong>de</strong> afirmação da culpabilida<strong>de</strong>, a naturalmente impedir qualquerjuízo <strong>de</strong> reprovação e, c<strong>on</strong>sequentemente, qualquer forma direta ou indireta<strong>de</strong> punição.Com efeito, é o inafastável princípio da culpabilida<strong>de</strong> que <strong>de</strong>ve sefazer sempre presente e dar o tom neste <strong>de</strong>bate sobre a lei vigente e asimilar proposta c<strong>on</strong>servadora da previsão <strong>de</strong> imposição das medidas <strong>de</strong>R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 108-114, out.-<strong>de</strong>z. 2012 109


segurança <strong>de</strong> internação ou tratamento ambulatorial aos portadores <strong>de</strong>enfermida<strong>de</strong>s mentais que se revelem inimputáveis autores <strong>de</strong> c<strong>on</strong>dutaspenalmente ilícitas.Neste p<strong>on</strong>to, cabem algumas observações sobre o princípio daculpabilida<strong>de</strong>. Vou repetir aqui coisas que certamente são óbvias, mas oestágio atual <strong>de</strong> aplicação do Direito Penal e do Processo Penal está a exigira repetição <strong>de</strong> obvieda<strong>de</strong>s. O que temos visto na aplicação do direito,vindo do mais alto tribunal do país, está a exigir a repetição <strong>de</strong> noçõesóbvias. Sendo assim, vou tratar um pouco <strong>de</strong>ssas óbvias c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>raçõessobre o princípio da culpabilida<strong>de</strong>.O princípio que estabelece a culpabilida<strong>de</strong> como elemento indispensávelao juízo <strong>de</strong> reprovação que po<strong>de</strong>rá recair sobre o autor <strong>de</strong> umac<strong>on</strong>duta penalmente ilícita, dando, ao mesmo tempo, a medida da reprovaçãopossível, <strong>de</strong>limita a intervenção do po<strong>de</strong>r do Estado <strong>de</strong> punir naesfera <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> do indivíduo.Dizendo respeito à capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolha – isto é, à auto<strong>de</strong>terminaçãodo indivíduo – o princípio da culpabilida<strong>de</strong> mostra-se inseparáveldo rec<strong>on</strong>hecimento <strong>de</strong> sua dignida<strong>de</strong>. Sua função garantidora integra-seaos princípios limitadores do po<strong>de</strong>r punitivo, gerados pela função maiordo or<strong>de</strong>namento jurídico, no Estado Democrático, <strong>de</strong> proteção à dignida<strong>de</strong>do indivíduo.Derivando do rec<strong>on</strong>hecimento da capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolha do indivíduo,o princípio da culpabilida<strong>de</strong> c<strong>on</strong>dici<strong>on</strong>a o exercício do po<strong>de</strong>r doEstado <strong>de</strong> punir à <strong>de</strong>m<strong>on</strong>stração da possibilida<strong>de</strong> exigível <strong>de</strong> motivaçãopela regra criminalizadora do autor da c<strong>on</strong>duta penalmente ilícita (o injustopenal) c<strong>on</strong>cretamente realizada. Assim, além <strong>de</strong> impedir a reprovaçãopela mera causação <strong>de</strong> um resultado lesivo, o princípio da culpabilida<strong>de</strong>impe<strong>de</strong> qualquer reprovação por uma escolha que a pessoa não pô<strong>de</strong> fazerou que a reprove quando não pô<strong>de</strong> exercitar sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolha,sempre c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rada tal escolha tão somente em relação à c<strong>on</strong>dutailícita c<strong>on</strong>cretamente realizada.A medida da culpabilida<strong>de</strong> é dada exatamente pela revelação <strong>de</strong>um maior ou menor âmbito <strong>de</strong> auto<strong>de</strong>terminação da pessoa na realizaçãoda c<strong>on</strong>duta c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rada, a estabelecer a maior ou menor possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> se lhe exigir que, no caso c<strong>on</strong>creto, escolhesse outro comportamentoajustado ao que <strong>de</strong>terminam as leis criminalizadoras.110R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 108-114, out.-<strong>de</strong>z. 2012


É por isto que, para o rec<strong>on</strong>hecimento da prática <strong>de</strong> um crime, nãobasta a realização <strong>de</strong> uma c<strong>on</strong>duta <strong>de</strong>finida em um dispositivo legal criminalizador,significativamente ofensiva <strong>de</strong> um bem jurídico individualizávele não permitida pela or<strong>de</strong>m jurídica (a c<strong>on</strong>duta penalmente ilícitaou o injusto penal). É ainda indispensável que, nas circunstâncias em quec<strong>on</strong>cretamente realizada aquela c<strong>on</strong>duta penalmente ilícita, pu<strong>de</strong>sse seuautor ter agido <strong>de</strong> outra forma, neste enunciado se c<strong>on</strong>tendo a tradici<strong>on</strong>ale sempre válida c<strong>on</strong>cepção da culpabilida<strong>de</strong> como exigibilida<strong>de</strong>.Para que o Estado possa exigir este outro comportamento, faz-senecessário, antes <strong>de</strong> tudo, que o indivíduo efetivamente tivesse capacida<strong>de</strong>psíquica <strong>de</strong> compreensão e/ou <strong>de</strong> auto<strong>de</strong>terminação em relação aocaráter ilícito da sua c<strong>on</strong>duta. A incapacida<strong>de</strong> psíquica, que c<strong>on</strong>figura ainimputabilida<strong>de</strong>, necessariamente afasta a culpabilida<strong>de</strong> e, c<strong>on</strong>sequentemente,a existência do crime.Assim como ninguém po<strong>de</strong> ser reprovado só pelo fato <strong>de</strong> seucomportamento ter causado um resultado objetivamente danoso, umalesão ou um perigo c<strong>on</strong>creto <strong>de</strong> lesão para o bem jurídico, também nãopo<strong>de</strong>rá existir qualquer reprovação se o indivíduo não tinha capacida<strong>de</strong>psíquica <strong>de</strong> compreensão do valor ou <strong>de</strong>svalor <strong>de</strong> seus atos, ou nãotinha c<strong>on</strong>dições <strong>de</strong> livre e tranquilamente escolher entre o comportamentoproibido ou outro comportamento ajustado ao que <strong>de</strong>terminamas leis criminalizadoras.São, portanto, fr<strong>on</strong>talmente violadoras do princípio da culpabilida<strong>de</strong>– e, assim, das normas garantidoras da dignida<strong>de</strong> do indivíduo, inscritasnas <strong>de</strong>clarações internaci<strong>on</strong>ais <strong>de</strong> direitos e nas c<strong>on</strong>stituições <strong>de</strong>mocráticas,como a C<strong>on</strong>stituição Fe<strong>de</strong>ral brasileira – leis que, como o CódigoPenal brasileiro, vigente e/ou proposto, embora rec<strong>on</strong>hecendo a ausência<strong>de</strong> culpabilida<strong>de</strong> e, assim, a inexistência <strong>de</strong> crime nas c<strong>on</strong>dutas daquelesque se revelam inimputáveis, paradoxalmente, insistem em alcançá-los,ao impor, como c<strong>on</strong>sequência da realização da c<strong>on</strong>duta penalmente ilícita,as chamadas medidas <strong>de</strong> segurança, sob o pretexto <strong>de</strong> uma suposta“<strong>de</strong>fesa social” e com base em uma alegada “periculosida<strong>de</strong>” atribuída aseus inculpáveis autores.Neste p<strong>on</strong>to se revela, em toda sua intensida<strong>de</strong>, a relação entre os<strong>de</strong>nominados saberes “psi” e o sistema penal, historicamente marcadapor uma trágica aliança reforçadora dos danos, das dores e enganos queR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 108-114, out.-<strong>de</strong>z. 2012 111


sustentam as nocivas i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> punição, privação da liberda<strong>de</strong>, estigmatizaçãoe exclusão como suposta forma <strong>de</strong> c<strong>on</strong>trole dos comportamentosnegativos ou in<strong>de</strong>sejáveis etiquetados como “crimes”. A dimensão <strong>de</strong>ssaaliança nitidamente aparece na simetria existente entre o manicômio ea prisão, instituições totais <strong>de</strong> c<strong>on</strong>trole, que têm sua origem comum nosséculos XVIII e XIX.A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> “periculosida<strong>de</strong>” não se traduz por qualquer dado objetivo.Ninguém po<strong>de</strong> c<strong>on</strong>cretamente <strong>de</strong>m<strong>on</strong>strar que A ou B, psiquicamentecapaz ou incapaz, vá ou não realizar uma c<strong>on</strong>duta ilícita no futuro. Já porisso, tal i<strong>de</strong>ia se mostra incompatível com a precisão que o princípio da legalida<strong>de</strong>exige na elaboração da lei, especialmente em matéria penal (a taxativida<strong>de</strong>ou mandado <strong>de</strong> certeza). A suposta “periculosida<strong>de</strong>” do inimputávelnão tem qualquer base científica; é uma vazia presunção; não passa <strong>de</strong> umaficção fundada no prec<strong>on</strong>ceito ou na crendice que i<strong>de</strong>ntifica o “louco” – ouquem quer que apareça como “diferente” – como “perigoso”.Na realida<strong>de</strong>, as medidas <strong>de</strong> segurança para inimputáveis são formasmal disfarçadas <strong>de</strong> pena. Quando se c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>ra a c<strong>on</strong>duta penalmenteilícita como um diferencial entre portadores <strong>de</strong> enfermida<strong>de</strong>s mentais,submetendo-se os que são ap<strong>on</strong>tados como inimputáveis autores daquelac<strong>on</strong>duta à intervenção do sistema penal, o que se está efetivamente fazendoé passar por cima do princípio da culpabilida<strong>de</strong>, para, assim, imporlhesuma in<strong>de</strong>vida punição pela prática daquela c<strong>on</strong>duta.Essa in<strong>de</strong>vida punição, c<strong>on</strong>duzindo ao tratamento médico obrigatório,ainda induz o profissi<strong>on</strong>al da saú<strong>de</strong> a se transformar em um <strong>de</strong>lator,que informa ao órgão do Po<strong>de</strong>r Judiciário sobre comportamentos reservados<strong>de</strong> seus pacientes, assim claramente violando o sigilo profissi<strong>on</strong>algarantidor da intimida<strong>de</strong> e da vida privada. A natureza obrigatória do tratamentoe sua integração ao sistema penal implicam um c<strong>on</strong>trole do juízocriminal sobre o indivíduo a quem o tratamento foi imposto; c<strong>on</strong>trole queé feito exatamente a partir <strong>de</strong> informações prestadas pelos próprios encarregadosdo tratamento.O tratamento <strong>de</strong> qualquer transtorno mental não é compatível como caráter punitivo, que está indissoluvelmente ligado à sua <strong>de</strong>terminaçãopor parte <strong>de</strong> órgãos da justiça criminal. Não bastasse o comprometimentodo tratamento – como esperar que um paciente c<strong>on</strong>fie e se abra com umterapeuta, que age, ao mesmo tempo, como uma espécie <strong>de</strong> informante? –,112R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 108-114, out.-<strong>de</strong>z. 2012


sua integração ao sistema penal implica o rompimento com a ética que<strong>de</strong>ve presidir as relações entre terapeuta e paciente.Baseando-se na c<strong>on</strong>fiança e no sigilo, voltados para a proteção dopaciente, esta ética é necessariamente violada, quando o profissi<strong>on</strong>al dasaú<strong>de</strong>, encarregado do tratamento, violando a intimida<strong>de</strong> daquele queestá sendo tratado, violando o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> sigilo inerente à sua profissão,relata – ou, talvez seja mais apropriado dizer, <strong>de</strong>lata –, para um órgão<strong>de</strong> c<strong>on</strong>trole, comportamentos do paciente, que po<strong>de</strong>rão atuar c<strong>on</strong>tra ele,piorando sua situação jurídica.O <strong>de</strong>ver do profissi<strong>on</strong>al da saú<strong>de</strong> sempre há <strong>de</strong> ser a saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> seuspacientes e não os interesses do sistema penal ou <strong>de</strong> uma pretensa “<strong>de</strong>fesasocial”; suas avaliações <strong>de</strong>verão se basear nas necessida<strong>de</strong>s dos pacientes,prevalecendo sobre qualquer outra questão não médica.No campo dos transtornos mentais, não po<strong>de</strong> haver espaço paraqualquer intervenção do sistema penal. Único efeito do eventual rec<strong>on</strong>hecimentoda inimputabilida<strong>de</strong>, e c<strong>on</strong>sequentemente da inexistência<strong>de</strong> crime por ausência <strong>de</strong> culpabilida<strong>de</strong>, há <strong>de</strong> ser pura e simplesmentea proclamação da absolvição do réu, aí se esgotando a atuação do juízocriminal.Medidas <strong>de</strong> segurança não estão a requerer reformas. Medidas <strong>de</strong>segurança <strong>de</strong>vem ser pura e simplesmente abolidas.No campo dos transtornos mentais, a atuação do Po<strong>de</strong>r Judiciário,em sua função maior <strong>de</strong> garantidor dos direitos fundamentais do indivíduo,há <strong>de</strong> se dar no juízo cível, <strong>de</strong>stinando-se unicamente a c<strong>on</strong>trolar alegalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> eventuais restrições à prática <strong>de</strong> atos da vida civil, como emhipóteses <strong>de</strong> pedidos <strong>de</strong> interdição (artigo 1767 e seguintes do CódigoCivil) e/ou <strong>de</strong> tratamentos compulsórios, requeridos por familiares, peloMinistério Público, ou <strong>de</strong>terminados por profissi<strong>on</strong>ais da saú<strong>de</strong>, observadosos limites dados pela Lei 10216/2001, que dispõe sobre a proteção eos direitos das pessoas portadoras <strong>de</strong> transtornos mentais e redireci<strong>on</strong>a omo<strong>de</strong>lo assistencial em saú<strong>de</strong> mental.En<strong>fim</strong>, essas eram as rápidas c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rações que gostaria <strong>de</strong> trazersobre este tema, reafirmando que, em matéria <strong>de</strong> medidas <strong>de</strong> segurança,não há o que reformar. Não po<strong>de</strong>mos nos satisfazer com o mero estabele-R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 108-114, out.-<strong>de</strong>z. 2012 113


cimento <strong>de</strong> um limite máximo para a duração das medidas <strong>de</strong> segurança,proposto pela comissão formada para a pretendida reforma do CódigoPenal como se fosse uma mudança significativa.Única mudança significativa e imperativa é pura e simplesmente,como antes menci<strong>on</strong>ei, a abolição das medidas <strong>de</strong> segurança, assim segarantindo o respeito ao princípio da culpabilida<strong>de</strong> e a preservação <strong>de</strong> ummínimo <strong>de</strong> lógica na c<strong>on</strong>strução e aplicação das leis penais.É inacreditável que, nesses anos todos, tenhamos c<strong>on</strong>vivido com aprevisão e aplicação das medidas <strong>de</strong> segurança. É inacreditável que, diante<strong>de</strong> um projetado novo Código Penal, c<strong>on</strong>tinuemos a c<strong>on</strong>viver com ailógica e irraci<strong>on</strong>al proposta <strong>de</strong> se rec<strong>on</strong>hecer a inexistência <strong>de</strong> crime pelac<strong>on</strong>statação da inimputabilida<strong>de</strong>, para, paradoxalmente, em uma supostasentença absolutória, impor-se uma medida punitiva.O sistema penal é sempre pleno <strong>de</strong> irraci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>s e ilogicida<strong>de</strong>s.Mas, é nesse campo das medidas <strong>de</strong> segurança que parece estar a maiordas irraci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>s e das ilogicida<strong>de</strong>s, cegamente repetida, nesses anostodos, por nós profissi<strong>on</strong>ais do direito, rec<strong>on</strong>hecendo a inexistência <strong>de</strong>um crime e, ao mesmo tempo, aplicando uma medida punitiva.É mais do que tempo, portanto, <strong>de</strong> pura e simplesmente se pôr <strong>fim</strong>a qualquer medida <strong>de</strong> segurança. Muito obrigada!114R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 108-114, out.-<strong>de</strong>z. 2012


Execução Penal e PLS-236Prof. Dr. Maurício Stegemann DieterProfessor <strong>de</strong> Direito Penal e Criminologia (graduaçãoe pós-graduação). Especialista em Direito Penale Criminologia pelo Instituto <strong>de</strong> Criminologiae Política Criminal. Pesquisador do Max-Planck-Institut für ausländisches und internati<strong>on</strong>ales Strafrecht.Mestre e Doutor em Direito do Estado pelaUniversida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Paraná com estágio <strong>de</strong>pesquisa doutoral na Hamburg Universität. AdvogadoCriminalista.Muito obrigado, Des. Nilds<strong>on</strong>, pela tão gentil apresentação e peloc<strong>on</strong>vite da Escola da Magistratura; neste auditório fiz a minha primeiraexposição acadêmica, quando era nada além <strong>de</strong> um recém-ingresso napós-graduação da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Paraná. Estar aqui, novamente,só po<strong>de</strong> mesmo ser fruto da generosida<strong>de</strong> do Des. Paulo Bal<strong>de</strong>z e doProf. Juarez Tavares, que é o gran<strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nador científico <strong>de</strong>ste evento;é tudo por sua causa e por sua c<strong>on</strong>ta.Muito obrigado, portanto, pelo c<strong>on</strong>vite, que muito me h<strong>on</strong>ra. E queroagra<strong>de</strong>cer também a companhia na mesa do Prof. Alexandre Men<strong>de</strong>s,que me apresentou um inédito Manifesto hackeraci<strong>on</strong>ista; porque <strong>de</strong> manifestoseu gosto, e c<strong>on</strong>heço. É por estes caminhos que <strong>de</strong>scubro outrosinteressados em assuntos que também pesquiso, como a temática do terrorismo.Minha aproximação, entretanto, se <strong>de</strong>u por meio da intermediação<strong>de</strong> Noam Chomsky, que apresenta uma perspectiva lexicológica do tema,a <strong>de</strong>nunciar a distinção entre quem é ou não é terrorista como uma questão<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, ou seja, a partir da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> c<strong>on</strong>stituição <strong>de</strong> discursospunitivos. Seu exemplo, logo ao início <strong>de</strong> um <strong>de</strong> seus textos mais célebres,funda a distinção entre pirata e imperador como simples diferença na quantida<strong>de</strong><strong>de</strong> barcos que cada um possui: você é imperador porque tem váriosbarcos, ao passo que eu sou pirata porque tenho um só. Evi<strong>de</strong>ntemente,há muito mais para pensar sobre o tema, mas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já parece impossívelseguir em questões tão <strong>de</strong>nsas sem observar, na base, estas c<strong>on</strong>tradiçõesfundamentais, que <strong>de</strong>svelam <strong>de</strong> plano toda a i<strong>de</strong>ologia subjacente.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 115-125, out.-<strong>de</strong>z. 2012 115


Quero agra<strong>de</strong>cer também a h<strong>on</strong>ra <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r compartilhar a mesacom a Professora Maria Lúcia Karam, a provar que estou aqui por puraliberalida<strong>de</strong>, tamanha a distância acadêmica que nos separa. Somente aumentaa admiração que lhe tenho, ao ouvi-la dizer com coragem certascoisas óbvias em favor da <strong>de</strong>mocracia material, coisas óbvias que precisamser ditas até que sejam ouvidas. Aproveitando a linha <strong>de</strong> sua exposição,a verda<strong>de</strong> é que eu encerraria minha palestra tratando <strong>de</strong> medidas<strong>de</strong> segurança, mas antecipo para permanecer na mesma temática e assimtentar c<strong>on</strong>fundir minha exposição com sua erudição.Primeiro, manifesto-me <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já solidário c<strong>on</strong>tra a própria i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong>doença mental, que não é algo que exista empiricamente, mas é antesuma brutal metáfora <strong>de</strong> medicalização <strong>de</strong> problemas reais <strong>de</strong> comportamento;chama-se <strong>de</strong> doença o que não é patologia <strong>de</strong> células, tecidosou órgãos por falta <strong>de</strong> palavra melhor. Para piorar, quando se fala em doençamental isso sempre implica trazer para a odiosa área das medidas<strong>de</strong> segurança uma estranha perspectiva médica – sobretudo psiquiátrica,compromissada com a gran<strong>de</strong> indústria farmacêutica – o que produz umamiséria humana inaceitável. Afinal, como o livro do Prof. Thomas Szazsnos ensina, tratamento compulsório não existe: da mesma forma que sexoforçado é não é sexo, mas estupro; que trabalho forçado não é trabalho,mas escravidão, tratamento forçado não é tratamento, mas pena. Não háespaço para ética médica aqui; que médico vai se dispor a tratar alguémque não quer ser tratado? Isso é coisa <strong>de</strong> carcereiro, não <strong>de</strong> terapeuta.Afinal, como diria o Professor Agostinho Ramalho, quem me salva da b<strong>on</strong>da<strong>de</strong>dos b<strong>on</strong>s? Estamos no mesmo “Deus me salve dos meus amigos,porque dos inimigos cuido eu”. Tivemos já a pior experiência da civilizaçãooci<strong>de</strong>ntal no que se refere ao tratamento <strong>de</strong> doentes mentais na Alemanhanazista, mas são estas obvieda<strong>de</strong>s que o po<strong>de</strong>r se recusa a apren<strong>de</strong>r;apren<strong>de</strong>r; afinal, <strong>de</strong> uma vez por todas, que estas questões não são problema<strong>de</strong> Direito Penal, que no Estado Democrático <strong>de</strong> Direito é o regidopelo princípio da culpabilida<strong>de</strong>, absolutamente incompatível com a noção<strong>de</strong> perigosida<strong>de</strong>.Na dimensão dos inimputáveis, se a socieda<strong>de</strong> brasileira observoucomo o Estatuto da Criança e do Adolescente c<strong>on</strong>seguiu melhorar emtermos humanitários – ainda que, infelizmente, por vezes apenas na dimensãoformal – a disciplina em relação à criança e ao adolescente em116R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 115-125, out.-<strong>de</strong>z. 2012


c<strong>on</strong>flito com a lei, por que em relação aos portadores <strong>de</strong> graves distúrbiospsíquicos e comportamentais é tão difícil avançar no mesmo sentido?É urgente acabar com essa história <strong>de</strong> perigosida<strong>de</strong> que tanto faz mal aoDireito Penal, mas a Comissão que elaborou o PLS-236 <strong>de</strong>sprezou qualqueravanço aqui: loucos <strong>de</strong>vem ser eles, ao negar repercussão legislativaa tão evi<strong>de</strong>nte sofrimento social.Mas não há nada que não possa piorar. De fato, a recente opçãopela burocratização das tais doenças mentais c<strong>on</strong>segue ser ainda pior.Hoje nos Estados Unidos, a Criminologia crítica observa assustada a <strong>de</strong>ssubjetivaçãoda perigosida<strong>de</strong>, agora c<strong>on</strong>vertida em infalível perigosida<strong>de</strong>objetiva, fundada a partir <strong>de</strong> mecânico cálculo do risco atuarial <strong>de</strong> <strong>de</strong>linquênciaindividual. Resgata-se, com isso, aquela possibilida<strong>de</strong> inauguradano Direito Penal c<strong>on</strong>forme o mo<strong>de</strong>lo neoclássico <strong>de</strong> imputação <strong>de</strong>resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal, <strong>de</strong> c<strong>on</strong>ciliar a pena com a medida <strong>de</strong> segurança,prop<strong>on</strong>do-se o c<strong>on</strong>finamento civil daqueles que já cumpriram suas penascomo forma <strong>de</strong> redução do risco individual <strong>de</strong> reincidência. Como se vê,sem saber, a Comissão encarregada <strong>de</strong> elaborar o Projeto <strong>de</strong> Lei que postulaser o novo Código Penal brasileiro logrou a façanha <strong>de</strong> importar – semsabê-lo – a mais recente e grotesca tendência gerencialista no c<strong>on</strong>trolesocial ianque, firme em sua Política Criminal <strong>de</strong> erradicação da un<strong>de</strong>rclasse dos <strong>de</strong>mais parasitas sociais, como são chamados os novos membrosdas atuais classes perigosas.Mas, chega. A Professora Karam já havia dado c<strong>on</strong>ta <strong>de</strong>sta realida<strong>de</strong>abjeta. Vou, portanto, dar c<strong>on</strong>ta da outra e mais genérica: vou tratar <strong>de</strong>execução penal.Tema maldito este, e por isso não espanta que ninguém queira falar<strong>de</strong> execução penal, <strong>de</strong> envolver-se em seu lodo.Por que lodo da execução penal? Porque a engenharia do castigoé e será sempre c<strong>on</strong>trária à ética do perdão, que se estrutura sobre a alterida<strong>de</strong>,o rec<strong>on</strong>hecimento do outro. Não, certamente não é disso quetrata a Execução Penal, lugar preferencial para a negação do outro. Pensarcomo e quanto <strong>de</strong>ve sofrer alguém, ora isso nunca vai dignificar o ser humano.Mas os penalistas precisam, por resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong>, envolver-se emquestões como essa. Seria <strong>de</strong> se esperar, portanto, que o fizessem com amáxima resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong>, ao elaborar um programa pós-mo<strong>de</strong>rno paraR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 115-125, out.-<strong>de</strong>z. 2012 117


o castigo. Que nada. O Projeto é, neste p<strong>on</strong>to – mas dizem meus colegasque também nos <strong>de</strong>mais – pior do que o pior pesa<strong>de</strong>lo da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.Antes <strong>de</strong> <strong>de</strong>nunciar todos estes p<strong>on</strong>tos, tão ruins, seria <strong>de</strong> especularos motivos <strong>de</strong>sta insistência no anacr<strong>on</strong>ismo pe<strong>de</strong>stre da pena. Talvez,um <strong>de</strong>les, tenha sido a composição bastante homogênea da Comissão,formada por pessoas que não têm uma história acadêmica <strong>de</strong> <strong>de</strong>staqueou mesmo algum c<strong>on</strong>tato transdisciplinar. A homogeneida<strong>de</strong> sempre éum risco, porque a falta <strong>de</strong> heterogeneida<strong>de</strong> imobiliza, castra diversaspossibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> inovação, que não aparecem no marasmo das velhasi<strong>de</strong>ias. Acompanhados <strong>de</strong> uma classe política que não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> surpreen<strong>de</strong>rpor sua incompetência e imoralida<strong>de</strong>, os membros da Comissãomostraram-se também, como comprova a experiência <strong>de</strong> boa parte dospresentes, frequentemente arrogantes no momento <strong>de</strong> incorporar sugestõesque salvariam a aposta carcerária do terrível senso <strong>de</strong> ridículo queagora lhes sobrevém.Que o Projeto circule sob a alcunha <strong>de</strong> “Projeto Sarney” <strong>de</strong>veriaser um aviso suficiente. Por certo, ao ouvir este sobrenome, estaríamoslegitimados a supor, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já, que o Projeto seria c<strong>on</strong>servador. Mas não, oProjeto c<strong>on</strong>segue ser reaci<strong>on</strong>ário.Então, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já, enfatizo que não há apologia ao projeto que c<strong>on</strong>tornesua mediocrida<strong>de</strong> ou que o torne viável no Estado Democrático <strong>de</strong>Direito. Até porque, o que <strong>de</strong>le po<strong>de</strong>ria se salvar, dificilmente seria aprovadopor um C<strong>on</strong>gresso col<strong>on</strong>izado pelos mais fiéis a<strong>de</strong>ptos do retrocessocivilizatório. Portanto, toda crítica aqui exposta é radical; o Projeto não<strong>de</strong>ve passar, pelo bem da <strong>de</strong>mocracia que nos resta. Só digo isso porquepretendo evitar, tratando-se <strong>de</strong> um discurso oral, que por eventualmenteavançar em aspectos mais técnicos, isto é, ao tratar das especificida<strong>de</strong>s doProjeto, minhas palavras possam soar como alguma forma <strong>de</strong> colaboraçãoindireta. Ou seja, se você critica p<strong>on</strong>tos do projeto a impressão que po<strong>de</strong>passar é que ele tem c<strong>on</strong>serto. Mas, que fique claro, não tem c<strong>on</strong>serto. Etambém não quero parecer exagerado, não sou a<strong>de</strong>pto da escatologia. Éque o Projeto é mesmo muito, muito ruim. E em matéria <strong>de</strong> pena privativa<strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, medievalmente ruim.Quando pensamos que a tarefa da Comissão era <strong>de</strong> compatibilizaro reformado Código <strong>de</strong> 40 com a C<strong>on</strong>stituição <strong>de</strong> 1988, seria legítimo suporque isso redundaria na rea<strong>de</strong>quação da criminalização primária, in-118R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 115-125, out.-<strong>de</strong>z. 2012


clusive – ou especialmente – a relativa à execução da pena, c<strong>on</strong>formandoo projeto penitenciário ao c<strong>on</strong>junto <strong>de</strong> garantias individuais que o textoc<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>al prevê. Em suma, o resultado <strong>de</strong>veria ter sido o <strong>de</strong> um DireitoPenal mínimo, com poucos crimes, penas mais brandas, formas <strong>de</strong>censura não encarceradoras etc.Nada disso. Preferiram solenemente ignorar mais <strong>de</strong> cem anos <strong>de</strong>documentada pesquisa criminológica, e insistiram no isomorfismo reformistado cárcere. Sem querer saber das <strong>de</strong>terminações do crime – isto é,dos processos <strong>de</strong> criminalização – não tinham mesmo como elaborar umaPolítica Criminal – no sentido <strong>de</strong> c<strong>on</strong>junto <strong>de</strong> estratégias para repressão,prevenção e tratamento das c<strong>on</strong>sequências da criminalida<strong>de</strong> – inteligente,raci<strong>on</strong>al e preferencialmente não-violenta. Resta-nos supor que o <strong>de</strong>liberado<strong>de</strong>sprezo pela jurisprudência superior produzido pela ciência éantes fruto da ingenuida<strong>de</strong>, porque a alternativa seria o cinismo. Nada <strong>de</strong>espantar, já que não raro das melhores intenções se pavimentam as viasrápidas do inferno.Estas vias nos levam aos artigos 45 a 70, no que se refere à ExecuçãoPenal. Vejamos o horiz<strong>on</strong>te que projetam.Primeiro, o PLS-236 acaba com a distinção entre reclusão e <strong>de</strong>tençãoalegando que a diferenciação é <strong>de</strong>snecessária. Ora, ao acabar com adistinção entre reclusão e <strong>de</strong>tenção, eles estão afirmando o regime <strong>de</strong>execução <strong>de</strong> pena privativa <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> como o centro <strong>de</strong> gravida<strong>de</strong> daPolítica Penal brasileira; a distinção tem uma razão <strong>de</strong> ser, <strong>de</strong> afirmar amenor censurabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> certos fatos, que autorizam medidas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> jánão absolutamente cruéis para fins <strong>de</strong> incapacitação pessoal. Este, todavia,é o menor dos problemas. A gran<strong>de</strong> questão é a disciplina da pena,como exp<strong>on</strong>ho a seguir.Segundo, a previsão <strong>de</strong> pena é, no mais, exatamente igual à quetemos hoje com uma terrível exceção, que é a inclusão da perda <strong>de</strong> bense valores, que, <strong>de</strong> certa maneira, restitui materialmente o c<strong>on</strong>fisco, quejá não estava mais em uso, felizmente, embora previsto na C<strong>on</strong>stituição –que não é <strong>de</strong> todo <strong>de</strong>mocrática.De toda sorte, o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> execução <strong>de</strong> pena que eles privilegiamé uma combinação estranha à qual o Brasil a<strong>de</strong>re entusiasticamente. Émeio sistema <strong>de</strong> Auburn, meio sistema Filadélfia, mistura que não se digereR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 115-125, out.-<strong>de</strong>z. 2012 119


porque não há como combinar a aposta no isolamento celular com essadisciplina <strong>de</strong> ressocialização pelo trabalho, ou seja, mantemos o sistema<strong>de</strong> permanente vigilância e c<strong>on</strong>tenção individual e aposta no trabalhocomo salvação do sujeito, em nova tautologia <strong>de</strong>strutiva. Esta aposta nocentenário fracasso da pena para reforma é tão revoltante para um criminólogo,que eles se recusam a resp<strong>on</strong><strong>de</strong>r, <strong>de</strong> bom grado, ao menos, à perguntasobre os fins reais da pena criminal; bastaria, nada mais, ap<strong>on</strong>tarpara aquela pilha <strong>de</strong> livros que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito antes da década <strong>de</strong> 70, nãocansa <strong>de</strong> repetir a falência da instituição carcerária e do discurso c<strong>on</strong>struídopara encobrir suas c<strong>on</strong>tradições fundamentais. Daí porque, a todoinstante, <strong>de</strong> maneira explícita ou implícita, a fundamentação do Projetoaposte em uma tradição cultural. É isso quer permeia o texto, afirmandoque o código tem por base uma tradição cultural, mas o Brasil não precisadisso em termos <strong>de</strong> pena. A nossa tradição cultural em termos <strong>de</strong> pena éculturalmente horrível, na nossa memória punitiva está a pena <strong>de</strong> açoite,galés e morte para os escravos, o <strong>de</strong>gredo, o banimento, a pena <strong>de</strong> trabalhosforçados etc. Nossa tradição cultural é em matéria <strong>de</strong> Execução Penaluma porcaria, nossa cultura punitivista é muito forte. Não precisamos <strong>de</strong>tradição cultural aqui. Em matéria <strong>de</strong> pena, ainda reclamamos um processocivilizatório.Outro sintoma da burrice na aposta da pena – evidência <strong>de</strong> queninguém na Comissão chegou perto daquela literatura fundamental quese espera <strong>de</strong> alguém alfabetizado em Ciências Criminais – está no c<strong>on</strong>dici<strong>on</strong>amentoexcessivo <strong>de</strong> etapas <strong>de</strong> passagem, afirmando novamente aressocialização como um objetivo da prisão. Ora, é simplesmente muitaignorância querer ressocializar pela prisão: <strong>on</strong><strong>de</strong>, exatamente, <strong>de</strong>u certoesse projeto, em qualquer lugar do mundo? Como se ressocializa umapessoa tirando-a da socieda<strong>de</strong>? Como se ressocializa alguém medianteprisi<strong>on</strong>alização?O fato é que é tão óbvio que a prisão não ressocializa ninguém queaté nos Estados Unidos, da década <strong>de</strong> 70 em diante, tanto a direita quantoa esquerda chegaram ao c<strong>on</strong>senso <strong>de</strong> parar com essa bobagem, e pararamcom esse discurso, cuja prática era absolutamente insustentável. Emtodo caso, na América do Norte, eles trocaram a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> ressocializaçãopela idéia <strong>de</strong> pura neutralização e passaram – <strong>de</strong> procurar a culpabilida<strong>de</strong>– a procurar uma perigosida<strong>de</strong> objetiva <strong>de</strong>finida pelo risco atuarial dosujeito. Não é, evi<strong>de</strong>ntemente, o que proporia qualquer ser humano com120R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 115-125, out.-<strong>de</strong>z. 2012


c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>ração pela existência <strong>de</strong> outro. O que quero ressaltar, apenas, éque até os precursores dos sistemas <strong>de</strong> Auburn e Filadélfia já chegaramao c<strong>on</strong>senso <strong>de</strong> que a prisão não ressocializa ninguém, diversificando aprisão e usando punições menos <strong>de</strong>moradas para a disciplina gerencial<strong>de</strong>sse risco individual.O terrível exemplo americano, o que chamamos <strong>de</strong> encarceramentoem massa leva o estandarte da pena, como se fosse uma procissão <strong>de</strong>fé, mas sob outro ritmo: o da incapacitação. Não se abre mão da prisãoporque não se abre mão das c<strong>on</strong>tradições fundamentais do sistema <strong>de</strong> estruturacapitalista. Ela segue; mas para seguir, diante <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> tãograve, foi preciso apostar em formas <strong>de</strong> reduzir o c<strong>on</strong>tingente carcerário,seja mediante solidarieda<strong>de</strong> ou tecnologia. Assim é o percurso que agoracaracteriza o sistema <strong>de</strong> justiça criminal estaduni<strong>de</strong>nse, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte daorientação i<strong>de</strong>ológica dos que trabalham a partir <strong>de</strong> sua realida<strong>de</strong>.Em cenário semelhante, <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> encarceramento – a quartamaior população carcerária do mundo, no Brasil – a única solução possível,en<strong>fim</strong>, já que seguimos a mesma via em outro passo, seria apostarem medidas <strong>de</strong>sencarceradoras, que aliviem a miséria da superpopulaçãopenitenciária, cuja composição expressa perfeitamente a seletivida<strong>de</strong> dosistema <strong>de</strong> justiça criminal. Que oportunida<strong>de</strong> ímpar se per<strong>de</strong>u, para pensarem novas formas <strong>de</strong> libertar, <strong>de</strong> aliviar o regime <strong>de</strong> execução, superara estúpida <strong>line</strong>arida<strong>de</strong> vertical do regime fechado até o regime aberto,avançar em saídas temporárias, mais amplas formas <strong>de</strong> livramento c<strong>on</strong>dici<strong>on</strong>alou restaurativas <strong>de</strong> encerrar violações <strong>de</strong> bens jurídicos que nãoprecisam passar pelo estigma da pena etc.O Brasil fez tudo ao c<strong>on</strong>trário do esperado em termos civilizatóriosnessa reforma, ou seja, não c<strong>on</strong>seguiu nem a<strong>de</strong>rir ao avanço da direitanos Estados Unidos. Isso é uma gran<strong>de</strong> frustração, não é? Quer dizer, pelomenos acompanhar os avanços da direita nos Estados Unidos. Mas não,c<strong>on</strong>seguiram ficar atrás da direita nos Estados Unidos. Pois eles acabaramcom o livramento c<strong>on</strong>dici<strong>on</strong>al! Uma tremenda irresp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> políticocriminal,uma barbarida<strong>de</strong> sem tamanho. Acabar com o livramento c<strong>on</strong>dici<strong>on</strong>al?O que eles pensam? Não é a vida <strong>de</strong>les, eles nunca se imaginampresos, ou seja, fazem um direito que não representam para eles, o quenecessariamente expressa uma justiça vingativa. E para cúmulo dos cúmulos,dizem que o outro substitutivo penal introduzido pelo Código <strong>de</strong>R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 115-125, out.-<strong>de</strong>z. 2012 121


40, o sursis, é anacrônico, porque existiriam as restrições <strong>de</strong> direito <strong>de</strong>s<strong>de</strong>a reforma <strong>de</strong> 84. Mas o sursis é garantia!Então chegamos a isso: livramento c<strong>on</strong>dici<strong>on</strong>al é <strong>de</strong>snecessário e asuspensão c<strong>on</strong>dici<strong>on</strong>al da pena é anacrônica.... não, não, anacrônica é aprisão, anacrônico é se apostar na reclusão e na progressão <strong>de</strong> regime, naortopedia moral do sujeito. Anacrônica é a Comissão, que não evoluiu. Ouretroce<strong>de</strong>u, c<strong>on</strong>forme o caso e a c<strong>on</strong>sciência <strong>de</strong> cada um.Terceiro, e para arrematar, restituíram o exame criminológico para aprogressão <strong>de</strong> regime. Ou seja, libertaram a criminologia etiológica <strong>de</strong> suajaula, para farsa <strong>de</strong>pois da tragédia. Que verg<strong>on</strong>ha será ter que explicar,se tudo <strong>de</strong>r errado e ninguém mais tiver siso no C<strong>on</strong>gresso, sendo esteabjeto Projeto aprovado, aos nossos colegas cientistas pelo mundo, que oBrasil <strong>de</strong>cidiu, na criminalização do século XXI, retornar ao <strong>fim</strong> do séculoXIX. A progressão agora, para ser obstruída, c<strong>on</strong>ta com novos palpiteiros,formados nas ciências do escuro da alma alheia. Que bela porcaria.Quarto e, por <strong>fim</strong>, em relação à reincidência, entendo que a falado painel da manhã já esgotou o assunto porque é, claro, absolutamentec<strong>on</strong>trária à idéia <strong>de</strong> culpabilida<strong>de</strong> porque o sujeito tem que ser punidopelo que ele fez agora, e não pelo que ele fez ou foi no passado, nempelo que ele é – ou acham que é. O tipo <strong>de</strong> injusto é precisamente isso,limite da atribuição <strong>de</strong> resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal, o que está amarrado pelosprincípios da culpabilida<strong>de</strong> e da resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal pessoal. Se nãofor assim, terei um direito penal da i<strong>de</strong>ologia da <strong>de</strong>fesa social. É por essecaminho que vai o Direito Penal Brasileiro? Vamos lutar para que nãoseja assim. Mas o po<strong>de</strong>r político que está por <strong>de</strong>trás <strong>de</strong>le nos coloca essapossibilida<strong>de</strong>. É por isso que quando começamos a ler o projeto dá atév<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> <strong>de</strong> rir, mas <strong>de</strong>pois do riso vem a c<strong>on</strong>sternação. Aí <strong>de</strong>pois vêm apreocupação, e o medo. A reincidência, no texto, <strong>de</strong>termina início da penaem regime fechado, impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> restritivas <strong>de</strong> direito como regra,agravamento da pena, prep<strong>on</strong><strong>de</strong>rância das circunstâncias <strong>de</strong>sfavoráveise interrupção da prescrição. Pensem como é lógico do p<strong>on</strong>to <strong>de</strong> vista dapunição: punir uma vez e se não <strong>de</strong>u certo, vai punir mais? Isso não faz omenor sentido. Se o Estado tem o sujeito à sua disposição e não faz nada<strong>de</strong> melhor para ele; <strong>de</strong>pois, ele acaba sendo novamente criminalizado,então o Estado <strong>de</strong>veria perceber que teve o “<strong>de</strong>do” <strong>de</strong>le. Se a reincidênciavai ser alguma coisa, <strong>de</strong>veria ser atenuante. O Estado teve a sua chance,122R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 115-125, out.-<strong>de</strong>z. 2012


teve a pessoa sobre o seu po<strong>de</strong>r e sobre o seu exame e não fez nada oufez algo pior. O Estado tem que assumir a resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong>, ele c<strong>on</strong>struiuesse cara, agora com certeza <strong>de</strong>formando-o c<strong>on</strong>forme critérios próprios<strong>de</strong> moralização individual. Se essa pessoa está há três anos na mão doEstado e volta a praticar um crime ou volta a ser acusado e criminalizadoem função <strong>de</strong> algo <strong>de</strong>finido como crime, po<strong>de</strong> ter certeza <strong>de</strong> que ele temresp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> sobre isso. Ao c<strong>on</strong>trário disso, se o Estado, cinicamente,volta para uma Política Penal que supõe que o crime é uma <strong>de</strong>cisão individuallivre e que o sujeito pratica um crime porque manifesta a v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong>antijurídica. En<strong>fim</strong>, mais um sintoma <strong>de</strong> que ninguém leu o que <strong>de</strong>veria eque o oportunismo falou mais alto.Sendo assim, por <strong>on</strong><strong>de</strong> começar, se não for ap<strong>on</strong>tando para aquelapilha <strong>de</strong> livros que ainda precisam ser lidos e que, nem, sequer, integrama maior parte dos currículos <strong>de</strong> Direito? Quantas faculda<strong>de</strong>s hoje têmca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> Criminologia ou Política Criminal como matéria curricular ouoptativa? Eu só c<strong>on</strong>heço duas Universida<strong>de</strong>s no Brasil que têm ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>Política Criminal no curso <strong>de</strong> Direito, precisamente o Curso <strong>de</strong> <strong>on</strong><strong>de</strong> saema maioria dos agentes da repressão. A Criminologia é mais frequente, masnas faculda<strong>de</strong>s privadas – absoluta maioria – vira uma matéria optativa e<strong>de</strong> pouco interesse, porque “não cai em c<strong>on</strong>curso” ou “não tem aplicaçãoprática”. Pois foram precisamente os que só pensam no c<strong>on</strong>curso e vivem<strong>de</strong> prática que, por falta <strong>de</strong> Criminologia e Política Criminal na cabeça reproduzirama tragédia penal que reforça a prisi<strong>on</strong>alização.Agora que a coisa foi toda exposta, a maioria dos membros da Comissãoque são minimamente próximos do mundo acadêmico está comverg<strong>on</strong>ha. Porque parece que eles não estudaram, ao menos se o pensamento<strong>de</strong>les <strong>de</strong> alguma maneira está expresso no texto do Projeto <strong>de</strong> Leido Senado 236. Entendo, perfeitamente, essa verg<strong>on</strong>ha; quem quer terpor legado este tal “Código”, ou seja, quem quer levar c<strong>on</strong>sigo essa herançaterrível, maldita, c<strong>on</strong>taminada com essa engenharia <strong>de</strong> pena do séculoXIX? Ninguém em bom senso negaria o fato <strong>de</strong> que teria sido melhorressuscitar o Código <strong>de</strong> 69, sem tirar nem por, do que tentar avançar comesse quasi-Projeto, para homenagear o Prof. Juarez Cirino dos Santos, quese referiu a ele como Quasimodo, embora isso pareça insulto ao nossobom Quasimodo, que era marginalizado sem ter feito mal a ninguém, aoc<strong>on</strong>trário do que preten<strong>de</strong> o Projeto. Afinal, o Código <strong>de</strong> 69 era, tecnicamente,muito melhor.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 115-125, out.-<strong>de</strong>z. 2012 123


Para terminar, vou falar um pouco das penas restritivas <strong>de</strong> direitoe da execução da pena <strong>de</strong> multa. O projeto é tão ruim que prevê que aexecução da pena <strong>de</strong> multa vai voltar a ser tema <strong>de</strong> Execução Penal, nãomais c<strong>on</strong>stituindo dívida <strong>de</strong> valor. É como se os promotores não tivessemmais nada para fazer, e agora vão pagar <strong>de</strong> coletores e cobrar multa. Restituímosassim, o xerife medieval: ou você me paga ou eu te prendo. Sabequal o nome disso? Extorsão praticada pelo Estado. Estado que já temessa prática nos crimes <strong>de</strong> s<strong>on</strong>egação fiscal: se a pessoa pagar, acaba aameaça <strong>de</strong> pena. Paga ou vai preso. Sabem qual é o argumento? É que osprocuradores da Fazenda acham o valor muito baixo para cobrar. Entãotem uma pena <strong>de</strong> multa para cobrar, resultado <strong>de</strong> uma c<strong>on</strong><strong>de</strong>nação, maso apetite do leão da Receita é tanto que está com obesida<strong>de</strong> mórbida edoença cor<strong>on</strong>ariana, <strong>de</strong> modo que esse leão gordo, opulento e cardíac<strong>on</strong>ão c<strong>on</strong>segue mais correr atrás das pequenas refeições.Se você usa uma ameaça <strong>de</strong> pena para cobrar uma dívida, isso nãosó viola a C<strong>on</strong>stituição mas também viola o Pacto <strong>de</strong> São José da CostaRica. Mas, afinal e à luz da nossa prática forense, o que importa isso, seninguém dá mesmo muita atenção para a C<strong>on</strong>stituição ou Tratados Internaci<strong>on</strong>ais<strong>de</strong> Direitos Humanos, especialmente estes últimos, que sãoalgo que a classe política brasileira assina lá fora com alguma pompa, masque ninguém respeita ou leva a sério na volta. Seja como for, em termospuramente formais, o certo é que, no or<strong>de</strong>namento jurídico brasileir<strong>on</strong>ão po<strong>de</strong> haver prisão por dívida, civil ou penal, pública ou privada. Juristas,ao menos, <strong>de</strong>veriam saber disso. Mas o Brasil c<strong>on</strong>segue a proeza<strong>de</strong> m<strong>on</strong>tar uma Comissão, que apresenta um Projeto <strong>de</strong> lei e o submeteao Senado Fe<strong>de</strong>ral, no qual se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que você po<strong>de</strong> cobrarmulta mediante ameaça <strong>de</strong> pena pelo Ministério Público. A mensagem éclara: pague; caso c<strong>on</strong>trário, vai preso ou sofre c<strong>on</strong>fisco. Se tiver sorte, namelhor das hipóteses, recebe uma pena restritiva <strong>de</strong> direitos, e vai fazerprestação <strong>de</strong> serviços à comunida<strong>de</strong>. Terrível, triste, reaci<strong>on</strong>ário.Essas eram as c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rações que eu tinha para fazer; retorno agorado lodo, sujo e triste por ter que tratar disso. Mas a própria possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> estar aqui, discutir e apresentar essas c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rações com e para vocês,é importante <strong>de</strong>mais como para que eu me preocupe com estética ou humor.Assim foi que tive que ir até a pior parte da Execução Penal – exceto124R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 115-125, out.-<strong>de</strong>z. 2012


a própria execução – para pinçar como se projeta o sofrimento dos outros;e voltar, com más notícias.Este Seminário começou em <strong>on</strong>ze <strong>de</strong> setembro. Essa data, emboracoincida com o ataque às torres gêmeas em Nova Iorque, po<strong>de</strong> ser lembradapor um evento ainda mais importante para a história da AméricaLatina. É que no <strong>on</strong>ze <strong>de</strong> setembro o cínico general Pinochet <strong>de</strong>rrubou ogoverno <strong>de</strong>mocrático <strong>de</strong> Salvador Allen<strong>de</strong>, restituindo a mais radical lógicapunitivista. Então se um Seminário que enfrenta temas como a misériada instituci<strong>on</strong>alização da violência parte <strong>de</strong>sta data, que ao menos sirvapara exigir que nós não sejamos, hoje, tão cínicos em relação ao sofrimentoalheio, esc<strong>on</strong><strong>de</strong>ndo-nos atrás <strong>de</strong> palavras.Para que, jamais, a gente chame <strong>de</strong> Revolução o que é golpe, <strong>de</strong>terrorismo o que é Resistência <strong>de</strong>mocrática e <strong>de</strong> Código esse projeto.Muito obrigado.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 115-125, out.-<strong>de</strong>z. 2012 125


Delação Premiada no Projeto<strong>de</strong> Reforma do Código Penal:nova roupagem,antigos problemasProf. Dr. Le<strong>on</strong>ardo Isaac YarochewskyMestre e Doutor em Direito pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral<strong>de</strong> Minas Gerais. Advogado criminalista. Professor <strong>de</strong>Direito Penal da Graduação e Pós-Graduação da Faculda<strong>de</strong><strong>de</strong> Direito da PUC-MG. Autor dos livros: Dainexigibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> c<strong>on</strong>duta diversa (Ed. Del Rey) e Dareincidência Criminal (Ed. Mandamentos). Membrodo Instituto Brasileiro <strong>de</strong> Ciências Criminais (IBCCRIM)“Na hora da duraVocê abre o ca<strong>de</strong>adoE dá <strong>de</strong> ban<strong>de</strong>jaOs irmãozinhos pro <strong>de</strong>legadoNa hora da duraVocê abre o bico e sai cagüetandoEis a diferença, mané, do otário pro malandroEis a diferença do otário pro malandroE no pau-<strong>de</strong>-arara você c<strong>on</strong>fessou o que fez e não fezE <strong>de</strong> madrugada gritava gemendo <strong>de</strong>ntro do xadrezQuando via o xerife se ajoelhava e ficava rezandoEis a diferença, canalha, do otário pro malandroEis a diferença do otário pro malandroE na colônia penalAssim que você chegouDeu <strong>de</strong> cara com os bichos que você cagoetouAí você foi obrigado a usar fio-<strong>de</strong>ntal e andar rebolando126R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 126-142, out.-<strong>de</strong>z. 2012


Eis a diferença, canalha, do otário pro malandroEis a diferença do otário pro malandro”Bezerra da Silva, Na hora da dura1. C<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rações iniciaisDes<strong>de</strong> o final <strong>de</strong> junho do corrente ano, tramita perante o C<strong>on</strong>gressoNaci<strong>on</strong>al o Projeto <strong>de</strong> Reforma do Código Penal 1 , que carrega c<strong>on</strong>sigoinúmeros dispositivos que, acaso aprovados, darão ensejo a mudançassignificativas em <strong>de</strong>terminados institutos ora em vigência em nosso or<strong>de</strong>namentojurídico.Dentre as propostas trazidas pela Comissão <strong>de</strong> Juristas para a Elaboraçãodo Anteprojeto <strong>de</strong> Código Penal, está a inclusão no corpo do CódigoPenal da <strong>de</strong>nominada <strong>de</strong>lação premiada, <strong>de</strong>sta feita, intitulada Colaboraçãocom a Justiça. Não obstante o Projeto <strong>de</strong>senhe novo regramentopara a aplicação do instituto, temos que este não se trata <strong>de</strong> novida<strong>de</strong> nalegislação penal brasileira.Neste cenário <strong>de</strong> mudanças, o objetivo do presente artigo é suscitaro <strong>de</strong>bate a respeito do tema, a partir da nova estrutura normativa propostapela aludida Comissão, e ap<strong>on</strong>tar que, em que pese as inovaçõesapresentadas, a <strong>de</strong>lação premiada c<strong>on</strong>tinua c<strong>on</strong>taminada por uma transgressãoética invencível, tratando-se <strong>de</strong> irrefragável rec<strong>on</strong>hecimento dofracasso do Estado no combate à nova criminalida<strong>de</strong>.2. C<strong>on</strong>ceito e origem da <strong>de</strong>lação premiadaSegundo Bittar (2011, p. 226), a palavra “<strong>de</strong>latar”, proveniente dolatim, sob o p<strong>on</strong>to <strong>de</strong> vista etimológico, significa “ação <strong>de</strong> <strong>de</strong>latar, <strong>de</strong>nunciar,revelar”. De Plácido e Silva, em sua obra Vocábulo Jurídico, ao <strong>de</strong>finir“<strong>de</strong>lação”, c<strong>on</strong>signa que: “originado <strong>de</strong> <strong>de</strong>latio, <strong>de</strong> <strong>de</strong>ferre (na sua acepção<strong>de</strong> <strong>de</strong>nunciar, <strong>de</strong>latar, acusar, <strong>de</strong>ferir), é aplicado na linguagem forensemais propriamente para <strong>de</strong>signar a <strong>de</strong>núncia <strong>de</strong> um <strong>de</strong>lito”.Aplicada na ciência criminal, o vocábulo enc<strong>on</strong>tra-se qualificadopela expressão “premiada” e c<strong>on</strong>siste na assunção da própria resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong><strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma perspectiva criminal em que o agente estava inseri-1 Projeto <strong>de</strong> Lei n. 236/2012.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 126-142, out.-<strong>de</strong>z. 2012 127


do, auxiliando na i<strong>de</strong>ntificação dos <strong>de</strong>mais envolvidos. Ante a colaboração<strong>de</strong>sse agente, é facultado ao juiz a aplicação <strong>de</strong> benesses quando da análiseda c<strong>on</strong>duta e da pena.Em outras palavras, c<strong>on</strong>siste “na redução da pena, ou em algunscasos, até mesmo o seu perdão, para o colaborador que preencher osrequisitos legais, somente sendo c<strong>on</strong>cedida a <strong>fim</strong> do processo criminal, nasentença c<strong>on</strong><strong>de</strong>natória” (F<strong>on</strong>seca, Franzini, 2005, p. 9).Segundo Laudand (apud Estellita, 2009, p. 2),a <strong>de</strong>lação premiada c<strong>on</strong>sagrada na legislação brasileira c<strong>on</strong>figurainstituto <strong>de</strong> direito material a partir do qual, preenchidos<strong>de</strong>terminados requisitos previstos em lei, po<strong>de</strong>rá o imputadoser beneficiado pela autorida<strong>de</strong> judicial com redução <strong>de</strong>pena ou perdão judicial.De origem italiana, a <strong>de</strong>lação premiada, também <strong>de</strong>nominada colaboraçãoesp<strong>on</strong>tânea com a justiça, surgiu na década <strong>de</strong> 70, quandodos julgamentos dos <strong>de</strong>litos praticados pela famigerada máfia italiana 2 .Em verda<strong>de</strong>, não obstante o instituto tenha sido empregado na década<strong>de</strong> 80 na Espanha, no âmbito das práticas terroristas, o mo<strong>de</strong>lo que <strong>de</strong>fato influenciou e influencia diversos or<strong>de</strong>namentos jurídicos é o mo<strong>de</strong>loitaliano.Grosso modo, a máfia italiana surge a partir <strong>de</strong> um acordo entre opo<strong>de</strong>r público e os criminosos, com o objetivo <strong>de</strong> recuperar os bens objetos<strong>de</strong> crime. Assim, havia uma negociação, na qual a res era restituídae o criminoso findava impune. Posteriormente, os criminosos passarama oferecer proteção para a camada influente política e ec<strong>on</strong>omicamente,exigindo como c<strong>on</strong>traprestação parte daquilo que era produzido ou ganhopelos protegidos. Com o tempo, sob a influência da globalização, tais relaçõesextrapolaram a fr<strong>on</strong>teira italiana, ganhando o mundo, especialmenteEuropa, Estados Unidos e América do Sul. Por outro lado, essa expansãorepresentou o início <strong>de</strong> inúmeros c<strong>on</strong>flitos entre as famílias, em busca <strong>de</strong>po<strong>de</strong>r territorial, e da reação estatal quanto ao mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> organização.A essa altura, o furto e o roubo passaram a serem <strong>de</strong>litos secundários,<strong>de</strong>dicando-se a organização principalmente ao tráfico <strong>de</strong> drogas e à lavagem<strong>de</strong> dinheiro.2 Sobre a máfia italiana, ver Bittar (2011, p.228).128R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 126-142, out.-<strong>de</strong>z. 2012


C<strong>on</strong>forme explica Bittar (2011, p. 228), por estarem inseridas nacultura italiana como fenômeno social e tradici<strong>on</strong>al, as organizações mafiosassó foram objeto <strong>de</strong> preocupação nos idos <strong>de</strong> 18<str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, quando da unificaçãoitaliana, em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma preocupação quanto a uma posturainstituci<strong>on</strong>al da relação entre política, socieda<strong>de</strong> e criminalida<strong>de</strong>.O alastramento do terrorismo e da extorsão mediante sequestrofoi o estopim para que Estado Italiano buscasse formas mais incisivas <strong>de</strong>combater a nova criminalida<strong>de</strong>, especialmente porque a elevada incidênciados menci<strong>on</strong>ados crimes criava na socieda<strong>de</strong> a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que as instituiçõespúblicas não eram capazes <strong>de</strong> oferecer a <strong>de</strong>vida proteção. No aspectosanci<strong>on</strong>atório, além do aumento das penas, foram criados instrumentosque possibilitassem a quebra do vínculo no interior das organizações,“através <strong>de</strong> normas especiais que, por um lado, agravassemas sanções dos autores dos crimes e, por outro, possibilitassema c<strong>on</strong>cessão <strong>de</strong> atenuante a quem, dissociando-se doscúmplices, ajudasse as autorida<strong>de</strong>s a evitarem c<strong>on</strong>sequênciasdo crime, ou colaborasse na elucidação dos fatos, ou nai<strong>de</strong>ntificação dos <strong>de</strong>mais agentes. (Bittar, 2011, p. 230).Essa normativida<strong>de</strong> especial implementada pela Itália buscou adotartratamento diferenciado aos colaboradores em inúmeros aspectos,relaci<strong>on</strong>ados à investigação, ao direito material, ao direito processual eaté mesmo ao direito penitenciário, o que possibilitou o êxito quanto aoc<strong>on</strong>trole da máfia.Segundo Bittar (2011, p. 231), em 1974, por meio da Lei 497, o <strong>de</strong>nominadodireito premial foi introduzido no or<strong>de</strong>namento italiano e, notocante à <strong>de</strong>lação premiada, seu art. 6° e trouxe uma atenuante aplicávelàqueles envolvidos que auxiliassem a vítima a recobrar a liberda<strong>de</strong> sem opagamento <strong>de</strong> resgate.Posteriormente, outras normas foram elaboradas no mesmo sentido.A Lei 15 <strong>de</strong> 1980, além <strong>de</strong> criar novos tipos penais, estabeleceu benessesrelaci<strong>on</strong>adas à <strong>de</strong>lação, nos casos em que um envolvido se <strong>de</strong>svinculasseda organização criminosa e se esforçasse para evitar c<strong>on</strong>sequênciasda ativida<strong>de</strong> criminosa, ou ajudasse à autorida<strong>de</strong> policial e a judicial aR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 126-142, out.-<strong>de</strong>z. 2012 129


localizar provas, bem assim capturar os <strong>de</strong>mais participantes. Nesta situação,a prisão perpétua era substituída pela pena <strong>de</strong> reclusão <strong>de</strong> 12 a20 anos, e algumas penas reduzidas <strong>de</strong> um terço a meta<strong>de</strong>. Ante o êxitoda citada medida, em 1982, com a Lei 304, foi aumentado o patamar <strong>de</strong>redução da pena e sendo expandidas as hipóteses <strong>de</strong> colaboração, que,<strong>de</strong>sta feita, englobaria também aquele que simplesmente se dissociassedo grupo, numa espécie <strong>de</strong> colaboração passiva.Essas duas leis (15 e 304) trataram das figuras do “dissociado”,do “arrependido” e do “colaborador”, cada um com um regramentoespecífico.Assinala Pellegrini (1995, p. 78) que o “arrependido” c<strong>on</strong>siste naqueleindivíduo que antes da sentença c<strong>on</strong><strong>de</strong>natória dissolve a organização,se retira <strong>de</strong>sta, ou se entrega esp<strong>on</strong>taneamente, oferecendo informaçõesacerca da organização, ou, ainda, impe<strong>de</strong> a execução dos crimespara os quais esta se instituiu, aplicando-se a extinção da punibilida<strong>de</strong>.A<strong>de</strong>mais, àquele que se entrega à autorida<strong>de</strong> policial ou judicial antes <strong>de</strong>ser expedido o mandado <strong>de</strong> prisão, po<strong>de</strong> ter esta medida substituída poroutra mais branda.Já o “dissociado”, que antes da sentença c<strong>on</strong><strong>de</strong>natória, atua nosentido <strong>de</strong> evitar ou amenizar as c<strong>on</strong>sequências do crime ou impe<strong>de</strong> novoscrimes e c<strong>on</strong>fessa a participação, é c<strong>on</strong>cedida a redução da pena ea substituição da prisão perpétua pela reclusão, <strong>de</strong> quinze a vinte e umanos.O “colaborador”, além <strong>de</strong> todas as posturas acima, auxilia na obtenção<strong>de</strong> provas, individualização das c<strong>on</strong>dutas e captura dos <strong>de</strong>maismembros, razão pela qual po<strong>de</strong> ter a pena reduzida pela meta<strong>de</strong>, bemcomo ter substituída a prisão perpétua pela reclusão <strong>de</strong> <strong>de</strong>z a doze anos.Foi também no ano <strong>de</strong> 1982 que o crime <strong>de</strong> associação mafiosafoi criado, passando a fazer parte do Código Penal Italiano, por meio daLei “Rognomi- La Torre”. Segundo Bittar (2011, p. 232), o <strong>de</strong>stino da máfiacomeça a ser traçado com a inserção <strong>de</strong>ste tipo penal e, <strong>de</strong> posse dos <strong>de</strong>poimentos<strong>de</strong> integrantes da máfia, foi iniciado em 1986 o <strong>de</strong>nominado“maxiprocesso”, que houve por obter a c<strong>on</strong><strong>de</strong>nação da maioria dos réus,inclusive daqueles c<strong>on</strong>hecidos por capimafia (cabeças da máfia). A estratégiafoi introduzida também quanto ao crime <strong>de</strong> tráfico <strong>de</strong> drogas.130R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 126-142, out.-<strong>de</strong>z. 2012


Em 1991, com o assassinato do juiz Rosário Livatino, aumentou-sea pressão, especialmente advinda dos magistrados da Sicília, no sentido<strong>de</strong> que o combate às organizações criminosas se <strong>de</strong>sse <strong>de</strong> modo mais incisivo,razão pela qual com a Lei 82, <strong>de</strong> 14 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1991, foi disciplinadaa proteção aos colaboradores e testemunhas. Dentre as medidas <strong>de</strong>proteção, estavam a assistência ao colaborador, bem como à sua família,a troca <strong>de</strong> en<strong>de</strong>reços e documentos e o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> sigilo. Por <strong>fim</strong>, a Lei 203,<strong>de</strong> Julho <strong>de</strong> 1991, trouxe mais benefícios aos mafiosos colaboradores.Sob o aspecto processual, as <strong>de</strong>clarações dos colaboradores tidoscomo suspeitos são analisadas criteriosamente. Somente é aceito comoprova aquele testemunho que restar corroborado pelas <strong>de</strong>mais provasproduzidas. Assim, o exame da <strong>de</strong>claração passa pela análise da credibilida<strong>de</strong>do <strong>de</strong>clarante (pers<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>, passado, relação com os acusados),da c<strong>on</strong>fiabilida<strong>de</strong> da informação (precisão, coerência, serieda<strong>de</strong>) e da ratificaçãopor outras provas.Já na fase penitenciária, o tratamento c<strong>on</strong>ferido segue a mesmalógica do direito material, isto é, o recru<strong>de</strong>scimento aos que se mostramirredutíveis à colaboração, e a flexibilização para os colaboradores, cominúmeras facilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> obtenção <strong>de</strong> melhorias na execução da pena.Em 2001, foi realizada uma gran<strong>de</strong> reforma nos vários campos danormativida<strong>de</strong> premial. As principais modificações se <strong>de</strong>ram no âmbito dodireito processual, ante o fenômeno da progressão acusatória, ou seja, da“<strong>de</strong>sistência” do colaborador na fase processual, em virtu<strong>de</strong> do <strong>de</strong>sc<strong>on</strong>tentamentoquanto à proteção oferecida.Em que pese a nítida estruturação normativa italiana com o objetivo<strong>de</strong> <strong>de</strong>ter e resp<strong>on</strong>sabilizar a máfia, a operazi<strong>on</strong>e mani pulite, inicialmenteaclamada pela população italiana, foi ganhando espaço na crítica ante osabusos cometidos pelo Ministério Público e pelos juízes, especialmente“pelos exageros ap<strong>on</strong>tados nos encarceramentos preventivos, tanto quea operação passou a ser apelidada pela imprensa <strong>de</strong> ‘operação algemasfáceis’” (Pellegrini, 1995, p. 85). Iniciava-se um embate entre os operadoresdo Direito, divididos entre o argumento <strong>de</strong> combate à criminalida<strong>de</strong> edo respeito às garantias fundamentais.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 126-142, out.-<strong>de</strong>z. 2012 131


O legado que se po<strong>de</strong> extrair das raízes da <strong>de</strong>lação premiada, é quea sua criação foi influenciada pelas circunstâncias e idiossincrasias peculiaresda Itália naquele momento, e que, c<strong>on</strong>forme se abordará em seguida,o transplante <strong>de</strong> tais i<strong>de</strong>ias para o or<strong>de</strong>namento jurídico brasileirorepresentou um equívoco do legislador, mormente pelas diferenças <strong>de</strong>criminalida<strong>de</strong> e pela discrepante estrutura.3. Inserção da <strong>de</strong>lação premiada no or<strong>de</strong>namento jurídicoatualUma digressão quanto ao percurso da legislação brasileira <strong>de</strong>m<strong>on</strong>straque a <strong>de</strong>lação premiada ganhou seus primeiros traços ainda nasOr<strong>de</strong>nações Filipinas, em vigência <strong>de</strong> 1<str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>3 a 1830, e que c<strong>on</strong>signava afaculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> se perdoar o indivíduo que <strong>de</strong>latasse c<strong>on</strong>spirações ou c<strong>on</strong>jurações,bem como fornecia dados que ajudassem na prisão dos envolvidos(“Como se perdoará aos malfeitores, que <strong>de</strong>rem outros à prisão”)(Bittar, 2011, p. 240).No entanto, o termo inicial do instituto, já com a <strong>de</strong>nominação <strong>de</strong><strong>de</strong>lação premiada, teve início após a promulgação da C<strong>on</strong>stituição Fe<strong>de</strong>ralque, inspirada no Movimento da Lei e Or<strong>de</strong>m, trouxe dispositivo acerca dacriação da lei dos crimes hedi<strong>on</strong>dos (art. 5º, inciso XLIII, da CF).Influenciados pela excitação gerada pela operação italiana mani pulite,bem assim pelo clamor social advindo da sensação <strong>de</strong> insegurança incrementadapelos meios <strong>de</strong> comunicação sensaci<strong>on</strong>alistas e pelo aumento docrime <strong>de</strong> extorsão mediante sequestro <strong>de</strong> pessoas tidas como importantes,a primeira imersão do instituto sob análise no or<strong>de</strong>namento jurídico brasileiroocorreu com o advento da Lei 8.072/90 (Lei <strong>de</strong> Crimes Hedi<strong>on</strong>dos).Com a menci<strong>on</strong>ada lei, foi introduzido o §4º no art. 159 do CódigoPenal, e o primeiro direito premial, que inovou trazendo uma causa <strong>de</strong>diminuição <strong>de</strong> pena aplicável àquele que coautor ou partícipe da extorsãomediante sequestro, praticada por quadrilha ou bando, que auxiliassena localização das vítimas. Mais tar<strong>de</strong>, via modificação ensejada pela Lei9269/96, ampliou-se o rol <strong>de</strong> aplicação da <strong>de</strong>lação premiada, ao permitiro rec<strong>on</strong>hecimento do instituto diante do mero c<strong>on</strong>curso <strong>de</strong> pessoas, <strong>de</strong>forma que o tipo penal do art. 288 do Código Penal passou a ser dispensávelpara a c<strong>on</strong>cessão do prêmio.132R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 126-142, out.-<strong>de</strong>z. 2012


Além da previsão legal quanto ao crime <strong>de</strong> extorsão mediante sequestro,a Lei <strong>de</strong> Crimes Hedi<strong>on</strong>dos, especificamente em seu art. 8º 3 ,trouxe outra possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>lação premiada, <strong>de</strong>sta feita, estabelecendocausa <strong>de</strong> diminuição <strong>de</strong> pena, no patamar <strong>de</strong> um a dois terços, aplicávelexclusivamente ao crime <strong>de</strong> bando ou quadrilha, c<strong>on</strong>stituído para aprática <strong>de</strong> crimes hedi<strong>on</strong>dos, <strong>de</strong> tortura, tráfico <strong>de</strong> drogas ou terrorismo,para o participante ou associado que necessariamente auxilie no seu <strong>de</strong>smantelamento,através da <strong>de</strong>lação à autorida<strong>de</strong> competente.Destaca-se que, muito embora tenha sido a primeira aparição da<strong>de</strong>lação premiada, o seu uso foi extremamente restrito, em razão da ausência<strong>de</strong> normas procedimentais quanto à sua aplicação, tema que acabouficando a cargo da doutrina e da jurisprudência, e, ainda, pelo fato <strong>de</strong>não ter sido oferecida qualquer forma <strong>de</strong> segurança ao <strong>de</strong>lator.Posteriormente, precisamente 5 anos <strong>de</strong>pois, a lei que instituiumeios operaci<strong>on</strong>ais <strong>de</strong> prevenção e repressão ao crime <strong>de</strong> bando ou quadrilhae à famigerada organização criminosa, novamente trouxe a <strong>de</strong>laçãopremiada como instrumento <strong>de</strong> investigação. Criticada por se omitirquanto a uma <strong>de</strong>finição autônoma <strong>de</strong> criminalida<strong>de</strong> organizada, o art. 6ºda Lei 9.034/95, igualmente, prevê a incidência da causa <strong>de</strong> diminuição<strong>de</strong> pena, com redução <strong>de</strong> um a dois terços, nos crimes praticados pororganização criminosa, ao agente que colabora <strong>de</strong> modo esp<strong>on</strong>tâneo, <strong>de</strong>tal forma que c<strong>on</strong>siga c<strong>on</strong>tribuir para a elucidação da infração penal e suarespectiva autoria.Dois meses após a aprovação da Lei 9.034/95, foi promulgada a Lei9.080/95, que teve por objetivo ampliar as hipóteses <strong>de</strong> aplicação da <strong>de</strong>laçãopremiada. Para tanto, inseriu um parágrafo no art. 25 da Lei 7.492/86e um parágrafo no art. 16 da Lei 8.137/00.3 Há quem diga que o art. 8º da Lei 8.072/90 foi tacitamente revogado. “Deve ser <strong>de</strong>stacado que, embora o legislador– em c<strong>on</strong>sequência da promulgação <strong>de</strong> leis posteriores e que também tratavam do beneplácito – não tenhasido explícito quanto à revogação das hipóteses <strong>de</strong> <strong>de</strong>lação premiada previstas nas Leis 8.072/1990 (parágrafo únicodo art. 8º) e 9.269/1996 (§ 4º do art. 159 do CP); a amplitu<strong>de</strong> c<strong>on</strong>cedida ao instituto por força da Lei 9.807/1999,segundo Alberto Silva Franco, teria revogado a Lei 9.269/1996, ao não estruturar novos tipos incriminadores sobre<strong>de</strong>terminada matéria <strong>de</strong> proibição ou reformular tipos preexistentes, tendo apenas o duplo objetivo <strong>de</strong> estabelecernormas para a organização e manutenção <strong>de</strong> programas especiais <strong>de</strong> proteção a vítima e testemunhas ameaçadas,aliadas ao fato <strong>de</strong> o texto dos arts. 13 e 14 <strong>de</strong>sta lei ter criado as hipóteses <strong>de</strong> perdão judicial e <strong>de</strong> causa redutora<strong>de</strong> pena, com ampla abrangência e sem nenhuma vinculação a <strong>de</strong>terminados tipos legais, também não houve manifestaçãoexplícita sobre a hipótese <strong>de</strong> não c<strong>on</strong>templar a Lei 9.807/1999 a exclusão <strong>de</strong> sua incidência o § 4º do art.159do CP e o parágrafo único do art. 8º da Lei 8.072/1990 e, finalmente, por se tratar (no caso da Lei 9.807/1999)<strong>de</strong> norma penal mais benéfica, <strong>de</strong>vendo retroagir, c<strong>on</strong>forme <strong>de</strong>terminação do art. 5º, XL, da CF/1988”(Bittar, 2011,p. 244-245).R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 126-142, out.-<strong>de</strong>z. 2012 133


O que permite asseverar que este foi o momento em que abanalização do instituto da <strong>de</strong>lação premiada, <strong>de</strong>finitivamente,restou c<strong>on</strong>cretizada resi<strong>de</strong> no fato <strong>de</strong> que a possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> sua c<strong>on</strong>cessão não era mais restrita apenas aos crimes <strong>de</strong>maior gravida<strong>de</strong> [...] não só em face das penas cominadasnas normas incriminadoras <strong>de</strong>scritas na Lei 8.137/1990, bemcomo por restarem inseridas em uma modalida<strong>de</strong> criminosa(crimes fiscais) em que funções preventivas geral e especialda pena foram, absolutamente, minimizadas, em face da política<strong>de</strong>spenalizadora que envolve essa modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>litivao Brasil. (Bittar, 2011, p. 249).No mesmo sentido, seguiu a Lei <strong>de</strong> Lavagem De Capitais (Lei9.613/98), que, em seu art. 1º, §5º, registrou a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser aplicadaa <strong>de</strong>lação premiada. C<strong>on</strong>tudo, nesta oportunida<strong>de</strong>, o legislador houvepor colocar à disposição do julgador um rol maior <strong>de</strong> institutos aplicáveisante a colaboração do autor, coautor ou participe. Diferente dos outrosdispositivos que instituíram a <strong>de</strong>lação premiada, que previam unicamentea diminuição da pena, tratando-se <strong>de</strong> crime <strong>de</strong> lavagem <strong>de</strong> dinheiro, serápermitida a redução da pena, <strong>de</strong>vendo ser cumprida em regime inicialmenteaberto, perdão judicial ou substituição por pena restritiva <strong>de</strong> direitos.Neste p<strong>on</strong>to, vale esclarecer que, segundo Cervini Sanchez (1998,p. 344), para fins <strong>de</strong> <strong>de</strong>lação premiada só terá acolhida a colaboração doagente que assume a sua resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> e ap<strong>on</strong>ta outros envolvidos.Quando a colaboração se restringir à localização <strong>de</strong> bens e direitos ouvalores objeto do crime, será o caso <strong>de</strong> mera c<strong>on</strong>fissão premiada. Instaregistrar que, mais uma vez, o legislador, seguindo a tendência <strong>de</strong> banalizaçãoda <strong>de</strong>lação premiada, inseriu o instituto sem trazer qualquer normaprocedimental que regulasse a sua aplicação.Até então, todas as hipóteses <strong>de</strong> <strong>de</strong>lação premiada estavam diretamenterelaci<strong>on</strong>adas a crimes específicos e, portanto, possuíam aplicaçãorestrita. No entanto, com a Lei 9.807/99 (Lei <strong>de</strong> Proteção das Vítimas eTestemunhas), o instituto se esten<strong>de</strong>u a todo e qualquer <strong>de</strong>lito, trazendoduas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>sdobramento. O primeiro <strong>de</strong>les c<strong>on</strong>siste no perdãojudicial para os colaboradores primários, que c<strong>on</strong>tribuíram efetivamentee <strong>de</strong> forma voluntária para a investigação e a instrução, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> queresulte em : “I- a i<strong>de</strong>ntificação dos <strong>de</strong>mais coautores ou partícipes da ação134R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 126-142, out.-<strong>de</strong>z. 2012


criminosa; II-a localização da vítima com a sua integrida<strong>de</strong> física preservada:III- a recuperação total ou parcial do produto do crime.” Lado outro,os reinci<strong>de</strong>ntes ou aqueles que em <strong>de</strong>corrência da sua pers<strong>on</strong>alida<strong>de</strong> oudas circunstâncias do crime não fazem jus ao perdão judicial, restará aredução da pena <strong>de</strong> um a dois terços. A lei em comento inovou ao trazerdispositivo que cuida da proteção aos colaboradores.Não obstante a expansão do direito premial para todo e qualquercrime, c<strong>on</strong>forme a lei supramenci<strong>on</strong>ada, o legislador, quando da elaboraçãoda Lei <strong>de</strong> Tóxicos (Lei 11.343/06), c<strong>on</strong>trariando a anteriorida<strong>de</strong> eo caráter benéfico da Lei 9.807/99 (Lei <strong>de</strong> Proteção às Vitimas e Testemunhas),houver por trazer novamente hipótese autônoma e restrita <strong>de</strong><strong>de</strong>lação premiada, cujo prêmio c<strong>on</strong>siste somente na redução da pena emcaso <strong>de</strong> c<strong>on</strong><strong>de</strong>nação, para aquele que auxiliar na i<strong>de</strong>ntificação dos <strong>de</strong>maisenvolvidos, bem assim na recuperação total ou parcial do produto do crime.Observa-se que, <strong>de</strong>sta feita, não restou prevista em lei a possibilida<strong>de</strong>da extinção da punibilida<strong>de</strong> pelo perdão judicial, caracterizando nítidanegligência em relação ao c<strong>on</strong>flito intertemporal entre normas penais, notermos do art. 5º, inciso XL, da CF/88. Por certo, o art. 41 da Lei 11.343/06(Lei <strong>de</strong> Tóxicos) já nasceu com restrição <strong>de</strong> aplicabilida<strong>de</strong>, tendo em vistaque, estando a Lei 9.807/99 em plena vigência, trazendo em seu bojo normapremial mais favorável ao réu aplicável a qualquer diploma repressivo,não po<strong>de</strong> o juiz, diante <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>lação premiada, ignorar que esta setrata da opção mais benéfica.No tocante à inserção da <strong>de</strong>lação premiada no or<strong>de</strong>namento jurídicopátrio, verifica-se que, ao c<strong>on</strong>trário do mo<strong>de</strong>lo italiano, objeto <strong>de</strong> inspiraçãodo legislador brasileiro, houve aberta preocupação em alargar progressivamentea possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aplicação do instituto, culminando noseu emprego em todo e qualquer <strong>de</strong>lito. Assim, até o presente momento,enc<strong>on</strong>tra-se em segundo plano qualquer adaptação normativa que tenhapor escopo estabelecer um regramento processual para a questão sobdiscussão, ou mesmo que seja direci<strong>on</strong>ada para uma real eficácia e legalida<strong>de</strong>.Somado a isso, temos a negligência quanto a uma normatizaçãoque c<strong>on</strong>fira eficácia e valida<strong>de</strong> à <strong>de</strong>lação.A<strong>de</strong>mais, assinala Bittar (2011, p. 259) que, na Itália, os <strong>de</strong>latoressão <strong>de</strong>nominados <strong>de</strong> arrependidos, o que <strong>de</strong>m<strong>on</strong>stra o espírito <strong>de</strong> resgatesocial daquele indivíduo, com função <strong>de</strong> prevenção especial. Embora tãoutilitarista como no Brasil, a incompatibilida<strong>de</strong> insuperável em relação aoR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 126-142, out.-<strong>de</strong>z. 2012 135


mo<strong>de</strong>lo italiano fica clara ao se vislumbrar que aqui não se tem qualquerpreocupação em recuperar o criminoso <strong>de</strong>lator.A problemática que envolve a <strong>de</strong>lação premiada, sob seus váriosaspectos, parece estar l<strong>on</strong>ge <strong>de</strong> ser pacificada.4. Delação premiada no anteprojeto do Código Penal:nova roupagemEm 2011, por intermédio do Requerimento nº. 756, <strong>de</strong> iniciativa doSenador Pedro Taques, foi aprovada pelo Senado Fe<strong>de</strong>ral a c<strong>on</strong>stituição<strong>de</strong> uma Comissão <strong>de</strong> Juristas para a Elaboração <strong>de</strong> Anteprojeto <strong>de</strong> CódigoPenal. Para tanto, foram nomeados membros com notório saber jurídico,representantes das mais diversas classes. Como já dito, o anteprojeto foientregue ao Senado no final <strong>de</strong> junho do presente ano.Dentre as inúmeras modificações propostas pela aludida Comissão,a qual teve como um dos objetivos c<strong>on</strong><strong>de</strong>nsar a legislação penal, atualmenteespalhada ao l<strong>on</strong>go <strong>de</strong> infindáveis leis, temos a criação da figura doImputado Colaborador, que, em verda<strong>de</strong>, trata-se da já c<strong>on</strong>hecida <strong>de</strong>laçãopremiada.Assim, ao inserir o instituto em testilha no art. 1<str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g> do Anteprojeto,verifica-se a nítida intenção dos membros da Comissão <strong>de</strong> que sua aplicaçãose dê em qualquer <strong>de</strong>lito, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da sua natureza ou da penacominada. O citado artigo ganhou a seguinte redação:Imputado colaboradorArt.1<str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>. O juiz, a requerimento das partes, c<strong>on</strong>ce<strong>de</strong>rá o perdãojudicial e a c<strong>on</strong>sequente extinção da punibilida<strong>de</strong>, se oimputado for primário, ou reduzirá a pena <strong>de</strong> um a dois terços,ou aplicará somente pena restritiva <strong>de</strong> direito, ao acusadoque tenha colaborado efetiva e voluntariamente com ainvestigação e o processo criminal, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que <strong>de</strong>ssa colaboraçãotenha resultado:I - a total ou parcial i<strong>de</strong>ntificação dos <strong>de</strong>mais coautores oupartícipes da ação criminosa;II - a localização da vítima com a sua integrida<strong>de</strong> física preservada;ou136R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 126-142, out.-<strong>de</strong>z. 2012


III - a recuperação total ou parcial do produto do crime.Parágrafo único. A aplicação do disposto neste artigo exigeacordo que será celebrado entre o órgão acusador e o indiciadoou acusado, com a participação obrigatória do seu advogadoou <strong>de</strong>fensor, respeitadas as seguintes regras:I - o acordo entre as partes, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que tenha efetivamenteproduzido o resultado ou os resultados menci<strong>on</strong>ados no caput<strong>de</strong>ste artigo, vinculará o juiz ou tribunal da causa;II - a <strong>de</strong>lação <strong>de</strong> coautor ou participe somente será admitidacomo prova da culpabilida<strong>de</strong> dos <strong>de</strong>mais coautores ou partícipesquando acompanhada <strong>de</strong> outros elementos probatóriosc<strong>on</strong>vincentes;III - ao colaborador da Justiça será aplicada a Lei <strong>de</strong> Proteçãoa Vítimas e Testemunhas;IV - oferecida a <strong>de</strong>núncia, os termos da <strong>de</strong>lação serão dadosa c<strong>on</strong>hecimento dos advogados das partes, que <strong>de</strong>verão preservaro segredo, sob as penas da lei.No que tange às c<strong>on</strong>sequências ao colaborador, não se verifica qualquerinovação por parte do Anteprojeto, que se restringe às hipóteses jáexistentes no or<strong>de</strong>namento jurídico atual, quais sejam, o perdão judicial,a redução da pena e a substituição da pena privativa <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> pelapena restritiva <strong>de</strong> direto.A novida<strong>de</strong> fica por c<strong>on</strong>ta do parágrafo único do dispositivo em comento,que, em óbvia tentativa <strong>de</strong> afastar as críticas c<strong>on</strong>tumazes em relaçãoà <strong>de</strong>lação premiada, <strong>de</strong>termina que a aplicação da norma premial exigeacordo formal entre o órgão <strong>de</strong> acusação e o colaborador, com participaçãoobrigatória do advogado ou <strong>de</strong>fensor. Trata-se <strong>de</strong> manobra com vistas a impedirqualquer tentativa futura <strong>de</strong> arguição <strong>de</strong> invalida<strong>de</strong> da <strong>de</strong>lação.A<strong>de</strong>mais, o mesmo parágrafo único elenca uma série <strong>de</strong> c<strong>on</strong>dici<strong>on</strong>antesà colaboração, estabelecendo requisito no âmbito da sua eficácia,c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rando que a <strong>de</strong>lação somente terá repercussão jurídica casoefetivamente logre i<strong>de</strong>ntificar os envolvidos, localize a vítima com sua integrida<strong>de</strong>física preservada, ou, ainda, recupere total ou parcialmente oR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 126-142, out.-<strong>de</strong>z. 2012 137


produto do crime. Nesse caso, haverá vinculação do juiz ou <strong>Tribunal</strong> dacausa, tornando a aplicação das benesses obrigatória. Vê-se a preocupaçãodos membros da Comissão em sanar crítica antiga, advinda especialmentedos <strong>de</strong>fensores, acerca da inexistência da garantia <strong>de</strong> que, diante<strong>de</strong> uma colaboração ativa do partícipe ou coautor, o juiz irá, quando <strong>de</strong>uma sentença c<strong>on</strong><strong>de</strong>natória, aplicar o beneplácito.Seguindo o mo<strong>de</strong>lo italiano, o dispositivo apresentado pela Comissãoc<strong>on</strong>dici<strong>on</strong>a a admissão da <strong>de</strong>lação como prova somente quandocorroborada pelos <strong>de</strong>mais elementos probatórios produzidos ao l<strong>on</strong>go dainstrução. Cuida <strong>de</strong> entendimento já existente em nosso or<strong>de</strong>namentoprocessual, que ora ganha menção expressa. Bem se sabe que qualquerprova isolada nos autos não tem o c<strong>on</strong>dão <strong>de</strong> ensejar uma c<strong>on</strong><strong>de</strong>nação, eo mesmo po<strong>de</strong> ser dito quanto à prova advinda da <strong>de</strong>lação.Ainda, fica assegurado ao colaborador a sua inserção no Programa <strong>de</strong>Proteção a Vítimas e Testemunhas, forma enc<strong>on</strong>trada pela Comissão <strong>de</strong> incentivara <strong>de</strong>lação, já que, não é rara a retaliação por parte dos <strong>de</strong>latados.Por <strong>fim</strong>, após o oferecimento da <strong>de</strong>núncia, será dada ciência acercados termos da <strong>de</strong>lação às partes e seus <strong>de</strong>fensores, que estarão sob o<strong>de</strong>ver do sigilo.Não se po<strong>de</strong> negar que, em termos <strong>de</strong> comparação em relação aomo<strong>de</strong>lo italiano, a proposta da Comissão representa um avanço ao tentaroferecer algumas garantias ao <strong>de</strong>lator. Inolvidável a sua boa intençãoem tentar c<strong>on</strong>ciliar e apresentar solução para problemas que há muitose abatiam sobre o instituto da <strong>de</strong>lação premiada. Todavia, não obstantea louvável tentativa, qualquer esforço no sentido <strong>de</strong> viabilizar a <strong>de</strong>laçãopremiada se acha fadado ao fracasso, tendo em vista que, sob o p<strong>on</strong>to <strong>de</strong>vista ético, o problema é intrínseco ao instituto, apresentando-se insuperável,seja qual for a diretiva normativa. Trata-se <strong>de</strong> um novo regramento,que carrega c<strong>on</strong>sigo antigos e já c<strong>on</strong>hecidos c<strong>on</strong>flitos.5. Aspectos críticos da <strong>de</strong>lação premiada: velhos problemasOs questi<strong>on</strong>amentos suscitados pelo tema da <strong>de</strong>lação premiada ultrapassamas fr<strong>on</strong>teiras do direito material, alcançando <strong>de</strong>bates acercada c<strong>on</strong>veniência político-criminal, das implicações processuais e seu valorprobatório, bem como da barreira ética inerente ao espírito do EstadoDemocrático <strong>de</strong> Direito.138R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 126-142, out.-<strong>de</strong>z. 2012


Já <strong>de</strong> início, numa análise ampla da <strong>de</strong>lação premiada, po<strong>de</strong> ser<strong>de</strong>tectada a incompatibilida<strong>de</strong> do instituto com o exercício da <strong>de</strong>fesa doacusado, tanto da <strong>de</strong>fesa técnica, quanto da auto<strong>de</strong>fesa, que se mostramamarradas numa postura do <strong>de</strong>lator como acusador <strong>de</strong> si mesmo, emfranca diss<strong>on</strong>ância com o princípio do c<strong>on</strong>traditório e da ampla <strong>de</strong>fesa. Ocaráter amplo <strong>de</strong> esvai diante <strong>de</strong> uma situação em que o <strong>de</strong>lator sequerpo<strong>de</strong> tentar a sua absolvição. Por certo, um Estado comprometido com osditames <strong>de</strong>mocráticos não po<strong>de</strong>ria sequer cogitar em dar guarida a uminstituto que viola um <strong>de</strong> seus princípios fundamentais.O processo em que se faz presente o instrumental da <strong>de</strong>laçãopremiada faz transparecer mera formalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>fensiva, semqualquer possibilida<strong>de</strong> que a mesma seja efetiva. A necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> que o agente, para que obtenha favores do julgador,colabora efetivamente, revelando sua participação, <strong>de</strong>terceiros, <strong>de</strong>talhes da ação criminosa etc., estabelece a ampla<strong>de</strong>fesa como mera promessa vã do texto político. (Tasse,2006, p. 277).Como bem alerta Tasse (2006, p. 277), não fosse suficiente o prejuízoà <strong>de</strong>fesa, a <strong>de</strong>lação premiada vem sendo empregada como ônusprocessual, sob pena <strong>de</strong> prisão, ao argumento <strong>de</strong> que o investigado nãocolaborou, transformando-se, portanto, em verda<strong>de</strong>iro instrumento <strong>de</strong>tortura. Nessa perspectiva, “não resta alternativa a dizer o que o acusadorquer ouvir, verda<strong>de</strong> ou não, mas o que o acusador quer ouvir”, especialmenteo acusador que ora se esquece do seu papel <strong>de</strong> fiscal da lei.A <strong>de</strong>lação premiada não se c<strong>on</strong>stitui em um recurso mo<strong>de</strong>rnodo processo penal, assim como não se apresenta como repercussão<strong>de</strong> nenhum avanço especial havido na persecuçãopenal. Em verda<strong>de</strong>, a <strong>de</strong>lação premiada sempre representou,juntamente com a prática da tortura, uma das ferramentasfundamentais dos processos arbitrários, em especial os medievos<strong>de</strong> índole inquisitorial. (Tasse, 2006, p. 274).A violação à ampla <strong>de</strong>fesa cuida <strong>de</strong> problema intrínseco à <strong>de</strong>laçãopremiada, <strong>de</strong> tal forma que a nova proposta normativa trazida pelo Anteprojeto<strong>de</strong> Código Penal não enseja qualquer modificação.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 126-142, out.-<strong>de</strong>z. 2012 139


A<strong>de</strong>mais, como já abordado, ao se enc<strong>on</strong>trar diante <strong>de</strong> uma situaçãoem que um cidadão almeje fazer uso do beneplácito, questão que nãopo<strong>de</strong>ria ser ignorada pelos <strong>de</strong>fensores, <strong>de</strong> esclarecimento obrigatório ao<strong>de</strong>lator é a ausência <strong>de</strong> garantia <strong>de</strong> que, ao final do processo, o magistradoiria rec<strong>on</strong>hecer a existência da <strong>de</strong>lação premiada. A nova proposta doAnteprojeto <strong>de</strong> Código Penal, que <strong>de</strong>termina a vinculação do juiz e do tribunal,carrega nítida intenção <strong>de</strong> soluci<strong>on</strong>ar essa questão. Todavia, observa-seque tal vinculação está c<strong>on</strong>dici<strong>on</strong>ada ao efetivo resultado, ou seja,as informações <strong>de</strong>vem <strong>de</strong> fato auxiliar na i<strong>de</strong>ntificação dos envolvidos,na localização da vítima ou na recuperação total ou parcial do produtodo crime. Assim, não obstante a expressa menção à vinculação do Juízo eda exigência <strong>de</strong> um acordo formal entre acusação e <strong>de</strong>lator, a garantia <strong>de</strong>aplicação c<strong>on</strong>tinua inexistente, vez que c<strong>on</strong>tinua pen<strong>de</strong>nte do livre c<strong>on</strong>vencimentoacerca do efetivo resultado (mesmo porque o rec<strong>on</strong>hecimentoda <strong>de</strong>lação está atrelado a um édito c<strong>on</strong><strong>de</strong>natório). O acordo, portanto,não representa evi<strong>de</strong>nte avanço no tratamento do instituto, persistindo ainsegurança jurídica que o r<strong>on</strong>da.Observa-se que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que a <strong>de</strong>lação premiada foi inaugurada emnosso or<strong>de</strong>namento jurídico, inúmeras críticas foram tecidas em relaçãoao instituto, travou-se um embate entre os operadores <strong>de</strong> direito e umarejeição explícita por parte <strong>de</strong>stes. De todo o imbróglio, a questão éticaque envolve o direito premial parece ser insuperável.Decerto, a <strong>de</strong>lação não po<strong>de</strong> ser qualificada como algo diverso datraição. A traição é instituci<strong>on</strong>alizada e incentivada pelo Estado e, soba tônica da ética, inquesti<strong>on</strong>ável que tal postura não é merecedora <strong>de</strong>aplausos. Em nome <strong>de</strong> um pretenso combate à criminalida<strong>de</strong>, a <strong>de</strong>laçãopromove a máxima maquiavélica <strong>de</strong> que os fins justificam os meios. Através<strong>de</strong>lação, o Estado oferece uma recompensa àquele que, além <strong>de</strong> criminoso,é <strong>de</strong>sleal.Embora a moral e o direito não se c<strong>on</strong>fundam, até mesmoem razão da amplitu<strong>de</strong> que cada campo oferta, mais ampl<strong>on</strong>aquele, ao objeto estudado, é também correto afirmar quequando se c<strong>on</strong>strói o sistema jurídico não po<strong>de</strong> este servirao <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> uma moral c<strong>on</strong>trária aos postuladoséticos que permitem a prosperida<strong>de</strong> <strong>de</strong> toda comunida<strong>de</strong>.(Tasse, 2006, p. 275).140R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 126-142, out.-<strong>de</strong>z. 2012


Para amenizar o c<strong>on</strong>flito ético, o Estado tenta transmitir a percepção<strong>de</strong> que o <strong>de</strong>lator é um colaborador, interessado em auxiliar a persecuçãopenal e está arrependido dos atos <strong>de</strong>lituosos cometidos, acobertandoo fato <strong>de</strong> que, tanto um, quanto outro, agem por motivos essencialmenteutilitaristas. O Estado, <strong>de</strong> um lado, incompetente e falido na sua funçãoinvestigativa, vê no <strong>de</strong>lator a última saída para a obtenção <strong>de</strong> informaçõesque levem ao êxito da persecução criminal, e o <strong>de</strong>lator, <strong>de</strong> outro, permanecend<strong>on</strong>a sua “ética” da malandragem, vê na <strong>de</strong>lação mais uma forma<strong>de</strong> levar vantagem, com o escopo <strong>de</strong> “se livrar” <strong>de</strong> uma sanção penal.O cenário se mostra ainda pior quando se vislumbra a aprovação dasocieda<strong>de</strong>, embriagada pelo sensaci<strong>on</strong>alismo e simbolismo, que passa aver a traição como algo positivo.Noutro giro, o uso rotineiro da <strong>de</strong>lação premiada acaba por provocarnos entes resp<strong>on</strong>sáveis pela segurança pública, em seu sentido maisamplo, a noção <strong>de</strong> que a <strong>de</strong>lação é o caminho mais fácil para o <strong>de</strong>senvolvimento<strong>de</strong> uma investigação, enfraquecendo paulatinamente outrosmecanismos <strong>de</strong> persecução penal instituci<strong>on</strong>alizados. Cada <strong>de</strong>lação premiadarealizada caracteriza uma negligência estatal quanto ao seu <strong>de</strong>ver<strong>de</strong> eficiência na apuração <strong>de</strong> crimes.Ante a singela e perfunctória análise ora efetuada, vislumbra-seque a Comissão <strong>de</strong> Elaboração do Anteprojeto do Código Penal per<strong>de</strong>u aoportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tentar extirpar o instituto sob questi<strong>on</strong>amento, o qualrepresenta incomensurável retrocesso ao direito penal e ao processo penalao “instituci<strong>on</strong>alizar a tortura psicológica” do acusado, em nome <strong>de</strong>uma pretensa segurança e punibilida<strong>de</strong>. Como dizia Benjamin Franklin:“Quem ce<strong>de</strong> sua liberda<strong>de</strong> em troca <strong>de</strong> um pouco <strong>de</strong> segurança não merecenem liberda<strong>de</strong>, nem segurança.”R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 126-142, out.-<strong>de</strong>z. 2012 141


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A Resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> Penalda Pessoa JurídicaProf. Dr. Guilherme José Ferreira da SilvaMestre e Doutor em Direito pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong>Minas Gerais na área <strong>de</strong> Ciências Penais. Professor <strong>de</strong> DireitoPenal da PUC-MG nos cursos <strong>de</strong> Graduação e Pós-Graduação.Professor <strong>de</strong> Teoria do Crime na Pós-Graduação emDireito Penal da Faculda<strong>de</strong> Milt<strong>on</strong> Campos. Membro Titulardo C<strong>on</strong>selho Penitenciário do Estado <strong>de</strong> Minas Gerais.Boa-tar<strong>de</strong> a todos e a todas.“Que falta nos faz hoje este morto tão insistentemente vivo” (NiloBatista sobre Fragoso).O tema “resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal da pessoa jurídica” escrevi sobreele já faz nove anos. Na verda<strong>de</strong>, foi a minha dissertação <strong>de</strong> mestrado,que <strong>de</strong>u origem a um livro, no qual tentei <strong>de</strong>ixar claro, na época, a minhaopinião sobre o tema. O titulo é: A incapacida<strong>de</strong> criminal da pessoajurídica. Na ocasião, fiquei durante quatro anos estudando a temática e,logo <strong>de</strong>pois, como é comum, aband<strong>on</strong>ei um pouco esse estudo da resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong>penal da pessoa jurídica e o retomei no ano <strong>de</strong> 2008, porqueesperava a republicação do livro, uma segunda edição, com a <strong>de</strong>cisão doSTF acerca da matéria.Em 2008, o processo em que se discutiria a matéria, ou seja, osautos <strong>de</strong> um recurso extraordinário da relatoria do hoje ministro aposentadoCezar Peluso foi c<strong>on</strong>cluso ao seu gabinete; e essa <strong>de</strong>cisão seria a<strong>de</strong>cisão plenária do STF, ou será, sobre a c<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong> da resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong>penal da pessoa jurídica, e já se vão quatro anos <strong>de</strong> c<strong>on</strong>clusão dosautos, com o parecer da Procuradoria Geral da República, sem <strong>de</strong>signaçãoda data do julgamento. Eu aguardava essa <strong>de</strong>cisão para a publicação dasegunda edição do livro. Estava bastante c<strong>on</strong>fiante, então. A minha c<strong>on</strong>fiançaera tamanha porque o ministro Cezar Peluso tinha se manifestado,por duas vezes em dois habeas corpus, que votaria c<strong>on</strong>trário à resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong>penal da pessoa jurídica e faria a <strong>de</strong>claração da inc<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 143-155, out.-<strong>de</strong>z. 2012 143


do instituto. Bastante c<strong>on</strong>fiante, até enviei um exemplar do meu livro paracada um dos Ministros, através <strong>de</strong> uma amiga assessora do Ministro CarlosAyres Britto, e estava bem c<strong>on</strong>victo que a nossa Suprema Corte rejeitariaessa proposta expansi<strong>on</strong>ista do Direito Penal. Mas o tempo passou, lá sevão quatro anos e até mais <strong>de</strong> c<strong>on</strong>clusão dos autos no gabinete do relatore a <strong>de</strong>cisão não veio, o STF não se pr<strong>on</strong>unciou sobre a matéria e, ainda,em todos os habeas corpus que julgou sobre a resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal dapessoa jurídica o tema é <strong>de</strong>batido <strong>de</strong> forma inci<strong>de</strong>ntal, isto é, o mérito damatéria não é questi<strong>on</strong>ado, as manifestações dos ministros não po<strong>de</strong>mser c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>radas e eles mesmos dizem que aguardam a <strong>de</strong>cisão plenária.Com a aposentadoria do ministro Cezar Peluso, hoje a relatoria estácom o ministro Gilmar Men<strong>de</strong>s, e já não sei bem ao certo qual será o <strong>de</strong>stinoda resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal da pessoa jurídica, até em função do projeto<strong>de</strong> reforma do Código Penal. Mas, em função <strong>de</strong>sse evento, em revisita<strong>de</strong>ssa temática, cheguei a duas c<strong>on</strong>clusões: a primeira é que o ministroCezar Peluso estava parcialmente certo quando ele disse que o STF não julgacom ódio; esqueceu o digno ministro <strong>de</strong> dizer que, muitas vezes, o STFtambém não julga. E, um segundo p<strong>on</strong>to, é que mantenho hoje a mesmaopinião que tinha em 2003, não a altero em nenhuma vírgula, ou seja, aproposta <strong>de</strong> resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal da pessoa jurídica tem uma aparência<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização do Direito Penal, mas com um discurso muito antigo,uma fundamentação político-criminal que não tem nada <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna, nãotem nada <strong>de</strong> novo e não tem nada <strong>de</strong> avanço do Direito Penal.Então, o texto que preparei é exatamente sobre isso. Como a temáticada resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal da pessoa jurídica, a par <strong>de</strong> ser um discurso<strong>de</strong> inovação, <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização, é, na verda<strong>de</strong>, um pano <strong>de</strong> fundo para ovelho discurso penal retributivista, na i<strong>de</strong>ologia da <strong>de</strong>fesa social, um direitopenal simbólico, que até é a minha c<strong>on</strong>clusão do trabalho, ou seja, falar<strong>de</strong> resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal da pessoa jurídica é falar, não tenho a menordúvida disso, do velho Direito Penal intervenci<strong>on</strong>ista máximo que procurauma roupagem c<strong>on</strong>temporânea, mas que, na verda<strong>de</strong>, tem como fundamentoo que há <strong>de</strong> mais retrógrado que é esse Direito Penal c<strong>on</strong>tra o qualnós precisamos reagir. Há vinte e oito anos atrás entrava em vigor o CódigoPenal <strong>de</strong> 84 com o objetivo <strong>de</strong>clarado, em sua exposição <strong>de</strong> motivos,<strong>de</strong> ser um caminho seguro na mo<strong>de</strong>rnização da nossa justiça criminal edos nossos estabelecimentos penais. Lembro, quando estudante, grifei144R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 143-155, out.-<strong>de</strong>z. 2012


essa frase da exposição <strong>de</strong> motivos, em uma entrevista com o professorJair Le<strong>on</strong>ardo Lopes sobre a reforma do código <strong>de</strong> 1940. E a comissão<strong>de</strong> 84, formada por brilhantes juristas, entre eles o presi<strong>de</strong>nte Francisco<strong>de</strong> Assis Toledo, o saudoso professor Jair Le<strong>on</strong>ardo Lopes, Miguel RealeJunior, já se preocupava, aquela comissão, com o status penal da época,<strong>de</strong> 1984, e hoje, <strong>de</strong>finitivamente, não há o que comemorar. Chegamos,no Brasil, à impressi<strong>on</strong>ante marca <strong>de</strong> 500 mil presos, um crescimento absurdo,escandaloso que não existe em nenhum país do mundo, superior a300% <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 90, levando o Brasil a praticamente a li<strong>de</strong>rar astaxas <strong>de</strong> encarceramento na América Latina, criando, o que, nos dizeresdo professor Salo Carvalho, “a era do gran<strong>de</strong> encarceramento”, é o quevivemos atualmente. Mas, o que é pior, não é só esse efeito do encarceramentomaxi, mas um outro que tive a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> observar <strong>de</strong> pertoquando fui membro do C<strong>on</strong>selho Penitenciário <strong>de</strong> Minas Gerais: acopladoa esse efeito <strong>de</strong> massificação da prisão, observamos o distanciamentoda efetiva jurisdici<strong>on</strong>alida<strong>de</strong> da execução penal, o que resulta na plenavivacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r punitivo supostamente oficial em <strong>de</strong>sc<strong>on</strong>trole.Estou falando <strong>de</strong> um sistema <strong>de</strong> punição que não gosto chamar <strong>de</strong> paraleloporque se <strong>de</strong>senvolve instituci<strong>on</strong>almente. Um sistema <strong>de</strong> punição querem<strong>on</strong>ta a barbárie.Enquanto o professor Maurício Dieter se manifestava, estava aquilembrando os motivos que me fizeram pedir a ex<strong>on</strong>eração do C<strong>on</strong>selhoPenitenciário <strong>de</strong> Minas Gerais. Não esqueço uma visita que fizemos a umpresídio em Ouro Preto e o quanto me impressi<strong>on</strong>ou o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>smedidodos agentes prisi<strong>on</strong>ais. Quando chegamos ao pátio central, os presos estavamtodos <strong>de</strong> costas <strong>de</strong>ntro das celas, nas celas superlotadas, em quecabiam 10 <strong>de</strong>tentos, havia 40, todos <strong>de</strong> costas. Aproximei-me <strong>de</strong> uma celapara c<strong>on</strong>versar com um <strong>de</strong>tento e o agente prisi<strong>on</strong>al me advertiu, exigindodistância. Então perguntei: Por que estão <strong>de</strong> costas? (todos enfileirados <strong>de</strong>costas) E a resposta: “doutor é o procedimento”. Aproximei para c<strong>on</strong>versarcom um <strong>de</strong>les, pedi para o preso virar <strong>de</strong> frente para mim, o agente prisi<strong>on</strong>alentão me alertou sobre o risco daquela c<strong>on</strong>duta. E, quando me aproximavamais da gra<strong>de</strong>, o agente me afastava lembrando o tal procedimento.E, então, pu<strong>de</strong> perceber que o que havia ali, e, isso ocorre possivelmenteem todo o país, é um po<strong>de</strong>r punitivo - a par <strong>de</strong> ser um po<strong>de</strong>r punitivo oficial- que se institui, se estabelece à margem <strong>de</strong> qualquer sentido <strong>de</strong> c<strong>on</strong>trole<strong>de</strong> legalida<strong>de</strong> formal. Ontem mesmo, o jornal O Tempo noticiava a práticaR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 143-155, out.-<strong>de</strong>z. 2012 145


da tortura como sendo endêmica numa penitenciária <strong>de</strong> Minas Gerais: naprimeira página do jornal, a imagem <strong>de</strong> um <strong>de</strong>tento com furos <strong>de</strong> p<strong>on</strong>ta <strong>de</strong>cigarro <strong>de</strong> fora a fora em suas costas.Então, pu<strong>de</strong> perceber que mais do que o gran<strong>de</strong> encarceramentoque existe, e existe <strong>de</strong> fato, vivenciamos hoje a proliferação <strong>de</strong> uma manifestação<strong>de</strong>sse po<strong>de</strong>r punitivo que é estatal, não se po<strong>de</strong> dizer é paralelo,porque <strong>de</strong> paralelo não tem nada, mas, completamente, isolado <strong>de</strong> umai<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> c<strong>on</strong>trole <strong>de</strong> legalida<strong>de</strong> formal, a mais simples i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> legalida<strong>de</strong>,tendo em vista a presença endêmica da tortura em nossas prisões. Semprelembrei a lição do professor Juarez Cirino – que também foi citada peloprofessor Salo <strong>de</strong> Carvalho – sobre as armadilhas <strong>de</strong>ssas reformas queapresentam uma cortina <strong>de</strong> Direito Penal mínimo, mas que, na verda<strong>de</strong>,são um reforço à i<strong>de</strong>ia central <strong>de</strong> prisão. O professor Juarez Cirino, com aproprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> sempre, alertava para a armadilha dos mecanismos legais<strong>de</strong> <strong>de</strong>sprisi<strong>on</strong>alização, ao afirmar que “os substitutos penais não enfraquecema prisão, mas a revigoram; não diminuem sua necessida<strong>de</strong>, masa reforçam; não anulam sua necessida<strong>de</strong>, mas a ratificam. São instituiçõestentaculares cuja eficácia <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da existência revigorada da prisão, ocentro nevrálgico que esten<strong>de</strong> o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> c<strong>on</strong>trole com a possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> reencarceramento, se a expectativa comportamental dos c<strong>on</strong>troladosnão c<strong>on</strong>firmar o prognóstico dos c<strong>on</strong>troladores.” Hoje, mais do que nunca,a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> prisão está reafirmada e essa sua expansão, esse Direito Penalvingativo, temperado com supostas propostas <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa social, a qual éexclu<strong>de</strong>nte, segregatória, essa i<strong>de</strong>ia está mais reforçada do que nunca.Nesse instante da historia do Direito Penal brasileiro, isso precisaser <strong>de</strong>nunciado, exaustivamente falado. Como o professor Mauricio Dieterexplanou: “o óbvio tem que ser gritado”, em certa medida como ofaria, com certeza, o professor Heleno Claudio Fragoso que, em situaçõesmais limítrofes, o fez. Pois bem, o Direito Penal se expan<strong>de</strong> com a mesmalógica, o discurso retributivista, a par <strong>de</strong> expressar uma suposta c<strong>on</strong>cepção<strong>de</strong> justiça tali<strong>on</strong>ária reveste-se <strong>de</strong> uma roupagem científica aomesmo tempo antiga e ilusória, mas altamente c<strong>on</strong>vincente, enquantoretórica a do c<strong>on</strong>trole social plural pela coação psicológica individualface à neutralização, estigmatização do apenado e sua perene e c<strong>on</strong>tínuaexclusão.146R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 143-155, out.-<strong>de</strong>z. 2012


Quer dizer, esse Direito Penal se manifesta através do fortalecimentoda prisão e procura-se criar uma nova roupagem, uma cortina, repito,<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e a resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal da pessoa jurídica tem tudoa ver com isso. Na verda<strong>de</strong>, o que temos é que os substitutivos penais etambém as supostas inovações expansi<strong>on</strong>istas do Direito Penal são umreforço <strong>de</strong> uma c<strong>on</strong>cepção reinante já faz muito tempo, a c<strong>on</strong>cepção queo Direito Penal tem como missão a justa retribuição com propósitos <strong>de</strong><strong>de</strong>fesa social.A proposta da resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal da pessoa jurídica é falaciosa,é c<strong>on</strong>traditória, não tem nenhuma c<strong>on</strong>sistência científica. Procuramjustificá-la e, no final, todos dizem a mesma coisa. No meu livro, fiz o estudo<strong>de</strong> dois sistemas teoricamente autônomos propostos para fundamentara resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal da pessoa jurídica: o primeiro, da professoraSilvina Bacigalupo, da Universida<strong>de</strong> Autônoma <strong>de</strong> Madri, e o segundo, doprofessor David Baigún, da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Buenos Aires. Os dois professoresc<strong>on</strong>si<strong>de</strong>raram que tinham criado um sistema próprio penal <strong>de</strong>resp<strong>on</strong>sabilização dos entes coletivos e, tento mostrar no meu livro, que,na verda<strong>de</strong>, ambos são mais do mesmo, ou seja, fundamentam a proposta<strong>de</strong> resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal da pessoa jurídica na maior reprovabilida<strong>de</strong>ética social do Direito Penal se comparado aos <strong>de</strong>mais ramos do direito e,em uma i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização com supostas vias proteci<strong>on</strong>istas <strong>de</strong> benssupraindividuais (meio ambiente, or<strong>de</strong>m ec<strong>on</strong>ômica).Esse tipo <strong>de</strong> justificativa não resiste a um estudo <strong>de</strong> caso c<strong>on</strong>creto,como foi feito aqui no Rio <strong>de</strong> Janeiro, com o <strong>de</strong>rramamento <strong>de</strong> óleo naBaía <strong>de</strong> Guanabara, 500 mil litros <strong>de</strong> óleo. Processo no qual a Petrobrasfoi c<strong>on</strong><strong>de</strong>nada administrativamente ao pagamento <strong>de</strong> uma multa <strong>de</strong> 50milhões <strong>de</strong> reais, que foi paga rapidamente. No meu livro, cito o cálculoque fiz sobre a suposta c<strong>on</strong><strong>de</strong>nação criminal da Petrobras, na época. Seaplicado, todos os parâmetros máximos punitivos que se po<strong>de</strong> imaginar,a Petrobras pagaria algo em torno <strong>de</strong> um milhão e meio <strong>de</strong> reais, naqueletempo. Depois <strong>de</strong> 5 ou 6 anos <strong>de</strong> um processo criminal <strong>de</strong>nso, talvez, estamulta penal seria paga pela empresa (nós já aguardamos durante 5 anosa c<strong>on</strong>clusão dos autos para a manifestação do Plenário sobre um tema tãoimportante como a resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal da pessoa jurídica!).Quer dizer: um gran<strong>de</strong> equívoco! A pena é a mesma! É, exatamente,a mesma. É tão ridiculamente a mesma que as sanções ditas penais sãoR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 143-155, out.-<strong>de</strong>z. 2012 147


epetidas enquanto sanções ditas administrativas, quer dizer, não tem omenor sentido, e, na verda<strong>de</strong>, no final e ao cabo, todas as propostas <strong>de</strong>resp<strong>on</strong>sabilização penal da pessoa jurídica vão <strong>de</strong>saguar no mesmo fundamentopolítico-criminal: a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> expansão do Direito Penal <strong>de</strong> suamo<strong>de</strong>rnização baseada na proteção dos bens supraindividuais. Coloco,portanto, que essa proposta <strong>de</strong> resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal da pessoa jurídica,premissa da qual parto para fazer uma análise do projeto <strong>de</strong> reforma doCódigo Penal, não é apenas inc<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>al por ofen<strong>de</strong>r diversos princípiosc<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>ais que eu citarei, mas é porosa, é inc<strong>on</strong>sistente, é c<strong>on</strong>traditória,é falaciosa, e, ao final, fala-nos <strong>de</strong> um velho modo <strong>de</strong> atuação<strong>de</strong> Direito Penal massivo-intervenci<strong>on</strong>ista, em que a força simbólica dasanção é o que justifica a sua aplicação.Pois bem, em relação ao projeto, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1998, quando foi editada aLei 9.<str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>5, pouca coisa se alterou, praticamente nada. O trabalho da comissão<strong>de</strong> reforma transcreveu, literalmente, os artigos que estavam na Lei9.<str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>5/98 sobre a resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal da pessoa jurídica e essa transcriçãofoi tão acrítica, que alguns erros <strong>de</strong> técnica legislativa grosseirosforam repetidos, mostrando que foi - mais ou menos - um “copia e cola”.A resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal da pessoa jurídica, supostamente, se alicerçana chamada Teoria da v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> real, <strong>de</strong> Gierke. Na investigação quefiz sobre a temática, mostrei, e tentei comprovar isso no trabalho, que todasas propostas partiram do mesmo c<strong>on</strong>ceito central que estava em umaobra do professor Aquiles Mestre <strong>de</strong> 1930 e <strong>de</strong> outra, c<strong>on</strong>temporânea aesta, ou seja, a obra do professor Af<strong>on</strong>so Arinos <strong>de</strong> Melo Franco. As duasobras citavam a transformação que havia na Alemanha, com a mudançada c<strong>on</strong>cepção <strong>de</strong> pessoa jurídica, como sendo um ente dotado <strong>de</strong> v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong>real, e que isso <strong>de</strong>veria ter reflexo no Direito Penal, ou seja, essas obraspartiram da premissa <strong>de</strong> que, como houve um fortalecimento do direitopúblico na Alemanha e da noção <strong>de</strong> Estado, além da diferenciação <strong>de</strong> Estadoe indivíduo, o que <strong>de</strong>veria gerar um efeito nos <strong>de</strong>mais ramos do direito,no caso, o Direito Civil e até no Direito Penal. Essa multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong>efeitos <strong>de</strong>veria <strong>de</strong>correr da Teoria da v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> real, ou seja, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> quea pessoa jurídica é uma entida<strong>de</strong> que tem v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> própria, distinta, separadada v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> das pessoas físicas que a compõem, que a c<strong>on</strong>stituem.Então, esta questão levou, na segunda meta<strong>de</strong> do século passado,ao surgimento <strong>de</strong> um certo questi<strong>on</strong>amento do princípio societas <strong>de</strong>lin-148R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 143-155, out.-<strong>de</strong>z. 2012


quere n<strong>on</strong> potest (a socieda<strong>de</strong> não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>linquir) que, por sua vez, tinhasido uma <strong>de</strong>corrência, não da antiguida<strong>de</strong>, mas basicamente da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>do Direito Penal iluminista e da c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> que o ser humanoé o centro do Direito Penal. Nesse sentido, as propostas que vão surgirna segunda meta<strong>de</strong> do século XX voltam à Teoria da v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> real e simplesmentemostram que a adoção <strong>de</strong>la no âmbito do direito público <strong>de</strong>veriaocasi<strong>on</strong>ar a sua adoção também no Direito Civil, e no Direito Penal.A partir daí teríamos a superação do principal entrave à resp<strong>on</strong>sabilizaçãopenal das pessoas jurídicas que é exatamente a imputação subjetiva – ai<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> como atributo exclusivo do ser humano – sobre a qualtoda a Teoria do <strong>de</strong>lito foi c<strong>on</strong>struída, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o causalismo.Vejam como uma i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> certa forma simples, provocou uma gran<strong>de</strong>transformação no Direito Penal do mundo inteiro, po<strong>de</strong>-se dizer. Emvários colóquios, c<strong>on</strong>gressos internaci<strong>on</strong>ais <strong>de</strong> direito ambiental, passousea <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a resp<strong>on</strong>sabilização criminal das pessoas jurídicas, afirmandoa Teoria da v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> real e, também, a teoria da perigosida<strong>de</strong> criminal<strong>de</strong>ssas corporações, <strong>de</strong>sses entes coletivos, em relação a àqueles bensjurídicos supraindividuais. Então, a proposta não parte dos penalistas, doDireito Penal, a proposta não é uma necessida<strong>de</strong>, e nunca foi, do DireitoPenal, passou a tentar ser fundamentada e justificada por penalistas. Masé uma proposta que surgiu no direito público alemão e tem uma clara relaçãocom a Segunda Guerra Mundial, isso praticamente ninguém comenta,a não ser a professora Silvina Bacigalupo que faz uma investigação histórica,precisa <strong>de</strong>sta questão. Ela vai mostrar que a resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal dapessoa jurídica ressurgiu na segunda meta<strong>de</strong> do século XX na Alemanha enão foi em <strong>de</strong>corrência do <strong>de</strong>bate sobre o meio ambiente ou or<strong>de</strong>m ec<strong>on</strong>ômica.Foi em função <strong>de</strong> que tal espécie <strong>de</strong> resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal eraadotada em uma área territorial alemã, que era a z<strong>on</strong>a <strong>de</strong> ocupação aliadaem território alemão, e que tal adoção foi para po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>sarmar indústriasalemãs que estavam financiando o nazismo naquelas regiões.Então, instituíram uma lei excepci<strong>on</strong>al para vigorar durante a guerra,c<strong>on</strong>sagrando a resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal das pessoas jurídicas, pois, assim,era mais fácil para fechar as empresas e <strong>de</strong>sarmar o braço ec<strong>on</strong>ômicodo nazismo. Então, o <strong>Tribunal</strong> C<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>al Alemão passou a se <strong>de</strong>pararcom essa temática, porque, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> acabada a guerra, a lei era excepci<strong>on</strong>ale os processos c<strong>on</strong>tinuavam a ser julgados com base na lei do seutempo e foi quando ressurgiu essa discussão da capacida<strong>de</strong> criminal dosR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 143-155, out.-<strong>de</strong>z. 2012 149


entes coletivos. Esse <strong>de</strong>bate veio reforçar a discussão do societas <strong>de</strong>linqueren<strong>on</strong> potest.A resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal da pessoa jurídica, portanto, não é umanecessida<strong>de</strong> penal como muitos falam. O Direito penal tem muito com oque se preocupar, como foi muito bem colocado por todos os penalistas.Quando exerci a minha função no C<strong>on</strong>selho Penitenciário, pu<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar,<strong>de</strong> fato, que essas mazelas penais são muitos graves. Precisamosreagir, nos organizar em forma <strong>de</strong> reação a esse punitivismo gerador domacroencarceramento.Quero <strong>de</strong>ixar muito claro que a proposta da resp<strong>on</strong>sabilização penalda pessoa jurídica não é uma proposta dos penalistas para o DireitoPenal; é uma proposta que veio <strong>de</strong> fora, <strong>de</strong> um fortalecimento do direitopúblico, da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> expansão da Teoria da v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> real para <strong>de</strong>ntrodo Direito Penal. É <strong>de</strong> uma simplificação impressi<strong>on</strong>ante a tese <strong>de</strong> queo artigo 225 § 3º da C<strong>on</strong>stituição Fe<strong>de</strong>ral teria c<strong>on</strong>sagrado a resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong>penal da pessoa jurídica.Quando eu estava fazendo o estudo <strong>de</strong>sta temática, fiz uma investigaçãomuito intensa sobre o histórico <strong>de</strong>sse dispositivo c<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>al. Euc<strong>on</strong>hecia a posição do professor Miguel Reale Junior no sentido <strong>de</strong> que oartigo citado não teria c<strong>on</strong>templado a resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal da pessoajurídica e o pensamento <strong>de</strong> outros autores <strong>de</strong> que a c<strong>on</strong>sagração da capacida<strong>de</strong>criminal das empresas pela C<strong>on</strong>stituição <strong>de</strong> 1988 era inegável.Passei a investigar a origem do art. 225, § 3º da CF. Primeiro, percebi oquanto é difícil <strong>de</strong>senhar-se a história da criação <strong>de</strong> uma lei. Tive essaoportunida<strong>de</strong> e fiz um estudo sobre todas as atas <strong>de</strong> reuniões da Comissão<strong>de</strong> meio ambiente da Assembléia c<strong>on</strong>stituinte que foi quem propôs aregra. Na verda<strong>de</strong>, a última redação aprovada na citada comissão sobre oartigo 225 § 3º dizia que “as c<strong>on</strong>dutas lesivas ao meio ambiente sujeitarãoos infratores às sanções previstas na lei”. Era, aproximadamente, esta aúltima redação proposta. Não houve nenhum <strong>de</strong>bate sobre resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong>penal da pessoa jurídica na Assembléia c<strong>on</strong>stituinte. Esta discussã<strong>on</strong>unca existiu ou pelo menos não foi registrada nos anais da C<strong>on</strong>stituinte.É mais uma falácia afirmar que a C<strong>on</strong>stituição <strong>de</strong> 88, <strong>de</strong> forma autônoma,in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, soberana, resolveu c<strong>on</strong>stituir a resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penaldas pessoas jurídicas, cabendo ao legislador ordinário e à doutrinaformatarem esse sistema. Não é verda<strong>de</strong>! A Faculda<strong>de</strong> Mineira <strong>de</strong> Direito150R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 143-155, out.-<strong>de</strong>z. 2012


da PUC/Minas tem as atas das audiências da Assembléia c<strong>on</strong>stituinte, oque permite a pesquisa. Como certa vez disse o ex-ministro Nels<strong>on</strong> Jobimfalando do chamado “fantasma do C<strong>on</strong>gresso Naci<strong>on</strong>al”: entre a aprovação<strong>de</strong> um dispositivo legal e sua vigência, publicação e vigência, ocorremalterações promovidas pelo tal “fantasma do C<strong>on</strong>gresso”. Falou sobre istoem um voto, o que me faz recordar da resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal da pessoajurídica e do art. 225, § 3º da CF, pois a matéria não foi <strong>de</strong>batida, não foic<strong>on</strong>sagrada no texto c<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>al. O que sup<strong>on</strong>ho ter ac<strong>on</strong>tecido é que,na proposta, foi aprovada uma redação e, na Comissão <strong>de</strong> Redação e Sistematização,resolveram redigir um dispositivo ambíguo, dúbio, porquea norma parece querer ser didática então fala da resp<strong>on</strong>sabilização pordanos ao meio ambiente e da sujeição dos infratores às sanções cabíveis,sejam pessoas físicas ou jurídicas. Quer dizer, é aquela v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> <strong>de</strong> quereresclarecer tudo. Há sanções penais e administrativas. Veja bem, foi aliclaramente uma proposta <strong>de</strong> tentar trazer uma clareza ao texto c<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>alpara fortalecer o meio ambiente, isto é, uma cláusula que reforça apremissa da resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> por dano ambiental ou, então, foi obra do“fantasma do C<strong>on</strong>gresso Naci<strong>on</strong>al” que incluiu aquela redação duvidosa apedido da bancada dos ambientalistas.Dez anos <strong>de</strong>pois surgiu a Lei 9.<str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>5/98 trazida para o projeto, basicamentea mesma, com algumas poucas alterações. Gostaria <strong>de</strong> lembrarque a Lei 9.<str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>5/98 baseou-se na Teoria da v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> real <strong>de</strong> Gierke, ao colocarno artigo terceiro, os requisitos da resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal das pessoasjurídicas. Primeiro ao exigir que <strong>de</strong>veria ser uma infração que tivesse origemem uma <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> órgão colegiado ou <strong>de</strong> representante legal.A imprecisão começa aqui. Porque – digo isso no meu livro – o quea Teoria da v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> real fala, não é que qualquer órgão colegiado ou representanteé a v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> real da empresa. Pelo c<strong>on</strong>trário, essa Teoria dizque <strong>de</strong>terminados órgãos <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma estrutura corporativa po<strong>de</strong>m representaro pensamento do corpo coletivo, uma vez que po<strong>de</strong>-se ter umórgão colegiado sem representação da direção da empresa – cito semprea CIPA (Comissão Interna <strong>de</strong> Prevenção <strong>de</strong> Aci<strong>de</strong>ntes) que é um órgãocolegiado <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma empresa e que não tem capacida<strong>de</strong> gerencial ediretiva nenhuma. Então, nesse instante começa o erro, o suposto equívoco.Mas, em tese, esse requisito c<strong>on</strong>sagra a Teoria da v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> real, alémda exigência <strong>de</strong> que a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong>veria visar a um interesse ou benefícioda entida<strong>de</strong>.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 143-155, out.-<strong>de</strong>z. 2012 151


Neste último requisito, trata-se <strong>de</strong> uma suposta inserção da Teoriada v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> real <strong>de</strong>ntro do Direito Penal, o que também é um equivocoporque os tribunais passaram a enten<strong>de</strong>r que essa expressão indicavaque a pessoa jurídica só po<strong>de</strong>ria cometer crimes dolosos, não culposos, e,basicamente, os principais crimes c<strong>on</strong>tra o meio ambiente têm naturezaculposa. Tal requisito subjetivo gerou dúvidas, quer dizer, a jurisprudênciaestá <strong>de</strong>batendo se a resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal da pessoa jurídica se aplicaou não aos crimes culposos. Quando, na verda<strong>de</strong>, o que o legisladorambiental quis fazer foi rem<strong>on</strong>tar à Teoria da v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> real dizendo queessa v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> real teria que ser i<strong>de</strong>ntificada pelo interesse ou benefícioda entida<strong>de</strong>. E é evi<strong>de</strong>nte que o que essa teoria não c<strong>on</strong>segue superar,<strong>de</strong>scortinar, é que a Teoria da v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> real nada tem a ver com o DireitoPenal; os c<strong>on</strong>ceitos <strong>de</strong> dolo, culpa são c<strong>on</strong>ceitos próprios da Teoria do<strong>de</strong>lito, não serão substituídos por uma adaptação fantasiosa, mentirosa,ilusória como tentou fazer o legislador ambiental <strong>de</strong> 98, e o fez muito mal,c<strong>on</strong>fuso, gerando perplexida<strong>de</strong>, gerando (pasmem) até impunida<strong>de</strong> queeles tanto temiam. No <strong>Tribunal</strong> <strong>de</strong> Justiça <strong>de</strong> Minas Gerais ocorrem muitasabsolvições das pessoas jurídicas porque as <strong>de</strong>núncias são ineptas, as c<strong>on</strong><strong>de</strong>naçõessão sempre <strong>de</strong>sprovidas <strong>de</strong> amparo com a legalida<strong>de</strong> formal,até da Lei 9.<str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>5/98. Gostaria <strong>de</strong> enfatizar, agora, uma c<strong>on</strong>tradição muitogran<strong>de</strong> da proposta, porque a comissão que criou o projeto <strong>de</strong> reformatrouxe, o que para eles era a mais festejada inovação que é a introduçãodo parágrafo único do artigo primeiro do CP, dizendo: “não há crime semculpabilida<strong>de</strong>”. Tive cuidado <strong>de</strong> ler a exposição <strong>de</strong> motivos e o texto festejaa resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal subjetiva. Finalmente estamos <strong>de</strong>clarandopara todo mundo que a resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal é subjetiva, não há crimesem dolo sem culpa e está claro agora que sepultamos a resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong>objetiva. Entretanto, revivem uma hipótese <strong>de</strong> resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penalobjetiva que é a resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal da pessoa jurídica. Ao fundamentara capacida<strong>de</strong> criminal da empresa, a Exposição <strong>de</strong> motivos afirma queo Direito Penal tem a missão <strong>de</strong> proteger a socieda<strong>de</strong> e limitar o po<strong>de</strong>rpunitivo, o diálogo entre as duas missões é o perfil do Direito Penal. Afirma-seassim a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> resp<strong>on</strong>sabilizar criminalmente as empresasem face da evolução da socieda<strong>de</strong> e, em seguida, afirma a expansão dacapacida<strong>de</strong> penal das corporações para outros <strong>de</strong>litos, além dos crimesambientais. Portanto, é uma proposta, que já possui uma certa porosi-152R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 143-155, out.-<strong>de</strong>z. 2012


da<strong>de</strong>, uma falta <strong>de</strong> coesão, uma falta <strong>de</strong> clareza, porque sequer discutea resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal subjetiva, o princípio da imputação subjetiva,tão questi<strong>on</strong>ado, e, ao mesmo tempo, tão festejado no artigo primeirodo projeto <strong>de</strong> novo Código Penal. Fica claro o recado político-criminal: eranecessário fazer. E a partir <strong>de</strong> então trouxeram a resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penalda pessoa jurídica para <strong>de</strong>ntro do Código Penal.Estou muito à v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> para criticar o projeto <strong>de</strong> reforma porquefui c<strong>on</strong>vidado para fazer parte <strong>de</strong> uma comissão do Instituto <strong>de</strong> ciênciaspenais, para elaborar propostas para o referido projeto cuja Parte Geral fiqueiencarregado <strong>de</strong> analisar. Fiz 16 propostas e entregamos o trabalho aoprofessor Marcelo Le<strong>on</strong>ardo que integrava a comissão. Todavia, somenteforam analisadas as sugestões enviadas pelo Disque-Senado.En<strong>fim</strong>, o que mostra essa temática da resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal dapessoa jurídica é um completo <strong>de</strong>scompromisso com uma orientação político-criminallibertária. A resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal da pessoa jurídica foiampliada para os crimes c<strong>on</strong>tra a Administração pública, para os crimesc<strong>on</strong>tra a or<strong>de</strong>m ec<strong>on</strong>ômica e também para os crimes financeiros, alémdos c<strong>on</strong>tra o meio ambiente. Os autores do projeto afirmam que foi polêmicaa ampliação, não houve unanimida<strong>de</strong>, mas chegaram à c<strong>on</strong>clusão <strong>de</strong>que po<strong>de</strong>riam avançar em relação a outros bens jurídicos.Ora, se o nascimento da proposta está no artigo 225 § 3º da CF, queé o que todos dizem, a autorização c<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>al é para os crimes c<strong>on</strong>trao meio ambiente, como agora c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>ram que também po<strong>de</strong>m ampliartal resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> anômala para outros crimes, quando a norma emquestão não faz tal ampliação? O sistema da dupla imputação c<strong>on</strong>sagrad<strong>on</strong>o projeto é um absurdo. Vejam como a importação acrítica <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadosinstitutos geram problemas até <strong>de</strong> cunho prático: o sistema dadupla imputação foi criado no direito francês. Na verda<strong>de</strong>, a nossa Lei9.<str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>5/98 tentou se inspirar, no Código Francês que é <strong>de</strong> 1995, com algumasmudanças. Mas, nesse caso específico, o sistema da dupla imputaçã<strong>on</strong>asceu no direito francês em que se faz distinção entre a possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> imputação criminal da pessoa física e ao mesmo tempo a da pessoajurídica. A proposta francesa era evitar a impunida<strong>de</strong> da pessoa física porqueeles tinham preocupação sobre a questão do bis in i<strong>de</strong>m, da duplapunição pelo mesmo fato; então fizeram este esclarecimento e daí surgiuo princípio da dupla imputação.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 143-155, out.-<strong>de</strong>z. 2012 153


No projeto brasileiro, o dispositivo é absolutamente <strong>de</strong>sfocado dai<strong>de</strong>ia original do sistema da dupla imputação, porque fala apenas que aresp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> da pessoa jurídica não exclui a da pessoa física quandoautora, coautora ou partícipe do mesmo fato, nem é <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da resp<strong>on</strong>sabilizaçãodo dirigente ou gestor. Quer dizer, não dá para enten<strong>de</strong>rpois se a pessoa natural é autora, coautora ou partícipe, é evi<strong>de</strong>nte queela <strong>de</strong>ve resp<strong>on</strong><strong>de</strong>r em c<strong>on</strong>junto com a pessoa jurídica. Se ela não é autora,coautora ou partícipe é evi<strong>de</strong>nte que não há crime da pessoa jurídicaporque não há, na origem, a chamada Teoria da v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> real que se imaginouc<strong>on</strong>struir pela via da novida<strong>de</strong> em exame. Então, trata-se <strong>de</strong> maisuma aberração jurídica que o projeto c<strong>on</strong>sagra pela importação avaloradados institutos, no caso específico, do direito francês.Outro dia, eu c<strong>on</strong>versava com o professor Jean Cristhofer sobre odireito francês, como este é extremamente autoritário em termos penais.C<strong>on</strong>versávamos sobre a embriaguês ao volante, a <strong>de</strong>cisão do STJ acercado tema e ele comentou como é na Alemanha e na França a possibilida<strong>de</strong>da punição para aquele que se nega a oferecer o exame <strong>de</strong> sangue. Querodizer, não tinha nada a ver essa importação acrítica, do mo<strong>de</strong>lo francêsque é totalmente diverso do nosso Direito Penal.Quando eu estava pesquisando para a dissertação <strong>de</strong> mestrado, escrevium artigo sobre a <strong>de</strong>nominada “Resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal por Ricochete”que era a proposta formulada pelo professor francês Jean Pra<strong>de</strong>l paraque o dolo e a culpa da pessoa física fossem utilizados para fundamentara c<strong>on</strong><strong>de</strong>nação da pessoa jurídica. Mostrei, na ocasião, que, na verda<strong>de</strong>, ajurisprudência estava caminhando em sentido oposto ao entendimentodo Professor Pra<strong>de</strong>l, enten<strong>de</strong>ndo que a pessoa jurídica só po<strong>de</strong>ria resp<strong>on</strong><strong>de</strong>rpor crime doloso e não por crime culposo. Uma verda<strong>de</strong>ira c<strong>on</strong>fusãojurispru<strong>de</strong>ncial.O projeto afirma ter c<strong>on</strong>sagrado a individualização das penas tambémpara a pessoa jurídica. Na verda<strong>de</strong>, foram previstas penas restritivas<strong>de</strong> direitos com caráter substitutivo. Ou seja, em um primeiro momento,o juiz tem que calcular a pena <strong>de</strong> prisão para a empresa e, só <strong>de</strong>pois,promover uma substituição por penas próprias da pessoa jurídica. É umverda<strong>de</strong>iro absurdo: o juiz vai ter que calcular pena <strong>de</strong> prisão para a pessoajurídica para <strong>de</strong>pois substituir por penas restritivas <strong>de</strong> direitos. Estará154R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 143-155, out.-<strong>de</strong>z. 2012


o julgador, na sua difícil ativida<strong>de</strong> judicante, realizando uma atuação completamente<strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong> raci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>, isto é, aplicando criminalmentea mesma sanção que está prevista na Lei 9.<str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>5 como sanção civil, comosanção administrativa.Vou c<strong>on</strong>cluir porque meu tempo está esgotado dizendo que não hánada <strong>de</strong> novo na proposta <strong>de</strong> resp<strong>on</strong>sabilização penal da pessoa jurídica,e mais do que isso, é um sistema trazido para <strong>de</strong>ntro do Código Penal <strong>de</strong>manifesta incoerência, poroso, fragilizado, e que merece ser rechaçadopor completo. Aguardamos que o Supremo <strong>Tribunal</strong> Fe<strong>de</strong>ral cumpra o seu<strong>de</strong>ver <strong>de</strong> julgar, que julgue a temática da resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal da pessoajurídica e afaste, antes mesmo <strong>de</strong> eventual aprovação <strong>de</strong>sse projeto<strong>de</strong> reforma do Código Penal, essa inovação que tem ares <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>,<strong>de</strong> c<strong>on</strong>temporaneida<strong>de</strong>, mas que não é nada mais do que o velho e ruimDireito Penal retributivista exclu<strong>de</strong>nte.É necessário reagir, o avanço do punitivismo em nosso país tomouproporções alarmantes. O que <strong>de</strong>sejo, como finalida<strong>de</strong> última, é sepultarpara todo sempre, a <strong>de</strong>slegitimada prisão e o Direito Penal opressor que,gostaria <strong>de</strong> frisar, não <strong>de</strong>sejo nem para ricos nem para pobres, se não parao silêncio c<strong>on</strong>templativo da História. Muito obrigado.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 143-155, out.-<strong>de</strong>z. 2012 155


Em Defesa da Lei <strong>de</strong> Resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong>Político-Criminal:o caso do anteprojeto<strong>de</strong> Código PenalProf. Dr. Salo <strong>de</strong> CarvalhoMestre em Direito pela universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> SantaCatarina e Doutor pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Paraná.Pós-Doutor em Criminologia pela Universida<strong>de</strong>Pompeu Fabra (Barcel<strong>on</strong>a, ES).01. Problema patológico das reformas penais (direito penal, processopenal e execução penal) no Brasil e em gran<strong>de</strong> parte dos paísesoci<strong>de</strong>ntais <strong>de</strong> tradição romano-germânica é o da absoluta ausência <strong>de</strong> estudoprévio dos seus efeitos. Notadamente nos casos <strong>de</strong> normas penaisque direta ou indiretamente ampliam hipóteses <strong>de</strong> incriminação, como éo caso do Anteprojeto do Código Penal.Invariavelmente as reformas naci<strong>on</strong>ais ocorrem a partir <strong>de</strong> dois eixoscentrais: (a) projetos para resp<strong>on</strong><strong>de</strong>r casos emergenciais (v.g. Lei dosCrimes Hedi<strong>on</strong>dos) ou (b) projetos baseados em sistemas dogmáticos i<strong>de</strong>alizadospor “notáveis” (v.g. Lei dos Juizados Especiais Criminais, reformasparciais do Código <strong>de</strong> Processo Penal).No primeiro caso, o Legislativo, imerso em questões p<strong>on</strong>tuais, realizaalterações/inovações com objetivo <strong>de</strong> resp<strong>on</strong><strong>de</strong>r c<strong>on</strong>tingencialmentecasos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> repercussão. Nestes casos as leis normalmente sãoimpulsi<strong>on</strong>adas pela <strong>de</strong>manda punitiva, representando o que atualmentese <strong>de</strong>nomina como política criminal populista ou populismo punitivo. Nosegundo caso, a tendência é a elaboração <strong>de</strong> projetos com maior ‘coerência’em termos dogmáticos, ou seja, leis mais harmônicas com a estruturapenal e processual penal. A pretensão do Anteprojeto seria enquadrar-seno segundo mo<strong>de</strong>lo. No entanto, não c<strong>on</strong>segue garantir coerência mínimacom um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> direito penal ancorado na C<strong>on</strong>stituição.156R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 156-1<str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, out.-<strong>de</strong>z. 2012


Em ambas as situações, porém, nota-se absoluta ausência <strong>de</strong> investigaçõesempíricas que possibilitem projetar minimamente os impactosda nova lei no âmbito judicial e administrativo. Assim, a tradição legislativabrasileira tem oscilado entre o populismo e o i<strong>de</strong>alismo punitivo,ou seja, entre leis penais <strong>de</strong> cunho meramente c<strong>on</strong>tingenciais e leis penaisvoltadas a preservação do i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> harm<strong>on</strong>ia e coerência do sistemajurídico-penal a partir <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadas c<strong>on</strong>cepções dogmáticas e/oupolítico-criminais. Isto quando os projetos i<strong>de</strong>alistas não são atropelados,durante o <strong>de</strong>bate parlamentar, pelo discurso populista, inserindo elementosestranhos aos mo<strong>de</strong>los originários e retirando a pretensa coerênciaauferida pelos notáveis.Ocorre que, na maioria dos casos, os textos legais provocam alteraçõessignificativas no perfil do sistema punitivo sem que tenham sidoprojetadas suas c<strong>on</strong>sequências. Em relação aos substitutivos penais, asLeis 9.099/95 e 9.714/98 são exemplares.Em termos macropolíticos, portanto, importante ap<strong>on</strong>tar para anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estudo prévio <strong>de</strong> impacto político-criminal nos projetos<strong>de</strong> lei que versem sobre matéria penal, mormente quando se trata <strong>de</strong> umprojeto <strong>de</strong> Código que altera toda a estrutura normativa.O estudo prévio <strong>de</strong> impacto político-criminal <strong>de</strong>veria não apenasvincular o projeto à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> investigação das c<strong>on</strong>sequências danova lei no âmbito da administração da Justiça Criminal (esferas Judiciaise Executivas), mas exigir exposição da dotação orçamentária para suaimplementação. Assim, no caso do Anteprojeto que propõe a criação <strong>de</strong>novos tipos penais, o aumento <strong>de</strong> penas e a restrição ao sistema progressivo,imprescindível, para sua aprovação, uma exposição <strong>de</strong> motivos queapresente o número estimado <strong>de</strong> novos processos criminais que seriamlevados a julgamento pelo Judiciário, o números <strong>de</strong> novas vagas necessáriasnos estabelecimentos penais, o volume e a origem dos recursos paraefetiva implementação da lei. Neste aspecto, a omissão do Anteprojeto ésignificativa.Se a opção político-criminal dos Po<strong>de</strong>res Públicos é o aumento daspenas e o recru<strong>de</strong>scimento das formas <strong>de</strong> execução, esta escolha <strong>de</strong>veimpor <strong>de</strong>veres e resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong>s.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 156-1<str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, out.-<strong>de</strong>z. 2012 157


Na esfera das finanças públicas, p. ex., existem importantes prece<strong>de</strong>nteslegais, como é o caso da Lei Complementar 101/00 (Lei <strong>de</strong> Resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong>Fiscal), que estabelece regras voltadas para a resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong>na gestão fiscal, com amparo c<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>al. Assim como há exigência <strong>de</strong>resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> fiscal dos gestores públicos, <strong>de</strong>vem ser implementadastécnicas <strong>de</strong> resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> político-criminal, notadamente pelo caosque vive o sistema carcerário brasileiro. Ação planejada e transparente,prevenção <strong>de</strong> riscos e <strong>de</strong>svios para que sejam cumpridos os ditamesc<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>ais e legais referentes à dignida<strong>de</strong> do réu e do c<strong>on</strong><strong>de</strong>nado é omínimo que se espera quando se tem como primeira opção o encarceramento.Do c<strong>on</strong>trário, inexiste legitimida<strong>de</strong> possível na punição.02. O art. 5º, XLVI da C<strong>on</strong>stituição <strong>de</strong>termina que a lei regulará aindividualização da pena e aplicará, entre outras, (a) privação ou restriçãoda liberda<strong>de</strong>; (b) perda <strong>de</strong> bens; (c) prestação social alternativa; (<strong>de</strong>) multa;e (e) suspensão ou interdição <strong>de</strong> direitos. Do rol c<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>al referenteàs espécies <strong>de</strong> penas po<strong>de</strong>mos extrair duas c<strong>on</strong>clusões: (1ª) há previsãomeramente exemplificativa, sendo, portanto, abertas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>outras sanções <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que respeitados os limites do art. 5º, XLVII; (2ª) háobrigatorieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> resposta penal aos <strong>de</strong>litos.As penas previstas no or<strong>de</strong>namento não apenas <strong>de</strong>slocam a centralida<strong>de</strong>da privativa <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> como disciplinam que a própria privação<strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> não implica reclusão carcerária, apesar da históricaassociação. Não por outro motivo a Lei 9.714/98, ao alterar o Código Penal,regulamentou as penas restritivas <strong>de</strong> direito e criou modalida<strong>de</strong>s sanci<strong>on</strong>atóriasdistintas da prisão (v.g. prestação <strong>de</strong> serviços à comunida<strong>de</strong>,prestação pecuniária, interdição temporária <strong>de</strong> direitos e limitação <strong>de</strong> <strong>fim</strong><strong>de</strong> semana).Caso exemplar é o da nova Lei <strong>de</strong> Drogas. Ao seguir o processo <strong>de</strong>diversificação e <strong>de</strong> <strong>de</strong>scentralização da prisão como norte sanci<strong>on</strong>atório,no momento <strong>de</strong> regulamentar a sanção ao <strong>de</strong>lito <strong>de</strong> porte (e <strong>de</strong>mais modalida<strong>de</strong>s<strong>de</strong> c<strong>on</strong>dutas) <strong>de</strong> drogas para uso pessoal (art. 28, Lei 11.343/06),inovou em algumas importantes questões, possibilitando novas compreensõessobre o binômio crime-pena.Em primeiro lugar rompeu com o histórico vínculo entre crime epena privativa <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>; fato que levou, inclusive, alguns doutrina-158R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 156-1<str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, out.-<strong>de</strong>z. 2012


dores mais apressados a sugerir a <strong>de</strong>scriminalização da c<strong>on</strong>duta. A Lei11.343/06 inovou ao fixar diretamente no preceito secundário penas nãoprivativas <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>. A segunda alteração foi no que diz respeito à incorporaçãoao or<strong>de</strong>namento jurídico brasileiro da pena <strong>de</strong> admoestação(art. 28, I), na modalida<strong>de</strong> advertência sobre os efeitos das drogas. Emterceiro, passo <strong>de</strong>cisivo em direção à negação da centralida<strong>de</strong> do carceráriodiz respeito à vedação expressa <strong>de</strong> qualquer tipo <strong>de</strong> encarceramento(cautelar ou <strong>de</strong>finitivo) ao usuário <strong>de</strong> drogas (v.g. art. 28, §§ 2º, 3º, 4º e16º e art. 48, § 1º).A técnica utilizada parece ser absolutamente a<strong>de</strong>quada e dimensi<strong>on</strong>aestilo legislativo orientado à redução dos danos produzidos pelaprisi<strong>on</strong>alização e, sobretudo, ciente do alto po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> atração que exercea prisão. Pelos resultados produzidos ao l<strong>on</strong>go do século passado, parecenotório que as cláusulas abertas e genéricas que facultam ao Judiciárioo aprisi<strong>on</strong>amento são, invariavelmente, mandatos em branco que geramcomo resultado c<strong>on</strong>creto ampliação do encarceramento.No entanto, o Anteprojeto, em sentido c<strong>on</strong>trário ao prec<strong>on</strong>izadopela C<strong>on</strong>stituição, otimiza a lógica carcerocêntrica ao elevar as penas emabstrato, obstruir institutos <strong>de</strong>scarcerizadores (livramento c<strong>on</strong>dici<strong>on</strong>al esursis, p. ex.), e criar tipos abertos que permitem ao juiz ampliar o tempopara progressão.03. A incapacida<strong>de</strong> da Comissão em superar a obsessão do sistemapunitivo pela pena carcerária traduz inúmeras faces da realida<strong>de</strong> dosistema punitivo naci<strong>on</strong>al: o gozo explícito pelos suplícios e a v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> <strong>de</strong>punição; o temor pelo novo e a resignação com a lógica punitiva.No entanto, parece fundamental repetir: as formas <strong>de</strong> resposta jurídicaao <strong>de</strong>lito punível, no Brasil, estão distantes dos mo<strong>de</strong>los i<strong>de</strong>alizados.O cenário punitivo naci<strong>on</strong>al não enc<strong>on</strong>tra corresp<strong>on</strong>dência com as motivaçõesfrequentemente expostas nas <strong>de</strong>cisões que enviam e submetemas pessoas aos cárceres – discursos <strong>de</strong> prevenção geral ou especial, perspectivasdisciplinadoras ou neutralizadoras.Não é supérfluo lembrar que a in<strong>de</strong>cência do sistema punitivo-carceráriobrasileiro c<strong>on</strong>temporâneo é exposta cotidianamente pelos meios<strong>de</strong> comunicação e pelos movimentos <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa dos direitos humanos. Arealida<strong>de</strong> da punição na estrutura jurídica brasileira parece assumir, semR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 156-1<str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, out.-<strong>de</strong>z. 2012 159


pudores, a posição <strong>de</strong> que <strong>de</strong>terminadas pessoas simplesmente não servem,são <strong>de</strong>scartáveis, não merecem qualquer dignida<strong>de</strong>, são <strong>de</strong>sprezíveise por isso são oficialmente aband<strong>on</strong>adas.O Anteprojeto, em vez <strong>de</strong> propor alternativas reais ao problemado encarceramento naci<strong>on</strong>al, legitima estas práticas <strong>de</strong> encarceramentomassivo e cruel.04. Qualquer projeto <strong>de</strong> reforma <strong>de</strong>ve ter presente que as prisõesque c<strong>on</strong>stituem o arquipélago punitivo brasileiro são efetivamente as nossasprisões – e não outras, i<strong>de</strong>alizadas, como se percebe nos discursospunitivistas. E esta realida<strong>de</strong> prisi<strong>on</strong>al da vida crua é reflexo <strong>de</strong>sta assustadoracompetência dos atores da política criminal em sempre (e cada vezmais) ofen<strong>de</strong>r a dignida<strong>de</strong> das pessoas e reduzir ao máximo sua c<strong>on</strong>diçãohumana.O estado atual dos cárceres diz da forma como a socieda<strong>de</strong> brasileiraresolveu historicamente suas questões sociais, étnicas, culturais, ouseja, pela via da exclusão, da neutralização, da anulação da alterida<strong>de</strong>. Dizda violência hiperbólica das instituições, criadas no projeto Mo<strong>de</strong>rno paratrazer felicida<strong>de</strong> às pessoas (discurso oficial), mas que reproduzem –artificialmente, embora com inserção no real – a barbárie que a civilizaçãotentou anular. Diz da falácia dos discursos políticos, dos operadores dodireito e da ciência (criminológica), sempre perplexos com a realida<strong>de</strong> eao mesmo tempo receosos, temerosos, c<strong>on</strong>tidos, parcim<strong>on</strong>iosos frenteàs soluções radicais (anticarcerárias), pois protegidos pela repetição damáxima da prisão como solução necessária.A opção político-criminal exposta no Anteprojeto <strong>de</strong> Código Penalproduz, como c<strong>on</strong>sequência natural <strong>de</strong> uma visão político-criminal punitivista,a ampliação do encarceramento e a relegitimação <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>loque, na prática, aumenta os níveis <strong>de</strong> insegurança social.Neste quadro, imprescindível, para que se tenha uma real dimensãodos problemas que se projetam com o Anteprojeto, que o Legisladortenha c<strong>on</strong>sciência dos impactos em termos <strong>de</strong> encarceramento e, antes<strong>de</strong> pensar em sua aprovação, analise o tema com resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong>político-criminal.1<str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 156-1<str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, out.-<strong>de</strong>z. 2012


Projeto <strong>de</strong> código penal.A reforma da parte geralProf. Dr. Juarez TavaresPós-Doutor pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Frankfurt am Main(Alemanha), Mestre e Doutor em Direito pela Universida<strong>de</strong>Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro e Doutor em Direitopela Universida<strong>de</strong> do Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro, na qual éprofessor Titular. Sub-Procurador-Geral da República.Caro amigo Antônio Martins, que presi<strong>de</strong> esta memorável sessãodo Seminário Crítico da Reforma Penal, eminente Des. Paulo Bal<strong>de</strong>z.Senhoras e senhores.Gostaria <strong>de</strong> fazer um especial agra<strong>de</strong>cimento à Escola da Magistraturado Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro por me c<strong>on</strong>vocar para esta missão,que reputo <strong>de</strong> extrema relevância. Digo <strong>de</strong> extrema relevância porque se<strong>de</strong>stina a discutir um projeto <strong>de</strong> Código Penal que po<strong>de</strong> trazer graves c<strong>on</strong>sequênciaspara a comunida<strong>de</strong> brasileira. Quero também agra<strong>de</strong>cer aoDes. Paulo Bal<strong>de</strong>z e ao Dr. Rubens Casara, que me incentivaram a aquicomparecer. Inicialmente, relutei em aceitar o c<strong>on</strong>vite, porque faço parte<strong>de</strong> uma comissão <strong>de</strong> c<strong>on</strong>curso e me sentiria <strong>de</strong>sc<strong>on</strong>fortável <strong>de</strong> participar<strong>de</strong> um seminário na EMERJ, que é uma escola que se <strong>de</strong>stina, <strong>de</strong> maneiraprecípua, à preparação para c<strong>on</strong>curso.Diante, porém, do objetivo <strong>de</strong> se c<strong>on</strong>stituir na EMERJ um semináriocrítico do projeto do Código Penal, aceitei imediatamente a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> aquicomparecer e <strong>de</strong> figurar como seu coor<strong>de</strong>nador. Igualmente, gostaria <strong>de</strong> fazeruma homenagem àqueles amigos que estão presentes no evento e faço-ana pessoa do meu amigo, Prof. Juarez Cirino dos Santos, com o qual tenhoc<strong>on</strong>vivido durante muitos anos, na faculda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pois da faculda<strong>de</strong>, na vidaprofissi<strong>on</strong>al, en<strong>fim</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> nossa vida acadêmica até hoje. Na pessoa do Prof.Juarez dos Santos, saúdo todos os presentes e participantes do seminário.Antes <strong>de</strong> tratar da matéria relativa ao projeto do Código Penal,<strong>de</strong>vo ainda prestar outra homenagem. Há algumas pessoas que <strong>de</strong>ramuma c<strong>on</strong>tribuição notável à discussão <strong>de</strong>sse tema, ao iniciarem uma críticapercuciente ao projeto <strong>de</strong> Código Penal. Aqui cabe uma homenagemR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 161-189, out.-<strong>de</strong>z. 2012 161


a essas pessoas: Luís Greco, Alaor Leite, Gustavo Quandt e Paulo Busato,que escreveram na <str<strong>on</strong>g>Revista</str<strong>on</strong>g> Liberda<strong>de</strong>s do IBCCrim críticas c<strong>on</strong>tun<strong>de</strong>ntesao projeto. Com essas críticas, prestaram eles um serviço relevantíssimoà comunida<strong>de</strong> jurídica e ao direito brasileiro. Há muito tempo, o direitobrasileiro vem se <strong>de</strong>teriorando por c<strong>on</strong>ta <strong>de</strong> uma simplificação cada vezmaior dos institutos e também por força <strong>de</strong> um c<strong>on</strong>glomerado <strong>de</strong> livros,artigos e publicações que se <strong>de</strong>dicam a aplicar à doutrina penal aquilo quea jurisprudência, ainda não estratificada, vem disseminando Brasil afora.Parece que essa influência predominante da jurisprudência sobre a doutrinabrasileira vem solapando as bases humanistas do direito, levando-oa um <strong>de</strong>serto <strong>de</strong> c<strong>on</strong>cepções críticas, a <strong>de</strong>sc<strong>on</strong>stituir as premissas quebuscam assentar a interpretação das normas penais em face da proteção<strong>de</strong> direitos fundamentais.Dessa forma, parece-me que essas publicações, que apenas reproduzemenunciados da jurisprudência, formulados com base no fato c<strong>on</strong>creto,não estão a<strong>de</strong>quadas, na maioria das vezes, a servirem <strong>de</strong> parâmetropara uma específica reflexão jurídica. Por serem incertos e casuísticos,os enunciados estão muitas vezes em c<strong>on</strong>tradição com as premissas quea doutrina tem fixado como essenciais à c<strong>on</strong>figuração do direito penal.No dia 11/09/12, na inauguração <strong>de</strong>ste seminário, o Prof. Juarez Cirinodos Santos traçou os parâmetros essenciais da ciência penal. Disse ele,<strong>de</strong> modo percuciente, que o direito, segundo o pensamento <strong>de</strong> SandroBaratta, c<strong>on</strong>stituiria a i<strong>de</strong>ologia do sistema capitalista. Essa assertiva induza uma profunda reflexão. Fazendo um retrospecto sobre a questão dai<strong>de</strong>ologia, posso também dizer que essa expressão “i<strong>de</strong>ologia” nasce noséculo XVIII com De Tracy para indicar o c<strong>on</strong>junto <strong>de</strong> c<strong>on</strong>dições pelas quaisse po<strong>de</strong>ria ter uma compreensão das leis naturais. Inaugurava-se, portanto,no campo da filosofia, a c<strong>on</strong>tribuição no sentido <strong>de</strong> explicar como asleis naturais <strong>de</strong>veriam reger a comunida<strong>de</strong>.Dessa forma, o c<strong>on</strong>ceito <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologia, visto como c<strong>on</strong>dição parafundamentar a criação <strong>de</strong> leis naturais, ou possibilitar a explicação <strong>de</strong>ssasleis, se projetou no século XIX e, <strong>de</strong> modo muito eficaz, passou a fazer partedo empreendimento <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r o sistema político vigente, a partirdas c<strong>on</strong>dições que geravam a i<strong>de</strong>ia acerca <strong>de</strong>sse sistema. Parece claroque à medida que a geração <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias corresp<strong>on</strong><strong>de</strong>, na verda<strong>de</strong>, a algunsrequisitos empíricos que lhe servem <strong>de</strong> base, essa gestação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias nãopo<strong>de</strong>ria se <strong>de</strong>svincular das c<strong>on</strong>dições materiais da vida social, principal-162R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 161-189, out.-<strong>de</strong>z. 2012


mente daquelas c<strong>on</strong>dições materiais <strong>de</strong> produção, das chamadas relações<strong>de</strong> produção, ou relações <strong>de</strong> classe. Assim, é impossível c<strong>on</strong>ceber-se umai<strong>de</strong>ologia sem estar associada a uma c<strong>on</strong>cepção <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> baseada naqueladivisão das categorias sociais antagônicas que compõem o quadrodas relações <strong>de</strong> produção.É impossível esclarecer acerca do direito sem promover sua vinculaçãoa esse c<strong>on</strong>ceito <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologia, que está presente no complexo daformação social capitalista. Portanto, a análise que o Prof. Juarez Cirinodos Santos fez, mostrando que efetivamente o direito c<strong>on</strong>stituiria a i<strong>de</strong>ologiado sistema capitalista, é perfeitamente correta. O direito representajustamente uma proposta <strong>de</strong> raci<strong>on</strong>alização daquelas c<strong>on</strong>dições materiaisfrutificadas nas relações <strong>de</strong> produção. Isso c<strong>on</strong>duz a que o direito, aindaque alguns autores o edifiquem como m<strong>on</strong>umento cultural, sempre estevea serviço da manutenção <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> formação social. O direito, portanto,está imbricado <strong>de</strong> tal forma na formação social capitalista que nãopo<strong>de</strong> frutificar, a não ser como modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> raci<strong>on</strong>alização do sistema,ou seja, como sua i<strong>de</strong>ologia, para, assim, sustentá-lo politicamente. Essaé a c<strong>on</strong>cepção que tenho da i<strong>de</strong>ologia.Por outro lado, se o direito é uma forma i<strong>de</strong>ológica do próprio sistemacapitalista, é também o direito que faz com que a pena se caracterizecomo espécie <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologia <strong>de</strong>sse próprio sistema. A pena não é apenasa resposta que se dá à prática <strong>de</strong> uma infração penal; a pena incorporanessa resposta uma i<strong>de</strong>ologia, no sentido <strong>de</strong> basear sua raci<strong>on</strong>alização nai<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que é necessária. Portanto, a discussão em torno da necessida<strong>de</strong>da pena nada mais é do que uma forma <strong>de</strong> raci<strong>on</strong>alização, pela qual sepreten<strong>de</strong> justificar sua imposição como algo socialmente indispensável,porque inerente à própria formação social. Assim, entre pena, direito esistema social capitalista não há ruptura, há uma assimilação ascen<strong>de</strong>ntecada vez maior, cada vez mais presente.A partir dos enfoques trazidos à baila pelos c<strong>on</strong>ferencistas, principalmente,por Maurício Dieter, pu<strong>de</strong>mos <strong>on</strong>tem observar como essa raci<strong>on</strong>alizaçãoda imposição da pena mais solidifica o po<strong>de</strong>r e mais sedimentaas bases injustas sobre as quais esse po<strong>de</strong>r se fundamenta. Aí está aprimeira abordagem <strong>de</strong> uma crítica ao sistema penal e ao próprio projeto.Pelo ângulo <strong>de</strong> seu complexo i<strong>de</strong>ológico, sob o qual se enunciam as razõesque justificam a formulação das normas penais, po<strong>de</strong>-se compreen<strong>de</strong>r osignificado e o alcance das incriminações.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 161-189, out.-<strong>de</strong>z. 2012 163


Outro aspecto importante para levar em c<strong>on</strong>ta, antes da manifestaçãoc<strong>on</strong>creta sobre as normas que compõem a parte geral do projeto <strong>de</strong>código penal, é a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ressaltar o papel da dogmática penal.Afinal <strong>de</strong> c<strong>on</strong>tas, para que serve a dogmática penal? Há algumas propostas<strong>de</strong> c<strong>on</strong>ceber a dogmática penal como um c<strong>on</strong>hecimento <strong>de</strong>scomprometidocom qualquer viés i<strong>de</strong>ológico ou qualquer manifestação <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r.Como c<strong>on</strong>sequência, haveria uma ruptura entre a dogmática penal, <strong>de</strong>um lado, e o sistema penal, <strong>de</strong> outro. A dogmática penal representaria umc<strong>on</strong>junto <strong>de</strong> c<strong>on</strong>hecimentos <strong>de</strong>stinados a proteger a pessoa humana diantedo po<strong>de</strong>r punitivo do Estado, e o sistema punitivo daria corpo aos elementosdo po<strong>de</strong>r punitivo. Parece, porém, que essa é uma falsa reflexãosobre o papel da dogmática penal. A dogmática penal não é um c<strong>on</strong>junto<strong>de</strong> c<strong>on</strong>hecimentos coerentes e sistemáticos, ainda que <strong>de</strong>limitativos dopo<strong>de</strong>r <strong>de</strong> punir. A dogmática só po<strong>de</strong> legitimar-se se <strong>de</strong>sempenhar umafunção crítica. O papel da dogmática legítima tem que ser sempre umpapel crítico. Ela não tem outro papel, até porque qualquer outro papelseria um papel <strong>de</strong> comprometimento com o sistema, seria um papel <strong>de</strong>raci<strong>on</strong>alização do sistema por meio <strong>de</strong> artimanhas e <strong>de</strong> procedimentoslógicos nem sempre esclarecidos.Qual é o papel que se <strong>de</strong>ve assinalar à dogmática penal quando sefaz uma crítica ao projeto? É o papel <strong>de</strong> esclarecer, primeiramente, acerca<strong>de</strong> seus objetivos latentes ou não <strong>de</strong>clarados, que são aqueles objetivosreais do processo <strong>de</strong> punição instituído no sistema vigente; <strong>de</strong>pois, o papel<strong>de</strong> <strong>de</strong>m<strong>on</strong>strar como a ocultação <strong>de</strong>sses objetivos reais se envolve noprocesso <strong>de</strong> sua raci<strong>on</strong>alização e c<strong>on</strong>tribui para a manutenção do sistema.Essa é a realida<strong>de</strong> que a dogmática penal <strong>de</strong>ve ap<strong>on</strong>tar, esclarecer e colocarno <strong>de</strong>vido lugar para mostrar exatamente o que o projeto representa.O projeto não é produto <strong>de</strong> uma ciência neutra e nem é o projeto <strong>de</strong> umalei neutra, mas, sim, um projeto comprometido com a i<strong>de</strong>ologia da pósmo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>ou do capitalismo tardio, que camufla os verda<strong>de</strong>iros significadosda punição sob o pálio <strong>de</strong> inovação e teorias in<strong>de</strong>finidas.In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong>ssas i<strong>de</strong>ias iniciais, analisemos o projeto emsua substancialida<strong>de</strong>, ou seja, em termos lógicos e em termos dogmáticos,em c<strong>on</strong>fr<strong>on</strong>to com as teorias do direito penal em geral. Afinal <strong>de</strong> c<strong>on</strong>tas,estamos fazendo uma crítica a um projeto <strong>de</strong> código penal que estácolocado em votação no Senado Fe<strong>de</strong>ral e que po<strong>de</strong>rá ser levado a efeito,inclusive com c<strong>on</strong>sequências gravíssimas e <strong>de</strong>sastrosas para a socieda<strong>de</strong>164R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 161-189, out.-<strong>de</strong>z. 2012


asileira. Precisamos proce<strong>de</strong>r aqui a uma crítica mais pormenorizada<strong>de</strong> suas normas, <strong>de</strong> tal modo a <strong>de</strong>m<strong>on</strong>strar sua inc<strong>on</strong>gruência intrínseca,teórica e lógica. Igualmente, para pôr à mostra sua irraci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>. Se oprojeto c<strong>on</strong>stitui uma forma <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologia, uma forma <strong>de</strong> raci<strong>on</strong>alizaçãodo po<strong>de</strong>r penal, po<strong>de</strong>-se dizer que até nesta forma i<strong>de</strong>ológica é ele ilógico.Nem mesmo os objetivos perseguidos pelo projeto são alcançados nopróprio projeto.Na dogmática penal segue-se a tradição, que se compôs <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Feuerbachaté os nossos dias, <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver essa forma <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologia, que éo direito penal, mediante a c<strong>on</strong>jugação <strong>de</strong> elementos cada vez mais precisos,<strong>de</strong> modo a c<strong>on</strong>ferir à expressão <strong>de</strong> sua raci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong> um c<strong>on</strong>tornoperfeitamente compreensível. Essa forma <strong>de</strong> raci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong> ou raci<strong>on</strong>alizaçãoestá hoje muito bem representada na nova filosofia do discursojurídico punitivo. A instituição do discurso jurídico pós-mo<strong>de</strong>rno serve aopropósito <strong>de</strong> representar a compreensão da realida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> um lado, c<strong>on</strong>soanteos elementos empíricos que lhe servem <strong>de</strong> substrato, e <strong>de</strong> corrigiro próprio sistema, <strong>de</strong> outro. Assim, o discurso jurídico está composto <strong>de</strong>duas parcelas importantes: uma, <strong>de</strong> compreensão da realida<strong>de</strong>, e outra,<strong>de</strong> correção do próprio sistema normativo. Mediante essa divisão <strong>de</strong> tarefas,quer-se dar a impressão <strong>de</strong> que efetivamente o discurso jurídico <strong>de</strong>compreensão da realida<strong>de</strong> está ajustado àquele sistema jurídico <strong>de</strong> suacorreção, quer dizer, busca-se fundamentar ou legitimar a correção dosistema normativo por meio <strong>de</strong> uma atenção aos elementos empíricosda realida<strong>de</strong>. Claro que a compreensão da realida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve ter como referênciaelementos empíricos, mas estes não são suficientes para legitimaro sistema, para afirmar sua correção. A compreensão da realida<strong>de</strong> e acorreção do sistema estão vinculadas diretamente ao discurso jurídico, oqual se manifesta nas leis e agora no projeto <strong>de</strong> código penal.Sendo assim, como que se dá essa compreensão? E como se dáessa correção do sistema jurídico no projeto <strong>de</strong> código penal? C<strong>on</strong>vémobservar, primeiramente, que a Parte Geral do Código Penal foi profundamentealterada. Foi alterada em todos os níveis: no tocante à aplicaçãoda lei penal, no tocante à teoria do <strong>de</strong>lito e também em relação à própriapena. Vou <strong>de</strong>dicar o estudo exclusivamente à parte relativa à teoria do<strong>de</strong>lito, sem a<strong>de</strong>ntrar na regulação da pena. Ontem, <strong>de</strong> maneira exaustiva,os c<strong>on</strong>ferencistas praticamente <strong>de</strong>stroçaram o projeto em face das perspectivashumanistas que po<strong>de</strong>ria c<strong>on</strong>ter, mostrando exatamente o c<strong>on</strong>-R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 161-189, out.-<strong>de</strong>z. 2012 165


trário, que o projeto é antagônico aos interesses individuais e ao EstadoDemocrático <strong>de</strong> direito e, principalmente, antagônico à perspectiva <strong>de</strong>uma potencialização da pessoa humana. Deixemos <strong>de</strong> lado essa análise efixemo-nos exclusivamente nos p<strong>on</strong>tos fundamentais da aplicação da leipenal e da teoria do <strong>de</strong>lito.Na aplicação da lei penal, as questões começam a suscitar in<strong>de</strong>finiçõese perplexida<strong>de</strong>s. A primeira gran<strong>de</strong> perplexida<strong>de</strong> diz respeito à homologação<strong>de</strong> sentença penal estrangeira para produzir efeitos no Brasil.Assim, disciplina o projeto a matéria:Art. 10. A sentença estrangeira po<strong>de</strong> ser homologada no Brasilpara produzir os mesmos efeitos <strong>de</strong> c<strong>on</strong><strong>de</strong>nação previstospela lei brasileira, inclusive para a sujeição à pena, medida<strong>de</strong> segurança ou medida socioeducativa e para a reparaçãodo dano.§1º A homologação <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>:a) <strong>de</strong> pedido da parte interessada;b) da existência <strong>de</strong> tratado <strong>de</strong> extradição com o país <strong>de</strong> cujaautorida<strong>de</strong> judiciária emanou a sentença, ou, na falta <strong>de</strong>tratado, <strong>de</strong> requisição do Ministro da Justiça ou da Mesa doC<strong>on</strong>gresso Naci<strong>on</strong>al.§2º Não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m <strong>de</strong> homologação as <strong>de</strong>cisões <strong>de</strong> corteinternaci<strong>on</strong>al cuja jurisdição foi admitida pelo Brasil.E aqui, Prof. Juarez Cirino, está a mais evi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>m<strong>on</strong>stração <strong>de</strong>como os casos c<strong>on</strong>cretos, políticos, influenciam a c<strong>on</strong>figuração da lei penale como os casos c<strong>on</strong>cretos, políticos, não só influenciam, mas <strong>de</strong>terminama utilização do discurso penal em torno da raci<strong>on</strong>alização do sistemapara fortalecer a punição e não para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a pessoa humana. Acompreensão da realida<strong>de</strong> empírica, a c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> um fato, procuraalicerçar a correção do sistema normativo. A sentença estrangeira po<strong>de</strong>ser homologada no Brasil, segundo o projeto, para produzir os mesmosefeitos da c<strong>on</strong><strong>de</strong>nação previstos pela lei brasileira, inclusive para a sujeiçãoà pena imposta por tribunal estrangeiro. Por que foi prevista esta forma<strong>de</strong> execução da pena aplicada no estrangeiro em território brasileiro166R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 161-189, out.-<strong>de</strong>z. 2012


a autores originariamente vinculados ao tribunal estrangeiro? Por exemplo,um estrangeiro comete um crime na Itália e se transfere ao Brasil, oqual, por sua vez, não c<strong>on</strong>ce<strong>de</strong> a extradição pedida pelo governo italiano.Pelo projeto, a sentença italiana po<strong>de</strong>ria ser executada para que o italianocumprisse a pena nas prisões brasileiras. É a primeira vez que se preten<strong>de</strong>fazer isso.E por que se preten<strong>de</strong> fazer isso? A explicação é muito simples: porsugestão <strong>de</strong> um caso c<strong>on</strong>creto, do caso Battisti, porque Battisti, além <strong>de</strong>ter sido foi beneficiado pelo asilo político, não teve sua extradição executadapelo governo brasileiro, apesar <strong>de</strong> c<strong>on</strong>cedida pelo Supremo <strong>Tribunal</strong>Fe<strong>de</strong>ral. O ato governamental <strong>de</strong> executar ou não a extradição é atopolítico, inserido como expressão <strong>de</strong> soberania. Uma vez não executadaa extradição, Battisti permaneceu no território brasileiro sem cumprir apena a que fora c<strong>on</strong><strong>de</strong>nado na Itália. Agora, por essa fórmula sub-reptícia,o projeto <strong>de</strong> código penal preten<strong>de</strong> impor ao governo brasileiro a <strong>de</strong>cisão<strong>de</strong> mandar que se proceda, no Brasil, a execução <strong>de</strong>ssa pena.Preten<strong>de</strong>-se, assim, levar ao extremo o velho princípio <strong>de</strong> aut <strong>de</strong><strong>de</strong>reaut judicare, sem se importar com as diversida<strong>de</strong>s dos sistemas jurídicos.Praticamente, as garantias que se tinham em c<strong>on</strong>ta para a verificaçãoacerca da valida<strong>de</strong> da extradição caem por terra. A pessoa submetida aesse procedimento está diante <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>cisão simbólica <strong>de</strong> proteção <strong>de</strong>seus direitos, que nada protege, que apenas dá vazão ao sentido punitivodo sistema.Lembro-me <strong>de</strong> um caso interessante, quando eu era estudante <strong>de</strong>direito na Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Paraná, juntamente com o Prof. JuarezCirino dos Santos. Discutia-se, na época, se uma autorida<strong>de</strong> paraguaiapo<strong>de</strong>ria solicitar ao secretário <strong>de</strong> segurança pública do Paraná, medianteofício, que se executasse no Brasil a pena imposta a um paraguaio quefora c<strong>on</strong><strong>de</strong>nado no Paraguai, mas que passara a residir em Curitiba. Dec<strong>on</strong>formida<strong>de</strong> com o Código Penal <strong>de</strong> 1940, ainda em sua redação originária,isso seria impossível, como é até hoje. Lembro-me <strong>de</strong> meu professor,Alci<strong>de</strong>s Munhoz Neto, um notável penalista, que asseverava ser inc<strong>on</strong>testávela regra do código, ainda que o paraguaio fosse um cidadão aparentementein<strong>de</strong>sejável ou que houvesse cometido crime grave em seu país <strong>de</strong>origem. Se a proposta do projeto vingasse, a pretensão paraguaia po<strong>de</strong>riaser atendida, claro, não mediante um procedimento tão <strong>de</strong>sburocratizado,mas observando-se a homologação da sentença pelo STJ.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 161-189, out.-<strong>de</strong>z. 2012 167


Aparentemente, tudo é muito correto, mas po<strong>de</strong>m surgir algunsproblemas. Qual é afinal a lei aplicável na execução: a lei brasileira ou a leiparaguaia? Sup<strong>on</strong>ha-se que no Paraguai se promulgue uma lei que atenueou diminua a pena. Aplica-se esse benefício no Brasil? Caso a execução sereger pela lei paraguaia, <strong>de</strong>verá o juiz brasileiro verificar, c<strong>on</strong>stantemente,pela internet ou por outros meios <strong>de</strong> comunicação, acerca <strong>de</strong> qualqueralteração na lei estrangeira que possa beneficiar o réu. Po<strong>de</strong>r-se-ia dizerque isso <strong>de</strong>veria ser alertado pelo <strong>de</strong>fensor do c<strong>on</strong><strong>de</strong>nado. Ocorre, porém,que o juiz é obrigado, <strong>de</strong> ofício, a proce<strong>de</strong>r a uma reavaliação da execução,quando surgir qualquer benefício ao c<strong>on</strong><strong>de</strong>nado. Por outra parte,se a execução se reger pela lei brasileira, fica sem resposta a indagaçãoacerca <strong>de</strong> como se proce<strong>de</strong>r quando a lei estrangeira for mais benéfica aoc<strong>on</strong><strong>de</strong>nado. A<strong>de</strong>mais, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da alteração benéfica da legislação,como será regulado o livramento c<strong>on</strong>dici<strong>on</strong>al? O projeto excluiuo livramento c<strong>on</strong>dici<strong>on</strong>al, mas manteve a progressão <strong>de</strong> regime. Então,como se regula a mudança <strong>de</strong> regime? E se o tribunal estrangeiro enten<strong>de</strong>rque a c<strong>on</strong><strong>de</strong>nação a um <strong>de</strong>terminado crime sujeita o c<strong>on</strong><strong>de</strong>nado aoregime aberto, mas a lei brasileira prever que se lhe <strong>de</strong>va submeter aoregime semiaberto, ou fechado? Essas regras não foram traçadas no projeto,mas <strong>de</strong>veriam ser.Há uma situação <strong>de</strong> c<strong>on</strong>flito c<strong>on</strong>stante entre a lei estrangeira e a leibrasileira, que torna inviável esse tipo <strong>de</strong> execução da pena. Mais grave doque isso é o fato <strong>de</strong> que a imposição <strong>de</strong> execução, no Brasil, da pena impostapor tribunal estrangeiro, salvo se houver acordo ou tratado entre osdois países, c<strong>on</strong>stitui um atentado à soberania do país e uma extensão in<strong>de</strong>vidada jurisdição estrangeira ao território brasileiro. O Brasil não po<strong>de</strong>executar a pena imposta por um tribunal estrangeiro, unicamente comoforma <strong>de</strong> dar sequência à punição. A pena imposta no exterior corresp<strong>on</strong><strong>de</strong>a uma or<strong>de</strong>m jurídica <strong>de</strong>terminada, vinculada a valores e c<strong>on</strong>dições diferentesdo que se c<strong>on</strong>signa no Brasil. Daí a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que isso <strong>de</strong>vavir associado a um tratado específico entre os dois países, no qual sejamc<strong>on</strong>si<strong>de</strong>radas as particularida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cada or<strong>de</strong>m jurídica, seus limites ecomandos. Não basta, como faz o projeto, que haja tratado <strong>de</strong> extradiçãoentre o Estado estrangeiro e o Brasil. Será possível que mediante uma leise estenda a jurisdição estrangeira ao Brasil? A execução da pena impostapor tribunal estrangeiro não se c<strong>on</strong>fun<strong>de</strong> com as c<strong>on</strong>sequências que asentença estrangeira possa produzir no Brasil. A execução da pena com-168R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 161-189, out.-<strong>de</strong>z. 2012


preen<strong>de</strong> já um ato <strong>de</strong> soberania. Por sua vez, a análise do c<strong>on</strong>teúdo <strong>de</strong>uma sentença estrangeira diz respeito a tomá-la apenas como fato, quepo<strong>de</strong> ou não influir na c<strong>on</strong>vicção do julgador brasileiro.O projeto prevê também que a sentença estrangeira po<strong>de</strong> ser homologadano Brasil para a imposição <strong>de</strong> medidas socioeducativas. A medidasocioeducativa se esten<strong>de</strong> preferencialmente aos adolescentes, maso Código Penal não po<strong>de</strong> disciplinar medidas <strong>de</strong>stinadas a adolescentes,que se regem por estatuto próprio. Aqui novamente nos <strong>de</strong>fr<strong>on</strong>tamoscom um problema: há sentenças estrangeiras que impõem medidas socioeducativasnão existentes na legislação brasileira. Como essas medidassocioeducativas estrangeiras <strong>de</strong>vem ser executadas no Brasil? Como se<strong>de</strong>ve proce<strong>de</strong>r à sua adaptação às medidas brasileiras? Embora algumasmedidas sejam semelhantes, muitas <strong>de</strong>las implicam violação <strong>de</strong> direitosfundamentais, como a Sicherungsverwahrung alemã, que restaura o sistemado duplo binário.No artigo 9º se reproduz a mesma norma do vigente código penal.Art. 9º A pena cumprida no estrangeiro atenua a pena impostano Brasil pelo mesmo crime, quando diversas, ou nelaé computada, quando idênticas.Embora aparentemente clara, essa norma é <strong>de</strong> difícil compreensão.Sobre isso jamais foram tecidos esclarecimentos c<strong>on</strong>vincentes. A doutrinacostuma simplesmente repetir as palavras da lei. O projeto <strong>de</strong>veria dizero que significa a expressão penas “diversas” ou penas “idênticas”. A diversida<strong>de</strong>não po<strong>de</strong> ser aferida pela quantida<strong>de</strong>, mas sim pela qualida<strong>de</strong>.A<strong>de</strong>mais, nem sempre a diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> excluirá a possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> comutação. Uma pena é idêntica em que sentido? Quais são os parâmetrosda i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>? Por outro lado, unificaram-se as penas <strong>de</strong> reclusãoe <strong>de</strong> <strong>de</strong>tenção. Isso parece c<strong>on</strong>duzir a sedimentar a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> apenasna quantida<strong>de</strong>. Mas o critério quantitativo é absolutamente incompatívelcom um significado valorativo. O projeto mantém a diversida<strong>de</strong> qualitativae, ao mesmo tempo, impossibilita sua aplicação. Uma c<strong>on</strong>tradiçãoinc<strong>on</strong>tornável.O mais grave nessa regulação da aplicação da lei penal, além daproposta política <strong>de</strong> sedimentar normativamente questões práticas queR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 161-189, out.-<strong>de</strong>z. 2012 169


foram levadas a efeito por um caso c<strong>on</strong>creto, é aquela relativa aos chamadoscritérios <strong>de</strong> solução para o c<strong>on</strong>curso ou c<strong>on</strong>flito <strong>de</strong> normas.Há sempre a expectativa <strong>de</strong> que a lei penal c<strong>on</strong>tenha expressõescorretas, claras, que possam ser compreendidas imediatamente por todos.Parece, c<strong>on</strong>tudo, que o projeto <strong>de</strong> código penal não aten<strong>de</strong>u a essaexpectativa. Quando procurou regular o c<strong>on</strong>flito <strong>de</strong> normas, caiu em c<strong>on</strong>tradiçõese violou, <strong>de</strong> uma maneira muito direta, lições c<strong>on</strong>solidadas dadoutrina penal. Veja-se o que dispõe o art. 12, § 2º, do projeto:C<strong>on</strong>sunção criminosa§ 2º Não inci<strong>de</strong> o tipo penal meio ou o menos grave quandoestes integram a fase <strong>de</strong> preparação ou execução <strong>de</strong> um tipopenal <strong>fim</strong> ou <strong>de</strong> um tipo penal mais grave.§ 3º Não inci<strong>de</strong> o tipo penal relativo a fato posterior quandose esgota a ofensivida<strong>de</strong> ao bem jurídico tutelado pelo tipopenal anterior mais gravoso.Simplesmente, o projeto c<strong>on</strong>fun<strong>de</strong> as coisas, porque c<strong>on</strong>juga comoc<strong>on</strong>sunção não apenas o que a doutrina trata mesmo como c<strong>on</strong>sunção(§ 3º), senão também aquilo que a doutrina no mundo inteiro chama <strong>de</strong>subsidiarieda<strong>de</strong> (§ 2º). Há aqui uma profunda divergência entre o entendimentodaqueles que fizeram o projeto e os ensinamentos tradici<strong>on</strong>aisda doutrina penal universal. Não precisava ir l<strong>on</strong>ge: bastava ler o livro doProf. Juarez Cirino dos Santos e ver que o art. 12, § 2º c<strong>on</strong>fun<strong>de</strong> c<strong>on</strong>sunçãoe subsidiarieda<strong>de</strong>. Aos leigos, isso po<strong>de</strong>ria parecer uma clarividência doprojeto, mas não é. É erro dogmático. Um fato que é etapa <strong>de</strong> realização<strong>de</strong> outro (ou <strong>de</strong> execução, como diz o projeto), não importa a finalida<strong>de</strong>perseguida pelo agente, é subsidiário <strong>de</strong>sse outro. A c<strong>on</strong>sunção se dá emoutro c<strong>on</strong>texto, quando o fato for eventualmente usado como meio e possaser abrangido pelo tipo do crime <strong>fim</strong>, <strong>de</strong> tal modo que possa ser objeto<strong>de</strong> único juízo <strong>de</strong> valor. Na c<strong>on</strong>sunção, faz-se um juízo <strong>de</strong> valor da relaçãoentre meio e <strong>fim</strong> para estabelecer uma p<strong>on</strong><strong>de</strong>ração em torno da lesão <strong>de</strong>bem jurídico. Nessa p<strong>on</strong><strong>de</strong>ração, verifica-se se o tipo po<strong>de</strong> também alcançaro crime meio. Isso se dá no chamado fato coparticipativo (Begleittat).Na subsidiarieda<strong>de</strong>, há uma variação <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong>: o ato se <strong>de</strong>senvolveem etapas, agravando a lesão do bem jurídico.170R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 161-189, out.-<strong>de</strong>z. 2012


Examinemos, agora, com mais vagar a questão do fato punível.Tiago Joffily já <strong>de</strong>mostrou, na sua c<strong>on</strong>ferência inicial, a inc<strong>on</strong>gruência daredação relativa ao princípio da ofensivida<strong>de</strong>. Não vamos entrar nesseaspecto. Vamos apenas tratar <strong>de</strong> outro aspecto: o parágrafo único doartigo 14.Diz o projeto:Art. 14. A realização do fato criminoso exige ação ou omissão,dolosa ou culposa, que produza ofensa, potencial ou efetiva,a <strong>de</strong>terminado bem jurídico.Parágrafo único. O resultado exigido somente é imputável aquem lhe <strong>de</strong>r causa e se <strong>de</strong>correr da criação ou incremento<strong>de</strong> risco tipicamente relevante, <strong>de</strong>ntro do alcance do tipo.Os membros da comissão dizem que esse parágrafo único c<strong>on</strong>stituium dos avanços mais significativos do projeto e da futura legislação brasileira,porque busca introduzir entre nós os critérios <strong>de</strong> imputação objetiva<strong>de</strong> Roxin. Interessante que Roxin, que é, sem dúvida, o maior penalista domundo, não c<strong>on</strong>seguiu incorporar seus critérios ao próprio Código Penalalemão. E nem se importou muito com isso, porque sabe que a lei não<strong>de</strong>ve tratar exaustivamente <strong>de</strong> critérios ainda em evolução.Mas o projeto, claro, com o objetivo <strong>de</strong> renovar a doutrina e a legislação,quer incorporar os ensinamentos <strong>de</strong> Roxin ao Código Penal. Issoseria uma maravilha, se fosse possível e fosse produto <strong>de</strong> uma redaçãocorreta. Sou a<strong>de</strong>pto da Teoria da Imputação Objetiva e fui o primeiro a tratá-lano Brasil quando da primeira edição do Direito Penal da Negligência,fato que foi rec<strong>on</strong>hecido por Luís Greco. Naquela época, o sistema propostopor Roxin ainda não estava totalmente <strong>de</strong>senvolvido. Mais tar<strong>de</strong>,assimilei os critérios <strong>de</strong> Roxin e os uso <strong>de</strong>ntro do quadro da imputação, jána Teoria do Injusto Penal. Mesmo assim, tenho c<strong>on</strong>strangimento em proporsua incorporação ao Código Penal, porque, como se trata <strong>de</strong> critériosnormativos, po<strong>de</strong>m sofrer novas avaliações da doutrina jurídica. A doutrinapenal, que está, hoje, sedimentada, por exemplo, no aumento do risco,po<strong>de</strong>rá mudar amanhã, pois as reflexões são intermináveis, assim como amúsica, cujos acor<strong>de</strong>s são infinitos. Po<strong>de</strong>rá haver uma modificação estrutural<strong>de</strong>sses critérios <strong>de</strong> imputação objetiva. Nem sempre é salutar queR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 161-189, out.-<strong>de</strong>z. 2012 171


critérios, hoje dominantes ou preferentes, mas que se modificam todosos dias, venham a ser inseridos em um código penal. O projeto buscouacolhê-los, mas fê-lo <strong>de</strong> forma imperfeita, ou melhor, errada.O ensinamento <strong>de</strong> Roxin não foi adotado <strong>de</strong> maneira <strong>de</strong>finitiva ecorreta; foi traçado in<strong>de</strong>vida e incorretamente. Vou ler novamente o dispositivo,o qual diz o seguinte: “o resultado exigido somente é imputávela quem lhe <strong>de</strong>r causa e se <strong>de</strong>correr da criação ou incremento <strong>de</strong> risco tipicamenterelevante, <strong>de</strong>ntro do alcance do tipo”. Primeiramente, há umamanifesta redundância: “tipicamente relevante” e “<strong>de</strong>ntro do alcance dotipo”. Claro, se é tipicamente relevante só po<strong>de</strong> estar <strong>de</strong>ntro do tipo; <strong>on</strong><strong>de</strong>estaria? Que linguagem escorreita! Há outro caso também gritante <strong>de</strong>erro <strong>de</strong> linguagem. No projeto está assim redigido o § 1º do art. 12:Art. 12. Na aplicação da lei penal o juiz observará os seguintescritérios, sem prejuízo das regras relativas ao c<strong>on</strong>curso <strong>de</strong> crimes:§ 1º Quando um fato aparentemente se subsume a mais <strong>de</strong>um tipo penal, é afastada a incidência:a) do tipo penal genérico pelo tipo penal específico;b) dos tipos penais que c<strong>on</strong>stituem ou qualificam outro tipo.Observem a linguagem: “quando um fato aparentemente se subsumea mais <strong>de</strong> um tipo penal”. Ora, o verbo subsumir se c<strong>on</strong>juga como o verbosumir. Não é “subsume”, mas, sim, “subsome”.O texto diz que a imputação <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>correr da criação ou do incrementodo risco. A primeira tarefa do intérprete será a <strong>de</strong> distinguir entrecriação e incremento. Se analisarmos bem o que significa incrementar ecriar, iremos verificar que são expressões sinônimas. Incrementar é criar;criar ou incrementar dá no mesmo. Incrementar não é sinônimo <strong>de</strong> aumentar.Parece que o projeto queria dizer “criar” ou “aumentar”, e usouexpressões incorretas. Incremento do risco ou criação do risco é a mesmacoisa. O erro é fruto da má tradução da obra <strong>de</strong> Roxin, que fala em “Risikoschaffen”, que dá lugar à criação do risco. Muitos autores, ao traduzirem“schaffen”, buscam também explicar seu significado e se valem das expressões“criar” e “incrementar”, como expressões sinônimas, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>um processo interpretativo. Há outra questão linguística, um pouco c<strong>on</strong>-172R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 161-189, out.-<strong>de</strong>z. 2012


trovertida, aquela relativa ao que o projeto chama <strong>de</strong> “aparatos organizados<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r”. Embora essa expressão se venha generalizando, aparato,em português castiço, é sinônimo <strong>de</strong> adorno ou <strong>de</strong> material acessório,ou até mesmo <strong>de</strong> organização, mas não <strong>de</strong> aparelho. Usar aparato comoaparelho c<strong>on</strong>stitui espanholismo. Quando se fala <strong>de</strong> “aparato militar”, porexemplo, está-se querendo expressar a existência <strong>de</strong> “material militar”ou <strong>de</strong> um c<strong>on</strong>junto <strong>de</strong> materiais que tornam uma tropa mais aguerridaou capaz <strong>de</strong> enfrentar o inimigo com eficiência e que, por met<strong>on</strong>ímia, seesten<strong>de</strong>m à própria tropa. Uma tropa militar sem os materiais próprios,como armas e munições, não po<strong>de</strong> ser chamada <strong>de</strong> aparato. Os materiaisacessórios são tão importantes que c<strong>on</strong>taminam a própria expressão datropa. Os espanhóis usam essa expressão no direito penal porque a palavraé espanhola e torna compreensível naquele idioma o que se quercomunicar, mas não em português.Além do mais, fala-se do “risco tipicamente relevante”. Não é o riscotipicamente relevante, é o risco juridicamente relevante, ou não autorizado.Não tem sentido compor-se a imputação objetiva com base norisco tipicamente relevante. O que po<strong>de</strong>ria ser tipicamente relevante seriaa causalida<strong>de</strong>, c<strong>on</strong>forme se adotasse a tese <strong>de</strong> Beling <strong>de</strong> uma causalida<strong>de</strong>típica, mas não o risco, e isso, principalmente, em alguns tipos nos quaisse subordina o resultado a certas formas <strong>de</strong> produção. O risco não é tipicamenterelevante. Por exemplo, há vários riscos que são violados na vidadiária e que não são típicos. Desaten<strong>de</strong>r a um sinal vermelho c<strong>on</strong>stitui umrisco juridicamente relevante, mas não é típico. Ninguém é punido pelalei penal por passar um sinal vermelho, a não ser que haja um aci<strong>de</strong>nte,mas, então, o problema não resi<strong>de</strong> mais no risco e sim em sua realizaçã<strong>on</strong>o resultado típico. Ao passar um sinal vermelho, o c<strong>on</strong>dutor não realizouuma c<strong>on</strong>duta típica, embora tivesse violado um risco autorizado. Querisco típico é este? É o risco juridicamente relevante. Há uma norma <strong>de</strong>cuidado, não típica, não penal, que disciplina a atenção aos semáforos porparte dos c<strong>on</strong>dutores <strong>de</strong> veículo. A violação <strong>de</strong>ssa norma inaugura um risco,mas não caracteriza por si mesma a realização <strong>de</strong> um elemento típico.É indispensável que se retifique imediatamente a redação do dispositivo:o risco não é tipicamente relevante.Por outra parte, há o problema relaci<strong>on</strong>ado ao chamado alcancedo tipo. Essa teoria do alcance do tipo é muito relevante, e eu a adoto. OProf. Juarez Cirino dos Santos também a adota. Mas a teoria do alcance doR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 161-189, out.-<strong>de</strong>z. 2012 173


tipo está muito associada à teoria dos fins da norma penal. C<strong>on</strong>sequentemente,o que esta teoria quer, na verda<strong>de</strong>, é esclarecer acerca daquelashipóteses <strong>de</strong> auto ou heterocolocação em perigo, ou da assunção <strong>de</strong> resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong>spor <strong>de</strong>corrência do próprio exercício funci<strong>on</strong>al, como dobombeiro, do policial, do guarda-vidas.Essa questão do alcance do tipo está associada ao critério da autorresp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong>.Há um princípio da or<strong>de</strong>m jurídica em geral, quenão é do direito penal, <strong>de</strong> que, quando alguma ação subsequente estáassociada à autorresp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> alguém, não se po<strong>de</strong> resp<strong>on</strong>sabilizaro outro por haver dado causa a essa ação ou omissão. Se eu tenho o<strong>de</strong>ver <strong>de</strong> atuar, não vou resp<strong>on</strong>sabilizar outra pessoa em meu lugar. Esseé o princípio da autorresp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong>. Esse princípio c<strong>on</strong>tamina a questãoda imputação objetiva. Para se colocar na lei a referência ao alcancedo tipo seria preciso também esclarecer melhor sobre como a autorresp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong>se edificaria em termos penais. O Prof. Cláudio Brandão,que nos h<strong>on</strong>ra com a presença, jovem titular da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong>Pernambuco, tradici<strong>on</strong>al Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito <strong>de</strong> Recife, <strong>on</strong><strong>de</strong> leci<strong>on</strong>avamAníbal Bruno, Rui Antunes e outros, manifesta, em seu livro Tipicida<strong>de</strong>Penal, que a questão da tipicida<strong>de</strong> está associada a um tipo <strong>de</strong> silogismoin<strong>de</strong>finido, no qual a premissa maior é sempre resultante <strong>de</strong> uma argumentaçãoque tem sua limitação nos dados <strong>de</strong>scritivos do fato que está<strong>de</strong>finido na lei. Uma argumentação jurídica não po<strong>de</strong> se resumir, assim,a indicar elementos genéricos, como o alcance do tipo. Deve esclarecermelhor como esse elemento <strong>de</strong>verá limitar a imputação. Caso c<strong>on</strong>trário,o enunciado legal <strong>de</strong> nada serviria ao intérprete, que só po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>cidiracerca <strong>de</strong> seu alcance em face do fato c<strong>on</strong>creto. A referência ao alcancedo tipo, em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua imprecisão terminológica, c<strong>on</strong>stitui, como está,uma cláusula puramente programática sem utilida<strong>de</strong>.O artigo 15 do projeto dispõe o seguinte:Art. 15. C<strong>on</strong>si<strong>de</strong>ra-se causa a c<strong>on</strong>duta sem a qual o resultad<strong>on</strong>ão teria ocorrido.Com isso, mantém-se a teoria da c<strong>on</strong>dição. Mas agora, em vez <strong>de</strong>falar-se <strong>de</strong> ação ou omissão, fala-se <strong>de</strong> c<strong>on</strong>duta, o que significa pressuporuma diferença substancial entre c<strong>on</strong>duta e omissão. É como se a omissã<strong>on</strong>ão fosse uma c<strong>on</strong>duta. Omissão é, todavia, uma forma <strong>de</strong> c<strong>on</strong>duta. Por174R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 161-189, out.-<strong>de</strong>z. 2012


outro lado, querendo ser mais mo<strong>de</strong>rno, o projeto <strong>de</strong> código penal dispõeainda o seguinte no art. 17, parágrafo único:Parágrafo único. A omissão <strong>de</strong>ve equivaler-se à causação.Afora a utilização <strong>de</strong> um verbo reflexivo impróprio, vê-se que o projetose c<strong>on</strong>fun<strong>de</strong>. C<strong>on</strong>jugando-se o parágrafo único do artigo 17 com oartigo 15, temos a c<strong>on</strong>clusão <strong>de</strong> que, efetivamente, quando o projeto doCódigo Penal fala <strong>de</strong> c<strong>on</strong>duta, não se refere à omissão. Por outro lado,busca basear-se na cláusula da equivalência entre ação e omissão parasuprir a i<strong>de</strong>ia da causalida<strong>de</strong> na omissão.Há um p<strong>on</strong>to fundamental que <strong>de</strong>ve ser, aqui, esclarecido. A cláusulada equivalência apresenta alguns problemas, quase que insolúveis. Essacláusula po<strong>de</strong> vir c<strong>on</strong>tida em um projeto <strong>de</strong> código penal, mas para isso épreciso que se lhe agreguem outras c<strong>on</strong>dições. A cláusula da equivalência,por si só, não é suficiente para suprir o déficit <strong>de</strong> causalida<strong>de</strong> na omissão.Por que não há uma equivalência, pura e simples? Por que essa equivalêncianão é suficiente? A cláusula da equivalência entre ação e omissãoé produto do direito italiano, está c<strong>on</strong>tida no art. 40 do Código Rocco, daépoca do fascismo.Aliás, nas discussões em torno do projeto <strong>de</strong> código penal havidasna audiência pública do IBCCrim, uma das coisas que mais escutei do relatorgeral da comissão foram imprecações ao código brasileiro, como códigofascista <strong>de</strong> 1940. C<strong>on</strong>tudo, o projeto acolhe várias disposições do códigofascista italiano <strong>de</strong> 1930. Quer dizer, o projeto é mais fiel ao mo<strong>de</strong>lofascista originário. Assim, no código italiano <strong>de</strong> 1930, que entrou em vigorem 1932, se c<strong>on</strong>signa, no art. 40, a causa da equivalência. Sabem por quê?Para possibilitar a punibilida<strong>de</strong> dos atos omissivos, para justificar o déficit<strong>de</strong> legalida<strong>de</strong> dos crimes omissivos. Como esses crimes não estavam dispostosna Parte Especial do Código Penal, foi instituída uma cláusula geral<strong>de</strong> equivalência na Parte Geral para ajustar a punibilida<strong>de</strong> da omissão auma suposta legalida<strong>de</strong>. Mas isso é insuficiente. A omissão é diferente daação, e a cláusula <strong>de</strong> equivalência só terá sentido se for disposta comoelemento <strong>de</strong>limitativo <strong>de</strong> sua punibilida<strong>de</strong>.Tiago Jofilly, que foi meu orientando na UERJ, <strong>de</strong>senvolve, na suatese <strong>de</strong> doutorado, o argumento <strong>de</strong> que não existe crime sem resultado.Na discussão <strong>de</strong> sua tese, perguntei-lhe o seguinte: será que a omissãoem geral é universal? A resposta é uma só: não é. Há normas penais queR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 161-189, out.-<strong>de</strong>z. 2012 175


são universais, como a norma do homicídio. Matar alguém, em qualquerlugar, c<strong>on</strong>stitui um homicídio. É, hoje, universal, embora não o fosse. Emalgumas comunida<strong>de</strong>s indígenas, por exemplo, o homicídio não era importante,pois diante da quase inexistência <strong>de</strong> homicídio, este não erac<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rado uma prática social intolerável. Para esses indígenas, entre osquais se c<strong>on</strong>tam os antigos habitantes da Patagônia, intolerável era, comoprática social, a perturbação <strong>de</strong> uma cerimônia funerária, porque isso estariavinculado também a práticas simbólicas <strong>de</strong> aquisição <strong>de</strong> alimentos.Embora, hoje, o homicídio seja uma norma universal, a omissã<strong>on</strong>ão o é e nem os crimes omissivos são universais. Certa fez, estava emFrankfurt, em um seminário, e fiquei surpreendido com a informação <strong>de</strong>uma professora <strong>de</strong> origem etíope que disse que não entendia o porquê<strong>de</strong> se punir o crime omissivo. Asseverava que em seu país a punição só alcançavaa ação e não, a omissão. Mais tar<strong>de</strong>, pu<strong>de</strong> verificar que em algunscódigos, por exemplo, o da Áustria, não há previsão do crime <strong>de</strong> omissão<strong>de</strong> socorro. E nem por isso, os austríacos <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> socorrer quem estejaem grave e iminente perigo. A omissão não <strong>de</strong>corre <strong>de</strong> uma norma universal.Por isso, ela precisa <strong>de</strong> algumas c<strong>on</strong>dições para que se torne plausível<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um plano <strong>de</strong> raci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>. Para que isso ocorra, é indispensávelfazer uma correção na fórmula da equivalência. Muito melhor seriase o projeto, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo, tipificasse a omissão na parte especial, em vez<strong>de</strong> instituir normas gerais <strong>de</strong> resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong>, exclusivamente, na partegeral. Po<strong>de</strong>ria instituir normas na parte geral e po<strong>de</strong>ria instituir também atipificação na parte especial. E a cláusula da equivalência <strong>de</strong>veria inclusivec<strong>on</strong>duzir, se fosse levada a uma interpretação restritiva, à <strong>de</strong>limitaçãodos crimes omissivos, <strong>de</strong> modo que ficassem restritos aos crimes c<strong>on</strong>traa pessoa, e não se esten<strong>de</strong>ssem aos <strong>de</strong>mais <strong>de</strong>litos. Aí, sim, se o fizesse,estaria o projeto inovando e criando. Mas com a cláusula <strong>de</strong> equivalênciagenérica, tal como c<strong>on</strong>stante do projeto, o que se obtém é uma extensãoda punibilida<strong>de</strong>, para abarcar, no âmbito da omissão, também os crimesc<strong>on</strong>tra o patrimônio. Por exemplo, se vejo que alguém, vinculado a mimpor parentesco próximo ou relações íntimas, está sendo furtado e nadafaço, com base nessa cláusula genérica, posso ser resp<strong>on</strong>sabilizado porfurto, por omissão, o que é um absurdo. Na verda<strong>de</strong>, não participei daação <strong>de</strong> subtrair e sou resp<strong>on</strong>sabilizado porque <strong>de</strong>scumpri um <strong>de</strong>ver <strong>de</strong>proteção <strong>de</strong> meu parente, <strong>de</strong> tal modo que minha ação equivale à suaprodução por ação.176R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 161-189, out.-<strong>de</strong>z. 2012


Observei também, na prática, um caso <strong>de</strong> acusação <strong>de</strong> esteli<strong>on</strong>atopor omissão praticado c<strong>on</strong>tra a Previdência Social. Este caso foi julgad<strong>on</strong>o STJ e já tinha manifestação favorável do Ministério Público <strong>de</strong> origem.Igualmente, entendi que não havia esteli<strong>on</strong>ato por omissão. O caso eramais ou menos o seguinte: um sujeito era inválido e, em face disso, obtiverao benefício da aposentadoria por invali<strong>de</strong>z junto ao INSS. C<strong>on</strong>tudo,como o valor da aposentadoria era muito diminuto e não lhe dava c<strong>on</strong>diçõespara sobreviver, começou a trabalhar. Mas o INSS <strong>de</strong>scobre que eletrabalhava, caça a aposentadoria, <strong>de</strong> c<strong>on</strong>formida<strong>de</strong> com as leis previ<strong>de</strong>nciárias,e manda documentos ao Ministério Público para promover a açãopenal c<strong>on</strong>tra o segurado por esteli<strong>on</strong>ato por omissão. Interessante observarque, durante todo o tempo em que o segurado trabalhava, submetiaseele também à perícia médica do INSS, a qual c<strong>on</strong>firmava seu estado <strong>de</strong>invali<strong>de</strong>z. Procurei saber <strong>on</strong><strong>de</strong> se enc<strong>on</strong>trava a omissão, e me <strong>de</strong>parei coma explicação <strong>de</strong> que a omissão que justificaria a frau<strong>de</strong> estava no fato <strong>de</strong>o segurado não haver comunicado ao INSS que estava trabalhando, aindaque proibido o trabalho em seu caso.Claro que uma imputação <strong>de</strong>ssa or<strong>de</strong>m viola o princípio da dignida<strong>de</strong>humana. O segurado só trabalhava porque tinha necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazêlopara a própria subsistência. A<strong>de</strong>mais, não havia crime omissivo, porquenão se po<strong>de</strong> obrigar ninguém a comunicar aquilo que irá implicar sua<strong>de</strong>sgraça. Claro, o processo foi resolvido em seu favor. Mas <strong>de</strong> qualquermodo resp<strong>on</strong><strong>de</strong>u ele por esteli<strong>on</strong>ato por omissão. Essa é a c<strong>on</strong>sequênciada implantação da cláusula genérica <strong>de</strong> equivalência, que justifica umaequiparação da omissão à ação em todos os <strong>de</strong>litos.No tocante ao crime omissivo, há outra regra ainda pior. Diz o projetoo seguinte:Art. 17. Imputa-se o resultado ao omitente que <strong>de</strong>via e podiaagir para evitá-lo. O <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> agir incumbe a quem:a) tenha por lei obrigação <strong>de</strong> cuidado, proteção ou vigilância;b) <strong>de</strong> outra forma, assumiu a resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> impedir oresultado;c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrênciado resultado.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 161-189, out.-<strong>de</strong>z. 2012 177


As duas primeiras regras são elementares na doutrina. Mas o projeto,repetindo o atual Código Penal, dispõe que também tem o <strong>de</strong>ver<strong>de</strong> agir aquele que, com o seu comportamento anterior, criou o risco daocorrência do resultado. É interessante observar a incoerência do projeto.Quando o projeto <strong>de</strong> código penal quis inovar, invocou os critérios<strong>de</strong> imputação <strong>de</strong> Roxin e os introduziu, equivocadamente, em seu texto.Quando o projeto não quis inovar, reproduziu aquilo que o Código Penalvigente tinha <strong>de</strong> <strong>de</strong>feituoso. Por exemplo, a ingerência na omissão nãopo<strong>de</strong> <strong>de</strong>rivar apenas da prática <strong>de</strong> um comportamento anterior criadordo risco da ocorrência do resultado. Des<strong>de</strong> a c<strong>on</strong>tribuição <strong>de</strong> Rudolphi,na Alemanha, diz-se que a ingerência, no caso do crime omissivo, estásubordinada à prática <strong>de</strong> um comportamento anterior antijurídico ou c<strong>on</strong>trárioao <strong>de</strong>ver, mas jamais a qualquer comportamento causal anterior. Avingar o texto do projeto, qualquer um po<strong>de</strong>rá ser indiciado ou imputadopor omissão quando, <strong>de</strong> modo causal, tiver produzido o resultado. Se issoac<strong>on</strong>tecer, uma pessoa que presenciar um ato <strong>de</strong> traição entre maridoe mulher e o relatar a um dos cônjuges, supostamente ao mais violentoou ciumento, será resp<strong>on</strong>sabilizada pelos atos <strong>de</strong> violência que vierem aocorrer, porque com seu comportamento anterior causara ou criara o riscoda ocorrência do resultado. O projeto encampa esse absurdo.O projeto procura ser inovador, mas digeriu mal os critérios mo<strong>de</strong>rnosque fundamentam o dolo e a culpa. Zaffar<strong>on</strong>i tem uma históriamuito interessante. Ele diz o seguinte: Na Ida<strong>de</strong> Média não havia divórcio,porque o casamento era indissolúvel. Então, o que faziam os que não sec<strong>on</strong>formavam com essa i<strong>de</strong>ia? Simples, dispunham dos procedimentos dainquisição e da caça às bruxas para resolver seus problemas. Naquela época,vigorava o brocardo testis unos, testis nulus, a prova testemunhal tinhaque estar lastreada em, pelo menos, dois <strong>de</strong>poimentos. Se um vizinhocombinasse com outro para testemunhar que ambos foram acordados ànoite pelo barulho produzido pelo voo <strong>de</strong> sua mulher ao redor da casa,isso seria suficiente para <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar c<strong>on</strong>tra ela um procedimento quepo<strong>de</strong>ria levá-la à fogueira por ato manifesto <strong>de</strong> feitiçaria. O problema dodivórcio estava resolvido. Que tem isso a ver com o projeto? Da mesmaforma que o divórcio da relação matrim<strong>on</strong>ial fora resolvido pela fogueira,o projeto também resolve o divórcio entre suas regras e a doutrina <strong>de</strong>uma forma peculiar: a comunicação do fato c<strong>on</strong>tido no texto é suficiente178R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 161-189, out.-<strong>de</strong>z. 2012


para <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar a morte da doutrina. Simplesmente, sacrificaram a doutrinapenal do dolo e da culpa no projeto <strong>de</strong> código penal.Assim dispõe o projeto quanto ao dolo:Dolo e culpaArt. 18. Diz-se o crime:I – doloso, quando o agente quis realizar o tipo penal ou assumiuo risco <strong>de</strong> realizá-lo, c<strong>on</strong>sentindo ou aceitando <strong>de</strong> modoindiferente o resultado.A fórmula parece erudita, mas é equívoca. Nessa formulação sec<strong>on</strong>jugam a teoria do c<strong>on</strong>sentimento, que está expressa pela assunção dorisco, e a teoria da indiferença. A teoria da indiferença tem apresentadogran<strong>de</strong>s problemas, mas, claro, po<strong>de</strong>ria ser c<strong>on</strong>jugada à teoria do c<strong>on</strong>sentimento.Para tanto, seria preciso restringi-la, eliminando seus comp<strong>on</strong>entespuramente subjetivos. A aplicação pura e simples <strong>de</strong>ssa teoria provocauma subjetivação exagerada na <strong>de</strong>finição do dolo. Todos nós admitimosque o dolo é um elemento subjetivo, mas subjetivar ainda mais o elementosubjetivo c<strong>on</strong>duz a incertezas e a uma perspectiva completamenteimaginária do que c<strong>on</strong>stitua o dolo.Ainda que o projeto reproduza, em parte, o que c<strong>on</strong>sta do atualCódigo Penal, acolhendo a teoria do c<strong>on</strong>sentimento, admite, na <strong>de</strong>finiçãodo dolo eventual, uma alternância com a teoria da indiferença. Dessaalternância resulta a possibilida<strong>de</strong> c<strong>on</strong>creta <strong>de</strong> se aplicar a teoria da indiferençasem qualquer limitação. A aplicação da teoria da indiferençasem limitações po<strong>de</strong> fundamentar, como doloso, um crime puramenteculposo. Para tanto, basta que se c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>re o resultado como indiferenteao sujeito. C<strong>on</strong>tudo, muitas vezes o sujeito tem indiferença para com oresultado e atua com culpa inc<strong>on</strong>sciente. Por exemplo: <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> se submetera uma dura prova do c<strong>on</strong>curso à magistratura, um candidato saiapressadamente do local <strong>de</strong> exame. Ainda com a atenção voltada para aprova, avança um sinal <strong>de</strong> vermelho, sem o perceber, e causa um aci<strong>de</strong>nte.Po<strong>de</strong>-se dizer que o aci<strong>de</strong>nte para ele seria indiferente, pois estava tãopreocupado com aquela prova <strong>de</strong> c<strong>on</strong>curso, ao qual se submetera, quenão <strong>de</strong>ra maior atenção às regras <strong>de</strong> trânsito. Mas no caso, evi<strong>de</strong>ntemente,atuou ele com culpa inc<strong>on</strong>sciente, e não com dolo eventual.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 161-189, out.-<strong>de</strong>z. 2012 179


A fórmula da indiferença, por si só, é inidônea para figurar aquina <strong>de</strong>finição do dolo eventual. A <strong>de</strong>finição do dolo eventual é complexa,não po<strong>de</strong> ser extraída <strong>de</strong> uma teoria só. O Código Penal brasileiro <strong>de</strong>veser mantido assim como está na sua fórmula originária, ao <strong>de</strong>finir o crimedoloso como aquele em que agente quis o resultado ou assumiu orisco <strong>de</strong> realizá-lo. Por outro lado, há também uma certa imprecisão <strong>de</strong>linguagem, quando o projeto se refere a que no dolo o agente quis realizaro tipo penal. Para os que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que o dolo pertenceao tipo, o dolo realiza a ele mesmo. O dolo é elemento do tipo; se o doloé elemento do tipo, fica difícil explicar como ele realiza um tipo do qualele mesmo faz parte. Claro, percebe-se que o projeto quis significar queo dolo c<strong>on</strong>siste na v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> <strong>de</strong> realizar o tipo objetivo ou os elementosobjetivos do tipo, mas a redação está falha. Há pessoas que ainda insistemem dizer que o dolo é um elemento causal, o que torna complicadasua <strong>de</strong>finição exclusivamente com base na realização do tipo, sem umareferência ao resultado. Como a lei penal não é um catálogo <strong>de</strong> enunciados,<strong>de</strong>ve c<strong>on</strong>ter dispositivos que possam abarcar outras formas <strong>de</strong>entendimento ou <strong>de</strong> compreensão das coisas. O projeto po<strong>de</strong>ria dizerque o dolo é a v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> <strong>de</strong> realizar os elementos objetivos do tipo, eteria resolvido <strong>de</strong> modo mais correto o problema. Também, partindo-seda c<strong>on</strong>cepção <strong>de</strong> Tiago Joffily <strong>de</strong> que todos os crimes têm resultado, po<strong>de</strong>riaa <strong>de</strong>finição reproduzir o atual código penal e dizer, simplesmente,que no dolo o agente quis o resultado. Por que não? Se <strong>de</strong>sejasse eliminardo âmbito do dolo elementos estranhos ao <strong>de</strong>lito po<strong>de</strong>ria dizer,então, que o agente quis o resultado típico.Por outro lado, a fórmula da assunção do risco é ainda a melhorpara <strong>de</strong>finir os c<strong>on</strong>tornos do dolo eventual, apesar <strong>de</strong> todos os percalçosque gera sua compreensão. Parece que essa fórmula <strong>de</strong>riva <strong>de</strong> práticasque se <strong>de</strong>senvolvem no tráfico comercial. Mais uma vez po<strong>de</strong>-se ver comoa lei penal está associada à i<strong>de</strong>ia da troca <strong>de</strong> mercadoria, <strong>de</strong> como as mercadoriassão trocadas no mercado, <strong>de</strong> como a produção está associada àtroca <strong>de</strong> mercadoria e não ao valor <strong>de</strong> uso, senão a um valor <strong>de</strong> troca. Oque se enten<strong>de</strong> aqui como assunção do risco, o que a doutrina penal sempresolidificou, mas que a comissão passou por cima, é o que se chamaem alemão <strong>de</strong> in Kauf nehmen. E o exemplo mais claro é o seguinte: Alguémvai c<strong>on</strong>struir um prédio e precisa adquirir ferros <strong>de</strong> ¾ <strong>de</strong> polegada.Há uma metalúrgica que ven<strong>de</strong> ferros <strong>de</strong> c<strong>on</strong>strução <strong>de</strong> ¾ <strong>de</strong> polegada,180R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 161-189, out.-<strong>de</strong>z. 2012


ven<strong>de</strong> mais caro, porque são ferros previamente seleci<strong>on</strong>ados. Há aindaoutra metalúrgica que ven<strong>de</strong> ferros <strong>de</strong> c<strong>on</strong>strução <strong>de</strong> ¾ <strong>de</strong> polegada, misturadoscom outros, que po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong> polegadas inferiores, e, por issomesmo, ven<strong>de</strong> mais barato. Então, se o c<strong>on</strong>strutor compra o ferro <strong>de</strong> ¾ <strong>de</strong>polegadas na mistura com outros ferros corre o risco <strong>de</strong> não ter a quantida<strong>de</strong><strong>de</strong> ferros <strong>de</strong> que necessita. O risco, aqui, é calculado <strong>de</strong> c<strong>on</strong>formida<strong>de</strong>com o ganho no preço. Se o c<strong>on</strong>strutor, ao comprar os ferros maisbaratos, c<strong>on</strong>seguir reunir uma quantida<strong>de</strong> suficiente para a c<strong>on</strong>strução,acaba tendo vantagem; se, ao c<strong>on</strong>trário, a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ferros inservíveisfor maior, terá uma perda, ainda que tenha pago mais barato. A essa<strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> comprar ferros mais baratos, correndo o risco <strong>de</strong> uma perda, éque se chama in Kauf nehmen, ou seja, assunção do risco, ou, literalmente,tomar na compra. Esse exemplo é bem significativo para explicar comose <strong>de</strong>ve enten<strong>de</strong>r o dolo eventual. Nesse exemplo, o resultado prejudicialnão é indiferente, é calculado <strong>de</strong>ntro do risco, daí a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> selhe esten<strong>de</strong>r a v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> do sujeito. Portanto, a fórmula do código vigenteé bem melhor do que a do projeto.No crime culposo, a <strong>de</strong>finição teve o objetivo <strong>de</strong> ser muito mo<strong>de</strong>rna.E fez bem <strong>de</strong> eliminar aquelas referências fatais à imprudência, à negligênciaou à imperícia, como modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> manifestação do crime culposo,que estão no código vigente e <strong>de</strong>vem ser vistas como ultrapassadas.O projeto dispôs assim em relação ao crime culposo:Art.18.II – culposo, quando o agente, em razão da inobservânciados <strong>de</strong>veres <strong>de</strong> cuidado exigíveis nas circunstâncias, realizouo fato típico.A fórmula, no entanto, é absolutamente autoritária, porque quercaracterizar como culposas c<strong>on</strong>dutas que po<strong>de</strong>m não estar no domínio doagente. Para que uma c<strong>on</strong>duta se situe no domínio da resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong>do agente é preciso que produza resultado, pelo menos, previsível ou evitável.Pela fórmula do projeto, haverá crime culposo tão logo o agente tenhaviolado uma norma <strong>de</strong> cuidado e produzido um resultado típico, nãoimporta se esse resultado não lhe pu<strong>de</strong>sse ser imputado, porque fora daesfera do aumento do risco, ou porque inevitável, ou porque imprevisível,ou porque realizado no âmbito <strong>de</strong> um risco habitual. A culpa, que sempreR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 161-189, out.-<strong>de</strong>z. 2012 181


comportou a discussão acerca <strong>de</strong> se teria um comp<strong>on</strong>ente subjetivo ounão, per<strong>de</strong>u <strong>de</strong>finitivamente esse comp<strong>on</strong>ente no projeto. A culpa passaa ser inteiramente normativa. A questão da previsibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> seruma questão relevante. A violação da norma <strong>de</strong> cuidado e a produçãocausal do resultado são suficientes, no projeto, para fundamentar a culpa.Isso é absolutamente incompreensível. A violação da norma <strong>de</strong> cuidadoé fundamento da culpa, sem dúvida nenhuma. Mas ela tem que estar associadaa outros comp<strong>on</strong>entes. A quais comp<strong>on</strong>entes? Aos comp<strong>on</strong>entesrelaci<strong>on</strong>ados à previsibilida<strong>de</strong> da c<strong>on</strong>duta nos planos objetivo e subjetivo.No objetivo, em relação às c<strong>on</strong>dições reais <strong>de</strong> existência da ação <strong>de</strong>scuidadaem face da possibilida<strong>de</strong> real da produção do resultado. E no subjetivo,para verificar se o sujeito, nas circunstâncias em que se enc<strong>on</strong>trava,em face <strong>de</strong> suas c<strong>on</strong>dições pessoais, estava ou não capacitado para prevero fato. Caso c<strong>on</strong>trário, não há o fundamento da culpabilida<strong>de</strong>.Mas é claro, posso perceber por que aqui se caracterizou a culpano plano objetivo. Foi a partir do momento em que se dispôs, no art. 1º,parágrafo único, que não há pena sem culpabilida<strong>de</strong>, querendo expressarque a culpabilida<strong>de</strong> seria pressuposto da pena e não elemento do <strong>de</strong>lito.Se a culpabilida<strong>de</strong> é pressuposto da pena, não importa a caracterizaçãodo fato em relação à capacida<strong>de</strong> do agente, portanto, não importa a referênciaà previsibilida<strong>de</strong>. Mas a culpabilida<strong>de</strong> é essencial à c<strong>on</strong>figuração do<strong>de</strong>lito, pois nela é que se vai aferir exatamente a chamada previsibilida<strong>de</strong>subjetiva do evento, <strong>de</strong> modo a assinalar a <strong>de</strong>sc<strong>on</strong>formida<strong>de</strong> do sujeitopara com a or<strong>de</strong>m jurídica, a <strong>de</strong>sc<strong>on</strong>formida<strong>de</strong> em face da não motivaçãoda sua c<strong>on</strong>duta diante da norma penal. En<strong>fim</strong>, essa forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>finir ocrime culposo passou ao largo da comissão.Estou chegando quase ao <strong>fim</strong> e haveria muita coisa para dizer aindanesta análise da Parte Geral. Vou agora resumir alguns temas importantes.Na <strong>de</strong>finição do estado <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>, houve um retrocesso c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rável.Nem digo c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rável em relação à adoção da teoria diferenciadora,a qual foi muito mal posta no projeto do código penal, mas poroutro aspecto.Quanto ao estado <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>, dispõe-se assim:Art. 29. C<strong>on</strong>si<strong>de</strong>ra-se em estado <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong> quem praticaum fato para proteger bem jurídico próprio ou alheio e <strong>de</strong>s<strong>de</strong>que:182R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 161-189, out.-<strong>de</strong>z. 2012


a) o bem jurídico protegido esteja exposto a lesão atual ouiminente;b) a situação <strong>de</strong> perigo não tenha sido provocada pelo agente;c) o agente não tenha o <strong>de</strong>ver jurídico <strong>de</strong> enfrentar o perigo;d) não seja razoável exigir o sacrifício do bem jurídico levando-seem c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>ração sua natureza ou valor.Parágrafo único. Se for razoável o sacrifício do bem jurídico,po<strong>de</strong>rá ser afastada a culpabilida<strong>de</strong> ou ser a pena diminuída<strong>de</strong> um a dois terços.No código atual, no estado <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>, fala-se em perigo atual;no projeto, fala-se <strong>de</strong> lesão atual ou iminente. Ainda não entendi por quese promoveu essa mudança. A mudança foi <strong>de</strong>sastrosa, porque quando sefala <strong>de</strong> lesão atual, isso implica que a lesão já ocorreu. Admite-se, então,estado <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong> quanto a fato passado, o que é um absurdo. Poroutro lado, em relação à origem do perigo, o projeto dispõe que “a situação<strong>de</strong> perigo não tenha sido provocada pelo agente”. O código penalvigente dispõe expressamente que a situação <strong>de</strong> perigo não tenha sidoprovocada por v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> do agente. De c<strong>on</strong>formida<strong>de</strong> com o projeto, umavez que a produção do perigo tenha sido provocada <strong>de</strong> modo causal peloagente, este não po<strong>de</strong> valer-se do estado <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>.Cria-se um rigorismo exagerado no tratamento do estado <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>quanto a esse aspecto e se admite estado <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong> quantoa fato passado: uma c<strong>on</strong>tradição insolúvel. Imagine-se que alguém entreem um celeiro fumando e, por c<strong>on</strong>sequência da queda do cigarro, provoqueum incêndio. Não po<strong>de</strong>rá invocar estado <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>. Se tiverque romper as portas para fugir do incêndio, resp<strong>on</strong><strong>de</strong>rá por crime <strong>de</strong>dano, só lhe restando a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aludir em seu favor a chamadainexigibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> outra c<strong>on</strong>duta, que o projeto acolhe. Com essa regra,rompe-se até mesmo o critério <strong>de</strong> p<strong>on</strong><strong>de</strong>ração <strong>de</strong> bens, que o projeto inserepara diferenciar entre estado <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong> justificante e estado <strong>de</strong>necessida<strong>de</strong> exculpante. O projeto pensa que a vida, nessa hipótese, <strong>de</strong>veser sacrificada em favor do dogma causal, o que é um c<strong>on</strong>trassenso.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 161-189, out.-<strong>de</strong>z. 2012 183


Aqueles que querem incorporar os ensinamentos <strong>de</strong> Roxin ao CódigoPenal <strong>de</strong>vem ler seus escritos e ali verão que a provocação culposada situação <strong>de</strong> perigo não exclui o estado <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>, só o exclui aprovocação dolosa. A regulação do estado <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong> nada tem a vercom a ingerência, que é matéria <strong>de</strong> imputação e não <strong>de</strong> avaliação do fatodiante da or<strong>de</strong>m jurídica. Para terminar, po<strong>de</strong>ria falar do tratamento dosíndios no projeto e <strong>de</strong> outras coisas, mas vamos examinar aqui o c<strong>on</strong>curso<strong>de</strong> pessoas e a tentativa.O Prof. Miguel Reale Junior já <strong>de</strong>m<strong>on</strong>strou a inc<strong>on</strong>gruência do projet<strong>on</strong>o tocante ao c<strong>on</strong>curso <strong>de</strong> pessoas. Mas vou ler o projeto para quetodos tenham c<strong>on</strong>sciência <strong>de</strong> como se redige a lei penal no Brasil. Diz oprojeto:Art. 38. Quem, <strong>de</strong> qualquer modo, c<strong>on</strong>corre para o crimeinci<strong>de</strong> nas penas a este cominadas, na medida <strong>de</strong> sua culpabilida<strong>de</strong>.§ 1º C<strong>on</strong>correm para o crime:I – os autores ou coautores, assim c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rados aquelesque:a) executam o fato realizando os elementos do tipo;b) mandam, promovem, organizam, dirigem o crime ou praticamoutra c<strong>on</strong>duta indispensável para a realização dos elementosdo tipo;c) dominam a v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> <strong>de</strong> pessoa que age sem dolo, atipicamente,<strong>de</strong> forma justificada ou não culpável e a utilizamcomo instrumento para a execução do crime; oud) aqueles que dominam o fato utilizando aparatos organizados<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r.II – partícipes, assim c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rados:a) aqueles que não figurando como autores, c<strong>on</strong>tribuem, <strong>de</strong>qualquer outro modo, para o crime; oub) aqueles que <strong>de</strong>viam e podiam agir para evitar o crime cometidopor outrem, mas se omitem.184R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 161-189, out.-<strong>de</strong>z. 2012


Veja-se o que diz o projeto: c<strong>on</strong>correm para o crime os autores eos coautores. A improprieda<strong>de</strong> técnica é alarmante. O autor e o coautornão c<strong>on</strong>correm para o crime, realizam o crime. O projeto acolhe a Teoriado domínio do fato, mas faz uma lambança com essa teoria. Dispõe quesão coautores os que mandam, promovem, organizam, dirigem o crimeou praticam outra c<strong>on</strong>duta indispensável para a realização dos elementosdo tipo. A doutrina penal estrangeira sempre enfrentou dificulda<strong>de</strong>spara <strong>de</strong>cidir acerca da extensão do domínio do fato na c<strong>on</strong>cretização daautoria ou da coautoria. Em algumas hipóteses, a pessoa c<strong>on</strong>tribui parao fato, mas não é coautora, embora sua c<strong>on</strong>tribuição seja indispensávelpara realização do fato. Imaginemos, por exemplo, dois sujeitos: um sujeito<strong>de</strong>tém a senha <strong>de</strong> um computador e o outro quer acessar o computadorpara fazer um <strong>de</strong>svio <strong>de</strong> dinheiro. Imagine-se que o segundo ofereçaao primeiro alguma vantagem, por exemplo, uma soma alta em dinheiropara que lhe forneça a senha. De posse da senha, o segundo sujeito fazum <strong>de</strong>svio enorme em seu favor. Quem fornece a senha será coautor do<strong>de</strong>svio? Claro que não será coautor, será partícipe, embora a c<strong>on</strong>tribuiçãoseja indispensável para o acesso às informações. Por que ele é partícipe enão coautor? Porque não participou diretamente do <strong>de</strong>svio, mas, sim, <strong>de</strong>um ato prévio <strong>de</strong> <strong>de</strong>svio, mas não do <strong>de</strong>svio propriamente dito. Não temo domínio do fato sobre a subtração do dinheiro. Nesse caso, ele é partícipe.A doutrina penal estrangeira nesse sentido é quase que unânime ementen<strong>de</strong>r que, nesse caso, ele é partícipe e não coautor.O que se discute aqui na regulação da participação é a posição dochefe da máfia, que por influência das películas americanas está muitopresente na c<strong>on</strong>figuração das leis penais, não só no Brasil, mas tambémno estrangeiro. As películas mostram o chefe da máfia como um pers<strong>on</strong>agem<strong>de</strong> Balzac, capaz <strong>de</strong> influenciar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o porteiro do prédio até opresi<strong>de</strong>nte da República. Há uma trama tão gran<strong>de</strong>, tanto po<strong>de</strong>r c<strong>on</strong>centrad<strong>on</strong>o sujeito, que suas or<strong>de</strong>ns são universais, têm como mandatários opresi<strong>de</strong>nte da República, o embaixador dos Estados Unidos, o embaixadorda França, os primeiros-ministros e os sheiks árabes. Todo mundo estáassociado a ele: é o chefe da máfia. Seu subordinado, ao receber umaor<strong>de</strong>m, cumpre. Mas cumpre muito mais em função daquela c<strong>on</strong>figuraçãoarticulada por Fabricius, como forma <strong>de</strong> crescer no grupo, <strong>de</strong> pertencer àelite do po<strong>de</strong>r ou do dinheiro; cumpre por v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> própria, também porforça <strong>de</strong> uma associação emoci<strong>on</strong>al com o chefe. On<strong>de</strong> é que está o domí-R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 161-189, out.-<strong>de</strong>z. 2012 185


nio do fato? O chefe da máfia é um instigador do fato em geral. Como dizRoxin, só será coautor quando estiver participando ou c<strong>on</strong>trolando diretamenteas execuções. Quem manda outrem executar o seu inimigo, estáparticipando. O executor <strong>de</strong>tém o domínio do fato, o mandante, não. Só<strong>de</strong>tém o domínio e será coautor se participar da execução ou c<strong>on</strong>trolar aexecução. Claro, para isso, não precisa ele estar presente no local do fato,po<strong>de</strong> c<strong>on</strong>trolar a execução até por telef<strong>on</strong>e, mas tem que fazê-lo.Tratemos, agora, da autoria mediata, que o projeto quer regular. Oprojeto, como já disse, invoca na <strong>de</strong>finição do autor mediato a Teoria dodomínio do fato e aí diz que serão também autores os que dominam av<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> da pessoa que atua sem dolo, atipicamente, <strong>de</strong> forma justificadaou não culpável e a utiliza como instrumento da execução do crime. Essaregra é realmente alucinante. Vamos supor que alguém esteja em legítima<strong>de</strong>fesa e outrem lhe empresta uma arma para se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r, e domine suav<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> <strong>de</strong> tal modo que faça com que o <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>nte use a arma e mateo agressor <strong>de</strong>ntro dos limites da necessida<strong>de</strong> e proporci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>. Nessecaso, quem empresta a arma seria, na visão do projeto, autor mediato docrime <strong>de</strong> homicídio. Isso é um absurdo. Por outro lado, fala-se aqui do domínioda v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> da pessoa que atua atipicamente. Observem só: se euc<strong>on</strong>tribuo ou se mando alguém realizar um fato que é atípico, não possoser resp<strong>on</strong>sabilizado por esse fato. Aí está prevista a punibilida<strong>de</strong> por atoatípico. O projeto, nesse caso, po<strong>de</strong>ria ficar apenas com a parte que dizhaver autoria mediata quando o autor direto atuar sem dolo, e nada mais.Chega <strong>de</strong> inovações impróprias. Os acréscimos são sempre perigosos.Existe também o problema dos chamados aparatos organizados <strong>de</strong>po<strong>de</strong>r. Já tratei da questão dos aparatos, <strong>de</strong>ssa imprópria terminologia.A gran<strong>de</strong> discussão sobre se cabe ou não autoria mediata nessa hipótese<strong>de</strong> aparelhos organizados <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r ainda está em plena efervescência nadoutrina penal.A execução <strong>de</strong>sses fatos em <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong>sses aparelhos organizados<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r só se verifica no âmbito do po<strong>de</strong>r público, em regimesautoritários, c<strong>on</strong>forme a formulação <strong>de</strong> Roxin, mas não no âmbito da empresa,nem muito menos em um regime <strong>de</strong>mocrático. Em <strong>de</strong>corrência<strong>de</strong>ssa norma que aqui está c<strong>on</strong>signada no projeto, quando o dirigente <strong>de</strong>uma empresa mandar o seu empregado realizar um fato qualquer, seráele autor mediato <strong>de</strong>sse fato. E se o diretor da empresa não mandar, mas,pela c<strong>on</strong>dição <strong>de</strong> diretor da empresa, o seu empregado realizar o ato, ele186R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 161-189, out.-<strong>de</strong>z. 2012


esp<strong>on</strong><strong>de</strong>rá, como autor mediato, pelo ato que seu empregado executou,<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que haja uma vinculação entre os atos hierárquicos <strong>de</strong> mando e <strong>de</strong>execução. Isso gera um problema muito sério. Esten<strong>de</strong>r-se essa resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong>por aparelhos organizados <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r ao âmbito das empresas é<strong>de</strong>svirtuar o significado <strong>de</strong>ssa modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> autoria mediata. Essa forma<strong>de</strong> autoria mediata se dá em sentido muito restrito no âmbito justamente<strong>de</strong> governos autoritários, quando o sentido da estrutura autoritária dominanão apenas o dirigente, mas o próprio executor do ato autoritário. N<strong>on</strong>azismo havia um aparelho organizado <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> tal forma que os dirigentese os executores se vinculavam uns aos outros por força <strong>de</strong> estaremsubordinados à mesma i<strong>de</strong>ologia autoritária. Era compreensível que a falta<strong>de</strong> um executor po<strong>de</strong>ria ser suprida por outros, sem qualquer dificulda<strong>de</strong>.Por outro lado, o próprio Dirk Fabricius, tecendo c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rações quanto àestrutura <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r nos campos <strong>de</strong> c<strong>on</strong>centração, mostrava que a relaçãoentre dirigentes e executores nem sempre era assim, porque, no fundo,muitos agentes dos extermínios os executavam in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente dasor<strong>de</strong>ns que lhe eram advindas dos dirigentes. Eles os executavam porque,com sua ascensão ao âmbito <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r no campo <strong>de</strong> c<strong>on</strong>centração, aindaque em categoria subalterna, se acreditavam como dotados <strong>de</strong> uma posiçãosocialmente relevante. Geralmente, as pessoas que trabalhavam nocampo eram recrutadas nos meios mais baixos da socieda<strong>de</strong>. Sua ascensãoao po<strong>de</strong>r as colocava também como dirigentes <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> sua posição,ficando livres para manifestar sua angústia e justificar sua própria posição<strong>de</strong> pertencerem à elite do po<strong>de</strong>r.Essa posição da pessoa é fundamental também na execução das or<strong>de</strong>ns.Por isso se diz que aqui caberia muito mais instigação ou coautoriado que propriamente a autoria mediata. A instigação, sim, po<strong>de</strong>ria havere até coautoria, quando se <strong>de</strong>m<strong>on</strong>strasse a participação efetiva do sujeit<strong>on</strong>a execução. Quando alguém manda outrem exterminar <strong>de</strong>terminadapessoa ou mesmo um grupo <strong>de</strong> pessoas, e não participa da execução, nema c<strong>on</strong>trola, é instigador, não será autor mediato nem coautor. A discussã<strong>on</strong>a doutrina gira justamente em torno <strong>de</strong>sse fato: se nessa hipótese háautoria mediata ou instigação. A autoria mediata se funda, nesse caso, narelação autoritária <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, no Estado <strong>de</strong>scomprometido com o direito eno critério da fungibilida<strong>de</strong> dos executores. Uma vez não presentes esseselementos, não há que se falar <strong>de</strong> autoria mediata. Os que falam que existiriaautoria mediata por aparelhos organizados <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r no âmbito dasR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 161-189, out.-<strong>de</strong>z. 2012 187


empresas <strong>de</strong>svirtuam essa teoria. Nesse p<strong>on</strong>to, o projeto <strong>de</strong> código penalpen<strong>de</strong> para esse lado da discussão, ao caracterizar como autoria mediatauma participação <strong>de</strong>ssa or<strong>de</strong>m. Não faz quanto a isso qualquer restrição,apenas amplia, sem motivo, essa fórmula <strong>de</strong>sviada da autoria mediata.Outro tema relevante, que o projeto trata <strong>de</strong> forma autoritária, éo da tentativa. O projeto, ao disciplinar a tentativa com base na teoriamaterial-objetiva, acaba punindo o ato preparatório.Diz o projeto:Art. 24. Há o início da execução quando o autor realiza umadas c<strong>on</strong>dutas c<strong>on</strong>stitutivas do tipo ou, segundo seu plano <strong>de</strong>litivo,pratica atos imediatamente anteriores à realização dotipo, que exp<strong>on</strong>ham a perigo o bem jurídico protegido.Toda formulação da tentativa só po<strong>de</strong> ter início <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> resolvidaa questão do crime impossível. Se o projeto adota para o crime impossívela teoria objetiva relativa <strong>de</strong> Feuerbach, tal como o atual Código Penal, nãopo<strong>de</strong> acolher a teoria material-objetiva quando busca esclarecer acercados limites entre execução e preparação. Por outro lado, ao disciplinaracerca do plano do autor para pôr um limite aos atos sucedâneos aos atosexecutivos, possibilita uma subjetivação <strong>de</strong>smedida dos c<strong>on</strong>tornos do tipopenal. Interessante notar mais uma vez que a preocupação do projeto,segundo seu relator, é extirpar o fascismo do código vigente, mas a punição<strong>de</strong> atos preparatórios é a mais expressa manifestação <strong>de</strong> fascismo. Afórmula adotada no projeto vai ressuscitar a teoria dos dois atos.Por essa teoria, o ato <strong>de</strong> execução e o ato anterior ao da execuçãoc<strong>on</strong>stituirão um mesmo e único ato <strong>de</strong> execução, quando entre elesnão se inserir um ato intermediário. Mas é difícil estabelecer qual é o atointermediário. Imagine-se: um sujeito sobe numa escada encostada nomuro <strong>de</strong> uma residência; nesse momento é preso. Para a teoria da tentativa,prevista no projeto, ele seria punido por tentativa <strong>de</strong> furto ou por tentativa<strong>de</strong> violação <strong>de</strong> domicílio porque teria realizado um ato sucedâneo àexecução e, assim, colocado em perigo o bem jurídico. A imputação finaliria <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r da i<strong>de</strong>ntificação do plano do autor, que po<strong>de</strong>ria dar lugar àtentativa <strong>de</strong> furto, se o seu objetivo fosse subtrair coisas da residência, ou<strong>de</strong> violação <strong>de</strong> domicílio, se o objetivo fosse entrar na residência c<strong>on</strong>traa v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> do d<strong>on</strong>o. E se perguntassem a ele por que subira na escada,po<strong>de</strong>ria resp<strong>on</strong><strong>de</strong>r que <strong>de</strong>sejava apreciar a beleza da mulher do vizinho.188R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 161-189, out.-<strong>de</strong>z. 2012


Se o julgador acreditar nessa história, <strong>de</strong>ve absolvê-lo, porque o planodo autor não caracteriza um ato sucedâneo ao ato executivo do furto ouda violação do domicílio. Mas os fatos na realida<strong>de</strong> não se passam <strong>de</strong>ssaforma. A avaliação do plano do autor não resulta, normalmente, <strong>de</strong> umaapreciação objetiva do <strong>de</strong>senrolar do ac<strong>on</strong>tecimento. Essa avaliação <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>,muito mais, das c<strong>on</strong>dições do próprio sujeito. Se se tratar <strong>de</strong> umapessoa com antece<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> furto, a apreciação do plano do autor levaráà c<strong>on</strong>clusão <strong>de</strong> que seu objetivo era furtar, e assim <strong>de</strong>verá ela ser resp<strong>on</strong>sabilizadapor tentativa <strong>de</strong> furto. Essa subjetivação do plano do autorreforça uma teoria subjetiva da tentativa, que faz cair por terra qualquercompromisso com a legalida<strong>de</strong>. Claro, os moralistas po<strong>de</strong>riam dizer queolhar a mulher do vizinho c<strong>on</strong>stitui algo relaci<strong>on</strong>ado à observação obscena.Por enquanto, a simples observação obscena não é criminosa. Mas éclaro também que o ato preparatório do furto não po<strong>de</strong> ser tratado comoato <strong>de</strong> execução. Subir na escada é ato preparatório, não importa o objetivodo agente. O sujeito po<strong>de</strong> subir a escada para furtar, como po<strong>de</strong> subira escada para olhar o que tem no vizinho. Não é possível caracterizar issocomo ato <strong>de</strong> execução do furto.Bem, há muitas coisas para dizer sobre o projeto <strong>de</strong> código penal.Essa é uma análise apenas superficial das inc<strong>on</strong>gruências do projeto.Essa análise mostra, no entanto, que o projeto <strong>de</strong> código penal reproduzum discurso autoritário <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, discurso não comprometido com aC<strong>on</strong>stituição <strong>de</strong>mocrática ou com os direitos fundamentais do cidadão.O projeto corporifica uma forma <strong>de</strong> raci<strong>on</strong>alização cada vez mais difusa,mais complexa, mais ininteligível das normas que regem o po<strong>de</strong>r punitivo.Com esse discurso, o projeto estimula uma interpretação subjetivada lei e proporci<strong>on</strong>a cada vez mais injustiça social, agora canalizada emtermos <strong>de</strong> uma legalida<strong>de</strong> penal aparentemente correta. Por tudo isso,não cabe reformar esse projeto <strong>de</strong> código penal. O projeto é substancialmenteinc<strong>on</strong>gruente e autoritário. O que cabe é a sua rejeição absoluta.O C<strong>on</strong>gresso Naci<strong>on</strong>al po<strong>de</strong>ria cumprir um papel relevante para asocieda<strong>de</strong> brasileira e para a comunida<strong>de</strong> jurídica, ao rejeitar esse projeto.Muito obrigado.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 161-189, out.-<strong>de</strong>z. 2012 189


Os crimes c<strong>on</strong>tra a vidana ReformaDes. Sérgio <strong>de</strong> Souza VeraniDesembargador do TJERJ. Presi<strong>de</strong>nte do Fórum Permanente<strong>de</strong> Direitos Humanos da EMERJ.O tema que me coube nesse painel foi <strong>de</strong> crimes c<strong>on</strong>tra a vida. Esseprojeto é uma coisa horrorosa, como o Juarez Tavares já havia menci<strong>on</strong>ado.Eu trouxe aqui o Código Penal <strong>de</strong> 1969. O Juarez falava na inspiraçãodo Código Italiano <strong>de</strong> 1930. Mas o Código Penal <strong>de</strong> 1969 também inspiroua reforma. Todos sabem que o Código Penal <strong>de</strong> 1969 é aquele <strong>de</strong>creto-leiimposto pela Junta Militar, que <strong>de</strong>u um golpe <strong>de</strong>ntro do golpe, <strong>de</strong>pois dadoença do Costa e Silva. Criou uma legislação extensa, muitas leis vigorandoaté hoje. Essa legislação da Junta Militar <strong>de</strong> 1969, com fundament<strong>on</strong>o A.I. 5, que possibilitava o Executivo, isto é, a ditadura, tornar-se, comotoda ditadura, também o Po<strong>de</strong>r Legislativo, e uma legislação especificamenteligada à questão ec<strong>on</strong>ômico-financeira. Gran<strong>de</strong> parte da legislaçãoec<strong>on</strong>ômico-financeira ainda vem dos <strong>de</strong>cretos-leis impostos pela JuntaMilitar em 1969. Esse Código <strong>de</strong> 1969 foi promulgado e revogado semnunca ter entrado em vigor. Ele tinha uma série <strong>de</strong> <strong>de</strong>feitos, foi revogado enão entrou em vigor. Mas qual a inspiração do Código <strong>de</strong> 1969? O Código<strong>de</strong> 1969 é um <strong>de</strong>creto da ditadura, ele é imposto. Os Ministros da Marinha<strong>de</strong> Guerra, do Exército e da Aer<strong>on</strong>áutica Militar, “usando das atribuiçõesque nos c<strong>on</strong>ferem ... <strong>de</strong>cretam:” E aí vem o Código Penal. E no final do<strong>de</strong>creto vem o nome dos três Ministros Militares: Augusto Ra<strong>de</strong>maker,Aurélio <strong>de</strong> Lira Tavares, Márcio <strong>de</strong> Souza e Mello e o Ministro da Justiça,Luis Antônio da Gama e Silva. Sempre tem o Ministro da Justiça legitimandoe dando o formato jurídico a essa extensa legislação.Mas eu me lembrei imediatamente do Código <strong>de</strong> 1969 quando comeceia ler essa parte do projeto sobre crimes c<strong>on</strong>tra a vida, porque aparecelá no parágrafo primeiro: forma qualificada. E aí se cria uma novaforma <strong>de</strong> homicídio qualificado, na parte final do inciso I do parágrafoprimeiro, e na última parte vem: “ou em c<strong>on</strong>texto <strong>de</strong> violência domésticaou familiar e em situação <strong>de</strong> especial reprovabilida<strong>de</strong> ou perversida<strong>de</strong> do190R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 190-198, out.-<strong>de</strong>z. 2012


agente”. Traz-se para a norma penal um c<strong>on</strong>ceito que não é do direito. Oc<strong>on</strong>ceito <strong>de</strong> perversida<strong>de</strong> é um c<strong>on</strong>ceito que o Código Penal <strong>de</strong> 1969 tambémvai utilizar. A Lei 6.416 <strong>de</strong> 1977 também vai utilizar. O que significaisso? Eu fico me indagando como o juiz, no Júri, vai fazer o quesito. O réuagiu com perversida<strong>de</strong>? Como <strong>de</strong><strong>line</strong>ar a existência da perversida<strong>de</strong>?Na verda<strong>de</strong>, a expressão “perversida<strong>de</strong>” está vestindo um valor ligadoà moralida<strong>de</strong>, à malda<strong>de</strong> do agente ou à periculosida<strong>de</strong> do agente,que também é um termo utilizado com gran<strong>de</strong> intensida<strong>de</strong> para reforçarainda mais o sistema punitivo. Mas a noção <strong>de</strong> perversida<strong>de</strong> é uma noçãoligada à psiquiatria tradici<strong>on</strong>al, especialmente, <strong>de</strong>pois, com Freud, que estudaa perversão. Os estudos fundamentais <strong>de</strong> Freud são sobre a neurose,a psicose e a perversão. A perversão é um c<strong>on</strong>ceito difícil, complicado. E,como os autores <strong>de</strong>ssa reforma utilizam um c<strong>on</strong>ceito que eu tenho certezaque eles não c<strong>on</strong>hecem, eles não sabem qual é o c<strong>on</strong>ceito <strong>de</strong> perversão.Juarez po<strong>de</strong> até me c<strong>on</strong>firmar isso. Juarez Cirino, que é um estudioso dapsicanálise. Lacan <strong>de</strong>pois também <strong>de</strong>senvolveu mais a questão da perversão,que é um c<strong>on</strong>ceito difícil <strong>de</strong> ser compreendido. Pega-se um c<strong>on</strong>ceito<strong>de</strong> outra área <strong>de</strong> c<strong>on</strong>hecimento, do qual não se tem a informação <strong>de</strong>vida,e usa-se esse c<strong>on</strong>ceito para qualificar um crime <strong>de</strong> homicídio.E por que me lembrei do Código <strong>de</strong> 1969? Porque sempre esse c<strong>on</strong>ceito<strong>de</strong> perversida<strong>de</strong>, quando aparece no Código <strong>de</strong> 1969, é para realizarum aumento muito maior da repressão. Lembrando da Parte Geraldo Código <strong>de</strong> 1969, que estabelecia o criminoso por tendência ou o criminosohabitual, que é, aliás, o mo<strong>de</strong>lo, embora não haja no Código, eo Código não tenha entrado em vigor, esse mo<strong>de</strong>lo, ou esse c<strong>on</strong>ceito <strong>de</strong>criminoso habitual ou criminoso por tendência existe no discurso judicial,no discurso das sentenças. Muitas sentenças criminais falam em um réuque <strong>de</strong>m<strong>on</strong>stra tendência para o crime, é habitual, na prática; en<strong>fim</strong>, háuma c<strong>on</strong>cretização do c<strong>on</strong>ceito <strong>de</strong> criminoso habitual e <strong>de</strong> criminoso portendência, que era um c<strong>on</strong>ceito normativo do Código <strong>de</strong> 1969, que falava<strong>de</strong> “criminoso habitual ou por tendência” e a ele era imposta a pena portempo in<strong>de</strong>terminado. O criminoso habitual era assim <strong>de</strong>finido, numa dashipóteses: “aquele que, sem c<strong>on</strong><strong>de</strong>nação anterior”, portanto primário,“<strong>de</strong>m<strong>on</strong>stra, pelas suas c<strong>on</strong>dições <strong>de</strong> vida e pelas circunstâncias dos fatosapreciados em c<strong>on</strong>junto, acentuada inclinação para o crime”. Isso aquiaparece em sentenças <strong>de</strong> hoje. Daqui há pouco tem sessão na 5ª CâmaraCriminal. Há sentenças que c<strong>on</strong>cretizam o Código <strong>de</strong> 1969, que nunca en-R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 190-198, out.-<strong>de</strong>z. 2012 191


trou em vigor, dizendo e afirmando “acentuada inclinação para o crime”.Esse é o criminoso habitual. E o criminoso por tendência, é aquele que,pela sua periculosida<strong>de</strong>, motivos <strong>de</strong>terminantes e o modo <strong>de</strong> execução docrime, revela extraordinárias torpeza, perversão ou malva<strong>de</strong>z. Era a i<strong>de</strong>iamoralista do Código <strong>de</strong> 1969, a moralida<strong>de</strong> impressa no Código.Na aplicação da pena, muitas vezes a pena base é aplicada acimado mínimo porque o réu revela malva<strong>de</strong>z. Hoje ainda se escreve assimem muitas sentenças, que c<strong>on</strong>stituem uma violação à dogmática penal<strong>de</strong> que falava aqui antes Juarez Tavares. E utiliza a perversão. A reformaagora, já na segunda década do século XXI, fala: “quando o agente revelaperversida<strong>de</strong>”, “em situação <strong>de</strong> especial reprovabilida<strong>de</strong> ou perversida<strong>de</strong>”.E é curioso porque, nessa i<strong>de</strong>ia da perversida<strong>de</strong>, c<strong>on</strong>ceitos são utilizadossem nenhuma fundamentação teórica, sem nenhum c<strong>on</strong>hecimento científico<strong>de</strong>sse c<strong>on</strong>ceito.Também o Código <strong>de</strong> Menores <strong>de</strong> 1927, que foi o nosso primeirocódigo <strong>de</strong> menores, usava o c<strong>on</strong>ceito <strong>de</strong> perversida<strong>de</strong> ou <strong>de</strong> perversãopara classificar os chamados “menores <strong>de</strong>linquentes”. E a classificaçãodo Código <strong>de</strong> Menores <strong>de</strong> 1927 era uma classificação dos menores <strong>de</strong>linquentes,que eram classificados como libertinos, viciosos, <strong>de</strong> má vida,<strong>de</strong> má índole, perigosos, <strong>de</strong>linquentes em estado <strong>de</strong> perversão moral oumoralmente pervertidos. Isso em 1927, com c<strong>on</strong>ceitos que já Lombrosocomeçou a usar para <strong>de</strong>terminar essa i<strong>de</strong>ia da tendência para o crime,revelando quem são os perversos, o que significa isso. E isso se torna umhomicídio qualificado, com pena <strong>de</strong> 12 anos.En<strong>fim</strong>, qualquer forma <strong>de</strong> homicídio po<strong>de</strong>rá ser c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rada umhomicídio qualificado, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo da impressão subjetiva do promotor,também dos jurados, ou do juiz quando faz a pr<strong>on</strong>úncia, <strong>de</strong> rec<strong>on</strong>hecerque aquela c<strong>on</strong>duta foi praticada com perversida<strong>de</strong>. Hoje, sem que hajaessa qualificação da c<strong>on</strong>duta, <strong>de</strong>sse homicídio, se usa isso para aumentara pena base do homicídio. “Ele tirou a vida <strong>de</strong> uma pessoa, então produziuum dano irreparável, a pena <strong>de</strong>ve ser fixada acima do mínimo.” Homicídioé isso, produz um dano irreparável. A pena tem os seus limites, mínimo<strong>de</strong> 6 anos ou <strong>de</strong> 12, quando é qualificado. Então criam-se situações <strong>de</strong>exacerbação, <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> exacerbação do sistema punitivo.Quando veio a reforma <strong>de</strong> 1977, a Lei 6.416, que aliás trouxe boasinovações, esten<strong>de</strong>u o sursis para o crime <strong>de</strong> reclusão, que não existia, era192R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 190-198, out.-<strong>de</strong>z. 2012


só para o crime <strong>de</strong> <strong>de</strong>tenção. Mas a Lei 6.416/77 também vai estabelecer,quando fala da verificação da periculosida<strong>de</strong>, no artigo 77 – que <strong>de</strong>poisda reforma <strong>de</strong> 1984 <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser o 77 –, que <strong>de</strong>ve ser rec<strong>on</strong>hecido perigosoo agente, quando a periculosida<strong>de</strong> não é presumida por lei, quand<strong>on</strong>a prática do fato o réu revela torpeza, perversão, malva<strong>de</strong>z, cupi<strong>de</strong>z ouinsensibilida<strong>de</strong> moral. Depois <strong>de</strong> 1984, esses c<strong>on</strong>ceitos felizmente <strong>de</strong>sapareceramdo Código, mas não <strong>de</strong>sapareceram do pensamento i<strong>de</strong>ologizadodo discurso judicial, não <strong>de</strong>sapareceram da prática autoritáriapunitiva do sistema judicial, em que esse pensamento, esses valores sãoc<strong>on</strong>stantemente utilizados, como malva<strong>de</strong>z, como insensibilida<strong>de</strong> moral.Quem reinci<strong>de</strong> na prática do roubo ou <strong>de</strong> outro crime revela insensibilida<strong>de</strong>moral porque não possui a ética necessária para a c<strong>on</strong>vivência e<strong>de</strong>srespeita a regra social da c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>ração ao patrimônio alheio.Então, são formas <strong>de</strong> pensamento que c<strong>on</strong>tinuam muito fortes emuito vivas. E o que isso tem a ver com os crimes c<strong>on</strong>tra a vida?Em um outro momento também fundamental, acrescenta-se comoforma <strong>de</strong> homicídio qualificado o inciso 6º do parágrafo primeiro do artigo121: “quando o homicídio é cometido por dois ou mais agentes, em ativida<strong>de</strong>típica <strong>de</strong> grupo <strong>de</strong> extermínio”.Quem serão esses agentes em ativida<strong>de</strong> típica <strong>de</strong> grupo <strong>de</strong> extermínio?O que significa grupo <strong>de</strong> extermínio? Estava vendo aqui o Prof. CesarCal<strong>de</strong>ira, que tem um trabalho muito bom sobre o Júri dos policiais quemataram aquele menino que sequestrou o ônibus 174. Aquilo ali foi umextermínio, foi um exemplo <strong>de</strong> extermínio. Pegaram o menino e enforcaramo menino no camburão. Mas aquela c<strong>on</strong>duta não será c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>radaextermínio. Os c<strong>on</strong>fr<strong>on</strong>tos que a polícia realiza – os c<strong>on</strong>fr<strong>on</strong>tos entreaspas – são uma prática <strong>de</strong> extermínio. Isso que é a prática <strong>de</strong> extermínio.Não precisa ter um grupo <strong>de</strong> extermínio nomeado, i<strong>de</strong>ntificado. “Aqueleslá são do grupo <strong>de</strong> extermínio.” O extermínio é praticado abertamente, épraticado impunemente, é praticado sem que haja uma organização <strong>de</strong>grupo <strong>de</strong> extermínio: “vamos agora ali invadir o morro e vamos matar <strong>de</strong>zpessoas ou uma pessoa”. Não há essa combinação. O extermínio aparecenaturalizado. Atiram e matam pelas costas, <strong>de</strong> qualquer modo, semque haja a efetiva resistência. Esse extermínio naturalizado, c<strong>on</strong>sentido,legitimado não vai ser visto como prática <strong>de</strong> homicídio qualificado pelareforma do Código Penal, porque essa prática <strong>de</strong> extermínio tem sido historicamentec<strong>on</strong>sentida e legitimada.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 190-198, out.-<strong>de</strong>z. 2012 193


Eu estava me lembrando <strong>de</strong> um e-mail que eu recebi do Patrick, doMinistério da Justiça, preocupado com a questão do auto <strong>de</strong> resistência,que tem a ver com essa questão <strong>de</strong> crimes c<strong>on</strong>tra a vida. Como fazer paraque a polícia <strong>de</strong>ixe <strong>de</strong> matar e, matando, não seja <strong>de</strong>sc<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rada comofato criminoso essa morte. É porque se utiliza in<strong>de</strong>vidamente, ilegalmente,a norma do auto <strong>de</strong> resistência, que é prevista no Código <strong>de</strong> ProcessoPenal, na hipótese <strong>de</strong> resistência, no artigo 292 e antes, no 284. Nãosignifica que a polícia possa matar alguém. Em caso <strong>de</strong> resistência po<strong>de</strong>usar <strong>de</strong> força, mas não po<strong>de</strong> matar. Só po<strong>de</strong> matar naquelas situações legalmenteprevistas, fora disso não. Não po<strong>de</strong> matar porque está fugindo,porque olhou, ou porque é do tráfico. E tem-se utilizado há muito tempoessa norma para legitimar esses homicídios.Esse é que é o gran<strong>de</strong> extermínio, que não é um extermínio visualizado,visibilizado, mas é um extermínio que ac<strong>on</strong>tece todo dia. A políciano Rio c<strong>on</strong>tinua matando muito e há todo um discurso <strong>de</strong> que reduziu <strong>on</strong>úmero <strong>de</strong> homicídios, e naqueles índices que saem mensalmente. Mascomo reduziu? Agora só tem setenta por mês. Então a polícia mata setentapessoas, setenta cidadãos e isso é bom? Setenta são mais <strong>de</strong> dois pordia. Não po<strong>de</strong>ria matar nenhum! É um dado absolutamente violador <strong>de</strong>qualquer organização <strong>de</strong>mocrática. Como enfrentar isso numa reforma? Eaí dizem, “vamos punir os grupos <strong>de</strong> extermínio”. Não vão punir nenhumgrupo <strong>de</strong> extermínio. Sequer se c<strong>on</strong>segue que a matança policial que érealizada seja i<strong>de</strong>ntificada como grupo <strong>de</strong> extermínio. Isso é o gran<strong>de</strong> extermínioque se realiza pelo Brasil a fora. Semana passada, em São Paulo,a Rota matou nove. A Rota <strong>de</strong>u uma queda, ela que foi o gran<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo<strong>de</strong> matança <strong>de</strong> esquadrão da morte. Mataram nove, só <strong>de</strong> uma vez. Entãoo extermínio c<strong>on</strong>tinua e a lei penal não vai dar c<strong>on</strong>ta <strong>de</strong>ssa questão.Eu estava me lembrando do Giorgio Agamben, que tem um livro maravilhososobre essa questão, que é O Estado <strong>de</strong> Exceção. Aliás, o primeirocapítulo do livro é “O Estado <strong>de</strong> Exceção como Paradigma do Governo”.É no século XXI, o estado <strong>de</strong> exceção é um paradigma dos governos, quesão autoritários expressamente, que se impõem. Aliás, o Juarez Tavaresfalou como essa reforma vai ser imposta e <strong>de</strong>pois ele mudou, não falou“imposta”. É uma reforma imposta, é como o <strong>de</strong>creto da Junta Militar, semdiscussão. Não tem discussão. É um mo<strong>de</strong>lo que vai se c<strong>on</strong>cretizando.Tem uma outra questão, o Juarez estava falando <strong>de</strong> crime culposo. Homicídioculposo – eu não sei se isso já foi falado <strong>on</strong>tem – em que cria-se uma194R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 190-198, out.-<strong>de</strong>z. 2012


espécie <strong>de</strong> culpa gravíssima, no parágrafo 5º. Eu li e não acreditei comoisso foi escrito por uma comissão <strong>de</strong> juristas. O parágrafo 5º do artigo 121fala: “Homicídio culposo. Pena – prisão <strong>de</strong> 1 a 4 anos. Culpa gravíssima:se as circunstâncias do fato <strong>de</strong>m<strong>on</strong>strarem que o agente não quis o resultadomorte nem assumiu o risco <strong>de</strong> produzi-lo (naquelas situações <strong>de</strong>dolo eventual) mas agiu com excepci<strong>on</strong>al temerida<strong>de</strong>, a pena será <strong>de</strong> 4 a8 anos <strong>de</strong> prisão. Então, é um homicídio culposo com a pena mínima <strong>de</strong> 4anos, que não é doloso, porque não quis o resultado nem assumiu o risco,mas agiu com excepci<strong>on</strong>al temerida<strong>de</strong>. O que é isso?Eu lembro que o Juarez Cirino falava <strong>de</strong>sses c<strong>on</strong>ceitos vagos, abstratos,acho que ele até falava da gestão temerária. O que é agir comexcepci<strong>on</strong>al temerida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro do homicídio culposo? Um exemplo doJuarez Tavares: saiu do c<strong>on</strong>curso <strong>de</strong> juiz, olha para o sinal vermelho e aíatropela alguém, é excepci<strong>on</strong>al temerida<strong>de</strong>. Estava pensando naquilo queo examinador perguntou. Não podia sair <strong>de</strong>pois da prova <strong>de</strong> juiz, tem queficar <strong>de</strong>scansando. Se sair, po<strong>de</strong> revelar uma excepci<strong>on</strong>al temerida<strong>de</strong> e aía pena vai ser <strong>de</strong> 4 anos no mínimo. E o parágrafo 6º ainda diz: “Incluemseentre as hipóteses do parágrafo anterior a causação da morte na c<strong>on</strong>dução<strong>de</strong> embarcação, aer<strong>on</strong>ave ou veículo automotor sob a influência<strong>de</strong> álcool ou substância <strong>de</strong> efeitos análogos ou mediante participação emvia pública <strong>de</strong> disputa, corrida ou competição automobilística”. Isso paratornar o “pega” uma forma <strong>de</strong> dolo eventual.Especialmente esse c<strong>on</strong>ceito <strong>de</strong> excepci<strong>on</strong>al temerida<strong>de</strong> não significacoisa nenhuma do p<strong>on</strong>to <strong>de</strong> vista da dogmática penal. Mas isso vaipossibilitar uma interpretação, se for transformado em lei, que já estouaté imaginando, dos juízes dizerem “esse homicídio culposo é uma culpagravíssima, então a pena mínima agora é <strong>de</strong> 4 anos”. Eu acho que vai havero risco <strong>de</strong> uma produção <strong>de</strong> c<strong>on</strong><strong>de</strong>nações até acima <strong>de</strong> 4 anos, porquea pena é <strong>de</strong> 4 a 8 anos, para esse homicídio com culpa gravíssima em virtu<strong>de</strong><strong>de</strong> ação com excepci<strong>on</strong>al temerida<strong>de</strong>.Estava falando <strong>de</strong> Freud, que estudou a psicose, a perversão e aneurose, e isso é um exemplo que po<strong>de</strong>-se chamar <strong>de</strong> um transtorno i<strong>de</strong>ológico.Só um transtorno i<strong>de</strong>ológico produz projetos <strong>de</strong>ssa forma, nãohá outra explicação. Não estou acusando ninguém <strong>de</strong> nada, estou falando<strong>de</strong> transtorno i<strong>de</strong>ológico no sentido da i<strong>de</strong>ologia que vai sendo impregnadano pensamento social, no pensamento jurídico, e se acredita nisso.A i<strong>de</strong>ologia tem essa capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> produzir ilusões, <strong>de</strong> produzir as belasR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 190-198, out.-<strong>de</strong>z. 2012 195


mentiras <strong>de</strong> que falava Marx. Acredita-se na bela mentira, nas ilusões darepressão, da segregação como discurso <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa social, <strong>de</strong> manutençãoda or<strong>de</strong>m e da segurança.Em relação ao infanticídio, o parágrafo único acaba com a discussãosobre se quem participa do infanticídio resp<strong>on</strong><strong>de</strong>ria por infanticídio ouhomicídio. O parágrafo único diz: quem c<strong>on</strong>corre para o crime resp<strong>on</strong><strong>de</strong>rápelas penas <strong>de</strong> homicídio. A discussão que sempre se fez se comunicaou não com a circunstância elementar do infanticídio, vai resp<strong>on</strong><strong>de</strong>r pelohomicídio. E o aborto c<strong>on</strong>tinua sendo criminalizado, quer dizer, o que <strong>de</strong>bom po<strong>de</strong>ria existir na reforma na parte dos crimes c<strong>on</strong>tra a vida era <strong>de</strong>scriminalizaro aborto. Não há razão jurídica, muito menos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pública,para que o aborto seja uma c<strong>on</strong>duta criminalizada. Mas vão dizer:“mas reduzimos a pena”. Agora a prisão passa a ser <strong>de</strong> seis meses a doisanos. A pena atual é <strong>de</strong> um a seis anos. É uma perda <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong> pararec<strong>on</strong>hecer que o aborto é uma questão gravíssima, referente à saú<strong>de</strong> pública,um sofrimento para a gestante e para todos que passam pela práticado aborto, e a gestante ainda é criminalizada. Po<strong>de</strong>-se também alegar queforam trazidos alguns p<strong>on</strong>tos importantes, como, por exemplo, a exclusãodo crime. Não há crime <strong>de</strong> aborto se houver risco à vida ou à saú<strong>de</strong> dagestante; se a gravi<strong>de</strong>z resulta <strong>de</strong> violação da dignida<strong>de</strong> sexual e na hipótese<strong>de</strong> anencefalia. E no inciso IV do artigo 128: “Não há crime <strong>de</strong> aborto,se por v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> da gestante, até a décima segunda semana da gestação,quando o médico ou psicólogo c<strong>on</strong>statar que a mulher não apresenta c<strong>on</strong>diçõespsicológicas <strong>de</strong> arcar com a maternida<strong>de</strong>”. Então, para po<strong>de</strong>r fazero aborto sem ser c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rada criminosa, a mulher tem que procurar ummédico ou psicólogo, dizer que não tem c<strong>on</strong>dições psicológicas <strong>de</strong> arcarcom a maternida<strong>de</strong>. Não po<strong>de</strong> dizer que não quer esse filho, não quer sermãe naquele momento, isso não po<strong>de</strong>, engravidou tem que ser mãe. Parafazer o aborto, tem que ter uma c<strong>on</strong>dição psicológica negativa que a impossibilitearcar com a maternida<strong>de</strong>. É uma burocracia, e não se enfrentoua questão do aborto, nessa oportunida<strong>de</strong>.Então, são situações da reforma que dão uma tristeza, mas mais doque tristeza, uma preocupação, porque reforçam c<strong>on</strong>ceitos absolutamenteantijurídicos, como os <strong>de</strong> perversida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> culpa gravíssima.Eu estava me lembrando, ouvindo o Juarez Tavares falar, <strong>de</strong> um Júriem que ele foi advogado e eu fui Juiz do 2º <strong>Tribunal</strong> do Júri muito tempo.Havia o Presi<strong>de</strong>nte do <strong>Tribunal</strong> e havia o Juiz Sumariante, que era eu.196R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 190-198, out.-<strong>de</strong>z. 2012


Depois, essa função foi transformada numa vara, Vara Auxiliar do Júri, eeu passei para essa Vara, que fazia o processo até a pr<strong>on</strong>úncia. Mas eupresidia muito Júri, especialmente quando o 2º <strong>Tribunal</strong> do Júri era naCan<strong>de</strong>lária, <strong>on</strong><strong>de</strong> é hoje a Casa França-Brasil, naquele prédio belíssimo.Em 1977 houve a mudança para cá, no segundo andar. Paulo Bal<strong>de</strong>z foipresi<strong>de</strong>nte do 2º <strong>Tribunal</strong> do Júri e ali se inaugurou o 2º. O 1º já era aqui,<strong>on</strong><strong>de</strong> hoje é o Museu, e se instalaram o 3º e o 4º Tribunais do Júri. Aliás,na inauguração do 2º <strong>Tribunal</strong> do Júri, o advogado foi Evandro Lins e Silva,e era um processo <strong>de</strong> aborto. O Evandro fez um júri belíssimo, a partir <strong>de</strong>um poema do Brecht; eu trouxe o livro, mas não vou ler porque é um poemamuito l<strong>on</strong>go. O poema se chama “A infanticida Maria Farrar”. O poemaé sobre uma mulher que matou – não era nem aborto, era infanticídio– a criança <strong>de</strong>pois que a criança nasceu. Mas ela era uma sofredora, umarejeitada. E com esse poema, o Evandro fez a <strong>de</strong>fesa e a ré foi absolvida.A promotora era brilhante, Telma Diuana, que <strong>de</strong>pois foi <strong>de</strong>sembargadorapelo quinto do Ministério Público. Mas dois anos <strong>de</strong>pois, em 1979, eufiquei um tempo presidindo o Júri e inventei <strong>de</strong> chamar vários advogadosnomeados como dativos. Foi um mês maravilhoso, com Humberto Telles,Evaristo <strong>de</strong> Moraes, R<strong>on</strong>aldo Machado, Técio, Thomps<strong>on</strong> e Barandier.Juarez Tavares foi fazer um júri <strong>de</strong> uma mulher que foi pr<strong>on</strong>unciada <strong>de</strong>acusação <strong>de</strong> aborto. O Juarez fez um júri, vocês precisam ver o Juarez nojúri! Ele é assim uma coisa fantástica! Ele lembra que o aborto foi feitocom agulha <strong>de</strong> tricô, mas ela foi absolvida. E na votação, o júri negou quehouvesse aborto, porque havia uma c<strong>on</strong>fusão sobre a causa da morte.Foi até um perito <strong>de</strong>por, o velho Nils<strong>on</strong> Santana. Acabou havendo uma<strong>de</strong>sclassificação para lesão corporal. E eu, que era Juiz Presi<strong>de</strong>nte, comovou dar a pena? Com o auxílio do Juarez: é c<strong>on</strong>sentimento do ofendido.Está absolvida a ré pela lesão corporal em razão da fundamentação “c<strong>on</strong>sentimentodo ofendido”. A vítima c<strong>on</strong>sentiu, ela quis fazer o aborto. E opromotor ficou <strong>de</strong>sesperado!En<strong>fim</strong>, são lembranças que vieram. Como as minha lembranças doJuarez Tavares e do Juarez Cirino são antigas! Mas são muito boas e muitorevoluci<strong>on</strong>árias também. Eu já falei da outra vez, quando o Juarez Cirinoesteve aqui há uns dois meses, e eu me lembrei da greve dos professores,a primeira greve dos professores <strong>de</strong> 1977. No início das primeiras greves,não só lá do ABC, mas dos professores do Estado. E havia uma grevedos professores universitários, não só das universida<strong>de</strong>s públicas, comoR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 190-198, out.-<strong>de</strong>z. 2012 197


também das universida<strong>de</strong>s particulares. Houve várias assembleias, e nóstrabalhávamos na Candido Men<strong>de</strong>s, em Ipanema, e ficávamos lá <strong>de</strong> greve,na portaria. Essa militância é pela <strong>de</strong>fesa dos direitos, é pela vida. “Crimesc<strong>on</strong>tra a vida” <strong>de</strong>ve ser alguma coisa ligada à <strong>de</strong>fesa da vida, c<strong>on</strong>trao extermínio, c<strong>on</strong>tra a exclusão, c<strong>on</strong>tra a segregação. E por uma práticajudicial que efetivamente garanta.C<strong>on</strong>cluindo, eu me sinto muito h<strong>on</strong>rado <strong>de</strong>sta mesa estar sendopresidida pelo André, que é juiz do último c<strong>on</strong>curso em que eu era presi<strong>de</strong>nteda comissão. O André foi meu aluno e eu fico muito orgulhosodisso. Como o Tiago Joffily, que também foi meu aluno e isso me causa umgran<strong>de</strong> orgulho. Aliás, na UERJ quase todos os professores foram meusalunos e hoje eu aprendo muito mais com eles. São todos acadêmicose eu sempre aprendo muito com os ex-alunos, e com o André eu tenhocerteza que vou apren<strong>de</strong>r muito.Eram essas as c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rações que eu queria fazer.Obrigado.198R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 190-198, out.-<strong>de</strong>z. 2012


Análise crítica dos crimes<strong>de</strong> perigo no Projeto <strong>de</strong>Código PenalProfª. Drª. Ana Elisa Liberatore Silva BecharaProfessora Associada do Departamento <strong>de</strong> Direito Penal,Medicina Forense e Criminologia da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito daUniversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, na qual é Presi<strong>de</strong>nte da Comissão<strong>de</strong> Pesquisa e Doutora em Direito Penal.Gostaria <strong>de</strong> saudar a todos e <strong>de</strong> expressar minha admiração poreste público que hoje aqui está, em prejuízo <strong>de</strong> tantas outras ativida<strong>de</strong>s,preocupado com a reflexão sobre os rumos do Direito Penal brasileiro.Nesse sentido, também gostaria <strong>de</strong>, antes <strong>de</strong> mais nada, agra<strong>de</strong>cer o c<strong>on</strong>viteque me foi formulado pela Escola da Magistratura do Estado do Rio <strong>de</strong>Janeiro, na pessoa do Des. Paulo Bal<strong>de</strong>z, e manifestar a gran<strong>de</strong> satisfaçãoque é po<strong>de</strong>r participar <strong>de</strong>ste evento tão importante para toda a socieda<strong>de</strong>brasileira.Não po<strong>de</strong>ria iniciar minha exposição sem antes ren<strong>de</strong>r uma homenagemespecial ao Professor Juarez Tavares, não só pelo seu brilhantismoe <strong>de</strong>dicação como penalista, mas sobretudo por sua preocupação por umestudo crítico do Direito Penal. Se o Direito Penal brasileiro ganha cadavez mais atenção e rec<strong>on</strong>hecimento no plano internaci<strong>on</strong>al, isso é, em boamedida, fruto do trabalho <strong>de</strong>sse gran<strong>de</strong> jurista, que é um orgulho para todosnós, por representar com tanta competência esse espírito crítico. Portudo isso, Juarez Tavares sempre será o professor <strong>de</strong> todos nós.Coube-me trazer uma reflexão sobre os crimes <strong>de</strong> perigo no Projetodo Código Penal que atualmente tramita perante o Senado Fe<strong>de</strong>ral. Antes<strong>de</strong> tratar <strong>de</strong>sse tema específico, gostaria <strong>de</strong> fazer algumas c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>raçõescríticas <strong>de</strong> caráter geral.Qualquer reflexão em matéria penal não é tarefa fácil, justamenteem razão da antinomia que caracteriza a própria essência do DireitoR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 199-209, out.-<strong>de</strong>z. 2012 199


Penal. Refiro-me aqui ao c<strong>on</strong>flito latente e perene entre eficácia, no sentido<strong>de</strong> segurança da socieda<strong>de</strong>, e garantia, relaci<strong>on</strong>ada aos direitos fundamentaisdo indivíduo, a começar por sua liberda<strong>de</strong>. A busca do p<strong>on</strong>to<strong>de</strong> equilíbrio entre esses interesses (que na verda<strong>de</strong> c<strong>on</strong>flitam <strong>de</strong> formaapenas aparente) revela-se, assim, uma das mais sérias dificulda<strong>de</strong>s noestabelecimento do c<strong>on</strong>teúdo e da legitimida<strong>de</strong> da intervenção jurídicopenal,estando, justamente por isso, sempre sujeita à revisão.Daí surge a especial preocupação <strong>de</strong> ver a intervenção penal nãocomo materialização <strong>de</strong> um direito <strong>de</strong> punir do Estado, mas sim <strong>de</strong> umpo<strong>de</strong>r ou competência <strong>de</strong> punir, que sempre necessita <strong>de</strong> justificação, porincidir sobre liberda<strong>de</strong>s anteriormente asseguradas.Se é assim, o cuidado que se <strong>de</strong>ve tomar é <strong>de</strong> não nos c<strong>on</strong>tentarmoscom uma tentativa <strong>de</strong> legitimação do Direito Penal a partir <strong>de</strong> umprocesso <strong>de</strong> raci<strong>on</strong>alização. Há que se buscar a raci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong> da intervençãopenal do Estado, que não se presume do princípio da legalida<strong>de</strong> emsentido formal. Em outras palavras, o legislador não po<strong>de</strong> ser c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>radoraci<strong>on</strong>al apenas por ser formalmente competente para elaborar normas.A raci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong> da norma há <strong>de</strong> ser verificada no plano material, residindojustamente na coerência da intervenção penal em relação à realida<strong>de</strong>social à qual se aplica e, portanto, <strong>de</strong>ve servir.Por isso é difícil legislar em matéria penal, porque se exige uma reflexão<strong>de</strong>tida sobre o que é raci<strong>on</strong>al e o que se refere, na verda<strong>de</strong>, à raci<strong>on</strong>alização<strong>de</strong> um sentimento primitivo <strong>de</strong> vingança ou <strong>de</strong> outros interessespolíticos estranhos à proteção subsidiária e proporci<strong>on</strong>al <strong>de</strong> interesses sociaisfundamentais (bens jurídicos).A partir <strong>de</strong>ssa c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>ração inicial sobre raci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>-se estabelecero pressuposto metodológico da discussão do tema <strong>de</strong> hoje.O Direito serve à socieda<strong>de</strong>, disciplinando a c<strong>on</strong>vivência humanae, justamente por isso, reflete uma <strong>de</strong>terminada or<strong>de</strong>m axiológica e aspriorida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>ssa c<strong>on</strong>vivência. Antes disso, a existência <strong>de</strong> diversas c<strong>on</strong>formaçõessociais c<strong>on</strong>dici<strong>on</strong>a também a existência <strong>de</strong> diferentes mo<strong>de</strong>los<strong>de</strong> Estado, influindo diretamente no c<strong>on</strong>teúdo das expectativas <strong>de</strong>comportamento que vão orientar o estabelecimento dos instrumentosformais <strong>de</strong> c<strong>on</strong>trole social. A adoção <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada opção político-socialorienta, assim, o c<strong>on</strong>junto normativo corresp<strong>on</strong><strong>de</strong>nte, impedindoque se possa afirmar aprioristicamente a existência <strong>de</strong> or<strong>de</strong>namentos200R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 199-209, out.-<strong>de</strong>z. 2012


jurídicos valorados em si mesmos corretos ou incorretos, mas sim <strong>de</strong>or<strong>de</strong>namentos mais ou menos coerentes com o mo<strong>de</strong>lo político-socialao qual se relaci<strong>on</strong>am. Qualquer reflexão sobre um or<strong>de</strong>namento jurídico<strong>de</strong>terminado <strong>de</strong>ve, portanto, partir do pressuposto do mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong>Estado no qual este se insere. No nosso caso, toda a reflexão a seguir, noâmbito jurídico-penal, partirá da opção político-social brasileira por umEstado Democrático <strong>de</strong> Direito.Diante disso, antes <strong>de</strong> mais nada, cabe tentar estabelecer qual sejaa raci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um Projeto <strong>de</strong> Código Penal elaborado <strong>de</strong> atropelo, emapenas sete meses, sem margem para discussão ou revisão, sob a nítidainfluência <strong>de</strong> interesses políticos no âmbito do Senado Fe<strong>de</strong>ral.Apren<strong>de</strong>-se muito cedo nos bancos do curso <strong>de</strong> Direito que umadas melhores maneiras <strong>de</strong> verificar as intenções e a opção político-jurídica<strong>de</strong> qualquer diploma legal é analisar sua Exposição <strong>de</strong> Motivos. No casoem exame, soa produtivo também analisar o relatório apresentado como Anteprojeto.E aí temos, na página 10 do referido relatório, <strong>de</strong> forma emblemática,a audaciosa pretensão <strong>de</strong> “inaugurar um novo marco penal <strong>de</strong>ntro dodireito brasileiro”, o que por si só já revela que se está diante <strong>de</strong> um legisladorque tem - ou imagina ter -, uma notável capacida<strong>de</strong> intelectual paralograr atingir tal objetivo em poucos meses, <strong>de</strong> forma inédita no âmbitojurídico-penal brasileiro.Mais ainda, afirma a Exposição <strong>de</strong> Motivos que o Projeto <strong>de</strong> CódigoPenal “é um projeto ambicioso... que, ao tornar a parte especial o centrodo sistema penal, reduzindo o peso da legislação extravagante, romperiao fascínio da legislação penal <strong>de</strong> urgência”.De fato, soa louvável e socialmente importante a pretensa preocupaçãopor uma maior raci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong> na produção normativa na esferapenal, evitando-se leis <strong>de</strong> urgência. Tal preocupação, porém, não se materializaefetivamente no corpo do projeto legislativo apresentado, estando-sediante, na verda<strong>de</strong>, da clara manifestação <strong>de</strong> um diploma penal <strong>de</strong>urgência, não apenas por ter sido elaborado com uma rapi<strong>de</strong>z <strong>de</strong>snecessária,mas, sobretudo, por sua intenção <strong>de</strong>liberadamente populista. Nessesentido, chama atenção <strong>de</strong> forma estarrecedora o modo como acabao relatório formal apresentado pela Comissão <strong>de</strong> Juristas nomeada peloSenado Fe<strong>de</strong>ral, expressamente <strong>de</strong>dicado a João Hélio e Ives Orta, criançasR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 199-209, out.-<strong>de</strong>z. 2012 201


vitimizadas por <strong>de</strong>litos que, amplamente noticiados em época recentepela imprensa, causaram especial comoção social. Sem <strong>de</strong>mérito nenhuma quaisquer vítimas <strong>de</strong> <strong>de</strong>litos, não cabe ao legislador, na elaboração <strong>de</strong>um Código Penal com caráter geral e perene, a adoção <strong>de</strong> uma opção“jornalística” e casuística.Surge, assim, já <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início dos trabalhos legislativos o verda<strong>de</strong>irocaráter do projeto apresentado, revelando-se o texto da Exposição<strong>de</strong> Motivos um adorno irreal, na medida em que c<strong>on</strong>tém afirmações pretensamenteliberais e garantistas que, na verda<strong>de</strong>, não são adotadas efetivamenteno corpo do código proposto. Questi<strong>on</strong>a-se, assim, a quem sepreten<strong>de</strong> enganar, como se a pretensa justificativa formal do Projeto <strong>de</strong>Código Penal fosse apta a c<strong>on</strong>tradizer <strong>de</strong> forma eficaz o que se dispõe emseguida com força normativa. Em matéria penal, não é possível agradar atodos, adotando-se ao mesmo tempo os discursos raci<strong>on</strong>al e punitivista,pois ambos os argumentos necessariamente se c<strong>on</strong>tradizem, <strong>de</strong>struindo,portanto, a credibilida<strong>de</strong> do legislador.De outro lado, tem-se expressa a opção, no Projeto <strong>de</strong> Código Penal,pelo aband<strong>on</strong>o <strong>de</strong> “um referencial dogmático profundo”, buscando,com isso, um Direito Penal “com funci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong> social, em sentido forte(o que quer que isso queira dizer), em atendimento à dignida<strong>de</strong> humanae à C<strong>on</strong>stituição”. Novamente, está-se diante <strong>de</strong> um discurso populista,alegórico, mas com real sentido inaceitável. Com efeito, a opção do legisladorvoltou-se claramente ao fechamento das portas à dogmática penal,c<strong>on</strong>ferindo-se prevalência a discursos pragmáticos, com ênfase na jurisprudênciado Supremo <strong>Tribunal</strong> Fe<strong>de</strong>ral, c<strong>on</strong>firmada e positivada em váriosmomentos no Projeto apresentado. Em primeiro lugar, são óbvios osprejuízos <strong>de</strong> se aband<strong>on</strong>arem os referenciais científicos, que possibilitamc<strong>on</strong>hecer e enten<strong>de</strong>r toda a evolução epistemológica do Direito Penal.Não é possível preten<strong>de</strong>r inovar, como afirma o legislador, se não se temcompreensão do que se quer mudar. Em segundo lugar, tem-se um perigosoengessamento <strong>de</strong> posições jurispru<strong>de</strong>nciais sem a necessária reflexãocrítica, como ocorre por exemplo com a positivação do princípio da insignificância,<strong>de</strong> forma equivocada e com critérios também equivocados,até porque são incoerentes com o próprio discurso do suposto legislador,como veremos a seguir.Realmente logra-se a “funci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>, em sentido duro, do DireitoPenal”, mas não uma funci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong> à socieda<strong>de</strong>, e sim à Administração202R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 199-209, out.-<strong>de</strong>z. 2012


da Justiça, que sempre busca eficiência formal, i<strong>de</strong>ntificada com a i<strong>de</strong>ia<strong>de</strong> celerida<strong>de</strong>.Deixando <strong>de</strong> lado as críticas gerais, passa-se ao exame específicodo que nos interessa: os crimes <strong>de</strong> perigo no Projeto <strong>de</strong> Código Penal.Nesse c<strong>on</strong>texto, só é possível enten<strong>de</strong>r dogmaticamente o perigo a partirda referência do bem jurídico e da i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> ofensivida<strong>de</strong>. Antes <strong>de</strong> maisnada, cabe, então, analisar como o legislador brasileiro c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rou todasessas questões.Surge importante, nesse sentido, menci<strong>on</strong>ar uma interessante passagemda Exposição <strong>de</strong> Motivos do Projeto apresentado:“A missão <strong>de</strong> proteção dos bens jurídicos. O Direito Penal daculpabilida<strong>de</strong> e do fato resolve-se na finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> protegerposições jurídicas compatíveis com a C<strong>on</strong>stituição (ainda quenelas não diretamente expressadas). É um direito que não sequer moral ou religioso, que não se presta a limitar modos <strong>de</strong>vida que não afetem terceiros ou a paz pública, nem se voltapara exigir c<strong>on</strong>formida<strong>de</strong>s emoci<strong>on</strong>ais, sentimentais ou <strong>de</strong>pensamento em face <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>s públicas ou majoritárias. Éum Direito Penal do pluralismo e da proteção do pluralismo,essencial à vida comunitária. Não colhe situações ou estados,mas comportamentos.”No art. 14 do Projeto propriamente dito, surge pretensamente materializadaa afirmação acima exposta do legislador:“Art. 14. A realização do fato criminoso exige ação ou omissão,dolosa ou culposa, que produza ofensa, potencial ou efetiva,a <strong>de</strong>terminado bem jurídico.Parágrafo único. O resultado exigido somente é imputável aquem lhe <strong>de</strong>r causa e se <strong>de</strong>correr da criação ou incremento<strong>de</strong> risco tipicamente relevante, <strong>de</strong>ntro do alcance do tipo.Imagino que já se tenha discutido o suficiente sobre a absoluta dificulda<strong>de</strong><strong>de</strong> compreensão do parágrafo único <strong>de</strong> menci<strong>on</strong>ado artigo, quese revela tecnicamente equivocado, sobretudo por preten<strong>de</strong>r trazer para<strong>de</strong>ntro da norma penal c<strong>on</strong>cepções teóricas específicas que, por isso, estãosujeitas a questi<strong>on</strong>amentos. Passa-se, assim, à análise do caput do arti-R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 199-209, out.-<strong>de</strong>z. 2012 203


go 14, que traz explícita a exigência <strong>de</strong> ofensivida<strong>de</strong> para a c<strong>on</strong>figuraçãodo crime, o que, por si, não ensejaria problemas, po<strong>de</strong>ndo ser c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rada,como afirma Luis Greco em recente crítica, como a principal inovaçãodo Projeto <strong>de</strong> Código Penal em matéria <strong>de</strong> princípios fundamentais. Mas apromessa expressa pelo legislador, imagina-se, <strong>de</strong>va ser c<strong>on</strong>cretizada emseguida, seja na Parte Geral, seja (e sobretudo) na Parte Especial. E aí surgemproblemas graves. Em primeiro lugar, há que ver o que o legisladorenten<strong>de</strong> por ofensivida<strong>de</strong> e seu rendimento no Direito Penal.Nesse sentido, a análise do artigo 28, parágr. 1º., do Projeto, quetrata do princípio da insignificância, evi<strong>de</strong>ncia que o legislador não estáseguro do c<strong>on</strong>ceito <strong>de</strong> ofensivida<strong>de</strong> e menos ainda <strong>de</strong> sua exigência. Issoporque, como critérios para o rec<strong>on</strong>hecimento <strong>de</strong> tal princípio, exigem-secumulativamente a “mínima ofensivida<strong>de</strong> da c<strong>on</strong>duta” e a “inexpressivida<strong>de</strong>da lesão jurídica provocada”. Há <strong>de</strong> se questi<strong>on</strong>ar, antes <strong>de</strong> maisnada, qual seja a diferença entre ofensa e lesão jurídica.De outro lado, o legislador pátrio exige ainda um terceiro requisitopara a aplicação do princípio da insignificância: “o reduzidíssimo grau <strong>de</strong>reprovabilida<strong>de</strong> do comportamento”. A par da dificulda<strong>de</strong> da interpretaçãodo que seja “reduzidíssimo”, o que leva necessariamente ao subjetivismodo aplicador da norma, tal requisito nada tem a ver com a ofensivida<strong>de</strong>.Assim, uma c<strong>on</strong>duta <strong>de</strong> ín<strong>fim</strong>a ofensivida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> afinal ser c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rada<strong>de</strong>litiva, por c<strong>on</strong>ta do grau <strong>de</strong> reprovabilida<strong>de</strong> do agente – esse, aliás, temsido o posici<strong>on</strong>amento equivocadamente adotado pela Suprema Cortebrasileira para excluir, por exemplo, a insignificância da c<strong>on</strong>duta quandopraticada por reinci<strong>de</strong>nte, o que não soa coerente com o sistema penal<strong>de</strong> proteção subsidiária <strong>de</strong> bens jurídicos. Indaga-se, então, se realmenteestá presente no Projeto do Código Penal a exigência <strong>de</strong> ofensivida<strong>de</strong>.Indubitavelmente (e <strong>de</strong>liberadamente), não.Aliás, sobre a insignificância, é curioso ver como ela aparece <strong>de</strong> formac<strong>on</strong>traditória e atécnica. Com efeito, na Exposição <strong>de</strong> Motivos o princípioda insignificância surge em referência à tipicida<strong>de</strong>; na Parte Geral,porém, aparece <strong>de</strong>ntre as causas <strong>de</strong> justificação; e na Parte Especial (art.348, parágr. 8º.), finalmente, ressurge como exclu<strong>de</strong>nte da tipicida<strong>de</strong> nashipóteses <strong>de</strong> frau<strong>de</strong> fiscal e previ<strong>de</strong>nciária.Da mesma forma, também quando trata <strong>de</strong> tentativa e c<strong>on</strong>sumação,o legislador brasileiro <strong>de</strong>m<strong>on</strong>stra não compreen<strong>de</strong>r o rendimento doc<strong>on</strong>ceito <strong>de</strong> ofensivida<strong>de</strong>. De fato, embora tentativa e c<strong>on</strong>sumação sejam204R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 199-209, out.-<strong>de</strong>z. 2012


c<strong>on</strong>ceitos formais, referidos à realização do tipo objetivo, estabelece-seno Projeto <strong>de</strong> Código Penal a ofensa ao bem jurídico como critério diferenciador.Buscando aparentar sofisticação, o legislador acaba, portanto,revelando <strong>de</strong>sc<strong>on</strong>hecimento técnico.Ainda sobre o artigo 14 do Projeto apresentado, e agora em referênciadireta aos crimes <strong>de</strong> perigo, parece que se quis agradar a todos,aceitando-se simultaneamente os crimes <strong>de</strong> perigo c<strong>on</strong>creto e os <strong>de</strong> perigoabstrato, o que, à primeira vista, po<strong>de</strong>ria ser c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rada uma opçãopolítico-criminal aceitável. Basta, porém, uma leitura superficial da ParteEspecial do Projeto para verificar <strong>de</strong> pr<strong>on</strong>to a existência não apenas dasduas modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> perigo, como também <strong>de</strong> tipos penais sem nenhumaofensivida<strong>de</strong>. Mais do que isso, tem-se tipos penais <strong>de</strong>sprovidos <strong>de</strong>bem jurídico digno <strong>de</strong> tutela, a evi<strong>de</strong>nciar a tentativa <strong>de</strong> proteção <strong>de</strong> bensjurídicos aparentes e mesmo <strong>de</strong> funções. Resta esvaziada, assim, a propaganda<strong>de</strong> um “Direito Penal <strong>de</strong> proteção <strong>de</strong> bens jurídicos”, c<strong>on</strong>formeprometido na Exposição <strong>de</strong> Motivos.A <strong>de</strong>limitação do c<strong>on</strong>teúdo <strong>de</strong> qualquer <strong>de</strong>lito <strong>de</strong>ve passar, em primeirolugar, pela precisão do bem jurídico que <strong>de</strong>limita a norma. Só sepo<strong>de</strong> verificar a ofensivida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma c<strong>on</strong>duta em função da relação dac<strong>on</strong>duta praticada em relação ao bem jurídico tutelado. Se não é possívelcompreen<strong>de</strong>r qual é o bem jurídico, toda a c<strong>on</strong>strução da ofensivida<strong>de</strong> e,assim, do perigo ou lesão, será meramente retórica, falaciosa.Vejamos alguns tipos penais do Projeto <strong>de</strong> Código Penal, seleci<strong>on</strong>ados<strong>de</strong> modo meramente ilustrativo:Em primeiro lugar, tem-se nos artigos 202 e 203 do Projeto a i<strong>de</strong>iada c<strong>on</strong>dução <strong>de</strong> veículo automotor sobre a influência <strong>de</strong> álcool ou substâncias<strong>de</strong> efeitos análogos. Com efeito, o artigo 202 tipifica a c<strong>on</strong>duta<strong>de</strong> “c<strong>on</strong>duzir veículo automotor na via pública sob influência <strong>de</strong> álcool ousubstâncias análogas exp<strong>on</strong>do a danos em potencial a segurança viária”,cominando a pena <strong>de</strong> prisão <strong>de</strong> 1 a 3 anos. Trata-se nessa hipótese <strong>de</strong>crime <strong>de</strong> perigo c<strong>on</strong>creto, haja vista ser o perigo exposto como exigênciado tipo penal e materializado no dano potencial à segurança viária. O art.203, por sua vez, criminaliza a c<strong>on</strong>duta <strong>de</strong> “c<strong>on</strong>duzir veículo automotor navia pública sob a influência <strong>de</strong> álcool ou substâncias <strong>de</strong> efeitos análogossendo manifesta a incapacida<strong>de</strong> para fazê-lo com segurança”, cominandoigualmente a pena <strong>de</strong> prisão <strong>de</strong> 1 a 3 anos.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 199-209, out.-<strong>de</strong>z. 2012 205


Embora seja idêntica a sanção em ambos os tipos penais transcritos,a hipótese c<strong>on</strong>creta parece guardar importantes diferenças. Nessesentido, o artigo 203 materializa, na verda<strong>de</strong>, a política <strong>de</strong> “tolerânciazero” em relação à embriaguez, tendo sido extraído <strong>de</strong> uma norma administrativaprevista originalmente no Código <strong>de</strong> Trânsito Brasileiro, quejá c<strong>on</strong>tinha uma sanção própria, naquela esfera. Indaga-se, assim, no quec<strong>on</strong>siste o crime previsto no art. 203 do Projeto <strong>de</strong> Código Penal e comodiferenciá-lo do tipo penal do art. 202. Tratar-se-ia <strong>de</strong> perigo c<strong>on</strong>creto noprimeiro caso e <strong>de</strong> perigo abstrato no segundo? Se é assim, não há proporci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>e, assim, raci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> serem cominadas penas idênticasem ambas os casos, haja vista a diferença em relação à ofensivida<strong>de</strong>ao bem jurídico tutelado.Da mesma forma, tratando <strong>de</strong> corrupção e adulteração <strong>de</strong> medicamento,<strong>de</strong> produto alimentício, <strong>de</strong> cosmético, o art. 230 do Projeto <strong>de</strong>Código Penal criminaliza a c<strong>on</strong>duta <strong>de</strong> “corromper e adulterar, falsificar oualterar substância ou produto alimentício <strong>de</strong>stinado a c<strong>on</strong>sumo, tornand<strong>on</strong>ocivo à saú<strong>de</strong> ou reduzindo-lhe valor nutritivo.” Partindo da c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>raçãoda antecipação da intervenção penal no sentido <strong>de</strong> tutelar uma situação<strong>de</strong> perigo, há que se perguntar qual seria o bem jurídico efetivamenteameaçado, a justificar o tipo penal. C<strong>on</strong>forme sua própria localização, oart. 230 do Projeto estaria voltado à tutela da saú<strong>de</strong> pública. Indaga-se,porém, que ofensa à saú<strong>de</strong> pública po<strong>de</strong> <strong>de</strong>correr da redução <strong>de</strong> valornutritivo <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado produto alimentício? Trata-se, na realida<strong>de</strong>,<strong>de</strong> c<strong>on</strong>duta materialmente ofensa às relações <strong>de</strong> c<strong>on</strong>sumo, não se justificandoa intervenção penal tal como proposta.Seguindo na leitura do Projeto <strong>de</strong> Código Penal, tem-se nos artigos232, 352 e 412 crítica semelhante em relação à ofensivida<strong>de</strong>. De fato, oart. 232 criminaliza a c<strong>on</strong>duta <strong>de</strong> “importar para a venda, ven<strong>de</strong>r ou exporà venda, ter em <strong>de</strong>pósito para ven<strong>de</strong>r ou <strong>de</strong> qualquer forma ou distribuirou empregar a c<strong>on</strong>sumo produtos terapêuticos, matéria prima e insumofarmacêutico ou em uso <strong>de</strong> diagnóstico em qualquer das seguintes c<strong>on</strong>dições:primeira c<strong>on</strong>dição: sem registro quando exigível no órgão <strong>de</strong> vigilânciasanitária competente.(...) Pena: prisão <strong>de</strong> 2 a 6 anos.” Por sua vez,o art. 352, especificamente voltado ao âmbito ambiental, criminaliza otransporte <strong>de</strong> animal “em veículo ou (sic) c<strong>on</strong>dições ina<strong>de</strong>quadas que coloquemem risco sua saú<strong>de</strong> ou integrida<strong>de</strong> física ou sem a documentaçãoestabelecida por lei. Pena: prisão <strong>de</strong> 1 a 4 anos”. Finalmente, o art. 412,206R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 199-209, out.-<strong>de</strong>z. 2012


também na esfera ambiental, tipifica a c<strong>on</strong>duta <strong>de</strong> “comercializar motosserrasem licença ou registro”. Em todos os caso, questi<strong>on</strong>a-se em quec<strong>on</strong>sistiria a ofensivida<strong>de</strong> das c<strong>on</strong>dutas. Na verda<strong>de</strong>, propõe-se a puniçãoda mera infração <strong>de</strong> um <strong>de</strong>ver (posse <strong>de</strong> um documento ou autorização),a projetar a tentativa da tutela <strong>de</strong> meras funções, o que se revela inadmissívelno âmbito <strong>de</strong> um Direito Penal raci<strong>on</strong>al e c<strong>on</strong>traria a própria promessaexpressa na Exposição <strong>de</strong> Motivos do Projeto <strong>de</strong> Código Penal.Finalmente, tratando especificamente do bem jurídico como elementoreferencial para o exame da ofensivida<strong>de</strong>, a diferenciar as hipóteses<strong>de</strong> perigo daquelas <strong>de</strong> dano efetivo, tem-se inúmeros problemas, a exemplodo art. 277 do Projeto, que tipifica o enriquecimento <strong>de</strong> funci<strong>on</strong>áriopúblico nos seguintes termos: É punido com pena <strong>de</strong> 1 a 5 anos privativa<strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> o funci<strong>on</strong>ário público que possuir um patrimônio que sejaincompatível com os seus rendimentos ou bens legítimos”. Sem a<strong>de</strong>ntrara discussão mais refinada sobre o acerto ou não da criminalização <strong>de</strong> talc<strong>on</strong>duta sob a perspectiva da inversão do ônus da prova e da presunção<strong>de</strong> inocência, questi<strong>on</strong>a-se o que se está a tutelar e, assim, o que c<strong>on</strong>dici<strong>on</strong>aa análise <strong>de</strong> ofensivida<strong>de</strong> na hipótese. A transparência do funci<strong>on</strong>áriopúblico? Na verda<strong>de</strong>, a transparência como <strong>de</strong>ver do funci<strong>on</strong>ário públicoé exigível internamente, no âmbito da própria Administração Pública, ejá é sanci<strong>on</strong>ada, há vinte anos, pela Lei brasileira <strong>de</strong> Improbida<strong>de</strong> Administrativa.Estar-se-ia punindo <strong>de</strong> forma transversa a corrupção que nãorestou <strong>de</strong>vidamente apurada? Se assim for, a própria rubrica do tipo penalsoa equivocada, levando o aplicador do Direito a erro, já que o que puneé, na verda<strong>de</strong>, o enriquecimento presumidamente ilícito (pois caso pu<strong>de</strong>sseser c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rado efetivamente ilícito, levaria à punição por corrupção).Da mesma forma, a criminalização do jogo <strong>de</strong> azar leva a um importantequesti<strong>on</strong>amento sobre o próprio objeto <strong>de</strong> tutela. Embora o tipo penalmenci<strong>on</strong>ado esteja inserido <strong>de</strong>ntre os crimes c<strong>on</strong>tra a paz pública, pareceestar-se diante <strong>de</strong> um bem jurídico aparente, a justificar apenas retoricamenteuma norma incriminadora <strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong> raci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>.Em todos os casos tratados, verifica-se que a dúvida sobre o próprioreferencial dos tipos penais permite uma manipulação perigosa e autoritáriapelo aplicador do Direito, restando claros os erros metodológicos eteóricos do Projeto apresentado.Po<strong>de</strong>r-se-ia afirmar – como <strong>de</strong> fato se fez - que é possível c<strong>on</strong>sertaros erros, que na verda<strong>de</strong> são <strong>de</strong>vidos à pressa do legislador, <strong>de</strong>corrente doR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 199-209, out.-<strong>de</strong>z. 2012 207


exíguo prazo imposto à Comissão <strong>de</strong> Juristas. Lamentavelmente, não hácomo c<strong>on</strong>sertar o texto produzido, que mais do que mera atecnia, revelao profundo populismo e <strong>de</strong>magogia com que se tratou o Direito Penalbrasileiro. O Projeto <strong>de</strong> Código Penal é casuístico, assistemático, arrogantee repleto <strong>de</strong> promessas falaciosas, enverg<strong>on</strong>hando a todos os brasileiros.É verda<strong>de</strong> que há algumas inovações p<strong>on</strong>tuais, <strong>de</strong>correntes <strong>de</strong> doutrinasespecíficas que já vinham c<strong>on</strong>dici<strong>on</strong>ando a evolução do Direito Penal, masque tropeçam em si mesmas, pois estão inseridas em uma estrutura c<strong>on</strong>traditóriae <strong>de</strong>sorientada.Afinal, qual é a verda<strong>de</strong>ira intenção do Projeto <strong>de</strong> Código Penal?Qual a opção político-criminal adotada? Fazendo coro com todos os queme antece<strong>de</strong>ram, c<strong>on</strong>clui-se ser ingênuo acreditar que o problema seja só<strong>de</strong> improprieda<strong>de</strong> técnica, <strong>de</strong> incompetência do legislador. Na verda<strong>de</strong>, aquestão é mais profunda e envolve opções i<strong>de</strong>ológicas. A pergunta a sefazer é, então: por que tanta pressa? Por que elaborar um Código Penalsem nenhuma abertura para a discussão (em sentido científica, e não adiscussão midiática) e a revisão? Sem dúvida, po<strong>de</strong>-se afirmar que o populismo<strong>de</strong>liberado do Projeto apresentado esc<strong>on</strong><strong>de</strong> sua natureza nadaliberal. Busca-se agradar, refletir traços <strong>de</strong> pseudo-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, tratar<strong>de</strong> temas que são da moda, sem nem sequer se preocupar em enten<strong>de</strong>r esistematizar os assuntos abordados. Tais temas <strong>de</strong> moda não tornam, porém,liberal um projeto repleto <strong>de</strong> dispositivos nada liberais, autoritários,retrógrados.O Direito Penal não é um c<strong>on</strong>junto <strong>de</strong> leis escritas simplesmentecom a <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> comportamentos e respectivas penas, se fosse assim,um mero c<strong>on</strong>junto <strong>de</strong> leis escritas, bastaria ser minimamente alfabetizadopara criá-lo, aplicá-lo ou alterá-lo.Minha função hoje é, lamentavelmente, c<strong>on</strong>strangedora, porque<strong>de</strong> crítica incisiva. Todos os que se <strong>de</strong>dicam ao estudo do Direito Penal,fundamentalmente os professores, não po<strong>de</strong>riam se intitular como tal sefugissem a uma discussão tão importante com a h<strong>on</strong>estida<strong>de</strong> <strong>de</strong>vida. Há<strong>de</strong> se mobilizar c<strong>on</strong>tra o absurdo.Não é fácil legislar. Ninguém diz o c<strong>on</strong>trário e nem exigiu isso dolegislador. Justamente por isso, a reforma <strong>de</strong> um Código Penal traz a necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> uma ampla discussão, que não po<strong>de</strong> ser posterior, a título <strong>de</strong>remendo ou maquiagem.208R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 199-209, out.-<strong>de</strong>z. 2012


O momento <strong>de</strong> reelaboração <strong>de</strong> um Código seria uma excelenteoportunida<strong>de</strong> para reflexão, no sentido <strong>de</strong> avançar, dirimir questões,amadurecer. Todas essas esperanças foram jogadas no lixo pelo legislador.Mais do que per<strong>de</strong>r uma oportunida<strong>de</strong>, retroce<strong>de</strong>mos.Nós já tivemos um dia um Código Criminal que serviu <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lopara quem antes nos havia col<strong>on</strong>izado. Assim, é possível acreditar que oBrasil po<strong>de</strong> muito mais do que isso que ora tramita no Senado Fe<strong>de</strong>ral.Agra<strong>de</strong>ço pela atenção e parabenizo, uma vez mais, a Escola da Magistraturado Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro, pela importante iniciativa.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 199-209, out.-<strong>de</strong>z. 2012 209


A Reforma dos CrimesPatrim<strong>on</strong>iaisProf. Dr. Luís Wan<strong>de</strong>rley GazotoMestrado em Direito e Doutorado em Sociologia pelaUniversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Brasília. Membro do Ministério PúblicoFe<strong>de</strong>ral. Procurador da Republica em Umuarama/PR. Professor <strong>de</strong> cursos <strong>de</strong> Pós-Graduação da EscolaSuperior da Magistratura Tocantinense, da Unipar -Universida<strong>de</strong> Paranaense e Faculda<strong>de</strong> Pio Décimo.A crítica da i<strong>de</strong>ologia adotada pelo projeto <strong>de</strong> reforma do CódigoPenal já foi bem <strong>de</strong>batida neste evento, pelos mais abalizados palestrantes,<strong>de</strong> maneira que procurarei fazer uma abordagem mais simples, prática,do projeto, quanto a suas c<strong>on</strong>sequências.A minha i<strong>de</strong>ia geral é que o projeto, quanto aos crimes c<strong>on</strong>tra opatrimônio, cria alguns tipos novos, altera outros, traz algumas medidas“<strong>de</strong>spenalizadoras”, mas não se revela uma gran<strong>de</strong> novida<strong>de</strong> legislativa,nem tampouco, penso, po<strong>de</strong> ser objeto <strong>de</strong> intensa crítica por carência <strong>de</strong>sistematicida<strong>de</strong>, falta <strong>de</strong> or<strong>de</strong>namento etc. O que não quer dizer que estálivre <strong>de</strong> críticas p<strong>on</strong>tuais e <strong>de</strong> uma reclamação geral: a perda <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong><strong>de</strong> se efetuar uma verda<strong>de</strong>ira “reforma”.Vou fazer um sobrevoo pelas principais novida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>pois, tentarei<strong>de</strong>m<strong>on</strong>strar que é enganosa a propaganda <strong>de</strong> que se trata <strong>de</strong> um código<strong>de</strong>spenalizador; para tanto, farei uma comparação das penas <strong>de</strong>ste projetocom as sanções atuais, do código <strong>de</strong> 1940, e, ainda, com as penas docódigo <strong>de</strong> 1890, o código republicano.Iniciemos pelas mitigações penais inovadoras. Cinco crimes tiveramtratamento específico aparentemente redutor <strong>de</strong> penas: furto simples,dano, esteli<strong>on</strong>ato, apropriação indébita e receptação. Em comum, sãohipóteses criminais <strong>de</strong>stituídas <strong>de</strong> violência à pessoa, aos quais a comissãoexcluiu a pena privativa <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, substituindo-a pela multa. Isto“parece” ter um efeito positivo, porque as pessoas que praticam furtossobre bens <strong>de</strong> valor reduzido, ao final do processo, não seriam levadasao cárcere. Entretanto, a exclusão da tipicida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sses crimes <strong>de</strong> menor210R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 210-217, out.-<strong>de</strong>z. 2012


potencial ofensivo seria a medida mais justa, pois, na prática, a políciavai tratar o ladrão <strong>de</strong> galinhas como sempre tratou: empregando-se <strong>de</strong>violência para prendê-lo em flagrante, humilhando-o e exercendo o po<strong>de</strong>r“da polícia” da maneira como todos sabemos que é feito no Brasil, quandose trata <strong>de</strong> <strong>de</strong>linquente pobre. A manutenção do tipo importa evi<strong>de</strong>ntementena necessida<strong>de</strong> do <strong>de</strong>sgastante processo penal. Outra c<strong>on</strong>sequênciaprática seria a <strong>de</strong> que os magistrados <strong>de</strong>ixariam <strong>de</strong> aplicar o princípioda insignificância às mesmas hipóteses que aplicam hoje, atribuindo aosréus a pena <strong>de</strong> multa, lançando-lhes os nomes no rol dos culpados, comtodos os corolários da c<strong>on</strong><strong>de</strong>nação criminal.Para esses mesmos cinco tipos penais, temos a novida<strong>de</strong> <strong>de</strong> extinçãoda punibilida<strong>de</strong> quando há reparação do dano aceita pela vítima.Bem, em geral, as pessoas que praticam infrações <strong>de</strong> pequeno valor nãotêm com o que reparar o dano; então, um indivíduo que já está preso porter furtado coisa insignificante não terá como fazer reparação posterior e,possivelmente, vai praticar outro <strong>de</strong>lito, se estiver solto, para c<strong>on</strong>seguirrecursos para saldar seu primeiro débito. E tem mais, fazendo papel <strong>de</strong>advogado do diabo, do p<strong>on</strong>to <strong>de</strong> vista da vítima, o que ocorreria se elaquisesse a reparação, mas também quisesse a persecução penal? Se elaaceitar a reparação, abre mão da persecução penal. Então, po<strong>de</strong>-se criartambém uma situação <strong>de</strong> permanência da litigiosida<strong>de</strong> que o crime em sipo<strong>de</strong>ria c<strong>on</strong>stituir.Mudando <strong>de</strong> assunto – o projeto expan<strong>de</strong> a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>laçãopremiada nos crimes <strong>de</strong> sequestro. Aqui faço apenas a c<strong>on</strong>statação<strong>de</strong> que a <strong>de</strong>lação premiada já tem previsão na Lei 9.807/99, <strong>de</strong> espectroabrangente a todos os tipos penais, mas não vem sendo aplicada commuita frequência porque os acusados não ten<strong>de</strong>m a realizar esse tipo <strong>de</strong><strong>de</strong>lação. Pessoalmente, em 16 anos <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> em ofícios criminais noMinistério Público Fe<strong>de</strong>ral, nunca c<strong>on</strong>seguir fazer uma <strong>de</strong>lação premiada.Voltando aos cinco crimes patrim<strong>on</strong>iais praticados sem violência(furto simples, dano, esteli<strong>on</strong>ato, apropriação indébita e receptação), taistipos, pelo projeto, tornam-se crimes <strong>de</strong> ação penal pública c<strong>on</strong>dici<strong>on</strong>adaà representação da vítima. O que vejo com b<strong>on</strong>s olhos.A propósito do crime <strong>de</strong> roubo, antes <strong>de</strong> tratar do projeto, vamosrecordar um caso emblemático ocorrido em São Paulo, em 2006: falo <strong>de</strong>Angélica, mãe solteira, à época com 19 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, presa quando estava<strong>de</strong> saída do supermercado, furtando uma lata <strong>de</strong> manteiga, mas que,R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 210-217, out.-<strong>de</strong>z. 2012 211


é dobrada: passa <strong>de</strong> um a quatro anos para dois a oito anos. A esse propósito,existem várias situações que importam certa gravida<strong>de</strong>, como oexemplo furto <strong>de</strong> fios <strong>de</strong> re<strong>de</strong> elétrica, mas existem coisas públicas quenão possuem relevância utilitária maior do que a proprieda<strong>de</strong> privada;trata-se <strong>de</strong> rigor <strong>de</strong>snecessário.No art. 155, § 4º, inc. II, temos a qualificação do furto, sempre coma pena dobrada, quando praticado em ocasião <strong>de</strong> incêndio, naufrágio,inundação ou calamida<strong>de</strong> pública; todavia, no mesmo projeto, já temos acausa <strong>de</strong> aumento genérica, da mesma natureza, no art. 77, inc. III, alíneaj. Portanto, trata-se também <strong>de</strong> medida <strong>de</strong>snecessária.No art. 155, § 4º, inc. IV, temos a qualificadora para a hipótese <strong>de</strong>furto <strong>de</strong> veículo automotor com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> transportá-lo para outroEstado ou para o Exterior. Penso que essa qualificadora é <strong>de</strong> um absoluto<strong>de</strong>spropósito: por que dobrar a pena simplesmente porque o furto do veículofoi feito com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> envio da res furtiva para outro Estado?Para outro país, ainda vá lá, pela dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua recuperação – aindahá alguma lógica, já que o veículo possivelmente não será enc<strong>on</strong>trado –,mas para outro Estado? Existem diversas cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Estados vizinhos quesão separadas por um rio; furtado um automóvel em uma cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssase levado para a outra, dobra-se a pena do furto. Por quê? Bom, eu não seio porquê.O caso <strong>de</strong> furto com o emprego <strong>de</strong> explosivo também passará a serhipótese <strong>de</strong> furto qualificado (art. 155, § 4º), cuja pena será <strong>de</strong> quatroa <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong> reclusão, bastante acentuada, portanto. A minha crítica,aqui, é a <strong>de</strong> que se trata <strong>de</strong> regulamentação <strong>de</strong>snecessária, posto que jáexiste o crime <strong>de</strong> perigo comum, pelo emprego <strong>de</strong> explosivo. Na prática,po<strong>de</strong>-se criar um aumento <strong>de</strong> pena injusto quando o agente está portandoo explosivo, entra no estabelecimento para realizar o furto e, aindasem usar o artefato, é flagrado, incidindo, assim, em mera tentativa. Nessecaso, o agente será c<strong>on</strong><strong>de</strong>nado por tentativa <strong>de</strong> furto qualificado pelouso <strong>de</strong> explosivo, sem que, <strong>de</strong> fato, tenha ao menos iniciado o empregodo explosivo.Criou-se também uma qualificadora para roubo em residência (art.155, § 3º, inc. IV), novida<strong>de</strong> que entendo ser necessária, pois o roubo emresidência, por suas c<strong>on</strong>sequências traumáticas, merece um tratamentoum pouco mais agravado.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 210-217, out.-<strong>de</strong>z. 2012 213


Passemos à segunda parte <strong>de</strong> nossa análise, relativa ao rigor daspenas. A comissão enten<strong>de</strong>u que o projeto é <strong>de</strong>spenalizante; mas, vejamos:já comentamos algumas novida<strong>de</strong>s há pouco, alertando para suarelativa ineficácia; agora, gostaria <strong>de</strong> tratar das penas, em geral.Vejamos, inicialmente, um quadro comparativo entre as penas dosprincipais tipos dos crimes c<strong>on</strong>tra o patrimônio do Código Penal vigentee do projeto:Crimes CP 1940 CP 2012 relaçãofurto simples 1-4a 6m-3a ↓furto qualificado/aum. 2-8a 8m-4a6m ↓roubo simples 4a-10a 3a-6a ↓roubo qualificado 5a4m - 15 4a-8a ↓latrocínio 20-30a 20-30a ↔extorsão mediante sequestro 8-15a 8-15a ↔Dano1-6m ou multa6m-1a oumultaapropriação in<strong>de</strong>́bita 1-4a 6m-3a ↓esteli<strong>on</strong>ato 1-5a 1-5a ↔receptação 1-4a 1-5a ↑↑Vocês po<strong>de</strong>m perceber que houve uma diminuição da pena nofurto simples, no furto qualificado (na verda<strong>de</strong>, o projeto estipula algunscasos <strong>de</strong> qualificadora e muitas das figuras que antes eram furto qualificadopassam a ser um furto com aumento <strong>de</strong> pena). De qualquer forma,po<strong>de</strong>mos reparar que, no furto simples, no furto qualificado, apropriaçãoindébita, roubo simples, roubo qualificado, a pena realmente diminuiu,não diminuiu muito, mas diminuiu. No caso do latrocínio e da extorsãomediante sequestro, a pena permaneceu a mesma. I<strong>de</strong>m quanto ao esteli<strong>on</strong>ato.Nos crimes <strong>de</strong> dano e receptação, a pena aumentou. Para simplificar,c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rando que os crimes <strong>de</strong> furto e roubo são os crimes mais re-R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 210-217, out.-<strong>de</strong>z. 2012 215


Projeto <strong>de</strong> reforma doCódigo Penal: crimes c<strong>on</strong>traa dignida<strong>de</strong> sexualI) C<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rações iniciais(Título IV, Capítulos I e II)Prof. Dr. Paulo QueirozDoutor em Direito (PUC/SP), Procurador Regi<strong>on</strong>al daRepública em Brasília e Professor do Centro Universitário<strong>de</strong> Brasília (UniCEUB).Impressão geral do projeto n° 236/2012, do Senado: no que tangeaos crimes c<strong>on</strong>tra a dignida<strong>de</strong> sexual, a legislação atualmente existenteé melhor e tecnicamente muito superior ao projeto. Seria mais razoávelcorrigir, atualizar e melhorar a legislação já em vigor, sem a pretensão <strong>de</strong>começar do p<strong>on</strong>to zero, como se nada existisse. Não é plausível tampoucopreten<strong>de</strong>r incorporar ao Código Penal toda a legislação penal extravagante.A meu ver, essa pretensão é, ela mesma, uma extravagância. 1A Exposição <strong>de</strong> Motivos, além <strong>de</strong> c<strong>on</strong>ter equívocos, é lacônica, superficiale praticamente não explica as modificações levadas a efeito.Assim, por exemplo, afirma que foi criado o tipo <strong>de</strong> “molestaçãosexual”, quando, em verda<strong>de</strong>, o <strong>de</strong>lito tem por nomen juris “molestamentosexual” (arts. 182 e 188).A<strong>de</strong>mais, não é verda<strong>de</strong> que a “c<strong>on</strong>junção carnal virou estuprovaginal”, seja porque o nomen juris do crime é simplesmente estupro,seja porque não é só a cópula que é proibida pelo tipo, mas também aprática <strong>de</strong> sexo oral e anal.Tem-se a impressão, aliás, <strong>de</strong> que a Exposição <strong>de</strong> Motivos <strong>de</strong>sc<strong>on</strong>heciaas recentes alterações introduzidas pela Lei n° 12.015/2009,1 Tenho que um Código é indispensável, competindo-lhe estabelecer as regras e institutos fundamentais que vãoinformar a ativida<strong>de</strong> penal do Estado. Mas o fato é que a legislação se expandiu <strong>de</strong> tal modo que é praticamenteimpossível reduzi-la a um Código. A<strong>de</strong>mais, assuntos há que, por sua especialida<strong>de</strong> e complexida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>mandam leiespecial.218R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 218-228, out.-<strong>de</strong>z. 2012


que, entre outras coisas, atualizou o título para “crimes c<strong>on</strong>tra dignida<strong>de</strong>sexual”, visto que ela c<strong>on</strong>signa (p. 321) que “embora o texto <strong>de</strong> 1940tenha recebido modificações p<strong>on</strong>tuais, elas não foram suficientes parah<strong>on</strong>rar o nome atual do título – crimes c<strong>on</strong>tra a dignida<strong>de</strong> sexual – permanecendo,como sombra, o nome antigo, talvez revelador da i<strong>de</strong>ologia<strong>de</strong> tipificação ali enc<strong>on</strong>trada: crimes c<strong>on</strong>tra os costumes”. Também aquio texto é c<strong>on</strong>fuso.Quanto à ida<strong>de</strong> do vulnerável, o projeto assinala que “a Comissãoenten<strong>de</strong>u apropriado acompanhar o critério estabelecido pelo Estatutoda Criança e do Adolescente, que c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>ra criança o ser humano até os12 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>”. E <strong>de</strong> fato os crimes sexuais c<strong>on</strong>tra vulnerável fazemreferência a “pessoa que tenha até doze anos”.Tenho, porém, que a expressão “até doze anos” é das mais ambíguas,po<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong>signar tanto quem não completou doze anos quantoquem ainda não completou treze anos.É que a referência “até doze anos”, sem mais, não exclui as frações<strong>de</strong> ano (meses e dias) que se seguem aos doze anos completos. Assim,quem tem doze anos, meses e dias, não tem nem mais, nem menos <strong>de</strong>“até doze anos”, visto que o vocábulo “até” estabelece um limite <strong>de</strong> ano,mas não <strong>de</strong> meses e dias.Do meu p<strong>on</strong>to <strong>de</strong> vista, o sujeito só per<strong>de</strong> a c<strong>on</strong>dição <strong>de</strong> “até dozeanos” quando completa treze anos.Aliás, tão ambíguo é o vocábulo em que a Exposição <strong>de</strong> Motivosafirma:É <strong>de</strong> observar que o c<strong>on</strong>ceito <strong>de</strong> vulnerável foi alterado secomparado ao adotado pela legislação atualmente em vigor,que usa o marco dos 14 anos. Ocorre que a Comissão enten<strong>de</strong>uapropriado acompanhar o critério estabelecido peloEstatuto da Criança e do Adolescente que c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>ra criançao ser humano até os 12 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. Além disso, é comumque pré-adolescentes iniciem a vida afetiva aos 13 anos, oque coloca o direito penal atual <strong>de</strong>fasado em relação às alterações<strong>de</strong> comportamento.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 218-228, out.-<strong>de</strong>z. 2012 219


Justamente por isso, é que o ECA (Lei n° 8.069/90, art. 2° 2 ) dá aseguinte <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> criança: “criança: indivíduo até 12 (doze) anos <strong>de</strong>ida<strong>de</strong> incompletos”.De todo modo, o projeto corrigiu a ambiguida<strong>de</strong>, tempestivamente,ao dispor, em seu art. 503:Para efeitos penais, c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>ra criança pessoa até doze anos<strong>de</strong> ida<strong>de</strong> incompletos, e adolescente aquela entre doze e<strong>de</strong>zoito anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>.Parece infundada igualmente a afirmação <strong>de</strong> que os termos (tradici<strong>on</strong>ais)c<strong>on</strong>junção carnal e atos libidinosos diversos da c<strong>on</strong>junção carnalsejam causa <strong>de</strong> “uma série <strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong>s na aplicação a lei”, como preten<strong>de</strong>a Exposição.Finalmente, parece-me extremamente exíguo o prazo <strong>de</strong> 90 (noventa)dias para a entrada em vigor da lei (vacatio legis), nos termos doart. 543 do Projeto.Lembro que o novo Código Civil entrou em vigor somente após umano da data da sua publicação. E o Decreto-lei n° 2.848 (Código Penalatual), <strong>de</strong> 7 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1940, só passou a vigorar no dia 1° <strong>de</strong> janeiro<strong>de</strong> 1942 (art. 361), mais <strong>de</strong> um ano <strong>de</strong>pois.Naturalmente que um projeto tão ambicioso, com repercussão tãoampla, que preten<strong>de</strong> reduzir tudo a um único Código, <strong>de</strong>mandaria umtempo <strong>de</strong> vacatio legis muito superior ao previsto (90 dias).II) DescriminalizaçãoO projeto propõe, a meu ver, corretamente, a abolição dos seguintestipos penais: 1)posse sexual mediante frau<strong>de</strong> (CP, art. 215 3 ); 2)mediaçãopara servir à lascívia <strong>de</strong> outrem (art. 227 4 ); 3)favorecimento da pros-2 O art. 2º do ECA dispõe: “C<strong>on</strong>si<strong>de</strong>ra-se criança, para os efeitos <strong>de</strong>sta Lei, a pessoa até doze anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> incompletos,e adolescente aquela entre doze e <strong>de</strong>zoito anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>.”3 Art. 215. Ter c<strong>on</strong>junção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante frau<strong>de</strong> ou outro meio queimpeça ou dificulte a livre manifestação <strong>de</strong> v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> da vítima: (Redação dada pela Lei nº 12.015, <strong>de</strong> 2009)Pena - reclusão, <strong>de</strong> 2 (dois) a 6 (seis) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.015, <strong>de</strong> 2009)Parágrafo único. Se o crime é cometido com o <strong>fim</strong> <strong>de</strong> obter vantagem ec<strong>on</strong>ômica, aplica-se também multa. (Redaçãodada pela Lei nº 12.015, <strong>de</strong> 2009)4 Art. 227 - Induzir alguém a satisfazer a lascívia <strong>de</strong> outrem:Pena - reclusão, <strong>de</strong> um a três anos.220R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 218-228, out.-<strong>de</strong>z. 2012


tituição (art. 228 5 ); 4)casa <strong>de</strong> prostituição (art. 229 6 ); 5)rufianismo (art.230 7 ); 6)tráfico internaci<strong>on</strong>al e interno <strong>de</strong> pessoas para fins <strong>de</strong> exploraçãosexual (arts. 231 e 231-A 8 ); 7) ato obsceno (art. 233) 9 ; 8)escrito ou objetoobsceno (art. 234 10 ).Nalguns casos, houve abolição apenas parcial, porque certos tiposou sofreram simples reformulação ou migraram para outros tipos penais.Exemplo disso é o tráfico <strong>de</strong> pessoas (art. 469) que, além <strong>de</strong> passar ac<strong>on</strong>stituir crime c<strong>on</strong>tra os direitos humanos, com o projeto, só c<strong>on</strong>figuracrime se houver emprego <strong>de</strong> ameaça, violência, coação, frau<strong>de</strong> ou abuso.C<strong>on</strong>sequentemente, é atípica a simples intermediação da prostituição(lenocínio), isto é, sempre que a suposta vítima, voluntariamente, e semc<strong>on</strong>strangimento ilegal algum, entrar ou sair do país para exercer a prostituiçãoou similar.Algo semelhante ocorreu com os tipos penais previstos no ECA, queforam reproduzidos na sua maioria.III) Principais alterações nos crimes c<strong>on</strong>tra a liberda<strong>de</strong> sexual(Título IV, Capítulo I)As principais alterações levadas a efeito pelo projeto são as seguintes:1) dá nova redação ao estupro, restringindo-lhe o significado, substituindoa expressão “c<strong>on</strong>junção carnal” por “ato sexual vaginal, anal ouoral”; 2) dá nova redação ao estupro <strong>de</strong> vulnerável, restringindo-lhe o5 Art. 228. Induzir ou atrair alguém à prostituição ou outra forma <strong>de</strong> exploração sexual, facilitá-la, impedir ou dificultarque alguém a aband<strong>on</strong>e: (Redação dada pela Lei nº 12.015, <strong>de</strong> 2009)Pena - reclusão, <strong>de</strong> 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 12.015, <strong>de</strong> 2009)6 Art. 229. Manter, por c<strong>on</strong>ta própria ou <strong>de</strong> terceiro, estabelecimento em que ocorra exploração sexual, haja, ou não,intuito <strong>de</strong> lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente: (Redação dada pela Lei nº 12.015, <strong>de</strong> 2009)Pena - reclusão, <strong>de</strong> dois a cinco anos, e multa.7 Art. 230 - Tirar proveito da prostituição alheia, participando diretamente <strong>de</strong> seus lucros ou fazendo-se sustentar,no todo ou em parte, por quem a exerça:Pena - reclusão, <strong>de</strong> um a quatro anos, e multa.8 Art. 231. Promover ou facilitar a entrada, no território naci<strong>on</strong>al, <strong>de</strong> alguém que nele venha a exercer a prostituiçãoou outra forma <strong>de</strong> exploração sexual, ou a saída <strong>de</strong> alguém que vá exercê-la no estrangeiro. (Redação dada pela Leinº 12.015, <strong>de</strong> 2009)Pena - reclusão, <strong>de</strong> 3 (três) a 8 (oito) anos.(Redação dada pela Lei nº 12.015, <strong>de</strong> 2009)Art. 231-A. Promover ou facilitar o <strong>de</strong>slocamento <strong>de</strong> alguém <strong>de</strong>ntro do território naci<strong>on</strong>al para o exercício da prostituiçãoou outra forma <strong>de</strong> exploração sexual: (Redação dada pela Lei nº 12.015, <strong>de</strong> 2009)Pena - reclusão, <strong>de</strong> 2 (dois) a 6 (seis) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.015, <strong>de</strong> 2009)9 Art. 233 - Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público:Pena - <strong>de</strong>tenção, <strong>de</strong> três meses a um ano, ou multa.10 Art. 234 - Fazer, importar, exportar, adquirir ou ter sob sua guarda, para <strong>fim</strong> <strong>de</strong> comércio, <strong>de</strong> distribuição ou <strong>de</strong>exposição pública, escrito, <strong>de</strong>senho, pintura, estampa ou qualquer objeto obsceno:Pena - <strong>de</strong>tenção, <strong>de</strong> seis meses a dois anos, ou multa.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 218-228, out.-<strong>de</strong>z. 2012 221


se enten<strong>de</strong>rmos o direito penal como ultima ratio do c<strong>on</strong>trole social formal.Quanto ao vulnerável, há um tipo penal específico <strong>de</strong> molestamento(art. 188).E o crime <strong>de</strong> exploração sexual (art. 183 15 ) c<strong>on</strong>stitui, em verda<strong>de</strong>, umcaso <strong>de</strong> prostituição forçada. C<strong>on</strong>sequentemente, seria melhor manter aestrutura redaci<strong>on</strong>al dos <strong>de</strong>mais crimes, referindo o ato <strong>de</strong> c<strong>on</strong>stranger eo emprego <strong>de</strong> violência ou grave ameaça, em vez <strong>de</strong> falar, simplesmente,<strong>de</strong> “obrigar alguém...”.Como está, o tipo é excessivamente vago e impreciso, não referindoos meios <strong>de</strong> realização da exploração sexual.Não se compreen<strong>de</strong> tampouco o porquê da pena (<strong>de</strong>sproporci<strong>on</strong>al)<strong>de</strong> prisão <strong>de</strong> cinco a nove anos, comparativamente com crimes maisgraves.Não há modificação relevante do crime <strong>de</strong> assédio sexual, que po<strong>de</strong>riaser perfeitamente abolido, exceto quando tivesse criança ou adolescentecomo vítima. Observo, ainda, que o assédio sexual está triplamenteprevisto no projeto, visto que o art. 148 (intimidação vexatória)tipifica o ato <strong>de</strong> “assediar sexualmente, valendo-se <strong>de</strong> pretensa situação<strong>de</strong> superiorida<strong>de</strong>”. E também o art. 498 (assédio <strong>de</strong> criança para <strong>fim</strong> libidinoso)<strong>de</strong>fine como crime “aliciar, assediar, instigar ou c<strong>on</strong>stranger, porqualquer meio <strong>de</strong> comunicação, criança, com o <strong>fim</strong> <strong>de</strong> com ela praticarato libidinoso”.Seja como for, o parágrafo único, que prevê aumento <strong>de</strong> um terçoaté a meta<strong>de</strong>, quando a vítima for criança, está em lugar equivocado, pois<strong>de</strong>veria c<strong>on</strong>figurar crime autônomo, no capítulo II, que cuida dos crimessexuais c<strong>on</strong>tra vulnerável. E mais: seria preferível o verbo assediar a c<strong>on</strong>stranger,inclusive porque o nomen juris é “assédio sexual”.Finalmente, sobre a esterilização irregular (forçada, segundo o projeto),o projeto parece <strong>de</strong>sc<strong>on</strong>hecer que existe a Lei n° 9.263, <strong>de</strong> 12 <strong>de</strong>janeiro <strong>de</strong> 1996, que cuida do assunto <strong>de</strong> forma bem mais completa e commelhor técnica legislativa e linguagem jurídica.Ainda quanto a esse novo tipo, há dois equívocos. O primeiro é quea chamada esterilização forçada não é, a rigor, crime c<strong>on</strong>tra a liberda<strong>de</strong>sexual, não tendo nenhuma semelhança com os crimes objeto do CapítuloI, a exemplo do estupro, molestamento etc. Trata-se, em verda<strong>de</strong>,15 O art. 183 dispõe: “obrigar alguém a exercer a prostituição ou impedir ou dificultar que a aband<strong>on</strong>e”.224R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 218-228, out.-<strong>de</strong>z. 2012


<strong>de</strong> um crime c<strong>on</strong>tra a pessoa ou c<strong>on</strong>tra a integrida<strong>de</strong> física. C<strong>on</strong>sequentemente,outro é o seu lugar no Código proposto.A segunda objeção é que a redação não é <strong>de</strong> boa técnica, quer porquea doutrina não refere, em geral, a expressão “c<strong>on</strong>sentimento genuíno”,quer porque o termo genuíno (autêntico, legítimo etc.) não traduz,com precisão, o que se preten<strong>de</strong> <strong>de</strong> fato proibir: a laqueadura realizadaem pessoa que não c<strong>on</strong>sente ou que c<strong>on</strong>sente <strong>de</strong> forma inválida, por serincapaz <strong>de</strong> c<strong>on</strong>sentir validamente, ou por se tratar <strong>de</strong> c<strong>on</strong>sentimento obtidomediante frau<strong>de</strong>, coação etc.II) Crimes c<strong>on</strong>tra vulnerável (Título IV, Capítulo II)1) Principais modificaçõesAs principais modificações do projeto são as seguintes: 1) reduz paramenor <strong>de</strong> 13 (treze) anos a ida<strong>de</strong> da vítima vulnerável (“pessoa que tenhaaté doze anos”); 2) dá nova redação ao estupro <strong>de</strong> vulnerável, restringindo-lheo significado, que passa a ser “manter relação sexual vaginal, analou oral com pessoa que tenha até doze anos”; 3) cria os tipos <strong>de</strong> manipulaçãoou introdução <strong>de</strong> objetos em vulnerável (art. 187), molestamentosexual <strong>de</strong> vulnerável (art. 188); 4) substitui o verbo “ter” por “manter”;5) <strong>de</strong>scriminaliza os seguintes tipos penais: a) indução <strong>de</strong> menor <strong>de</strong> 14anos a satisfazer a lascívia <strong>de</strong> outrem (CP, art. 218), satisfação <strong>de</strong> lascíviamediante presença <strong>de</strong> criança ou adolescente (CP, art. 218-A).A<strong>de</strong>mais, o projeto reproduz ou reformula, ainda, os tipos penaisprevistos no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8069/90, arts.225 a 244-B).2) C<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rações críticasParece-me razoável tanto a redução da ida<strong>de</strong> do vulnerável quantoa distinção entre estupro e molestamento sexual. Já vimos quão ambíguaé a expressão “pessoa <strong>de</strong> até doze anos”.Anoto, porém, que o projeto, no art. 186, §1° (estupro <strong>de</strong> vulnerável),inova ao acrescer a expressão: “...abusando <strong>de</strong> pessoa”, razão pelaqual não basta a simples c<strong>on</strong>dição <strong>de</strong> portador <strong>de</strong> transtorno mental,<strong>de</strong>vendo tratar-se <strong>de</strong> inimputável em razão <strong>de</strong>ssa particular c<strong>on</strong>dição.Quanto ao §3°, já dissemos que a norma é ambígua e po<strong>de</strong> implicar bisin i<strong>de</strong>m.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 218-228, out.-<strong>de</strong>z. 2012 225


O art. 187 16 , que trata da manipulação ou introdução <strong>de</strong> objetos emvulnerável, tipifica, em princípio, uma c<strong>on</strong>duta penalmente irrelevante oulegal, pois, salvo o caso <strong>de</strong> o agente atuar com fins libidinosos, a simplesrealização <strong>de</strong> manipulação vaginal ou anal ou introduzir objetos em menor<strong>de</strong> 13 (treze) anos não c<strong>on</strong>stitui infração alguma. Assim, por exemplo,a ação <strong>de</strong> pais, médicos e profissi<strong>on</strong>ais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> um modo geral.Note-se que o tipo nada refere no sentido <strong>de</strong> que o ato praticado<strong>de</strong>va ser libidinoso, carecendo <strong>de</strong> elementos normativos essenciais. Nãoé tampouco recomendável usar o verbo “realizar” (tornar real, c<strong>on</strong>cretizaralgo) para <strong>de</strong>finir um crime, em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu caráter neutro, diversamente<strong>de</strong> “matar”, “ameaçar”, “sequestrar” etc.Trata-se, portanto, <strong>de</strong> um tipo penal manifestamente inc<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>al.Seja como for, o crime <strong>de</strong> manipulação ou introdução <strong>de</strong> objetosem vulnerável, além <strong>de</strong> amplíssimo, é absolutamente <strong>de</strong>snecessário, porque,quando se tratar <strong>de</strong> ato libidinoso, a c<strong>on</strong>duta <strong>de</strong>finida no tipo é subsumívelno <strong>de</strong>lito <strong>de</strong> estupro <strong>de</strong> vulnerável ou molestamento sexual <strong>de</strong>vulnerável.Mas não só. Apesar <strong>de</strong> terem praticamente o mesmo nomen juris,os arts. 187 (manipulação ou introdução <strong>de</strong> objetos em vulnerável)e 181 (manipulação e introdução sexual <strong>de</strong> objetos) quase nada têm emcomum, tal é a disparida<strong>de</strong> da redação dos tipos penais.Também aqui houve omissão quanto à introdução <strong>de</strong> objetos porvia oral. O tipo não menci<strong>on</strong>a tampouco o sujeito que coage outrem aintroduzir nele, agente, os tais objetos.Quanto ao molestamento sexual <strong>de</strong> vulnerável, seria razoável que seutilizasse o mesmo verbo do estupro <strong>de</strong> vulnerável, isto é, manter, em vez<strong>de</strong> c<strong>on</strong>stranger, a evitar interpretações c<strong>on</strong>flitantes no particular. Na verda<strong>de</strong>,seria mais recomendável usar-se o “ter”, em vez <strong>de</strong> “manter”, tal comoc<strong>on</strong>sta da legislação em vigor, uma vez que o “manter” po<strong>de</strong> sugerir a necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> permanência ou reiteração <strong>de</strong> atos como elemento do tipo.Não se compreen<strong>de</strong> tampouco o porquê <strong>de</strong> alguns tipos referirema aplicabilida<strong>de</strong> da norma incriminadora aos incapazes em geral e outrosse omitirem a esse respeito (v.g., art. 187).16 O art. 187 dispõe: “realizar manipulação vaginal ou anal ou introduzir objetos em pessoa que tenha até dozeanos”.226R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 218-228, out.-<strong>de</strong>z. 2012


Por <strong>fim</strong>, não me parece que os <strong>de</strong>litos c<strong>on</strong>tra vulnerável mereçam,forçosamente, pena maior do que os praticados c<strong>on</strong>tra não vulnerável.Afinal, o que é mais grave: ter c<strong>on</strong>junção carnal c<strong>on</strong>sentida com uma menor<strong>de</strong> doze anos ou estuprar, com violência ou grave ameaça, uma menor<strong>de</strong> treze ou catorze anos?C<strong>on</strong>si<strong>de</strong>ro importante, ainda, que o tipo <strong>de</strong> estupro <strong>de</strong> vulnerável (eoutros) preveja, se for o caso, causa <strong>de</strong> aumento <strong>de</strong> pena para a hipótese<strong>de</strong> emprego <strong>de</strong> violência ou grave ameaça c<strong>on</strong>tra vulnerável. Lembro quea violência ou grave ameaça, nesses <strong>de</strong>litos, não é um elemento essencial,mas aci<strong>de</strong>ntal do tipo.III) Omissões e outros problemasO projeto c<strong>on</strong>tém omissões graves: 1) nada refere sobre as formasqualificadas, a exemplo da lesão grave ou morte; 2) nada diz sobre a açãopenal; 3) não menci<strong>on</strong>a as causa <strong>de</strong> aumento <strong>de</strong> pena que sempre c<strong>on</strong>staramda legislação, a exemplo do c<strong>on</strong>curso <strong>de</strong> agentes, crimes praticadospor ascen<strong>de</strong>nte, tutores etc.Quanto à ação penal, creio que houve esquecimento puro e simples.Mas, se não foi o caso, o projeto terá tornado obrigatória a açãopenal (ação penal pública inc<strong>on</strong>dici<strong>on</strong>ada) para todos os crimes, algo bastantequesti<strong>on</strong>ável do p<strong>on</strong>to <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> política criminal.Outra omissão grave é que o projeto nada diz sobre os mesmos <strong>de</strong>litosprevistos no Código Penal Militar (CPM, arts. 232 a 239), cuja redaçãooriginal permanece inalterada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1969 (Decreto-lei 1.001, <strong>de</strong> 21 <strong>de</strong>outubro <strong>de</strong> 1969).Além dos crimes previstos no título sobre a dignida<strong>de</strong> sexual, o projetoprevê, no título dos crimes c<strong>on</strong>tra os direitos humanos e, a meu ver,em lugar incorreto, visto que ficariam melhor situados no título dos crimesc<strong>on</strong>tra a dignida<strong>de</strong> sexual <strong>de</strong> vulnerável os seguintes tipos: 1) fotografia oufilmagem <strong>de</strong> cena <strong>de</strong> sexo (art. 493); 2) venda <strong>de</strong> fotografia ou ví<strong>de</strong>o comcena <strong>de</strong> sexo (art. 494); 3) divulgação <strong>de</strong> cena <strong>de</strong> sexo (art. 495); 4) aquisiçãoou posse <strong>de</strong> arquivo com cena <strong>de</strong> sexo (art. 496); 5) simulação <strong>de</strong> cena<strong>de</strong> sexo (art. 497); 6) assédio <strong>de</strong> criança para <strong>fim</strong> libidinoso (art. 498).E há ainda um outro tipo penal relaci<strong>on</strong>ado à prostituição, que é a“transgenerização forçada” (art. 464), que tem a seguinte redação (caputdo artigo):R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 218-228, out.-<strong>de</strong>z. 2012 227


Realizar em alguém, c<strong>on</strong>tra a sua v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong>, qualquer ato ten<strong>de</strong>ntea alterar a percepção social <strong>de</strong> seu gênero <strong>de</strong>signadopelo nascimento, com o <strong>fim</strong> <strong>de</strong> submetê-lo, induzi-lo ou atraíloà prostituição ou qualquer forma <strong>de</strong> exploração sexual.C<strong>on</strong>fesso que não o entendi bem. De todo modo, se se trata <strong>de</strong>mais um caso <strong>de</strong> prostituição forçada, melhor seria que c<strong>on</strong>stituísse, nãoum tipo penal autônomo, mas uma forma equiparada do art. 183 (exploraçãosexual), em parágrafo específico.Finalmente, dá-se nova redação ao tráfico <strong>de</strong> pessoas (art. 469).IV) C<strong>on</strong>clusõesQuer sob o p<strong>on</strong>to <strong>de</strong> vista político-criminal, quer sob o p<strong>on</strong>to <strong>de</strong> vistadogmático, quer sob o p<strong>on</strong>to <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> técnica legislativa e linguagemjurídica, o texto é, no que se refere aos crimes c<strong>on</strong>tra a dignida<strong>de</strong> sexual,sofrível, e, pois, <strong>de</strong>veria ser completamente revisto ou simplesmenteaband<strong>on</strong>ado.A<strong>de</strong>mais, c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rando que os crimes c<strong>on</strong>tra a dignida<strong>de</strong> sexual sofreramuma importante e recente reforma por meio da Lei nº 12.015, <strong>de</strong>7 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2009, tenho que, no essencial, uma nova reforma é absolutamente<strong>de</strong>snecessária.228R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 218-228, out.-<strong>de</strong>z. 2012


Organizações Criminosas:O Novo Tipo <strong>de</strong> MilíciaProf. Dr. Alexandre Wun<strong>de</strong>rlichGraduado em Ciências Jurídicas e Sociais, especializaçãoe mestrado em Ciências Criminais pela PUC-RS.Coor<strong>de</strong>nador do Departamento <strong>de</strong> Direito Penal eProcessual Penal e da Pós-graduação <strong>de</strong> Direito PenalEmpresarial da PUC-RS. C<strong>on</strong>selheiro da OAB/RS eatual Diretor-Geral da Escola Superior <strong>de</strong> Advocacia.Coor<strong>de</strong>nador da Associação Brasileira <strong>de</strong> Professores<strong>de</strong> Ciências Penais no RS.O processo <strong>de</strong> coisificação, as categorias da razão, da certeza, daverda<strong>de</strong>, do tempo, do espaço e da dromologia, são ditos e escritos hámuito tempo, c<strong>on</strong>tudo jamais se pensou que toda essa ruptura paradigmáticaentre o nosso pensamento <strong>de</strong> Direito Penal mo<strong>de</strong>rno com essepensamento <strong>de</strong> pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, se é que se po<strong>de</strong> chamar assim, essesefeitos <strong>de</strong> processo <strong>de</strong> globalização, que não têm efeitos neutros, mas simpositivos e negativos e, sobretudo, com uma proposta muito clara do neoliberalismo,afetou as questões do Direito e afetou o Direito Penal. Issotudo, nós rec<strong>on</strong>hecemos, mas não é <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ssa nova or<strong>de</strong>m social, ou<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ssa nova lógica social <strong>de</strong> velocida<strong>de</strong>, que po<strong>de</strong>mos simplesmentetentar um projeto que reúne toda a legislação penal do nosso país emum prazo exíguo <strong>de</strong> seis meses. E, mais, atribui-se o prazo <strong>de</strong> seis mesesem razão <strong>de</strong> uma norma regimental, o Regimento do Senado Fe<strong>de</strong>ral, ouseja, a norma do regimento interno está acima <strong>de</strong> todos os i<strong>de</strong>ais republicanosno nosso país.Então não somos avessos às mudanças, mas sim a atentados c<strong>on</strong>traa estrutura do Direito Penal. Somos avessos a essas respostas que foramsurgindo ao l<strong>on</strong>go das duas últimas décadas, principalmente a partir daC<strong>on</strong>stituição Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> 1988. E se olharmos a nossa legislação, a partir<strong>de</strong>sses bens jurídicos que ganharam a dignida<strong>de</strong> c<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>al em 1988,o que nós fizemos ou uma parte da doutrina tentou fazer para trabalharcom essas novas <strong>de</strong>mandas, pois vínhamos passando isso <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1988?R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 229-238, out.-<strong>de</strong>z. 2012 229


O Prof. Luiz tratava bem disso, dizia que a c<strong>on</strong>stituição <strong>de</strong> garantias trouxeuma série <strong>de</strong> <strong>de</strong>veres <strong>de</strong> incriminação, que foi quando se inchou o DireitoPenal. Ele falava <strong>de</strong> uma “hemorragia legislativa”. Então uma parte dadogmática penal se socorreu <strong>de</strong>sse processo <strong>de</strong> hipercriminalização nocampo da política criminal que sofremos no Brasil das últimas décadas.O inchaço dos crimes <strong>de</strong> perigo abstrato, um recurso abusivo às normaspenais em branco, um recurso abusivo aos crimes omissivos e a hipóteseda resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal <strong>de</strong> pessoas jurídicas. Esse era o cenário <strong>de</strong>parte da dogmática buscando institutos e aumentando, ou seja, dandosoluções mais simples para problemas mais complexos <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m socialque estávamos enfrentando.E, no plano legislativo, antes e após a C<strong>on</strong>stituição <strong>de</strong> 1988, a críticaà forma com que é feita a legislação brasileira tem sido feita por autoresbastante importantes e c<strong>on</strong>sagrados. E faço questão <strong>de</strong> ren<strong>de</strong>r aqui umahomenagem a um texto do Prof. Juarez, que peço licença para ler e quedispõe o seguinte: Os governos violentam repentinamente a c<strong>on</strong>stituiçãocom incriminações vagas e in<strong>de</strong>terminadas, <strong>de</strong>finindo a c<strong>on</strong>duta <strong>de</strong>lituosainclusive através <strong>de</strong> expressões “atos <strong>de</strong> terrorismo” e restringindo, além<strong>de</strong> todo o limite tolerável, o direito <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa e a liberda<strong>de</strong> individua. ,Cria-se assim o Direito Penal Terrorista. A legislação brasileira, em matéria<strong>de</strong> terrorismo, é, po<strong>de</strong>-se dizer, lamentável, com graves incorreções eimproprieda<strong>de</strong>s. Não é uma lei feita por juristas. Terá que ser reformadaquando voltarmos ao regime <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> acordo com as exigências <strong>de</strong>um Direito Penal <strong>de</strong>mocrático. A primeira <strong>de</strong>las <strong>de</strong>corre da i<strong>de</strong>ia segundoa qual o sistema punitivo do Estado exerce função extremamente limitadana repressão à criminalida<strong>de</strong>. Os governantes têm que resistir à tentação<strong>de</strong> criar um inútil direito penal do terror. Não se <strong>de</strong>ve c<strong>on</strong>figurar na lei umaespecífica figura <strong>de</strong> <strong>de</strong>lito <strong>de</strong>nominada, aqui no caso, terrorismo, mas sim<strong>de</strong>finir as diversas c<strong>on</strong>dutas em crimes autônomos com a discrição completa<strong>de</strong> comportamentos <strong>de</strong>lituosos”. Nós po<strong>de</strong>ríamos dizer isso hoje,em 2012, mas essa crítica foi feita em 1983 por Heleno Cláudio Fragosoquando da publicação da Lei 71.070 <strong>de</strong> 1983, a lei <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologia <strong>de</strong> segurançanaci<strong>on</strong>al.No ano <strong>de</strong> 2000, o Prof. Miguel Reale Júnior, seguindo a crítica <strong>de</strong>processos legislativos, chegou a dizer, quando da reforma da Lei 97.014<strong>de</strong> 1998, das penas alternativas, que tínhamos no Brasil um “DireitoPenal Fernandino”, que vinha <strong>de</strong> Fernando Collor a Fernando Henrique.230R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 229-238, out.-<strong>de</strong>z. 2012


E essa legislação, com esse projeto, caminha nesse sentido, e o tema quefoi incumbido, ao l<strong>on</strong>go <strong>de</strong>ssas duas décadas, foi sempre mal trabalhad<strong>on</strong>o Brasil.Organizações Criminosas, do estudo que fiz para a fala, a partir daoperação mãos limpas na Itália quando um grupo <strong>de</strong> senadores brasileirosvai à Itália e volta ao Brasil criando figuras até então <strong>de</strong>sc<strong>on</strong>hecidas pornós, e se publica no Brasil, <strong>de</strong>pois do artigo 288 do Código Penal <strong>de</strong> 1940,a Lei 9034 <strong>de</strong> 1985, a chamada Lei <strong>de</strong> Combate ao Crime Organizado. Essalegislação não teve praticamente nenhuma aplicação no Brasil. A Lei <strong>de</strong>1985 não <strong>de</strong>finia o que era crime organizado e dizia que era aplicado emdiversos casos aqui com institutos processuais às práticas <strong>de</strong> organizaçõescriminosas, que ela também não c<strong>on</strong>ceituava. Basta recordar que ela vedavao direito <strong>de</strong> apelar em liberda<strong>de</strong>, que <strong>de</strong>cretava sigilo <strong>de</strong> autos, <strong>de</strong>cretavaa possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o juiz buscar prova <strong>de</strong> ofício, o juiz instrutor. Ebasta dizer também que ela vedava a c<strong>on</strong>cessão <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> provisóriae outras violações atinentes às garantias c<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>ais. O Prof. GeraldoPrado chegou a tratar disso naquela época, trabalhando as questões e acrítica da Lei 9014 <strong>de</strong> 1995.Depois disso, tivemos, em 2001, uma nova legislação que alteroua Lei 9034 <strong>de</strong> 1995, que foi a Lei 10.217, que trabalhava com a criminalida<strong>de</strong>organizada como base e criou três categorias: quadrilha ou bando,organização criminosa e qualquer tipo <strong>de</strong> associação criminosa que pu<strong>de</strong>ssepraticar qualquer crime. Três categorias sem, pasmem, c<strong>on</strong>seguirc<strong>on</strong>ceituar nenhuma <strong>de</strong>las. E esse vácuo no Brasil sobre as organizaçõescriminosas na legislação persiste até 2004, com o Decreto 5015, quandointernalizamos a C<strong>on</strong>venção <strong>de</strong> Palermo, a C<strong>on</strong>venção das Nações Unidasc<strong>on</strong>tra o crime organizado transnaci<strong>on</strong>al, que, mais uma vez, <strong>de</strong> formagenérica e ampla, sendo o Brasil signatário, uma parte da jurisprudênciacomeça a aplicar a C<strong>on</strong>venção <strong>de</strong> Palermo como um c<strong>on</strong>ceito básico <strong>de</strong>organizações criminosas.O problema é que a C<strong>on</strong>venção <strong>de</strong> Palermo traz uma série <strong>de</strong> c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>randos,mas nenhum <strong>de</strong>les o Brasil c<strong>on</strong>segue cumprir. Então, quandointernalizamos o texto, a jurisprudência <strong>de</strong>sc<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rava os c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>randose aplicava residualmente só a parte <strong>de</strong> um suposto c<strong>on</strong>ceito <strong>de</strong> organizaçãocriminosa. A Profª Heloisa Estelita trabalhou muito bem essa questã<strong>on</strong>o que tange aos <strong>de</strong>litos empresariais, em um livro publicado pelaR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 229-238, out.-<strong>de</strong>z. 2012 231


Editorial <strong>de</strong> Porto Alegre, livraria do advogado, citado inclusive agora nojulgamento do caso da ação penal <strong>de</strong> 470 em Brasília, parece que nãorec<strong>on</strong>hecido pelos Ministros. Mas, <strong>de</strong> qualquer sorte, na pesquisa que fizpara o tema, localizei um habeas corpus no qual já havia votado o MinistroMarco Aurélio e o Ministro Tóffoli e havia pedido vista a Ministra CarmemLúcia, em 2009, votando agora em 12 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2012 no HC 9<str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>07. Foiacompanhada e pediu vista, acompanhou o Ministro Marco Aurélio e oMinistro Tóffoli e foi acompanhada pelo Ministro Fux e pela Ministra RosaWeber. trancaram a ação penal, em um <strong>de</strong>lito <strong>de</strong> lavagem <strong>de</strong> dinheiro daLei 961.598, cujo crime antece<strong>de</strong>nte era o crime <strong>de</strong> organização criminosa.E o STF, na primeira turma, rec<strong>on</strong>heceu a ausência <strong>de</strong> disciplina legaldos crimes ou do tipo <strong>de</strong> organização criminosa e trancou a ação penal.Mas, pasmem, mesmo <strong>de</strong>pois do rec<strong>on</strong>hecimento <strong>de</strong> uma das turmasdo Supremo <strong>de</strong> que não havia no Brasil, como <strong>de</strong> fato não há, umc<strong>on</strong>ceito <strong>de</strong>terminado <strong>de</strong> organização criminosa, publicamos agora, recentemente,a Lei 12.694 <strong>de</strong> 2012, uma nova lei que dá uma faculda<strong>de</strong>ao juiz <strong>de</strong> primeiro grau, na formação <strong>de</strong> um colegiado, composto porjuízes <strong>de</strong> primeiro grau e juízes sem rosto, para que esse colegiado possa,em <strong>de</strong>terminados atos processuais, <strong>de</strong>cidir à porta fechada e com claraviolação ao princípio do juiz natural e da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> física do magistradocom o caso penal.Então, no Brasil, o cenário que temos é uma nova lei, a Lei 12.694,que foi publicada agora no mês <strong>de</strong> julho junto com a nova lei <strong>de</strong> lavagem<strong>de</strong> dinheiro, que dá po<strong>de</strong>res para o juiz tratar questões <strong>de</strong> criminalida<strong>de</strong>organizadas ou <strong>de</strong> organizações criminosas que nós, mais uma vez, <strong>de</strong>s<strong>de</strong>1995, não c<strong>on</strong>seguimos c<strong>on</strong>ceituar. Esse é o cenário. E foi assim que osmembros da comissão receberam as organizações criminosas para tratar<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sse projeto.E o que dispõe a exposição <strong>de</strong> motivos fraci<strong>on</strong>ada? O que dispõe aprimeira exposição <strong>de</strong> motivos? Pois cada um fez uma parte, então cadaum é resp<strong>on</strong>sável só por uma parte. Aí quando eles são questi<strong>on</strong>ados, elesdizem que votaram em c<strong>on</strong>trário em tudo, que divergiram muito. Entãoagora quero saber: quem votou o quê?, quem fez o quê? E quem é a maioria?Até porque se todo mundo é voto minoritário, quem é a maioria?O que dispõe a exposição <strong>de</strong> motivos dos crimes da paz pública? Rec<strong>on</strong>hecetudo isso que digo do esforço legislativo brasileiro e da sua ineficácia e232R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 229-238, out.-<strong>de</strong>z. 2012


muito reduci<strong>on</strong>ista um problema muito complexo. Significa dizer que oEstado rec<strong>on</strong>hece que existem <strong>de</strong>terminadas comunida<strong>de</strong>s <strong>on</strong><strong>de</strong> ele nãoc<strong>on</strong>segue trabalhar, <strong>on</strong><strong>de</strong> não c<strong>on</strong>segue operar e <strong>on</strong><strong>de</strong> não c<strong>on</strong>segue sefazer presente e <strong>on</strong><strong>de</strong> a or<strong>de</strong>m é a or<strong>de</strong>m da milícia. E a partir disso, a c<strong>on</strong>sequêncianatural da comissão é <strong>de</strong> que, a partir <strong>de</strong> toda a repercussão quehouve nesse caso especificamente, se produza um tipo penal, na minhaopinião, exemplo clássico <strong>de</strong> reação absolutamente simbólica na expressãocunhada por Hachiman (?).A c<strong>on</strong>fusão do tipo <strong>de</strong> milícia com os <strong>de</strong>mais e a produção <strong>de</strong> umaproposta <strong>de</strong> encarceramento, <strong>de</strong>ve ser rechaçada pelos operadores do direito.A falência do processo legislativo, essa busca por um direito penal<strong>de</strong> emergência ou <strong>de</strong> resposta social, está muito clara não só na exposição<strong>de</strong> motivos. E, nesse sentido, acho que também se procura uma i<strong>de</strong>ologiapara o projeto, mas me chamou a atenção e não sei se foi dito no seminário,mas o relator <strong>de</strong>dica o trabalho em nome pessoal, disp<strong>on</strong>do o seguinte:“Dedico esse trabalho ao menino João Hélio e Ives Ota. De certa forma, éuma questão freudiana: “Quem nos salva da b<strong>on</strong>da<strong>de</strong> dos b<strong>on</strong>s?”. A pessoapo<strong>de</strong> até tentar fazer o bem, mas, <strong>de</strong> outro lado, ele <strong>de</strong>sprestigia milhões<strong>de</strong> outras vítimas e, por outro lado, parece que traz um novo projetopara dar uma satisfação para essas vítimas e para todas as outras pessoasvitimadas. As digitais vão sendo espalhadas pelo projeto.Mas para não ficar só na crítica ao texto legislativo, que já foi muitodito aqui sobre a falta <strong>de</strong> técnica, “parece um elefante em uma casa <strong>de</strong>louças”, a cada esquina do projeto, um tropeço. O Prof. Cláudio já diziaque não duvida do c<strong>on</strong>hecimento jurídico dos membros da comissão, maseu vou dizer com todas as letras: já eu duvido. Eu duvido bastante, incrédulo,e, mais, não é só a falta <strong>de</strong> c<strong>on</strong>hecimento jurídico, é a falta <strong>de</strong>verg<strong>on</strong>ha <strong>de</strong> lançar um projeto <strong>de</strong>sses em um cenário naci<strong>on</strong>al, em umprazo <strong>de</strong> seis meses, c<strong>on</strong>seguindo reunir uma crítica <strong>de</strong> autores brasileirosque sequer foram chamados a opinar no projeto. Mas se eu estivesse emPorto Alegre e me c<strong>on</strong>vidassem para participar <strong>de</strong> um projeto, com umgrupo <strong>de</strong> pessoas que, segundo eles mesmos disseram, é plural, <strong>de</strong>mocrático,cada um tem uma i<strong>de</strong>ologia diferente, então, por esse motivo vouachar que o projeto não tem i<strong>de</strong>ologia? Mas se me c<strong>on</strong>vidam, digo paraligar para o Prof. Juarez Tavares que está mais habilitado a opinar sobre arelação <strong>de</strong> causalida<strong>de</strong> do que eu.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 229-238, out.-<strong>de</strong>z. 2012 235


E, nesse sentido, entendo que falta um pouco <strong>de</strong> humilda<strong>de</strong> para aspessoas. E ouvi, quando participei <strong>de</strong> audiência pública no Rio Gran<strong>de</strong> doSul, na Escola da Magistratura, o Ministro Gíls<strong>on</strong> Dipp dizendo que eramoperadores do Direito, que eram pessoas que c<strong>on</strong>heciam a realida<strong>de</strong>. Enão duvido, mas aquilo me passou, com todo respeito e amiza<strong>de</strong> que tenhopelo Ministro Gils<strong>on</strong> Dipp, mas me passou um sentimento <strong>de</strong> dizer queesse código não pertence a aca<strong>de</strong>mia, é o código nosso, ou seja, das pessoasque estão no foro lá pedindo. E existem coisas horrorosas no código,posso falar porque sou advogado militante, inclusive <strong>de</strong>ntro da OAB, háquinze anos. Tenho uma proposta <strong>de</strong> criminalização, <strong>de</strong> prerrogativas <strong>de</strong>advogado. Quem <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> um Direito Penal minimalista, ou seja, vai ládizer que temos que criminalizar por violação <strong>de</strong> acesso aos autos? Entãotem que se manter uma certa coerência <strong>de</strong>ntro do sistema. E não dá praser diferente no que tange ao tipo penal, que me foi pedido para examinar.Entendo que é realmente um fiasco a criação <strong>de</strong>sse tipo específico.Teríamos que criar vários tipos regi<strong>on</strong>alizados. Teríamos uma milícia, queno meu estado, é a mais importante <strong>de</strong> todas, pois não teríamos milícias<strong>de</strong>sse porte das favelas do Rio <strong>de</strong> Janeiro, que é a do abigeato na fr<strong>on</strong>teirado Rio Gran<strong>de</strong> do Sul.Sendo assim, teríamos que voltar para uma proposta <strong>de</strong> códigosregi<strong>on</strong>ais. Mas, além disso, gostaria <strong>de</strong> finalizar dizendo que existe umapesquisa bastante importante, pois recebi esse tema há trinta dias. Quandoo Prof. Juarez me ligou, havia recebido um livro <strong>de</strong> presente do Prof.Saulo <strong>de</strong> Carvalho <strong>de</strong> uma argentina radicada no México, em 1979, chamadaPilar Calveiro. Ela escreveu um trabalho sobre violências <strong>de</strong> estado,a briga no México c<strong>on</strong>tra o narcotráfico, o terrorismo nos Estados Unidose, por causalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> temas, ela trabalhou com o impacto carcerário quehouve a partir <strong>de</strong> uma reforma no México <strong>de</strong> 1994 a 2001.Ela analisou os dados <strong>de</strong> 2001 a 2004 e a associação criminosa lá,que tinha uma pena <strong>de</strong> um a oito anos, passou; com a reforma, comoestamos fazendo aqui, para uma pena <strong>de</strong> cinco a <strong>de</strong>z anos e com violação<strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> garantias, como propostas <strong>de</strong> progressão <strong>de</strong> regime,<strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> direito <strong>de</strong> recorrer etc. E o trabalho <strong>de</strong>la <strong>de</strong>m<strong>on</strong>strou ocrescimento do encarceramento, os dados estão disp<strong>on</strong>íveis, o livro foipublicado pela editorial no ciclo vinte e y uno. A cada mês, a cada cem<strong>de</strong>litos <strong>de</strong>nunciados, a margem <strong>de</strong> novas <strong>de</strong>núncias dos tipos <strong>de</strong> associaçõescriminosas passavam para cento e dois, <strong>de</strong>pois para cento e nove,236R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 229-238, out.-<strong>de</strong>z. 2012


<strong>de</strong>pois para cento e doze. Ocorreu um impacto carcerário brutal porquenão se sabia, pois não havia até então sido investigado, que a cada tipoautônomo somado três pessoas, há associação criminosa ou organizaçãocriminosa, mais essa pena do tipo autônomo. E o Prof. Saulo <strong>de</strong> Carvalhotratou bastante <strong>on</strong>tem, pois ninguém está preocupado em saber quantosfunci<strong>on</strong>ários no sistema prisi<strong>on</strong>al vamos ter daqui a vinte anos a partir danova codificação. Ninguém está preocupado em saber quantas vagas dosistema prisi<strong>on</strong>al vou ter que ter a partir <strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong> aplicação <strong>de</strong> umnovo texto <strong>de</strong> lei. Ninguém está preocupado com quantos magistradosda execução vou ter que criar. Isso porque ninguém está preocupado emmudar o sistema atual e o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> justiça criminal brasileira. Essa éoutra discussão e quero encerrar tratando disso, ou seja, agregar tipospenais, aumentar penas sem discutir a essência da nossa justiça criminalenquanto mo<strong>de</strong>lo. Por que não aproveitamos para discutir a justiça restaurativa?Nós passamos por um mo<strong>de</strong>lo ou por um processo <strong>de</strong> adjetivaçãoda justiça criminal. E a justiça criminal <strong>de</strong> colarinho branco, das varasespecializadas, das justiças terapêuticas.No meu Estado tem a justiça instantânea. Quem quer uma justiçainstantânea? A justiça instantânea é para infratores crianças e adolescentesque po<strong>de</strong>m ter liberda<strong>de</strong> assistida e outras sanções em uma audiênciaúnica com <strong>de</strong>fensor público e juiz etc. É um projeto pi<strong>on</strong>eiro <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidirquestões <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> das crianças e adolescentes. E nesses processos<strong>de</strong> adjetivação da justiça, como a justiça c<strong>on</strong>sensual ou a justiça dialogal,dos Juizados Especiais <strong>de</strong> Pequenas Causas, e que são audiências feitas <strong>de</strong>forma coletiva, ou seja, tudo aquilo que projetávamos para mo<strong>de</strong>rnizaras infrações <strong>de</strong> menor potencial ofensivo, quem sabe não per<strong>de</strong>mos apossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>scriminalizar tudo aquilo? No Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, asaudiências são feitas, para transação penal, daquela forma <strong>de</strong> quem jáaceitou ou quem vai aceitar a transação penal, passa no balcão. Quemjá fez a composição civil dos danos no ato do foro, passa no cartório paraassinar. Ou seja, o juiz não tem mais a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escuta.A falência da justiça estadual do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, do meu estado,do interior do estado, do funci<strong>on</strong>alismo público, da carência <strong>de</strong> magistrado,do número <strong>de</strong> processos, com esse mo<strong>de</strong>lo atual, nada foi questi<strong>on</strong>ado.Não se investiu em nenhum mo<strong>de</strong>lo alternativo <strong>de</strong> política criminal.E aí nos dizem que diminuíram cinco anos o tráfico, tiraram as c<strong>on</strong>travenções,diminuíram o esteli<strong>on</strong>ato, o furto passou a ser <strong>de</strong> representação eR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 229-238, out.-<strong>de</strong>z. 2012 237


acabam esquecendo tudo que está sendo criado <strong>de</strong> endurecimento dosistema para os crimes hedi<strong>on</strong>dos, dos tipos penais novos, das incompatibilida<strong>de</strong>stécnicas e se não fosse assim, o esforço inteiro que estamosfazendo, capitaneados pelos nossos professores, acho que esse projetopo<strong>de</strong>ria sim ter êxito. Não estou dizendo que não terá, tenho medo,receio, mas estou dizendo que nós todos reunidos vamos fazer a força, aresistência digna, h<strong>on</strong>rada e altamente comprometida com a ciência doDireito Penal. 238R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 229-238, out.-<strong>de</strong>z. 2012


Criminalização dos jogos <strong>de</strong>azar: A c<strong>on</strong>tradição entrelei e realida<strong>de</strong> socialProfª. Drª. Katie ArguelloProfessora <strong>de</strong> Criminologia e Direito Penal nos cursos<strong>de</strong> Graduação e Pós-graduação da Universida<strong>de</strong>Fe<strong>de</strong>ral do ParanáO anteprojeto do Código Penal criminaliza os jogos <strong>de</strong> azar,antes c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rados mera c<strong>on</strong>travenção, segundo a Lei 3.688/41, ouseja, infração penal <strong>de</strong> menor potencial ofensivo. 1 Esse anteprojetosegue uma lógica pampenalista, punitivista, <strong>de</strong> eficientismo penalque, segundo Juarez Cirino dos Santos, <strong>de</strong>m<strong>on</strong>stra ainda acreditarna “pena como forma <strong>de</strong> combate à criminalida<strong>de</strong>, quando ninguémmais em criminologia acredita nisso” (2012, p. 3).Até mesmo <strong>de</strong> um p<strong>on</strong>to <strong>de</strong> vista meramente utilitário, a criminologiajá <strong>de</strong>m<strong>on</strong>strou que antes <strong>de</strong> criminalizar <strong>de</strong>ve-se c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rar arelação custo/benefício e que jamais se <strong>de</strong>ve criminalizar quando:“1. Os custos da criminalização são maiores do que os da<strong>de</strong>scriminalização (avaliados os custos individuais e sociaisda perda da liberda<strong>de</strong>, os custos para a Administração daJustiça Penal e os dos possíveis efeitos colaterais, como a corrupçãopolicial).2. Quando há meios menos caros, com melhores resultados,especialmente, levando em c<strong>on</strong>ta que a criminalização transfereà socieda<strong>de</strong> custos que estão em mãos particulares”(CASTRO, 1980, p.26).1 Art. 258: Explorar jogos <strong>de</strong> azar e a lotérica <strong>de</strong>nominada jogo do bicho, sem autorização legal regulamentar.Pena: Prisão, <strong>de</strong> 1 a 2 anos.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 239-250, out.-<strong>de</strong>z. 2012 239


Em que pese tal advertência, com a crise do sistema ec<strong>on</strong>ômico-socialque emerge dos problemas da globalização neoliberal e da impotênciado sistema político em mediar os c<strong>on</strong>flitos advindos <strong>de</strong>ssa nova forma<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, o eficientismo penal, verda<strong>de</strong>ira moléstia do direitopenal mo<strong>de</strong>rno, c<strong>on</strong>forme assinala Alessandro Baratta, “não resp<strong>on</strong><strong>de</strong>cognitivamente, mas sim normativamente, quer dizer, se nega a apren<strong>de</strong>re, em vez <strong>de</strong> buscar outras respostas mais eficazes, trata <strong>de</strong> tornar maisefetiva a resposta penal, aumentando a intensida<strong>de</strong> ainda que a custo dajustiça”(BARATTA, 1997, p. 65)Nessa via, os c<strong>on</strong>flitos sociais são absolutizados mediante polarizaçãoi<strong>de</strong>ológica entre “bem” e “mal”, também se <strong>de</strong>sc<strong>on</strong>textualizam e se<strong>de</strong>spolitizam, sendo compreendidos tão somente sob a perspectiva criminale, finalmente, promove-se a tecnização dos c<strong>on</strong>flitos como c<strong>on</strong>sequênciada sua <strong>de</strong>spolitização, <strong>de</strong> modo a engendrar o seguinte paradoxo:ao aumentar o número <strong>de</strong> previsões <strong>de</strong> pena, aumenta-se a impunida<strong>de</strong>que, mesmo num direito penal normal, corresp<strong>on</strong><strong>de</strong> a “uma porcentagemaltíssima dos casos penalmente relevantes”. Portanto, por um lado, se osprogramas <strong>de</strong> ação do sistema <strong>de</strong> justiça criminal possuíssem recursosque corresp<strong>on</strong><strong>de</strong>ssem às suas previsões legais <strong>de</strong> criminalização, ocorreriauma “total militarização da socieda<strong>de</strong>”. Por outro, diante da impossívelexistência <strong>de</strong> recursos a<strong>de</strong>quados ao seu imenso programa <strong>de</strong> criminalização,o eficientismo provoca um elevado grau <strong>de</strong> “seletivida<strong>de</strong> estruturaldo sistema punitivo”. (BARATTA, 1997, p. 66)Tanto uma quanto a outra situação <strong>de</strong>m<strong>on</strong>stram a armadilha querepresenta uma aposta na criminalização como forma <strong>de</strong> solução dos c<strong>on</strong>flitos,mas é nesse sentido que caminha o anteprojeto do Código Penal, inclusiveno que se refere às infrações penais <strong>de</strong> menor potencial ofensivo,como é o caso dos jogos <strong>de</strong> azar, que se preten<strong>de</strong> criminalizar.Os argumentos favoráveis à criminalização dos jogos <strong>de</strong> azar po<strong>de</strong>mser assim resumidos:1. O problema é a criminalida<strong>de</strong> que circunda a c<strong>on</strong>travenção; portrás <strong>de</strong>la existe uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> criminalida<strong>de</strong> organizada, tráfico <strong>de</strong> drogas,c<strong>on</strong>trabando <strong>de</strong> máquinas caça-níqueis, tráfico <strong>de</strong> armas, lavagem <strong>de</strong>dinheiro, organizações criminosas, homicídios na disputa por território,240R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 239-250, out.-<strong>de</strong>z. 2012


corrupção policial e <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>s públicas nos Po<strong>de</strong>res Executivo, Legislativoe Judiciário. Nos dois primeiros, há relatos <strong>de</strong> financiamento <strong>de</strong>campanhas políticas e, no último, <strong>de</strong> supostas vendas <strong>de</strong> liminares.2. A legalização estimularia o vício, que resultaria em tragédias pessoaispara os jogadores compulsivos e seus familiares.3. A polícia se sente <strong>de</strong>smoralizada porque pren<strong>de</strong> um “ap<strong>on</strong>tador”e no outro dia ele está solto.4. Por se tratar <strong>de</strong> c<strong>on</strong>travenção, hoje não é possível utilizar outrastécnicas <strong>de</strong> investigação (ex. escuta telefônica). Se for legalizado, ficaráainda mais difícil para os policiais e promotores <strong>de</strong> justiça realizarem afiscalização da lavagem <strong>de</strong> dinheiro nos jogos.A lei que prevê a criminalização dos jogos <strong>de</strong> azar c<strong>on</strong>stitui verda<strong>de</strong>irac<strong>on</strong>tradição à realida<strong>de</strong> social em dois âmbitos: 1) A realida<strong>de</strong> social dofunci<strong>on</strong>amento do sistema <strong>de</strong> justiça criminal; 2) A realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma práticasocial instituci<strong>on</strong>alizada dos jogos <strong>de</strong> azar, em especial o jogo do bicho. A<strong>de</strong>speito das valorações morais negativas que são atribuídas ao jogo, ele jáse tornou um costume centenário a se c<strong>on</strong>fundir com a história e a culturado nosso país. Criminalizar o jogo é quase como criminalizar o samba.Costume, no sentido sociológico, é “qualquer atitu<strong>de</strong>, esquema ouprojeto <strong>de</strong> comportamento que seja compartilhado por vários membros<strong>de</strong> um grupo. Vico já aplicava essa palavra nesse sentido: ‘É frase digna <strong>de</strong>c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>ração a <strong>de</strong> Di<strong>on</strong> Cássio: que o costume se assemelha ao rei e a leiao tirano;’” (ABBAGNANO, 1998, p. 218). 2 No caso do jogo do bicho, cujaprática, apesar do proibici<strong>on</strong>ismo, mantém-se instituci<strong>on</strong>alizada há 120anos, po<strong>de</strong>-se dizer que o rei (costume) governa pela tradição, pelo c<strong>on</strong>sentimentoe a lei (tirano), pela força, c<strong>on</strong>tra a tradição. Criminalizar, nestecaso, é submeter-se à tirania dos cruzados morais, que estão sempreno nível mais elevado da estrutura social e assim legitimam sua posiçãomoral (BECKER, 1991, p. 149).C<strong>on</strong>forme ensina Rosa Del Olmo, “a produção dos discursos é umaprática orientada pela estrutura social que inclui elementos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e <strong>de</strong>c<strong>on</strong>trole”. Por esta razão, é necessário analisar o papel dos “empresários2 “Na linguagem c<strong>on</strong>temporânea, com o termo costume <strong>de</strong>signam-se os usos (folkways), as c<strong>on</strong>venções e comportamentosmoralmente prescritos, que se distinguem pelas diferentes intensida<strong>de</strong>s das sanções que o reforçam.”(p. 218)R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 239-250, out.-<strong>de</strong>z. 2012 241


morais” que organizam o discurso a partir dos sentimentos do público,dos “empresários da repressão”, que aplicam as regras e legitimam apolítica criminal, assim como os “empresários da comunicação”, <strong>de</strong>tentores<strong>de</strong> técnicas capazes <strong>de</strong> ampliar o sentimento do pânico social. Paraalém dos efeitos simbólicos <strong>de</strong> seus supostos empreendimentos “c<strong>on</strong>tra omal”, eles possuem interesses instrumentais na ampliação das suas competências(OLMO, 2003, p. 119).O único setor em que não é feita a exigência <strong>de</strong> indicar os meios a seremutilizados para financiar as novas medidas legislativas é o penal. Assim,criminaliza-se sem acrescentar recursos e quanto maior for a dificulda<strong>de</strong> orçamentária,maior será a pressão para criminalizar. A criminalização, nessesentido, permite o adiamento dos custos (HULSMAN, 1973, p. 13).Criminalizar tornou-se o verda<strong>de</strong>iro mote <strong>de</strong> um Estado que reduzpolíticas públicas para inclusão social e seleci<strong>on</strong>a os excluídos como inimigosa serem perseguidos e encarcerados. On<strong>de</strong> a ec<strong>on</strong>omia formal sereduz, há uma tendência ao aumento da ec<strong>on</strong>omia informal, que ocupa oseu lugar, pois o ser humano é um sujeito portador <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>s reais.Alessandro Baratta se refere ao homem em sua existência c<strong>on</strong>creta, em<strong>de</strong>terminadas relações sociais, como portador <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>s reais asquais, a partir <strong>de</strong> uma perspectiva dinâmica, po<strong>de</strong>m variar c<strong>on</strong>forme oc<strong>on</strong>texto histórico-social: “Po<strong>de</strong>mos assim <strong>de</strong>finir as necessida<strong>de</strong>s reaiscomo as potencialida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> existência e <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida das pessoas,dos grupos e dos povos, que corresp<strong>on</strong><strong>de</strong>m a um <strong>de</strong>terminado grau<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento da capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> produção material e cultural emuma formação ec<strong>on</strong>ômico-social”. A pena é a violência instituci<strong>on</strong>al quegarante a reprodução da violência estrutural ao mesmo tempo em quereprime as necessida<strong>de</strong>s reais. A violência estrutural é a f<strong>on</strong>te direta ouindireta <strong>de</strong> todas as outras violências (individual, <strong>de</strong> grupo, instituci<strong>on</strong>al,internaci<strong>on</strong>al), sendo que a violência c<strong>on</strong>stitui repressão das necessida<strong>de</strong>sreais, portanto, dos direitos humanos (BARATTA, 2004 b, p. 337).Essa violência estrutural que atinge os portadores <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>sreais em todo o globo fica muito bem caracterizada por Loic Wacquant ao<strong>de</strong>screver o processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sdiferenciação e <strong>de</strong> informalização ec<strong>on</strong>ômicanos guetos negros dos Estados Unidos:242R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 239-250, out.-<strong>de</strong>z. 2012


“Além da ec<strong>on</strong>omia da droga e do trabalho informal – cujo<strong>de</strong>senvolvimento é visível em outros setores da ec<strong>on</strong>omianorte-americana, inclusive os mais avançados – o coraçãodo gueto assistiu a uma proliferação <strong>de</strong> pequenos ‘negócios’subproletários típicos das cida<strong>de</strong>s do Terceiro Mundo: comerciantes<strong>de</strong> rua, ven<strong>de</strong>dores <strong>de</strong> jornais, cigarros ou refrigerantespor unida<strong>de</strong>, carregadores, manobristas, diaristas etc.Não existe área do South Si<strong>de</strong> sem táxis clan<strong>de</strong>stinos, mecânicasilegais, clubes noturnos e meninos que se oferecempara carregar sacolas na saída do supermercado local ou enchero tanque do carro no posto <strong>de</strong> gasolina, em troca <strong>de</strong> algunstrocados. Tudo po<strong>de</strong> ser comprado ou vendido nas ruas,<strong>de</strong>s<strong>de</strong> bolsas Louis Vuitt<strong>on</strong> falsificadas (a 25 dólares cada),até carros roubados, armas(trezentos dólares por uma arma‘limpa’, em geral, ou a meta<strong>de</strong> por uma ‘suja’), roupas com<strong>de</strong>feito, comida caseira e bijuterias. A ec<strong>on</strong>omia dos jogos <strong>de</strong>azar – bingos, loterias, loto, jogos ilegais <strong>de</strong> cartas e dados– não c<strong>on</strong>hece recessão. O <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>ssa ec<strong>on</strong>omiairregular paralela está intimamente ligado à <strong>de</strong>sintegraçãodo espaço público e à <strong>de</strong>spacificação da socieda<strong>de</strong> local.Segundo o antropólogo Philippe Bourgois, as ruas do guetotornaram-se um cadinho da “cultura do terror”, que crescefunci<strong>on</strong>almente com o tráfico <strong>de</strong> drogas” (WACQUANT, 2008,p. 41-42). (sem grifos no original)A criminalização não é capaz <strong>de</strong> resolver c<strong>on</strong>flitos <strong>de</strong> tal or<strong>de</strong>m, aoc<strong>on</strong>trário, ela intensifica os problemas sociais, transforma o marginalizadosocial em marginalizado criminal. Daí a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensar sobreos custos sociais e individuais da criminalização, segundo a preleção dosaudoso abolici<strong>on</strong>ista Louk Hulsman. Para ele, no âmbito social, a criminalizaçãodistorce qualquer visão mais realista sobre o homem e a socieda<strong>de</strong>porque mantém ou gera o entendimento <strong>de</strong> que: a) um problema socialenc<strong>on</strong>tra solução ao se punir <strong>de</strong>terminado comportamento, impedindo,assim, que se lance mão <strong>de</strong> alternativas melhores; b) que a criminalida<strong>de</strong>é um dos maiores problemas sociais e assim ocasi<strong>on</strong>a a diminuição <strong>de</strong>recursos para a solução <strong>de</strong> problemas bem mais graves. Em nosso país,po<strong>de</strong>mos citar alguns <strong>de</strong>les: a precarieda<strong>de</strong> do sistema <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> para otrabalhador, o sucateamento das escolas e universida<strong>de</strong>s públicas, porR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 239-250, out.-<strong>de</strong>z. 2012 243


exemplo. Além disso, ainda na esfera social, a criminalização promove ocomportamento <strong>de</strong>sviante secundário (uma vez que se tenha passagempelo sistema <strong>de</strong> justiça criminal, agrava-se a probabilida<strong>de</strong> do <strong>de</strong>senvolvimento<strong>de</strong> uma carreira criminal) e, finalmente, a criminalização colocaobstáculos à assistência da vítima <strong>de</strong> certas formas <strong>de</strong> criminalida<strong>de</strong> (HUL-SMAN, 1973, p. 8-10).No que se refere aos custos no âmbito individual, subestima-se: a)“a duração e a intensida<strong>de</strong> dos efeitos adversos da estigmatização penal”para o indivíduo e seus familiares, os quais normalmente se enc<strong>on</strong>tramem situação social adversa permanente ou muito prol<strong>on</strong>gada; b) o fato<strong>de</strong> que circunstâncias <strong>de</strong> adversida<strong>de</strong> 3 que po<strong>de</strong>m estar na origem do atocriminoso são agravadas pela <strong>de</strong>letéria intervenção penal; c) que o indivíduo,sobretudo no caso <strong>de</strong> aplicação <strong>de</strong> penas privativas <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>,po<strong>de</strong> ter reduzida a sua adaptabilida<strong>de</strong> no meio social (HULSMAN, 1973,p. 8-10).Com base nessa avaliação sobre os custos sociais e individuais dacriminalização, c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>ramos mais realista a opção pela legalização dosjogos <strong>de</strong> azar, os quais <strong>de</strong>vem se submeter a uma intensa fiscalização eregulamentação. Pelas seguintes razões:1. A prática dos jogos <strong>de</strong> azar é socialmente aceita e está arraigadanos costumes da socieda<strong>de</strong>. O jogo do bicho existe há mais <strong>de</strong> um século(<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1892), tendo se tornado c<strong>on</strong>travenção em 1941. Ele faz parte dacultura, já se tornou um folclore na nossa socieda<strong>de</strong>. A lei penal não temo po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> revogar a lei ec<strong>on</strong>ômica da oferta e da procura. Se a <strong>de</strong>mandanão for suprida pelo mercado lícito, será suprida pelo mercado ilícito, aliás,como ficou <strong>de</strong>m<strong>on</strong>strado no texto <strong>de</strong> Loïc Wacquant, supracitado, nãoexiste recessão para jogos <strong>de</strong> azar, sobretudo diante da informalização daec<strong>on</strong>omia em tempos <strong>de</strong> globalização neoliberal.2. Os <strong>de</strong>mais crimes que circundam a c<strong>on</strong>travenção (especialmentea violência e a corrupção) advêm da própria ilegalida<strong>de</strong>. Pelo fato <strong>de</strong> nãoser legalizado, há dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> soluci<strong>on</strong>ar os c<strong>on</strong>flitos mediante mecanismosjudiciais, o que engendra a violência, tal como ocorre no tráfico <strong>de</strong>drogas, em razão da disputa territorial no mercado ilícito.3 Segundo Juarez Cirino dos Santos , “As c<strong>on</strong>tradições do capitalismo explicam que o mesmo processo que vincula otrabalhador no trabalho, aceitando a brutalização <strong>de</strong> sua ‘canga pessoal’, dirige o <strong>de</strong>sempregado/marginalizado parao crime, aceitando os riscos da criminalização: a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sobrevivência em c<strong>on</strong>dições <strong>de</strong> privação material”(2006, p. 40).244R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 239-250, out.-<strong>de</strong>z. 2012


3. Trata-se <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> hipocrisia haver jogos promovidos peloEstado (loterias estaduais e fe<strong>de</strong>rais), e criminalizar-se os jogos <strong>de</strong> azar.O Estado quer ter o m<strong>on</strong>opólio dos jogos <strong>de</strong> azar? Se o próprio Estadorealiza jogos <strong>de</strong> azar, por que não legalizá-los <strong>de</strong>finitivamente? Nestecaso, a preocupação com o jogador compulsivo não po<strong>de</strong> ser utilizadacomo escusa, já que o próprio Estado realiza jogos <strong>de</strong> azar.4. Se o jogador for compulsivo, ele fará as apostas entre um grupo<strong>de</strong> amigos, na sala da sua casa ou em qualquer outro lugar, na clan<strong>de</strong>stinida<strong>de</strong>.Se ele realizar um bingo com a participação da vizinhança, aindacorrerá o risco <strong>de</strong> resp<strong>on</strong><strong>de</strong>r pelo crime <strong>de</strong> lavagem <strong>de</strong> dinheiro, cujapena mínima é <strong>de</strong> 3 (três) anos, c<strong>on</strong>forme a Lei 12.683/12, que alteraa Lei 9.613/98. Existem os alcoólatras e o c<strong>on</strong>sumo da bebida alcoólicanão é proibida. Existem os que bebem, comem, se drogam, fazem sexocompulsivamente, então o Estado <strong>de</strong>veria também c<strong>on</strong>trolar os menusdos restaurantes e tudo o mais que diga respeito à privacida<strong>de</strong>, à esferaíntima do indivíduo?5. As prisões, c<strong>on</strong>forme ficou <strong>de</strong>m<strong>on</strong>strado no relatório da CPI dosistema carcerário (“O grito das prisões”), já estão explodindo. 4 A criminalizaçãodos jogos <strong>de</strong> azar só vai aumentar o número <strong>de</strong> encarceramentos;são muitos os miseráveis que sobrevivem como ap<strong>on</strong>tadores do jogo dobicho em quase todos os Estados <strong>de</strong>ste país. Para se ter uma i<strong>de</strong>ia, em2008, a Justiça Fe<strong>de</strong>ral proibiu o jogo do bicho em Pernambuco. Houveuma passeata com mais <strong>de</strong> 20 mil pessoas, e, à época, chegou-se à c<strong>on</strong>clusão<strong>de</strong> que o jogo fomentava o trabalho direto e indireto <strong>de</strong> aproximadamente50 mil pessoas. O que fazer com esse c<strong>on</strong>tingente <strong>de</strong> sereshumanos que sobrevive no mercado informal? Em entrevistas, algunsap<strong>on</strong>tadores do jogo do bicho disseram que fora <strong>de</strong>ssa ativida<strong>de</strong> não têmcomo sobreviver, pois ninguém daria trabalho para alguém que não possuiqualificação. Mulheres diziam sustentar toda a família (pagar aluguel,água, luz, escola dos filhos e até o INSS, na ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “ap<strong>on</strong>tadora”).Qual o <strong>de</strong>stino a ser dado a essas pessoas: a prisão ou a morte à míngua?Ou seria mais c<strong>on</strong>veniente para a socieda<strong>de</strong> que, em vez <strong>de</strong> serem4 Segundo o relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), na AméricaLatina o problema da violência e da superpopulação nas prisões é endêmico. Em média, as prisões exce<strong>de</strong>m 30% asua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> abrigar presos e, em muitos casos, exce<strong>de</strong>m até 100%, razão pela qual coleci<strong>on</strong>amos inúmerastragédias no sistema penitenciário. (RIVAS, 2012)R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 239-250, out.-<strong>de</strong>z. 2012 245


ap<strong>on</strong>tadores do jogo do bicho, esses indivíduos praticassem <strong>de</strong>litos maisgraves, tais como, sequestros, assaltos, latrocínios etc.?6. A criminalização tornaria o negócio ainda mais lucrativo para omercado <strong>de</strong> ilicitu<strong>de</strong>s, para os que estão no topo da organização. Nestecaso, sim, po<strong>de</strong>ria se tornar um negócio para as máfias, tal como ocorreucom a Lei Seca nos EUA, ou como ocorre com a “guerra às drogas” noBrasil que, apesar <strong>de</strong> todo proibici<strong>on</strong>ismo e militarização da segurançapública, não atingiu o objetivo <strong>de</strong> redução do c<strong>on</strong>sumo <strong>de</strong> drogas: somoso segundo maior c<strong>on</strong>sumidor <strong>de</strong> cocaína no planeta. Para quem duvida<strong>de</strong>stes argumentos, basta relembrar o diálogo entre o Carlinhos Cachoeirae o ex-Senador Demóstenes Torres, em que o bicheiro afirma claramenteque <strong>de</strong>seja a criminalização:“Cachoeira: Oi, doutor.Demóstenes: Fala, professor. Eu peguei o texto, <strong>on</strong>tem, da leipra analisar, é aquela que transforma c<strong>on</strong>travenção em crime.Que importância tem a aprovação disso?Cachoeira: É bom <strong>de</strong>mais, mas aí também regulamenta asestaduais, uai.Demóstenes: Regulamenta não. Vou mandar o texto pravocê. O que tá aprovado lá é o seguinte: transforma em crimequalquer jogo que não tenha autorização. Então, inclusive, tepega, né?Cachoeira: Não, mas essa aí é boa também. É bom fazer isso.Não pega ninguém, não. Po<strong>de</strong> mandar brasa aí” (YOUTUBE/JORNAL NACIONAL, 2012).Os que estão na cúspi<strong>de</strong> da pirâmi<strong>de</strong> do mercado <strong>de</strong> ilicitu<strong>de</strong>s sãodiretamente beneficiados pelo endurecimento da lei penal, e não lhes interessaa legalização. C<strong>on</strong>forme ensina Vincenzo Ruggiero, os possuidores<strong>de</strong> maiores recursos têm mais chances <strong>de</strong> “atribuir <strong>de</strong>finições criminaisaos outros e repelir aquelas que os outros lhes atribuem” ( 2008, p. 191).Essas diversas operações m<strong>on</strong>tadas para pren<strong>de</strong>r os bicheiros vão c<strong>on</strong>se-246R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 239-250, out.-<strong>de</strong>z. 2012


guir apenas pegar alguns “bo<strong>de</strong>s expiatórios”, que o próprio mercado <strong>de</strong>ilicitu<strong>de</strong>s se encarregará <strong>de</strong> substituir com o tempo. São recursos públicosdireci<strong>on</strong>ados à repressão que, além <strong>de</strong> dispendiosa, é ineficaz.7. Com a legalização, haveria: a) tributação (hoje, meta<strong>de</strong> do dinheirodas loterias oficiais é repassada para o governo); b) geração <strong>de</strong> emprego(com pagamento <strong>de</strong> encargos trabalhistas); c) redução da violênciaporque as disputas po<strong>de</strong>rão ser resolvidas pelo Judiciário, eliminando asdisputas territoriais na base do tiroteio. Enquanto, ao c<strong>on</strong>trário, a criminalizaçãoresulta mais violência e mais corrupção.8. Embora a “operação <strong>de</strong>do <strong>de</strong> Deus” tenha divulgado que os resultadosdo jogo do bicho são manipulados, a credibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste entrea população, durante mais <strong>de</strong> um século, advém do fato <strong>de</strong> que o jogoh<strong>on</strong>ra o pagamento do prêmio. Além disso, é notória a existência <strong>de</strong> escândalosreferentes à manipulação dos resultados dos jogos nas loteriasestatais.9. O que as agências policiais reivindicam: uso <strong>de</strong> outras técnicas<strong>de</strong> investigação (a exemplo da escuta telefônica) para atingir essa criminalida<strong>de</strong>que circunda o jogo do bicho vai ao enc<strong>on</strong>tro exatamente daquiloque Zaffar<strong>on</strong>i <strong>de</strong>nomina “po<strong>de</strong>r c<strong>on</strong>figurador positivo” do sistema <strong>de</strong>justiça criminal. Há uma tal expansão do po<strong>de</strong>r das agências <strong>de</strong> c<strong>on</strong>trolepenal, que, sob o pretexto <strong>de</strong> “prevenir, vigiar e investigar” torna-se umpo<strong>de</strong>r subterrâneo imenso, “marginal”, que leva à prática <strong>de</strong> mais <strong>de</strong>litos(e ainda mais graves) para “perseguir” outros, <strong>de</strong> menor potencial ofensivo.Um po<strong>de</strong>r que se afigura como Estado <strong>de</strong> polícia (ZAFFARONI, 2006,p. 52-53).10. Recursos já escassos das agências oficiais <strong>de</strong> c<strong>on</strong>trole penal seriam<strong>de</strong>sviados da persecução <strong>de</strong> crimes mais graves para combater crimesmenos graves.Legalizar é a única solução a ser obtida em c<strong>on</strong>s<strong>on</strong>ância com a realida<strong>de</strong>social, que não po<strong>de</strong> ser mudada a “golpes <strong>de</strong> marreta”, enquantoa criminalização é uma solução apenas aparente, pela qual se paga umpreço muito elevado: o aumento da violência instituci<strong>on</strong>al, da intolerância,do Estado policial e, c<strong>on</strong>sequentemente, redução dos direitos e garantiasindividuais do cidadão.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 239-250, out.-<strong>de</strong>z. 2012 247


Segundo Foucault, “o que há <strong>de</strong> mais perigoso na violência é a suaraci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>. A violência é terrível em si mesma. Mas a violência enc<strong>on</strong>trasua mais profunda ancoragem na forma <strong>de</strong> raci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong> que utilizamos.[...] Não há incompatibilida<strong>de</strong> entre a violência e a raci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>” (FOU-CAULT, 2011, p. 78). Essas palavras <strong>de</strong> Foucault fizeram ress<strong>on</strong>ância com aseguinte manchete <strong>de</strong> jornal lida nesta madrugada: “Rota mata 9 em SãoPaulo”, e o governador Alckmin disse: “Quem não reagiu está vivo”! 5Nessa esteira, o <strong>de</strong>bate sobre a <strong>de</strong>scriminalização, c<strong>on</strong>forme ensinaLola Aniyar <strong>de</strong> Castro, <strong>de</strong>ve ser “um <strong>de</strong>bate sobre a hipocrisia dos CódigosPenais, sobre a sua máscara <strong>de</strong> papel”, esta é a discussão que <strong>de</strong>vemosempreen<strong>de</strong>r (CASTRO, 1980, p. 27).Referências:ABBAGNANO, Nicola. Dici<strong>on</strong>ário <strong>de</strong> Filosofia. São Paulo: Martins F<strong>on</strong>tes,1998.BARATA, Alessandro. "Defesa dos direitos humanos e política criminal". In:<str<strong>on</strong>g>Revista</str<strong>on</strong>g> Discursos Sediciosos, n. 3, Rio <strong>de</strong> Janeiro: Revan, 1997. (p. 57- 69).BARATTA, Alessandro. "Política criminal: entre la política <strong>de</strong> seguridad y lapolítica social". In: ELBERT, Carlos Alberto. Criminología y sistema penal:compilación in memoriam. Buenos Aires: B <strong>de</strong> F, 2004 a, p. 152-167.BARATTA, Alessandro. Derechos humanos: entre violencia estructural yviolencia penal. Por la pacificación <strong>de</strong> los c<strong>on</strong>flictos violentos. Criminologiay sistema penal. Buenos Aires: B <strong>de</strong> F, 2004b, p.334-356.BECKER, Howard. Outsi<strong>de</strong>rs: studies in the sociology of <strong>de</strong>viance. NewYork: Freee Press, 1991.CASTRO, Lola Aniyar <strong>de</strong>. "Sistema penal e sistema social: a criminalizaçãoe a <strong>de</strong>scriminalização como funções <strong>de</strong> um mesmo processo". <str<strong>on</strong>g>Revista</str<strong>on</strong>g> <strong>de</strong>Direito Penal. Rio <strong>de</strong> Janeiro: <str<strong>on</strong>g>Revista</str<strong>on</strong>g> Forense, 1981, n. 30, p. 11- 27.5 IG NOTÌCIAS (“’quem não reagiu está vivo’, afirma Alckmin sobre ação da Rota em São Paulo”), disp<strong>on</strong>ível em,acesso em 12/09/2012.248R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 239-250, out.-<strong>de</strong>z. 2012


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A relação entre o DireitoPenal e o Processo Penal noprojeto do novo Código Penal:c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rações geraisIntroduçãoProf. Dr. Geraldo PradoDesembargardor (aposentado) do TJ/RJ.Graduado pela UERJ. Mestrado e Doutorado na Universida<strong>de</strong>Gama Filho - UGF. Pós-doutorado pela Universida<strong>de</strong><strong>de</strong> Coimbra. professor da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direitoda UFRJ e da EMERJBoa-tar<strong>de</strong>! Agra<strong>de</strong>ço à Escola da Magistratura, ao prof. JuarezTavares, ao prof. Des. Paulo Bal<strong>de</strong>z e ao juiz <strong>de</strong> direito e professor RubensCasara o gentil c<strong>on</strong>vite.Tenho a h<strong>on</strong>ra e o prazer <strong>de</strong> dividir a mesa com a profª KátieArguello e <strong>de</strong> estar sendo presidido pela profª Victória Sulocki, importanteinvestigadora do Grupo <strong>de</strong> Pesquisas sobre as Matrizes Autoritárias doProcesso Penal Brasileiro, instituído no âmbito da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>raldo Rio <strong>de</strong> Janeiro (UFRJ) 1 .Para sublinhar a importância das pesquisas que são <strong>de</strong>senvolvidaspelo Grupo Matrizes, <strong>de</strong>staco que há um subgrupo, inspirado nas traduçõesbastante oportunas, coor<strong>de</strong>nadas pelo Prof. Eugênio Raúl Zaffar<strong>on</strong>i,<strong>de</strong> obras penais significativas do Direito Penal da Alemanha no períododos anos 30 a 40 do século XX e que estuda o Direito Penal do nazismo(Coleção “El penalismo olvidado”). Há também outro subgrupo quetrabalha na tradução do livro The rule of law un<strong>de</strong>r siege 2 , <strong>de</strong> Franz L.Neumann e Otto Kirchheimer, igualmente sobre o Direito Penal do nazismo.Estes são apenas alguns exemplos das ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>senvolvidas e1 http://gpgrupo<strong>de</strong>estudos.blogspot.com.br/.2 The rule of law un<strong>de</strong>r siege. Los Angeles: University of California Press, 1996.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 251-2<str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, out.-<strong>de</strong>z. 2012 251


que me autorizam a ap<strong>on</strong>tar, como c<strong>on</strong>clusão parcial das investigações, apercepção do tipo <strong>de</strong> raci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong> que tem estado na base da violência<strong>de</strong> Estado e sustenta tantas formas <strong>de</strong> agressão à dignida<strong>de</strong> das pessoas.Faço o registro como dado preliminar das c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rações acerca darelação estabelecida no projeto <strong>de</strong> novo Código Penal entre o DireitoPenal e o Processo Penal.Da interface Direito Penal/Processo Penal nos CódigosPenaisEm um enc<strong>on</strong>tro <strong>de</strong> penalistas e criminólogos, eu, como alguéminteressado em estudar preferencialmente o Direito Processual Penal, po<strong>de</strong>riame sentir profundamente <strong>de</strong>sc<strong>on</strong>fortável, alheio talvez à temáticaprincipal, e neste caso, registro com certa ir<strong>on</strong>ia, estaria em igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong>c<strong>on</strong>dições com as regras projetadas <strong>de</strong> processo penal que c<strong>on</strong>stam doProjeto <strong>de</strong> Reforma do Código Penal.Com uma diferença, porém: pelo menos eu sei o que estou fazendoaqui, o que já é algo significativo!Corro o risco <strong>de</strong> cansá-los com uma pequena metáfora, mas pensoque é necessário, pois toca em um aspecto <strong>de</strong>sc<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rado pela dogmática,mas que é relevante no momento em que se cogita substituir porinteiro um Código Penal: trata-se da (não) aplicação da teoria da legislaçãoe, c<strong>on</strong>sequentemente, da(s) técnica(s) legislativa(s).Vamos imaginar que a dois importantes arquitetos, Lúcio Costa eOscar Niemeyer, seja dirigida a <strong>de</strong>manda <strong>de</strong> projetar, pensar, i<strong>de</strong>alizar um<strong>de</strong>terminado bairro.Sabe-se que se trata <strong>de</strong> profissi<strong>on</strong>ais bastante competentes. Apesardisso, ambos somente po<strong>de</strong>rão cumprir a tarefa que lhes foi <strong>de</strong>signada sealguns p<strong>on</strong>tos previamente forem esclarecidos: Qual a extensão do bairroprojetado? Quem viverá nesse lugar? Essas pessoas morarão no bairro ousomente circularão por ele, que será um bairro comercial? Qual a forma<strong>de</strong> circulação? São trezentas mil pessoas e a extensão é <strong>de</strong> seis quilômetrosquadrados? São quinhentas pessoas e a extensão é <strong>de</strong> doze, vinte, trintaquilômetros quadrados? Essas pessoas se moverão <strong>de</strong> que maneira?Essas questões que os arquitetos colocarão aos <strong>de</strong>mandantes são<strong>de</strong> índole política e a resposta é indispensável para que possam elaboraro projeto.252R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 251-2<str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, out.-<strong>de</strong>z. 2012


Isso também se dá no campo da legislação. É indiscutível que a tarefaatribuída ao C<strong>on</strong>gresso Naci<strong>on</strong>al tem cunho político, mas tambémtem natureza técnica.Por isso, quando se trata <strong>de</strong> um novo Código Penal, e a palavra código<strong>de</strong>ve ser interpretada neste c<strong>on</strong>texto como dispositivo <strong>de</strong> acesso auma <strong>de</strong>terminada realida<strong>de</strong> (pensem, por exemplo, no código do cartãobancário), há <strong>de</strong> se buscar c<strong>on</strong>struir um c<strong>on</strong>senso alargado sobre em quec<strong>on</strong>siste esta realida<strong>de</strong>.O profissi<strong>on</strong>al resp<strong>on</strong>sável pela elaboração do projeto <strong>de</strong> bairro diz:“eu só posso elaborar um código, um projeto ou uma planta, se eu souberexatamente o que se quer”. E saber o que se quer implica tomar <strong>de</strong>cisõespolíticas, fazer escolhas!Ainda no campo das metáforas, c<strong>on</strong>vém <strong>de</strong>stacar que Lenio Streckcita também, com certa frequência, o pers<strong>on</strong>agem Sr. Jourdain, da peça“O burguês fidalgo”, <strong>de</strong> Molière, que havia ascendido socialmente e estavainteressado em compartilhar as benesses da aristocracia, mesmo nãosendo aristocrata.Jourdain, então, começa a estudar boas maneiras para tentar c<strong>on</strong>viverali no meio aristocrático. Assim, estuda literatura e filosofia e quaseaos sessenta anos <strong>de</strong>scobre, para seu espanto, em uma aula <strong>de</strong> francês,que passara a vida falando em prosa e não sabia!Os projetistas do Anteprojeto do Código Penal parece que estãocomo Jourdain; <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> anunciarem <strong>de</strong>sapego às teorias penais durantea elaboração do texto, <strong>de</strong>scobriram que fizeram teoria mesmo sem saber.Mas teoria <strong>de</strong> que tipo?Da ativida<strong>de</strong> antece<strong>de</strong>nte ao processo legislativoÉ impossível elaborar qualquer projeto estrutural sobre o que querque seja sem domínio técnico sobre o tema e <strong>de</strong>mitindo-se <strong>de</strong> opçõespolíticas.Em matéria <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> punir c<strong>on</strong>trolado pelo Direito – pois que oDireito Penal da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> se caracteriza pelo estabelecimento <strong>de</strong> vínculofunci<strong>on</strong>al entre o po<strong>de</strong>r e as pessoas, c<strong>on</strong>trolando o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> castigarpara evitar excessos e <strong>de</strong>svios, o saber dogmático abrange <strong>de</strong>terminadopatrimônio teórico que não po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>sprezado e que tem sua históriamarcada pela c<strong>on</strong>vergência das esferas política e jurídica.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 251-2<str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, out.-<strong>de</strong>z. 2012 253


A técnica <strong>de</strong> elaboração <strong>de</strong> tipos penais – tipos <strong>de</strong> injusto; tipos<strong>de</strong> exclusão <strong>de</strong> resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> etc. – se nutre <strong>de</strong>ste saber e exige <strong>de</strong>quem está encarregado <strong>de</strong> elaborar mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> preceitos dispositivosuma aptidão bastante peculiar, um domínio (c<strong>on</strong>sciente) <strong>de</strong>sta técnica.Claro está que esse domínio po<strong>de</strong> ser maior ou menor. Mas a tarefa<strong>de</strong> projetar tipos penais <strong>de</strong>safia alguma dose <strong>de</strong> c<strong>on</strong>hecimento, ao menosdas dificulda<strong>de</strong>s e <strong>de</strong>safios operaci<strong>on</strong>ais na c<strong>on</strong>stituição das proposiçõesnormativas.Quando é esgrimido o discurso da fuga das escolhas políticas, talopção <strong>de</strong>nuncia certa insegurança no domínio da técnica, incerteza sobrea capacida<strong>de</strong> para dar c<strong>on</strong>ta da ativida<strong>de</strong> que foi requisitada. Sinaliza-secom a impossível e in<strong>de</strong>sejada neutralida<strong>de</strong>, como se fosse possível tomar<strong>de</strong>cisões sobre a matéria da proibição fora do âmbito político.Não se trata apenas <strong>de</strong> estratégia orientada a escamotear o elementopolítico nuclear, <strong>de</strong>stacado pela Profª Kátie Arguello no anteprojeto<strong>de</strong> CP, elemento marcado pela adoção <strong>de</strong> uma postura punitiva.Não é somente isso, o que já seria grave, porém legítimo, do meup<strong>on</strong>to <strong>de</strong> vista, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que expressasse <strong>de</strong> maneira explícita a escolha daComissão encarregada <strong>de</strong> c<strong>on</strong>ceber o texto.O Presi<strong>de</strong>nte do Senado reúne pessoas com as quais, em sua maioria,tem afinida<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ológica, pessoas que majoritariamente enten<strong>de</strong>m,<strong>de</strong> maneira estranha, sublinho, que a solução dos nossos problemas passapela incorporação <strong>de</strong> mais e mais atitu<strong>de</strong>s punitivistas, e assim essas pessoasse encarregam <strong>de</strong> produzir um projeto que não po<strong>de</strong> ser outra coisa,senão um projeto punitivista.A <strong>de</strong>cisão relativa à composição da Comissão <strong>de</strong> elaboração do anteprojeto,ao perfil i<strong>de</strong>ológico predominante <strong>de</strong> seus membros, se situana esfera anterior à da c<strong>on</strong>cretização da tarefa <strong>de</strong> c<strong>on</strong>secução do anteprojeto,por óbvio, mas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo indicia os rumos inevitáveis que estetomará.Tomou-se uma <strong>de</strong>cisão pelo viés punitivista, ainda que não manifesta.Assim, o que vamos discutir é um projeto com o protag<strong>on</strong>ismo dai<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> incremento da punição. E as escolhas que em cada p<strong>on</strong>to <strong>de</strong>steprojeto aparecem <strong>de</strong>vem ser <strong>de</strong>batidas em uma arena <strong>de</strong>mocrática,254R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 251-2<str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, out.-<strong>de</strong>z. 2012


<strong>de</strong>vem ser p<strong>on</strong><strong>de</strong>radas, c<strong>on</strong>fr<strong>on</strong>tando-se a <strong>de</strong>cisão pelo incremento dapunição com as alternativas que circulam no “mercado” da dogmáticajurídica em matéria penal que ap<strong>on</strong>tam para a direção c<strong>on</strong>trária.A estrutura <strong>de</strong>ficiente do texto como elemento <strong>de</strong> instabilida<strong>de</strong>Sem dúvida, mesmo a <strong>de</strong>cisão política pela exasperação da puniçãoestá submetida aos princípios c<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>ais penais que estabelecem critériospara c<strong>on</strong>cretização do po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> punir.Quando examino o texto do anteprojeto, o que me surpreen<strong>de</strong>,todavia, é que, para além <strong>de</strong> alguma c<strong>on</strong>sciência da postura punitivista,existe <strong>de</strong>ficiência técnica que o compromete em p<strong>on</strong>tos cruciais e atingealguns <strong>de</strong>stes princípios, que formam a tradição do Direito Penal na <strong>de</strong>mocracia.E aí volto ao segundo elemento da metáfora, que é o “código”.Ainda aqui os que não são motoristas c<strong>on</strong>hecem as regras <strong>de</strong> trânsito.Imaginem que enquanto estamos neste auditório, lá fora, agora, todosos sinais luminosos estão sendo trocados por outros sinais, com diferentesformatos e cores, um azul e triangular, outro roxo e o outro abóbora.Encerrado o Seminário, nós saímos <strong>de</strong> carro e nos <strong>de</strong>paramos comum sinal polig<strong>on</strong>al aceso na cor azul?!O motorista se interroga: “Agora é para seguir ou é para parar?” Ocódigo não é mais código, <strong>de</strong>snorteia em vez <strong>de</strong> orientar.O domínio da dogmática é fundamental para a clarificação das açõespermitidas, proibidas ou mandadas, e o Código <strong>de</strong>ve ser o instrumentodisso. O que estou dizendo é um tanto óbvio, como salientou Francisco <strong>de</strong>Assis Toledo, em Princípios Básicos <strong>de</strong> Direito Penal 3 .Porém, o óbvio não foi c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rado na tarefa <strong>de</strong> elaboração doProjeto.Sem saber interpretar o comando, sem po<strong>de</strong>r atribuir significadoao “código”, em tema tão <strong>de</strong>licado como o da liberda<strong>de</strong>, como o agentepo<strong>de</strong>rá orientar a sua ação? A incerteza sobre o agir é terreno fértil para3 Princípios Básicos <strong>de</strong> Direito Penal, 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 251-2<str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, out.-<strong>de</strong>z. 2012 255


a expansão do <strong>de</strong>cisi<strong>on</strong>ismo e o enfraquecimento da função <strong>de</strong> garantiado tipo penal.O Processo Penal no Direito PenalE isso também se verifica nas hipóteses <strong>de</strong> natureza processualpenal que estão disseminadas no projeto <strong>de</strong> CP.A interface Processo Penal e Direito Penal no Código Penal projetadoé notada e requisita reflexão rigorosa.Não há problema inc<strong>on</strong>tornável, tampouco c<strong>on</strong>stitui pecado mortal,a existência <strong>de</strong> normas processuais penais em um Código Penal.Primeiro, essa pretensão <strong>de</strong> purismo não tem sentido quando lidamoscom saberes que têm como elemento nuclear a restrição da liberda<strong>de</strong>.É inevitável que em qualquer lei, mesmo em um Código Penal, haja p<strong>on</strong>tos<strong>de</strong> c<strong>on</strong>tatos, z<strong>on</strong>as limítrofes nem sempre fáceis <strong>de</strong> c<strong>on</strong>statar, entre oDireito Penal e o Processo Penal.Paul Bockelmann alerta que mesmo no Código Penal alemão po<strong>de</strong>mser enc<strong>on</strong>trados institutos processuais 4 .Invoco as antigas lições <strong>de</strong> Basileu Garcia para menci<strong>on</strong>ar que, <strong>de</strong>acordo com <strong>de</strong>terminado p<strong>on</strong>to <strong>de</strong> vista, há estreitas relações entre oDireito Penal e o Processo Penal, porque “há estreitas relações entre oDireito Penal e o Processo Penal, muito mais estreitas do que as que existementre o Direito Civil e o Processo Civil” 5Bento <strong>de</strong> Faria afirmava que era natural a vinculação da ação penalà c<strong>on</strong>duta criminosa, a qual não era chamada assim por ele, mas tratadacomo c<strong>on</strong>sequência lógica, inexorável, daquela ação ou omissão violadorada norma penal 6 .Tomo esses autores para enfatizar que a i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> necessárioselementos processuais penais em um Código Penal, no passado naturalizadapela doutrina, corresp<strong>on</strong>dia à visão adjetiva e secundária doprocesso que, ao ter a sua aut<strong>on</strong>omia ignorada, prestava-se a ser meroinstrumento da punição a serviço <strong>de</strong> fins securitários <strong>de</strong> política criminal.4 Direito Penal, parte geral. Belo Horiz<strong>on</strong>te: Del Rey, 2007. P. 4.5 Instituições <strong>de</strong> Direito Penal, v. 1, tomo II, 4ª ed. São Paulo: Max Lim<strong>on</strong>ad, 1976, p. 637.6 Código <strong>de</strong> Processo Penal, volume 1, 2ª ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Record, 19<str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 116.256R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 251-2<str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, out.-<strong>de</strong>z. 2012


No passado havia, portanto, uma lógica – hoje inaceitável – por trásda opção metodológica e <strong>de</strong> política criminal e tanto os fundamentos <strong>de</strong>stalógica [raci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>] como da eleição em favor da política <strong>de</strong> segurançase davam a c<strong>on</strong>hecer.Evi<strong>de</strong>nte que, para tanto, c<strong>on</strong>tribuiu a sedução da produção <strong>de</strong> leisem geral, c<strong>on</strong>sistente em uma atração quase fatal por realizar políticacriminal por intermédio da lei que se tem a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> influenciarem seu processo <strong>de</strong> criação. Muitas vezes a política criminal que se temem vista <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong>sta promiscuida<strong>de</strong> <strong>de</strong> normas penais e processuaispenais.O exemplo mais evi<strong>de</strong>nte no projeto é a barganha (art. 105). É omais evi<strong>de</strong>nte, é muito sério, mas do p<strong>on</strong>to <strong>de</strong> vista do processo penal,na minha opinião, o mais preocupante é o “não olhar” a importância dapresunção da inocência na elaboração dos tipos penais 7 .Nada disso é novida<strong>de</strong> quando se estuda teoria da legislação, técnicada legislação aplicada ao sistema <strong>de</strong> justiça criminal às práticas penaise as teorias do tipo. Cito aqui uma obra traduzida que teria sido extremamenteútil aos integrantes da comissão: A Raci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong> das Leis Penais,<strong>de</strong> José Luis Díez Ripollés 8 . Po<strong>de</strong>ria ajudar, pois é mais um norte.O livro <strong>de</strong> Túlio Padovani, Diritto penalle e fattispecie criminose:introduzi<strong>on</strong>e alla parte speciale <strong>de</strong>l diritto penale 9 , em que se trabalha aestruturação do tipo penal, investiga também a existência <strong>de</strong> meios, poreste caminho, para se c<strong>on</strong>tornar a presunção <strong>de</strong> inocência, elaborando-seo preceito dispositivo que c<strong>on</strong>terá o tipo penal <strong>de</strong> tal maneira que, emâmbito processual, será absolutamente impossível provar a não incidência<strong>de</strong> comportamento c<strong>on</strong>creto diverso da c<strong>on</strong>duta típica, os chamadoscrimes <strong>de</strong> suspeita.O crime <strong>de</strong> suspeita é uma elaboração teórica <strong>de</strong> altíssimo nível nosentido da exacerbação da atitu<strong>de</strong> punitivista que o processo penal, comalguma negligência ignora. Deixam-se passar por entre os <strong>de</strong>dos do processopenal estruturas típicas penais que criminalizam pela mera afirmaçãoda existência <strong>de</strong> comportamentos neutros e tornam inviável a exclu-7 Sobre a barganha remeto ao meu livro Transação Penal, 2ª ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Lumen Juris, 2006.8 A raci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong> das leis penais. São Paulo: RT, 2005.9 Diritto penalle e fattispecie criminose: introduzi<strong>on</strong>e alla parte speciale <strong>de</strong>l diritto penale. Bologna: Il Mulino,2006.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 251-2<str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, out.-<strong>de</strong>z. 2012 257


são da criminalida<strong>de</strong>, porque não há possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> prova.O exemplo mais óbvio aqui é o enriquecimento ilícito (art. 277).É possível examinar o protótipo <strong>de</strong> crime <strong>de</strong> enriquecimento ilícitopor vários ângulos, mas se quisermos beneficiar este estudo da c<strong>on</strong>tribuiçãodo processo penal, não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rar os efeitospenais da presunção <strong>de</strong> inocência.E, nesse sentido, há alguma culpa da doutrina processual penal,porque quando os processualistas penais lidam com a presunção <strong>de</strong> inocência,se preocupam muito pouco com os reflexos penais da presunção<strong>de</strong> inocência.Dessa forma, volto a dizer, a tarefa <strong>de</strong> elaboração <strong>de</strong> um projeto<strong>de</strong> Código Penal interpela o saber jurídico e exige que se trabalhe nestecampo no mais alto nível possível, c<strong>on</strong>vocando para a tarefa, metaforicamente,a aptidão <strong>de</strong> um Oscar Niemeyer ou um Lúcio Costa.É claro que o elemento político vai ter peso, mas vão dizer que estamosencomendando “a planta normativa” <strong>de</strong>ssa maneira, e Lúcio Costaresp<strong>on</strong><strong>de</strong>rá que <strong>de</strong>ssa maneira não po<strong>de</strong> entregar, porque recebe a suaencomenda, mas que a ciência penal tem comandos estranhos, um chamadoC<strong>on</strong>stituição, o outro chamado Tratados Internaci<strong>on</strong>ais <strong>de</strong> DireitosHumanos nos quais a regra é a primazia dos direitos fundamentais, a tutelada dignida<strong>de</strong> e a proteção c<strong>on</strong>tra os abusos e <strong>de</strong>svios <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r.Imaginem o médico violando um <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> c<strong>on</strong>fi<strong>de</strong>ncialida<strong>de</strong> porque,sob a ótica do Senado, enten<strong>de</strong>-se que ele <strong>de</strong>ve c<strong>on</strong>tar a história dopaciente para c<strong>on</strong>tribuir para a Defesa Social?!Por último, saltam aos olhos os atalhos processuais do projeto <strong>de</strong>CP, revelados pela gramática da proposta.Quando a lei penal <strong>de</strong>fine o autor hipotético das c<strong>on</strong>dutas <strong>de</strong>lituosas,o chama <strong>de</strong> agente. O projeto, todavia, c<strong>on</strong>templa outras <strong>de</strong>signações:acusado, imputado; há uma série <strong>de</strong> sujeitos ativos nos preceitos<strong>de</strong>scritivos dos tipos penais que não são agentes.Trata-se <strong>de</strong> um erro metodológico? Em minha opinião há mais doque isso, ou algo diverso do equívoco <strong>de</strong> c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rar a diferença entre abstração(agente) e c<strong>on</strong>creção (acusado). Cuida-se da referida sedução <strong>de</strong> alei penal avançar no campo da política criminal.258R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 251-2<str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, out.-<strong>de</strong>z. 2012


Opera-se pela linha <strong>de</strong> manipulação do dispositivo penal, pelo qualo sujeito não escapa.E isso é <strong>de</strong>clarado às escâncaras na exposição <strong>de</strong> motivos.Em várias passagens, isso é percebido. Veja-se, por exemplo, a proposta<strong>de</strong> redação do artigo 202, e com isso estou dando exemplo do pesopolítico da gramática na estruturação e <strong>de</strong> como isso reflete uma infiltraçãoilegítima do processo penal em um Código Penal:“C<strong>on</strong>duzir veículo automotor em via pública sob a influência <strong>de</strong> álcoolou substância <strong>de</strong> efeitos análogos, exp<strong>on</strong>do a dano em potencial asegurança..... Pena: <strong>de</strong> 1 a 3 anos, sem prejuízo da resp<strong>on</strong>sabilização porqualquer outro crime cometido.Parágrafo primeiro: A infração po<strong>de</strong>rá ser <strong>de</strong>m<strong>on</strong>strada mediantequalquer meio <strong>de</strong> prova em direito admitido”, graças a Deus, até porqueseria extremo admitir a prova por meios ilícitos!Parece extraordinário, mas a atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> pesquisador nos interpela:afinal, não é estranho que o CP fale em prova?O que a prova está fazendo aqui? O que está fazendo no artigo 106,que também, interessantemente, cuida <strong>de</strong> uma outra atitu<strong>de</strong> punitivista,que é o peso probatório da atuação do <strong>de</strong>lator.A <strong>de</strong>lação do coautor ou partícipe somente será admitida comoprova da culpabilida<strong>de</strong> dos <strong>de</strong>mais coautores ou partícipes quando acompanhada<strong>de</strong> outros elementos .... O que isto está fazendo aqui? Isto estáfortalecendo uma atitu<strong>de</strong> punitiva.Assim, para encerrar, voltando à história do sinal, vamos supor queele esteja azul, abóbora e roxo e que eu estou dirigindo e que olhei paraos lados e não achei ninguém para me ajudar enquanto o sinal está azul.Então, quando passo pelo sinal, ouço o apito.Infração! Aí eu digo: “não é possível! O sinal não estava vermelho,sequer amarelo”. Então o guarda adverte: Se passar com o azul, é infração.O que ac<strong>on</strong>tece neste c<strong>on</strong>texto, senão o fortalecimento do po<strong>de</strong>r dosjuízes na instrumentalização do c<strong>on</strong>trole social pela via do Direito Penal?Isso é intenci<strong>on</strong>al? Acredito que não tenha sido raci<strong>on</strong>almente elaboradopara chegar a este p<strong>on</strong>to.Talvez tenhamos c<strong>on</strong>tribuído para este estado <strong>de</strong> coisas.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 251-2<str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, out.-<strong>de</strong>z. 2012 259


Atualmente, todos são críticos do Direito, mas c<strong>on</strong>hecedores do Direit<strong>on</strong>ão são tantos. Temos problemas graves no ensino superior, provenientesda multiplicação sem critério das universida<strong>de</strong>s privadas, problemasincrementados pelo <strong>de</strong>srespeito com que são tratados os professoresdas universida<strong>de</strong>s públicas em geral, a ina<strong>de</strong>quação dos currículos.E assim abdica-se da reflexão e da respectiva ação política que interpelemos caminhos <strong>de</strong> c<strong>on</strong>strução <strong>de</strong>sses sinais azuis, com perigosoesquecimento das razões da tutela da dignida<strong>de</strong> da pessoa humana, ouseja, vamos per<strong>de</strong>ndo a noção do papel <strong>de</strong> garantia <strong>de</strong>sses sinais.E, no final, como disse o Prof. Rene Ariel Dotti, em seu antigo livrosobre a reforma penal <strong>de</strong> 1984, termina que, “quando tudo é proibido,tudo é permitido”, ao menos para alguns.E a nossa socieda<strong>de</strong> segue correndo o risco <strong>de</strong> c<strong>on</strong>tinuar com assuas diferenças abissais, o que é, no mínimo, uma violência c<strong>on</strong>tra aRepública.Então, por tudo isso, professor, esse projeto tem que ser arquivado.É isso. Muito obrigado!Geraldo Prado2<str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 251-2<str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, out.-<strong>de</strong>z. 2012


A Relação entre a Doutrinae a Jurisprudência sob aóptica do GarantismoMinistro Og Fernan<strong>de</strong>sSuperior <strong>Tribunal</strong> <strong>de</strong> Justiça - STJPROF. DR. JUAREZ TAVARES - PRESIDENTE DA MESA:Estamos, então, no encerramento <strong>de</strong>ste Seminário Crítico da Reforma Penal,em que se discutiu não exaustivamente, mas acho que suficientemente sobreo projeto do Código Penal, suas inc<strong>on</strong>gruências, imperfeições, cominando comesse manifesto, essa carta que foi aplaudida por todos, e agora temos a satisfaçãoe h<strong>on</strong>ra <strong>de</strong> c<strong>on</strong>tar com a c<strong>on</strong>ferência do Ministro Og Fernan<strong>de</strong>s do Superior<strong>Tribunal</strong> <strong>de</strong> Justiça.O Ministro Og Fernan<strong>de</strong>s, além <strong>de</strong> Membro do Superior <strong>Tribunal</strong> <strong>de</strong> Justiça,é bacharel em Direito pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Pernambuco, bacharelem Jornalismo pela Universida<strong>de</strong> Católica <strong>de</strong> Pernambuco, foi Juiz <strong>de</strong> Direito emPernambuco, Vice-Presi<strong>de</strong>nte do <strong>Tribunal</strong> Regi<strong>on</strong>al Eleitoral <strong>de</strong> Pernambuco, Presi<strong>de</strong>ntedo <strong>Tribunal</strong> <strong>de</strong> Justiça <strong>de</strong> Pernambuco, professor <strong>de</strong> História no ColégioMilitar do Recife, Assessor Jurídico do Sistema Penitenciário do Estado <strong>de</strong> Pernambuco,professor <strong>de</strong> Direito Processual Penal da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito da Universida<strong>de</strong>Católica <strong>de</strong> Pernambuco.Quero dizer a todos que o Ministro Og Fernan<strong>de</strong>s, além <strong>de</strong> toda a capacida<strong>de</strong>exprimida pelo currículo, tem outra característica que reputo fundamentalpara um Magistrado: é uma pessoa muito p<strong>on</strong><strong>de</strong>rada, estritamente minuciosanos exames dos processos e está sempre preocupado em respaldar os DireitosFundamentais da pessoa humana. Pu<strong>de</strong> observar isso durante cinco anos <strong>de</strong> c<strong>on</strong>vívi<strong>on</strong>o STJ e, por essas c<strong>on</strong>statações, posso dizer que se trata <strong>de</strong> um notávelMagistrado.É uma h<strong>on</strong>ra enorme c<strong>on</strong>tar com sua presença neste Fórum <strong>de</strong> Crítica aoProjeto <strong>de</strong> Reforma ao Código Penal.Com a palavra, o Ministro Og Fernan<strong>de</strong>s.MINISTRO OG FERNANDES:Eu cheguei hoje, em torno do meio-dia, e vi o Rio <strong>de</strong> Janeiro umpouco diferente, com chuvas. A c<strong>on</strong>clusão foi imediata: quando o CristoR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 261-271, out.-<strong>de</strong>z. 2012 261


Re<strong>de</strong>ntor goteja no Rio, como Cida<strong>de</strong> Maravilhosa, é porque ele quer queas pessoas se reúnam em um ambiente protegido, se aproximem mais,c<strong>on</strong>versem, discutam temas do interesse da socieda<strong>de</strong>, o que o ProfessorJuarez Tavares, aqui, está a permitir.A cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro c<strong>on</strong>tinua maravilhosa; ela é maravilhosapela sua beleza, pela sua topografia, pela generosida<strong>de</strong> do seu cenário. Éuma cida<strong>de</strong> muito rica, rica no sentido <strong>de</strong> recursos humanos, das pessoas.E, sem prejuízo <strong>de</strong> tantos outros resp<strong>on</strong>sáveis por essa riqueza do Rio <strong>de</strong>Janeiro, eu menci<strong>on</strong>o o Professor Juarez Tavares, o Professor e Des. GeraldoPrado e o Des. Paulo Bal<strong>de</strong>z. Muito obrigado pela oportunida<strong>de</strong> queme c<strong>on</strong>feriu o Professor Juarez Tavares, que sabe que eu sou um dos seuspequenos discípulos.O professor Juarez me c<strong>on</strong>vidou para vir aqui e disse que, em nomedo evento, gostaria que c<strong>on</strong>versasse a respeito do Garantismo e da figura <strong>de</strong>Luigi Ferrajoli, para mostrar como se apresenta a teoria, a doutrina do Garantismo,em relação aos tribunais. Eu pensei, Professor Juarez: todos sabemos,a figura do Luigi Ferrajoli tem – permita-me Caetano Veloso usar a expressão– uma das mais fiéis traduções no Professor Juarez Tavares. E a ida<strong>de</strong> meensinou, a experiência me ensinou que, no caso, não seria oportuno queeu viesse falar da figura <strong>de</strong> Ferrajoli como doutrinador e da sua importânciaóbvia na história do Direito Penal, do final do século passado para os temposmais recentes. Há toda uma fiel tradução <strong>de</strong>le, aqui do meu lado.Tentei pensar em Ferrajoli no seu c<strong>on</strong>texto histórico e, talvez, numjuízo <strong>de</strong> adivinhação, impróprio para magistrados, imaginar o porquê, oque o teria influenciado a atuar e agir da maneira como ele atuou e atua, eque tem sido útil na formulação <strong>de</strong> uma doutrina atualizada para o DireitoPenal. Lembrei-me, então, <strong>de</strong> uma frase <strong>de</strong> Eduardo Galeano – vocês c<strong>on</strong>hecem,um escritor uruguaio, crítico <strong>de</strong> futebol e que escreve sobre muitostemas, mas ficou muito famoso <strong>de</strong>pois que o presi<strong>de</strong>nte Hugo Chávezpresenteou o livro <strong>de</strong>le “As veias abertas da América Latina” ao BarackObama, num primeiro enc<strong>on</strong>tro que eles tiveram. Eduardo Galeano dizque a história é um profeta com os olhos voltados para o passado. E qualé o passado? Qual é a história que envolve a vida do Ferrajoli? Estamosa falar <strong>de</strong> alguém, nascido em 1940, numa Itália c<strong>on</strong>flagrada, que foi juizaos 27 anos e permaneceu na magistratura um pouco mais ou um poucomenos <strong>de</strong> 20 anos.262R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 261-271, out.-<strong>de</strong>z. 2012


Os dados históricos me parecem extremamente relevantes paraenten<strong>de</strong>r os posici<strong>on</strong>amentos que o levaram a esse papel <strong>de</strong>nominadoGarantismo. Nós estamos a discorrer sobre alguém que nasceu num paísque somente c<strong>on</strong>seguiu a sua unificação em 1870 – a última cida<strong>de</strong> a seranexada foi Roma, naquele ano. Tratava-se <strong>de</strong> um país europeu que nãotinha sequer 100 anos <strong>de</strong> união.Ele experimentou o “clima” <strong>de</strong> uma Itália que se envolvia, pelasegunda vez, num c<strong>on</strong>flito mundial, num período <strong>de</strong> 30 anos, e que, nasegunda oportunida<strong>de</strong>, fazia um papel <strong>de</strong> coadjuvante <strong>de</strong> um Estadototalitário representado basicamente pelo Nazismo; que vinha <strong>de</strong> umaPrimeira Guerra Mundial, em que fora vencedor – e a Itália foi o primeiropaís do mundo a usar a força aérea no c<strong>on</strong>flito – mas não era a mesmaforça, nos idos <strong>de</strong> 1940; que c<strong>on</strong>viveu durante toda a sua infância com aqueda do frágil e nascente Estado italiano, logo envolvido pela i<strong>de</strong>ologiafascista; <strong>de</strong> um país, já em 1943, extremamente dividido entre o norte,ligado ao Nazismo, e o sul, solidário às forças que lutaram c<strong>on</strong>tra o totalitarismo(não é à toa que Mussolini veio a ser preso em 1943, e soltopelos nazistas <strong>de</strong> Hitler).Na juventu<strong>de</strong>, Ferrajoli c<strong>on</strong>viveu com um panorama <strong>de</strong> <strong>de</strong>srespeito àdignida<strong>de</strong> humana e <strong>de</strong> miséria <strong>de</strong>corrente da <strong>de</strong>rrota italiana, na II Gran<strong>de</strong>Guerra; com a fome no seu país, com a profunda crise ec<strong>on</strong>ômica que abraçoua Itália pós-Segunda Guerra Mundial, com a preocupação <strong>de</strong> dizer umbasta a um Estado totalitário <strong>on</strong><strong>de</strong> a prática do po<strong>de</strong>r se exerce <strong>de</strong> formasuperior à norma fundante. Diante <strong>de</strong>ssa realida<strong>de</strong>, por outro lado, assistiuaos problemas <strong>de</strong>correntes da quebra da Bolsa <strong>de</strong> Nova Iorque <strong>de</strong> 1929, ummundo que se percebia mais <strong>de</strong>mocrático, mas que não resolveu os problemasreferentes à igualda<strong>de</strong>, nem a questão do exercício do po<strong>de</strong>r, ao qualele chama, com um certo grau <strong>de</strong> ir<strong>on</strong>ia, <strong>de</strong> “po<strong>de</strong>res selvagens”.Nesse caldo <strong>de</strong> informações, situações e experiências extremamenteambivalentes, surge jurista que disse: “Estado, c<strong>on</strong>fie menos; Executivo,c<strong>on</strong>fie menos; Legislativo, c<strong>on</strong>fie menos; Judiciário, c<strong>on</strong>fie menos”.Na realida<strong>de</strong>, a doutrina do Garantismo, em suas linhas gerais, nãoé uma hipótese doutrinária que tenha nascido com o próprio Ferrajoli. Háque se ver que nós estamos a tratar <strong>de</strong> alguém que, embora i<strong>de</strong>ntificadocom o Processo Penal, é, em essência, um filósofo do Direito.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 261-271, out.-<strong>de</strong>z. 2012 263


O Garantismo, como dado na História do Direito – surgiu das experiênciasliberais do final do século XVIII e no século XIX, <strong>de</strong> mais fraternida<strong>de</strong>,mais igualda<strong>de</strong>, mais liberda<strong>de</strong> (ou fraternida<strong>de</strong> se não a tiver,igualda<strong>de</strong> se não a tiver, como não se tinha). “Liberda<strong>de</strong>” – aproveitandoos mineiros – “ainda que tardia”, como experiência humana, como socieda<strong>de</strong>humana, notadamente no Oci<strong>de</strong>nte, que é o mundo em que c<strong>on</strong>hecemostodos e sofremos com as suas vicissitu<strong>de</strong>s.Então, o antídoto para o Império era a Revolução Francesa e, umpouquinho antes, a Carta Americana, a resposta da igualda<strong>de</strong> e da liberda<strong>de</strong>.Mas é preciso ver – e, nisso, ele tem razão – que nem a Carta Americananem a C<strong>on</strong>stituição Francesa c<strong>on</strong>stituíram-se em elementos quetrouxeram essa igualda<strong>de</strong>, essa liberda<strong>de</strong> e essa fraternida<strong>de</strong> a um patamarexigido pela socieda<strong>de</strong> humana.Basta lembrar, por exemplo, que a C<strong>on</strong>stituição Americana, melhordizendo, suas Emendas n. os XIII, XIV e XV trouxeram, em primeiro lugar,a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o país permitir que cada Estado, com um tipo próprio<strong>de</strong> C<strong>on</strong>stituição, pu<strong>de</strong>sse <strong>de</strong>cidir sobre a existência ou não da escravidãoque, num primeiro momento da In<strong>de</strong>pendência Americana, foi tratadacomo algo exigível e exigido, notadamente pelos estados do sul, que eramescravocratas; num outro instante, a C<strong>on</strong>stituição americana diz que osEstados po<strong>de</strong>m se <strong>de</strong>finir pela adoção da escravidão, pois seria uma questãoque não dizia respeito à unida<strong>de</strong> do País, mas a cada Estado.As outras emendas trataram da impossibilida<strong>de</strong> do voto do negroe da manutenção, <strong>de</strong> uma maneira geral, da discriminação racial. Sabemtodos, a discriminação racial é um fenômeno perverso, usando a linguagemFerrajoliana, um dos “po<strong>de</strong>res selvagens”. A República Francesa, emum certo momento, c<strong>on</strong>stituiu uma página <strong>de</strong> muito terror <strong>de</strong>corrente dadisputa pelo po<strong>de</strong>r entre jacobinos e gir<strong>on</strong>dinos.Não se po<strong>de</strong> falar <strong>de</strong> um Estado igualitário no exemplo alemão quese c<strong>on</strong>stituiu pós-Primeira Guerra Mundial, com toda a crise ec<strong>on</strong>ômicaque sofreu a Alemanha, e com aquele discurso que surgiu a partir daimplantação do nazismo, num primeiro momento, c<strong>on</strong>stituído <strong>de</strong>mocraticamente,<strong>de</strong>pois, imposto por um golpe. Mas esse Estado possuía umarcabouço jurídico. Então, essa é a crítica que ele faz a Kelsen, no sentido<strong>de</strong> que, embora tivéssemos a norma, tal como imposta, não resolvia oproblema da socieda<strong>de</strong>, da igualda<strong>de</strong>.264R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 261-271, out.-<strong>de</strong>z. 2012


A partir daí, Ferrajoli começa a c<strong>on</strong>stituir uma doutrina que tevecomo base, fundamentalmente, a C<strong>on</strong>stituição Italiana <strong>de</strong> 1947 e i<strong>de</strong>iastambém vindas da C<strong>on</strong>stituição Alemã <strong>de</strong> 1949, vale dizer, pós-queda dototalitarismo, naqueles países e no mundo <strong>de</strong> uma maneira geral. Suadoutrina mais c<strong>on</strong>hecida – hoje, ele diz que não é o trabalho principal<strong>de</strong>le – c<strong>on</strong>stante do livro “Direito e Razão”, advém da reforma do processopenal <strong>de</strong>corrente da mudança c<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>al <strong>de</strong> 1947, da Itália, e da modificaçãoda legislação <strong>de</strong> execução penal naquele país.O livro é <strong>de</strong> 1969 e o termo “Garantismo Penal”, hoje, é disseminadoa partir das faculda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Direito, das primeiras lições <strong>de</strong> DireitoPenal, <strong>de</strong> Processo Penal. É o próprio Ferrajoli quem diz que a expressão“Garantismo Penal” surgiu no início da década <strong>de</strong> 1970, na Itália, a partirdo seu trabalho.Em linhas gerais, temos a c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>rar como característica mais relevantedo perfil do autor, a partir do seu trabalho, que estamos diante <strong>de</strong>alguém libertário, progressista, polêmico, humano, radicalmente igualitário,<strong>de</strong>mocrata, vanguardista, que se <strong>de</strong>fine como juspositivista, e umpouco utópico. O mundo do direito passou a ter atenção ao que ele diz,notadamente os penalistas. Uma frase <strong>de</strong> Bobbio a respeito <strong>de</strong>le, pareceme,<strong>de</strong>fine essa característica – Norberto Bobbio, que é outro italiano,bravo italiano, há pouco tempo falecido. Ele dizia que Ferrajoli é uma pers<strong>on</strong>alida<strong>de</strong>nascida para um mundo i<strong>de</strong>al. Daí, penso eu, essa característica:um pouco <strong>de</strong> utopia em Ferrajoli.Se pu<strong>de</strong>r traçar, em poucas palavras, o pensamento <strong>de</strong>le, digo queFerrajoli leva às últimas c<strong>on</strong>sequências a questão dos Direitos Fundamentaise da legalida<strong>de</strong> estrita. Talvez seja o resumo do que se fala e do que seescreve. O exame da legalida<strong>de</strong>, num processo penal como instrumento,e no direito penal como c<strong>on</strong>sequência <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> que se preten<strong>de</strong>seja “civilizada”. Essa legalida<strong>de</strong> à risca é a resposta penal, em umambiente <strong>de</strong> tolerância, ante a ausência <strong>de</strong> explicação da socieda<strong>de</strong> paratodos os fatos humanos.Quando cheguei aqui, enc<strong>on</strong>trei a professora Katie Arguello, daUniversida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Paraná, falando a respeito do jogo do bicho <strong>de</strong>maneira geral. Penso que o genial mestre italiano estaria em sint<strong>on</strong>ia comela quando se imagina: será a solução penal a mais a<strong>de</strong>quada para o jogodo bicho, notadamente num país e num cenário em que há liberação <strong>de</strong>R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 261-271, out.-<strong>de</strong>z. 2012 265


quase todos os jogos, inclusive <strong>de</strong> um similar ao jogo do bicho? Eu lembro<strong>de</strong> uma passagem do Henry David Thoreau, que escreveu um livro básico,pequeno, que todos <strong>de</strong>vem ler, intitulado “Desobediência Civil”. Quem éda área <strong>de</strong> Ciências Sociais, gosta do Direito, <strong>de</strong>ve ler. Ele foi preso porque<strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> pagar os impostos. Há uma passagem da prisão em que ele <strong>de</strong>screve(e ele escreveu esse livro, que é universalmente famoso, na prisão),ao chegar ao cárcere, que: “Eu estou aqui entre quatro pare<strong>de</strong>s, fechado,sem fazer nada, quase que um ser inanimado; será que o Estado não tinhaoutra coisa mais útil para fazer com o meu corpo?”.O exercício <strong>de</strong>sse posici<strong>on</strong>amento, que adiante vai gerar a questãoda tolerância, a questão do exame dos fatos da socieda<strong>de</strong> sobre outroângulo, tal como, por exemplo, Gandhi, se reflete numa postura, quepossa ser, até certo p<strong>on</strong>to, maximizada em relação à c<strong>on</strong>dição humana, àfraqueza humana e, por outro lado, é um olhar <strong>de</strong>tido e cuidadoso sobrecomo esse Estado, vale dizer, esse Judiciário, esse Executivo, esse Legislativoestá tratando o seu cidadão, está tratando a c<strong>on</strong>vivência humana.Lembro a nossa C<strong>on</strong>stituição <strong>de</strong> 1824. Ela foi elaborada num cenárioem que o país se tornava in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Portugal e discriminava, <strong>de</strong>uma forma razoável para época, como o Estado Brasileiro se organizavae se relaci<strong>on</strong>ava com a socieda<strong>de</strong>. Havia, entretanto, um po<strong>de</strong>r efetivo,o mo<strong>de</strong>rador, que estava nas mãos <strong>de</strong> alguém, <strong>de</strong>cidindo como as coisasseriam resolvidas.Levar a fundo a legalida<strong>de</strong>, notadamente na área penal, é dizer, aresposta que hoje se oferece para os c<strong>on</strong>flitos humanos não corresp<strong>on</strong><strong>de</strong>aos sentimentos <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> que se preten<strong>de</strong> mais igualitária.De um po<strong>de</strong>r que se c<strong>on</strong>si<strong>de</strong>re legitimado e não temido pelos quece<strong>de</strong>ram parcela <strong>de</strong>sse mesmo po<strong>de</strong>r, a partir do c<strong>on</strong>ceito <strong>de</strong> Hobbes:“Homo homini lupus”, isto é, o homem é o vilão da própria humanida<strong>de</strong>.Que não basta apenas a compreensão <strong>de</strong> que, ao renunciar ao exercício<strong>de</strong>sse po<strong>de</strong>r absoluto, po<strong>de</strong>r-se-ia matar alguém, ferir, furtar impunementeporque isso implicava uma <strong>de</strong>sorganização tremenda da vida social,entrega isso ao Estado, e é preciso que esse Estado dê um retorno maisigualitário, tendo como horiz<strong>on</strong>te os direitos fundamentais.Falando em Ferrajoli, lembrei-me <strong>de</strong> que ele é polêmico, e é da suanatureza ser polêmico. Gandhi era polêmico, muito polêmico, mas era tolerante.Que tipo <strong>de</strong> tolerância po<strong>de</strong>mos assimilar <strong>de</strong> um e <strong>de</strong> outro?266R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 261-271, out.-<strong>de</strong>z. 2012


O fato <strong>de</strong> que essa tolerância não po<strong>de</strong> ser entendida como passiva,um receio, um não fazer <strong>de</strong> coisas. Ela representa uma postura reativac<strong>on</strong>tra um Estado col<strong>on</strong>izador ou, <strong>de</strong> alguma forma, discriminador. Isso implicadizer “eu não vou bater em você, eu não vou matar você, mas eu nãoc<strong>on</strong>cordo com nada com que você está me fazendo”. Não aceitar a c<strong>on</strong>dutahumana, num <strong>de</strong>terminado c<strong>on</strong>texto da vida, é da regra do jogo.A questão é até que p<strong>on</strong>to nós vamos aprofundar essa não aceitação.Talvez seja esse o gran<strong>de</strong> dilema que se faz em torno do pensamento<strong>de</strong> Ferrajoli e do tema <strong>de</strong> Garantismo Penal. Sobre dignida<strong>de</strong> humana, eleexalça alguns aspectos: a <strong>de</strong>cisão na esfera penal terá que valorizar a vida,a sobrevivência e a liberda<strong>de</strong>.Po<strong>de</strong>ria falar mais alguma coisa a respeito do, digamos assim, patr<strong>on</strong>odo garantismo penal, mas eu pretendo fazer um exercício com vocês,que é o seguinte: colocar Ferrajoli, que foi juiz na Itália, no Judiciáriodo Brasil. No Supremo <strong>Tribunal</strong> Fe<strong>de</strong>ral, no Superior <strong>Tribunal</strong> <strong>de</strong> Justiça,em Tribunais que exerçam jurisdições na seara penal. Vamos imaginar queele seja, num <strong>de</strong>terminado momento, instado a <strong>de</strong>cidir questões penaisno Brasil.O exercício c<strong>on</strong>siste em tentar ver com o grupo aqui presente se essas<strong>de</strong>cisões seriam apoiadas por ele. Se o ex-magistrado italiano tambémcompartilharia <strong>de</strong>sses julgamentos. Noutras palavras, será que o Brasil se<strong>de</strong>ixou permear na sua interpretação do Direito Penal, do Processo Penal(porque alguns dos seus axiomas não são <strong>de</strong> Direito Penal, mas <strong>de</strong> Processo),se essas <strong>de</strong>cisões aten<strong>de</strong>riam a sua filosofia.A primeira questão é um Recurso Ordinário em Habeas Corpus: apropriaçãoindébita <strong>de</strong> quatro livros. O <strong>Tribunal</strong> enten<strong>de</strong>u que, para aquelefato, a retribuição <strong>de</strong>vida não seria uma ação penal. O <strong>de</strong>scumprimento <strong>de</strong>uma obrigação <strong>de</strong> natureza estritamente cível não enseja a intervenção doDireito Penal diante <strong>de</strong> seu caráter subsidiário e fragmentário. Deve o litígiolimitar-se ao campo obrigaci<strong>on</strong>al e reservar o po<strong>de</strong>r punitivo estatal aos casosem que sua aplicação se mostra realmente necessária.Farei uma leitura, a voo <strong>de</strong> pássaro, <strong>de</strong> outras hipóteses em que pareceobservar um cenário garantista – para usar a expressão que, às vezes,é até interpretada num sentido que já chega a ser pejorativo.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 261-271, out.-<strong>de</strong>z. 2012 267


O princípio da legalida<strong>de</strong> c<strong>on</strong>stante dos ensinamentos <strong>de</strong>le, masnão somente <strong>de</strong>le: não há crime sem lei penal que o <strong>de</strong>fina. É uma história<strong>de</strong> “cola eletrônica”. O Supremo enten<strong>de</strong>u que a c<strong>on</strong>duta <strong>de</strong>nominada“cola eletrônica”, a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> ser reprovável, é penalmente atípica.Princípio da necessida<strong>de</strong>. Não há lei penal sem necessida<strong>de</strong>. Essafoi uma <strong>de</strong>cisão da minha Turma. Suposto dano ao meio ambiente. Aliás,ressalve-se que Ferrajoli coloca o garantismo em favor do interessepúblico, basicamente em dois temas: a questão da tortura e a do meioambiente, o que <strong>de</strong>ixou claro em vários outros escritos. No caso, alguémc<strong>on</strong>struiu uma casa extremamente humil<strong>de</strong> numa reserva ambiental paraservir <strong>de</strong> moradia à família. O <strong>Tribunal</strong> enten<strong>de</strong>u que não c<strong>on</strong>figurariadano ao meio ambiente. Apesar <strong>de</strong> ser uma reserva, traduzia uma necessida<strong>de</strong>e o direito fundamental ao chão e ao teto. O Direito Penal nãoé a primeira resposta. O Direito Penal será, certamente, <strong>de</strong>ntro do que ainteligência humana po<strong>de</strong> c<strong>on</strong>ceber, a última solução.Princípio da lesivida<strong>de</strong> ou ofensivida<strong>de</strong>. Também é aí uma questão<strong>de</strong> furto simples. O cidadão tentou furtar uma máscara <strong>de</strong> tratamentocapilar, avaliada em R$ 8,95. É a chamada ausência <strong>de</strong> tipicida<strong>de</strong> material.Embora, formalmente, isso possa ser crime, que ofensivida<strong>de</strong> representarádo p<strong>on</strong>to <strong>de</strong> vista penal? Desnecessária a imposição <strong>de</strong> sanção penal nocaso, pois o resultado jurídico mostrou-se absolutamente irrelevante.Já, nesse caso, há suposta lesão sem ação exteriorizada. O <strong>Tribunal</strong>,em processo <strong>de</strong> relatoria <strong>de</strong> Ministro hoje aposentado, que h<strong>on</strong>ra astradições jurídicas do Rio <strong>de</strong> Janeiro, Ministro Hamilt<strong>on</strong> Carvalhido, dissesobre a tentativa, exigindo a lei atos <strong>de</strong> execução, não aceitou a teoriavoluntarista que se c<strong>on</strong>tenta com a exteriorização da v<strong>on</strong>ta<strong>de</strong> por meioda prática <strong>de</strong> atos preparatórios, nem com a sistemática que se satisfazapenas com a periculosida<strong>de</strong> subjetiva manifestada, o direito penal doautor. Foi aceita a teoria objetiva. É um caso em que câmeras <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>om<strong>on</strong>itoraram situações privadas e pessoas foram presas em função disso.Está no limite da subjetivida<strong>de</strong> da c<strong>on</strong>duta humana e, nesse caso, houve ac<strong>on</strong>cessão do habeas corpus.Princípio da culpabilida<strong>de</strong> ou da resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> pessoal. Essa, talvez,seja uma das situações mais comuns, <strong>de</strong> um certo protag<strong>on</strong>ismo acusatório.Por vezes, não é possível imputar resp<strong>on</strong>sabilida<strong>de</strong> penal em razão daqualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sócia, por empresa envolvida em esquema fraudulento, ainda268R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 261-271, out.-<strong>de</strong>z. 2012


mais quando não se <strong>de</strong>m<strong>on</strong>stra qualquer po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> administração c<strong>on</strong>tratual,ou <strong>de</strong> fato, ou indício <strong>de</strong> sua participação do ilícito apurado.Princípio da jurisdici<strong>on</strong>arieda<strong>de</strong>. Não há culpa sem regular juízo.Um juiz foi, ele próprio, fazer as diligências <strong>de</strong> busca e apreensão <strong>de</strong> documentos.Eis uma feição <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo acusatório que não é exatamente oque se preten<strong>de</strong> para o país.Nessa outra hipótese, não há juízo regular sem acusação (nullumjudicium sine accusati<strong>on</strong>e). A <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong>ficiente da c<strong>on</strong>duta <strong>de</strong>litiva ea narrativa que não enseja o esclarecimento mínimo da suposta autoriatornam a <strong>de</strong>núncia inepta, o que traduz manifesto c<strong>on</strong>strangimento ilegal,passível <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>belado pela via do habeas corpus, haja vista o patenteprejuízo à ampla <strong>de</strong>fesa.Não há acusação sem prova. Neste caso, a <strong>de</strong>núncia veio sem nenhumelemento que a embasasse minimamente. Fala-se sempre do garantismocomo a maximização dos direitos e garantias individuais, dos direitosfundamentais e a redução do Estado. Essa é uma hipótese em que,a meu ver, fica bastante clara a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que haja causa justa parao oferecimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia.Princípio do c<strong>on</strong>traditório e da ampla <strong>de</strong>fesa, caso <strong>de</strong> extorsão mediantesequestro. Trata-se <strong>de</strong> um advogado c<strong>on</strong>stituído, que renunciouao mandato, e o juiz c<strong>on</strong>stituiu um <strong>de</strong>fensor dativo sem ouvir o acusado,sem permitir que o acusado se manifestasse se <strong>de</strong>sejava, ou não, em se<strong>de</strong><strong>de</strong> alegações finais, c<strong>on</strong>stituir novo patr<strong>on</strong>o. Obviamente a ação penal foianulada.Inc<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong> <strong>de</strong> regime inicial fechado nos crimes hedi<strong>on</strong>dos,nova redação da Lei n. 8.072/1990. Não é porque se comete um <strong>de</strong>terminadotipo <strong>de</strong> infração, que se obriga o cumprimento da pena privativa<strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> no regime inicial fechado ou no regime integralmentefechado. Ambas as posturas já sofreram modificações.Essa outra é uma matéria já sumulada: manifestação do Supremosobre a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> substituição da pena privativa <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> emhipótese <strong>de</strong> tráfico <strong>de</strong> drogas. Esse tema foi levado ao Supremo e tambémao STJ, batendo-se o martelo no sentido <strong>de</strong> que, também, em matéria<strong>de</strong> aplicação da Lei <strong>de</strong> Entorpecentes, é possível, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o acusadosentenciado preencha certos requisitos subjetivos, a c<strong>on</strong>versão da penaR. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 261-271, out.-<strong>de</strong>z. 2012 269


privativa <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> em restritiva <strong>de</strong> direitos. Essa é uma das matériasque mais julgamos hoje, no Superior <strong>Tribunal</strong> <strong>de</strong> Justiça.A inc<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>alida<strong>de</strong> da vedação à liberda<strong>de</strong> provisória no tráfico<strong>de</strong> drogas, algumas questões ligadas ao problema da Lei <strong>de</strong> Entorpecentes– a antiga Lei nº 6.368/1976, agora Lei nº 11.343/2006. O Supremoenten<strong>de</strong>u como inc<strong>on</strong>stituci<strong>on</strong>al a impossibilida<strong>de</strong> da liberda<strong>de</strong> provisóriaprevista naquela Lei. Isso criou um clima <strong>de</strong> certo “terrorismo” nos meios<strong>de</strong> comunicação, mas é preciso enten<strong>de</strong>r que todas as reformas no mundoe, notadamente no campo do Direito Penal, surgem a partir <strong>de</strong> fatosda socieda<strong>de</strong>, positivos ou negativos.Não se institui norma, não se legisla em matéria penal e, também,não se julga, notadamente na seara penal, sem que haja um impulso quevenha da própria socieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado fato.Outro tema “garantista”: a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aplicação <strong>de</strong> regimeinicial fechado com base na gravida<strong>de</strong> da infração. Matéria já sumulada –Súmula 718 do STF. Não basta o juiz dizer que o crime em julgamento éum homicídio qualificado ou tráfico <strong>de</strong> drogas, ou que é abjeto. No casoc<strong>on</strong>creto, em face dos princípios da presunção da não culpabilida<strong>de</strong> e daestrita legalida<strong>de</strong> que permeiam um Estado em que se observam os direitosfundamentais, nós não po<strong>de</strong>mos estabelecer regra inquisitorial prévia<strong>de</strong> que para todos que fizeram ou agiram <strong>de</strong> tal maneira ou estão sendoacusados por tal fato, há obrigatorieda<strong>de</strong> do regime prisi<strong>on</strong>al mais severoou mesmo da uma prisão provisória.Discutiu-se, muito tempo, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aplicar o Princípio daInsignificância no furto qualificado, c<strong>on</strong>curso <strong>de</strong> pessoas ou mediante escalada,por exemplo, veio o Supremo – o Ministro Gilmar Men<strong>de</strong>s lavrouo acórdão – e adotou o entendimento mais garantista.Seria um prazer muito gran<strong>de</strong> c<strong>on</strong>tinuar a c<strong>on</strong>versar e c<strong>on</strong>versar,porque, repito, o Cristo Re<strong>de</strong>ntor nos favorece nesse ambiente acolhedor,aqui no Rio.Quero dizer, em resumo, que o garantismo é um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> respostaa muitas das incertezas humanas.E eu volto à regra da tolerância: é necessário ter tolerância com o quepensa diferente da gente, até porque tolerância só existe se houver um pensamentooposto. Não é necessário ter tolerância com quem pensa igual.270R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 261-271, out.-<strong>de</strong>z. 2012


O garantismo soluci<strong>on</strong>a, assertivamente, todas as questões?Lembro uma história do Carlos Heitor C<strong>on</strong>y.Carlos Heitor C<strong>on</strong>y, que é do Rio <strong>de</strong> Janeiro, famoso jornalista, escritor,certa vez, escreveu que teve uma formação <strong>de</strong> seminarista, estudoulatim, literatura, português. Renunciou ao seminário e, no dia em que saiudaquele lugar, tomou um b<strong>on</strong><strong>de</strong> para casa, sozinho. O cobrador do b<strong>on</strong><strong>de</strong>passou por ele uma vez e ele pagou a passagem. O cobrador foi para ooutro lado, passou novamente por ele, que pagou <strong>de</strong> novo a passagem, eo cobrador voltou e passou outra vez, como todos os cobradores fazem, e,pela terceira vez, a passagem foi paga, até que chegou em casa. Procurouse informar sobre o pagamento daquele transporte. Soube que era parapagar a viagem uma única vez. Ele, inteligentemente, c<strong>on</strong>cluiu: era um homemque sabia literatura, sabia línguas, tinha muitos saberes. No entanto,não sabia andar <strong>de</strong> b<strong>on</strong><strong>de</strong>.Talvez essa história se aplique ao garantismo.Agra<strong>de</strong>ço pela paciência <strong>de</strong> vocês. Foi um gran<strong>de</strong> prazer estar aquicom todos.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 261-271, out.-<strong>de</strong>z. 2012 271


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A APRESENTAÇÃO DE ARTIGOS1 - Os textos <strong>de</strong>vem ser enviados por correio eletrônico, para o en<strong>de</strong>reçoemerjpublicacoes@tjrj.jus.br;2 - F<strong>on</strong>tes: no corpo do texto - Times New Roman – 12 nas citações l<strong>on</strong>gas e notas <strong>de</strong> rodapé – 10 cor preta (exceto para gráficos);3 - Margens: esquerda e superior <strong>de</strong> 3 cm; direita e inferior <strong>de</strong> 2 cm;4 - Espaços no corpo do trabalho: 1,5;5 - Espaço simples, nos seguintes casos: citações literais <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> três linhas, notas, referências;6 - Destaques: itálico ou negrito;7 - Numeração <strong>de</strong> páginas - iniciada a partir da segunda folha da introdução,embora a inicial seja c<strong>on</strong>tada;8 - Fazer referências às f<strong>on</strong>tes <strong>de</strong> c<strong>on</strong>sulta através <strong>de</strong> citações no texto ouem notas <strong>de</strong> rodapé, observando que: a primeira citação <strong>de</strong> uma obra <strong>de</strong>verá ter a sua referência completa.Exemplo:ÚLTIMO SOBRENOME do autor (exceto Filho, Neto, Júnior),Prenome e outros sobrenomes (abreviados ou não). Título. Local:editora, ano. página 1 . as citações subsequentes da mesma obra po<strong>de</strong>m ser feitas <strong>de</strong> formaabreviada, com as seguintes expressões:a) I<strong>de</strong>m (id) – mesmo autor 2b) Opus citatum (op. cit.) – obra citada 31 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Lesão nos c<strong>on</strong>tratos. 2. ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Forense, 1959. p. 24.2 I<strong>de</strong>m, 2001, p. 19.3 RODRIGUES, op.cit., p. 40.R. EMERJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 15, n. <str<strong>on</strong>g>60</str<strong>on</strong>g>, p. 277, out.-<strong>de</strong>z. 2012 277

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