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Um elo entre<br />
o passado<br />
e o futuro
Revista Dr. Plinio 10, Janeiro de <strong>1999</strong><br />
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
O Cavaleiro,<br />
flor e gloria<br />
’<br />
da Cristandade<br />
AAssim como não se<br />
pode determinar o<br />
exato momento em<br />
que os grandes crepúsculos terminam,<br />
deixando-se envolver inteiramente<br />
pela noite, assim também<br />
não se conhece ao certo o instante<br />
em que se consumou o pôr-do-sol<br />
da Cavalaria. Sabe-se, contudo, que<br />
em fins do século XVII já não se<br />
podia falar dela, no sentido próprio<br />
do termo. Sem o esplendor de<br />
outrora, algumas ordens militares<br />
mantinham apenas recordações e títulos<br />
daquela antiga instituição medieval<br />
que, após lenta agonia, desaparecera.<br />
Entretanto, ainda hoje, neste limiar<br />
do século XXI, quando se deseja<br />
significar que alguém procedeu<br />
de modo bonito, nobre, corajoso,<br />
diz-se: “Tu agiste como um cavaleiro”.<br />
Ou quando se pretende enaltecer<br />
a redação de uma carta elevada,<br />
digna, distinta, afirma-se: “É a<br />
carta de um cavaleiro”. E se há entre<br />
dois homens de educação uma<br />
contenda que acabe de maneira ele-<br />
gante, comenta-se: “Terminou como<br />
uma rixa de cavaleiros”.<br />
Cavaleiro é, portanto, um vocábulo<br />
que tem livre curso em todas as<br />
partes como o mais requintado dos<br />
elogios. Algo ficou de tal maneira<br />
impregnado nesta palavra que, embora<br />
não se saiba defini-la, nela se<br />
reconhece um certo brilho, uma<br />
qualquer luz que dignifica o homem<br />
a quem ela se dirige.<br />
Este algo outra coisa não é senão<br />
um resquício de aroma da Civilização<br />
Cristã, ela mesma somente um<br />
vestígio neste ocaso de milênio. Para<br />
usar uma metáfora empregada<br />
pelo Papa São Pio X, pode-se dizer<br />
que, para o mundo hodierno, a Civilização<br />
Cristã é como o interior de<br />
um jarro do qual se retirou a rosa<br />
perfumada que nele esteve por longo<br />
período. Levou-se a flor, ficou a<br />
fragrância. Quer dizer, há um resto<br />
de perfume, mas a rosa, que é a Civilização<br />
Cristã, não está mais presente.<br />
Ora, uma das coisas que ainda recendem<br />
esse bom odor da Civilização<br />
Cristã, esse aroma delicioso que<br />
resiste até à poluição deste fim de<br />
era histórica, é, precisamente, a palavra<br />
cavaleiro, interpretada no seu<br />
mais apropriado sentido.<br />
De fato, o cavaleiro é uma flor e<br />
uma glória da Cristandade. É o varão<br />
católico capaz de, com o auxílio<br />
da graça divina, realizar a mais alta<br />
perfeição de certas qualidades humanas,<br />
quando ele está posto nas<br />
condições de combater. Ou seja,<br />
quando as circunstâncias da luta entre<br />
o Bem e o Mal o colocam no caso<br />
de batalhar, e aí se acha ele, manifestando<br />
uma especial forma de<br />
excelência, emitindo um particular<br />
brilho de sua alma. Brilho e excelência<br />
que representam um maravilhoso<br />
modo de ser do próprio amor<br />
a Deus, visto enquanto recusando e<br />
derrotando o que é contra Ele.<br />
Tal é o cavaleiro. Tais foram, sobretudo,<br />
o cavaleiro medieval e o<br />
seu tipo mais perfeito — o cruzado.<br />
É o varão católico apostólico romano,<br />
destinado a viver para o legítimo<br />
emprego da força. É um guer-<br />
26
eiro formado para, pelo vigor de<br />
seu braço e pela intrepidez de seu<br />
espírito, fazer o bem à Cristandade.<br />
A força, o ímpeto, a coragem, postos<br />
a serviço da Fé: esta a missão<br />
dele.<br />
De outro lado, porém, os cavaleiros<br />
eram autênticos artesãos da<br />
paz, porque usavam a força somente<br />
para defender a ordem contra<br />
aqueles que a queriam destruir. Ora,<br />
segundo São Tomás de Aquino, a<br />
paz é a tranqüilidade da ordem. Se<br />
alguém defende a ordem, está protegendo<br />
a tranqüilidade e, portanto,<br />
a paz. Quando os cavaleiros, sobre<br />
as muralhas de seus castelos, amparavam<br />
suas populações e suas honestas<br />
posses, eram, pois, guerreiros<br />
da paz!<br />
Desse modo, o cavaleiro, terror<br />
dos maus, é também o encanto dos<br />
bons. Termina a batalha, o adversário<br />
se foi, ele retorna a seu castelo e<br />
sua presença faz a alegria de todos.<br />
Porque ele afaga, é bom e não é jactancioso.<br />
É para ele motivo de júbilo<br />
não ser o único, e sim o chefe de<br />
gente que possui particular valor.<br />
Embora receba as merecidas homenagens,<br />
compraz-se em ressaltar as<br />
qualidades de seus guerreiros, distribuindo<br />
generosas recompensas e<br />
a todos agradando com sua simplicidade<br />
e paternal benevolência.<br />
Esse herói por amor de Deus,<br />
esse pai e comandante é, antes de<br />
tudo, piedoso. Deixado o campo de<br />
batalha, dirige-se de imediato à Capela<br />
do castelo, ajoelha-se e, comovido,<br />
rende graças a Nosso Senhor<br />
por ter escapado ileso. Graças, sobretudo,<br />
por ter afugentado o bárbaro<br />
ou o maometano pagãos, por<br />
ter conseguido levar à vitória os que<br />
eram de Deus, e assim ter feito brilhar<br />
a glória divina sobre o adversário.<br />
Depois, ele se coloca diante<br />
de uma imagem de Nossa Senhora,<br />
e a Ela reza de modo especial, sobremaneira<br />
grato e enternecido.<br />
Aparece, então, o outro lado do<br />
cavaleiro. Ele é devoto, humilha-se,<br />
alegra-se em se curvar diante de<br />
Deus.<br />
PLINIO<br />
CORRÊA DE<br />
OLIVEIRA,<br />
AUTÊNTICO<br />
CAVALEIRO<br />
DE NOSSO<br />
SÉCULO<br />
Tudo isso constitui o perfil moral<br />
do cavaleiro. Na guerra, heróico e<br />
temido; na paz, previdente, pois sabe<br />
que o repouso é apenas a respiração<br />
entre duas batalhas. Com os<br />
inimigos de Deus, implacável; com<br />
os amigos, doce e cortês.<br />
Essa afabilidade, esse amor cristão<br />
que o cavaleiro tem ao próximo<br />
se traduz nos seus atos de caridade,<br />
mas também nas suas boas maneiras,<br />
que são o modo de exteriorizar<br />
a bondade interior. Assim, o cavaleiro<br />
é gentil, distinto, trata bem as<br />
pessoas, tributando a cada uma seu<br />
devido respeito, e espera que tenham<br />
igualmente para com ele a<br />
justa deferência.<br />
Em torno dele e daqueles que lhe<br />
são iguais, vai se constituindo um<br />
cerimonial, e se formando uma classe<br />
em que a educação é mais excelente,<br />
o palavreado é mais nobre,<br />
florido e belo. Onde a elegância dos<br />
trajes e das maneiras desabrocha de<br />
modo acentuado, dando origem à<br />
cortesia e à distinção própria dos<br />
cavaleiros. E, cumpre dizê-lo, longe<br />
de rebaixar os que lhes eram inferiores,<br />
na sua ascensão os cavaleiros<br />
elevavam também as demais camadas<br />
da sociedade, as quais aprendiam<br />
com eles a linguagem apurada,<br />
a boa educação, e iam assim se<br />
tornando cultas e acabando de se<br />
desbarbarizar...<br />
Daí provém o sentido do cavaleiro<br />
de nossos dias. Palavra tão respeitada,<br />
tão bela, tão plena de significado,<br />
porque representa esse tipo<br />
ideal do católico posto na sociedade<br />
temporal, que tem como um<br />
dos traços mais preponderantes de<br />
sua alma a combatividade a serviço<br />
do amor de Deus, da Causa da Igreja,<br />
da Cristandade.<br />
É o católico corajoso, temível,<br />
admirável, bondoso, gentil, acolhedor.<br />
É o homem cuja palavra vale como<br />
escritura pública, porque um cavaleiro<br />
não mente nunca!<br />
É o varão casto, porque a impureza<br />
é o contrário da cavalaria, e o<br />
verdadeiro complemento desta é a<br />
virgindade. A força do cavaleiro não<br />
é a violência de um vulgar botequineiro,<br />
mas o vigor do homem<br />
puro.<br />
Assim é o cavaleiro, no qual refulgem<br />
todas as qualidades do verdadeiro<br />
católico.
O início<br />
de uma epopéia
<strong>Luzes</strong> da Civilização Cristã<br />
Castelos de Espanha<br />
ronte erguida,<br />
olhar distante,<br />
característico<br />
de quem está<br />
meditando<br />
em horizontes<br />
sublimes;<br />
a<br />
ressequida<br />
mão estendida de modo firme, própria do homem<br />
que, sem se abaixar nem se rebaixar, assim recorre à<br />
caridade alheia: “Se tiver o que me dar e quiser fazê-lo,<br />
dê-me por amor a Deus. Porque dEle eu sou filho e,<br />
portanto, mereço que me socorram com aquilo de que<br />
necessito. Quer me dar uma esmola, pelo amor de<br />
Deus?”<br />
Esse perfil do mendigo espanhol, superiormente retratado<br />
pelo escritor Antero de Figueiredo, revela muito<br />
bem a altivez e a dignidade com que a mendicância<br />
tinha lugar na terra do Cid Campeador e de Santo Inácio<br />
de Loyola. É este o mesmo senso da grandeza e da<br />
respeitabilidade que permite aos mais subidos nobres<br />
espanhóis usarem um belíssimo título: Grande de Espanha.<br />
Quando se ouve semelhante denominação honorífica,<br />
tem-se quase a impressão de que seu portador<br />
é um ente fabuloso: Fulano de tal, Duque e Grande de<br />
Espanha!<br />
Uma alma verdadeiramente católica, que sabe admirar<br />
e amar as diferentes qualidades postas por Deus nos<br />
diversos povos do mundo, rejubila-se com esse senso da<br />
grandeza, tão distintivo dos nobres, dos guerreiros, dos<br />
santos e dos mendigos de Espanha.<br />
E dos seus castelos.<br />
Sim, essa idéia da própria magnificência se acha presente<br />
também nos castelos espanhóis, de tal maneira<br />
que, para se referir a alguém que estivesse arquitetando<br />
sonhos e inalcançáveis anelos, cunhou-se nos vários<br />
idiomas europeus a expressão: “construindo castelos<br />
em Espanha”. Quer dizer, edificações formidáveis, miríficas,<br />
inexistentes, mas das quais os castelos de Espanha<br />
se aproximam de algum modo, dando a idéia de um<br />
ambiente onde o tal sonhador quereria viver. Daí alguns<br />
imaginarem o castelo na Espanha mais ou menos<br />
como os antigos concebiam o Olimpo...<br />
Na verdade, sonhos postos à margem, certos álbuns<br />
de castelos da Espanha nos fazem conhecer variados<br />
aspectos da grandeza dessa nação. As fortalezas neles<br />
retratadas são tão altivas, tão altaneiras — e altanaria<br />
não quer dizer orgulho, e sim noção do próprio valor e<br />
dignidade — são tão corajosas, têm torres tão feitas<br />
para avistar ao longe o atacante mouro, que realmente<br />
encantam.<br />
É curioso notar que esse modo de ser tem igualmente<br />
seu reflexo na vida de família dos espanhóis. Ou seja, a<br />
par de um elevado grau de carinho cercando os membros<br />
de uma mesma casa, a autoridade paterna conserva<br />
algo da supremacia do antigo castelão e senhor feudal<br />
junto aos seus vassalos. O pai quer ser inteiramente<br />
respeitado, e o filho se compraz em devotar-lhe essa<br />
completa deferência. As fórmulas de afeto e de cortesia<br />
existem, porém sempre envoltas nesse panejamento de<br />
dignidade e de incontestável força paterna, em virtude<br />
do que o filho não se atreve a discutir com o pai, e menos<br />
ainda a ridicularizá-lo com algum gracejo.<br />
É o hispânico senso da grandeza, que deste modo<br />
enobrece as relações domésticas.<br />
* * *<br />
Trata-se do mesmo senso que envolve de uma aura<br />
mítica as antigas fortalezas ibéricas. Ora é um castelo<br />
que se diria inexistente. De fato, ele está ali; mas, se<br />
fôssemos idealizar uma construção fabulosa, mirífica,<br />
imaginaríamos algo como ele. É um castelo cujos vários<br />
aspectos são realizações de sucessivos desejos de algo<br />
mais belo, mais grandioso, mais extraordinário. Insaciáveis<br />
aspirações que, por fim, se concretizam em admirável<br />
conjunto: um castelo de Espanha!<br />
Ora são panos de muralha erguidos num ambiente<br />
que a natureza lhes tornou particularmente adequado,<br />
sob um dossel de nuvens volumosas, inconstantes, e em<br />
meio a um cambiante jogo de luz que lhes confere uma<br />
aparência fugidia, deixando-lhes partes profundas meio<br />
escuras, e outras muito iluminadas.<br />
Por vezes resta apenas uma ruína. Mas, que força<br />
maravilhosa tem essa ruína! Em vez de incutir pena, ela<br />
30
sugere a idéia da grandeza que outrora possuiu. Ela faz<br />
reviver um esplendoroso passado, tão magnífico que se<br />
pode perguntar se essas pedras derruídas não nos levam<br />
a imaginar um passado mais bonito do que este foi na<br />
realidade.<br />
Entretanto, é o próprio das coisas que tiveram seus<br />
dias de grandeza: todo o seu passado permanece como<br />
uma espécie de imensa cauda que desce do Céu até<br />
elas. É a continuidade histórica, é o que foi e, uma vez<br />
extinto, deixou sua lendária memória no espírito humano:<br />
“Fui. Não sou mais. Contudo, se<br />
eu fui o que deveria ter sido, de algum<br />
modo para sempre o serei!”<br />
Quem, pois, não se toma de<br />
respeito diante dessas ruínas?<br />
Elas também foram,<br />
e continuam<br />
sendo, castelos<br />
de Espanha...<br />
Acima: Castelo de Torrelobatón (Valladolid)<br />
Ao lado: Castelo de Mombeltrán (Ávila)<br />
Ao fundo: Ruínas na Província de Castela e Leão
Revista Dr. Plinio 12, Março de <strong>1999</strong><br />
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
E<br />
xpressiva característica<br />
das grandes construções<br />
medievais é o fato<br />
de elas solicitarem, de quem as contempla,<br />
o tributo de um eminente e<br />
abnegado amor, estimando-as mais<br />
do que a si próprio. Exemplo disso<br />
é a belíssima Catedral de Notre-<br />
Dame de Paris, que manifesta, ante<br />
os que dela se aproximam, perene<br />
convite para essa superior dileção.<br />
O mesmo pedido nos é feito, à<br />
maneira de sussurro, por outra pre-<br />
ciosa jóia de arquitetura, esta já não<br />
medieval, mas que conserva algo de<br />
medievalizante: o castelo de Chambord.<br />
Quando o visitei, em fins de 1988,<br />
tive ocasião de ali perceber restos<br />
da graça que soprou sobre a Europa<br />
e deu origem à Idade Média,<br />
pondo-se séculos depois, lentamente,<br />
como um sol esplendoroso.<br />
Chambord é uma das irradiações<br />
desse ocaso da Cristandade medieval,<br />
mas um ocaso magnífico, como<br />
magnífica é também a Cristandade.<br />
Durante minha visita, voltei a vista<br />
continuamente para esta consideração:<br />
cada detalhe do castelo espelha<br />
de modo esplêndido o espírito<br />
católico, ainda que sob a forma de<br />
um glorioso crepúsculo. No fundo,<br />
eu contemplava em Chambord cintilações<br />
da Santa Igreja Católica, à<br />
qual amamos de um amor tão imenso,<br />
que este amor se torna a razão e<br />
o fundamento de todas as nossas de-<br />
33
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
mais benquerenças. E é porque a alma católica me encanta,<br />
é porque nela discirno o reluzimento do Divino<br />
Espírito Santo, que me apraz admirar Chambord.<br />
Nesse castelo, tudo é amabilidade, harmonia, leveza,<br />
elegância, força e coragem. Ora, é a graça de<br />
Deus que concede aos homens a possibilidade de<br />
serem assim e de imprimirem nas suas obras reflexos<br />
desses predicados. E a graça lhes vem através da Igreja<br />
Católica, de seus ensinamentos, de seu apostolado e<br />
maternal influência. Graças e influxo materno que,<br />
em Chambord, tocaram profundamente minha sensibilidade.<br />
“Chambord<br />
é uma das irradiações do<br />
magnífico ocaso da<br />
Cristandade medieval”<br />
Dr. Plinio contemplando o castelo,<br />
durante sua visita em 1988<br />
Essa maravilha que eu sonhava<br />
em conhecer, achava-se fechada aos<br />
turistas na tarde em que ali cheguei.<br />
Sozinha, silenciosa, envolta nas<br />
discretas penumbras do pré-anoitecer<br />
que começava. O conjunto refletia<br />
aquela espécie de poesia, de tristeza<br />
e de beleza especiais das coisas<br />
abandonadas. Separava-me do castelo<br />
um terreno coberto por uma erva<br />
que nasceu de modo mais ou<br />
menos fortuito, mas que adquiriu<br />
extraordinário encanto, realçado<br />
aqui e ali por graciosas florzinhas<br />
brancas surgindo inocentemente da<br />
relva.<br />
À direita, destacava-se uma capelinha<br />
de gótico flamboyant, do século<br />
passado, em perfeita harmonia<br />
com o estilo de Chambord.<br />
A floresta, sobre a qual incidia<br />
uma luminosidade amena, pareceume<br />
de rara beleza, imersa em suave<br />
e discreta melancolia. Contemplando<br />
aquelas árvores, tinha-se a impressão<br />
de ver um mundo de personagens<br />
que participaram de toda<br />
a existência áurea de Chambord, e<br />
que agora se encontravam para<br />
além do rio que nos separa da eternidade,<br />
considerando com certo pesar<br />
a derrota de tudo quanto eles<br />
conheceram e representaram.<br />
Já o castelo, com sua imensa beleza,<br />
altivez e fantasia, erguia-se à<br />
maneira de um grand-seigneur passeando<br />
por seus domínios. Hierático,<br />
algum tanto distante do mundo<br />
ao seu redor, um grand-seigneur<br />
que, no mesmo dia, pela manhã tomou<br />
parte numa batalha, à tarde recebeu<br />
convidados para uma festa na<br />
34
qual dançou, e no fim da noite se<br />
pôs a caminhar sozinho pela floresta.<br />
E leva consigo alguma coisa da<br />
batalha, da dança e do mato.<br />
O que tem o castelo?<br />
Proporções muito bonitas e um<br />
universo de chaminés de tamanhos<br />
variegados, surdindo como champignons<br />
por toda parte, numa verdadeira<br />
feeria de pequenas cúpulas<br />
e torres, algumas maiores, outras<br />
menores, causando a impressão de<br />
que um certo húmus passou do solo<br />
para o castelo, e deste para o ar.<br />
Esse húmus, indescritível, é o responsável<br />
pela grande fantasia que<br />
existe em Chambord, emoldurada<br />
por uma regra, uma linha e uma<br />
harmonia que nos deixam encantados.<br />
De vez em quando, o silêncio<br />
daqueles instantes era interrompido<br />
por diferentes piados de pássaros.<br />
Ora era um longo trinado, como se<br />
do fundo dos séculos algo dissesse:<br />
“Eu ainda vivo!” Ora era uma ave<br />
que, perseguida por outra, exalava<br />
um grito de desespero, atraindo<br />
nossa atenção para uma espécie de<br />
pungente e oculto drama que se<br />
desenrolava no meio daquele arvoredo.<br />
Dali a pouco os pássaros emudeciam,<br />
o silêncio se recompunha em<br />
“Em Chambord tudo é amabilidade,<br />
harmonia, leveza,<br />
elegância, força e coragem...”<br />
torno do castelo, e Chambord continuava<br />
seu velho sonho, triste, digno,<br />
seguro de si mesmo e abandonado.<br />
E as penumbras do entardecer,<br />
e as derradeiras incidências de um<br />
lindo crepúsculo, tremeluzindo sobre<br />
um extenso gramado de relva<br />
selvagem, mal plantada mas que deveria<br />
ser assim — tudo se tornava<br />
úmido de absoluto, impregnado de<br />
graças celestiais.<br />
Sim, mais uma vez é a graça que<br />
nos faz admirar em Chambord o<br />
que, sem o auxílio dela, não nos seria<br />
perceptível. São expressões do<br />
castelo, são impressões e sentimentos<br />
que ele só transmite a quem é<br />
favorecido com essa assistência sobrenatural.<br />
E deixamos o tempo transcorrer<br />
ali com a intenção de vislumbrar a<br />
graça como uma luz acesa no interior<br />
de Chambord. O próprio castelo<br />
seria o abat-jour, esplendoroso,<br />
extraordinário, porém o mais aprazível<br />
era considerar essa luz celeste<br />
que acentua sua inenarrável beleza,<br />
sua tranqüilidade recolhida, sua majestade.<br />
Era impossível que Chambord fosse<br />
tão belo, tão perfeito, e que Deus<br />
não estivesse presente ali. Era impossível<br />
que aquele castelo possuísse<br />
essa perfeição e essa beleza, se<br />
estas não fossem fruto das lágrimas<br />
de Maria e do preciosíssimo sangue<br />
de Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />
35
Glória, luz<br />
e alegria
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Revista Dr. Plinio 13, Abril de <strong>1999</strong><br />
C<br />
oncebida por São Luís IX,<br />
a Sainte Chapelle (Capela<br />
Santa) foi edificada para<br />
servir de magnífico relicário a<br />
um dos espinhos da dolorosa coroa<br />
da Paixão de Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo.<br />
Já no seu exterior aparece sua<br />
pulcritude, deixando ver a leveza, o<br />
esguio, o elegante desse templo-escrínio<br />
e o sobrenatural que o impregna.<br />
Chama a atenção, de modo especial,<br />
o telhado com seus adornos e<br />
suas torres. Está construído em ângulo<br />
bem fechado, o que lhe confere<br />
maior graciosidade e ligeireza, dando<br />
a impressão de que está prestes a<br />
alçar vôo. Pode-se imaginar que, soprando<br />
um vento forte, a Sainte<br />
Maison de la France<br />
Chapelle se lançaria em direção às<br />
imensidões do firmamento, e ali, em<br />
meio às nuvens e ao azul, tornarse-ia<br />
ainda mais bela que na terra.<br />
A torre central, antes um campanário,<br />
termina numa flecha que se<br />
atira para o alto, constituindo uma<br />
espécie de símbolo e de gráfico do<br />
desejo do homem de subir até Deus.<br />
Em uma das extremidades do telhado<br />
há um florão sobre o qual pousou<br />
um anjo. São tão bem-proporcionados<br />
um ao outro, o pedestal e<br />
seu anjo, que, dir-se-ia, se este último<br />
fizesse qualquer movimento, o<br />
florão vergaria. O anjo perderia o<br />
equilíbrio. É quase como se um pássaro<br />
estivesse pousado sobre uma<br />
delicada flor...<br />
* * *<br />
Quem, pela primeira vez, visita o<br />
pavimento inferior da Sainte Chapelle,<br />
ignorando tratar-se apenas de<br />
uma antecâmara do andar de cima,<br />
dificilmente retém uma exclamação<br />
33
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
de encanto e deslumbramento, pensando<br />
ter encontrado a suprema beleza<br />
desse edifício. Depara-se com<br />
proporções inusitadas, que conseguem<br />
conciliar numa mesma perspectiva<br />
a elevação e a intimidade, e<br />
incutem no fiel que ali reza a impressão<br />
de estar sendo recebido carinhosa<br />
e afetuosamente por Deus,<br />
na sua sala mais interna.<br />
Esse efeito extraordinário é obtido<br />
por meio das tênues e esguias<br />
colunas. Ora formam ogivas aderentes<br />
às paredes, ora se abrem de<br />
modo tão harmonioso, tão gradual<br />
e tão perfeito, que parecem palmeiras<br />
cujas folhas se tocam no teto.<br />
É preciso dizer que as ogivas<br />
exercem um incomparável fascínio.<br />
Cada uma é linda, tomada isoladamente,<br />
mas o conjunto delas é ainda<br />
mais gracioso. As colunas, igualmente,<br />
são de uma particular formosura,<br />
acentuada pelas pinturas;<br />
juntas, porém, são de uma beleza<br />
Dr. Plinio na sua<br />
última visita à<br />
Sainte Chapelle<br />
(ao fundo) em 1988<br />
indescritível. Narra a Sagrada Escritura<br />
que Deus, quando criou o<br />
universo, repousou no sétimo dia,<br />
contemplando a obra que havia realizado.<br />
Então se Lhe tornou patente<br />
que, se as criaturas eram individualmente<br />
belas, a criação vista no seu<br />
todo as vencia em esplendor. É o<br />
que se dá com a Sainte Chapelle.<br />
Esse andar inferior, de tão arrebatadora<br />
beleza, era o local onde o<br />
povo e os servidores do palácio real<br />
assistiam à Missa, ao mesmo tempo<br />
em que na capela alta se celebrava<br />
outro Santo Sacrifício, para São<br />
Luís IX e os nobres da corte.<br />
* * *<br />
Ao penetrar no pavimento superior,<br />
o visitante fica arrebatado de<br />
imediato, extasiando-se com a feeria<br />
do conjunto das colunas, ogivas<br />
e sobretudo vitrais!<br />
Tão predominante é o papel dos<br />
vitrais que a capela parece toda feita<br />
deles. De pedra há<br />
apenas o necessário<br />
para escorar o teto e<br />
suportar os caixilhos<br />
nos quais repousam<br />
cristais e vidros bem<br />
trabalhados em sua<br />
diversidade de cores,<br />
precisão dos desenhos<br />
e elegância das<br />
formas. Ao admirar<br />
o efeito produzido,<br />
vem-nos ao espírito<br />
esta idéia: “Não pensei<br />
que fosse possível,<br />
com os elementos<br />
desta terra, realizar<br />
algo assim tão parecido<br />
com o Céu!”<br />
Pois bem, essa maravilhosa<br />
edificação<br />
só se tornou factível<br />
em virtude da fé católica.<br />
Quer dizer,<br />
não fosse o fato de<br />
ela ter sido construída<br />
em séculos de fé,<br />
por artistas de fé, e,<br />
antes de tudo, concebida por almas<br />
resgatadas pelo preciosíssimo sangue<br />
de Nosso Senhor Jesus Cristo,<br />
que lhes abriu a porta do Céu e as<br />
elevou à vida sobrenatural por meio<br />
de uma abundante infusão da graça<br />
— o gênio humano não lograria<br />
idealizar semelhante prodígio de<br />
beleza.<br />
Nascida da devoção de almas<br />
profundamente impregnadas de fé<br />
e pureza batismal, essa se poderia<br />
chamar a Capela da Inocência. Pela<br />
candura que se faz notar no esguio,<br />
no elevado de suas linhas tendentes<br />
ao mais alto, realizando um extraordinário<br />
equilíbrio de espírito, ela<br />
empolga, conduz ao auge do entusiasmo,<br />
porém um auge tão calmo,<br />
sereno e refletido, que não produz<br />
frenesi nem sensações por demais<br />
fortes ou intemperantes. Que obraprima<br />
da temperança! Tudo é lindo,<br />
magnífico, tudo arrebata. Mas tudo<br />
recolhe e tudo reza. É o ápice da<br />
candura, da contemplação e da meditação.<br />
Cada peça de vitral, cada pedra e<br />
cada ogiva é como uma prece, em<br />
torno do centro da oração: o altar,<br />
onde se renova de modo incruento<br />
o Santo Sacrifício do Calvário. No<br />
seu alto é exposto um espinho da<br />
Coroa do Divino Salvador, trazido a<br />
pé e com indizível devoção, por São<br />
Luís IX, dos confins da França até<br />
Paris. É a pedra de ângulo de toda a<br />
extraordinária beleza dessa obra de<br />
arte.<br />
Harmonia e variação, movimento<br />
e consonância, estabilidade e agilidade.<br />
É a Sainte Chapelle. <br />
34
“Não pensei que fosse possível,<br />
com os elementos desta terra, realizar<br />
algo assim tão parecido com o Céu!”
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Revista Dr. Plinio 14, Maio de <strong>1999</strong><br />
QUANDO VIRGINDADE E<br />
GRANDEZA RÉGIA SE OSCULAM<br />
Não há louvores que não se possam fazer à virgindade.<br />
Ela é o auge da dedicação em relação<br />
a Deus, porque o homem inteiramente<br />
casto renuncia às comodidades e aos legítimos atrativos e aspirações<br />
da vida de família para servir um ideal superior. Um<br />
ideal que não lhe dá prêmios na terra, mas oferece<br />
recompensas no Céu. Trata-se, é claro, de um ideal católico,<br />
pois nenhum outro pode ser considerado autêntico e<br />
verdadeiro, quando desprovido do sentimento católico.<br />
A virgindade é, então, o ápice da dedicação. É, outrossim, uma<br />
forma de grandeza. Mais ainda, é a grandeza por excelência.<br />
Consideremos um rei santo. São Luís IX era um soberano<br />
puríssimo que tinha, entre outras missões, a de perpetuar a<br />
dinastia da França. Casou-se, teve filhos, e guardou plenamente<br />
a fidelidade conjugal. É maravilhoso.<br />
Contudo, quando ouvimos falar do Infante Dom Sebastião<br />
de Portugal — o rei casto, puro, virginal, imolado numa batalha<br />
contra os mouros nos vastos campos de Alcácer-Quibir<br />
— sentimos exalar-se um conjunto de idéias e grandezas, que<br />
adquire seu maior fulgor no fato de Dom Sebastião<br />
ser virginalmente casto.<br />
Resplandece nele aquela auréola da castidade perfeita,<br />
não a respeitável castidade do matrimônio, mas a da inteira<br />
abstenção de qualquer contato carnal. Um varão régio e virginal,<br />
numa couraça lisa e rutilante, brilhando sob o sol da África,<br />
com uma lança na mão e uma coroa de Rei Fidelíssimo na fronte.<br />
O trono da França era mais elevado que o<br />
de Portugal. São Luís foi um santo autêntico, canonizado pela<br />
Igreja. Esta não canonizou o Rei Dom Sebastião, e talvez<br />
houvesse certa temeridade em suas ousadias guerreiras, razão<br />
para não inscrevê-lo no rol dos Santos.<br />
Não obstante, sua figura é cercada<br />
de uma auréola, de uma poesia,<br />
de um perfume típico de grandeza<br />
que nem o grande São<br />
Luís, nem o grande São Fernando<br />
de Castela tiveram.<br />
Nem o próprio Carlos Magno<br />
possuiu. É a aliança entre<br />
a majestade régia e a<br />
castidade perfeita, entre a<br />
virgindade e a coroa.<br />
São Luís IX<br />
Moeda de São Luís IX<br />
34
D. Sebastião
Paladino dos<br />
Direitos da Igreja
Revista Dr. Plinio 15, Junho de <strong>1999</strong><br />
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Maison de la France<br />
A<br />
primeira impressão<br />
que se tem diante do<br />
castelo de Valençay<br />
é de deslumbramento. Um conjunto<br />
de torres que se elevam garbosas<br />
para o ar, e de alas intermediárias<br />
vastas, extensas, indicando senhorio,<br />
poder, grandeza e esplendor.<br />
Nos dois ângulos do corpo principal,<br />
erguem-se duas torres muito<br />
maciças, fortes e robustas, que formam<br />
agradável harmonia com a graça<br />
e a elegância da ala central. Esta<br />
se compõe de três andares. O primeiro,<br />
arejado por grandes portas e<br />
janelas em arco, era destinado aos<br />
melhores aposentos da casa no tempo<br />
em que Valençay foi construído.<br />
No segundo pavimento, onde se<br />
abrem vidraças retangulares, outra<br />
série de quartos e salas. E, por fim,<br />
para quebrar a monotonia que uma<br />
fachada desse gênero pudesse apre-<br />
sentar, existe o sótão, bem alto e<br />
vasto, como vasta é a própria fachada.<br />
Nele encontramos uma aprazível<br />
seqüência de janelas e óculos,<br />
embutidos num extenso telhado de<br />
ardósia.<br />
A preocupação de ornar está presente<br />
em todo o castelo, porém tão<br />
circunspecta que o observador a<br />
sente sem perceber, e é necessário<br />
um pequeno esforço de atenção<br />
para distinguir os adornos. Em<br />
grande parte, porque o ornato não<br />
se encontra naquilo que se põe para<br />
enfeitar, mas na discreta, fina e bela<br />
proporção das coisas (arte esta que<br />
vem a ser um dos traços característicos<br />
do gênio francês). Assim, nesse<br />
corpo central, a nota de adereço<br />
pode ser vista na espécie de sobrancelha<br />
grossa, mas bonita, aposta<br />
acima de cada mansarda e de cada<br />
óculo do sótão.<br />
Por outro lado, a “cara” séria e o<br />
caráter um tanto pesado das torres<br />
laterais são aliviados pela existência<br />
dos pequenos torreões, vazados e<br />
leves, que sobre elas se erguem à<br />
maneira de campanários.<br />
Na parte central da fachada eleva-se<br />
outra torre, de estilo diferente,<br />
quadrada, com alto teto em “V”.<br />
Sem ser inteiramente gótica, ela entretanto<br />
encerra uma reminiscência<br />
de Idade Média que lhe confere<br />
particular atrativo. É uma torre de<br />
fortaleza. Nos quatro ângulos, pequenos<br />
torreões arrendondados, outrora<br />
ligados por ameias de que ainda<br />
se notam vestígios na base da<br />
parede sobre a qual se levantam o<br />
teto e as chaminés.<br />
* * *<br />
No muito belo jardim de Valençay,<br />
extensos canteiros com grama e<br />
arbustos estabelecem certa distin-<br />
33
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
“Valençay é grandioso,<br />
mas acolhedor.<br />
Não infunde medo...<br />
Charaffi/Maison de la France<br />
... Apenas desperta<br />
fascínio e respeito”<br />
Dr. Plinio<br />
diante<br />
de Valençay,<br />
em 1988<br />
ção reverencial entre o visitante e o castelo, em relação<br />
ao qual aquele se sente mantido à distância. É<br />
compreensível, pois tudo quanto é respeitável, ao mesmo<br />
tempo que atrai, impõe certos limites. É o próprio<br />
da respeitabilidade, cujo modelo infinito e perfeito é<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />
Contemplando as imagens que procuram retratar<br />
mais fielmente o Divino Redentor, por vezes nos perguntamos<br />
qual seria nossa atitude se Ele, em corpo e<br />
alma, estivesse diante de nós. Com certeza, nosso<br />
coração teria a tendência de voar até o d’Ele, mas dobraríamos<br />
imediatamente os joelhos em terra. É a<br />
confirmação de que tudo quanto é respeitável e elevado<br />
atrai, mas mantém a posição.<br />
Assim também é Valençay: belo e atraente, porém<br />
incute respeito.<br />
* * *<br />
Fascínio e beleza de uma habitação que, à primeira<br />
vista, espanta pelo que tem de amplo e na qual, em<br />
épocas remotas, tudo girava em torno de uma pessoa:<br />
o senhor de Valençay. E de uma família: a dele. Mais<br />
ou menos até a Revolução Francesa, o castelo foi, portanto,<br />
a residência de uma pequena dinastia feudal,<br />
com uma corte local, constituída de nobres das redondezas.<br />
Ali se reuniam para festas, caçadas, conver-<br />
34
sas, ou, no caso dos vassalos, para<br />
prestar homenagens ao senhor de<br />
Valençay e render-lhe seus tributos.<br />
Igualmente se apresentavam no castelo<br />
plebeus, que vinham pedir justiça<br />
ou proteção, ou prestar serviços,<br />
ou ainda à procura de auxílios<br />
materiais, etc. Em suma, o castelo<br />
era o centro da vida de toda uma região.<br />
Para tanto contribuía o fato de<br />
que Valençay — à semelhança de<br />
todos os grandes castelos — situava-se<br />
a uma considerável distância<br />
da capital do país. De maneira que<br />
não só os nobres e aldeões tinham<br />
dificuldade em se deslocar até a<br />
sede da realeza, como as ordens do<br />
soberano encontravam obstáculos<br />
para chegar até eles. Assim, o senhor<br />
de Valençay vivia em seu feudo<br />
como um monarca de diminutas<br />
proporções. Um pequeno e esplêndido<br />
rei dominando um pequeno e<br />
esplêndido reino, onde ele conhecia<br />
cada súdito e o chamava pelo próprio<br />
nome. Quando partia para uma<br />
caçada, ia passear pelo campo ou<br />
admitia alguém em seu castelo a fim<br />
de tratar dos negócios do governo<br />
local, indagava da saúde deste e daquele,<br />
indicava remédios, e, não raras<br />
vezes, fornecia alimentos e agasalhos.<br />
Procurando atender às mais<br />
diversas necessidades de seus súditos,<br />
dava conselho sobre o melhor<br />
casamento para a filha de Fulano,<br />
ou a respeito de em qual batalhão<br />
do rei deveria se alistar o filho de<br />
Sicrano. Ou ainda escrevia cartas de<br />
recomendação para tal moço ou tal<br />
moça que manifestasse o desejo de<br />
abraçar a vida religiosa. Nestes casos<br />
fazia valer sua amizade para com<br />
importantes personalidades eclesiásticas,<br />
abrindo para seus protegidos<br />
as portas de um seminário ou de algum<br />
convento.<br />
Numa palavra, o senhor de Valençay<br />
era o pai de todos os habitantes<br />
do seu feudo, e sua esposa, a<br />
mãe. Era um regime patriarcal, em<br />
que ambos constituíam o centro e a<br />
cúpula do pequeno universo constituído<br />
em torno do castelo. E todo o<br />
esplendor deste se aliava de modo<br />
extraordinário à patriarcalidade que<br />
permeava as relações entre as várias<br />
classes sociais.<br />
Tudo decorria harmoniosamente<br />
dos senhores de Valençay, que estavam<br />
para o resto do feudo mais ou<br />
menos como, na torre central do<br />
castelo, telhados e ameias parecem<br />
defluir das duas chaminés postas no<br />
alto. Assim como seus antigos senhores,<br />
Valençay é grandioso, mas<br />
acolhedor. Não infunde medo. Apenas<br />
desperta fascínio e respeito. <br />
Maison de la France<br />
35
Ardoroso<br />
Carmelita
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Revista Dr Plinio 16, Julho <strong>1999</strong><br />
REFLEXO DO INESGOTÁVEL<br />
ESPÍRITO DA IGREJA
Nascido e cultivado na<br />
Cristandade européia,<br />
o estilo gótico, em vários<br />
dos seus traços, representa de<br />
modo muito característico o espírito<br />
medieval que o inspirou.<br />
O gótico é forte e, porque forte,<br />
tende ao perene. Suas construções<br />
têm um visível desejo de durar sempre,<br />
de se tornarem algo que nunca<br />
mais será substituído. E nisto o gótico<br />
bem se mostra um filho da Idade<br />
Média, a qual, diferentemente do<br />
homem moderno, não era escrava<br />
do tempo. Aquela foi uma época em<br />
que os edifícios — as catedrais, por<br />
exemplo — podiam levar cem, duzentos<br />
ou mais anos para serem<br />
completados. E as gerações que<br />
participavam da edificação de uma<br />
catedral, mesmo sabendo que dificilmente<br />
a veriam pronta, morriam<br />
em paz.<br />
Eram gerações de Fé, imbuídas<br />
da noção de que, quando chegassem<br />
ao Céu, teriam diante de si uma<br />
visão incomparavelmente mais bela<br />
do que a catedral: a recompensa da<br />
paz com que elas adormeciam em<br />
Deus. Nas cercanias do templo, às<br />
vezes ainda em construção, os corpos<br />
eram inumados com as mãos<br />
postas, à espera do juízo e da infinita<br />
misericórdia de Nosso Senhor.<br />
Gerações de Fé, numa época de Fé.<br />
Além de forte, o estilo gótico tem<br />
uma seriedade que confere ao interior<br />
de seus edifícios um certo recolhimento,<br />
uma compostura própria<br />
de quem é profundamente sério. A<br />
luz que neles penetra não é comum,<br />
mas tamisada pelo colorido feérico<br />
dos vitrais, fazendo-nos pensar num<br />
dia ideal, num sonho que está do lado<br />
de fora.<br />
A esses vitrais deve o gótico a sua<br />
capacidade de apaziguar os espíritos,<br />
de transmitir serenidade e temperança.<br />
Imagine-se uma pessoa<br />
muito aflita, tomada por graves<br />
angústias e preocupações. Ela passa<br />
defronte a uma catedral gótica, re-<br />
solve entrar e se senta próximo de<br />
um vitral. Repara na figura de um<br />
santo nele representado, ou numa<br />
imagem de Nossa Senhora da qual<br />
aquela luz filtrada serve de resplendor.<br />
Começa a rezar. De início, pensa<br />
apenas nos seus problemas. Roga<br />
à Santíssima Virgem, aos Anjos e<br />
Santos que sejam seus intercessores<br />
junto ao nosso clementíssimo Salvador,<br />
para que a ajude nas dificuldades,<br />
obtenha-lhe o perdão de um pecado,<br />
a correção de um defeito, etc.<br />
Ao cabo de algum tempo de orações,<br />
a pessoa passa instintivamente<br />
a prestar atenção no vitral. Este, entretanto,<br />
antes mesmo dessa observação<br />
clara e explícita, já lhe vinha apaziguando<br />
a alma, pois nesses vitrais<br />
há grande harmonia, vida, riqueza<br />
de cores e matizes, abundância de<br />
arte nos seus menores aspectos.<br />
Catedral de Sens.<br />
Na página ao lado,<br />
interior da<br />
Catedral de Reims<br />
Basta a alguém estar perto deles<br />
para se sentir tranqüilizado. Quando<br />
começa uma análise explícita do<br />
vitral, a pessoa já está preparada<br />
para prestar atenção em algo que<br />
não é o seu mero interesse individual.<br />
Acalmada, ela volta a rezar,<br />
contemplando a imagem de Nossa<br />
33
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Senhora, as figuras e as cenas desenhadas<br />
no vitral. E assim vai, numa<br />
alternância entre a prece, o pedido,<br />
a necessidade, e o deixar-se<br />
influenciar por uma arte<br />
inspirada pela Igreja, que<br />
dulcifica a alma e a enche<br />
de paz.<br />
*<br />
Forte, sério e temperante,<br />
o gótico é‚ ao mesmo<br />
tempo, delicado.<br />
Considerem-se, por<br />
exemplo, as formidáveis<br />
colunas de uma catedral.<br />
Os medievais lograram atenuar<br />
nelas as características<br />
que poderiam transmitir<br />
a impressão de força<br />
quase bruta, dando-lhes o<br />
aspecto de um feixe de<br />
coluninhas, que parecem<br />
amarradas umas às outras<br />
para suportarem as grandes<br />
abóbadas. E assim,<br />
sustentando com toda a<br />
firmeza o que lhes vai por<br />
cima, esses pesadíssimos<br />
pilares góticos dão a idéia<br />
de serem leves e elegantes.<br />
Elegância e leveza, entretanto,<br />
não dissociada<br />
da força. Daí, a extrema<br />
beleza das ogivas. De fato,<br />
a coluna gótica de grande<br />
estilo, ainda que talhada<br />
para dar aquela impressão<br />
de que acima falamos,<br />
conserva algo de coluna<br />
de combate. E do combate medieval,<br />
que, quando justo, sempre visava<br />
à paz e a uma concórdia equilibrada.<br />
Disposição esta muito bem<br />
simbolizada pela ogiva: são dois arcos<br />
que podemos imaginar opostos,<br />
e que se resolvem numa posição de<br />
equilíbrio, ou seja, numa reconciliação.<br />
Não é raro existirem florões e<br />
adornos no ponto de encontro das<br />
duas partes, quase como a festejar<br />
a paz.<br />
Presente está também no gótico<br />
uma profunda noção do dever. Tal<br />
noção se exprime, por exemplo,<br />
através das colunatas das abadias e<br />
Grupo de esculturas<br />
na fachada da<br />
Catedral de Reims<br />
catedrais, que dão ao homem a<br />
idéia de um caminho alto, estreito,<br />
mas conducente a uma grande solução.<br />
É o caminho do Céu. Uma<br />
estrada não larga, não folgada, não<br />
espaçosa nem agradável, mas apertada<br />
e difícil, sempre a dois passos<br />
de precipícios, problemas, tentações<br />
e perigos. Representa algo grandioso,<br />
metódico, do qual não se pode<br />
afastar nem um passo, porque se<br />
perderia de vista a meta e se transviaria.<br />
Essa é a imagem da nossa<br />
própria existência enquanto vivida à<br />
luz dos Mandamentos.<br />
E é precisamente o que nos sugere<br />
a colunata gótica:<br />
a idéia de um caminho<br />
apertado, estreito, sério,<br />
reto e, sobretudo, elevado.<br />
Quer dizer, se nos sentirmos<br />
opressos por estarmos<br />
cercados de colunas,<br />
nossos olhos e nossa alma<br />
encontram os grandes espaços<br />
olhando para o alto.<br />
O que, em outros termos,<br />
significa: “Quando a<br />
vida estiver apertada, olhemos<br />
para o Céu”. Assim<br />
era a alma católica medieval,<br />
que deu origem ao<br />
gótico.<br />
Na colunata como na<br />
ogiva, essa mesma alma,<br />
depois de ter explicitado<br />
seu desejo e sua afirmação<br />
de força, começou a sorrir<br />
e a manifestar sua própria<br />
doçura, como quem continua<br />
a descrever em pedra<br />
os diversos aspectos<br />
de sua personalidade. Dessa<br />
maneira, sem atraiçoar<br />
a coluna, que será sempre<br />
o objeto do maior entusiasmo,<br />
surgem os florões,<br />
as figuras esculturais e toda<br />
espécie de adornos graciosos<br />
do gótico.<br />
E assim, à maneira de<br />
alguém que vai retirando<br />
de sua arca as mais variadas<br />
peças de um opulento tesouro,<br />
o medieval foi lentamente manifestando<br />
as riquezas de seu espírito<br />
através dos requintes da arte gótica.<br />
Esta parece, pois, descrever uma alma<br />
profunda e verdadeiramente católica.<br />
Sim, porque o gótico é, no fundo,<br />
um magnífico reflexo do imenso,<br />
inesgotável e fabuloso espírito da<br />
Santa Igreja Católica Apostólica<br />
Romana.<br />
<br />
34
Catedral de<br />
Notre-Dame<br />
de Paris<br />
“Força e delicadeza,<br />
elegância e perenidade<br />
que nos apontam<br />
o caminho do Céu”
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Revista Dr Plinio 17, Agosto <strong>1999</strong><br />
Esplendorosa e<br />
sorridente majestade<br />
C<br />
erta vez, num passeio pela França, um menino<br />
brasileiro de quatro anos desejou comprar, com<br />
uma única moeda de libra esterlina, o Palácio de<br />
Versalhes. Sua alma inocente e propensa ao maravilhoso se<br />
encantara sobremaneira com as magnificências daquele<br />
edifício dos antigos reis da França.<br />
Transcorreram-se os anos, as décadas, e o enlevo<br />
de Dr. Plinio — pois era ele o menino — explicitou-se,<br />
enriquecendo-se com profundas análises e novas<br />
admirações que se traduziram em numerosos comentários.<br />
Vejamos em seguida alguns deles.<br />
Ao considerarmos os belos<br />
e variados aspectos de Versailles,<br />
devemos ter em vista<br />
que este grandioso palácio traz<br />
consigo algo da formosura da Idade<br />
Média, mesclado ao espírito excessivamente<br />
voltado para as glórias e<br />
prazeres terrenos, que esteve na origem<br />
da decadência medieval. Don-<br />
de ele representar, ao mesmo tempo,<br />
um progresso do esplendor monárquico,<br />
da cultura e da civilização,<br />
e um declínio dos valores religiosos<br />
e sobrenaturais que conheceram inigualável<br />
florescimento no período<br />
histórico anterior.<br />
Feita esta ressalva, nada nos impede<br />
de admirar algumas das mara-<br />
Galeria dos Espelhos e busto de Luís XIV<br />
vilhas que o palácio construído por<br />
Luís XIV — o Rei Sol — faz cintilar<br />
aos nossos olhos.<br />
***<br />
As grades e seu portão de entrada<br />
são monumentais, à maneira de um<br />
arco-do-triunfo em honra da realeza.<br />
Com suas colunas e trave pretas,<br />
folheadas a ouro, ornadas de figuras<br />
mitológicas, o pórtico parece construído<br />
para sustentar e reverenciar o<br />
escudo de armas da França, no alto<br />
do qual está uma reprodução da co-<br />
32
Vista do castelo a partir do Canteiro Norte<br />
roa do monarca. Sobre esta repousa<br />
uma pequena esfera, encimada, por<br />
sua vez, pela santa cruz de Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo.<br />
As grades, ricas em enfeites nos<br />
quais novamente se alternam o preto<br />
e o dourado, unem numa feliz harmonia<br />
a arte e o espírito securitário.<br />
Uma vez fechadas, tornam-se difíceis<br />
de transpor, e ostentam lanças<br />
que lembram a defesa e o fortalecimento<br />
da monarquia.<br />
***<br />
O palácio é um fabuloso conjunto<br />
de fachadas e alas que se encontram<br />
e se distribuem com simetria, a partir<br />
do corpo central. Este se ergue<br />
no alto de uma escadaria que lhe<br />
confere distinção e grande realce.<br />
No topo do frontispício, florões de<br />
glória e figuras mitológicas se congregam<br />
numa manifestação de júbilo<br />
diante das vitórias da França e de<br />
sua grandeza no cenário europeu.<br />
As longas fachadas são verdadeiros<br />
monumentos de majestade, que<br />
incutem respeito por sua indiscutível<br />
categoria, e deixam ver todo o<br />
esplendor do edifício. As estátuas,<br />
os florões, as pedras de cor indefinível,<br />
ligeiramente rosada, em contraste<br />
com o branco das colunas, imprimem<br />
uma certa movimentação às<br />
extensas frontarias, evitando-lhes a<br />
monotonia.<br />
Magnificamente simétricas — a<br />
simetria era uma das primeiras características<br />
da arquitetura luís-catorziana<br />
—, são fachadas discretas e<br />
variadas, dando uma idéia de proporção<br />
risonha e festiva, grande e<br />
poderosa.<br />
No interior, os aposentos reais,<br />
os salões de festa, as salas de audiências,<br />
as galerias (como a célebre Galeria<br />
dos Espelhos) e todas as demais<br />
dependências, ornamentadas<br />
com bom gosto extraordinário e indescritível.<br />
É, na verdade, um palácio lindíssimo,<br />
símbolo de uma majestade esplendorosa,<br />
triunfal e sorridente,<br />
porque segura de seu triunfo e de<br />
seu esplendor!<br />
***<br />
Na impossibilidade de passearmos<br />
por todos os salões, galerias e<br />
aposentos de Versailles, chamo a<br />
Grades e portão de entrada<br />
atenção apenas para a sua capela.<br />
Embora um tanto estreita, é toda<br />
concebida com um luxo extraordinário,<br />
muito séria, digna, envolta na<br />
atmosfera dos recintos sagrados, e<br />
com uma elevação aristocrática que<br />
lembra a grandeza do Rei.<br />
O jogo de mármores no piso é algo<br />
verdadeiramente feérico, dando<br />
a impressão de tapetes confeccionados<br />
com um material misterioso, vindo<br />
não se sabe de que Pérsia, Índia<br />
ou China, e colocados aí para todo o<br />
sempre. Sobre esses “tapetes” — pedras<br />
esplêndidas, em geral de procedência<br />
italiana — desfilavam os<br />
nobres, entoando belos cânticos religiosos,<br />
junto com o coral da capela<br />
33
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
A capela de Versailles<br />
Maison de la France<br />
Estátua eqüestre de Luís XIV<br />
que, a meu ver, é uma das mais bonitas<br />
da Terra.<br />
***<br />
Versailles tem como moldura indispensável<br />
os seus magníficos parques<br />
e jardins, planejados por Lenôtre,<br />
um dos maiores jardineiros da<br />
história, se não o maior. Tudo neles<br />
é feito de transições sabiamente graduadas,<br />
em que se harmonizam elementos<br />
de belezas diversas: escadarias,<br />
gramados, canteiros, lagos e arvoredos.<br />
Uma extensa alameda central<br />
abre-se para amplos jardins, os<br />
quais, por sua vez, nos fazem perder<br />
no mundo dos canteiros. Estes, compostos<br />
de flores muito bem escolhidas,<br />
são magnificamente<br />
desenhados, obedecendo<br />
a formas geométricas<br />
e simetrias perfeitas.<br />
Dir-se-iam pedras<br />
preciosas lapidadas pela<br />
arte de um exímio joalheiro<br />
e incrustadas naquelas<br />
vastidões. Delicadeza,<br />
finura e distinção<br />
que causam verdadeiro<br />
deslumbramento.<br />
Há depois um agradável<br />
contraste: surge<br />
de súbito um doce arvoredo,<br />
que descansa a vista,<br />
exausta com o que<br />
esse conjunto tem de<br />
por demais plantado, excessivamente<br />
artificial e<br />
intensamente desenhado.<br />
É a nobre e suave<br />
espontaneidade de uma<br />
natureza ultra-civilizada<br />
e abençoada. Note-se,<br />
porém, que as árvores<br />
de Versailles estão para<br />
suas congêneres comuns<br />
como uma pessoa bemeducada<br />
está para alguém<br />
vulgar. São árvores<br />
aristocráticas, que<br />
“tomaram chá em pequenas”,<br />
como se costuma<br />
dizer, ou que foram<br />
“regadas com champanhe”...<br />
Ornando esses jardins<br />
existem as fontes, lagos<br />
e chafarizes, onde imponentes<br />
jatos de água se<br />
lançam aos ares de modo<br />
extraordinário, executando<br />
mil jogos e traçados,<br />
e produzindo um barulho agradável<br />
de ouvir. Como a fonte de Latonne,<br />
construída em louvor da Rainha<br />
Ana d’Áustria, mãe de Luís XIV,<br />
e a fonte de Apolo, feita para homenagear<br />
o próprio rei. De fato, tudo<br />
nela faz sentir a grandeza da monarquia,<br />
da dinastia e do soberano, cercado<br />
pelas famílias mais nobres do<br />
reino.<br />
A começar pela figura de Apolo,<br />
guiando seus cavalos como Luís XIV<br />
governava a França: com pulso firme,<br />
porém, ao mesmo tempo, numa<br />
atitude de homem elegante. A posição<br />
dele é harmoniosa, aristocrática,<br />
controlando sem maior esforço<br />
os animais que, para outra pessoa,<br />
seriam indomáveis, mas obedecem<br />
à superior vontade do deus mitológico.<br />
Nessa fonte se pode ver, ainda,<br />
um jato de água central elevando-se<br />
mais alto do que os outros ao lado.<br />
É bem a imagem da corte com o seu<br />
rei preeminente acima de tudo, cercado<br />
de nobres muito dignos, mas<br />
que são miniaturas do monarca, reunidos<br />
em torno dele para honrá-lo e<br />
enfeitá-lo.<br />
***<br />
34
A estátua eqüestre de Luís XIV é outro<br />
dos belos ornamentos de Versailles. O rei é<br />
representado ainda jovem, varonil, enérgico,<br />
cheio de iniciativa e conduzindo o cavalo com<br />
arrojo. O corpo e o movimento do animal são<br />
lindos, como é também de extrema beleza —<br />
uma verdadeira obra-prima — o tecido que<br />
cobre a sela.<br />
Luís XIV segura o bastão de Condestável<br />
da França numa das mãos e, na outra, uma<br />
varinha que indica a linha do comando. No<br />
chapéu de abas largas ondeia uma pluma, que<br />
devia ser branca, pois esta é a cor da Casa de<br />
Bourbon, à qual pertencem os monarcas franceses.<br />
Montado quase no pescoço do cavalo,<br />
o Rei está na atitude de quem ordena o avanço<br />
às suas tropas, com a alegria de quem está<br />
certo da vitória. Mas, também, com a estabilidade<br />
de um homem que, nas grandes ocasiões,<br />
sabia conservar-se na graça de Deus, de<br />
maneira que essa estátua se tornou uma imagem<br />
exata do que era o próprio Luís XIV.<br />
Nela se manifesta, outrossim, algo de esplêndido<br />
que ainda existia nos Tempos Mo-<br />
Canteiros dos esplendorosos jardins de Versailles<br />
A fonte de Apolo<br />
dernos: o espírito batalhador. A nobreza<br />
era, por excelência, a classe<br />
combatente do reino da França. Durante<br />
as guerras, enquanto a burguesia<br />
e a plebe sustentavam o país<br />
com o dinheiro e o trabalho, os nobres<br />
o faziam militarmente, contendo<br />
o invasor na ponta da espada.<br />
E o rei era o primeiro a partir<br />
para a batalha. Daí, a atitude magnífica<br />
de Luís XIV, imortalizada na<br />
sua estátua eqüestre.<br />
***<br />
Modelado segundo o espírito de<br />
um dos maiores governantes da<br />
França, esse é Versailles, poderoso e<br />
majestoso, sorridente e charmant,<br />
em cujas construções, apesar da influência<br />
renascentista, ainda reluzem<br />
as últimas pepitas de ouro da<br />
velha sacralidade medieval... <br />
35
Há 70 anos,<br />
os primeiros<br />
passos no<br />
apostolado leigo
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Revista Dr Plinio 18, Setembro <strong>1999</strong><br />
e me fosse dado passar uma tarde diante<br />
do Mont Saint Michel, ditosos e abençoados<br />
seriam para mim esses momentos.<br />
Ali me agradaria estar, ora contemplando e<br />
analisando o mosteiro, ora pensando em temas<br />
elevados que teriam com ele uma certa afinidade,<br />
sentindo sempre o calor de sua presença<br />
como ponto de referência para o vôo variegado<br />
da cogitação de alguém que descansa.<br />
Por onde enveredariam essas análises e reflexões?<br />
* * *<br />
O Mont Saint Michel é um conjunto de aspectos,<br />
uma unidade na variedade, que simboliza<br />
de modo muito eloqüente determinados valores<br />
sobrenaturais, bem como certos movimentos e<br />
qualidades da alma humana. Esse simbolismo é<br />
mais bem compreendido se considerada a relação<br />
entre os diversos elementos que compõem<br />
o cenário.<br />
Primeiro, o mar e a elevação rochosa.<br />
Para se medir a importância do mar<br />
nesse panorama, basta imaginarmos que,<br />
depois da praia, não houvesse mais o<br />
oceano, mas começasse a se alastrar<br />
ali uma megalópole contem-<br />
porânea. Como tudo mudaria e perderia sua<br />
beleza tão singular!<br />
Pelo contrário, como esse conjunto lucra e se<br />
enriquece com a presença do mar e seus diversos<br />
movimentos! Ora ele vem meio caprichoso,<br />
boudeur, fazendo um pouco de fronda, inunda a<br />
praia, enche todos os espaços em volta do<br />
monte e acaba por se chocar contra os rochedos<br />
que ele mesmo talhou, e com os quais construiu<br />
uma espécie de muralha natural para conter seu<br />
próprio ímpeto. Ora ele se aproxima manso e se<br />
retira, deixando seu cartão de visitas nas franjas<br />
da areia. Ora são ondas que vêm e vão,<br />
lambendo a praia em todas as direções,<br />
como se o mar inteiro<br />
estivesse se espreguiçando<br />
e
olhando para o mosteiro que, sobranceiro, do<br />
alto o observa.<br />
E nisso temos a expressão de um estado de<br />
alma. Pois uma das formas de admirar o Mont<br />
Saint Michel seria a de alguém que, morando<br />
em frente a ele, ao acordar de manhã, e enquanto<br />
se espreguiça, de sua janela o contempla.<br />
A admiração comporta essa atitude<br />
de espírito.<br />
Considerando o mar, poderíamos<br />
ainda ver seus diferentes<br />
movimentos se acercando ou<br />
não do mosteiro, admirálo<br />
a distâncias diversas,<br />
como um símbolo dos<br />
movimentos — legitimamente<br />
vários<br />
— da apetência<br />
humana.<br />
* * *<br />
Há, depois, a extensa faixa de solo arenoso<br />
que aparece junto ao monte, quando as águas<br />
refluem e dele se afastam. A pergunta que nos<br />
vem à mente é esta: seria mais bonito que o<br />
mar tocasse continuamente no mosteiro, e<br />
nunca deixasse à vista esse pedaço de terreno?<br />
Certamente, não. Porque, nesse conjunto, a<br />
grande praia tem seu papel. Em determinados<br />
momentos, ela permite ao mosteiro conter o<br />
mar à distância, e como que dominar em torno<br />
de si uma periferia, tendo a seus pés areias<br />
submissas e rasas.<br />
E nesse aspecto do Mont Saint Michel encontramos<br />
também analogia com outro estado<br />
de alma do homem, quando este exerce alguma<br />
função de mando e senhorio.<br />
Por sua vez, o rochedo lucra bastante em ser<br />
único dentro de uma praia lisa e imensa. Parece-me<br />
inegável que sua beleza ficaria diminuída<br />
se houvesse quinze morros como ele, encostados<br />
uns nos outros, formando uma espécie<br />
de cordilheira que avançaria para o mar.<br />
O fato de ser único quase nos faz esquecer<br />
de sua altura. Pois quem está cercado de<br />
areia por todos os lados, tem todas as<br />
alturas. Ele, nessa planície, não<br />
é um anônimo: é supremo.<br />
Maison de la France
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Ele é ele, envolto por elementos rasos,<br />
dominando-os só por si. Muito<br />
mais do que sua altura, vale sua unicidade.<br />
A esta característica do Mont<br />
Saint Michel correspondem também<br />
algumas disposições da alma humana.<br />
De fato, há coisas que ela admira<br />
quando são únicas e não vêm<br />
acompanhadas de outras igualmente<br />
belas. Por exemplo, uma jóia constituída<br />
apenas de uma fina corrente<br />
de platina, da qual pende um brilhante<br />
grande e claríssimo, posta<br />
sobre um fundo de veludo negro,<br />
pode ser mais esplêndida do que<br />
uma outra emoldurada por cem pedras<br />
preciosas. Às vezes é mais<br />
bonito ostentar essa valiosa companhia,<br />
outras vezes é apresentando-se<br />
como único. São estados do<br />
belo, que equivalem a estados do<br />
espírito humano: ora cada um de<br />
nós lucra sendo visto no seu contexto,<br />
ora considerado na sua unicidade.<br />
E para alçarmos logo o supremo<br />
vôo dessas comparações, digamos<br />
que esse aspecto do Mont Saint Michel<br />
é uma pequena imagem do por<br />
onde o próprio Deus é único. Essa<br />
é uma rocha firme e alta, no meio<br />
de areias e praias movediças, como<br />
Deus é eterno e supremo no meio<br />
do movediço das coisas que Ele<br />
criou.<br />
* * *<br />
O rochedo e a vegetação. Destruamos<br />
esta e veremos como a<br />
aparência daquele fica prejudicada.<br />
Porque é agradável vislumbrar algum<br />
aspecto do mosteiro a perderse<br />
na mata cerrada, a qual imaginamos<br />
fresca, coberta de sombras, e<br />
talvez umedecida por duas ou três<br />
fontes que, nascidas do alto, por ela<br />
correm num suave e apaziguante<br />
murmúrio...<br />
Sem dúvida, é interessante ver o<br />
edifício como que se desfazendo em<br />
sombras e mistérios. Tanto ou mais<br />
bonito é vê-lo claro, altivo, agarrando-se<br />
ao rochedo que lhe serve de<br />
alicerce e dominando-o; é contemplá-lo<br />
na elegância de suas linhas<br />
que avançam para o céu, e na<br />
solidez de suas pedras que resistem<br />
e se afirmam diante dos elementos<br />
adversos.<br />
É bela a alma humana quando,<br />
com franqueza, proclama sua personalidade,<br />
se exprime e se define. É<br />
igualmente bela quando, com discrição,<br />
conserva alguma coisa consigo,<br />
exclusivamente sua. Ter seus<br />
mistérios e suas explicações, ter suas<br />
proclamações mas também suas intimidades,<br />
constitui um jogo de aspectos<br />
muito nobre para o espírito<br />
humano. Então, não será algo em<br />
nós que aprecia sua própria penumbra,<br />
e se deleita em olhar para o<br />
Mont Saint Michel? E não será algo<br />
em nós, sedento de proclamar-se, de<br />
afirmar-se e de ser uma fortaleza,<br />
que se identifica com esse monte<br />
que assim se declara à luz do sol?<br />
Sim, em todo homem se encontram<br />
essas várias disposições. Temos,<br />
em nossa alma, facetas que<br />
gostariam de se mostrar inteiras,<br />
sem véus; temos zonas delicadas<br />
que confiamos a poucos; e outras<br />
que, embora façam parte de nossa<br />
riqueza, nem nós conhecemos e<br />
tão-só as pressentimos, pois são vistas<br />
apenas por Deus.<br />
Resultado, a alma humana encontra<br />
na variedade do Mont Saint<br />
Michel uma expressão de si mesma,<br />
uma semelhança e uma alegria.<br />
* * *<br />
O mosteiro, mais bem um conglomerado<br />
de prédios distintos, tem<br />
algo de fortaleza, algo de residência<br />
e algo de igreja.<br />
Ombreando-se por entre as irregularidades<br />
do morro, as casas de<br />
uma pequena aldeia se eclipsam à<br />
sombra do grande e proeminente<br />
edifício religioso. No interior deste,<br />
um claustro que exprime ordenação<br />
e sabedoria extraordinárias, nascidas<br />
da piedade medieval, filha ela<br />
mesma da ordem e da sapiência da<br />
Igreja Católica. Imaginemos a vida<br />
entre essas paredes sagradas: monges<br />
estudando em magníficas bibliotecas<br />
ou cantando o Ofício na<br />
igreja; um que se acha recolhido em<br />
sua cela, desenhando lindas iluminuras<br />
num pergaminho, enquanto<br />
outro na oficina entalha um bonito<br />
capitel para uma coluna ainda desprovida<br />
de ornatos.<br />
Depois, na periferia das construções,<br />
há espaços para a luta e a<br />
guerra. Confundindo- se com as rochas,<br />
erguem-se como que muralhas<br />
nas quais podemos figurar mongescruzados<br />
resistindo e expulsando,<br />
passo a passo, os invasores que debalde<br />
intentam conquistar a fortaleza<br />
inexpugnável.<br />
Como tudo se encaixa bem no<br />
Mont Saint Michel! Síntese de oração,<br />
de estudo, de recolhimento, de<br />
arte e de luta. Unicidade que encontra<br />
sua máxima expressão na torre<br />
do campanário, forte, desafiante, inamovível,<br />
como se fora um pesa-papéis<br />
colocado sobre papéis diferentes,<br />
como quem diz: “O vento não os<br />
faz esvoaçar nem os tira daqui!”<br />
No alto dessa torre, uma flecha.<br />
No cimo da flecha, a estátua do Arcanjo,<br />
que parece proclamar: “A síntese,<br />
a correlação de todos esses aspectos<br />
é tão vária e tão imensa que<br />
se perde nas nuvens, abisma-se no<br />
céu!”<br />
E então poderíamos dizer que,<br />
no seu conjunto, o Mont Saint Michel<br />
é um magnífico símbolo do Sapiencial<br />
e Imaculado Coração de<br />
Maria, Rainha dos Doutores, Rainha<br />
dos Profetas, Rainha dos Mártires<br />
e dos Guerreiros, Rainha de<br />
todos os Santos.<br />
Mais. Símbolo d’Aquele que veremos<br />
face a face na bem-aventurança<br />
eterna, no seu vulto inteiro,<br />
embora não na totalidade de cada<br />
uma das suas perfeições: Deus Nosso<br />
Senhor, infinitamente claro e infinitamente<br />
misterioso, pelos séculos<br />
dos séculos. Amém! <br />
Sudres/Maison de la France<br />
34
Uma escola<br />
de amor<br />
de Deus
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Revista Dr Plinio 19, Outubro <strong>1999</strong><br />
Supremacia, nobreza<br />
e serenidade<br />
Aarte medieval me levou à<br />
conversão, pois aprendi as<br />
verdades da Igreja Católica<br />
nas criptas das velhas igrejas e catedrais<br />
européias.<br />
Assim se exprimiu Pugin, um dos<br />
mais ilustres arquitetos ingleses do<br />
século XIX, que havia sido educado<br />
num rígido calvinismo. Tendo se<br />
tornado católico, dedicou-se de corpo<br />
e alma ao renascimento do gótico<br />
na Inglaterra, posto ser a única<br />
arte que ele considerava realmente<br />
cristã. E teve sucesso, embora, após<br />
a sua morte, vários dos edifícios que<br />
construiu tenham sofrido reformas,<br />
mudando-se-lhes propositadamente<br />
o estilo original. Outras de suas notáveis<br />
obras tiveram seu nome apagado<br />
e substituído pelos de arquitetos<br />
anglicanos.<br />
Um exemplo é o Parlamento de<br />
Westminster, do qual, durante muito<br />
tempo, julgou- se que somente alguns<br />
detalhes triviais eram de Pugin.<br />
Hoje se sabe com certeza que são<br />
dele toda a fachada que dá para o<br />
rio Tâmisa e a famosa torre do relógio.<br />
Grato me é constatar a comprovação<br />
histórica dessa autoria, pois<br />
vem corroborar a impressão que tive<br />
quando pude contemplar de perto o<br />
Parlamento inglês e a torre do Big<br />
Ben. Aquele conjunto arquitetônico<br />
pareceu-me tão medieval, tão acertada<br />
e retamente católico, que pensei:<br />
“Pode ser que, aqui, a Igreja Católica<br />
tenha deixado algumas das melhores<br />
marcas de seu próprio pensamento<br />
e de sua própria alma”.
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Longa fachada, revestida de imensa<br />
dignidade, serenidade e alta nobreza<br />
O que existe ali de especial?<br />
Não é, por exemplo, o que há de<br />
peculiar na Catedral de Colônia ou<br />
na de Notre-Dame de Paris. A primeira<br />
possui algo de feérico, uma<br />
espécie de explosão de pedra, de<br />
uma imponência extraordinária, na<br />
qual, mais do que a razão, está presente<br />
a imaginação germânica no<br />
que ela tem de categórico. Ou seja,<br />
não se trata de uma concepção suave<br />
nem poética (no sentido doce da<br />
palavra), mas é a idéia de quem desejou<br />
construir uma epopéia grandiosa<br />
e, desse modo, marcar todos<br />
os séculos com uma nota de magnitude<br />
mais celeste do que terrena.<br />
Assim, a característica saliente da<br />
Catedral de Colônia é algo de fantasioso<br />
e imaginativo, que o espírito<br />
possante conseguiu realizar.<br />
Na catedral de Notre-Dame encontramos<br />
a conjugação da fantasia<br />
com a razão. Dir- se-ia que a fantasia<br />
concebeu uma construção magnífica<br />
e que, depois, a razão colocou<br />
os planos em ordem, introduziu simetrias,<br />
bons sensos e harmonias<br />
quase clássicas, sem subtrair nada<br />
do sublime e do extraordinário próprios<br />
ao medieval.<br />
Já a fachada do Parlamento de<br />
Westminster e a torre do relógio representam,<br />
dentro desse conjunto,<br />
algo de diferente. Não é a afirmação<br />
predominante da fantasia, nem<br />
a admiração predominante da razão,<br />
mas é uma reunião de dois valores<br />
diversos que se situam numa<br />
outra ordem de idéias: a força e a<br />
delicadeza.<br />
Sua fachada é toda feita de linhas<br />
longas que se repetem, e de um<br />
grande desdobramento estendido<br />
numa amplitude de horizonte que,<br />
sem ter o élan de Colônia nem a espécie<br />
de harmonia superlativa de<br />
Paris, possui entretanto uma categoria<br />
que lhe é peculiar. Ela se reveste<br />
de imensa dignidade, de superior<br />
elevação e de alta nobreza, com<br />
algo de sereno, de senhor de si, de<br />
afável e, ao mesmo tempo, de sacral<br />
e de sério, reunindo assim extremos<br />
opostos. E toda obra de arte que,<br />
numa fusão, alia extremos opostos<br />
— que um espírito comum poderia<br />
julgar contraditórios —, realiza algo<br />
de supremo no seu próprio gênero.<br />
Supremacia esta que, a meu ver, a<br />
fachada do Parlamento inglês logrou<br />
alcançar.<br />
Nela, o aspecto força se faz notar<br />
também na forma de uma grandeza<br />
estável, que não se entregará a novos<br />
empreendimentos, sem todavia<br />
começar a decair. Ela se senta sobre<br />
seu próprio poder e se põe a meditar<br />
em suas glórias imorredouras...<br />
O mesmo se pode dizer da torre<br />
do relógio, uma verdadeira maravilha<br />
digna de ser justaposta ao edifí-<br />
34
cio do Parlamento. Este, ao ter de ostentar uma torre,<br />
só pode ser uma como aquela: tão coerente, tão lógica,<br />
tão bela, porém com essa doçura, essa suavidade dos<br />
ingleses que o gênio católico depositou ali pelas mãos<br />
de Pugin, que soube interpretar os edifícios nos seus<br />
planos originais e comunicar um sopro de catolicidade<br />
a tudo aquilo.<br />
Ele soube compreender, de modo ímpar, a nostalgia<br />
que a Inglaterra, anglicana e industrial, sentia — e ainda<br />
sente — daquela primeira Inglaterra, católica, feita<br />
mais para conquistas de ordem cultural<br />
do que para triunfos de ordem material.<br />
Ele, o arquiteto católico (como era chamado),<br />
soube, por meio de símbolos, tocar<br />
a fundo a alma de seu país, e realizar<br />
monumentos que incontáveis protestantes<br />
não têm cessado de admirar até os<br />
presentes dias.<br />
Muitos dos monumentos e edifícios<br />
projetados por Pugin não saíram do papel.<br />
Se porventura, no mundo de hoje,<br />
fosse dado a alguém construir uma obra<br />
que ele planejou, mas não pôde levar a<br />
cabo, prestaria a mais alta homenagem<br />
que se pode tributar a esse varão, verdadeiro<br />
artista católico. Seria a realização<br />
póstuma de mais um de seus grandes<br />
sonhos inspirados pela Fé. <br />
35
EUCARISTIA:<br />
VIA DE<br />
SANTIFICAÇÃO
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Revista Dr Plinio 20, Novembro <strong>1999</strong><br />
Escadaria dourada,<br />
estado atual (Burgos)<br />
No espírito de quem a analisa, a Escadaria<br />
Dourada da Catedral de Burgos produz uma<br />
primeira impressão tão intensa, e apresenta<br />
uma idéia tão diversa de como se poderia imaginá-la,<br />
que o observador sente a necessidade de pôr um pouco<br />
em ordem as considerações que ela lhe sugere.<br />
Uma das belas gravuras que a retratam (p. 35) me faz<br />
pensar que ela é, em seu gênero, a escada. Ao construir<br />
esses sucessivos lances de degraus, o artista empreendeu<br />
uma verdadeira epopéia, compondo uma maravilha<br />
de ordenação arquitetônica. Essa gravura poderia ter<br />
como título: “Elevação e coerência”, pois tais são os<br />
33
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
valores que a Escadaria Dourada exprime de modo extraordinário.<br />
A elevação se manifesta, por exemplo, na disposição<br />
das janelas cegas e das portas ao longo de um muro<br />
muito alto, formando uma linha perpendicular tão ascendente<br />
que, para a limitação do campo visual de<br />
quem a observa, ela como que se perde numa região superior,<br />
digamos o “céu” da atenção humana.<br />
Essa linha vertical fica assegurada por uma obra-prima<br />
de equilíbrio, composta de dois elementos. Em primeiro<br />
lugar, as janelas cegas atenuam o que a parede<br />
talvez tivesse de muito pesado, ou de muito liso e enfadonho.<br />
E depois, a força e o vigor da porta, que parece<br />
sustentar o bem-proporcionado de todo o conjunto.<br />
A nota de coerência, por sua vez, surge no moucharabié,<br />
todo ele feito de harmonias correlatas, que dão<br />
idéia de lógica, estabilidade e coesão. O teto, o corpo e<br />
a base, amparados por uma maravilhosa peanha — verdadeira<br />
obra de arte, com seus lavores que parecem<br />
rendas de pedra — formam uma linda e suave harmonia.<br />
Como harmônicas são também as duas extremidades<br />
simétricas, confinando ambas com as rampas laterais.<br />
Esse moucharabié assim concebido é rico em sugestões<br />
que se desdobram, como se fossem grandes leques<br />
de conseqüências, que acabam se fechando no mesmo<br />
ponto de onde partiram. Quer dizer, as harmonias brotam<br />
dele e para ele voltam, como de um rio sairiam dois<br />
afluentes os quais, chegados a um extremo, começam a<br />
retornar para a via essencial. E nisso temos então realçada<br />
a nota de coerência.<br />
Depois, como ponto terminal da escada, uma magnífica<br />
manifestação de certeza. Quando se esperaria que<br />
fosse morrer de modo comum e trivial, ela como que<br />
ressurge e se estende em movimentos diversos. O seu<br />
fecho, com os dois braços ou corrimões, é uma espécie<br />
de afirmação fundamental, é a última conseqüência, segura<br />
e proclamativa. É o ápice da harmonia: a leveza e a<br />
força, o compacto e o filigranesco extraordinários!<br />
E o hierático. As figuras dos dragões parecem pensar<br />
e dizer: “Isto é assim mesmo, e nós atacamos quem o<br />
negar!” Dir-se-ia a robustez e a vigilância a serviço da<br />
elevação e da coerência...<br />
<br />
Por outro lado, o mesmo moucharabié dá a idéia de<br />
enquadrar algo mais delicado e mais interno. Ele tem<br />
seu segredo. É como que um sacrário. Sua porta, esguia<br />
e linda como peça arquitetônica, ladeada por figuras esculpidas<br />
que lhe constituem magnífica moldura, parece<br />
abrir para um corredor profundo, que se perde além. É<br />
o senso do mistério, presente em tantas e tão esplendorosas<br />
obras de arte.<br />
Alguém poderia me dizer: “Mas, Dr. Plinio, essa é a<br />
porta da rua!”<br />
Pouco importa. Para o olho humano, a arquitetura<br />
comporta também essas simbologias. E, a meu ver, mais<br />
uma vez temos aqui um superior exemplo de coerência<br />
e elevação, magnificamente expressas no conjunto desse<br />
moucharabié.<br />
<br />
A gravura retrata um aspecto muito bonito, que é a<br />
pequena vida de todos os dias ao pé do monumento.<br />
Então são duas mulheres, meio latinas, meio mouras,<br />
que se dirigem para os degraus; é um homem cheio de<br />
vitalidade e decisão, subindo a escada, ou um casal que<br />
por ali passeia e conversa calmamente. São dois fidalgos,<br />
compondo a cena com a riqueza de seus trajes e o<br />
luzir de suas espadas; é um fiel que se aproxima da pia<br />
de água benta, enquanto uma mulher ao mesmo tempo<br />
reza e descansa, observando outro grupo de pessoas<br />
que trocam idéias junto à imponente escadaria.<br />
Esta visão nos conduz aos adornos do monumento,<br />
igualmente belos. Vale notar que toda a ornamentação<br />
visa ao gracioso, e compensa o que o grandioso teria<br />
por demais de severo. Não se vê aí um enfeite o qual,<br />
exceção feita dos dragões, não seja tão ameno que quase<br />
convide ao sorriso. Há, por exemplo, uma espécie de<br />
concha, soberba, cuja singeleza de linhas compensa o<br />
que ela tem de extremamente trabalhado. É a graça<br />
suavizando a severidade da grandeza...<br />
<br />
Uma última consideração. Dir-se-ia que essa construção,<br />
na qual se misturam estilos da Renascença e aspectos<br />
mouriscos, é o contrário do gótico. Entretanto,<br />
as ogivas da parede lateral se harmonizam de tal maneira<br />
com o conjunto da escada que são indispensáveis<br />
para compor o quadro.<br />
De fato, embora as decorações e os desenhos sofram<br />
influências renascentistas e árabes, o espírito inspirador<br />
dessa obra de arte ainda é o gótico. A nota ogival é a<br />
que nela predomina. O moucharabié, por exemplo, poder-se-ia<br />
chamar “variações dentro de uma ogiva”.<br />
Além do mais, o fator coerência de que acima falávamos,<br />
presente em todo o conjunto, é também muito<br />
próprio da arte ogival e, portanto, gótica. Como lhe é<br />
igualmente própria, na decoração, uma certa leveza, a<br />
mesma que se acha difusa nesse monumento. Assim,<br />
encontramos o casamento do gótico com a Escadaria<br />
Dourada. Obra que reputo uma verdadeira magnificência!<br />
<br />
34
A Mãe do<br />
Bom Conselho,<br />
em nossas aflições
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
Revista Dr Plinio 21, Dezembro <strong>1999</strong><br />
Onde o “Lumen Christi”<br />
ainda cintila...<br />
Distantes já se encontram os séculos que conheceram<br />
os esplendores da cristandade<br />
européia. Porém, ainda hoje, em determinados<br />
palácios, monumentos, igrejas e praças do Velho<br />
Continente pode-se contemplar uma reverberação do<br />
espírito católico que os concebeu e realizou. Pode-se<br />
discernir neles um prolongamento de certos atos de virtude<br />
ali praticados, que marcaram esses ambientes com<br />
qualquer coisa de imponderável que faz deles, no presente,<br />
uma espécie de relíquia. São restos e símbolos<br />
sagrados de uma época em que a ordem temporal, com<br />
seus aspectos sociais e econômicos, procurou ser em tudo<br />
conforme com a Doutrina Católica. São reflexos da<br />
alma de gente batizada, que correspondeu aos desígnios<br />
da Providência e engendrou maravilhas segundo a mentalidade<br />
da Igreja.<br />
Sim, algo das graças da antiga Civilização Cristã continua<br />
ligado a esses lugares, à maneira de vestígios de<br />
um requintado aroma aderentes a velhos muros e velhas<br />
paredes. E quando algum peregrino, admirador das<br />
grandezas de outrora, passa junto a essas paredes e esses<br />
muros, pode ele sentir o evolar-se do perfume, isto é,<br />
ter idéia daquelas graças que ainda pairam sobre tantos<br />
ambientes e monumentos da Europa.<br />
É o que sucede quando se visita, por exemplo, a pequena<br />
cidade de Genazzano, a poucos quilômetros de<br />
Roma. Nela se percebe como conceitos de vida, princípios<br />
de organização social e de existência pública, profundamente<br />
impregnados de religião católica, marcaram<br />
toda a edificação das casas, a disposição das praças, bem<br />
como o traçado de ruas e veredas. Sente-se ainda ali palpitações<br />
de coisas do passado, de sociedade orgânica italiana,<br />
pervadida de tradições cristãs e de milagres operados<br />
pela imagem da Mãe do Bom Conselho.<br />
*<br />
O santuário é uma igreja em estilo renascentista, de<br />
tamanho razoável, com mármores muito bonitos e uma<br />
ornamentação que, felizmente, não tende para certos<br />
exageros disparatados da Renascença. É um templo digno<br />
e composto. Na nave à esquerda de quem entra aparece<br />
um gradeado, atrás do qual se ergue o altar onde se<br />
venera o afresco milagroso de Nossa Senhora de Genazzano.<br />
Cercada de toda a veneração que lhe é devida, a imagem<br />
exerce indescritível atração sobre o fiel que lhe dirige<br />
suas preces. E pode-se dizer que Genazzano é um<br />
extraordinário aspirador de orações: rezando ali, tem-se<br />
33
LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />
a impressão de que nossas súplicas vão de fato para o<br />
Céu. É uma verdadeira maravilha.<br />
* * *<br />
Complementando a imagem e o santuário, espraiamse<br />
pela cidade ruas e casinholas prodigiosamente interessantes.<br />
Um pitoresco urbanismo que, concebido para<br />
fazer caber Genazzano dentro de suas vetustas muralhas,<br />
exprime um estado de alma sadio, com qualquer<br />
coisa de inventivo e encantador, que o situa acima de<br />
muitas “belezas” modernas...<br />
O casario, contudo, é construído o mais ao léu que se<br />
possa imaginar, com aspectos bastante curiosos. Numa<br />
determinada fachada, por exemplo, o visitante pode<br />
avistar uma pequena janela com enquadramento românico.<br />
Aquilo é um dedinho de Idade Média, e de Idade<br />
Média iniciante, porque o estilo românico ainda não é o<br />
gótico, embora já contenha o sabor deste. A janela é<br />
cheia de fantasia, de poesia, de expressão, sem ser teatral.<br />
Nota-se que quem a abriu teve uma preocupação<br />
apenas de arejamento, pensou tão-só no lado prático de<br />
bisbilhotar o movimento na rua e comentá-lo com o<br />
vizinho.<br />
Não raras vezes é essa a origem de semelhantes detalhes.<br />
Mas, vai-se ver, eles se mostram pitorescos, poéticos,<br />
interessantes, cheios de vida, de uma espontaneidade<br />
ao mesmo tempo ousada e harmônica. O fundamento<br />
dessa poesia e dessa beleza está em que, sendo<br />
tais realizações animadas pela graça divina, acabam exprimindo<br />
uma harmonia, pode-se dizer, mais pensada<br />
por Deus que pelos homens.<br />
Um teórico da Renascença afirmaria que todas as<br />
espontaneidades, caso não sejam controladas pela razão,<br />
redutíveis a normas e seguidas como sistema, redundam<br />
num horror. Ora, a tese verdadeira, conforme<br />
a doutrina cristã, é outra: quando a alma está penetrada<br />
pela graça de Deus, realiza espontaneamente coisas de<br />
extraordinária formosura, que têm uma ordenação superior,<br />
e que expressam elevados princípios, nem sempre<br />
susceptíveis de serem convertidos em termos mais<br />
simples.<br />
Assim, compraz considerar em Genazzano essa arquitetura,<br />
filha da virtude, libertada dos grilhões da arte<br />
sistemática, das regras coercitivas, e entregue à alegria<br />
de si mesma. Dir-se-ia um pouco a felicidade do sol, da<br />
natureza amena, a alegria da vida cotidiana, alegria da<br />
saúde (que seus habitantes possuem de forma impressionante!),<br />
enfim, mil alegrias, mas sobretudo a alegria<br />
da Fé.<br />
34
O que torna agradável o<br />
passeio em Genazzano é embeber-se<br />
dessa espontaneidade,<br />
é ouvir esse cântico de<br />
um povo batizado, é deixarse<br />
tomar pelas coisas vivas,<br />
claras, bruscas, pelo imprevisto<br />
e pelos aparentes entrechoques<br />
das harmonias. Variegados<br />
aspectos que a alma<br />
do homem contemporâneo<br />
tem necessidade de contemplar,<br />
de acariciar até, experimentando<br />
mais ou menos a<br />
sensação que nos colhe quando<br />
vemos surdir do chão<br />
uma água límpida, despoluída,<br />
que brota meio cantante<br />
das profundezas da terra. Tal<br />
é a vida, quando ela nasce do<br />
populino católico.<br />
O mesmo populino que construiu as casinholas encantadoras,<br />
algumas aprumadas, outras trôpegas, essa<br />
aconchegada a um canto de muralha, aquela elevandose<br />
sobre uma espécie de arcada, de maneira que dá<br />
meio para o plano, meio para um precipício.<br />
O mesmo populino que traçou essas ruas interessantes,<br />
alargando-se em pequenas praças, escondendose<br />
em becos, ou confundindo-se com escadarias de pedras<br />
diferentes, alheias a planos de arquitetura. Pôs-se<br />
um degrau, outro e outro, sem a intenção de fazer algo<br />
pitoresco. Mas foi o que resultou do espontâneo.<br />
Às vezes aparece uma simetria, por acaso, sem ser<br />
calculada, porém simpática, e faz com que o visitante<br />
descanse da espontaneidade anterior.<br />
* * *<br />
Se formos analisar o ponto inicial de tantas bênçãos,<br />
chegaremos à grande irradiação de um lúmen existente<br />
na Idade Média, do qual os primeiros reluzimentos já se<br />
haviam feito sentir no tempo das catacumbas. Esse lúmen<br />
estava para o mundo dos primórdios do cristandade<br />
como uma lamparina com uma linda chama, acesa<br />
numa catedral tão grande que, apesar de sua maravilhosa<br />
labareda, não se notava capaz de iluminar todo o recinto<br />
sagrado. No volver dos séculos, foi ele crescendo<br />
em intensidade, até atingir sua plenitude na civilização<br />
medieval.<br />
E tamanha força adquiriu que, quando entrou em decadência<br />
a Idade Média, esta continuou todavia muito<br />
carregada desse lúmen: o Lumen Christi, a Luz de Cristo,<br />
cujas cintilações ainda podem ser admiradas nas pitorescas<br />
ruelas e esquinas de Genazzano. v<br />
35