Texto: Igor Mattos Foto: Gabriel Conbê Arte: Luiza Boareto Endereço de Todas Anyky Lima mantém uma pensão em BH para travestis. O objetivo não é só alugar o espaço. Ela acolhe quem é muito excluída pela sociedade. Entre uma tragada e outra no cigarro, Anyky vai abrindo um pouquinho mais da sua vida. Fala do passado sem saudosismo ou pieguismo, mas sim com orgulho. Muito orgulho. Ela que passou por tanta coisa (e ainda passa). Travesti, matriarca, idosa e militante. Dona de uma pensão em Belo Horizonte que recebe travestis há mais de 30 anos, a carioca é a matriarca da família que construiu no bairro Carlos Prates. Com 63 anos de vida, já tem muita coisa para contar. Foi expulsa da casa dos pais no Rio de Janeiro aos 12 anos. “Era muito afeminada”, afirma. Eles, de uma família tradicional nordestina, não entendiam. O caçula de quatro irmãs foi parar na rua. Lá conheceu uma amiga, Sandra Dragão, e, juntas, foram tentar a sorte. Depois de tanto custo, conseguiram uma carona para o próximo destino: Vitória. Lá ela se fez travesti, apanhou por ser travesti, lutou para ser travesti. Tudo isso em meados da década de 1960, em um Brasil vivendo os primeiros anos da ditadura militar. Conviveu com as dores da solidão íntima e a sorte de ter outras irmãs para se apoiarem. Prostituiu-se até os 32 anos, quando decidiu largar a vida de garota de programa. Ela tinha poucos clientes, problemas de saúde e contas para pagar. Anyky resolve se mudar para Minas Gerais. Belo Horizonte é o novo endereço. Local onde abre a pensão para acolher outras travestis. Meninas de diversas partes do país que também fixaram os pés junto a “tia Anyky”. A pensão Anyky tomou esse papel de família para si. Desde a década de 1980, que a casa emoldura o seu lar. Não gosta quando falam que é um albergue: “Não tenho um albergue. Eu tenho uma casa onde as meninas pagam pra viver. E eu como militante acho uma obrigação, se ela quiser ir no médico, se eu não puder ir, pelo menos informar onde”, afirma. As paredes da pensão se configuram neste apoio. Das trocas de sabedorias dos anos de vida: “Essas coisas a gente tem que passar pra frente, por ser militante, dona de casa e por gostar também”. Ao todo já passaram pela pensão pouco mais de 3 mil meninas. Algumas vão e não voltam, enquanto outras retornam e querem ficar. Mas,Anyky agora quer sossego. Ver seus filmes na TV. Já teve muita movimentação na casa. Ou nas casas. Em tempos mais movimentados, chegou a alugar duas moradias. Nem sempre cobrava o aluguel. A compaixão falava mais alto. “Já peguei algumas meninas da rua, sabe? Que estavam sem casa. Que eu já conhecia. Conhecia a família e botei aqui dentro.” Atitude deixada para trás: “Eu já não faço mais. Eu fico com pena e tudo, mas você sabe que não tem lugar nenhum pra apoiar essas pessoas. E você pegar uma pessoa na rua e trazer pra dentro da sua casa, também não adianta. Tem que ter um acompanhamento de saúde, de tudo.” Ela brinca que, se ganhasse na mega-sena, iria trazer todas as meninas para viverem juntas: “Minha vontade é comprar uma casa grande, onde morassem mais meninas. Mas, meu intuito realmente é esse. Morar todas comigo.” Até que esse dia chegue, o lar que ela mantém abriga nove meninas: “Era para ser quatro, sabe? Mas ligaram e insistiram tanto para ficar, que acabei deixando”, conta Anyky. Algumas já moraram no mesmo endereço anos atrás. Voltaram para Belo Horizonte, o que significa querer estar perto da Anyky. “Elas vão atrás de mim. Querem ficar onde a tia Anyky está”, afirma, com ares de uma tia que podem sempre contar. Passinhos pra frente Figura já conhecida em BH, Anyky atua também publicamente na causa das travestis. Dá palestras para diversas instituições. Participa de grupos como a Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (ANTRA) e Centro de Luta pela Livre Orientação Sexual (CELLOS). Isso começou em 2007, mesma época em que a polícia invadiu sua casa à procura de drogas. Na busca de encontrar um lugar para saber quais são seus direitos - e não mais deixar isso acontecer - ela conheceu o CELLOS. Tornou-se íntima do pessoal. Ia às reuniões, eventos e debates. Até uma hora ser chamada para participar do centro. “Porque para trabalhar com travesti você não pode ficar num lugar sentada esperando. Você tem que ir ao encontro delas”, diz. Encontro que deu certo. Apesar de alguns anos separarem sua geração com a das meninas que moram com ela, Anyky sabe que muita coisa não mudou: “A violência continua do mesmo jeito, sabe? As pessoas se negando a fazer as coisas pra ajudar essa população. As políticas públicas ficam no papel e não saem do papel.” Segue na luta para desvincular a imagem da travesti com a do perigo para sociedade.
A travesti ao mesmo tempo que constrói seu próprio corpo, também constrói seu próprio lar. CURINGA | EDIÇÃO <strong>23</strong> 25