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Publicação Mensal Ano XVII - Nº <strong>200</strong> Novembro de 2014<br />
Sol sem ocaso
Sumário<br />
Publicação Mensal Ano XVII - Nº <strong>200</strong> Novembro de 2014<br />
Ano XVII - Nº <strong>200</strong> Novembro de 2014<br />
Sol sem ocaso<br />
Na capa, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
na década de 1980<br />
Foto: Sérgio Miyazaki<br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />
INSC. - 115.227.674.110<br />
Diretor:<br />
Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />
Conselho Consultivo:<br />
Antonio Rodrigues Ferreira<br />
Carlos Augusto G. Picanço<br />
Jorge Eduardo G. Koury<br />
Editorial<br />
4 A solis ortu usque ad occasum...<br />
Dona Lucilia<br />
6 Contemplação do todo de Nosso Senhor<br />
Sagrado Coração de Jesus<br />
10 Variedades do modo de ser de Nosso Senhor<br />
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
14 A percepção infantil<br />
Redação e Administração:<br />
Rua Santo Egídio, 418<br />
02461-010 S. Paulo - SP<br />
Tel: (11) 2236-1027<br />
E-mail: editora_retornarei@yahoo.com.br<br />
Impressão e acabamento:<br />
Pavagraf Editora Gráfica Ltda.<br />
Rua Barão do Serro Largo, 296<br />
03335-000 S. Paulo - SP<br />
Tel: (11) 2606-2409<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
18 Noção de sacralidade<br />
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
22 Princípios do autêntico regionalismo<br />
Calendário dos Santos<br />
Preços da<br />
assinatura anual<br />
Comum .............. R$ 122,00<br />
Colaborador .......... R$ 170,00<br />
Propulsor ............. R$ 395,00<br />
Grande Propulsor ...... R$ 620,00<br />
Exemplar avulso ....... R$ 17,00<br />
Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
Tel./Fax: (11) 2236-1027<br />
28 Santos de Novembro<br />
Hagiografia<br />
30 São Gregório Taumaturgo<br />
Luzes da Civilização Cristã<br />
32 Cidade florida, alegre e risonha - II<br />
3
Conhecendo a Civilização<br />
Cristã, num primeiro<br />
golpe de vista eu a amei<br />
com um amor abrangente.<br />
Daí decorreu que, diante<br />
da hipótese de ela ser<br />
reduzida a pedras, minha<br />
alma exclamou: “Eu amo<br />
as pedras!” E quando me<br />
deparei com as pedras<br />
reduzidas a pó, osculei a<br />
poeira e disse: “Eu te amo!”<br />
(25/3/1987)
Editorial<br />
A solis ortu usque<br />
ad occasum...<br />
"Q<br />
uando ainda muito jovem, considerei enlevado as ruínas da Cristandade. A elas entreguei<br />
meu coração. Voltei as costas ao meu futuro e fiz daquele passado, carregado de bênçãos,<br />
o meu porvir.” 1<br />
A fidelidade a este programa de vida traçado por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> foi atestada em cada instante de sua<br />
existência, pela incontestável coerência de sua ação e de sua doutrina com os princípios por ele amados.<br />
Tendo como uma de suas características essenciais a consideração do universo a partir de um prisma<br />
fundamentalmente religioso, este varão de Fé tudo analisava sob esta perspectiva, a ponto de<br />
afirmar:<br />
“Desde criança fui percebendo em pequenas coisas a ordem do universo. Analisando o ensino da<br />
Igreja, parecia-me que Deus era o cimo de um cone. Voltando minha atenção ao Sagrado Coração<br />
de Jesus, Rex et centrum omnium cordium 2 , Ele Se me afigurava como o cone do mundo dos corações.<br />
Da percepção desse cone supremo nasceu-me a ideia da ordem do universo.” 3<br />
E em outra ocasião dizia:<br />
“Se não conhecemos a Santa Igreja e a Nosso Senhor Jesus Cristo, pura e simplesmente não compreendemos<br />
como a ordem do universo se afivela.” 4<br />
Por isso, suas análises eram sempre cuidadosamente conferidas com a Doutrina Católica e filialmente<br />
submetidas ao Magistério infalível.<br />
Ao considerar a natureza, o homem, povos e nações, civilizações e culturas, enfim, a História com<br />
o olhar límpido de quem conservou a inocência como o mais precioso dos tesouros, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> tecia<br />
comentários inspirados pelo dom de Sabedoria recebido no Batismo e acrisolado com o avançar dos<br />
anos, constituindo-se, tanto por suas explicitações como por seu testemunho de vida, o exemplo vivo<br />
de sua teoria sobre a “soma das idades”.<br />
“Quem é fiel tem na juventude as qualidades da infância; na maturidade, as qualidades dessas três<br />
épocas da vida; na ancianidade, um requinte de todas elas. Até o último momento, ele se aprimora, e<br />
morre na idade perfeita, dando o melhor de si. A decrepitude física pouco tem a ver com essa ascensão.<br />
Ao entregar sua alma a Deus, ele restitui o conjunto dos tesouros recebidos e implora misericórdia<br />
para tudo quanto estiver incompleto. Eis a morte de um varão católico, eis a trajetória de um homem.”<br />
5<br />
“A perfeita biografia de um homem, como Deus a vê, sem véus, se assemelha à história do Sol no<br />
decurso de um dia sem nuvens. As energias primaveris e os frescores de alma com os quais nasce têm<br />
encantos próprios, irrepetíveis ao longo dos tempos, mesmo quando a inocência se afirma e perseve-<br />
4
a. A ‘soma das idades’ não exclui a possibilidade de alguns encantos inerentes a cada época se recolherem<br />
aos esplendores do Padre Eterno para serem encontrados mais tarde.” 6<br />
Ao comemorarmos o ducentésimo número de nossa <strong>Revista</strong>, podemos constatar, com indizível<br />
alegria e transidos de gratidão a Nossa Senhora, os incontáveis encantos da alma deste homem providencial<br />
que reluziram aos olhos de nossos leitores.<br />
À maneira dos raios do Sol, esses encantos não só iluminam uma trajetória de fidelidade, mas<br />
criam condições de vida, isto é, alentam, tonificam e impulsionam tantas almas que, sem contemplar<br />
esses fulgores, não encontrariam luzes e forças para trilhar o caminho da virtude.<br />
Uma aflição, entretanto, poderia acometer nosso espírito: “Mas o Sol também tem seu ocaso...”<br />
A este propósito, comentava <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>:<br />
“O pôr do Sol não é a morte do derrotado, mas a desativação de quem percebe nada ter mais a<br />
dar. Diante da obra realizada, ele vai se retirando com dignidade, numa esplendorosa diminuição:<br />
‘Atingi tal ápice que nem consigo cessar de repente. Até lá chegou o superlativo dos superlativos onde<br />
eu me pus. Voltarei à minha gloriosa contemplação, porque minha tarefa está cumprida, mas<br />
desço em esplendoroso dégradé porque em radiante dégradé subi. Combati o bom combate em cada<br />
etapa do ocaso.’ Sua última luzinha ainda é uma glória revelada, antes de desaparecer. E não é o Sol<br />
que entra no escuro, mas é o mundo que fica em trevas quando ele sai.” 7<br />
A solis ortu usque ad occasum, laudabile nomen Domini 8 . De seu nascimento à sua morte, <strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong> entoou, por sua vida, exemplo e doutrina, um contínuo e crescente hino de louvor à Eucaristia,<br />
a Maria, ao Papado, bem como a todos os maravilhosos frutos do preciosíssimo Sangue de Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo na Civilização Cristã.<br />
Contudo, se o Astro-Rei tem seu ocaso, o mesmo não acontece com os homens que marcaram a<br />
História com os sinais de sua Fé. Esses brilharão como o Sol por toda a eternidade 9 .<br />
1) CORRÊA DE OLIVEIRA, <strong>Plinio</strong>. Meio século de epopeia anticomunista.<br />
São Paulo: Vera Cruz, 1980. p. 1.<br />
2) Do latim: Rei e centro de todos os corações.<br />
3) Conferência de 30/4/1992.<br />
4) Conferência de 16/5/1974.<br />
5) Conferência de 2/2/1972.<br />
6) Conferência de 12/6/1981.<br />
7) Idem.<br />
8) Do latim: Do nascer do Sol até o seu ocaso, seja louvado o nome do Senhor (Sl 113, 3).<br />
9) Cf. Mt 13, 43.<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
5
Dona Lucilia<br />
Contemplação do todo<br />
de Nosso Senhor<br />
Algumas imagens do Sagrado Coração de Jesus<br />
exprimem a bondade, a atitude grave, tranquila,<br />
serena, as decisões irrevogáveis do Homem-Deus;<br />
em suma, mostram a totalidade de suas perfeições. E<br />
era justamente a consideração desse todo que<br />
enlevava e modelava a alma de Dona<br />
Lucilia, fazendo-a fiel aos princípios por<br />
ela amados.<br />
Lembro-me de como o afeto de Dona Lucilia se<br />
manifestava em relação a mim, desde minha<br />
mais tenra infância. Eu não tinha ainda idade<br />
para perceber como era a relação dela com os outros,<br />
inclusive com minha irmã — essa noção viria<br />
depois —, porém, em relação a mim esse afeto se<br />
realizava sob a forma que passarei a descrever.<br />
Seriedade e bondade<br />
Esse afeto era uma espécie de globalidade e<br />
uma seriedade completa que estava no fundo<br />
da sua alma. Eu notava que ela entendia perfeitamente<br />
qual é o afeto que uma mãe deve ter a<br />
seu filho, até onde isso podia ir, que sacrifícios<br />
traz e, mais profundamente, o que é ser mãe.<br />
Por outro lado, isso não ficava em tese, mas<br />
repousava em mim como filho dela. Quer dizer,<br />
ela não queria bem a uma abstração, a uma doutrina,<br />
mas àquele filho dela, em cuja pessoa ela<br />
procurava encontrar traços e aspectos que prenunciassem<br />
o filho o qual ela gostaria que fosse, quando<br />
se tornasse homem feito.<br />
Daí, um querer bem a jorros, como se fosse um facho<br />
de luz muito poderoso assestado sobre mim, envolvendo-me,<br />
satisfazendo-me e tranquilizando-me por inteiro,<br />
acompanhado de um afeto tal que despertava em mim a<br />
João S. C. Dias<br />
6
potencialidade para ter um amor correspondente a esse.<br />
De onde o nascimento em mim de um afeto correlato,<br />
tanto quanto uma criança possa ter.<br />
Na medida em que fui amadurecendo — não sei bem em<br />
que idade, mas na minha primeira infância —, eu percebia<br />
bem que essa globalidade, essa totalidade não era apenas o<br />
afeto, mas todo um modo de ver a vida, as coisas, as pessoas,<br />
de modo muito sério, embora com muita bondade.<br />
Essa seriedade, absoluta, por assim dizer, era o traço<br />
donde emanavam as outras qualidades morais dela. Era<br />
uma espécie de alto-falante ou de lente de aumento posta<br />
em todas as suas qualidades morais. Se ela não tivesse<br />
essa tão profunda seriedade, as outras qualidades nela<br />
existentes não teriam o valor que de fato possuíam.<br />
Inteligência comum, mas vivificada<br />
pela sapiencialidade<br />
Eu notava isso em todas as circunstâncias da vida: nas<br />
consequências que ela tirava dos fatos, nas aplicações, na<br />
severidade dela como mãe, numa série de coisas assim,<br />
tudo levado por ela até o fim. Este era o ponto de partida<br />
do relacionamento de alma entre ela e eu, que só cessou<br />
nesta Terra com a sua morte.<br />
Alguém poderia perguntar sobre o papel da inteligência<br />
dentro disso, e se não se tratava de uma altíssima<br />
qualidade intelectual. Suponho ser algo mais ligado<br />
à virtude da sabedoria, a qual não é privativa dos inteligentes,<br />
mas é uma inteligência dada pela graça, aos inteligentes<br />
e aos não inteligentes, desde que a Providência<br />
queira beneficiá-los.<br />
Mamãe tinha uma inteligência comum, vivificada por<br />
essa posição sapiencial de muita seriedade diante de todas<br />
as coisas.<br />
A visão da totalidade que ela possuía do espírito da<br />
Igreja Católica e de Nosso Senhor Jesus Cristo, tanto<br />
quanto eu podia perceber no contato com ela, apresentava-se<br />
no culto ao Sagrado Coração de Jesus.<br />
Imagens do Sagrado Coração de Jesus:<br />
transbordantes de afeto, mas nunca sorrindo<br />
Via-se que ela reconhecia, admirava, adorava no Sagrado<br />
Coração de Jesus exatamente o que se encontra<br />
nessa devoção, tal como era apresentada no século XIX,<br />
durante o qual Dona Lucilia formou seu espírito.<br />
Naquela época, o Sagrado Coração de Jesus era apresentado<br />
sempre como profundamente bondoso, misericordioso,<br />
disposto a perdoar, mas profundamente sério.<br />
Então, algumas atitudes d’Ele perante as almas eram<br />
simbolizadas pelas imagens transbordantes de afeto, mas<br />
nunca sorrindo, revelando sempre um fundo de tristeza,<br />
de quem media até a profundidade a maldade dos homens,<br />
e sofria por causa disso inteiramente.<br />
Essa postura interior era representada fisicamente pelo<br />
coração cercado de uma coroa de espinhos e com uma<br />
laceração decorrente da lança de Longinus, que simbolizavam<br />
essa tristeza afetuosa e paciente do Sagrado Coração<br />
de Jesus, de uma profundidade não mensurável,<br />
infinita, mas ao mesmo tempo sem irritação, sem vindita.<br />
Uma bondade a perder de vista, mas que, diante das<br />
ofensas feitas, sabia serem ofensas, tomava-as em todo o<br />
seu valor e sofria por elas em toda a medida que era próprio<br />
a elas fazê-Lo padecer. Portanto, tudo quanto Ele<br />
sofreu na Paixão por causa dos nossos pecados, estava<br />
simbolizado nessas imagens muito adequadamente.<br />
Isso supõe uma avaliação profundamente séria do que<br />
se passa na alma de cada homem, da gravidade moral de<br />
todo o pecado, e uma disposição prévia a ver no homem<br />
um pecador a quem se perdoa, muito mais do que um filho<br />
dileto que dá alegria.<br />
De maneira que as imagens do Sagrado Coração de<br />
Jesus da boa escola não O apresentam gaudioso, embora<br />
o Coração d’Ele fosse cheio de gáudios; por exemplo,<br />
quando Ele via Nossa Senhora, ou cogitava sobre Ela, o<br />
gáudio d’Ele não tinha limites.<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
7
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Dona Lucilia<br />
Fidelidade aos princípios até<br />
as últimas consequências<br />
Aparição do Sagrado Coração de Jesus<br />
a Santa Margarida Maria Alacoque<br />
Mas os homens, na sua relação com Deus, precisam<br />
saber que Ele é assim. E que o Sagrado Coração de Jesus,<br />
na Humanidade santíssima de Nosso Senhor, sendo<br />
um reflexo do que é na Divindade, é a atitude de Deus<br />
diante dos pecados dos homens.<br />
Daí frases que se pintavam, gravavam ou esculpiam<br />
junto a essas imagens, e que exprimiam isso. Por exemplo:<br />
“Filho, dá-me teu coração”; e Nosso Senhor com a<br />
mão indicando o Coração d’Ele. Era uma proposta de<br />
troca de corações, mas como quem diz: “Filho, tu não<br />
me deste teu coração. Eu sou Senhor do teu coração.<br />
Dá-me teu coração!” Isso de um lado.<br />
De outro lado, uma frase que está pintada no teto da<br />
Igreja do Coração de Jesus 1 . Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />
aparecendo a Santa Margarida Maria Alacoque, num<br />
convento da França, mostrando o Coração d’Ele e dizendo<br />
esta frase, que está na narração das visões que ela teve:<br />
“Minha filha, eis aqui o Coração que tanto amou os<br />
homens, e por eles foi tão pouco amado!”<br />
Vê-se aí aquele equilíbrio absoluto, de um amor que<br />
chega a imolar-se na Cruz — não é preciso dizer mais<br />
nada — para salvar os homens, mas que toma inteiramente<br />
nota das ingratidões de que esse amor é objeto<br />
e se entristece com elas. Não é o Coração de Jesus enquanto<br />
cheio de espírito de justiça — por exemplo, maldizendo<br />
Corazim e Betsaida 2 —, nem o Cristo gladífero<br />
de que fala o Apocalipse 3 ; é o Cristo cheio de misericórdia,<br />
mas uma misericórdia cuja imensidade se calcula pela<br />
medida que Ele toma dos pecados dos homens.<br />
É bem evidente que isto é o todo d’Ele. Não é apenas<br />
uma atitude afetiva, e todas as boas imagens do Coração<br />
de Jesus, no porte, no gesto, no modo de se apresentar,<br />
fazem ver Nosso Senhor Jesus Cristo numa atitude<br />
grave, tranquila, serena, mas numa decisão irrevogável: o<br />
que Ele decidiu, decidiu; e o que é, é; o que não é, não é.<br />
É assim que Ele deve ser interpretado.<br />
Assim foi que Ele fez um bem enorme à minha alma.<br />
E eu notava que era essa consideração que concorria<br />
muito para modelar a alma de mamãe. E quando ela<br />
rezava a Ele, punha-se inteiramente nesse diapasão, nessa<br />
posição.<br />
Cabe aí uma visão de um todo, porque isso é um todo.<br />
Na visão desse todo estava a alma de Dona Lucilia,<br />
quer dizer, ela era toda assim, e contemplava, apreciava,<br />
ponderava as coisas desse modo. Nosso Senhor é o<br />
exemplo, e ela era a discípula que seguia com muita fidelidade<br />
o exemplo.<br />
Notava-se no olhar de mamãe uma resolução de ser<br />
fiel aos princípios até o fim, custasse o que custasse.<br />
Isso a tornava, por vezes, isolada, o que se acentuou<br />
muito no período posterior à Primeira Guerra Mundial,<br />
quando entrou no Brasil o americanismo, o espírito<br />
difundindo por Hollywood, e São Paulo se tornou<br />
muito cosmopolita.<br />
Reprodução<br />
8
Visão profunda, límpida, serena,<br />
objetiva e bondosa da realidade<br />
Mário Shinoda<br />
Nessa época as senhoras mudaram muito, tomando<br />
um ar mais moderno. O modo de elas conversarem, de<br />
dizerem alguma coisa de engraçado entre si, mudou muito,<br />
e mamãe ficou à margem. Não sei quanto tempo ela<br />
levou para perceber isso inteiramente.<br />
A mãe dela era uma senhora que eu nunca vi fazer<br />
um gracejo com ninguém. E uma vez ou outra, quando<br />
ela procurava brincar com minha irmã ou comigo para<br />
nos distrair, quando éramos muito menininhos, ela fazia<br />
brincadeiras sem graça, mas por causa dessa seriedade<br />
dela.<br />
E o fato de uma senhora habituada a abrir-se inteiramente,<br />
sem a menor reserva, para o americanismo<br />
que entrava, para Dona Lucilia era uma coisa inteiramente<br />
alheia aos padrões nos quais ela havia sido<br />
educada.<br />
Entre as senhoras daquela época entrou o costume de<br />
darem risada, de brincarem uma com a outra, de falarem<br />
da vida das outras o tempo inteiro, a ponto dessa atitude<br />
tornar-se moda. Dona Lucilia não fazia nada disso.<br />
E quando diante dela se apresentava um assunto, ela entrava<br />
no tema com umas considerações longas, tão ajuizadas,<br />
criteriosas e diferentes do que as pessoas queriam<br />
ouvir, que ela ficava sem graça, permanecia só.<br />
Essa postura séria e reflexiva diante da vida conferia a<br />
Dona Lucilia uma visão profunda, límpida, serena, objetiva<br />
e bondosa da realidade, que eu notava no olhar dela,<br />
mas notava também, naturalmente em grau infinitamente<br />
maior, no Sagrado Coração de Jesus e na Igreja<br />
Católica. E pensava: “Assim é a Igreja Católica, assim se<br />
é santo, assim se vê a realidade como deve ser vista, este<br />
é o caminho!”<br />
Eu hauria dela essa mentalidade, muito mais pelo<br />
convívio do que por ensinamentos explícitos. Sua ação<br />
benfazeja auxiliou enormemente meu livre-arbítrio a se<br />
inclinar para o bem. E naquelas coisas a que ela se conservou<br />
fiel, eu, com a graça de Nossa Senhora, não só me<br />
mantive fiel, mas remontei até a Idade Média. Quer dizer,<br />
é o caminho da fidelidade subindo à fonte.<br />
Tenho consciência de que sirvo de eco a uma tradição<br />
que me é muito anterior, mas um eco consentido pela<br />
minha alma, pelo meu feitio de espírito, pelo que recebi<br />
e quis guardar.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de 17/3/1990)<br />
1) Situada em São Paulo, Bairro Campos Elíseos.<br />
2) Cf. Mt 11, 21.<br />
3) Cf. Ap 19, 11-16.<br />
9
Sagrado Coração de Jesus<br />
Variedades do modo de<br />
ser de Nosso Senhor<br />
Em menino, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> analisava atentamente uma imagem<br />
de Nosso Senhor que havia no quarto de Dona Lucilia, bem<br />
como as existentes na Igreja do Sagrado Coração de Jesus.<br />
Contemplando-as ele foi discernindo a mentalidade do Divino<br />
Salvador, discernimento que depois seria confirmado ao<br />
conhecer os episódios narrados nos Evangelhos.<br />
P<br />
ercebe-se que os Apóstolos e todas aquelas pessoas<br />
que tinham o convívio com Nosso Senhor<br />
— exceto naturalmente Nossa Senhora — não O<br />
haviam entendido bem. Parece que com o curso do tempo,<br />
depois de equívocos primeiros, eles acabaram pelo<br />
menos não formando ideias erradas a respeito d’Ele, mas<br />
vê-se que eles não tinham formado uma ideia inteira a<br />
respeito de Jesus, exatamente como era a Pessoa d’Ele.<br />
E isso era de uma importância transcendental para eles<br />
amarem a Nosso Senhor como deviam ter amado.<br />
Amar e compreender<br />
Tony Jeff (CC 3.0)<br />
Nosso Senhor e os Apóstolos<br />
Catedral de Notre-Dame de Paris, França<br />
Quer dizer, se eles tivessem<br />
amado como deviam,<br />
teriam compreendido como<br />
podiam; se tivessem compreendido<br />
como podiam, teriam<br />
amado como deviam.<br />
Assim é o jogo entre o<br />
amor e a compreensão. E<br />
eles não tiveram esse amor<br />
assim. O resultado é que<br />
custou para reconhecerem<br />
a Nosso Senhor como Deus.<br />
Consideremos que n’Ele<br />
há duas naturezas — a humana<br />
e a divina —, unidas<br />
na Pessoa do Verbo. Portanto,<br />
não existem duas pessoas, mas uma única Pessoa<br />
divina. Há, pois, n’Ele uma verdadeira alma e um verdadeiro<br />
corpo ligados entre si como em todos os seres humanos,<br />
mas essa alma e esse corpo estão unidos hipostaticamente<br />
à Segunda Pessoa da Santíssima Trindade.<br />
Por isso, cada vez que Ele falava, era o Verbo de<br />
Deus Quem falava. Cada vez que Ele olhava, era o Verbo<br />
de Deus Quem olhava. Cada vez que Ele fazia qualquer<br />
gesto, era o reflexo mais perfeito que se possa imaginar<br />
da natureza divina na humana.<br />
Portanto, manifestava<br />
uma santidade, uma perfeição,<br />
uma superioridade, da<br />
qual nós não podemos ter<br />
uma ideia, nem sequer remota,<br />
se não nos ajudar a<br />
graça de Deus. Se fizéssemos<br />
uma ideia tão exata<br />
quanto podemos e devemos<br />
de como foi Ele, então teríamos<br />
começado a amá-Lo<br />
como precisamos amar.<br />
Fisionomia e ação<br />
de presença de<br />
Nosso Senhor<br />
A voz, os olhares, os<br />
gestos d’Ele… Que espe-<br />
10
lho da Santíssima Trindade! Nós precisamos reconstituir<br />
um pouco disso para O amarmos como Ele merece ser<br />
amado, e não haver o equívoco de O amarmos como Ele<br />
não foi, com todo o perigo que isso traz consigo.<br />
Esse é um trabalho muito delicado que, se não fosse<br />
a ajuda da graça, não se faria na alma de nenhum homem.<br />
Porque, primeiro, é muito mais alto do que a cogitação<br />
de qualquer homem. Em segundo lugar, seria preciso<br />
utilizar dados muito imponderáveis; ser um psicólogo<br />
do outro mundo para recompor.<br />
Por exemplo, no que diz respeito à fisionomia de Nosso<br />
Senhor, um dia em que sentimos certo tipo de consolação<br />
sensível ao estar perto do Santíssimo Sacramento,<br />
isso produz um determinado efeito que nos deve levar a<br />
pensar sobre como era a fisionomia de Quem está causando<br />
sobre nós esse efeito. E como era, portanto, o divino<br />
rosto d’Ele e — coisa altamente própria ao Santíssimo<br />
Sacramento — sua ação de presença.<br />
Então, devemos procurar analisar e entender o que<br />
Ele está comunicando. E, tomando os episódios do Evangelho,<br />
imaginando-O exercendo sobre nós — se presenciássemos<br />
um deles — um efeito daqueles relacionados<br />
com o fato, compreenderíamos um tanto o que foi o trato<br />
com Nosso Senhor.<br />
Relacionando a fisionomia d’Ele<br />
com episódios de sua vida<br />
Tenho a impressão de que, com o Batismo e as primeiras<br />
impressões religiosas, nos<br />
é dada uma certa primeira noção<br />
d’Ele, que vai se formando e<br />
aprimorando dentro de nós. Por<br />
exemplo, posso me lembrar de<br />
como isso foi se constituindo aos<br />
poucos na minha própria alma.<br />
Graças a Deus, eu tomei como<br />
ponto de partida que a fisionomia<br />
apresentada habitualmente pelas<br />
imagens de Nosso Senhor era fiel,<br />
e que aquele era o semblante que<br />
Ele tivera em sua vida terrena.<br />
Sempre dado a examinar as<br />
pessoas pelo rosto, instintivamente<br />
eu analisava por longo tempo<br />
a fisionomia d’Ele. Sobretudo<br />
naquela imagenzinha do Sagrado<br />
Coração de Jesus, presente no<br />
oratório do quarto de mamãe.<br />
Longamente, atentamente, meditadamente<br />
— quanto possa caber<br />
numa criança — eu a analisava. E<br />
Timothy Ring<br />
Pia batismal onde <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> foi batizado<br />
Igreja de Santa Cecília, São Paulo, Brasil<br />
ela condizia com a imagem que há num altar lateral da Igreja<br />
do Sagrado Coração de Jesus, também com a existente<br />
no teto dessa igreja, e formava assim uma resultante, uma<br />
espécie de figura central, que era o essencial dessas várias<br />
imagens, e como eu imaginava mais ou menos a Ele.<br />
Então vinham os episódios da vida de Nosso Senhor,<br />
e eu procurava me perguntar se aqueles fatos estavam de<br />
acordo com aquilo que imaginava da mentalidade d’Ele.<br />
E percebia que não só estavam de acordo, mas que os<br />
episódios tomavam um realce extraordinário, imaginando-os<br />
praticados por aquele Varão, com aquele rosto e<br />
aquela atitude. Aquela fisionomia explicava o episódio,<br />
e o episódio explicava a fisionomia. E eu me sentia, portanto,<br />
na verdadeira pista de entender como Ele era.<br />
Harmonia extraordinária<br />
entre as virtudes opostas<br />
Depois, eu procurava também ver o reflexo disso na Igreja.<br />
Dado que Nosso Senhor tinha tal fisionomia e, portanto,<br />
devia ter tal personalidade, se Ele precisasse fazer uma obra<br />
como a Igreja, tê-la-ia feito como ela é? E chegava à conclusão<br />
que sim, que era inteiramente o que Ele devia fazer.<br />
De onde, então, uma confirmação da Fé originária<br />
que, pela bondade de Nossa Senhora, recebi no Batismo.<br />
Como O imagino?<br />
Antes de tudo, contemplar a Humanidade santíssima de<br />
Nosso Senhor causa-me a impressão de cogitações enormemente<br />
superiores a tudo que se possa imaginar. Pensamentos<br />
de uma elevação, de uma altura,<br />
sem proporção com nada. Entretanto,<br />
sem podermos chegar<br />
nem de longe até onde Ele atingia,<br />
alguma luz desses pensamentos<br />
brilhavam em Jesus, e como que se<br />
via sua Alma inundada dessas luzes<br />
das quais Ele estava cheio.<br />
Seria mais ou menos como um<br />
homem que não pode entrar numa<br />
catedral à noite, mas nota pelo<br />
lado de fora que as luzes estão<br />
acesas dentro. Ele vê, portanto,<br />
a coloração dos vitrais iluminados;<br />
aproxima-se e ouve a música;<br />
avizinha-se ainda mais, o perfume<br />
do incenso chega ao seu olfato.<br />
Ele se encanta com a catedral,<br />
onde não entrou. Os sinais<br />
da catedral o fazem perceber algo<br />
da sua beleza.<br />
Assim se passava comigo em relação<br />
a Nosso Senhor. Percebia<br />
11
Sagrado Coração de Jesus<br />
Russ Bowling (CC 3.0)<br />
Igreja dos Dominicanos - Colmar, França<br />
qualquer coisa de uma elevação prodigiosa, mas desde o<br />
primeiro momento, desde o ponto mais profundo onde eu<br />
O poderia compreender, com essa característica de uma fusão<br />
harmoniosa, em nível indizivelmente alto, das virtudes<br />
mais opostas, formando uma harmonia extraordinária.<br />
De maneira que, por exemplo, uma força incomparável,<br />
mas de uma bondade incomparável também. Uma severidade<br />
inquebrantável, mas ao mesmo tempo um perdão de<br />
uma doçura sem fim. Um poder incomparável de tranquilizar,<br />
mas, de outro lado, também de mover para a luta e<br />
para a batalha. Uma superioridade divina, porém ao mesmo<br />
tempo uma possibilidade de descer, já não digo à última<br />
pessoa, mas a um cachorrinho, e fazer-lhe um benefício<br />
qualquer. Estou certo de que, se um cachorrinho se aproximasse<br />
de Nosso Senhor, Ele se alegraria com isso.<br />
Seu sono e seus silêncios<br />
Isso tudo indica a superioridade maravilhosa d’Ele,<br />
mas também sua imensidade, para que virtudes tão opostas,<br />
levadas a um grau tão alto, possam caber em Jesus<br />
com tanta harmonia, na qual estaria exatamente o que<br />
melhor o meu olhar pudesse pegar na sua natureza humana,<br />
como transparência da Divindade, da graça n’Ele.<br />
E por isso, muita gravidade, uma seriedade enorme!<br />
Impossível é não só vê-Lo dizer algo que não seja muito<br />
elevado, mas falar algo atrás do qual não haja uma elevação<br />
infinita, uma coisa infinitamente perfeita.<br />
Realmente, se tomarmos no Evangelho tudo quanto<br />
Nosso Senhor disse, já nas primeiras palavras adquire<br />
um tamanho que não se sabe<br />
o que pensar!<br />
E mesmo quando Ele<br />
dormia, seu sono era um<br />
arquissono, de uma perfeição,<br />
um equilíbrio, uma doçura,<br />
uma força, um poder<br />
de manifestação, uma santidade<br />
tal que se uma pessoa,<br />
que entendesse Quem<br />
e como Ele era, pudesse<br />
apenas passar uma noite inteira<br />
vendo-O dormir, consideraria<br />
essa noite como a<br />
mais feliz de sua vida.<br />
Os silêncios d’Ele! Há silêncios<br />
que cantam, outros<br />
feitos para a poesia, outros<br />
ainda para a prosa, para dizer,<br />
com afabilidade e intimidade,<br />
determinadas coisas<br />
que só o silêncio fala.<br />
Por exemplo, o Santo Sudário tem um silêncio eminentemente<br />
eloquente. Jesus está ali morto e nada n’Ele<br />
pressagia uma palavra. Entretanto, o que Ele diz sem falar<br />
é uma enormidade!<br />
Nosso Senhor, independentemente de falar, tinha<br />
uma imensidade de coisas dessas que explica porque os<br />
discípulos ficavam tão intrigados sobre Quem era Ele.<br />
Construir uma catedral para abrigar<br />
uma varinha utilizada por Ele<br />
Suponhamos que nesse silêncio Ele faça as coisas mais<br />
simples: colhe uma florzinha e a contempla, ou com uma<br />
varinha que tenha na mão risca um pouco o chão. Tem-se<br />
vontade de dizer:<br />
— Não mexam nesse riscado, porque Ele riscou!<br />
Alguém retrucará:<br />
— Isso não quer dizer nada!<br />
— Não mexam! As mãos de Nosso Senhor tocaram<br />
aqui e ficou alguma coisa que é sacrossanta, na qual não<br />
se deve mexer. Se você não entende vá embora, mas isto<br />
não sai daqui, ficará para sempre! Voltarei aqui todos os<br />
dias e me ajoelharei diante disto, e só não vou oscular o<br />
chão para não estragar o desenho que Ele fez.<br />
Para abrigar aquela varinha mandaríamos construir<br />
uma catedral! Entretanto essas coisas são apenas símbolos<br />
de uma realidade muito superior: o chão riscado por<br />
Ele representa a alma de cada um de nós, e a varinha,<br />
nosso livre-arbítrio que Ele tentou inclinar de um lado<br />
para o outro.<br />
12
Tenho a impressão de que a tintura-mãe do pensamento<br />
de Nosso Senhor era uma síntese harmônica, mas também<br />
frequentemente contrastante, entre o que Ele é, o<br />
que estava fazendo e aqueles para quem Ele estava agindo.<br />
Quer dizer, Jesus conhecia a imensidade de dons prodigalizados<br />
por Ele, via a indiferença com que esses dons<br />
eram recebidos, por vulgaridade de espírito, falta de senso<br />
metafísico, de senso sobrenatural, em uma palavra, falta<br />
de amor das pessoas beneficiadas. Contudo, Ele não se<br />
afastava daquelas almas, continuava a perceber o que tinham<br />
de bom e procurava ainda elevá-las, mas pensava a<br />
fundo sobre essa ingratidão e Se entristecia.<br />
Ele, olhando para cada um de nós, conhece inteiramente<br />
como somos. Com o olhar Ele saberia tratar a cada indivíduo,<br />
de tal maneira que, conforme Ele quisesse, a pessoa se<br />
sentiria vista até o fundo da alma nos lados ruins, ou nos lados<br />
bons. Naqueles, com uma rejeição por onde o indivíduo<br />
teria vontade de fugir do seu próprio pecado; nestes, com<br />
uma atração tal que a pessoa teria vontade de multiplicar<br />
por cem quintilhões a sua virtude, logo de saída!<br />
Mas, por uma bondosa condescendência para com os<br />
homens, Nosso Senhor não olharia inteiramente de um<br />
jeito nem de outro, a não ser nas situações excepcionais,<br />
para as pessoas poderem viver ao lado d’Ele.<br />
Os episódios da vida d’Ele são todos maravilhosos.<br />
Mas não me impressiona tanto este ou aquele fato, quanto<br />
as variedades do modo de ser pessoal d’Ele, enquanto<br />
andava de um lado para outro.<br />
Jesus chora pela morte de Lázaro<br />
e depois o ressuscita<br />
Sempre me impressionou a cena diante do sepulcro de<br />
Lázaro. Primeiro, a bondade com a qual Jesus chora junto<br />
ao sepulcro, porque Lázaro morreu. E depois, como<br />
que não podendo conter a sua própria dor, brada: “Lázaro,<br />
vem para fora!”, com um brado que eu imagino majestoso<br />
e fendendo a sepultura! E a vida volta em Lázaro.<br />
É uma coisa majestosa!<br />
Imaginá-Lo recebendo a censura de Maria Madalena:<br />
“Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria<br />
morrido.” 1 É, portanto, uma censura. Parecia estar insinuando<br />
que, pela relação de amizade existente entre os<br />
dois, Ele tinha obrigação de ter salvado Lázaro da morte.<br />
E, naquele momento, talvez Ele tivesse parecido a Maria<br />
Madalena ligeiramente tisnado de culpa.<br />
E como Jesus se portou nessa ocasião em que Ele não<br />
lhe deu nenhuma justificação? Foi para a sepultura, e<br />
quase pareceu justificar a censura, chorando. Então, por<br />
que deixou morrer? Por que não veio mais cedo? Ela disse<br />
que Ele poderia tê-lo salvo! Ele chora a morte que poderia<br />
ter evitado? Que pranto é este?!<br />
Ressurreição de Lázaro<br />
Colegiada de San Gimignano, Itália<br />
Nosso Senhor deu algo melhor do que salvá-lo da<br />
morte: foi tirá-lo da morte! Ele fez Lázaro ressuscitar!<br />
Não há o que dizer...<br />
Podemos imaginá-Lo vendo Maria Madalena, com<br />
certeza prostrada diante d’Ele, chorando com emoção<br />
dulcíssima, e Ele atendê-la como quem diz: “Minha filha,<br />
Eu te perdoo. Tu deverias ter compreendido que Eu<br />
não tenho falta! Mas dei-te um dom que não esperavas.”<br />
Depois, sabendo que a partir daquele milagre os fariseus<br />
tomariam a deliberação de matá-Lo, passar perto<br />
deles e fitá-los… Que olhar!<br />
Pensemos na sucessão de atitudes de Jesus, por exemplo,<br />
indo a Betânia descansar. Pode-se imaginar alguém<br />
mais adorável do que Ele, repousando no convívio afável<br />
com Marta, Maria, Lázaro e os Apóstolos? Ou com Nossa<br />
Senhora, certamente na vida cotidiana, ou na residência<br />
de Lázaro, recebendo as honras, conversando na intimidade,<br />
etc.?<br />
Como Nosso Senhor Se sentiria consolado de tanta infâmia,<br />
ao ver o que havia de maravilhoso naquelas almas que<br />
Ele estava formando na virtude! É uma coisa maravilhosa!<br />
Tudo isso junto, as várias atitudes d’Ele se sucedendo,<br />
sobretudo no momento de passar de uma posição para<br />
outra, me deixam especialmente encantado. v<br />
1) Jo 11, 32.<br />
(Extraído de conferências de 6/9/1984 e 11/7/1991)<br />
Reprodução<br />
13
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
A percepção infantil<br />
Refletindo a respeito da percepção simbólica da<br />
criança, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> tece importantes considerações<br />
sobre a formação e o desenvolvimento do caráter e do<br />
senso moral na infância.<br />
AEscolástica define o pulchrum como sendo<br />
splendor veritatis ou splendor bonitatis, isto é,<br />
enquanto a verdade ou a bondade se deixa apanhar<br />
em alguma coisa do seu real que a abstração não<br />
capta à maneira de símbolo, mas que a analogia apreende.<br />
É a percepção, por via da analogia, do verum e do bonum.<br />
O esplendor é propriamente a evidência, o jorro do<br />
ser enquanto verdadeiro ou bom, brotando na analogia.<br />
Isso é o pulchrum.<br />
Tocheiros e ordenação do espírito<br />
Eu tomo, por exemplo, aqueles tocheiros da Sala do<br />
Reino de Maria 1 que, para mim, têm pulchrum. Por que<br />
eles são belos? Porque refletem uma ordenação, um<br />
princípio profundo de ordem material — de peso, medida,<br />
etc. — pelo qual o cabo tem uma proporção com o<br />
corpo do tocheiro, e a tampa termina também adequadamente.<br />
São propriedades da matéria que assim se apresentam<br />
na sua boa ordenação.<br />
Mas isso não é o principal. O principal está no fato<br />
de haver nisso uma analogia com certa ordenação do<br />
espírito. Vendo a ordenação do tocheiro e o estado de<br />
espírito com que ela é análoga, apreendo o pulchrum<br />
nesse símbolo, isto é, na analogia do tocheiro com o estado<br />
de espírito, do qual compreendo algo que não entenderia<br />
a não ser considerando o tocheiro. Isso é o esplendor<br />
da bondade que há no tocheiro.<br />
O estado de espírito ideal é algo de muito esguio que<br />
floresce numa luz. Mas uma luz que cogita de coisas muito<br />
elevadas e discretamente coloridas, dentro de um pensamento<br />
harmônico, fechado e coroado. Um estado de<br />
espírito assim é excelente e corresponde ao estado próprio<br />
a uma alma.<br />
Abstração e simbologia<br />
A abstração, por sua vez, é mais intelectual e não joga<br />
tanto como a analogia. No processo acima descrito, há<br />
principalmente analogia.<br />
14
Tony Hisgett (CC 3.0)<br />
Parece-me não haver nada que ocorra ao espírito do<br />
homem sobre o qual não se possa fazer, ao mesmo tempo,<br />
uma abstração e uma simbologia. Inclusive a própria<br />
abstração pode ser objeto de um trabalho simbólico, e o<br />
símbolo pode ser objeto de um trabalho abstrativo.<br />
A meu ver, isso decorre da dualidade de nossa natureza,<br />
e o unum está numa espécie de domínio, por onde<br />
o espírito humano rege esses dois “olhos”, através dos<br />
quais ele vê para formar a imagem una.<br />
Essa faculdade unitiva do homem, por onde ele coordena,<br />
numa mesma linha, ambas as perspectivas, está no<br />
próprio unum do senso do ser. Ele se sente uno apesar<br />
de ter as naturezas animal e espiritual. E há uma coisa<br />
qualquer por onde um dos prazeres do homem está em<br />
estabelecer essa unidade e viver na degustação dela.<br />
Se uma criança em idade muito tenra fosse habituada<br />
a uma atmosfera embebida de pulchrum, de maneira<br />
que, quando ela soubesse pensar, visse nesse pulchrum o<br />
correlativo da abstração — portanto, um pulchrum muito<br />
alto, de elevada paragem —, e ficasse acostumada a encontrar<br />
nesse pulchrum o deleite de sua vida, tenho a impressão<br />
de que essa criança teria possibilidades de dar<br />
uma íncola do Reino de Maria de primeira ordem. Toda<br />
a prática da virtude, do amor de Deus, todos os élans de<br />
sua alma se elevariam muito mais facilmente para a Igreja<br />
Católica.<br />
Poderíamos nos perguntar como a criança vê isso, como<br />
é o seu espírito e, depois, como manter e desenvolver<br />
isso na criança.<br />
O mar: um universo, uma fábula!<br />
Em minhas recordações de infância junto ao mar, algo<br />
disso transparece que me ajuda a explicitar a doutrina<br />
que estou expondo.<br />
Eu via no mar um universo, uma fábula! O tamanho<br />
dele, seus movimentos, as ondas como se jogam, o ruído<br />
que fazem, o mistério do mar, o por onde ele é ao mesmo<br />
tempo um parceiro muito amigo, mas meio hostil, um<br />
tanto cheio de ciladas. No mar, entra-se noutro universo!<br />
Encantava-me tanto com o mar visto da terra, quanto<br />
com esta contemplada de dentro do mar. A praia por<br />
mim frequentada naquele tempo ficava muito distante<br />
das casas que, vistas de dentro do mar, pareciam pequenas.<br />
Na realidade, eram confortáveis residências de<br />
famílias da aristocracia ou da pequena burguesia de<br />
Santos.<br />
Estando imerso naquela imensa massa líquida, eu via,<br />
em determinado momento, acenderem-se todas as luzes<br />
das ruas e das casinhas. E de dentro de certo perigo que<br />
o mar representa, imaginar, ao mesmo tempo, o conforto<br />
aconchegado e às vezes luxuoso, seco e sem riscos daqueles<br />
lares, tornava a vida cotidiana tão bonita aos meus<br />
olhos, que às vezes eu ficava com uma certa pressa de<br />
voltar para casa a fim de entrar naquele mundo.<br />
Outro elemento, para mim indissociável dos anteriores,<br />
era meu gosto pelos frutos do mar.<br />
Todas essas impressões de criança faziam-me muito<br />
bem e davam-me a ideia do prazer da consciência que<br />
festeja a sua própria retidão, utilizando-se das coisas que<br />
15
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Jackman (CC 3.0)<br />
não são pecado e com elas preparando para si o festim<br />
da inocência.<br />
Uma coisa que a mim tornava pungente a consideração<br />
do mar era a despedida do navio, no meu tempo de<br />
infância. As pessoas se despediam no cais, se abraçavam,<br />
se beijavam, abanavam um lencinho, tudo feito com muita<br />
pompa, pois não sabiam se iriam rever-se. Tudo isso<br />
me dava a impressão de morte irremediável.<br />
Senso moral na criança<br />
A mesma operação realizada com o bem, com as coisas<br />
conformes a Deus e que rumam para Ele, efetua-se<br />
também com as coisas más, orientadas para o mal.<br />
A criança tem uma noção muito viva de um certo ponto<br />
auge de mal, ponto negro, horrível, do qual todas as<br />
coisas más participam, cada uma a seu modo. E possui a<br />
noção de que, na contextura da vida, o mal está como um<br />
abismo negro, mas “vivo”, com a boca aberta procurando<br />
tragá-la, e jogando contra ela nesta vida para arrastá-<br />
-la até lá. E a criança tem muita noção de que, consentindo<br />
com qualquer coisa de mal, faz consenso com aquele<br />
Satanás que está no fundo, procurando atraí-la.<br />
Daí um senso moral na criança que não é o do mero<br />
moralista que estuda o Direito Natural, mas é completado<br />
por esse aspecto simbólico, abstrativo, do qual estamos<br />
nos ocupando nesta exposição.<br />
A criança, por assim dizer, intui que o demônio existe;<br />
quando lhe contam, ela aceita com toda naturalidade.<br />
Ela tem medo de espíritos malfazejos, fantasmas, etc.<br />
A mentalidade infantil é tendente a perceber muito<br />
essas realidades, mas as condições de educação, já no<br />
meu tempo, iam fazendo a infância perder essa percepção.<br />
À medida que a pessoa que não perdeu essa percepção<br />
vai ficando mais velha, procura os vários reflexos disso<br />
em objetos diferentes. E vai constituindo na sua memória<br />
— sem ter nada de intencional, é uma coisa espontânea<br />
— galerias de impressões que têm significado para<br />
ela, e constituem uma espécie de tesouro do qual se destaca<br />
certo suco, distinto da mera recordação.<br />
Por exemplo, o mar. Não é mais este ou aquele mar,<br />
mas uma recordação somada de vários mares, naquilo<br />
que eles têm de comum e, portanto, meio abstrativo. Depois,<br />
isto mesmo conduz a um grau mais alto: o mar que<br />
não existe, mas poderia existir. Daí vem o auge, implicitamente<br />
presente já no primeiro momento.<br />
O sonho da alma irmã e o egoísmo<br />
A criança faz considerações dessas também em relação<br />
aos seus familiares. Isso corresponde a um período delicado<br />
da sensibilidade infantil, que origina verdadeiras crises.<br />
Assim como um indivíduo sabe o que é um pêssego e,<br />
vendo num prato o pêssego ideal, tem vontade de comê-<br />
-lo, também a criança tende a idealizar os seus maiores e<br />
os seus coetâneos. Nasce, então, a ideia do amigo ideal<br />
e, pouco depois, a do cônjuge ideal; ideias estas que são<br />
a projeção, para o terreno de uma perfeição imaginária,<br />
de pessoas pertencentes a uma humanidade que a criança<br />
queria conhecer e não conhece.<br />
Daí vem que todo menino, durante dez, onze anos,<br />
tem a ideia de conseguir um amigo ideal que ele procura<br />
no meio de seus companheiros, de seus parentes. Quando<br />
encontra, grande euforia! Depois, naturalmente, vem<br />
a conhecida decepção...<br />
Pouco depois, com a crise da puberdade, deixa de ser<br />
o amigo ideal e aparece a menina ideal. Então a namorada,<br />
a noiva, a esposa: a Dulcineia del Toboso de cada<br />
Dom Quixote, a Julieta de cada Romeu, e daí por diante.<br />
Mais ou menos isso se deu na Idade Média, onde, em<br />
certo momento, na evolução dos romances de cavalaria,<br />
surge muito a figura do amigo ideal. Porém, pouco depois,<br />
aparece a ideia da Dulcineia.<br />
A alma irmã ideal — quer seja como esposa, quer como<br />
amigo — representa para o indivíduo um desejo de<br />
ter relações como se teriam no Paraíso, se os homens fossem<br />
concebidos sem pecado original. Mas esse modo de<br />
entender a existência leva-o a procurar na vida a utopia<br />
de uma pessoa que fosse não conforme ao Paraíso de<br />
Deus, mas de acordo com o “paraíso” do egoísmo dele.<br />
Imaginar então alguém que é como ele quereria que<br />
fosse, segundo seu próprio capricho, e não segundo a regra<br />
posta por Deus; uma espécie de propriedade dele,<br />
podendo isso dar-se curiosamente sob a forma de um enlevo<br />
do sujeito consigo mesmo.<br />
16
Distintas concepções<br />
sobre o Paraíso Terrestre<br />
Pelo contrário, suponho<br />
que a ordem humana no Paraíso<br />
deveria ser tal que os<br />
homens, tratando uns com os<br />
outros, manifestassem certas<br />
belezas de Deus. Talvez assim<br />
se diferenciariam as nações e,<br />
dentro destas, as regiões, depois<br />
as famílias. Seriam faixas<br />
de perfeições divinas que<br />
iam aparecendo, de um jeito<br />
e de outro, dando a imagem<br />
de Deus.<br />
Como toda essa harmonia<br />
ficou quebrada com o pecado<br />
original, surge o papel único<br />
da Santa Igreja que, com a difusão<br />
do estado de graça, a<br />
boa orientação dada às pessoas<br />
na sociedade, etc., pode<br />
promover uma ordem de coisas<br />
que, sendo irremediavelmente<br />
a do pecado original,<br />
entretanto pode superar-se e<br />
chegar a uma perfeição muito maior do que teria sem a<br />
ação da Igreja Católica.<br />
Aliás, a propósito da hipótese da vida num Paraíso<br />
Terrestre onde não tivesse havido pecado original, ocorre-me<br />
a seguinte reflexão.<br />
A Igreja ensina que o homem, mesmo no Paraíso, não<br />
era imortal por sua própria natureza. A imortalidade era<br />
um favor, um dom concedido por Deus.<br />
Estamos habituados à ideia de que nos tornamos mortais<br />
porque nossos primeiros pais pecaram. Isso é verdade<br />
no sentido de que, se não tivessem pecado, Deus manteria<br />
o dom da imortalidade também para os descendentes.<br />
Mas, por sua própria natureza, todo ser humano é<br />
mortal, pois a matéria é corruptível.<br />
Como seria um Paraíso onde Deus não tivesse concedido<br />
o dom da imortalidade? Que papel teria a morte?<br />
Se o homem concebido sem pecado morresse, como<br />
isso deveria ser tomado? Qual é o papel desse fato na estética,<br />
na ordem do universo? A morte não é uma espantosa<br />
desordem, uma destruição?<br />
Devemos imaginar seres implantados sobre o seguinte<br />
paradoxo: a alma deles deseja a eternidade, e o corpo,<br />
que forma com a alma um só ser, é corruptível; e a alma,<br />
que ama o corpo, tem horror à corrupção de que o corpo<br />
é capaz.<br />
“O Paraíso” - Biblioteca de<br />
Sainte-Geneviève, Paris, França<br />
Reprodução<br />
O estado de prova<br />
Penso que esse problema<br />
está relacionado com uma coisa<br />
muito misteriosa, que é o<br />
estado de prova em que estiveram<br />
os anjos, e no qual se<br />
encontram os homens.<br />
O estado de prova é de si<br />
uma espécie de sofrimento<br />
pelo qual o homem tem que<br />
passar para provar a Deus o<br />
seu amor. Portanto, é um legítimo<br />
tributo, um imposto que<br />
ele paga, inerente a toda relação<br />
e não apenas à existente<br />
entre o Criador e a criatura.<br />
Por outro lado, essa destruição<br />
decorrente da morte<br />
é misteriosa, uma espécie de<br />
dor no universo pelo fato de a<br />
coleção dos seres ficar privada,<br />
de repente, de um de seus<br />
elementos, prejudicando sua<br />
beleza e sua integridade.<br />
E essa condição “banguela”<br />
da Criação, enquanto todos os<br />
homens não tivessem passado<br />
pelo estado da prova, era a condição triste de um mundo<br />
alegre, paradisíaco. De maneira que, salvo a ordem posta<br />
por Deus no Paraíso Terrestre, dando ao homem a imortalidade,<br />
tenho a impressão de que uma nota de tristeza,<br />
de ausência, de carência, nota até grave, era inerente a<br />
essa vida, apesar de todas as maravilhas e delícias do Paraíso.<br />
É a dor, sem a qual a estética das coisas não se preenche<br />
inteiramente, e que exerce o papel da tulipa negra<br />
realçando a beleza e a vivacidade das outras flores, em<br />
meio às quais ela está colocada.<br />
No Paraíso Terrestre, Deus tornaria menor a tulipa<br />
preta pela misericórdia d’Ele, concedendo a todos o dom<br />
da imortalidade. Contudo, ficaria sempre a possibilidade<br />
de os seres humanos caírem no pecado. Portanto, o mais<br />
grave da prova não seria tirado, isto é, a apreensão de pecar,<br />
o que é muito pior do que a apreensão de morrer.<br />
Assim, imaginar o Paraíso como um lugar de felicidade<br />
perpétua nesta Terra, sem tulipas negras, parece-me<br />
negar o importante papel da dor, das dificuldades, da luta<br />
na vida humana.<br />
(Extraído de conferências de 26 e 27/4/1984)<br />
1) Sala nobre da sede social do Movimento fundado por<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, situada na região central de São Paulo, Brasil.<br />
17
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
Noção de sacralidade<br />
Uma das principais características da alma de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
era a sacralidade. Seu modo de ser, de pensar, querer,<br />
agir, em suma, a visão que ele possuía do universo era<br />
sacral. Mas o que significa propriamente a sacralidade?<br />
Esse é o tema que ele desenvolve, com muitos exemplos,<br />
na conferência que a seguir transcrevemos.<br />
Anoção de sacralidade é uma das mais difíceis de<br />
explicitar, e não se deve dar apenas uma ideia<br />
teórica, mas apresentar exemplos, fatos concretos,<br />
circunstâncias, situações por onde as pessoas sintam<br />
e apalpem com a mão o tema. Portanto, não oferecer somente<br />
uma definição filosófica, que tem um grande valor,<br />
mas não passa de blá-blá-blá enquanto o indivíduo<br />
não sabe aplicá-la à realidade.<br />
A naveta<br />
Imaginemos um pobre cego de nascença, o qual não<br />
tem noção do que é cor, porém manda alguém ler para<br />
ele o que São Tomás diz sobre esse assunto. E, tomando<br />
um desses dicionários de tomismo, o leitor lê tudo quanto<br />
o Doutor Angélico fala a respeito de cor, para esse<br />
coitado ouvir. Esse cego forma então uma ideia teórica<br />
de cor. Pode adiantar alguma coisa, mas dá pena! Porque<br />
de tal maneira a visão direta da cor é mais do que a definição,<br />
que esta interessa, mas a visão direta é brutalmente<br />
insubstituível.<br />
Também no que diz respeito à sacralidade há algo que<br />
é preciso ter visto; não basta a definição para compreendermos<br />
no que consiste a sacralidade das coisas. E isso é<br />
muito difícil explicar.<br />
Tomemos aquele utensílio litúrgico em forma de nave,<br />
feito para conter o incenso para o turíbulo: a naveta. Ela é<br />
bonitinha; em geral, com suas formas, procura representar<br />
uma nau elegante, imprimindo um pouco de fantasia no<br />
objeto. Se alguém for estudar um livro sobre o assunto, verá<br />
que provavelmente é por causa de uma tradição antiga<br />
que se deu a forma de nau a esse utensílio.<br />
E há toda uma estrutura de fantasias, de ideias, de metáforas<br />
em torno da naveta, para indicar que o conter um<br />
incenso, destinado a ser queimado em honra de Deus, é<br />
de utilidade muito elevada, tem alguma coisa de sacral.<br />
Suponho tornar claro o quanto é adequada a palavra<br />
sacral, no emprego que lhe dei nesse caso. O que quer dizer<br />
aqui “sacral”?<br />
É uma referência que a forma da naveta tem a um ente<br />
infinitamente superior a ela. E quem desenhou daquela<br />
maneira a naveta aplicou a inteligência, dilatou o senso<br />
poético de maneira a poder fazer, daquele instrumento<br />
comum e inteiramente prático — em última análise,<br />
uma caixa com duas tampas, cuja forma é calculada para<br />
se poder pegar bem o incenso —, um objeto que, ao mesmo<br />
tempo e principalmente, remete nosso espírito para<br />
uma realidade não idêntica, mas análoga à naveta, e que<br />
põe o nosso pensamento muito mais alto.<br />
O que há nisso de sacral? É o fato de que essa realidade<br />
é tão mais alta, que ela chega a ser suprema, é o próprio<br />
Deus. É alguma coisa da dignidade do serviço divino<br />
que está lembrada nesse esforço de afeto, de fantasia poética<br />
e de raciocínio em fazer da naveta uma obra-prima.<br />
Entretanto, imaginemos uma naveta substituída por<br />
uma caixa qualquer, retangular, sem ornato, que se abre,<br />
se pega o incenso com os dedos e lança-se no turíbulo.<br />
Perdeu a sacralidade. Porque a forma não tem algo do<br />
sublimado que lembra a Deus.<br />
A espada e a guerra mecânica<br />
Outra coisa. Há muito a espada deixou de ser uma arma<br />
de guerra. Mas creio eu que, em quase todos os exér-<br />
18
citos do mundo, a espada ainda é usada como<br />
um distintivo dos oficiais.<br />
Ora, acontece que sem ser uma arma de<br />
guerra a espada, por uma porção de circunstâncias,<br />
de tal maneira simboliza o heroísmo,<br />
pelo qual o homem dá a vida por alguma<br />
coisa, que passou a ser um símbolo sem<br />
o qual o oficial não se apresenta, porque se<br />
duvida que ele seja oficial.<br />
O brilho niquelado, a linha reta, o ligeiramente<br />
afilado, o punho, tudo da espada<br />
lembra alguma coisa da espadachinada. E,<br />
queiram ou não queiram, na sensibilidade<br />
dos homens a batalha com a espada e a lança<br />
acabou sendo a batalha por excelência. A<br />
bomba atômica é incomparavelmente mais<br />
mortífera, mas uma batalha não é só matar,<br />
nem apenas vencer. Uma batalha é expor-se,<br />
fazer força, ter agilidade e bastante amor para<br />
fazer a proeza de um duelador.<br />
Numa batalha mecânica, um homem posto num ministério<br />
recebe instruções do Presidente da República:<br />
“Aperte o botão vermelho!” Ele sabe que vai deflagrar a<br />
guerra mundial, fazer explodir Moscou ou Washington.<br />
Aperta o botão: plum! Ninguém dirá: “Que guerreiro! Ele<br />
pôs por terra uma cidade!” Não! Ele é um datilógrafo!<br />
Assim como o datilógrafo pode ser levado pelo ofício<br />
a escrever a palavra “dedo” e, portanto, pôr duas vezes o<br />
dedo na letra “d”, assim aquele indivíduo teve que colocar<br />
o dedo numa tecla e, com duas pressões no botão vermelho,<br />
explodiu uma cidade; portanto é um datilógrafo.<br />
Ele foi mais eficaz do que todos os guerreiros do mundo,<br />
mas a guerra não se restringe à eficácia. Por algum lado,<br />
a guerra é, sobretudo, holocausto. É o homem dar-<br />
-se, mas dar-se com sua força, em que ele entra, permanece<br />
e se afunda no perigo. Então ele é propriamente herói,<br />
não porque venceu, mas porque se expôs ao risco por<br />
uma coisa mais alta.<br />
Participação no supremo<br />
E essa coisa mais alta, o que é?<br />
Não é simplesmente uma coisa mais alta, mas é algo<br />
de supremo. Enquanto essa ideia de meta suprema —<br />
não podendo haver nenhuma outra acima dela — não<br />
for alcançada, a noção de sacral também não está atingida.<br />
Imaginemos, por exemplo, que num país qualquer<br />
dois municípios declarem guerra um ao outro, por causa<br />
da posse de um riacho e das suas margens que correm na<br />
divisa entre os dois municípios. Então os caçadores que<br />
possa haver nos dois municípios formam duas pequenas<br />
Batalha das Navas de Tolosa<br />
Palácio do Senado, Madri, Espanha<br />
brigadas, que vão entrar em luta uma com a outra. Meta:<br />
garantir a posse do riacho para o município.<br />
Aqueles homens vão fazer o sacrifício da vida. Mas é<br />
sublime que eles façam o sacrifício da vida, ou é ridículo?<br />
Perfeitamente ridículo! E eu diria: “Por esse riacho não<br />
dou uma gota do meu sangue! Vocês cozinhem e fervam<br />
essa coisa como quiserem, mas não contem comigo! Vou<br />
mudar de município e ver a besteira de vocês de longe!”<br />
Enquanto não há a mais alta meta, a respeito da qual<br />
a pessoa possa dizer: “Na escalada dos ideais nada chegou<br />
tão alto”, a noção de sacralidade não está presente. É<br />
necessária uma certa participação no supremo. Enquanto<br />
não houver essa participação no supremo, podem existir<br />
outras coisas, mas sacralidade propriamente não há.<br />
Suponhamos que um oficial de justiça fosse levar uma<br />
notificação judicial para determinada pessoa que, enfurecida<br />
com a intimação, desse um tiro no oficial. E este, enquanto<br />
estivesse sendo conduzido para o hospital, pensasse:<br />
“Que miserável profissão eu tive que adotar! Mas, o<br />
que posso fazer? Foi o único meio que encontrei para assegurar<br />
a minha vida tranquila. Se morrer, morri...”<br />
Seria uma morte sublime? Evidentemente, não.<br />
Mas se um oficial de justiça refletisse: “Estou morrendo<br />
no cumprimento de um mandato judicial. Se não houvesse<br />
oficiais de justiça no mundo, os juízes não poderiam<br />
julgar e a ordem da sociedade humana estaria convulsionada.<br />
E assim, o próprio desígnio do Criador, estabelecendo<br />
homens na Terra, não se realizaria inteiramente.<br />
Eu morro certo de que estava executando uma parte<br />
mínima do plano de Deus. Mas eu adoro esse Deus, a<br />
Quem eu tive que carregar o pequeno grão de areia de<br />
minha profissão. Por isso, morro contente!” Eu poria no<br />
epitáfio desse homem: “Morreu com fidelidade.”<br />
Andres Rojas (CC 3.0)<br />
19
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
Finster Dernart (CC 3.0)<br />
Semelhança especial com Deus<br />
Nos exemplos acima mencionados mostrei que, vistos<br />
por um ângulo, naveta, guerra e oficial de justiça apresentam<br />
uma chispada de sacralidade; vistos de outro ângulo,<br />
não.<br />
A sacralidade é, pois, aquilo por onde se nota mais facilmente,<br />
em determinada atitude, pessoa ou coisa, seu<br />
relacionamento com Deus, através de sua inserção no<br />
plano divino e de sua semelhança com o Altíssimo. Portanto,<br />
sacral é tudo aquilo que tem especiais qualidades<br />
para lembrar os supremos atributos de Deus.<br />
Um diamante, como o Koh-I-Noor que está na coroa<br />
da Rainha da Inglaterra, pode ser considerado sacral<br />
porque tem um brilho, uma beleza que facilmente<br />
lembram, por exemplo, a rutilância da inteligência<br />
divina.<br />
Entretanto, uma torre de uma igreja ou de castelo<br />
góticos pode ser sacral porque, muito melhor<br />
do que simplesmente uma pedra preciosa, lembra<br />
a alma cheia de sagrado que compôs aquele edifício.<br />
E, através da alma sacral que ama a sacralidade,<br />
chega-se muito mais próximo de Deus. Aquilo<br />
que traz consigo uma certa semelhança especial<br />
com Deus, a qualquer título, é sacral.<br />
Dir-se-ia que um grão de areia não é sacral,<br />
pois é feito para ser pisado. Sem embargo,<br />
quem o analisa com finura percebe que, como<br />
tudo quanto existe, também ele tem um lado<br />
sacral. Não há um lado saliente, protuberante,<br />
principal, é preciso procurar para encontrar;<br />
mas procurando, encontra-se mesmo.<br />
Tudo quanto existe tem um lado sacral.<br />
Por isso, por exemplo, vendo-se passar<br />
numa procissão o clero nota-se mais<br />
sacralidade do que se observando caminhar<br />
o povo. Porque o clérigo se dá<br />
a Deus, é consagrado. O padre, quando<br />
dá a absolvição, não é ele quem fala, mas<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo que Se serve<br />
da laringe dele para perdoar.<br />
E se o bispo está presente na procissão aumenta a sacralidade,<br />
porque o padre tem apenas uma participação<br />
na plenitude do sacerdócio, pode consagrar o pão e o vinho,<br />
dar os Sacramentos; mas o bispo ministra um Sacramento<br />
que o padre não pode dar: o bispo ordena padres.<br />
E se nessa procissão caminhasse o Papa, não havia palavras<br />
para dizer, porque ele é a chave de cúpula da Igreja;<br />
por assim dizer, toca em Deus com as mãos.<br />
Quem ama verdadeiramente a Deus está continuamente<br />
analisando as coisas conforme elas representem o<br />
Criador ou não, sejam sacrais ou não. E as ama de acordo<br />
com a dose de sacralidade que têm.<br />
Civilização sacral e civilizações mecânicas<br />
Uma civilização é autenticamente civilização na medida<br />
em que faça brotar de dentro de todas as coisas toda a<br />
sacralidade de que elas são capazes. Quer dizer, pela arte,<br />
pela literatura, pela conformidade dos espíritos, por<br />
tudo, faça realçar o caráter sacral constantemente; essa é<br />
uma grande civilização.<br />
Há um conceito corrente de civilização que é o de fazer<br />
com que as pessoas deixem a barbárie. Esse conceito contém<br />
algo de verdadeiro, nesse sentido de que quanto mais<br />
selvagem, mais o homem se distancia do modelo divino que<br />
ele deveria seguir, e se apresenta parecido com o demônio.<br />
Mas essa definição negativa é pobre. A definição positiva<br />
é muito mais rica e apresenta uma analogia. A civilização<br />
sacral é a que faz o homem encontrar em tudo analogias<br />
com Deus Nosso Senhor. Não porque ele as fabrique,<br />
mas porque elas existem. Não se trata de inventar, trata-se<br />
de encontrar, que é uma coisa muito diferente.<br />
Daí decorre que as civilizações laicas são fundamentalmente<br />
cafajestes porque elas tendem só para o prático.<br />
E um homem que, por exemplo, diga: “Essa naveta<br />
pode ser posta de lado, porque encontrei uma caixa que,<br />
uma vez apertada, lança um spray de incenso.” Até talvez<br />
seja mais prático, mas eu responderia a esse homem o seguinte:<br />
“Realmente, isso é mais prático, mas não vale de<br />
nada porque não tem nenhum sentido de sacralidade.”<br />
O inconveniente das civilizações muito mecânicas é que<br />
elas são repletas de coisas que não têm sacralidade. Por<br />
exemplo, o telefone não tem nada que lembre algo de divino.<br />
Por isso, querer dar a ele uma forma sacral é completamente<br />
artificial. Porque o telefone foi concebido numa época<br />
em que o mundo estava saindo do não mecânico e entrando<br />
para o mecânico, com a maior voragem e o maior<br />
desejo possível. E em consequência não considerou o telefone<br />
com o espírito sacral que acabaria por moldá-lo, mas<br />
tão somente pela sua finalidade ou sua forma prática.<br />
Catedral de Estrasburgo, França<br />
20
Algo que poderia comunicar<br />
sacralidade ao telefone seria<br />
encontrar, em sua história,<br />
algum episódio em que ele serviu<br />
para transmitir uma determinada<br />
mensagem a um santo<br />
que, ao receber o telefonema,<br />
levantou-se e cantou o Magnificat<br />
com o aparelho na mão.<br />
E disso se faria um quadro de<br />
São Fulano com as mãos elevadas<br />
e, por distração, com o telefone<br />
em uma das mãos. Daí<br />
viria uma relação do telefone<br />
com os Anjos que transmitem<br />
boas notícias para os homens.<br />
O Arcanjo São Gabriel que levou<br />
a Nossa Senhora a notícia<br />
da Anunciação, por exemplo.<br />
Ele foi, até certo ponto, o “telefone”<br />
angélico e vivo de Deus.<br />
Poderia surgir, então, uma<br />
forma, algum elemento que<br />
desse ao telefone certa poesia,<br />
pois estaria vinculado à história<br />
de um lance muito poético<br />
da vida humana.<br />
A Idade Média e o<br />
mundo da Revolução<br />
O que há de mais sacral na Terra? É o Santíssimo Sacramento.<br />
Por mais que procurem, nada pode comparar-se<br />
em sacralidade com Ele. Mas Nosso Senhor está<br />
oculto sob as espécies eucarísticas. De maneira que em<br />
torno do Santíssimo Sacramento a Igreja constitui todo o<br />
culto eucarístico, que é um universo de sacralidade; porém<br />
Ele, considerado em Si, é sacral porque é o próprio<br />
Deus que está oculto ali sob aquelas aparências. Mas Ele<br />
não dá a sensação dessa realidade.<br />
Depois do Santíssimo Sacramento, a realidade mais<br />
sacral é a alma de um santo. E o que torna sacral uma<br />
civilização é ter muitos homens que admiram a santidade<br />
mais do que tudo, e se não chegam até a santidade, ao<br />
menos tendem para ela com todo o seu ser.<br />
Na vida civil, aquilo que fala de sacrifício, de holocausto,<br />
de generosidade, de esforço heroico é mais sacral<br />
do que o que fala de lucro, de conforto, de bem-estar.<br />
A época que mais alto levou a sacralidade foi, evidentemente,<br />
a Idade Média. E a época que mais se<br />
distanciou da sacralidade, manifestamente, é o mundo<br />
da Revolução.<br />
S. Pedro, S. Paulo, S. Jerônimo, Sto. Agostinho e S.<br />
Gregório Magno diante do Santíssimo Sacramento<br />
Igreja de São Patrício, Massachusetts, EUA<br />
Gustavo Kralj<br />
O cantochão<br />
Qual é a relação que há entre<br />
a alma sacral e o cantochão?<br />
Toda alma verdadeiramente<br />
sacral apresenta isto de próprio:<br />
tratando com ela, e depois<br />
ouvindo alguma coisa de<br />
música sacra, tem-se a impressão<br />
de que aquela música é a<br />
musicalização daquela alma.<br />
Não há música, a meu ver,<br />
que melhor exprima a atitude<br />
que o homem tomaria se estivesse<br />
em presença de Deus do<br />
que o cantochão.<br />
O cantochão tem algo de especial<br />
que é a presença de um<br />
misto equilibrado de serena e vigorosa<br />
alegria, com comedida e<br />
bem suportada tristeza. Mesmo<br />
quando ele canta coisas alegres,<br />
vê-se que o homem que canta<br />
tem consciência de que ele está<br />
dentro de um mundo marcado<br />
pelo pecado, sofre o castigo<br />
do pecado e está sujeito a qualquer<br />
hora à desventura. E, pior<br />
do que tudo, à possibilidade de<br />
pecar, de ofender a Deus e de<br />
perder-se. E isso põe nele uma<br />
nota contínua de sofrimento, por onde ele olha as coisas seriamente,<br />
como trazendo perigos, riscos, mas com força, como<br />
quem diz: “É verdade, mas com a graça de Deus isso eu<br />
aguentarei, e chegarei até o fim no cumprimento da vontade<br />
do Altíssimo, no equilíbrio de minha alma.”<br />
Alguém objetaria:<br />
— <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, sinto falta de ar! Estou habituado a uma<br />
ordem de coisas mais arejada, que não esteja referindo<br />
ao sagrado continuamente, mas à coisa considerada em<br />
si mesma, sem referência a Deus. Esse seu Deus me persegue<br />
na ponta de todas as coisas.<br />
Eu diria:<br />
Você não entendeu nada. Pelo contrário, no sacral<br />
descansa-se do que não é sacral. O que não é sacral é que<br />
cansa, nauseia. Para mim, descansar é sacralizar.<br />
Eu quisera que cada um de nós estivesse constantemente<br />
olhando para os mais altos píncaros, e para os aspectos<br />
mais sacrais que as coisas podem ter. E ao olhar<br />
as coisas, observá-las sempre pelo lado sacral. v<br />
(Extraído de conferência de 4/1/1989)<br />
21
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Princípios do autêntico<br />
regionalismo<br />
O verdadeiro católico deve ser uma pessoa de princípios, não só<br />
no campo religioso e moral, mas também no social e cultural.<br />
A partir do momento em que se olvidam os princípios, sua<br />
decadência está em marcha. Isso se aplica também à sociedade<br />
orgânica: quando seus integrantes se esquecem dos princípios<br />
que a constituem, surge a Revolução.<br />
Retomando o tema tratado em conferências anteriores<br />
sobre as duas formas de vitalidade na<br />
sociedade orgânica 1 , nasce a seguinte questão:<br />
até que ponto se deve permitir e favorecer o desenvolvi-<br />
mento da vidinha e da “vidona”? Porque ambas, levadas<br />
ao seu último limite, destroem-se mutuamente.<br />
Então, até onde é conveniente estimular cada uma das<br />
duas, e qual é o ponto de conciliação que as mantém no<br />
Castelo de Hohenzollern<br />
Baden-Württemberg,<br />
Alemanha<br />
A. Kniesel (CC 3.0)<br />
22
Thomas Wolf (CC 3.0)<br />
Reprodução<br />
Acima, aspectos da cidade de Berlim, Alemanha.<br />
Abaixo, Imperador Guilerme II<br />
equilíbrio harmônico no qual a organização política do<br />
país deve firmar-se? E equilíbrio não só no tocante à organização<br />
política da nação, mas contrário à mania de<br />
centralizar na capital toda a vida cultural, social, enfim<br />
em todos os aspectos de um determinado gênero de atividades.<br />
A capital deve ser realmente a cabeça de todo<br />
país, em todos os sentidos, ou se poderia compreender<br />
várias capitais em função de diversos aspectos?<br />
Dinastias centralizadoras e<br />
dinastia descentralizadora<br />
A nação que mais conservou um equilíbrio nessa matéria<br />
— acabou perdendo, mas o manteve por mais tempo<br />
— foi a Alemanha.<br />
Os Bourbons 2 , na Espanha, foram centralizadores de<br />
primeira força. Também os Hohenzollerns 3 , na Alemanha,<br />
eram centralizadores. Contudo, a Alemanha não<br />
conseguiu, senão muito tarde, o predomínio de uma dinastia<br />
sobre as outras, e esse predomínio foi o dos Habsburgs<br />
4 , que eram muito descentralizadores por política,<br />
por índole e tudo mais, e não conduziram uma política<br />
de centralização, a não ser numa fraca medida. Então, na<br />
Alemanha isso ficou muito diverso.<br />
No tempo de Guilherme II 5 , por exemplo, a capital<br />
política e militar da Alemanha era Berlim, mas a capital<br />
artística podia bem ser considerada <strong>Dr</strong>esden, capital da<br />
Saxônia, ou em algum sentido Munique, capital da Baviera.<br />
Ambas, em todo caso, muito superiores a Berlim,<br />
debaixo desse ponto de vista artístico. Mas as capitais<br />
econômicas eram Colônia, na Renânia, e Hamburgo, na<br />
desembocadura do Reno. E daí por diante, encontramos<br />
o país servido por um sistema de comunicação esplêndido,<br />
centralista no fundo, mas que não conseguiu eliminar<br />
essas autonomias — porque são verdadeiras autonomias<br />
— que, por exemplo, na Espanha tenho a impressão<br />
de que os Bourbons acabaram suprimindo.<br />
Questões relativas ao equilíbrio entre o<br />
regionalismo e a unidade nacional<br />
Para termos esse equilíbrio bem mantido,<br />
devemos nos pôr nessa clareza dos princípios<br />
fundamentais sobre a vidinha regional e a “vidona”<br />
global.<br />
A comparação que eu fiz com o organismo<br />
humano tem um interesse apenas ilustrativo.<br />
Não é porque o organismo humano<br />
seja assim que a sociedade humana<br />
deve ser da mesma maneira. Como<br />
o organismo humano é desse modo,<br />
e tem uma analogia com o organismo<br />
social, neste caso concreto ele seria<br />
o padrão mais natural a ser dado como<br />
elemento para explicar o organismo<br />
social; tendo, portanto, um valor didático<br />
para abrir hipóteses.<br />
Para tratar da questão do ponto de<br />
equilíbrio, devemos, antes de tudo,<br />
nos desligar de falsas formulações,<br />
Reprodução<br />
23
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Richard Huber (CC 3.0)<br />
Bert kaufmann (CC 3.0)<br />
<strong>Dr</strong>esden (à esquerda) e Munique, Alemanha<br />
pois se as admitirmos, caímos num dédalo, num pântano.<br />
A questão não é somente se perguntar em tese, em<br />
qualquer nação do mundo, qual o equilíbrio que deve haver<br />
entre o regionalismo e a unidade nacional. Isso seria<br />
uma coisa mal apanhada. A questão é diferente. Dadas<br />
as condições concretas de um determinado país, se<br />
essas condições fossem inteiramente normais e as coisas<br />
próprias a essa nação se tivessem resolvido normalmente,<br />
no que consistiria o equilíbrio? Este seria um primeiro<br />
ponto.<br />
Segundo: dado que o país não está em condições normais,<br />
enquanto essas não se verifiquem, qual é o equilíbrio,<br />
já não ideal, mas possível?<br />
E um terceiro ponto: que política existe para chegar<br />
ao normal e conseguir, então, o equilíbrio ideal?<br />
No Brasil há uma unidade indiscutida<br />
Considerando sempre que esse equilíbrio ideal é diferente<br />
de país para país, vou dar um exemplo que é muito<br />
característico: uma comparação entre o Brasil e a Espanha.<br />
O Brasil é um país com pequenas fricções entre um<br />
Estado e outro, questões limítrofes, um pouco de birra,<br />
implicância, mas de um modo geral muito unido. Apesar<br />
de existirem tantos fatores de desunião: extensão geográfica<br />
enorme, a possibilidade de a maior parte dos Estados<br />
existirem economicamente como nações independentes<br />
sem precisarem das outras, e uma série de outras<br />
coisas, o que faz a unidade do Brasil que, salvo circunstâncias<br />
artificiais, é uma unidade indiscutida?<br />
Creio que se puser essa questão para qualquer brasileiro<br />
médio da rua, ele vai achar essa pergunta esquisita,<br />
porque essa união parece tão natural, que levantar<br />
um problema a esse respeito lhe pareceria singular. É um<br />
pouco como perguntar por que os dedos não se destacam<br />
da palma da mão. Quem perguntasse isso pareceria meio<br />
louco, por estar questionando o inquestionável.<br />
Seria também como um casal bem constituído a cujos<br />
filhos se perguntasse por que os pais não se divorciam.<br />
Eles cairiam das nuvens! “Papai se divorciar de mamãe?<br />
Não é possível, não acontece! Sua indagação não me interessa,<br />
pois você pergunta o absurdo!”<br />
Quando uma realidade como essa é admitida por todos,<br />
e ninguém levanta a pergunta sobre por que ela é<br />
aceita, debaixo de certo ponto de vista, ela conseguiu<br />
condições ótimas de existência.<br />
Tendência para o centrípeto<br />
e para o centrífugo<br />
É preciso, entretanto, conhecer esses princípios porque<br />
sempre que os princípios constitutivos de uma ordem<br />
são esquecidos, surge a Revolução.<br />
Então, há uma aparente antinomia: as condições são<br />
ótimas quando o assunto nem é levantado, mas o tema<br />
não é levantado por causa de uma longa tradição da<br />
profissão dos mesmos princípios. Depois, a situação ficou<br />
tão sólida que até se esqueceram dos princípios; ela,<br />
ao mesmo tempo em que dava esse sintoma de solidez,<br />
abria as portas para o adversário porque, esquecidos os<br />
princípios, a Revolução entra.<br />
Como se fixa o ponto de equilíbrio?<br />
Por certas razões psicológicas, culturais, históricas e outras,<br />
em determinados países o princípio centrípeto adqui-<br />
24
e mais vigor do que o centrífugo, mas o adquire de um<br />
modo vivo, e não artificial. Não é uma constituição eleita<br />
por um contingente preestabelecido, que se reúne e executa<br />
uma palavra de ordem urdida por uns poucos e imposta<br />
aos demais, inclusive utilizando-se dos meios de comunicação<br />
em massa. Não é isso! A tendência para o centrípeto<br />
aumentou organicamente, e a tendência para o<br />
centrífugo teve que diminuir, como que automaticamente.<br />
Às vezes dá-se o contrário. Quando é que existe a<br />
tendência para o centrífugo? Esta questão nos interessa<br />
mais do que a tendência para o centrípeto, pois nosso<br />
estudo visa a defesa do centrífugo quase anulado contra<br />
o centrípeto hipertrofiado. Portanto, interessa-nos mais<br />
conhecer o centrífugo e robustecê-lo para restabelecer o<br />
equilíbrio.<br />
Papel da capital de um país<br />
A condição de vitalidade de todo grupo humano consiste<br />
em que ele se reúna em torno de um grupo menor<br />
de pessoas, que sejam os modelos geralmente admitidos<br />
como tais pelos inferiores. A partir desse momento, tudo<br />
quanto os modelos fazem interessa ao pessoal menor,<br />
cujo centro e diversão passam a ser acompanhar, saber o<br />
que fazem, o que pensam, o que dizem aqueles que são<br />
admitidos como modelos.<br />
Acontece que a eliminação das influências diretivas<br />
locais destrói a cidade ou a região, e elimina a vida, porque<br />
a vitalidade consiste em ter um elemento diretivo em<br />
torno do qual se constitua um relacionamento interessante.<br />
Esse elemento diretivo não deve ter os olhos fixos<br />
sobre a capital, mas frequentá-la apenas enquanto uma<br />
variedade que aumenta a vitalidade da capital, entretanto<br />
não para se revestir dos aspectos, hábitos e mentalidade<br />
dela.<br />
Quer dizer, a capital deve ser um ponto de convergência,<br />
e não de liquidificação das diferenças. Concebida assim,<br />
a tendência centrípeta faz com que cada indivíduo<br />
vá para a capital com a preocupação de marcar e tornar<br />
presente a sua peculiaridade, e não de disfarçá-la, afundando-se<br />
na homogeneidade da capital.<br />
Donde nós temos uma distinção entre dois centros: os<br />
que devoram as periferias, os quais são, por assim dizer,<br />
criminosos, praticam o “banditismo” da eliminação dos<br />
que a eles recorrem; e, pelo contrário, os centros que brilham<br />
com todo o fulgor das diferenças que neles se encontram,<br />
onde os mais altos personagens parecem dizer<br />
ao mundo: “Vejam que amplitude de diferenças temos a<br />
glória de abarcar!” E não o oposto: “Vejam que amplitude<br />
de homogeneidade nós dominamos!”<br />
Império Austro-Húngaro<br />
Por exemplo, em Viena, ainda nos últimos anos do<br />
Império Austro-Húngaro, em certas cerimônias não cosmopolitizadas<br />
— a coroação do Imperador como Rei da<br />
Hungria, da Boêmia, ou tomando posse da dignidade imperial<br />
— poder-se-ia compreender que afluíssem para lá<br />
magnatas húngaros com trajes típicos, elementos das várias<br />
ordens do país, inclusive alguns dignatários eclesiás-<br />
Heinrich Schuhmann (CC 3.0)<br />
Szilas (CC 3.0)<br />
À esquerda, Imperador Carlos IV, Imperatriz Zita<br />
(Rei e Rainha da Hungria) e seu filho, Príncipe Otto;<br />
à direita, coroação de Francisco I como Rei da Hungria<br />
25
Gribeco (CC 3.0)<br />
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
ticos com trajes de ritos orientais católicos, em vigor em<br />
certas partes do Império Austro-Húngaro, junto com clérigos<br />
com trajes de rito latino. Depois, elementos da nobreza,<br />
magnatas, altos aristocratas da Boêmia, chefes locais<br />
dos países da zona adriática do Império, tiroleses,<br />
etc., cada um com suas qualidades, seus atributos, comparecendo<br />
à cerimônia, e a glória do Império sendo a refulgência,<br />
a feeria dessas luzes diferentes. Isso eu acho<br />
uma coisa magnífica!<br />
A estandardização é a morte, e começa por matar as<br />
influências locais.<br />
Para ser possível essa variedade, seria preciso que cada<br />
elemento da sociedade desse o seu contributo, que<br />
consiste em evitar uma certa faceirice de querer ser admirado<br />
pelo mundo inteiro. É própria do regionalismo<br />
uma sadia indiferença em relação à apreciação do mundo<br />
sobre ele.<br />
Suponhamos que à coroação do Imperador da Áustria<br />
como Rei da Hungria compareça um alto dignatário<br />
do poder judiciário, com traje que tenha reminiscência<br />
indumentária dos primeiros juízes do tempo de Santo<br />
Estêvão ou de Santo Américo, por exemplo. E que se<br />
encontre, na mesma arquibancada, com um magistrado<br />
austríaco vestido à maneira da indumentária judiciária<br />
que se espalhou em todo o Ocidente no século XIX: monótona,<br />
com ar de agente funerário. O magistrado vestido<br />
com traje típico não deve ter vergonha disso, mas sim<br />
uma noção viva de todas as possibilidades, de todo o valor,<br />
de todo o padrão humano que há na própria regionalidade.<br />
Falo do magistrado, mas poderia dizer do professor<br />
universitário, dos chefes das pequenas tropas locais,<br />
e todo o pessoal a seu modo proeminente. Eles devem<br />
Contenda entre músicos (por Georges de la Tour)<br />
Getty Center, Los Angeles, EUA<br />
se aprofundar no espírito local, que possui matéria-prima<br />
para constituir um pequeno universo, e ter o espírito<br />
aberto para isso.<br />
Profundezas do autêntico regionalismo<br />
E aqui surge uma tese muito importante, difícil de<br />
provar, mas que é mais ou menos intuitiva: a ideia de<br />
que todo regionalismo autêntico tem profundezas quase<br />
inesgotáveis, e o progresso não se faz encontrando um<br />
ponto de estancamento, mas aprofundando; o que, sob<br />
certo ponto de vista, equivale a dizer acentuando.<br />
Teríamos, então, um primeiro princípio, que já não é o<br />
da vidinha e da “vidona”, mas o da inesgotabilidade das<br />
peculiaridades locais; a esse princípio devem-se acrescentar<br />
dois outros.<br />
Um deles é que tais aprofundamentos, ao contrário do<br />
que se diz, não preparam necessariamente a luta com outras<br />
regiões, mas sim um entendimento com elas, porque<br />
se a Doutrina Católica é bem conhecida, cada um ama o<br />
próximo com suas peculiaridades, singularidades, e, portanto,<br />
cada região cumpre o mandamento de amar a outra<br />
como a si mesma, prezando as peculiaridades da outra,<br />
de algum modo como ama as suas próprias peculiaridades,<br />
e procurando a harmonia.<br />
Se a rivalidade destruiria o convívio dos indivíduos<br />
numa família, por que não há de extingui-lo nas regiões<br />
de um país? Analogamente destrói. Numa família com<br />
cinco filhos, em que cada um implica com as características<br />
pessoais do outro e quer ser superior ao outro, o<br />
pressuposto da vida familiar está extinto.<br />
Então, as rivalidades regionais muito entretidas acabam<br />
sendo de uma nocividade profunda, e é preciso saber<br />
resolvê-las em profundidade. A<br />
inveja, a concorrência, o debique estúpido<br />
conduzem à dissolução. Nós<br />
não podemos conceber um regionalismo<br />
no qual esse espírito prepondere.<br />
Terceiro princípio: bem estudadas<br />
as condições locais de qualquer região,<br />
deve-se dar o necessário para<br />
que essa região se desenvolva inteiramente<br />
de acordo com aquelas condições,<br />
atingindo uma estatura correspondente<br />
à estatura psicológica e<br />
mental de que aquele povo é capaz.<br />
Contra-Revolução cultural<br />
Dou um exemplo. Tanto quanto eu<br />
saiba, as Baleares 6 constituíram outrora<br />
uma espécie de unidade na Es-<br />
26
José Luis Filpo Cabana (CC 3.0)<br />
Antoni I. Alomar (CC 3.0)<br />
panha, unidade variada,<br />
com subunidades,<br />
mas não percebi, até hoje,<br />
sinal de guerra entre<br />
elas; cada uma delas tratando<br />
de tirar de seu próprio<br />
modo de ser e das condições<br />
de sua terra, os melhores<br />
pratos, os melhores modos<br />
de cantar, de passear, de se entreter,<br />
de construir, etc., que as circunstâncias<br />
locais, trabalhadas por aqueles espíritos, permitem.<br />
De maneira que se trata de civilizaçõezinhas locais.<br />
Assim, o vinho, o queijo, o cancioneiro local, outras<br />
coisas muito adequadas, a variedade a que a isso se presta<br />
é enorme! Tudo isso constitui a condição para que o<br />
regionalismo exista.<br />
Portanto, estudar o plano meramente político, dizendo:<br />
“Eu gostaria que a Espanha tivesse suas regiões; logo,<br />
vou fazer uma constituição que teoricamente dá tais<br />
autonomias e tais franquias de impostos a cada região,<br />
e com isso a Espanha está descentralizada…”, é de uma<br />
superficialidade de espírito lamentável!<br />
A ação deve começar, pelo contrário, por uma espécie<br />
de Contra-Revolução cultural na qual se acentua, se procura<br />
valorizar e intensificar o que ainda exista ou existiu<br />
de próprio a cada região, de maneira que a psicologia<br />
dela comece de novo a borbulhar e a circular. Parece-me<br />
que seria uma coisa muito útil.<br />
Então, o que faz a unidade da nação? É um denominador<br />
comum psicológico forjado pela História, no qual<br />
todas essas regiões tenham ideais comuns. É a presença<br />
de algumas disposições de espírito, tradições, vínculos de<br />
GMA (CC 3.0)<br />
À esquerda, povoado de Sóller;<br />
acima, Palácio da Almudaina<br />
e Catedral; ao lado,<br />
dança típida - Palma de<br />
Mallorca, Espanha<br />
afeto em todas as peculiaridades<br />
locais, de maneira que as regiões<br />
se amem umas às outras.<br />
Isso produz uma espécie de concentração<br />
de luzes com cores diferentes,<br />
incidindo sobre o mesmo ponto. Surge daí<br />
uma “cor misturada” que é a nação, à qual corresponde<br />
um governo central, uma capital e um direito<br />
de lançar impostos, taxas para sua finalidade comum,<br />
sempre que isso não prejudique o justo e explicável predomínio<br />
de uma região que naturalmente sobressaia, e<br />
que constitui a base sobre a qual esse fator nacional deita<br />
raiz para irradiar sobre todo o país.<br />
Eis alguns princípios do verdadeiro regionalismo. v<br />
(Extraído de conferência de 16/8/1991)<br />
1) Ver <strong>Revista</strong> <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> n. 195, p.14-17.<br />
2) Dinastia que passou a governar a Espanha com Filipe V, em<br />
1700.<br />
3) Casa Real europeia que, em 1871, unificou os Estados germânicos<br />
e passou a governar o Império Alemão.<br />
4) Dinastia que imperou sobre o Sacro Império Romano-Germânico<br />
de 1273 a 1806, e sobre o Império Austro-Húngaro,<br />
de 1867 a 1918.<br />
5) Governou o Império Alemão de 1888 a 1918.<br />
6) Arquipélago localizado no Mar Mediterrâneo. Constitui<br />
uma comunidade autônoma na Espanha.<br />
27
Santiebeati.it<br />
C<br />
alendário<br />
dos Santos – ––––––<br />
1. Solenidade de Todos os<br />
Santos.<br />
São Nuno de Santa Maria,<br />
religioso (†1431).<br />
Condestável do Reino<br />
de Portugal. Após vencer<br />
muitas batalhas,<br />
abandonou o mundo<br />
e ingressou na Ordem<br />
dos Carmelitas.<br />
6. São Winoco,abade (†c. 716). Discípulo de São Bertino,<br />
no mosteiro de Sithieu. Mais tarde construiu o mosteiro<br />
de Wormhoudt, na França.<br />
7. Beato Vicente Grossi,presbítero (†1917). Fundador<br />
do Instituto das Filhas do Oratório, em Cremona, Itália.<br />
8. São Godofredo, bispo (†1115). Educado desde os cinco<br />
anos na vida monástica, foi abade beneditino e Bispo de<br />
Amiens, França.<br />
Beata Francisca<br />
de Amboise<br />
2. XXXI Domingo<br />
do Tempo Comum.<br />
Comemoração de Todos<br />
os Fiéis Defuntos.<br />
São Malaquias,bispo<br />
(†1148). Renovou a vida<br />
de sua Igreja na diocese<br />
de Down e Connor, na Irlanda.<br />
Faleceu no mosteiro de Claraval,<br />
em presença de São Bernardo.<br />
9. XXXII Domingo do Tempo Comum. Dedicação da<br />
Basílica de Latrão.<br />
Santo Ursino,bispo (†séc. III). Primeiro Bispo de Bourges,<br />
França. Transformou em igreja uma casa doada pelo<br />
senador Leocádio.<br />
10. São Leão Magno,Papa e Doutor da Igreja (†461).<br />
Santo André Avelino,sacerdote (†1608). Religioso da<br />
Congregação dos Cônegos Regulares (Teatinos). Fez o voto<br />
de cada dia progredir na virtude. Morreu em Nápoles, Itália.<br />
Julio Reis (CC 3.0)<br />
3. São Martinho de Porres,<br />
religioso (†1639).<br />
São Pedro Francisco Néron,presbítero<br />
e mártir (†1860). Religioso da Sociedade<br />
das Missões Estrangeiras de<br />
Paris, que depois de preso numa<br />
estreita gaiola e cruelmente golpeado,<br />
foi decapitado em Tonquim,<br />
Vietnã.<br />
4. São Carlos Borromeu,<br />
bispo (†1584).<br />
Beata Francisca de Amboise,<br />
religiosa (†1485). Duquesa<br />
da Bretanha, que após ficar viúva,<br />
fundou em Vannes o primeiro<br />
Carmelo feminino da França.<br />
5. São Donino,mártir<br />
(†307). Jovem médico, condenado<br />
na perseguição de Diocleciano<br />
a trabalhar nas minas<br />
da Mísmiya, na Cesareia<br />
da Palestina, e depois queimado<br />
vivo por permanecer cristão.<br />
São Nuno de Santa Maria<br />
11. São Martinho de Tours, bispo (†397).<br />
Beata Vicenta Maria,virgem (†1855). Juntamente com<br />
o Beato Carlos Steeb, fundou o Instituto das Irmãs da Misericórdia<br />
de Verona, Itália, para socorrer os aflitos, pobres<br />
e enfermos.<br />
12. São Josafá, bispo e mártir (†1623).<br />
Santo Emiliano,presbítero (†574). Após muitos anos de<br />
vida eremítica e algum tempo de ministério clerical, abraçou<br />
a vida monástica, em San Millán de la Cogolla, Espanha.<br />
13. Santa Maxelendes,virgem e mártir (†670). Segundo<br />
a tradição, foi morta ao fio da espada de seu pretendente,<br />
em Cambrai, França, por ter escolhido a Cristo como<br />
esposo e recusado aquele ao qual foi prometida por<br />
seus pais.<br />
14. Beata Maria Teresa de Jesus,virgem (†1889). Religiosa<br />
carmelita e fundadora do Instituto das Irmãs de Nossa<br />
Senhora do Carmo, em Montevarchi, Itália.<br />
15. Santo Alberto Magno,bispo e Doutor da Igreja<br />
(†1280).<br />
São Desidério,bispo (†655). Construiu muitas igrejas,<br />
mosteiros e edifícios de utilidade pública na sua diocese,<br />
Cahors, na França, não descuidando, entretanto, de tornar<br />
as almas um verdadeiro templo de Cristo.<br />
28
–––––––––––––– * Novembro * ––––<br />
16. XXXIII Domingo do Tempo Comum.<br />
Santa Margarida da Escócia, rainha (†1093).<br />
Santa Gertrudes, virgem (†1302).<br />
17. Santa Isabel da Hungria, religiosa (†1231).<br />
São Gregório Taumaturgo, bispo (†c. 270). Ver página 30.<br />
18. Dedicação das Basílicas de São Pedro e São Paulo,<br />
Apóstolos.<br />
São Romão, mártir (†303). Diácono da Cesareia, que ao<br />
ver os cristãos da Antioquia, Turquia, se aproximarem dos<br />
ídolos, os exortava a perseverar na Fé Católica. Por isso foi<br />
torturado e estrangulado.<br />
19. Santos Roque González, Afonso Rodríguez e João<br />
del Castillo,presbíteros e mártires (†1628).<br />
Santa Matilde,virgem (†c. 1298). Mulher de insigne<br />
doutrina e humildade, iluminada pelo dom da contemplação<br />
mística, foi mestra de Santa Gertrudes no Mosteiro de<br />
Helfta, Alemanha.<br />
20. São Silvestre,bispo (†c. 520-530). Bispo de Chalons-<br />
-sur-Saône, França. Aos 40 anos de seu sacerdócio, pleno<br />
de dias e virtudes, foi ao encontro do Senhor.<br />
21. Apresentação de Nossa Senhora.<br />
Santo Agápio,mártir (†306). Após ser preso e submetido<br />
a suplícios na Cesareia Marítima, foi lançado no Mediterrâneo,<br />
com pedras atadas aos pés.<br />
22. Santa Cecília,virgem e mártir (†séc. inc.).<br />
São Pedro Esqueda Ramírez,presbítero e mártir<br />
(†1927). Sacerdote preso e fuzilado em Teocaltitlan, durante<br />
a perseguição mexicana.<br />
23. XXXIV Domingo do Tempo Comum. Solenidade de<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo.<br />
São Clemente I, Papa e mártir (†séc. I).<br />
São Columbano,abade (†615).<br />
Beata Henriqueta Alfiéri,virgem (†1951). Religiosa<br />
das Irmãs da Caridade de Santa Joana Antida Thouret,<br />
exerceu seu apostolado junto aos encarcerados, em Milão,<br />
Itália.<br />
24. Santo André Dung-Lac, presbítero, e companheiros,<br />
mártires (†1625-1886).<br />
São Porciano,abade (†d. 532). Sendo jovem escravo,<br />
procurou refúgio num mosteiro da atual Clermont-Ferrand,<br />
França, no qual se fez monge e chegou a ser abade.<br />
25. Santa Catarina de Alexandria,<br />
virgem e mártir<br />
(†séc. inc.).<br />
São Márculo,bispo<br />
(†347). Segundo a tradição,<br />
morreu mártir<br />
no tempo do imperador<br />
Constante,<br />
na Numídia, Argélia,<br />
sendo lançado de<br />
um rochedo.<br />
26. São Sirício,<br />
Papa (†399). Santo<br />
Ambrósio o louva como<br />
verdadeiro mestre<br />
porque tomou sobre si<br />
a responsabilidade de todos<br />
os Bispos, os instruiu<br />
com os ensinamentos dos<br />
São Leão Magno<br />
Santos Padres e os confirmou<br />
com sua autoridade apostólica.<br />
27. Beato Bernardino de Fossa,presbítero (†1503). Religioso<br />
franciscano, propagou a Fé Católica em muitas regiões<br />
da Itália. Foi Superior Provincial nos Abruzos, na<br />
Dalmácia e Bósnia.<br />
28. Santo André Tran Van Trong,mártir<br />
(†1835). Por se recusar a pisar numa cruz,<br />
foi preso e após inúmeras torturas, foi degolado<br />
em Kham Duong, Vietnã.<br />
29. Beata Maria Madalena da Encarnação,<br />
virgem (†1824). Fundadora<br />
do Instituto das Irmãs da Adoração<br />
Perpétua do Santíssimo Sacramento.<br />
Morreu em Roma.<br />
30. I Domingo do Advento.<br />
Santo André, Apóstolo.<br />
Beato Luís Roque Gientyngier,<br />
presbítero e mártir (†1941).<br />
No tempo da ocupação militar na<br />
Polônia durante a guerra, foi vítima<br />
de crimes cometidos pelos inimigos<br />
da Igreja, martirizado perto<br />
de Munique, Alemanha.<br />
Santa Catarina de Alexandria<br />
29<br />
Marsyas (CC 3.0)<br />
Reproducção
Hagiografia<br />
São Gregório Taumaturgo<br />
Se Deus fez grandes milagres para resolver pequenos<br />
assuntos, com muito mais razão realizará milagres<br />
extraordinários para solucionar questões de altíssima<br />
importância, desde que peçamos com muita insistência e<br />
confiança, através de Nossa Senhora.<br />
Em 17 de novembro comemora-se a festa de São<br />
Gregório Taumaturgo, a respeito do qual temos<br />
os seguintes dados biográficos 1 :<br />
Gregório nasceu em Neocesareia 2 , por volta de 213. Foi<br />
discípulo de Orígenes e se tornou bispo de sua cidade natal.<br />
Ilustre por sua doutrina e santidade, ele o foi ainda mais<br />
pelo número e pelo brilho dos milagres extraordinários —<br />
razão pela qual foi chamado o Taumaturgo — que o tornaram,<br />
segundo o testemunho de São Basílio, comparável a<br />
Moisés, aos Profetas e aos Apóstolos.<br />
Por sua oração ele moveu do lugar uma montanha que<br />
o atrapalhava para construir uma igreja. Secou uma lagoa<br />
que era para seus irmãos uma causa de discórdia. Deteve<br />
as inundações do Rio Icus que devastavam os campos, introduzindo<br />
no rio seu bastão, o qual imediatamente criou<br />
raízes e se transformou numa grande árvore, formando um<br />
limite que o rio nunca mais excedeu.<br />
Muitas vezes ele expulsou os demônios dos ídolos e<br />
dos corpos e realizou muitos outros prodígios, pelos quais<br />
multidões de homens foram conduzidas à Fé de Jesus<br />
Cristo.<br />
Possuía também o espírito dos Profetas, e anunciava o<br />
futuro. No momento de deixar esta vida, tendo ele perguntado<br />
qual o número dos infiéis que permaneciam em Neocesareia,<br />
lhe responderam que não era senão dezessete. E<br />
dando graças a Deus ele disse: “Esse é o mesmo número<br />
dos fiéis, no começo do meu episcopado.”<br />
Escreveu vários trabalhos que, como seus milagres, ilustraram<br />
a Igreja de Deus.<br />
Morreu entre 270 e 275.<br />
Milagres incontestáveis e<br />
não fruto de sugestão<br />
Sem dúvida, é um grande santo!<br />
Cabe-nos analisar um pouco a natureza desses milagres,<br />
para entendermos alguma coisa da missão dele.<br />
É interessante que no enorme conjunto de santos a<br />
Providência, que sempre faz com que a quase totalidade<br />
deles opere milagres, entretanto escolhe alguns para realizar<br />
muitos milagres. Isso tem uma razão de ser profunda,<br />
porque os milagres operados em grande número pela<br />
mesma pessoa indicam mais a ação extraordinária de<br />
Deus. Que uma pessoa faça um ato miraculoso, já é inverossímil.<br />
Mas que realize muitos e muitos é mais inverossímil<br />
ainda, de maneira que esses milagres dão muito<br />
mais glória a Deus.<br />
E aqui está um homem que parece ter sido escolhido<br />
para mostrar que todos os dons de milagres do Antigo<br />
Testamento e da Igreja primitiva ainda se conservavam<br />
no século III, em que ele viveu.<br />
O que esses milagres têm de interessante é que nenhum<br />
deles pode-se explicar pela sugestão.<br />
Posso compreender que um maluco diga que uma cura<br />
em Lourdes foi feita por sugestão. Mas nenhum doido pode<br />
dizer que uma montanha ficou sugestionada, e por isso<br />
mudou de lugar; ou que um lago secou por uma sugestão.<br />
Alguém objetaria: “Ele sugestionou as pessoas que os<br />
viram.”<br />
A sugestão não dura a vida inteira. Está um monte aqui,<br />
que se move para lá. É uma sugestão das pessoas que viram;<br />
quando passa a sugestão, onde se encontra o monte?<br />
O monte deveria ter voltado para o lugar anterior...<br />
O lago estava cheio e, por um fenômeno de sugestão,<br />
as pessoas tiveram a impressão de que ele secou. Mas se<br />
assim fosse, quando passasse essa impressão, o lago deveria<br />
estar cheio de novo...<br />
Depois, aquele crescimento imediato de uma árvore<br />
porque ele colocou o bastão dentro da água. Terminada<br />
a impressão, as pessoas deveriam ver o bastão e não a<br />
30
árvore. Ora, viram uma árvore<br />
crescer imediatamente, a ponto<br />
de mudar o curso de um rio...<br />
Portanto, são milagres categóricos,<br />
incontestáveis.<br />
A Providência deu a este<br />
santo esse dom de milagres para<br />
que assim se compreenda<br />
como a Igreja é divina.<br />
Deus nos atende com<br />
liberalidade magnífica<br />
Mas foi só para isso? Não.<br />
Há ainda outras razões.<br />
Primeiro, uma montanha<br />
que precisava ir embora, para<br />
ele poder ter um lugar cômodo<br />
a fim de construir uma igreja.<br />
Foi um prodígio enorme, feito<br />
por ocasião de um pedido não<br />
muito importante. Porque, afinal<br />
de contas, se não se pode<br />
edificar uma igreja aqui, constrói-se<br />
lá. Não é irremediável<br />
que uma montanha esteja atrapalhando<br />
a construção de uma<br />
igreja...<br />
Por que a Providência deu a ele a graça de operar esse<br />
milagre, a propósito de uma coisa que parece não ser de<br />
primeira importância?<br />
É para mostrar como Deus é paterno, como a Providência<br />
é materna para conosco. Os milagres não se operam<br />
somente quando estamos com angústia, presos pela<br />
“garganta” pelas maiores tragédias. Mas Deus é Pai,<br />
Nossa Senhora é Mãe, e nos dão graças muito grandes,<br />
com uma liberalidade magnífica, mesmo quando não nos<br />
encontramos na última aflição.<br />
O “Livro da Confiança” 3 insiste neste ponto: é preciso<br />
pedir muito e com insistência, mesmo coisas que não sejam<br />
muito importantes, e ser-nos-ão concedidas.<br />
Aqui vemos um milagre enorme realizado apenas para<br />
simplificar a vida de um santo, a fim de que um desejo<br />
dele pudesse mais comodamente ser satisfeito.<br />
Outro milagre: seus irmãos estavam brigando por causa<br />
de uma lagoa, e ele a secou. É uma espécie de malicioso<br />
castigo para os irmãos. “Vocês estão se estraçalhando<br />
pela posse dessa lagoa? Pois bem, ela se tornará seca e<br />
não ficará com ninguém!”<br />
Provavelmente, se ele passasse uma boa descompostura<br />
nos irmãos, resolveria a contenda da mesma maneira; é um<br />
episódio íntimo, uma briguinha de família que não tem na-<br />
Ícone de São Gregório Taumaturgo<br />
Museu Hermitage, São Petersburgo, Rússia<br />
Reprodução<br />
da de mais trágico. Entretanto, foi<br />
feito o milagre para solucionar o<br />
caso.<br />
O terceiro milagre era para<br />
evitar as inundações de um rio.<br />
Também é uma coisa que a humanidade<br />
poderia continuar a<br />
existir se esse rio transbordasse.<br />
Agir com santa liberdade<br />
Isso nos deve conduzir à ideia<br />
de que, se para bagatelas dessas<br />
um santo pode ser atendido,<br />
podemos ser acolhidos também<br />
quando pedimos coisas muito<br />
mais importantes. Porque quem<br />
faz o mais, faz o menos. E se é<br />
mais extraordinário fazer um milagre<br />
por uma bagatela, é menos<br />
extraordinário realizá-lo para<br />
uma coisa que não seja bagatela.<br />
Portanto, pelas necessidades<br />
da nossa vida espiritual, quantas<br />
montanhas devem ser removidas,<br />
quantas lagoas têm que ser<br />
secadas, quantas inundações que<br />
transbordam e precisam ser remediadas!<br />
E com quanta confiança devemos, portanto,<br />
nos dirigir a Nossa Senhora pedindo a Ela esses favores!<br />
Alguém me dirá:<br />
— Ah, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, antes fosse como o senhor diz... Mas<br />
a questão é que nós não somos São Gregório Taumaturgo.<br />
Ele era um santo e conseguia.<br />
Eu respondo:<br />
São Gregório está no Céu e se encontra ao nosso alcance;<br />
para quem olha as coisas sob o ponto de vista sobrenatural,<br />
é tudo tão simples. Não consigo obter porque<br />
eu sou eu, e não sou São Gregório Taumaturgo. Peçamos,<br />
então, a ele no dia de hoje em que se comemora<br />
sua festa.<br />
É preciso agir com as coisas do Céu com esta santa liberdade,<br />
eu diria quase com essa santa candura. Quanta<br />
coisa se recebe por essa forma! E é este o incitamento a<br />
que se presta a vida deste santo. <br />
v<br />
(Extraído de conferência de 17/11/1965)<br />
1) Não possuímos os dados bibliográficos da obra citada.<br />
2) Atual Niksar, na Turquia.<br />
3) De autoria do Pe. Thomas de Saint-Laurent.<br />
31
Luzes da Civilização Cristã<br />
Cidade florida, alegre<br />
e risonha - II<br />
Amenidade, beleza e alegria de viver, numa época que, segundo<br />
Karl Marx, foi a idade de ouro do operariado europeu.<br />
V<br />
emos em Rothenburg uma pequena praça pública,<br />
na qual se entra por meio de um largo arco<br />
— sempre os tais arcos com torres — para<br />
permitir um trânsito abundante.<br />
Junto às fontes, vivacidade e ornato<br />
A primeira coisa que o passante percebe é uma fonte.<br />
Era muito frequente, na Idade Média, a ideia de que a<br />
fonte deveria ter qualquer coisa de monumental, precisava<br />
ser bonita e não uma simples torneira de água.<br />
Por quê? Porque a água era rara, nas casas ainda não<br />
havia água encanada, as pessoas iam recolhê-la na fonte,<br />
que era um ponto central de vida na cidade. As pessoas<br />
das classes média e baixa da sociedade — muitas vezes as<br />
próprias donas de casa —, iam pegar água na fonte com<br />
um jarro grande que elas levavam, em geral, em cima da<br />
cabeça. Mas enquanto enchiam um, dois, três jarros — e<br />
elas pagavam alguém para levá-los; é um arranjo de senhoras<br />
—, ficavam conversando. E era o ponto de mexerico<br />
da cidade. Os homens nunca iam pegar água na fonte,<br />
somente as mulheres. E elas faziam futrica e intrigas,<br />
contavam coisas, etc.; as senhoras boas exerciam apostolado<br />
e levavam pessoas para a igreja.<br />
Então, para tornar mais alegre a vida dos habitantes,<br />
a Prefeitura, que era eleita por eles, mandava construir<br />
um ornamento na fonte. Observamos ali um ornamento<br />
um pouco pós-medieval: uma bonita coluna, cercada<br />
com um gradeado também agradável, um monumentozinho<br />
em cima, o qual representa uma criatura humana<br />
que está em pé — talvez seja Nossa Senhora — e a fonte<br />
que serve para esse bairro da cidade.<br />
Notem as casas altas com os tetos em forma de “V”.<br />
Qual é a razão disso? No inverno, para não acumular neve<br />
nos tetos — que é muito pesada e os faz ruir —, estes<br />
são dessa forma para que a neve escorregue e vá para o<br />
chão. Que o solo fique cheio de neve não importa, o problema<br />
é salvar o teto das casas.<br />
Como, entre a base e o alto do teto, havia um espaço<br />
coberto muito grande, eram feitos andares. Esses são<br />
prédios de apartamentos de classe média baixa — mais<br />
da classe baixa do que da média; aqui é um ambiente<br />
mais simples do que o da primeira praça que vimos. Os<br />
prédios são menos bonitos, exceto aquele que se vê no<br />
fundo, o qual deveria ter provavelmente uma utilização<br />
municipal ou eclesiástica, do município ou de uma paróquia<br />
da Diocese de Rothenburg.<br />
As flores e as folhas<br />
Numa outra fotografia, percebe-se que é verão e nota-se<br />
uma coisa característica das cidades alemãs, que<br />
lhes dá um encanto especial: é serem floridas. Ao longo<br />
das paredes, jarros de flores que tornam — quando<br />
elas florescem — a cidade muito alegre, risonha, onde<br />
se mostra, também nas cortininhas, a alegria de viver do<br />
povinho. É típico de casa alemã, mesmo muito modesta:<br />
cortininha bem arranjadinha e, quando chega o verão,<br />
põem-se do lado de fora jarras com gerânios e outras<br />
flores de cores vivas. E fazem concurso para saber<br />
quem expôs as flores mais vivas. E isto constitui um ponto<br />
de amor-próprio que atrai toda a atenção da cidade, e<br />
concentra as conversas e a atenção deles em coisas inocentes,<br />
bonitas, que elevam, educam, e não têm nada do<br />
cinema e da TV moderna.<br />
Tenho a impressão de que aquela torre é de uma igreja,<br />
porque no ápice dos torreõezinhos me parece haver<br />
cruzes. E, provavelmente, no cume do telhado central<br />
32
Wolfgang Manousek CC 3.0<br />
Tilman CC 3.0<br />
Bjalek Michal CC 3.0<br />
Tuxyso CC 3.0<br />
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Luzes da Civilização Cristã<br />
vezes estando na Europa tive vontade de fazer uma coleção<br />
de folhas, para mostrar aqui em São Paulo. Mas não<br />
foi possível, eu não tinha tempo, porém vontade não faltava.<br />
Vejam como todo esse arvoredo, aquém e além do<br />
muro externo da cidade, faz um ambiente maravilhoso.<br />
Tudo isso enfeita as velhas pedras e a torre da catedral<br />
ou da paróquia. Forma um recanto lindo!<br />
Povo muito alegre, expansivo e comunicativo<br />
Daniel CC 3.0<br />
Daniel CC 3.0<br />
deve existir uma cruz ainda mais evidente. Tem algo indefinido<br />
de edifício religioso. Será talvez a torre da principal<br />
igreja da cidadezinha.<br />
Em outra fotografia nota-se a beleza da vegetação da<br />
Europa. Nossa vegetação sul-americana, centro-americana,<br />
tem coisas lindíssimas, mas Deus a cada qual concedeu<br />
as suas coisas. À América do Sul, e creio que também à do<br />
Norte, o Criador deu lindas flores. Deu-as também, em alguma<br />
medida, à Europa: as tulipas da Holanda, por exemplo,<br />
são qualquer coisa de maravilhoso, mas o que nós não<br />
temos como eles são as folhas maravilhosas.<br />
Comparemos as folhas que estamos habituados a ver<br />
em nossas cidades, com essas que são verdadeiras exposições<br />
de pedras preciosas. As folhas são de um colorido<br />
bonito, meio douradas, e tem-se a impressão de que cada<br />
uma delas é uma pedra preciosa. São finas e o sol as atravessa;<br />
por causa disso, quando se olha, tem-se a impressão<br />
de que o astro rei mora dentro delas. São muito bonitas na<br />
primavera, mas a sua beleza muitas vezes é maior no outono,<br />
quando elas ficam velhas. É um fenômeno com poucos<br />
exemplos na natureza: quando a velhice enfeita.<br />
No inverno, quando começam a cair, essas folhas têm<br />
uma cor de champagne, de vinho, cores fantásticas; várias<br />
Em outra fotografia vemos a beleza assombrosa do inverno,<br />
com a neve. Tem-se a impressão de que as árvores<br />
são feitas de cristal; são, portanto, lindíssimas! Nesse<br />
edifício mais baixo, nota-se que a neve cobriu o teto e se<br />
acumulou a ponto de revesti-lo inteiramente. Fica agradável<br />
de ver e, apesar da ideia de frio que esta neve dá,<br />
tem-se uma sensação de aconchego e faz supor ali dentro<br />
uma lareira acesa, na qual se queimam troncos de árvores<br />
com uma resina perfumada, junto à qual se encontra,<br />
sentado numa grande poltrona de couro, um homem lendo<br />
um daqueles livros escritos em pergaminhos colossais,<br />
fumando um cachimbo e gozando o seu domingo.<br />
O prédio à esquerda, com aquele balcão, pertence à<br />
Prefeitura. Embaixo, desenvolvem-se danças tradicionais<br />
onde moços e moças da cidade se dão as mãos e cantam.<br />
Vê-se a alegria inocente de tudo isso, com trajes moralizados.<br />
É a alegria medieval.<br />
Aqui podemos observar uma rua de Rothenburg. As<br />
casas não são palácios, mas residências simples. É uma cena<br />
agradável de olhar e nos dá, muito ao vivo, uma ideia<br />
do que seria uma cidade medieval em dia de festa popular.<br />
O povo alemão é muito alegre, expansivo, comunicativo.<br />
E quando, em torno da cerveja, estão reunidos muitos<br />
alemães, eles cantam. Não por ficarem bêbados, mas<br />
por estarem bem nutridos e alegres.<br />
Não existe uma coisa que esteja em desordem; tudo<br />
bem arranjado e bonito. A decoração da parte de cima das<br />
casas é feita só com madeira, mas madeira entalhada; nada<br />
disso é rico, tudo é simples. Vemos como o bom gosto<br />
da classe popular pode formar uma vida plebeia digna.<br />
Assim eram, por exemplo, os móveis populares medievais.<br />
Não eram fabricados para reis, nem para condes ou<br />
barões; contudo, eram entalhados à mão, e hoje custariam<br />
uma fábula por serem muito raros. Uma verdadeira beleza!<br />
Por espantoso que seja, eu termino citando Marx. Karl<br />
Marx, o fundador do comunismo, numa história que ele faz<br />
do operariado na Europa, diz isto: “A idade de ouro do operariado<br />
europeu foi a Idade Média!” Isso os revolucionários<br />
não afirmam. Por quê? Porque a Revolução é mentirosa<br />
quando fala e até quando se cala; essa é a Revolução. v<br />
(Extraído de conferência de 22/11/1986)<br />
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Busquei a grandeza como a luz de meus olhos e procurei amá-la em toda a medida<br />
com que devia ser amada, o que corresponde a amar a Deus sobre todas as<br />
coisas e deixar-me entranhar até o fundo de minha alma pela Santa Igreja Católica<br />
Apostólica Romana, a maior expressão da grandeza divina nesta Terra!<br />
Mais do que meu pai, minha mãe, minha vida, mais do que tudo que eu possa<br />
ter, amo a Santa Igreja Católica, com um amor que tem laivos de adoração,<br />
porque ela é o Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo! (19/6/1995)
Meu pensamento é essencialmente<br />
religioso. Tudo nele provém da<br />
Religião e volta para ela. A Igreja é<br />
o maravilhoso que nos satisfaz como<br />
se fosse o Céu na Terra. Eu a conheci<br />
com seu aroma próprio — o bom<br />
odor de Nosso Senhor Jesus Cristo<br />
— e não quero dizer que a tenha<br />
amado tanto quanto devia, mas<br />
talvez possa afirmar que a tenha<br />
amado tanto quanto podia.
De tal maneira aderi a tudo<br />
quanto vi, conheci e senti da Santa<br />
Igreja, que ela passou a ser a alma<br />
de minha alma.<br />
Como alguém poderia dar<br />
a outrem um objeto, assim<br />
eu fiz, consciente, calma e<br />
ponderadamente, com todo o meu<br />
ser e toda a minha vida: dei-os à<br />
Santa Igreja Católica.<br />
(5/8/1988)
“Ninguém pode imaginar o bem que ela me fez... Mamãe<br />
me ensinou a amar Nosso Senhor Jesus Cristo, ensinou-me<br />
a amar a Santa Igreja Católica!” (21/4/1968)