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Revista Curinga Edição 23

Revista Laboratorial do Curso de Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto.

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Contrastes<br />

Assim como o rio determina essa<br />

construção para Linda, para Edgar de<br />

Sá, as montanhas de Minas Gerais<br />

pontuam contrastes. Nascido na Guiné-<br />

Bissau, o estudante de Engenharia<br />

Civil adotou Ouro Preto como cidade<br />

natal há sete anos. Das saudades mais<br />

latentes, está a do clima tropicalúmido<br />

de seu país - localizado a 4978<br />

quilômetros do Brasil - e dos frutos do<br />

mar frescos nas refeições cotidianas.<br />

O rapaz não gosta de queijo e passa<br />

mal somente com o cheiro de café. Em<br />

contrapartida, seu prato mineiro favorito<br />

é o frango com quiabo. Preferências<br />

culinárias à parte, os sete anos no Brasil<br />

têm sido uma experiência enriquecedora<br />

na transformação desse novo espaço em<br />

lar. Edgar garante que o tempo no Brasil o<br />

fez amadurecer e ter outras perspectivas<br />

sobre si mesmo e sua família, que o<br />

ajudaram a construir sua personalidade,<br />

mantendo sua raiz africana.<br />

“Além dos colegas da Guiné que me<br />

receberam aqui, teve uma família que até<br />

hoje agradeço muito. Me acolheram na<br />

casa deles até que eu achasse um lugar<br />

para morar. Nessa casa ganhei irmãos,<br />

uma mãe e uma avó. Não volto muito<br />

para Guiné porque é muito caro e não<br />

compensa passar pouco tempo lá, mas<br />

assim que eu me formar, é pra lá que eu<br />

quero voltar: casa em primeiro lugar”.<br />

As mudanças, no entanto, não são<br />

apenas entre um continente e outro.<br />

Aos 81 anos, o ouro-pretano Roque<br />

Nolasco nunca saiu de Ouro Preto. Sua<br />

história se confunde com a história<br />

do Zé Pereira e o Club dos Lacaios,<br />

agremiação carnavalesca centenária da<br />

qual participa desde a adolescência.<br />

Diferente de Edgar, a ressignificação do<br />

lar de Roque acontece junto às mudanças<br />

da cidade impressas nas lembranças de<br />

cada carnaval em que desfilou. “Eu me<br />

lembro que ali na Praça Tiradentes, onde<br />

hoje é o Banco Bradesco, era uma empresa<br />

de eletricidade. Mudou muito.”. Para<br />

Roque, seu lar é a trajetória no Zé Pereira:<br />

“O Zé Pereira me faz sentir um bem muito<br />

grande, eu gosto do que sinto aqui e por<br />

isso estou há tanto tempo. Minha família<br />

foi toda embora e o que eu tenho é aqui. Eu<br />

adoro o Zé Pereira porque ele é minha vida”.<br />

De acordo com o psicólogo Geraldo<br />

Tadeu, o processo de ressignificação do<br />

lar é fundamental para a construção<br />

social do indivíduo. “A casa e o lar estão<br />

conectados, mas existe uma distinção entre<br />

ambos. O lar é diferente da casa porque é<br />

uma construção psíquica, que começa na<br />

infância e com o passar do tempo repercute<br />

no processo de construção da personalidade<br />

do indivíduo”. O psicólogo afirma ainda que,<br />

na infância, o sujeito passa por situações com<br />

as quais ainda não sabe lidar, o que resulta<br />

na transferência desse sentimento para<br />

algum objeto que rememore nele aquela<br />

determinada circunstância.<br />

Tempo<br />

Cláudio Coração morou a maior parte da<br />

infância na zona rural de Botucatu, cidade<br />

do interior de São Paulo, localizada a 240<br />

quilômetros da capital. Os contrastes entre a<br />

eletricidade da capital e a calmaria do interior<br />

formam a personalidade do jornalista e<br />

professor aficionado por livros, música e<br />

cinema. Da infância, ficaram as marcas da<br />

timidez e a curiosidade, características que<br />

o trouxeram do interior de São Paulo ao<br />

interior de Minas Gerais. Professor do curso<br />

de Jornalismo da UFOP, é na sala de aula o<br />

lugar onde se sente realizado.<br />

“A sala de aula é um lar pra mim porque é<br />

onde eu me sinto preenchido, é o lugar onde<br />

eu faço o que eu gosto de fazer, mas não é só<br />

isso. Lar é olhar para as ruas por onde a gente<br />

passa, é reparar num detalhe novo de uma<br />

casa que a gente vê todo dia e a partir disso ir<br />

ressignificando as coisas”. O ritual de passar<br />

café e assistir “Sr. Brasil” aos domingos de<br />

manhã o acompanha na vida em Mariana.<br />

Comandado por Rolando Boldrin, o programa<br />

apresenta músicas e ritmos genuinamente<br />

brasileiros que rememoram a infância e a<br />

família que ainda vive em Botucatu.<br />

O tempo, assim como a casa, atravessa<br />

os processos de significação do lar. Segundo<br />

Geraldo Tadeu, à medida que o tempo<br />

passa e o sujeito envelhece, suas percepções<br />

desse sentimento são alteradas. O psicólogo<br />

afirma que não existe uma fase em que o<br />

sujeito vai estar mais preparado para isso<br />

ou não, é a própria experiência de vida do<br />

sujeito, das dificuldades e dos prazeres que<br />

ele tem que vão estar sempre em processo<br />

de construção na sua formação. “Diante<br />

dessa ideia dos afetos no lar, é o sujeito que<br />

está amadurecendo ali. Exemplos como a<br />

comida são as partes concretas levadas da<br />

casa. Não dá para distanciar uma coisa da<br />

outra, mas, ao mesmo tempo, é nítida a<br />

percepção do lar nestes afetos”.<br />

CURINGA | EDIÇÃO <strong>23</strong> 37

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