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Revista Dr. Plinio 238

Janeiro de 2018

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Dona Lucilia<br />

Marcus Ramos<br />

e adoeceu, mas não havia quem tratasse<br />

dela. Então esse advogado combinou<br />

com a esposa e convidaram essa<br />

senhora para ir se tratar na casa deles.<br />

Entrava caridade e, provavelmente, os<br />

negócios do escritório também.<br />

Mamãe frequentava assiduamente<br />

essa casa e, tendo ficado com muita pena<br />

dessa pessoa doente, tratava-a com<br />

todo o cuidado, sendo muito amável e<br />

gentil. Nessa residência morava uma<br />

moça muito bonita que dizia:<br />

– Lucilia, você faz papel de boba.<br />

Por que você a trata com tanto carinho,<br />

colhe flores para ela, mostra-<br />

-lhe livros com gravuras e tantas coisas<br />

para distraí-la, quando ela não<br />

lhe quer bem? Ela quer bem a mim.<br />

– É que eu tenho pena dela – respondeu<br />

mamãe.<br />

Gargalhada da outra:<br />

– Você é uma boba! Pena não<br />

existe, o que há é interesse. A outra<br />

tem interesse em me agradar e não<br />

em agradar você.<br />

Enquanto ela estiver<br />

doente, ela<br />

vai receber suas<br />

carícias muito<br />

bem. Mas você<br />

esteja presente<br />

aqui na hora<br />

de ela ir embora,<br />

e vai ver o modo<br />

de ela agradecer<br />

a mim e a você.<br />

Eu, que uma vez<br />

por dia me aproximo<br />

dela, dou<br />

uma prosinha de<br />

alguns minutos e<br />

vou embora, você<br />

verá os beijos<br />

que ela vai me<br />

dar. Quanto a você:<br />

“Lucilia, muito<br />

obrigado.”<br />

Mamãe achou<br />

improvável tal<br />

atitude. Na hora<br />

da despedida,<br />

ela estava lá. A<br />

senhora doente disse à moça bonita:<br />

– Fulana, muito obrigada por tudo<br />

quanto você fez por mim, eu lhe<br />

sou muito agradecida, dá-me um<br />

beijo, e mais outro, de suas carícias<br />

não me esquecerei jamais.<br />

Depois à mamãe, que estava ao<br />

lado da outra:<br />

– Lucilia, estou agradecida; você<br />

me foi muito gentilzinha.<br />

Essa é a vida, hein! Não sei se na<br />

época dura em que estamos é preciso<br />

explicar que a vida é assim, pois<br />

se tem a impressão de que isso não é<br />

novidade para ninguém.<br />

O que estava subentendido no<br />

modo de a moça bonita dizer era:<br />

“Eu sou bonita e você é feia. Portanto,<br />

para você ninguém dá importância.<br />

Você não consegue nada com<br />

ninguém, porque bonita sou eu.”<br />

Isso constitui uma filosofia da vida,<br />

falsa, péssima, mas, queiram ou<br />

não, é uma filosofia da vida.<br />

Fonte de toda consolação<br />

Por outro lado, Dona Lucilia foi<br />

compreendendo que na época em<br />

que ela vivia as relações já não eram<br />

movidas senão por interesse, e que<br />

o afeto desinteressado fazia parte<br />

do tempo expirante do romantismo.<br />

Com a modernidade tinha entrado<br />

a brutalidade, o interesse pessoal, o<br />

pouco caso pelos outros que sofrem<br />

e o desprezo. Isso marcou uma grande<br />

tristeza na vida dela, por compreender<br />

que tudo não era senão isolamento,<br />

pois todo mundo era assim e<br />

ela não teria possibilidade de encontrar<br />

quem tivesse para com ela a forma<br />

de afeto e de união de alma que<br />

ela quereria ter com tantas pessoas.<br />

Daí, então, uma espécie de problema<br />

axiológico: “Como é a vida?<br />

Como devo fazer? Como preciso<br />

entender as coisas?” Onde entrava<br />

uma profunda decepção e um modo<br />

muito severo, inteiramente real e<br />

exato, de ver os outros.<br />

Eu já tenho visto pessoas elogiarem<br />

exame médico com estas palavras:<br />

“Tal doutor fez um exame médico<br />

severíssimo.” Claro que isso é elogio,<br />

porque é para saber se está doente<br />

ou não. Não vai fazer um exame<br />

frouxo para a doença passar desapercebida.<br />

Se é para curar mesmo, o exame<br />

tem que ser severíssimo.<br />

Antigamente usava-se muito esta<br />

expressão: “O médico exigiu uma<br />

radiografia.” Quer dizer, os doentes<br />

não tinham muita vontade de se deixarem<br />

radiografar, porque a radiografia<br />

às vezes dá susto, e tiravam o<br />

corpo. Não podiam, pois “o médico<br />

exigiu”, ou seja, queria dizer: “Eu<br />

não me sinto seguro e não vou carregar<br />

um diagnóstico errado nas costas;<br />

portanto, faça uma radiografia<br />

que eu analiso e trato do seu problema,<br />

do contrário, não o farei.” Ora,<br />

Dona Lucilia fez um exame severíssimo<br />

da vida. Com seu bom senso,<br />

sua retidão moral, ela radiografou a<br />

existência e compreendeu como era.<br />

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