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01PORTUGAL POST -Jan. Druck:portugal POST Feb 09

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10<br />

Entrevista<br />

Maria de Carvalho, fadista<br />

O Trio Fado na Moldura da<br />

Saudade e das Lembranças<br />

Nos anos oitenta, António Brito (viola e canto) e Maria de Carvalho (canto) começaram a<br />

cantar os fados dos outros em restaurantes de Berlim Ocidental. Mais tarde formaram o<br />

Trio Fado com Daniel Pircher (guitarra portuguesa). Depois juntou-se-lhes Benjamin<br />

Waldbrod (violoncelo). São quatro excelentes músicos que foram dando asas à sua criatividade,<br />

que foram os primeiros embaixadores do fado em Berlim e que, mais tarde, se internacionalizaram.<br />

No seu excelente último álbum «portolisboa» as letras, os arranjos e a<br />

música são quase todos deles. Em 21 de <strong>Jan</strong>eiro, o Trio Fado volta à Passionskirche em<br />

Berlim.<br />

A fadista do Trio Fado, Maria de Carvalho, é portuense e foi na sua residência que nos<br />

encontrámos. Olhando os telhados de Berlim e sob uns raios de sol envergonhados, conversámos<br />

sobre tempos passados, presentes e futuros com bolinhos e um chá fumegante. Maria de Carvalho, a voz do Trio Fado. Foto: Trio Fado<br />

Porque saíste de Portugal?<br />

Estávamos em 78. Era uma altura<br />

em que tinha de fazer alguma coisa.<br />

Podia ir para a universidade, porém<br />

os meus pais tinham poucas posses e<br />

éramos cinco irmãos. Naquela altura,<br />

a Inglaterra estava muito em voga.<br />

Era uma cena interessante e eu não<br />

conhecia nada. Era nova, queria experimentar<br />

coisas novas e através de<br />

uma amiga consegui ir como babysitter<br />

para Inglaterra. O meu pai não<br />

queria, era um pouco tirano; era a<br />

educação geral em certas famílias!<br />

Tinha de estar em casa até às 8 horas,<br />

ainda o sol brilhava lá fora. Chateei<br />

tanto que ele lá arranjou dinheiro<br />

para o passaporte e a viagem. Até à<br />

altura tinha-me divertido com a revolução<br />

- a liberdade soava bem.<br />

Já cantavas nessa altura?<br />

Sim, mas não era fado, cantava<br />

música inglesa. Na minha mocidade<br />

ouvia o fado na família e pelas<br />

janelas abertas da vizinhança. A<br />

minha mãe cantava fado enquanto<br />

limpava a casa. Hoje em dia não se<br />

ouve as pessoas cantar e as janelas<br />

estão fechadas porque as mulheres<br />

trabalham fora de casa e andam<br />

cheias de stress.<br />

Maria viveu dois anos em Inglaterra<br />

onde vivenciou outra cultura e<br />

ouviu outras músicas. Primeiro em<br />

Windsor onde, olhando um céu cinzento,<br />

as ruas sombrias lhe ensinavam<br />

o spleen inglês. Chorou mas<br />

aguentou! Não queria dar o braço a<br />

torcer. Em Londres viveu numa família<br />

de actores. Não obstante, apesar<br />

das muitas alternativas da cidade, a<br />

sua vida não avançava e, assim, decidiu<br />

ir experimentar a vida parisiense.<br />

Viveu um ano em Paris.<br />

“Talvez tenha encontrado as pessoas<br />

erradas, tive pouca sorte” - diz.<br />

Voltaste para Portugal?<br />

Voltei para Portugal, mas já não<br />

me sentia bem no meu país. Tinham<br />

passado três anos e não encontrava<br />

emprego. Andava muito à deriva.<br />

Um dia decidi visitar um alemão aqui<br />

em Berlim.<br />

Vieste para Berlim Ocidental?<br />

Sim e não gostei de Berlim. Não<br />

consegui entender a cidade. Não era<br />

como Londres que me entusiasmava<br />

ou Paris que me deslumbrava. Não<br />

percebia onde era o centro. Só via<br />

ruas compridas e todas iguais, algumas<br />

lojas, mas mais nada.<br />

Achaste as pessoas provincianas?<br />

Sim e não as achei nem simpáticas<br />

nem bonitas. Até há pouco tempo<br />

achava que não se vestiam bem, não<br />

se arranjavam. Berlim mudou muito<br />

nesse aspecto. Mas primeiro sentia<br />

qualquer coisa düster, como é que se<br />

diz?<br />

Sombria?<br />

Sim, é isso. Vim no fim do verão<br />

com roupa de inverno português e<br />

rapei muito frio. Não sei bem do que<br />

não gostei, era apenas um sentimento.<br />

Mas fui ficando e decidi<br />

aprender a língua. Fui trabalhando<br />

aqui e ali.<br />

Quando e como é que descobriste<br />

o teu talento para o fado?<br />

Foi só dez anos depois. Entretanto<br />

fui conhecendo pessoas interessantes<br />

e entrei num meio que me<br />

agradava e, assim, descobri a cidade.<br />

Por fora não tinha nada que me interessasse.<br />

Em Berlim, o que era interessante<br />

era - o que as pessoas faziam<br />

e as possibilidades que havia. Vivi<br />

em Kreuzberg e andava sempre de<br />

saída. Durante muito tempo nem<br />

pensei no que queria fazer. Nessa altura,<br />

tu não tinhas que fazer nada.<br />

Comecei a trabalhar num escritório<br />

que tinha negócios com a RDA. Fornecia<br />

produtos para as «intershops».<br />

Na estrada de «trânsito» entre Berlim<br />

Ocidental e Hamburgo, havias estas<br />

lojas onde podias beber café e comprar<br />

qualquer coisa com marcos alemães.<br />

Sentias-te perdida?<br />

Faltava-me qualquer coisa – era<br />

tudo muito superficial. Comecei a ter<br />

muitas saudades de Portugal, da<br />

minha família. O que é que eu faço?<br />

Onde é que pertenço? Faltava-me o<br />

calor, faltava-me o sol, faltava-me a<br />

família, faltava-me uma certa maneira<br />

de ser. Faltava-me o movimento<br />

das pessoas nas ruas e os seus<br />

cheiros. Abria as janelas e não sentia<br />

os cheiros nem via pessoas - aqui<br />

eram todos muito berlinenses. Agora<br />

há mais mistura, eles são mais simpáticos.<br />

Os condutores dos autocarros<br />

eram horríveis. Eu já saía de casa<br />

com medo, porque sabia que me ia<br />

chatear com alguém. Na vida privada<br />

eu dava-me com malta porreira, mas<br />

na vida profissional eles eram horríveis.<br />

E comecei a ter muitas saudades!<br />

Entrei numa depressão sem<br />

saber, mas tive bons amigos que me<br />

apoiaram.<br />

Faltava-te um sorriso que transformasse<br />

o teu dia?<br />

É isso. Tinha muitos amigos alternativos,<br />

saíamos muito para o teatro,<br />

concertos, etc. A cultura era<br />

barata em Berlim. Mas chegou uma<br />

altura em que esta vida não me chegava,<br />

era demasiado superficial. E<br />

foi nesta fase que fiquei deprimida.<br />

Ou seja, quando começaste a<br />

trabalhar deixaste o teu ninho<br />

protegido e foste confrontada<br />

com a realidade. E como resolveste<br />

este conflito?<br />

As pessoas não tinham calor para<br />

dar, eram antipáticas, maldispostas.<br />

Vou viver para sempre assim? Para<br />

me proteger, tornei-me agressiva.<br />

Comecei a detestá-los e ao mesmo<br />

tempo a não gostar de mim. Fiquei<br />

confusa.<br />

Assimilaste-te?<br />

Pois é isso. Fui-me adaptando<br />

sem o querer e chorava contra esta<br />

assimilação. Comecei a acalmar um<br />

pouco e a lutar contra a situação - a<br />

racionalizar. Desenvolvi uma técnica<br />

de adaptação. E o fado – acontece! A<br />

grande saudade que eu tinha do meu<br />

país fez com que tudo o que viesse<br />

de Portugal mexesse comigo. Durante<br />

dez anos não tive contacto com<br />

portugueses. Conheci o Tó na Casa<br />

Algarvia. Ele tocava viola e cantava<br />

fado. Um dia fui lá jantar e aquilo<br />

mexeu comigo; lembrei-me das canções<br />

que ouvia em criança. Não sabia<br />

que as tinha dentro de mim. Tenho<br />

uma música no último CD que se<br />

chama «Moldura de Lembranças»<br />

que tem muito a ver com os momentos<br />

passados e que se foi esquecendo.<br />

Fui lá várias vezes e comecei a cantar.<br />

Saía-me assim...eu cantava uma<br />

estrofe com o Tó, depois ficava suspensa<br />

porque não me lembrava do<br />

resto. E aquilo trazia-me imagens e<br />

eu sentia calor no peito. As pessoas<br />

queriam que eu cantasse e eu não<br />

queria porque tinha medo. Comecei<br />

a reaprender os fados e o meu repertório<br />

foi aumentando.<br />

O Tó é que conseguiu que eu entrasse<br />

no palco. Quando eu me es-<br />

quecia da letra ele trauteava e eu ia<br />

atrás e as pessoas batiam palmas na<br />

mesma. Em casa treinava o meu tom.<br />

Porque eu não sabia qual era o meu<br />

tom. Antes de cantar, ia à casa de<br />

banho e trauteava até ter o tom certo.<br />

Cantavas fados tradicionais?<br />

Sim, o «Que Deus me Perdoe» e<br />

até um arranjo com violoncelo. Comecei<br />

com os fados que davam mais<br />

para a minha voz.<br />

Cantavas fado do Porto, de<br />

Coimbra, de Lisboa?<br />

Fado lisboeta, o conhecido por<br />

toda a gente, como o «Disse-te<br />

Adeus», «Madrugada de Alfama».<br />

Normalmente, cantava os fados da<br />

Amália mas nunca a conheci pessoalmente.<br />

Ela veio uma vez à Casa<br />

Portuguesa em Moabit. O Tó cantou<br />

uma canção para ela! Eu nem abri a<br />

boca...<br />

Primeiro cantavam a dois em<br />

restaurantes. Como é que o<br />

Fado saiu do restaurante?<br />

Depois da Queda do Muro, o Tó<br />

teve uma proposta para ir cantar a<br />

Dresden, numa «Jazz Keller». Nessa<br />

altura apareceu o Daniel e também o<br />

Rui, que era filho do dono da Casa<br />

Portuguesa de Moabit. Ele cantava o<br />

Zeca Afonso, depois começou a cantar<br />

fado. Depois tivemos problemas<br />

e eu disse: «Ou ele ou eu»!<br />

A partir daí eu levei o Daniel que<br />

tocava guitarra clássica. Depois começou<br />

a experimentar e a ensaiar<br />

com a guitarra portuguesa. O Daniel<br />

é filho de uma alemã e de um austríaco<br />

e viveu em Portugal muitos<br />

anos.<br />

Em Dresden, o público era todo<br />

alemão e muito interessado em cultura.<br />

Durante o espectáculo esquecime<br />

da letra, parei a meio, pedi<br />

desculpa. Mas as pessoas gostaram.<br />

Afinal não era tão difícil cantar em<br />

palco.<br />

Depois conhecemos o Mário dos<br />

Santos (o Director do PORTUGAL<br />

<strong>POST</strong>) na ITB. Ele estava a organizar<br />

um concurso de fado amador na<br />

Alemanha e convidou-nos para participar.<br />

Fomos treze concorrentes. O<br />

Tó ficou em segundo lugar e eu em<br />

terceiro! Havia seiscentas pessoas<br />

presentes. A partir daí estava lançada.<br />

Era só fechar os olhos, cantar e seja<br />

o que Deus quiser!<br />

Agora já tento abrir os olhos,<br />

PORTUGAL <strong>POST</strong> Nº 210 • <strong>Jan</strong>eiro 2012<br />

conversar com as pessoas. Quando<br />

canto ainda fecho os olhos para me<br />

concentrar melhor. A partir daí tivemos<br />

várias propostas. Em 2005 percorremos<br />

a Vestefália do Norte em<br />

24 dias e fizemos 22 concertos. Cantámos<br />

para um público maioritariamente<br />

alemão.<br />

Temos sido os embaixadores do<br />

fado – fomos os primeiros. As salas<br />

dos concertos estavam cheias.<br />

Aprendemos muito com esta tournée<br />

e esta experiência deu-nos muito à<br />

vontade. E foi a partir daí que nos internacionalizámos.<br />

Primeiro fomos à<br />

Arménia e fomos os primeiros a<br />

apresentar fado ao vivo na televisão<br />

arménia. A partir daí começámos a<br />

compor coisas novas e fizemos outros<br />

arranjos. O Daniel tem muitas<br />

ideias e toca a guitarra portuguesa à<br />

maneira dele. Por vezes é mais balada.<br />

O Tó abriu o restaurante «Piri-<br />

Piri» em Berlim onde há fados, claro<br />

– e, por vezes, cantamos lá se não estivermos<br />

em tournée!<br />

Ao longo dos anos, o Trio Fado<br />

tem dado concertos em toda a Alemanha,<br />

incluindo vários concertos<br />

na Filarmónica de Berlim e na Passionskirche.<br />

O grupo estreou-se internacionalmente<br />

na Arménia, a que<br />

se seguiram a Áustria, a Suíça, o Luxemburgo<br />

e a Rússia, país em que<br />

deram concertos nas Filarmónicas<br />

de três cidades.<br />

Foi na Rússia que Maria diz terse<br />

sentido como uma Marisa; com a<br />

televisão local presente e uma ovação<br />

final de público em pé, os<br />

espectadores exigiram autógrafos<br />

dos artistas que tiveram de sair escoltados<br />

para o camarim. “Experiências<br />

pessoais boas!” diz a<br />

fadista.<br />

Maria transformou a sua dor e a<br />

saudade numa carreira e no Trio<br />

Fado encontrou as pessoas certas.<br />

«Aconteça o que acontecer na vida<br />

há sempre um amanhã e temos que<br />

lutar, lutar até lá chegar!»<br />

Para 2012 já há concertos planeados<br />

na China e nalguns cruzeiros<br />

de luxo da Hapag Lloyd. Mas não<br />

precisa ir tão longe: o Trio Fado<br />

estará presente com algumas novidades<br />

de repertório no dia 21 de<br />

<strong>Jan</strong>eiro, às 20 horas, na Passionskirche,<br />

em Berlim.<br />

Cristina Dangerfield-Vogt<br />

Correspondente em Berlim

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