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Revista Curinga Edição 23

Revista Laboratorial do Curso de Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto.

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Habitar<br />

Em busca de<br />

novas<br />

memórias<br />

Após dois anos, atingidos pela barragem de Fundão<br />

permanecem à procura de um recomeço<br />

“Eu quase que não consigo ficar na cidade sem viver<br />

contrariado”. O trecho faz parte da canção Lamento<br />

Sertanejo, composição de Gilberto Gil e Dominguinhos.<br />

A música fala sobre a odisséia de sentimentos<br />

que as pessoas passam por estarem longe daquilo<br />

que consideram lar. Como é o caso dos atingidos de<br />

Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo em Mariana,<br />

e Gesteira, distrito de Barra Longa, Minas Gerais.<br />

Após dois anos do rompimento da barragem de rejeitos<br />

de minério, administrada pela empresa Samarco,<br />

estas pessoas ainda vivem sob a perspectiva<br />

de voltar para a casa. Ou para a nova casa.<br />

O reassentamento das comunidades é importante<br />

e está assegurado por lei. “Ser atingida é ter<br />

os sonhos interrompidos”, afirma Luzia Queiroz,<br />

52, que viu ruírem todos os planos futuros da família<br />

na comunidade de Paracatu de Baixo. Assim<br />

como muitos atingidos, Luzia mora em Mariana, e<br />

mantém uma realidade diferente de outrora. Seu<br />

dia a dia está em meio a novas narrativas.<br />

A leveza do interior faz falta e atividades como<br />

cuidar dos animais e até mesmo colher uma laranja<br />

no quintal não fazem parte do cotidiano<br />

da maioria dos atingidos. O sítio de Marcos Muniz,<br />

54, morador de Bento Rodrigues, era o fruto<br />

de toda uma vida. Por 30 anos, foi funcionário<br />

da Samarco e almejava uma aposentadoria tranquila<br />

na casa de campo que, em outros tempos,<br />

pertencera ao seu pai. Em seu pomar, havia centenas<br />

de laranjeiras, mangueiras, jabuticabeiras e<br />

limoeiros. No quintal criava galinhas e mantinha<br />

gado nos pastos. O sonho durou exatamente um<br />

ano, até a lama levar sua residência, seus frutos,<br />

seus animais e as memórias de sua família.<br />

Pertencer<br />

Alguns atingidos ainda não se acostumaram<br />

com o jeito mais acelerado da cidade. O cantinho de<br />

antes era bem mais calmo, com uma feição só deles.<br />

Luzia, planejou todos os detalhes da sua casa,<br />

o terreno onde construiu pertencera ao avô do seu<br />

marido Caetano e mantinha inúmeras histórias. As<br />

paredes revestidas por azulejos portugueses eram<br />

o seu xodó e o piso antiderrapante da cozinha foi<br />

pensado especialmente para seu neto Miguel.<br />

Além das questões burocráticas que estendem a<br />

espera pelo reassentamento, a passagem dos anos<br />

tem transformado o cotidiano da população. Os<br />

afetos e as relações sociais tiveram que se adaptar<br />

à rotina de lares temporários e muitas amizades e<br />

vínculos afetivos também se romperam. A psicóloga<br />

Maíra Almeida Carvalho, responsável técnica<br />

pela equipe Conviver que atua especificamente com<br />

os atingidos de Mariana, esclarece essas dificuldades:<br />

“Estão dispersos num território em que muitos<br />

não se reconhecem, situados em casas que não são<br />

próprias, distantes dos vínculos familiares, de vizinhança<br />

e das redes de suporte social”.<br />

Tanto Marcos quanto Luzia lamentam a perda<br />

de contato com alguns vizinhos, amigos e parentes.<br />

“Meu netinho ficava comigo em Paracatu, às vezes<br />

passávamos as tardes deitados na cama olhando os<br />

bois pela janela. Isso acabou”.<br />

Manter a mesma identidade com o novo local<br />

é um dos grandes problemas a ser enfrentado. De<br />

acordo com a psicóloga Lilian Garate Castagnet, especialista<br />

em eventos pós-traumáticos, “por mais<br />

que o novo terreno seja adequado e possa oferecer<br />

mais segurança, é um local sem história, sem me-

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