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SaúdeOnline nº 03

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SAÚDE ONLINE | ENTREVISTA<br />

porque a MGF é elemento “integrante<br />

de tradições fortemente<br />

enraizadas nas comunidades<br />

que a praticam e que são assumidas<br />

por muitos como veículo<br />

de integração na comunidade e<br />

até como uma prática benéfica.<br />

Uma mulher não excisada não<br />

é aceite em algumas comunidades.<br />

Não consegue constituir<br />

família, já que a excisão é, para<br />

muitos, condição necessária<br />

para o casamento. Neste contexto,<br />

são as próprias famílias<br />

que pressionam para a prática<br />

da MGF, como fator de integração<br />

social” explica.<br />

Pese a importância de que se<br />

reveste em alguns contextos<br />

culturais, “começam a emergir,<br />

quer no seio das comunidades<br />

migrantes, quer nos próprios<br />

países onde a MGF é “endémica”,<br />

movimentos contra a mesma.<br />

“São cada vez menos os<br />

que a apoiam publicamente”,<br />

afirma Duarte Vilar. “Entre os<br />

apoiantes são sobretudo as gerações<br />

mais velhas, que ainda<br />

dão suporte à prática. Os jovens,<br />

mais informados, tendem<br />

a abandoná-la”, acrescenta.<br />

No terreno, a APF desenvolve<br />

as suas ações recorrendo a elementos<br />

da própria comunidade.<br />

Atualmente estão em curso dois<br />

projetos, de formação de agentes<br />

comunitários originários das<br />

comunidades mais afetadas –<br />

sobretudo a guineense.<br />

“Outra estratégia adotada pelas<br />

diversas entidades envolvidas<br />

no combate à MGF é a da criação<br />

de redes envolvendo múltiplos<br />

atores sociais, para a<br />

prevenção de casos”, explica<br />

o Diretor Executivo da Associação.<br />

Quando, por exemplo, um dos<br />

elementos da rede identifica<br />

uma menina que corre o risco<br />

de ser mutilada no decurso de<br />

uma viagem ao país natal durante<br />

as férias, é dado o alerta<br />

e age-se no sentido de impedir<br />

que tal aconteça. Outro exemplo<br />

é o da sinalização de casos de<br />

risco por profissionais de saúde.<br />

“Temos o caso de profissionais<br />

de um centro de saúde da periferia<br />

de Lisboa que identificaram<br />

uma situação, que comunicaram<br />

de imediato à Comissão Nacional<br />

de Proteção das Crianças e<br />

Jovens em Risco (CNPCJ) da<br />

região, que agiu prontamente”. .<br />

No entanto, como refere Duarte<br />

Vilar estes casos não têm sido<br />

frequentes.<br />

SANSÃO PENAL NÃO BASTA<br />

PARA POR COBRO À PRÁTICA<br />

Não faltam dispositivos legais<br />

que protegem as mulheres<br />

contra a MGF. Desde logo os<br />

tratados internacionais em que<br />

Portugal é parte e que a condenam,<br />

explícita ou implicitamente,<br />

como Declaração Universal dos<br />

Direitos Humanos (1948) ou a<br />

Convenção para a Prevenção e<br />

o Combate à Violência contra as<br />

Mulheres e a Violência Doméstica<br />

(2013).<br />

Também no direito interno não<br />

faltam instrumentos que penalizam<br />

a MGF. De facto, embora<br />

até 15 de Setembro de 2015, o<br />

Código de Direito Penal previsse<br />

no Artigo 144º, o crime de ofensas<br />

corporais graves, o termo<br />

Mutilação Genital Feminina não<br />

estava mencionado expressamente<br />

na norma. Uma lacuna<br />

integrada pelo facto de os trabalhos<br />

preparatórios da mesma<br />

mencionarem que a MGF pode<br />

ser considerada como uma forma<br />

de “privar ou afetar a capacidade<br />

de fruição sexual de<br />

alguém”.<br />

A legislação penal portuguesa<br />

institui também o princípio da<br />

extraterritorialidade, que implica<br />

que a MGF possa ser punida,<br />

mesmo que cometida fora<br />

do país.<br />

Devido à ratificação da Conferência<br />

de Istambul por Portugal,<br />

em Agosto de 2015, a MGF tornou-se<br />

um crime autónomo no<br />

Código Penal Português, através<br />

da Lei <strong>nº</strong> 83/2015. Através<br />

desta Lei, designadamente da<br />

nova redação do Artigo 144º-A,<br />

as práticas de MGF passaram<br />

a ser crime punível por lei com<br />

pena de prisão de 2 a 10 anos.<br />

São também considerados crime<br />

todos os atos preparatórios<br />

de MGF, puníveis com pena de<br />

prisão até 3 anos, nomeadamente<br />

levar as mulheres ou crianças<br />

a viajar para fora do país com o<br />

objetivo de serem submetidas a<br />

MGF ou colaborar na organização<br />

das viagens, ou ajudar, incentivar<br />

ou adquirir apoio para<br />

praticar MGF dentro ou fora do<br />

país, nomeadamente promover<br />

recolhas de fundos para pagar<br />

a MGF.<br />

“É claro que não basta termos<br />

leis que protejam as meninas e<br />

mulheres desta forma tão brutal<br />

de violência. Frequentemente as<br />

tradições sobrepõem-se à Lei.<br />

Há que mudar mentalidades e<br />

é isso que a APF procura fazer<br />

junto das comunidades onde<br />

a MGF é parte integrante da<br />

identificação cultural”, preconiza<br />

Duarte Vilar. “Uma mudança que<br />

já está a verificar-se, diz: “Nas<br />

próprias comunidades a norma<br />

começa a ser a não-aceitação<br />

da MGF. É uma mudança que<br />

leva o seu tempo, como sempre<br />

acontece quando estão em causa<br />

costumes muito enraizados<br />

culturalmente”. E também porque<br />

não basta mudar mentalidades<br />

e práticas nas comunidades<br />

migrantes. É necessário atuar<br />

nos países de origem, na raiz do<br />

problema”, defende. E a verdade<br />

é que muito embora a MGF seja<br />

tipificada como crime em todos<br />

eles, continua a ser praticada…<br />

Nada que a APF não esteja<br />

acostumada. “Veja-se o caso do<br />

planeamento familiar. Quando<br />

a APF começou a trabalhar o<br />

tema, na década de sessenta do<br />

século passado, era olhada com<br />

desconfiança por alguns setores<br />

da sociedade de então, alguns<br />

deles manifestamente contra.<br />

“Algumas semanas depois de<br />

a associação ter aparecido publicamente<br />

pela primeira vez, o<br />

Patriarcado de Lisboa advertiu<br />

publicamente a Associação para<br />

não promover o uso da pílula<br />

WWW.SAUDEONLINE.PT MARÇO 2017 | NOTÍCIAS SAÚDE ONLINE 39

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