Habitar Em busca de novas memórias Após dois anos, atingidos pela barragem de Fundão permanecem à procura de um recomeço “Eu quase que não consigo ficar na cidade sem viver contrariado”. O trecho faz parte da canção Lamento Sertanejo, composição de Gilberto Gil e Dominguinhos. A música fala sobre a odisséia de sentimentos que as pessoas passam por estarem longe daquilo que consideram lar. Como é o caso dos atingidos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo em Mariana, e Gesteira, distrito de Barra Longa, Minas Gerais. Após dois anos do rompimento da barragem de rejeitos de minério, administrada pela empresa Samarco, estas pessoas ainda vivem sob a perspectiva de voltar para a casa. Ou para a nova casa. O reassentamento das comunidades é importante e está assegurado por lei. “Ser atingida é ter os sonhos interrompidos”, afirma Luzia Queiroz, 52, que viu ruírem todos os planos futuros da família na comunidade de Paracatu de Baixo. Assim como muitos atingidos, Luzia mora em Mariana, e mantém uma realidade diferente de outrora. Seu dia a dia está em meio a novas narrativas. A leveza do interior faz falta e atividades como cuidar dos animais e até mesmo colher uma laranja no quintal não fazem parte do cotidiano da maioria dos atingidos. O sítio de Marcos Muniz, 54, morador de Bento Rodrigues, era o fruto de toda uma vida. Por 30 anos, foi funcionário da Samarco e almejava uma aposentadoria tranquila na casa de campo que, em outros tempos, pertencera ao seu pai. Em seu pomar, havia centenas de laranjeiras, mangueiras, jabuticabeiras e limoeiros. No quintal criava galinhas e mantinha gado nos pastos. O sonho durou exatamente um ano, até a lama levar sua residência, seus frutos, seus animais e as memórias de sua família. Pertencer Alguns atingidos ainda não se acostumaram com o jeito mais acelerado da cidade. O cantinho de antes era bem mais calmo, com uma feição só deles. Luzia, planejou todos os detalhes da sua casa, o terreno onde construiu pertencera ao avô do seu marido Caetano e mantinha inúmeras histórias. As paredes revestidas por azulejos portugueses eram o seu xodó e o piso antiderrapante da cozinha foi pensado especialmente para seu neto Miguel. Além das questões burocráticas que estendem a espera pelo reassentamento, a passagem dos anos tem transformado o cotidiano da população. Os afetos e as relações sociais tiveram que se adaptar à rotina de lares temporários e muitas amizades e vínculos afetivos também se romperam. A psicóloga Maíra Almeida Carvalho, responsável técnica pela equipe Conviver que atua especificamente com os atingidos de Mariana, esclarece essas dificuldades: “Estão dispersos num território em que muitos não se reconhecem, situados em casas que não são próprias, distantes dos vínculos familiares, de vizinhança e das redes de suporte social”. Tanto Marcos quanto Luzia lamentam a perda de contato com alguns vizinhos, amigos e parentes. “Meu netinho ficava comigo em Paracatu, às vezes passávamos as tardes deitados na cama olhando os bois pela janela. Isso acabou”. Manter a mesma identidade com o novo local é um dos grandes problemas a ser enfrentado. De acordo com a psicóloga Lilian Garate Castagnet, especialista em eventos pós-traumáticos, “por mais que o novo terreno seja adequado e possa oferecer mais segurança, é um local sem história, sem me-
Texto: carmem guimarães e igor mattos foto: Íris jesus arte: mayron brito CURINGA | | EDIÇÃO <strong>23</strong> 17 17