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Revista Dr Plinio 270

Setembro 2020

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Publicação Mensal<br />

Vol. XXIII - Nº <strong>270</strong> Setembro de 2020<br />

Gládio da Palavra,<br />

escudo da Fé


Doruk Salancı (CC3.0)<br />

Calma e vigilância<br />

U<br />

m dos mais belos exemplos na natureza do misto de vigi-<br />

lância, argúcia e calma, encontramos na onça e na sua<br />

miniatura, o gato.<br />

A onça que prepara o pulo não é um animal nervoso. Pelo contrário,<br />

uma das belezas desse felino está em conservar uma verda-<br />

deira calma nas situações mais difíceis. A coexistência da calma<br />

com a vigilância, esse jeitão da onça quando recua com toda a sua<br />

capacidade agressiva e dá o bote furioso, reunindo dois extre-<br />

mos opostos, é uma verdadeira maravilha.<br />

O que agrada ver no gato andando em cima de<br />

um muro é a calma calculada dele. Não é um<br />

bicho preguiça cretino. Está com todos os sen-<br />

tidos atentos, até a cauda em pé serve-lhe<br />

de radar. Ele todo está se equilibrando,<br />

mas na calma.<br />

Nas situações mais difíceis o gato<br />

tem o domínio perfeito da flexibi-<br />

lidade de sua musculatura, joga-se<br />

medindo bem o lance; atento, mas<br />

calmo. Nervoso, nunca. Com jeito<br />

amável, mas sentindo-se ameaçado,<br />

vem uma unhada. Depois en-<br />

colhe as unhas, e mostra aquela<br />

patinha redondinha.<br />

Assim deve ser o católico mili-<br />

tante na hora do perigo: nada de<br />

correr como barata tonta. Susto,<br />

nunca; previsão, sempre. Unhas<br />

capazes de sair do estojo a qual-<br />

quer momento, pulo para qualquer<br />

lado, enxergando até, e sobretudo,<br />

no escuro.<br />

Portanto, muita desconfiança em<br />

relação ao demônio, muito recurso<br />

à oração, nada de nervosismo, calma<br />

inteira, porque Nossa Senhora<br />

nos protegerá.<br />

(Extraído de confe-<br />

rência de 22/6/1974)


Sumário<br />

Publicação Mensal<br />

Vol. XXIII - Nº <strong>270</strong> Setembro de 2020<br />

Vol. XXIII - Nº <strong>270</strong> Setembro de 2020<br />

Gládio da Palavra,<br />

escudo da Fé<br />

Na capa, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

discursando em<br />

Pindamonhangaba,<br />

em maio de 1943.<br />

Foto: Arquivo <strong>Revista</strong><br />

As matérias extraídas<br />

de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

— designadas por “conferências” —<br />

são adaptadas para a linguagem<br />

escrita, sem revisão do autor<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

ISSN - 2595-1599<br />

CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />

INSC. - 115.227.674.110<br />

Diretor:<br />

Roberto Kasuo Takayanagi<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues Ferreira<br />

Carlos Augusto G. Picanço<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

Rua Virgílio Rodrigues, 66 - Tremembé<br />

02372-020 São Paulo - SP<br />

E-mail: editoraretornarei@gmail.com<br />

Impressão e acabamento:<br />

Northgraph Gráfica e Editora Ltda.<br />

Rua Enéias Luís Carlos Barbanti, 423<br />

02911-000 - São Paulo - SP<br />

Tel: (11) 3932-1955<br />

Editorial<br />

4 Odiai o erro, amai os que erram<br />

Piedade pliniana<br />

5 Oração para vencer o<br />

espírito naturalista<br />

Dona Lucilia<br />

6 Afeto, mansidão generosa,<br />

firmeza inquebrantável<br />

A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

9 Idade Média: o Direito<br />

consuetudinário<br />

Gesta marial de um varão católico<br />

16 A Revolução tendenciosa se<br />

difunde como o lodo - I<br />

Reflexões teológicas<br />

20 A verdadeira honra e o nosso<br />

relacionamento com o mundo angélico<br />

Calendário dos Santos<br />

26 Santos de Setembro<br />

Preços da<br />

assinatura anual<br />

Comum............... R$ 200,00<br />

Colaborador........... R$ 300,00<br />

Propulsor.............. R$ 500,00<br />

Grande Propulsor....... R$ 700,00<br />

Exemplar avulso........ R$ 18,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

editoraretornarei@gmail.com<br />

Hagiografia<br />

28 Escudo da Igreja e gládio<br />

contra os demônios<br />

Luzes da Civilização Cristã<br />

32 Luís XIV e a respeitabilidade<br />

Última página<br />

36 Luz que brilha nas trevas<br />

3


Editorial<br />

Odiai o erro, amai os que erram<br />

C<br />

ostuma-se dizer que “devemos odiar o erro e amar os que erram”. Quem ousaria negar o sublime<br />

princípio que essa frase define? Do que se alimentou o zelo de todos os apóstolos que desde os<br />

primórdios da Igreja até hoje, em linha ininterrupta, têm combatido o erro procurando salvar das<br />

garras dele os que erram? Exatamente de um ódio ao erro e de um amor ao pecador. Diminua-se no espírito<br />

do apóstolo ou este ódio ou este amor, e ele deixará de ser um apóstolo autêntico.<br />

Entretanto, esta frase precisa ser bem entendida. Devemos certamente amar os que erram, e isto<br />

ainda mesmo quando no paroxismo de seu ódio à verdade eles nos causam os maiores prejuízos e nos<br />

infligem as mais tremendas afrontas. Mas como devemos amá-los? Em outros termos, no que deve<br />

consistir concretamente esse amor? Em que sentimentos, em que ações se deve ele traduzir?<br />

A pergunta não é ociosa. Deus que é infinitamente sábio não julgou suficiente recomendar-nos<br />

que O amássemos sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos, por amor a Ele; pelo contrário,<br />

julgou necessário promulgar dez mandamentos em que esse preceito do amor ficasse bem definido,<br />

perfeitamente explicitado e as obrigações daí decorrentes concretamente discriminadas. E a<br />

Santa Igreja ainda julgou dever acrescentar cinco mandamentos aos dez que Deus promulgara nos<br />

primeiros tempos: tudo isto só para que o cumprimento do preceito do amor não ficasse entregue<br />

aos caprichos do sentimentalismo, mas se efetuasse conforme a vontade de Deus.<br />

Ai dos que não amam os pecadores e os hereges! São eles próprios hereges e pecadores. Mas como<br />

se deve amá-los? Ainda quando se combata o erro, será legítimo atacar encarniçadamente as pessoas<br />

que o sustentam?<br />

Com efeito, as ideias não se sustentam nem se difundem por si próprias. São como as flechas e<br />

projéteis que a ninguém feririam se não houvesse quem os disparasse com o arco e o fuzil. Ao arqueiro<br />

e ao fuzileiro se devem dirigir, pois, em primeiro lugar os tiros de quem deseje ferir sua mortal<br />

pontaria, e qualquer outro modo de guerrear poderia ser muito conforme aos princípios liberais,<br />

mas não teria o sentido comum.<br />

Os autores ou propagandistas de doutrinas heréticas são soldados com armas envenenadas: o livro,<br />

o periódico, a arenga pública, a influência pessoal. Não basta, pois, recuar para evitar o tiro; o<br />

que em primeiro lugar se deve fazer, por ser mais eficaz, é pôr fora de combate o atirador. Assim,<br />

convém desautorizar e desacreditar seu livro, periódico ou discurso e, em alguns casos, sua pessoa,<br />

por ser esta o elemento principal do combate.<br />

Em certos casos, pois, é legítimo publicar suas infâmias, ridicularizar seus costumes. Só é necessário<br />

que a mentira não seja posta a serviço da justiça, pois ninguém tem o direito de se distanciar da<br />

verdade por pouco que seja.<br />

O hábito dos Santos Padres prova esta tese. Ainda mesmo os títulos de suas obras dizem claramente<br />

que, ao combater as heresias, procuravam desferir o primeiro tiro contra os heresiarcas: Contra<br />

Fortunato maniqueu, Contra Adamantox, Contra Felix, Contra Secundino, Quem foi Petiliano, Dos<br />

gestos de Pelágio, Quem foi Juliano, etc. De sorte que quase toda a polêmica do grande Agostinho foi<br />

pessoal, agressiva, biográfica, por assim dizer, tanto quanto doutrinária; corpo a corpo com o herege,<br />

tanto quanto com a heresia. E o mesmo poderíamos dizê-lo de todos os Santos Padres.<br />

De onde tiraram, pois, os liberais, a estranha novidade de que, ao combater os erros se deve prescindir<br />

das pessoas, e até mesmo afagá-las e acariciá-las? Atenhamo-nos ao que sobre isto ensina a tradição<br />

cristã, e defendamos a Fé como sempre ela foi defendida na Igreja de Deus. Fira, pois, a “espada”<br />

do polemista católico, e vá direito ao coração, pois que esta é a única maneira verdadeira de combater. *<br />

* Cf. O Legionário n. 470, 14/9/1941.<br />

Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />

de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />

na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />

outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

4


Piedade pliniana<br />

Flávio Lourenço<br />

Ação do Arcanjo São Miguel<br />

durante o Juízo particular<br />

Igreja de São Lourenço, São<br />

Lourenço de Morunys, Espanha<br />

Oração para vencer o<br />

espírito naturalista<br />

ÓSão Miguel Arcanjo, peço-vos empenhadamente que destruais em mim a<br />

vivência, criada pelo demônio do naturalismo, de ver o universo como um<br />

todo fechado, de banalizar o sobrenatural não compreendendo a sua importância<br />

e necessidade, de julgar que os fatos sérios, graves e profundos não podem<br />

acontecer.<br />

Essa vivência, que me enclausura e me sujeita a esse demônio, impedindo de tornar<br />

efetiva e completa minha escravidão a Nossa Senhora, afirma continuamente:<br />

“As horas trágicas e os grandes lances não se aproximam porque não podem se<br />

aproximar!”<br />

Assisti-me, pois, no combate contra esse demônio que me impede de ter a grande<br />

generosidade necessária para ganhar a batalha da Contra-Revolução.<br />

(Composta em 21/7/1974)<br />

5


Dona Lucilia<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Afeto, mansidão generosa,<br />

firmeza inquebrantável<br />

O relacionamento de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> com sua mãe era todo feito<br />

de afeto, tendo como pressuposto um misto de admiração e<br />

esperança que produzia uma íntima ligação de almas. Dentro<br />

dessa clave imponderável sobressaía em Dona Lucilia uma<br />

mansidão generosa levada até o inacreditável, ao lado de uma<br />

firmeza inquebrantável quando se tratava de princípios.<br />

Para melhor compreender o<br />

afeto existente entre Dona<br />

Lucilia e mim é preciso ver como<br />

era a linguagem e a vida de família<br />

na intimidade, no ambiente onde vivíamos;<br />

porque esse é um assunto cheio<br />

de matizes, e cada país, bem como cada<br />

Estado e cidade do Brasil, tem um.<br />

Essência do afeto:<br />

admiração e esperança<br />

Entre nós havia o pressuposto<br />

de que o afeto era um ato de admiração<br />

ou, pelo menos, de esperança.<br />

Admiração da minha parte para<br />

com ela e de esperança dela para<br />

comigo. O afeto, de si, era um sentimento<br />

muito elogioso que não se<br />

esbanjava concedendo-o para qualquer<br />

um, precisamente porque ou<br />

é a afirmação de uma qualidade ou<br />

da esperança que alguém venha a<br />

ter essa qualidade. Essa era a essência<br />

do afeto. Mas, ao mesmo tempo,<br />

6


era a afirmação de uma consonância<br />

do bem que se espera ou se reconhece<br />

no outro, com o bem que<br />

se sente em si próprio. Era, portanto,<br />

uma afirmação de íntima ligação<br />

de almas.<br />

Tudo isso eu manifestava por<br />

um modo intensamente afetuoso<br />

de tratá-la, onde eram abundantes<br />

as palavrinhas muito carinhosas e<br />

simbólicas que repercutiam nela de<br />

maneira suave, mas profunda, deixando-a<br />

tão comprazida que meu<br />

pai – por natureza, muito brincalhão<br />

– dizia para ela, imitando um<br />

pouco o sotaque português: “Não<br />

te derretas!”<br />

Lembro-me de algumas das expressões<br />

que eu usava. Por exemplo,<br />

às vezes dirigia-me a ela chamando-a<br />

de Lady perfection 1 , ao<br />

que ela respondia com toda a naturalidade,<br />

como se não tivesse ouvido<br />

ou como se eu a tivesse chamado<br />

de “mamãe”. Outro título que<br />

usei durante muito tempo, tendo<br />

em vista o aspecto afrancesado<br />

e distinto dela, foi o de “marquesinha”.<br />

Outras vezes eu a chamava<br />

de “manguinha”, como no tempo<br />

de minha infância, com um afeto<br />

especial para lembrar aqueles<br />

tempos. Ademais, “minha<br />

querida”, “meu bem”, às torrentes!<br />

Não preciso dizer<br />

que nunca a chamei de você.<br />

Nunca! Nem me passou pela<br />

cabeça. Era sempre “senhora”.<br />

Eu teria a impressão<br />

de que precisaria me<br />

confessar se a chamasse de<br />

você.<br />

Às vezes lhe dizia que<br />

mãe igual a ela eu não conhecia.<br />

Evidentemente, também<br />

a beijava, pegava na mão dela,<br />

batia levemente, abraçava-a,<br />

etc., muitas vezes.<br />

Eu percebia que ela ficava muito<br />

tocada e recebia tudo isso com comprazimento,<br />

mas com uma certa discrição<br />

que não sei bem descrever.<br />

Era como se ela, sem apagar a luz,<br />

pusesse um abat-jour. Era o sistema<br />

usado por ela – compreensível e<br />

muito adequado, a meu ver – e com<br />

o qual eu afinava.<br />

Significado das reticências<br />

usadas nas cartas<br />

Quem lê as cartas que mamãe me<br />

escrevia nota que ela usava muitas<br />

vezes reticências. Dona Lucilia fazia<br />

isso sem refletir, com a naturalidade<br />

de uma mãe, mas essas reticências<br />

correspondiam a um modo de ela falar,<br />

era a passagem para o papel da<br />

maneira de se exprimir.<br />

Ela possuía uma voz muito aveludada,<br />

suave, enormemente matizada.<br />

Os matizes da voz lhe serviam<br />

muitíssimo para exprimir cada ideia,<br />

cada pensamento, cada expressão, o<br />

que ela acompanhava mudando ligeiramente<br />

a posição da cabeça e<br />

com movimentos de mãos muito discretos,<br />

mas expressivos.<br />

Ora, Dona Lucilia tinha um hábito<br />

interessante, que talvez exista em<br />

outras pessoas, mas só notei nela,<br />

de dizer uma coisa e ficar um tempinho,<br />

discreto, com os olhos postos<br />

no interlocutor para ver que repercussão<br />

aquilo causou, como que<br />

acentuando pelo olhar o que ela disse,<br />

de maneira a chegar ao grau de<br />

repercussão que julgaria normal,<br />

proporcionada.<br />

Isso que era, por assim dizer, os<br />

últimos timbres de suas palavras,<br />

nas cartas ela representava pelas reticências.<br />

De maneira que onde há<br />

reticências, ao falar ela diria aquilo<br />

com uma voz que ecoaria por meio<br />

do olhar.<br />

Portanto não significa que ela era<br />

uma pessoa reticente, nem um pouco.<br />

Até, pelo contrário, o pensamento<br />

dela se exprimia com muita franqueza<br />

e clareza. Mas eram os imponderáveis<br />

que constituíam uma<br />

espécie de aureola em torno do que<br />

ela dizia.<br />

Aliás, uma das coisas interessantes<br />

do Quadrinho 2 é retratar a atitude<br />

que ela tomava quando acabava<br />

de dizer algo e olhava. Isso contribui<br />

para dar a expressão que o Quadrinho<br />

tem.<br />

Embora tudo isso tivesse nela<br />

o significado que estou mencionando,<br />

é preciso dizer, para<br />

a glorificação da Civilização<br />

Cristã, que era um pequeno<br />

fragmento do passado. A arte<br />

da conversa antigamente era<br />

muito assim. Hoje as pessoas<br />

quase não mudam de tom<br />

de voz, são monótonas com<br />

frequência, e não sabem utilizar<br />

o olhar; olham para o interlocutor<br />

como poderiam fitar<br />

uma parede branca. O olhar<br />

não possui mais o papel que teve<br />

outrora. Portanto esse predicado<br />

em Dona Lucilia era a iluminação<br />

pela presença, pela fidelidade à graça,<br />

de um modo de ser da Civilização<br />

Cristã, ou seja, uma tradição.<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

7


Dona Lucilia<br />

Disposição de ser como um<br />

cordeiro que se deixa atingir<br />

Um dos aspectos que me encantava<br />

em Dona Lucilia, antes de tudo,<br />

era a elevação de alma, a qual constituía<br />

a clave onde essas coisas se davam.<br />

Porque tudo quanto estou dizendo,<br />

posto em almas menos elevadas,<br />

redundaria em banalidades. A<br />

elevação de alma dela colocava tudo<br />

isso num píncaro, e dava a clave da<br />

beleza dessas coisinhas íntimas que<br />

estou contando.<br />

Dentro da clave dessa elevação de<br />

alma, toda ela imponderável, encantava-me<br />

um misto de uma mansidão<br />

generosa levada até o inacreditável,<br />

ao lado de uma firmeza inquebrantável<br />

quando se tratava de princípios.<br />

A justaposição desses contrastes harmônicos<br />

realmente me<br />

atraía no mais alto grau.<br />

Ninguém pode ter<br />

ideia do que era a mansidão<br />

de mamãe! Ela vivia,<br />

evidentemente, numa<br />

família educada e que<br />

não ia tratá-la com brutalidades.<br />

Mas a educação<br />

não impede a ingratidão,<br />

a incompreensão e, portanto,<br />

não evita muitas<br />

decepções. A educação é<br />

um verniz, o qual não importa<br />

a qualidade da madeira.<br />

Dona Lucilia passava,<br />

às vezes, por situações<br />

realmente difíceis<br />

de calcular.<br />

Invariavelmente com<br />

o propósito de nunca retrucar,<br />

nunca redarguir<br />

de um modo desagradável<br />

ou ácido, impertinente<br />

– o que estava bem no<br />

seu papel de mãe de família<br />

–, ela apresentava<br />

sempre uma explicação<br />

do que fazia, com lógica<br />

e afabilidade; e se não<br />

adiantava, ficava quie-<br />

Gabriel K.<br />

ta sem azedume. Dali a pouco retomava<br />

as relações no mesmo nível anterior,<br />

desde que a outra pessoa quisesse.<br />

Mamãe fazia isso com tal disposição<br />

de ser como uma vítima ou<br />

um cordeiro que se deixa atingir porque<br />

quer sofrer sem reagir, e por julgar<br />

que deve fazer esse apostolado<br />

da mansidão, que não conheço, verdadeiramente,<br />

coisa igual, ou que sequer<br />

se pareça com isso de longe.<br />

Dentro dessa atitude vinha a firmeza<br />

dos princípios. Ela era assim,<br />

gostassem ou não, porque assim se<br />

deve ser. Essa é a vontade de Deus,<br />

esse é o pensamento da Igreja e, portanto,<br />

não se muda. Por onde, adaptar-se<br />

para evitar o sofrimento da incompreensão,<br />

nunca! Ela era inteiramente<br />

ela, com dignidade, apesar<br />

de ser com mansidão.<br />

Cristo manietado - Sevilha, Espanha<br />

Para mim, que a conheci tão de<br />

perto, este aspecto aparece muito<br />

numa fotografia tirada na Escola<br />

Caetano de Campos, na Praça da<br />

República, enquanto ela assistia a<br />

uma conferência minha. Mamãe está<br />

ali numa atitude de quem presencia<br />

uma sessão com certa solenidade,<br />

mas não perde o propósito de manter<br />

uma mansidão inalterável, uma<br />

doçura como não se pode imaginar;<br />

o que se exprimia por uma certa melancolia<br />

que ela fazia notar. Entretanto,<br />

se as pessoas fossem indiferentes<br />

a essa melancolia, ela continuava<br />

na mesma doçura e no mesmo<br />

modo.<br />

Devo dizer que este foi um dos<br />

meios mais possantes para ela cativar<br />

meu afeto, porque isso me encantava<br />

além de toda a expressão e<br />

me fazia pensar, naturalmente,<br />

em Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo, em Nossa<br />

Senhora. Mesmo porque<br />

minha mãe, de vez em<br />

quando, elogiava Nosso<br />

Senhor por isso. No modo<br />

de elogiar, sem se dar<br />

conta, fazia transparecer<br />

como ela O imitava. Não<br />

era sua intenção, mas<br />

por uma espécie de santa<br />

inadvertência ou santa<br />

ingenuidade, sem perceber,<br />

ela se elogiava falando<br />

de Nosso Senhor Jesus<br />

Cristo. v<br />

(Extraído de conferência<br />

de 24/5/1980)<br />

1) Do inglês: Senhora perfeição.<br />

2) Quadro a óleo, que muito<br />

agradou a <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>,<br />

pintado por um de seus<br />

discípulos, com base nas<br />

últimas fotografias de<br />

Dona Lucilia.<br />

8


Σωτήριος Παν. Γιαννακουλόπουλος (CC3.0)<br />

A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Idade Média: o Direito<br />

consuetudinário<br />

Muralha da cidade<br />

de Rodes, Grécia<br />

As leis consuetudinárias existentes na Idade<br />

Média constituíram um dos maiores tesouros<br />

legislativos de todos os tempos. Foram elas o<br />

resultado de uma das mais terríveis catástrofes<br />

da História: as invasões dos bárbaros na Europa<br />

durante os séculos IX e X. Isso prova que<br />

quando o homem é reto e procura servir a Deus<br />

de todo o coração, apesar dos inconvenientes,<br />

das desvantagens e desgraças que possam<br />

lhe sobrevir, ele acaba fazendo maravilhas.<br />

Lancastermerrin88 (CC3.0)<br />

Oassunto a ser tratado se enunciaria<br />

da seguinte maneira:<br />

leis dos feudos, dos municípios,<br />

das corporações e do reino.<br />

A legisladora por excelência<br />

é a Igreja Católica<br />

Para tratar desse tema somos obrigados<br />

a reunir certas noções gerais a<br />

respeito de diversos pontos da doutrina<br />

do Direito da Idade Média, porque<br />

a sociedade medieval é muito mais<br />

complexa do que a contemporânea.<br />

A complexidade da lei medieval<br />

tem como ponto de partida a noção<br />

Moisés - Claustro da Catedral<br />

de Palência, Espanha<br />

de que o verdadeiro soberano de um<br />

reino não é o senhor feudal, nem o<br />

rei, nem o imperador, mas o Direito,<br />

cuja origem é divina. Essa concepção<br />

de Deus como Autor da lei natural e<br />

fonte de todo o Direito é diretamente<br />

oposta à noção moderna de lei vigente<br />

em nossos dias, onde o Estado representado<br />

por uma assembleia elabora<br />

as leis e sua vontade é soberana.<br />

Na Idade Média não se chegou<br />

a formar uma ideia muito exata do<br />

que seja o Estado, mas sim do Direito,<br />

fundamentado na lei natural, ou<br />

seja, Deus criou o mundo, e da ordem<br />

natural das coisas a inteligência<br />

9


A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Tours Jean Fouquet (CC3.0)<br />

humana é capaz de deduzir a existência<br />

de determinadas regras que<br />

constituem a vontade de Deus. Porém<br />

como a inteligência humana é<br />

susceptível de se enganar no conhecimento<br />

dessas regras, o Criador as<br />

revelou, fazendo-as constar do Decálogo.<br />

Esta é a Lei das leis, à qual<br />

estão submetidos todos os países do<br />

mundo e nenhum rei pode revogar.<br />

Ora, como a interpretação da Lei<br />

divina cabe infalivelmente à Igreja,<br />

a lei básica de toda a Cristandade é<br />

aquela da qual a Igreja tem o depósito,<br />

sendo incumbida de ensiná-la,<br />

preservá-la de falsas interpretações e<br />

de impor, por meio de penas, o seu<br />

cumprimento. Assim, a arca, a guardiã,<br />

a mestra, a depositária da lei e,<br />

portanto, a legisladora por excelência<br />

de todas as nações católicas vem<br />

a ser a Igreja Católica.<br />

De momento, vamos nos ocupar<br />

detidamente do Direito consuetudi-<br />

Coroação de Carlos Magno pelo Papa Leão III<br />

nário por ser o mais importante e interessante.<br />

Quando é reto e procura<br />

servir a Deus, o homem<br />

faz maravilhas<br />

Sem entrar em digressões de caráter<br />

jurídico, simplificando um pouco<br />

podemos dizer que, na estrutura do<br />

Estado moderno, todo homem é reputado<br />

livre. Ele possui a liberdade de<br />

fazer aquilo que bem entende e só tem<br />

duas espécies de limites: de um lado,<br />

os limites estabelecidos pela sua própria<br />

vontade. Quando faz um contrato<br />

e livremente se obriga a uma determinada<br />

coisa, ele não pode violar aquilo<br />

a que se obrigou. Mas há depois um<br />

outro liame que se põe aos homens,<br />

e é o da lei. Ela é uma ordem editada<br />

pelo poder competente, capaz de<br />

se impor à vontade dos cidadãos, quer<br />

queiram, quer não.<br />

Como no Direito moderno<br />

só o Estado faz a<br />

lei, chegamos à conclusão<br />

de que em certos contratos<br />

livremente aceitos<br />

ninguém está sujeito a<br />

outra norma, a não ser a<br />

estabelecida pelo Estado.<br />

Na Idade Média apareceu<br />

um tipo diferente<br />

de lei que é, a meu ver,<br />

a maior originalidade do<br />

Direito medieval: a lei<br />

consuetudinária. Consuetudo,<br />

em latim, quer dizer<br />

costume. A lei consuetudinária<br />

é a lei do costume.<br />

Para bem compreendermos<br />

como esse tipo de lei<br />

nasceu, temos de estudar<br />

as condições jurídicas e<br />

políticas da Idade Média.<br />

As leis consuetudinárias,<br />

que constituíram um<br />

dos maiores tesouros legislativos<br />

de todos os tempos,<br />

foram para a Idade Média<br />

o resultado de uma catástrofe<br />

imensa, das mais terríveis da História.<br />

Isso prova quanto é verdade que<br />

quando o homem é reto e procura servir<br />

a Deus de todo o coração, apesar<br />

dos inconvenientes, das desvantagens<br />

e desgraças que possam lhe sobrevir,<br />

ele acaba fazendo maravilhas.<br />

O Império de Carlos Magno foi<br />

organizado à maneira do Império<br />

Romano, no qual a organização do<br />

Estado era parecida com a do Estado<br />

moderno, ou seja, o imperador<br />

encarnava o Estado, todo mundo era<br />

obrigado a obedecê-lo e só ele tinha<br />

o direito de fazer leis. O Império de<br />

Carlos Magno era, portanto, baseado<br />

nesse pressuposto.<br />

Mas quando Carlos Magno morreu,<br />

e já nos últimos anos de sua<br />

existência, uma sombra de tristeza<br />

projetou-se sobre seus domínios:<br />

eram as segundas invasões de bárbaros<br />

que destroçaram completamente<br />

o Império Romano.<br />

10


Hordas bárbaras<br />

moeram a Europa<br />

Com efeito, durante os séculos IX<br />

e X a Europa foi literalmente devastada<br />

pelos bárbaros em todos os sentidos.<br />

Por um lado, eram as incursões<br />

de húngaros – remotos descendentes<br />

dos hunos – que, em corcéis<br />

pequenos e velozes, chegaram a penetrar<br />

na devastada Alemanha, arrasando<br />

o Norte da Itália, atravessaram<br />

a Áustria, a Suíça montanhosa<br />

e atingiram o coração da França, até<br />

Champagne.<br />

De outro lado, os normandos<br />

oriundos da Escandinávia que, penetrando<br />

pelos rios, queimavam, saqueavam<br />

e devastavam tudo quanto encontravam<br />

pelo caminho, e cuja capacidade<br />

de navegação era tal que acabaram<br />

por invadir Constantinopla,<br />

dando a volta<br />

por todo o Mediterrâneo.<br />

Por aí se compreende<br />

bem qual era a ferocidade<br />

desse povo.<br />

Depois, um povo<br />

que desapareceu, os<br />

ávaros. Por fim, os sarracenos<br />

que entravam<br />

pelos Pirineus, pelo<br />

Sul da França, e adentravam<br />

pela Itália.<br />

Assim, invasões de<br />

povos hostis entre si<br />

vindos de todos os lados<br />

moeram literalmente<br />

a Europa. Não<br />

se tratava de exércitos<br />

regulares que avançavam<br />

em ordem, porém<br />

de hordas bárbaras incapazes<br />

de estabelecer<br />

uma estratégia única<br />

de invasão, vagueavam<br />

sem itinerário definido,<br />

não para conquistar<br />

um país, mas<br />

apenas para devastar<br />

as regiões por onde<br />

passavam, sem nenhuma<br />

vontade de voltar nem de se<br />

fixar, tampouco de encontrar lugar<br />

para residir; sua intenção era pilhar<br />

e ir vivendo conforme os meios permitissem<br />

e não fossem enxotados.<br />

Coloquemo-nos na posição de<br />

um rei que esteja sitiado, por exemplo,<br />

em Paris. Ele não tem nenhum<br />

dos meios de comunicação modernos,<br />

e só toma conhecimento dos fatos<br />

por mensageiros que vêm a cavalo<br />

dar-lhe informações. Porém esses<br />

mensageiros raras vezes chegam, porque<br />

as estradas estão obstruídas por<br />

bárbaros que os prendem. Com isso,<br />

as outras cidades do reino desanimam<br />

de mandar notícias ao rei, mesmo<br />

porque ele está preocupado em<br />

defender a sua própria capital e nem<br />

sequer pode estabelecer um programa<br />

de defesa para outras regiões. Se<br />

o monarca pudesse dizer: “Meu reino<br />

vai ser atacado em tal ponto; então,<br />

vou mandar para lá minhas tropas<br />

e oferecer resistência”, isso teria<br />

um sentido. Mas um reino acometido<br />

de todos os lados, picado, quebrado,<br />

moído em todos os sentidos, sem que<br />

possa mandar suas tropas salvar coisa<br />

alguma... Nesse regime, a única atitude<br />

possível é “salve-se quem puder”.<br />

Nasce o feudalismo<br />

A Europa começa, então, a se eriçar<br />

de castelos. Em cada lugar, um<br />

proprietário de terras constrói uma<br />

fortaleza e, na iminência de uma invasão,<br />

recolhe para dentro dela os seus<br />

servidores, as populações livres dos arredores<br />

com o gado, o trigo, o vinho, o<br />

que possam dispor, e ali resiste durante<br />

todo o tempo que consiga.<br />

Por um fenômeno<br />

natural, cada proprietário<br />

começou a impor<br />

a sua autoridade, à<br />

maneira de um pequeno<br />

rei local. Nascia, assim,<br />

o feudalismo.<br />

Tenho vontade de<br />

sorrir quando vejo alguns<br />

historiadores escreverem<br />

estas tiradas<br />

clássicas: “Na época<br />

do obscurantismo da<br />

Idade Média, os reis<br />

carolíngios decadentes<br />

não souberam conter<br />

em suas mãos trêmulas<br />

o cetro de Carlos<br />

Magno, nem o seu<br />

espírito embrutecido<br />

conseguiu discernir o<br />

pensamento do grande<br />

fundador do Império,<br />

de maneira a conservar<br />

a unidade...”<br />

Eu queria saber o que<br />

um desses declamadores,<br />

sitiado na capital<br />

de um reino nessas<br />

condições, faria do cetro<br />

de Carlos Magno.<br />

lwl.org (CC3.0)<br />

11


A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

Provavelmente fugiria, deixando-o<br />

pela estrada... Quanto à unidade, ele<br />

nem pensaria nela. De fato, as coisas<br />

foram como forçosamente tinham<br />

que ser, em face do que as brutais<br />

circunstâncias impunham.<br />

Essa situação durou cerca de duzentos<br />

anos nos quais, evidentemente,<br />

as pessoas compravam, vendiam,<br />

enfim, estabeleciam toda espécie de<br />

relações de cunho jurídico. Como é<br />

natural, com o passar do tempo essa<br />

vida jurídica foi sofrendo o impulso<br />

das circunstâncias novas. Nenhum<br />

país permanece dois séculos com suas<br />

leis intactas. Qual é o modo pelo qual<br />

essas leis foram se organizando?<br />

Em cada lugar, o costume foi alterando<br />

a lei primitivamente existente.<br />

Para enfrentar os problemas novos<br />

foram se criando novos direitos<br />

e obrigações, e se aperfeiçoando fórmulas<br />

de processo. Terminadas as invasões,<br />

a Europa ficou cheia de castelos,<br />

de barões que fizeram de cada<br />

feudo um pequeno Estado dentro do<br />

qual vigoravam leis inteiramente características,<br />

surgidas com o sabor da<br />

coisa que nasce da realidade. Não era<br />

a lei elaborada, como se faz hoje, por<br />

um homem que não tem nada a ver<br />

com as atividades a serem legisladas.<br />

A lei era feita pelos homens especializados<br />

no exercício daquelas atividades,<br />

que iam adaptando as regras à<br />

medida que o costume ia mudando,<br />

temperando-as, assim, em contato<br />

com a realidade. Esse foi o nascimento<br />

do direito consuetudinário.<br />

Leis consuetudinárias<br />

Durante esse tempo, o que era<br />

feito daquilo que designamos Estado?<br />

Nós chamaríamos de Estado o<br />

rei. E de fato o rei era o Estado. Se<br />

Luís XIV tivesse dito, naquela época,<br />

a famosa frase que lhe é atribuída<br />

– a qual parece que ele não disse–:<br />

“L’Etat c’est moi – O Estado sou eu”,<br />

ele teria afirmado uma banalidade,<br />

porque todo mundo sabia que o único<br />

poder que representava o Estado<br />

era o rei. E o que fazia o rei? Durante<br />

todos esses séculos de invasão há decretos<br />

reais. Mas estes versam apenas<br />

a respeito disso: privilégios a favor de<br />

uma igreja, de um barão, privilégios<br />

a respeito da organização da vida de<br />

um determinado grupo de burgueses.<br />

Eram coisas muito pequenas, em geral<br />

concessões de privilégios locais.<br />

Por exemplo, não consta do Direito<br />

francês durante essa época uma<br />

só lei de caráter geral, que se refira<br />

a todo o território nacional. Eram<br />

apenas casos individuais.<br />

O que eu disse a respeito do Direito<br />

francês é muito mais compreensível<br />

ainda em relação ao Direito espanhol.<br />

Imaginem se durante sete séculos<br />

de Reconquista, em que palmo a<br />

palmo os guerreiros cristãos de origem<br />

visigótica vão reconquistando aos árabes<br />

a Península quase completamente<br />

perdida, os visigodos fossem fazendo<br />

leis. Eles lutavam e na retaguarda<br />

os costumes iam se tornando leis. E assim<br />

a Europa toda se encheu de costumes,<br />

inclusive os costumes muito bonitos<br />

de Portugal, que foi um dos países<br />

onde o Direito consuetudinário atin-<br />

F Rancis Raher (CC3.0)<br />

Castelo da Aljafería - Zaragoza, Espanha<br />

12


giu uma das suas manifestações<br />

mais interessantes.<br />

Em cada lugar constituiu-se,<br />

pela força dos<br />

costumes, uma amálgama<br />

das várias leis estabelecidas.<br />

Essa amálgama<br />

de leis, já consuetudinária<br />

em si, foi sendo<br />

alterada pela transformação<br />

dos costumes<br />

ao longo dos séculos da<br />

Idade Média. Mas houve<br />

uma coisa curiosa: dentro<br />

dessas leis feitas assim,<br />

em cada região, em<br />

cada lugar, o estilo de relações<br />

entre homens foi<br />

tendo uma lei própria.<br />

Por exemplo, os que<br />

trabalhavam em couro.<br />

Os negociantes de couro<br />

tinham entre si certos<br />

problemas comuns: relações<br />

de concorrências, de<br />

apoio, etc. Por outro lado,<br />

eles possuíam também relações<br />

com os clientes.<br />

Como havia uma série<br />

de questões que interessavam<br />

só aos comerciantes<br />

de couro e o Estado<br />

não fazia leis, eles acabavam<br />

elaborando leis por si, as quais<br />

só valiam para eles. Por exemplo, uma<br />

lei muito comum para vários ramos<br />

de negócio na Idade Média era que,<br />

quando um cliente não pagava a um<br />

comerciante, todos os outros negociantes<br />

do ramo não lhe vendiam mais<br />

suas mercadorias, até que ele resolvesse<br />

pagar. Isso exprime bem o espírito<br />

de classe que se formava entre eles.<br />

Então, dentro dessas unidades pequenas<br />

começaram a aparecer as leis<br />

consuetudinárias para as várias classes,<br />

os vários grupos sociais. Assim,<br />

temos leis vigorando só para determinada<br />

igreja e terras circunvizinhas;<br />

leis apenas para os clérigos, nobres<br />

ou burgueses de um determinado lugar;<br />

leis só para determinados ofícios<br />

Aula na Universidade de Paris, na Idade Média<br />

e, por fim, leis válidas apenas para<br />

uma determinada parte do feudo.<br />

O Direito Romano<br />

A partir do século XII, começou a<br />

aparecer o estudo do Direito Romano<br />

nas faculdades europeias e, consequentemente,<br />

um tipo de organização<br />

onde não há quase costumes e a<br />

lei é feita pelo próprio Estado. Principiou-se<br />

a aplicar o Direito Romano<br />

nos julgamentos, e o povo de tal modo<br />

não gostou que no Sul da França,<br />

por exemplo, houve reações violentas.<br />

O Direito Romano acabou entrando<br />

ali, mas no Norte não penetrou.<br />

Então a França dividiu-se em<br />

duas categorias de zonas: as de Direito<br />

consuetudinário, não escrito,<br />

Étienne Colaud (CC3.0)<br />

porque esses costumes<br />

não tinham nascido de<br />

um documento escrito; e<br />

depois a zona do Direito<br />

escrito, que era o Direito<br />

Romano. Mas o curioso<br />

é que o Direito Romano<br />

entrou como um costume<br />

também. Não houve<br />

um rei pondo em vigor<br />

o Direito Romano. Simplesmente<br />

começaram<br />

a aplicá-lo porque acharam<br />

bonito.<br />

O costume assim conceituado<br />

pode definir-<br />

-se da seguinte maneira:<br />

é um uso jurídico,<br />

ou seja, que produz força<br />

de direito, de formação<br />

espontânea – não se<br />

fizeram estatísticas, nem<br />

houve a escola de Sociologia<br />

e política para dizer<br />

a última palavra –,<br />

aceito por todo um grupo<br />

social interessado e<br />

vigorando só para esse<br />

grupo.<br />

Quais são os requisitos<br />

para que um costume<br />

exista? Primeiro requisito:<br />

é preciso que sejam<br />

atos repetidos. Realmente não existe<br />

um costume se não houver repetição.<br />

Repetidos durante quanto tempo?<br />

Eles fixaram um limite que é necessariamente<br />

arbitrário, porque não<br />

há limite fixo para essas coisas. Eles<br />

determinaram um limite de quarenta<br />

anos. Mas os costumes bons eram<br />

costumes que vigoravam há tempos<br />

imemoriais e era um prestígio quando<br />

se podia dizer: “Esse costume vigora<br />

desde tempos imemoriais”.<br />

Outro requisito é que esses atos<br />

sejam públicos. É claro que o costume<br />

concernente a atos não públicos<br />

não pode prevalecer como lei. O<br />

terceiro requisito é que os atos sejam<br />

pacíficos. Eles entendiam como<br />

atos pacíficos os que não tinham tido<br />

13


A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

por sua origem uma violência e que<br />

se praticavam sem nenhuma contradição<br />

séria.<br />

Fala-se tanto de democracia, mas<br />

a democracia verdadeira é aquela<br />

em que o homem legisla só naquilo<br />

que ele entende, sem ser por meio<br />

de legislador, mas diretamente, contribuindo<br />

para formar o costume e<br />

entregando a regulamentação deste<br />

à vida social. Isso é imensamente<br />

mais autêntico, tem muito mais<br />

sabor de realidade do que qualquer<br />

outra coisa.<br />

Dois extremos hostis<br />

Depois de termos estudado a assombrosa<br />

elasticidade dos costumes,<br />

compreendemos bem quanta estupidez<br />

há em afirmar que a Idade Média<br />

foi um período de tirania, em<br />

Gabriel K.<br />

Émile Signol (CC3.0)<br />

São Luís IX - Palácio de Versailles, França<br />

Adão e Eva sendo expulsos do Paraíso<br />

Catedral de Gloucester, Reino Unido<br />

que o homem era um verdadeiro<br />

escravo.<br />

Há uma coisa muito curiosa<br />

que a História comprova<br />

continuamente: o demônio é<br />

o pai da mentira; sempre que<br />

ele promete ao homem uma<br />

coisa, podemos estar certos<br />

de que aquilo o demônio não<br />

vai dar. E o programa dele já<br />

está enunciado na mentira:<br />

aquilo é que ele vai tirar.<br />

Adão e Eva tiveram um<br />

obscurecimento de inteligência<br />

pavoroso em consequência<br />

do pecado original. Decadências<br />

internas, psíquicas,<br />

de toda ordem. E perderam o<br />

Céu. O que há de mais diferente,<br />

nesse processo de decadência<br />

e nessa marcha para<br />

o Inferno, do que a promessa do demônio:<br />

“Sereis como Deus”? É justamente<br />

o que não vai acontecer.<br />

O homem tinha a liberdade, mas<br />

o demônio quis roubá-la prometendo<br />

a liberdade. Vimos a margem<br />

enorme de liberdade dos grupos sociais<br />

na Idade Média. Entretanto como<br />

o demônio roubou à humanidade<br />

a liberdade, nas sucessivas revoluções<br />

que nos conduzem ao totalitarismo!<br />

É interessante comparar os dois<br />

elos extremos da cadeia: de um lado,<br />

uma sociedade que vive de respiração<br />

consuetudinária; e no outro<br />

extremo, a sociedade totalitária<br />

na qual não se espirra sem um regulamento.<br />

Se espirramos fora do regulamento,<br />

vamos parar num campo<br />

de concentração. Por quê? Por-<br />

14


que as coisas saem de uma certa ordem<br />

prevista pelo sociólogo para o<br />

bem comum. O totalitarismo e o direito<br />

consuetudinário são os dois extremos<br />

hostis.<br />

Uma pessoa poderia me fazer esta<br />

pergunta: “Mas isso não cai no caos?<br />

Imaginemos os homens de hoje<br />

regidos pelo costume e veremos o<br />

tumulto que vai nascer.”<br />

Em primeiro lugar é preciso notar<br />

o seguinte: com um material podre<br />

não se constrói uma casa forte. Numa<br />

época de decadência moral tremenda<br />

como a nossa, soltando-se, dá<br />

na desordem, prendendo-se, surge<br />

a tirania. Se se nomeia alguém para<br />

governar, acaba sendo um gatuno ou<br />

carrasco. A solução não é outra senão<br />

moralizar. O direito consuetudinário<br />

supõe evidentemente um teor<br />

de moralidade, uma ordem cristianizadora.<br />

Eu não seria favorável à aplicação<br />

brusca, pura e simples de um sistema<br />

consuetudinário no Brasil de hoje.<br />

Entretanto, se em cada lugar fossem<br />

entregues paulatinamente certas<br />

funções consuetudinárias às forças<br />

sociais verdadeiras do local, tenho<br />

a impressão de que a coisa terminava<br />

bem. Porque a legítima autoridade<br />

social, por uma espécie de<br />

molejo interno, é capaz de resolver<br />

bem os casos; enquanto que a autoridade<br />

política como nós a concebemos,<br />

distanciada da vida social, é artificial<br />

e não resolve nada bem.<br />

Revogação de costumes<br />

contrários à Moral<br />

ou ao bem comum<br />

O direito de revogar um costume<br />

competia só ao rei, que o exercia<br />

apenas em dois casos: quando o costume<br />

era contrário à Moral cristã ou<br />

ao bem comum da sociedade.<br />

Nesse sentido, é bonito notar que<br />

o grande protetor dos costumes foi<br />

São Luís IX, que não só deu todo<br />

apoio aos costumes justos, mas se<br />

tornou um extirpador tremendo de<br />

maus costumes.<br />

No século XIII, como a função do<br />

rei começou a se desenvolver, o parlamento<br />

de Paris principiou também<br />

a receber essas funções de extirpar<br />

os maus costumes. Na Inglaterra alguns<br />

desses costumes estão em uso<br />

até nossos dias.<br />

Na França o processo foi diferente.<br />

Estudados os costumes dos vários<br />

feudos grandes, verificou-se que tinham<br />

traços comuns, que constituíram<br />

o Direito consuetudinário de<br />

certas regiões: Normandia, Champagne,<br />

Auvergne, etc., ao lado dos<br />

direitos consuetudinários menores<br />

das pequenas unidades. E assim formou-se<br />

a estrutura: lei de Estado feita<br />

pelo rei, costumes regionais que<br />

são os denominadores comuns dos<br />

costumes locais e, por fim, os costumes<br />

locais. E dentro dos costumes<br />

locais, os costumes para as várias<br />

classes, para os diversos pequenos<br />

lugares: rios, lagos. Temos, assim,<br />

a imensa diversificação do Direito<br />

medieval.<br />

O Direito consuetudinário fixou-<br />

-se em todo o território europeu.<br />

Com o tempo esses costumes transformaram-se<br />

em documentos chamados<br />

cartas, que eram convenções particulares<br />

nas quais havia referências<br />

aos costumes. Nos séculos X e XI essas<br />

cartas já são numerosas. No século<br />

XII começaram a aparecer estatutos<br />

municipais, consentidos por reis e<br />

outros senhores, para determinadas<br />

cidades. Principiaram a surgir também<br />

os registros das cartas feitas pelos<br />

particulares ou pelo rei. Mais tarde<br />

surgiram os livros de costumes, escritos<br />

por juristas para uso próprio. E<br />

quando esses livros eram bem feitos<br />

generalizavam-se de tal maneira que<br />

acabavam tendo, até certo ponto, força<br />

de lei. Por fim, no século XII, começaram<br />

a aparecer as compilações<br />

de decisões de juízes com base nos<br />

costumes, e constituíram uma espécie<br />

de complemento do Direito consuetudinário.<br />

Sobretudo no século XIII<br />

isto se desenvolveu.<br />

Assim nós temos uma visão de como<br />

se estabeleceu o Direito consuetudinário<br />

e de que modo podia haver<br />

ordem dentro dele. Deixo posto um<br />

problema a ser tratado futuramente:<br />

Nesse pulular de leis e de corpos<br />

sociais, como estabelecer a ordem e<br />

a medida? Dessa orquestra com milhares<br />

de instrumentos, como podia<br />

nascer uma sinfonia? v<br />

(Continua no próximo número)<br />

(Extraído de conferência de 1954)<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante uma<br />

conferência, na década de 1950<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

15


Gesta marial de um varão católico<br />

A Revolução<br />

Diego Delso (CC3.0)<br />

tendenciosa se difunde<br />

como o lodo - I<br />

A Revolução tendenciosa move-se no<br />

subconsciente, lamacenta, na confusão<br />

dos defeitos que se chocam e se<br />

amalgamam, se fazem e se desfazem<br />

em novelos de desordens túmidos e<br />

malcheirosos. No fundo é a ação do<br />

demônio, que se agita e desprende<br />

maus odores os quais infestam todo o<br />

ambiente. <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> se voltava contra<br />

isso com indignação e horror. Seu senso<br />

católico clamava por ideias definidas,<br />

argumentações nítidas, resoluções fortes,<br />

rumos certos, limpeza, pureza, retidão.<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

C<br />

omo é a combatividade? De<br />

que modo ela se porta em face<br />

do “pacinismo” 1 , o qual<br />

avança como uma cobra que conspira,<br />

urde, trama? Aliás, não caminha<br />

propriamente como uma serpente,<br />

mas é uma coisa diversa.<br />

Águas de Araxá<br />

Quando menino, fui a uma estação<br />

de águas, que depois possivelmente se<br />

modificou muito nos seus aspectos, a<br />

qual começava apenas a se tornar conhecida<br />

no Brasil, e hoje é conhecidíssima<br />

no País inteiro e até em determinados<br />

lugares do exterior: Araxá, no<br />

Estado de Minas Gerais. Eu acompanhava<br />

meus pais porque parece que<br />

as águas de lá eram muito benfazejas,<br />

ou ao menos se esperava que o fossem<br />

para o estado de saúde de minha mãe.<br />

16


A cidade de Araxá ficava um tanto<br />

distante das águas. Todos os dias era<br />

necessário tomar um automóvel para<br />

chegar até lá. Tudo isso era para nós<br />

um passeio – para minha mãe um curativo<br />

–, e ia-se até o ponto das águas que<br />

se apresentavam em pleno campo.<br />

Havia ali duas ou três pequenas<br />

construções necessárias para o serviço<br />

das águas, mas que eram, se me<br />

lembro bem, umas meras barraquinhas.<br />

Por todos os lados existia uma<br />

terra grossa, úmida, feia, com borbulhas<br />

que saiam de profundidades,<br />

causadas por calores subterrâneos,<br />

e explodiam daqui, de lá e de acolá.<br />

Aquela massa sulfúrica se mexia nas<br />

várias direções, mas com movimentos<br />

desordenados provenientes do<br />

fundo, que ora faziam saltar um tanto<br />

de lama, ora outro tanto. Aqueles<br />

flocos de lama se chocavam, efetuavam<br />

um remelexo desagradável e incongruente,<br />

extravasavam um pouquinho<br />

as margens e voltavam. E daí<br />

se depreendia um cheiro sulfúrico<br />

dos mais desagradáveis.<br />

Por causa das propriedades terapêuticas<br />

muito apreciadas e parece<br />

que bastante apreciáveis dessas águas,<br />

era preciso que uma pessoa perita em<br />

remexer aquelas coisas soubesse tomar<br />

algo como um copo na ponta de<br />

um pau, estendê-lo até certo local e,<br />

apertando um pouquinho as massas<br />

de lama, arranjar um jeito de entrar<br />

no copo a água e não a lama, e fornecê-la<br />

ao pobre doente o qual a bebia e<br />

parece que se sentia bem.<br />

Olhei para aquilo e tive a seguinte<br />

impressão: “Isto parece com algo<br />

que de futuro conhecerei. Já vi coisas<br />

destas – bem entendido, não era<br />

aquela água, mas algo que na ordem<br />

intelectiva, espiritual, mental parecia<br />

com aquilo –, porém não sei com<br />

o que posso compará-las.”<br />

E concluí: “Isto vai ficar em meu<br />

espírito, tanto mais que noto aqui, lá,<br />

acolá, tufos de fumaça escura parecida<br />

com poluição e que se desprende<br />

em vários lugares. São sinais de desastres<br />

subterrâneos que causam o<br />

entrechoque de massas líquidas das<br />

quais saem aquelas fumaradas feias.”<br />

Tudo não era senão feiura e horror,<br />

exceto as qualidades terapêuticas<br />

misteriosas daquela água.<br />

Ódio inspirado pela<br />

Fé e a razão<br />

Mais tarde, percebi as grandes<br />

multidões humanas trabalhadas pela<br />

Revolução, mas não como quem<br />

move soldadinhos de chumbo –<br />

avança um, avança outro –, porque<br />

o soldadinho de chumbo tem sua<br />

individualidade, distingue-se um do<br />

outro, possui uma forma definida,<br />

é coeso, avança. Não era, portanto,<br />

como aquilo que eu posteriormente<br />

chamaria “Revolução B”, que se desenvolve<br />

nos fatos, nem como a “Revolução<br />

A sofística”, quer dizer, com<br />

ideias precisas, definidas, mas sim como<br />

o que eu denominaria “Revolução<br />

A tendencial”. Ou seja, uma Revolução<br />

que se move no subconsciente dos<br />

homens, lamacenta, pardacenta, na<br />

confusão dos defeitos que se chocam<br />

e se amalgamam, se fazem e se desfazem<br />

em novelos de desordens túmidos<br />

e malcheirosos. É no fundo a ação do<br />

demônio que move, move, move, move<br />

e desprende maus odores os quais infestam<br />

todo o ambiente.<br />

Assim eu vejo o “pacinismo”, nas<br />

suas grandes possibilidades de vitória<br />

hoje em dia. E é para o mísero<br />

estado no qual a Revolução deixou<br />

multidões humanas inteiras, que me<br />

volto ao mesmo tempo com indignação<br />

e horror.<br />

Por que com horror e indignação?<br />

Porque há algo que é o meu próprio<br />

senso do ser, o senso da minha condição<br />

de homem e, sobretudo, de católico<br />

que clama por ideias definidas,<br />

argumentações nítidas, resoluções<br />

feitas e fortes, rumos certos,<br />

limpeza, pureza, retidão e que se<br />

sente horrorizado com aquele desgoverno,<br />

aquela confusão, aquela<br />

Flávio Lourenço<br />

Beau Dieu - Catedral de<br />

Notre-Dame, Amiens, França<br />

17


Gesta marial de um varão católico<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

moleza que dá em tudo e não dá em<br />

nada; e principalmente horrorizado<br />

com aquela força subterrânea misteriosa<br />

que, mareando aquela sujeira<br />

toda, tem a intenção de ir corroendo<br />

a crosta terrestre até que o mundo<br />

não seja senão isso.<br />

Donde vem a indignação? Do choque.<br />

Eu conheço a minha condição<br />

humana e de católico, e sei o que tenho<br />

de bom. Não hesito em dizer que<br />

amo a Deus. E se é verdade que toda<br />

criatura foi feita à imagem ou à<br />

semelhança de Deus, olhando para<br />

mim devo sentir que sou feito à<br />

imagem e semelhança d’Ele. E se eu<br />

O amo preciso amar isto em mim. E<br />

não posso deixar de odiar algo que<br />

tende a destruir aquilo que é semelhança<br />

d’Ele. Odiar de um ódio inspirado<br />

pela Fé, pela razão; portanto<br />

é um ódio que toma a pessoa inteira.<br />

E odiar instintivamente porque o homem,<br />

quando é reto, tem um instinto<br />

que o leva a amar as coisas que devem<br />

ser e, vendo algo que é como não<br />

deve ser, sente-se estranho e contrário<br />

àquilo. E o resultado é este: nós<br />

não cabemos juntos!<br />

Entre mim e o lodo o estado<br />

de guerra é irremediável<br />

Araxá na primeira metade do século XX<br />

Considerando essa situação, exclamo<br />

interiormente:<br />

— Tu, lama imunda, sabes disso<br />

e tentas introduzir em mim as tuas<br />

emanações sulfúricas, penetrar minha<br />

veste, minha cútis, entrar por minha<br />

respiração, destemperar os meus<br />

pulmões, intoxicar o meu sangue,<br />

conformar-me ao nojo que existe em<br />

ti e fazer de mim algo à tua maneira.<br />

Mas não desejo te fazer à minha maneira,<br />

quero fazer-te cessar.<br />

Eu sou o agredido porque tenho o<br />

direito de ser. Sou conforme Àquele<br />

que é fonte de todo o Direito: Deus<br />

nosso Senhor!<br />

Tu não tens o direito de ser. Fora!<br />

De ti, lodo, só quero guardar a lembrança<br />

de teu horror, para que quando<br />

voltares disfarçado – porque te co-<br />

nheço, sei que não tens vergonha e<br />

voltarás – eu possa te olhar e dizer para<br />

todos: esta é a lama, vou descrevê-<br />

-la. E com horror, despertando o nojo<br />

e o ódio a ti, faço que mais uma vez tu<br />

sejas repelida. Entre mim e ti o estado<br />

de guerra é irremediável, porque<br />

eu sou e não quero cessar de ser, exceto<br />

quando Deus me chamar a Ele.<br />

Mas aí eu não cessarei de ser; deixarei<br />

de ser nesta Terra para ser mais inteiramente<br />

no outro mundo.<br />

E no outro mundo continuarei a<br />

lutar contra ti. Porque enquanto lodo<br />

houver pela Terra, eu serei do<br />

Céu seu inimigo. Lodo, eu te conheço,<br />

conheço qual o teu futuro, como<br />

tu conheces o meu. Tu sabes que se<br />

me dominares me levarás para aquele<br />

lodo sem fim, cheio de fogo e de<br />

imundície e de maldição, que é o Inferno.<br />

Sei para onde tu queres me levar.<br />

Mas sei também que se eu for para o<br />

Céu te amaldiçoarei e, dos mais altos<br />

páramos, te atormentarei para a glória<br />

de Deus! Nem eu após a morte<br />

nem tu deixaremos de existir. Lodo,<br />

eu te atazanarei, perseguirei e te humilharei!<br />

Tu podes me caluniar, invectivar,<br />

ignorar e até fazer sair dos<br />

meus pés uma labareda de fumaça<br />

que impeça que me vejam.<br />

Nada extinguirá minha combatividade,<br />

a qual é antes de tudo mi-<br />

Diego Delso (CC3.0)<br />

18


tinha mais vontade de sair. Parece<br />

que as banheiras eram alugadas<br />

por tempo determinado. Terminado<br />

o prazo, bateram na porta porque já<br />

havia outro candidato. Tive vontade<br />

de comprar mais um turno, mas não<br />

era possível. Você não sabe o que é<br />

nadar no lodo.<br />

“O lodo descarrega a pessoa. Você<br />

não chega a encostar-se no fundo<br />

da banheira. Ele é tão denso que você<br />

fica cercado daquela matéria lisa,<br />

a qual penetra por entre os dedos,<br />

sobe pelo peito, vai até o queixo e dá<br />

um sono... É gostoso como você não<br />

pode imaginar.”<br />

Não disse nada a ele porque era<br />

um homem mais velho do que eu,<br />

com quem não tinha esta forma peculiar<br />

de intimidade que nos autoriza<br />

a trocar confidências de alma.<br />

Pensei com meus botões: “Vi o lodo<br />

de Araxá, mas agora observei outra<br />

coisa: o lodo na sua alma. Há muito<br />

que o conheço e o vejo passear, se<br />

revolver, viver dentro do lodo. Conha<br />

fidelidade a Deus e a Nossa Senhora.<br />

É um reflexo e um prolongamento<br />

da incompatibilidade irredutível<br />

d’Eles contigo, porque tu és a<br />

serpente eternamente esmagada na<br />

cabeça.<br />

Eu te conheço, lodo, e por isso<br />

digo: És esmagado pelo pé virginal<br />

d’Aquela que te venceu e todos<br />

teus sequazes! E tu me odeias e tens<br />

razão porque sou filho d’Ela! Mas<br />

também é verdade que, porque sou<br />

filho d’Ela, eu te odeio.<br />

Vejo bem, ó lodo, que na tua moleza<br />

borbulhas ódio contra mim. Esse<br />

ódio não é cristão. Tu dizes contra<br />

mim “isto é vingança”, “isto é orgulho”,<br />

ou então “senta a meu lado,<br />

mete tuas mãos dentro de mim, acaricia-me<br />

e eu teria algo para te contar”;<br />

e todas as borbulhas emitirão<br />

um gás tóxico que me dará vontade<br />

de dormir, me tirará o gosto das<br />

energias inquebrantáveis do ar límpido<br />

das batalhas que não acabam<br />

mais. Sei, lodo, que tu me prometes<br />

dar todos os gáudios do lodo. Eu<br />

imagino esses regozijos.<br />

O lodo do espírito<br />

Ouvi certa vez um senhor comentar<br />

diante de mim como era delicioso<br />

tomar um banho de lodo. Falava<br />

ele de um local situado na Europa<br />

Central, com um lodo mais célebre e<br />

provavelmente mais curativo do que<br />

o de Araxá.<br />

Dizia-me este senhor que ele tomara<br />

esse banho não por necessidade,<br />

mas por curiosidade, coisas de<br />

turista. Disseram-lhe que era muito<br />

agradável meter-se no lodo, então<br />

ele foi. Havia torneiras com esguichos<br />

fortes, grandes, de onde saía<br />

o lodo que enchia uma banheira. Ele<br />

achou aquilo repugnante. E acrescentou:<br />

“Tive horror daquilo, mas, levado<br />

pela curiosidade, entrei. Você não<br />

imagina, <strong>Plinio</strong>, a sensação do fofo,<br />

do macio, do agradável que me circundava<br />

por todos os lados. Eu não<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1982<br />

nheço o lodo da matéria e o lodo do<br />

espírito porque conheço o senhor.<br />

Conheço o convite do lodo, sua atração<br />

e o vício de viver no meio dele.<br />

Eu odeio o lodo porque é tal que, ou<br />

a pessoa o repele com suma energia<br />

no primeiro momento, ou ele tem<br />

uma carícia infame que logo no segundo<br />

momento nos amolece. ‘Lodo,<br />

eu não te quero. Fora! Tu alegas<br />

as tuas carícias como um argumento<br />

para a tolerância, e eu digo: Se tu<br />

não tivesses outras infâmias, as tuas<br />

carícias seriam a razão pela qual eu<br />

diria: Lodo, fora!’” v<br />

(Continua no próximo número)<br />

(Extraído de conferência de<br />

17/7/1982)<br />

1) Neologismo criado por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> para<br />

ressaltar a falácia do “pacifismo”, indicando<br />

que a imposição de uma falsa paz<br />

visa ocultar cinicamente seus reais objetivos<br />

revolucionários. Palavra que agrega<br />

“paci” a “cinismo”: “pacinismo”.<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

19


Reflexões teológicas<br />

A verdadeira honra e<br />

o nosso relacionamento<br />

com o mundo angélico<br />

O homem que sente a sua própria<br />

honra por amor de Deus adquire<br />

um estado celeste na Terra. Sob esse<br />

prisma, a procura da verdadeira<br />

honra é a meta e a bússola da<br />

vida espiritual e a marca da<br />

civilização do Reino de Maria.<br />

Gabriel K.<br />

quer Anjo. Primeiramente, ele é puro<br />

espírito. Se comparamos a condição<br />

da matéria, como criatura, e a do<br />

espírito, não resta dúvida de que esta<br />

última é muito mais honrosa.<br />

Outra razão é que, em virtude de<br />

sua natureza espiritual, os Anjos tiveram<br />

uma prova rapidíssima e entraram<br />

imediatamente num estado<br />

de bem-aventurança, o qual é honroso<br />

em relação ao estado de prova. O<br />

puro espírito tem uma familiaridade,<br />

uma intimidade com Deus, que é, de<br />

si, cheia de honra.<br />

O estado angélico é o estado de<br />

honra. Por conseguinte, o homem<br />

que vive na sua honra imita o Anjo<br />

e se aproxima dele. Por isso devemos<br />

amar as coisas principalmente na<br />

medida em que elas nos deem uma<br />

participação da honra da ordem an-<br />

Omundo dos Anjos é o mundo<br />

da honra, e todo Anjo,<br />

colocado em face de qualquer<br />

criatura humana, é um vaso de<br />

honorificência.<br />

O Reino de Maria será a<br />

civilização da honra<br />

Duas razões inundam<br />

de honra qual-<br />

20<br />

Coros angélicos - Basílica de Santa<br />

Maria Maggiore, Roma, Itália


Flávio Lourenço<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante o período de sua convalescença, após<br />

o acidente de automóvel em 3 de fevereiro de 1975<br />

gélica. Portanto, fazer as coisas em<br />

espírito de honra, ou seja, na medida<br />

em que introduzam a honra.<br />

Podemos chegar a um estado<br />

de vida espiritual por onde habitualmente<br />

vejamos tudo do ponto<br />

de vista da honra. Isso seria morar<br />

dentro da honra. Assim, praticamos<br />

o primeiro Mandamento da<br />

Lei de Deus de um modo vivo e verdadeiro,<br />

pois desse aspecto há para<br />

nós uma espécie de flash contínuo,<br />

ininterrupto, discreto, em que, por<br />

assim dizer, vive-se dentro da honra<br />

como um pássaro no ar. Há nisso<br />

toda uma escola de vida espiritual<br />

para considerar.<br />

Consideradas as noções que nós<br />

temos de honra, expungidas de “heresia<br />

branca” 1 , vemos o Anjo como<br />

um ser cheio da honra, e a hierarquia<br />

celeste como a hierarquia das<br />

honras.<br />

Sob esse prisma, a procura da verdadeira<br />

honra é a meta e a bússola<br />

de nossa vida espiritual e a marca da<br />

civilização que queremos constituir.<br />

O Reino de Maria será a civilização<br />

da honra ou não será nada. O estado<br />

em que o homem sente a sua própria<br />

honra por amor de Deus é um<br />

estado celeste na Terra. É nesta luz<br />

que devemos considerar tudo quanto<br />

fazemos.<br />

Uma espécie de licor<br />

ou elixir divino<br />

Às vezes me perguntam sobre minha<br />

vida espiritual. A nota distintiva da<br />

minha vida espiritual é esta: ver Deus,<br />

Nossa Senhora, a vida e todo o universo<br />

sob o lumen da honra. Por onde a<br />

minha verdadeira felicidade de situação<br />

consiste em estar considerando as<br />

coisas continuamente do ponto de vista<br />

da honra, de maneira que, examinando<br />

meus gostos pessoais, desde a raça<br />

de cachorros até o estilo de música, minha<br />

predileção vai para aquilo onde o<br />

aspecto “honra” é mais saliente.<br />

Assim, poder-se-ia dizer que passo<br />

o dia inteiro à procura da honra;<br />

desde o despertar pela manhã até fechar<br />

os olhos para dormir eu estou<br />

em busca da honra. A tal ponto que,<br />

durante alguma doença, tenho a preocupação<br />

de estar na cama com naturalidade<br />

– nada de teatralidade,<br />

porque isso não é honra –, mas numa<br />

posição natural com honra. Pode ser<br />

que eu tenha tido posições descompostas<br />

por efeito de uma dor, assim<br />

como um homem que dorme; mas<br />

não me lembro de mim despreocupado<br />

de manter na cama uma posição<br />

com honra.<br />

Por quê? Para afirmar minha superioridade<br />

em relação aos outros?<br />

São Miguel Arcanjo - Igreja de<br />

Santo Eucário, Metz, França<br />

21


Reflexões teológicas<br />

Samuel holanda<br />

São Miguel - Museu do Louvre, Paris, França<br />

Não. É para possuir a honra como<br />

uma espécie de licor ou elixir divino,<br />

que deve estar na minha alma como<br />

o sangue está em meu corpo.<br />

Os três Arcanjos e a<br />

personificação da honra<br />

Voltando à consideração do mundo<br />

angélico, eu creio que, na medida<br />

em que são altos dignatários e exercem<br />

funções sumamente honrosas,<br />

os Anjos são personificações da honra<br />

naquelas funções. De suas missões<br />

realizadas com honra decorre<br />

uma dedução de como eles são.<br />

São Miguel, por exemplo, faz lembrar<br />

aquele dito do Marechal Foch 2 :<br />

“Ma droite est pressée, ma gauche est<br />

menacée, mon arrière est coupé. Qui<br />

fait-je? J’attaque.” 3 Alta qualidade<br />

de honra! Por quê? Porque é o ataque<br />

visto no apuro e no holocausto<br />

completo. Esse j’attaque quer dizer:<br />

“Eu jogo o todo pelo todo, aqui está<br />

a minha vida. Mas jogo com classe,<br />

com ímpeto, com força”.<br />

É uma maravilha!<br />

Essa seria a honorabilidade<br />

de São Miguel.<br />

Em São Rafael, a<br />

honorabilidade está na<br />

virtude da prudência<br />

enquanto operativa, isto<br />

é, que leva a escolher<br />

as metas boas e os métodos<br />

adequados para<br />

atingi-las. Ele possui<br />

toda a honorabilidade<br />

de um Conselho de Estado<br />

Maior, de um conclave,<br />

ou de um Conselho<br />

que existe para assessorar<br />

o Santo Padre.<br />

Essa função exercida<br />

na sua máxima nobreza<br />

e honorificência<br />

encontra seu arquétipo<br />

no Anjo São Rafael.<br />

Uma figura humana<br />

de São Rafael seria,<br />

por exemplo, São Pio<br />

X desmontando o complot modernista<br />

contra a Igreja,<br />

a fim de que ela prosseguisse<br />

nos seus verdadeiros<br />

objetivos. Este<br />

pontífice fez exatamente<br />

o papel do pastor<br />

que soube discernir<br />

os métodos e aplicá-los.<br />

São Rafael é isto<br />

com suprema honra.<br />

Não se pode ser incumbido<br />

de uma missão<br />

mais honrosa do que a<br />

de São Gabriel. Ele é,<br />

por excelência, o missus<br />

a Deo 4 . Tudo quanto<br />

é revelação da verdade,<br />

da Religião, da Fé, do<br />

bom espírito, bem como<br />

o valor do símbolo,<br />

eu sou levado a atribuir<br />

a São Gabriel.<br />

Para mim, dois Santos<br />

representam São<br />

Gabriel de um modo<br />

excelente: São Vicente Ferrer, chamado<br />

“Anjo do Apocalipse”, que vinha<br />

anunciar o fim do mundo, pregando<br />

as glórias de Nossa Senhora, o esplendor<br />

da Religião, da Fé, etc.; e São Luís<br />

Grignion de Montfort, eminentemente<br />

“gabrielino”, que anuncia a verdadeira<br />

devoção a Nossa Senhora.<br />

Intercessores apropriados<br />

para remover os obstáculos<br />

opostos à honra<br />

Consideremos agora o assunto<br />

pelo seguinte aspecto: imaginemos<br />

um homem direito, sério, mas que<br />

não é um astro, dando um curso de<br />

Filosofia tomista bom para um certo<br />

número de alunos. É natural que esse<br />

homem recorra à proteção de São<br />

Tomás de Aquino.<br />

O melhor dessa noção de recorrer<br />

ao Doutor Angélico consiste em que<br />

esse professor, lecionando a Filosofia<br />

tomista, repete uma ação que São<br />

Tomás praticou na vida, estendendo<br />

de algum modo a atividade des-<br />

Cenas da vida de São Pio X (detalhe) - Santuário<br />

de Nossa Senhora do Rosário, Pompeia, Itália<br />

Gabriel A.<br />

22


se Santo. De maneira que a ação dele<br />

é um desdobramento do próprio<br />

São Tomás de Aquino. Ele é, portanto,<br />

naquela aula para os seus alunos,<br />

como que um outro Tomás de Aquino<br />

em estatura menor; há uma verdadeira<br />

participação da ação dele na<br />

do Doutor Angélico. Então, o pedido<br />

de interferência de São Tomás<br />

não é o de um homem extrínseco à<br />

ação que está praticando.<br />

Para se ver como são variadas as<br />

coisas, qual o Santo que eu seria levado<br />

a invocar para levar bem esta conferência?<br />

Evidentemente os três Arcanjos<br />

mais o Profeta Elias. Porque<br />

percebo perfeitamente que estou desenvolvendo<br />

uma ação para remover<br />

o grande penhasco trágico que se<br />

opõe ao nosso progresso na vocação,<br />

que é o mundo atual, um mundo sem<br />

honra, enquanto presente nas almas.<br />

Então, penso nas ações grandiosas<br />

de Santo Elias fazendo mover céus e<br />

terras, peço a ele que tenha pena de<br />

mim e me obtenha uma certa participação<br />

do poder dele para este passo<br />

que estou desejando. Se ele tiver verdadeiramente<br />

pena de mim, de maneira<br />

a conferir à minha palavra uma<br />

eficácia que ela não tem, empurrará<br />

aqueles a quem estou falando como<br />

os elementos se moviam às ordens<br />

dele.<br />

Amizade pessoal com<br />

Anjos e Santos<br />

A graça para discernir a situação e<br />

saber que Santo invocar é uma flexibilidade<br />

da alma por onde se sente a<br />

ação do Santo que nos convida a rezar<br />

a ele. É uma coisa muito bonita e<br />

delicada que se dá com todo mundo,<br />

não é um privilégio de poucos.<br />

Por exemplo, acontece às vezes de<br />

irmos a uma igreja e encontrarmos,<br />

numa capela lateral, uma mulher<br />

que se poderia comparar, mais ou<br />

menos, com um pano molhado que<br />

se espreme e fica seco; assim também<br />

parece que o sofrimento espremeu<br />

aquela pobre senhora, cuja pele<br />

gasta recobre um corpo alquebrado.<br />

Ali está ela, no canto de um altar, rezando<br />

para um Santo cuja imagem<br />

pequena encontra-se entre outras.<br />

Um cretino diria: “Superstição.”<br />

E eu responderia: Culto de dulia o<br />

mais áureo e magnífico! Porque de algum<br />

modo aquele Santo fez-lhe sentir,<br />

por graças recebidas diante da sua<br />

imagem, que ele teria um vínculo de<br />

alma com ela. Portanto, mais do que<br />

a graça obtida por ele, trata-se de um<br />

relacionamento de amizade pessoal<br />

com ela. Quiçá esse conceito de amizade<br />

pessoal com Anjos e Santos possa<br />

parecer irreverente para alguém,<br />

mas para mim é o conceito por excelência.<br />

O Santo de quem ficamos amigos<br />

tem relações pessoais conosco. Esse<br />

relacionamento até uma pobre mulher<br />

ignorante, morando<br />

em algum<br />

porão, pode ter na<br />

Santa Igreja.<br />

Já me aconteceu<br />

de, passando<br />

perto de uma mulher<br />

assim, ter pena<br />

e vontade de parar<br />

para falar com ela,<br />

auxiliá-la em qualquer<br />

coisa, mas depois<br />

não o fazer,<br />

pensando: “Se eu<br />

for ajudá-la privo-<br />

-a do melhor, que é<br />

o auxílio que o Santo<br />

está lhe prestando,<br />

e meto-me no<br />

meio desse arco-íris<br />

que vai do Santo<br />

para ela. Enquanto<br />

eu não sentir que<br />

sou mandado pelo<br />

Santo para ajudá-la,<br />

posso até rezar<br />

uma jaculatória<br />

por ela ao Santo,<br />

mas não vou meter-<br />

-me nesse relacio-<br />

São Vicente Ferrer exorcizando um energúmeno<br />

Museu de Belas Artes, Valência, Espanha<br />

namento.”<br />

Arcanjo São Gabriel - Museu Nacional<br />

de Arte Antiga, Lisboa, Portugal<br />

Flávio Lourenço<br />

Flávio Lourenço<br />

23


Reflexões teológicas<br />

Gabriel K.<br />

Devoção a São Rafael<br />

São Rafael Arcanjo (coleção<br />

privada) - Lima, Peru<br />

do, notei que acabara de ser posta<br />

junto a um altar lateral uma imagem<br />

muito feia de um Anjo que, pelas características,<br />

notei tratar-se de São<br />

Rafael, mas pensei: “Esta é propriamente<br />

a imagem de um Anjo como<br />

não deve ser. Até nem vou olhar para<br />

ela, vou rezar abstraindo da imagem.”<br />

Enquanto rezava o meu Rosário,<br />

tive uma moção interior, semelhante<br />

à da graça de Mater Boni Consilii<br />

a Genazzano 5 , como quem me dizia:<br />

“Reze a mim porque eu estarei ao<br />

seu lado e o ajudarei!”<br />

De lá para cá nunca mais rezei um<br />

Rosário em que não intercalasse, depois<br />

de cada dezena, uma jaculatória<br />

a São Rafael para ele me ajudar.<br />

O mais curioso é que eu não percebi<br />

uma só vez a ajuda prometida. Continuo<br />

a rezar como quem vai acumulando<br />

jaculatórias para um belo dia<br />

dar o resultado desejado. Vejo que<br />

esta proteção está reservada para<br />

uma determinada ocasião.<br />

Com efeito, precisamos<br />

compreender que tudo quanto<br />

estou tratando a respeito<br />

de honra, de Anjos e Arcanjos,<br />

há um momento em que<br />

isso deve tocar a nossa alma;<br />

e que a ação desses espíritos<br />

celestes está preponderantemente<br />

nisso, não podemos<br />

nos antecipar. Isso é muito de<br />

acordo com a verdadeira vida<br />

espiritual.<br />

Meu modo de<br />

sentir e pensar<br />

Segundo o curso comum<br />

das coisas, deveríamos terminar<br />

estas considerações dizendo:<br />

“Vamos fazer uma deliberação<br />

de rezar todos os<br />

dias tal oração.” Eu aprovo<br />

muito isso com entusiasmo,<br />

mas não é o nosso caso, pois<br />

seria nos anteciparmos a uma<br />

certa moção angélica. Eu, por<br />

Há mais um aspecto curioso a se<br />

considerar: por vezes, a aridez em<br />

certo tipo de devoção é o sinal de que<br />

aquela devoção é para nós. Mas algumas<br />

vezes esse sinal consiste em uma<br />

consolação. Por exemplo, toda minha<br />

vida tive aridez pela devoção a São<br />

Rafael. Aquela história de Tobias, o<br />

Anjo que tira o fígado daquele peixe...<br />

Mexer com o fígado de um peixe<br />

para tirar daí um óleo, eu compreendo<br />

que é enormemente respeitável,<br />

mas tenho certa estranheza com<br />

esse gênero de ações. Mandar o demônio<br />

para o Inferno: Ó, magnífico!<br />

Mas aquilo tudo com o peixe, embora<br />

eu venere muito, minha alma não<br />

voa para esse lado. Entretanto depois<br />

que comecei a fazer estas reflexões<br />

sobre os Anjos e compreendi o papel<br />

de São Rafael, nasceu um grande desejo<br />

de relacionar-me com ele.<br />

Entrando certo dia em uma igreja<br />

onde costumo rezar de vez em quanexemplo,<br />

começaria isso meio hirto.<br />

Se quisessem eu acompanharia,<br />

mas não entraria minha alma inteira<br />

nisso. O que está na minha alma<br />

é esperar a moção angélica que virá<br />

em dado momento, não sei qual,<br />

mas virá. Aguardar com a esperança<br />

de que venha e voltar os olhos nessa<br />

direção.<br />

Há qualquer coisa no meu modo<br />

de sentir e pensar que nunca consegui<br />

explicitar bem, mas entra eminentemente<br />

no modo de ser de São<br />

Gabriel e corresponde ao que eu<br />

considero uma excelência, uma magnificência<br />

especial da Igreja Católica:<br />

é uma suma seriedade, elevação,<br />

nobreza, acompanhadas de uma<br />

bondade, uma proteção por onde<br />

as coisas muito altas e sublimes se<br />

apresentam revestidas de doçura. É<br />

24


Samuel Holanda<br />

É inenarrável também e apresenta<br />

a tal harmonia da majestade e da<br />

doçura tão magnífica, que na defesa<br />

dela eu compreendo toda a inflexibilidade<br />

da força, porque se alguém<br />

ousa atacar isso, então a força tira de<br />

dentro do amor a isso uma plenitude<br />

e uma capacidade de reação e de resistência<br />

total.<br />

A matriz geradora desse combate<br />

é o misto de majestade e doçura, que<br />

vejo ser muito difícil as pessoas compreenderem,<br />

mas o timbre de São<br />

Gabriel foi esse. Em última análise,<br />

é isso o que São Gabriel tem a dizer<br />

ao mundo. É a clave dele, mas que<br />

deve ser também a nossa. É o encontro<br />

da doçura com a grandeza: uma<br />

grandeza cheia de doçura, mas uma<br />

doçura que se sente bem ao lado da<br />

grandeza.<br />

v<br />

(Extraído de conferência de<br />

19/12/1976)<br />

propriamente a plenitude do estado<br />

normal delas.<br />

Revestidas de força também, mas<br />

a força se apresenta à vista de um<br />

acidente, isto é, o adversário. Entretanto<br />

o estado normal é de estarem<br />

revestidas de doçura, acessibilidade,<br />

afabilidade, proteção; mas uma proteção<br />

dada com respeito e não com<br />

prepotência. De tal maneira que o<br />

próprio dom vem gotejando respeito<br />

por aquele que o recebe.<br />

Majestade e doçura<br />

Eu não conheço palavras nem<br />

episódio em que esses predicados<br />

coincidem tão bem quanto na mensagem<br />

angélica, porque, de um lado,<br />

não se podia comunicar acontecimento<br />

mais alto do que a Encarnação<br />

do Verbo. Desde que o mundo<br />

Anunciação - Museu da Catedral<br />

de Aachen, Alemanha<br />

era mundo, comunicação não houve<br />

comparável a essa.<br />

De outro lado, dizer a uma pessoa<br />

que ela vai ser a Mãe do Verbo é de<br />

uma doçura incrível, ao mesmo tempo<br />

que constitui a pessoa numa dignidade,<br />

numa majestade incalculável!<br />

O que se poderia dizer de mais<br />

grandioso a alguém do que o seguinte:<br />

“Tu és Filha de Deus Padre muito<br />

mais amada do que imaginas. Serás<br />

Esposa do Espírito Santo e Mãe do<br />

Verbo Encarnado.” É de uma grandeza!<br />

Nunca ninguém anunciou a ascensão<br />

de um papa ou de um imperador<br />

ao respectivo sólio com palavras<br />

como essas. Não tem igual. No<br />

entanto, poder-se-ia imaginar com<br />

que doçura todas essas palavras penetraram<br />

na alma de Nossa Senhora<br />

e tomaram conta d’Ela?<br />

1) Expressão metafórica criada por <strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong> para designar a mentalidade<br />

sentimental que se manifesta na piedade,<br />

na cultura, na arte, etc. As pessoas<br />

por ela afetadas se tornam moles,<br />

medíocres, pouco propensas à<br />

fortaleza, assim como a tudo que signifique<br />

esplendor.<br />

2) Ferdinand Foch (*1851 - †1929). Militar<br />

católico francês que comandou<br />

os exércitos da França e da Inglaterra<br />

durante a I Guerra Mundial.<br />

3) Minha direita é pressionada, minha esquerda<br />

é ameaçada, minha retaguarda<br />

é golpeada. Que faço eu? Ataco.<br />

4) Do latim: enviado por Deus.<br />

5) Graça recebida em 16 de dezembro<br />

de 1967, que consistiu na confirmação<br />

e certeza do total cumprimento da<br />

missão de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> e da continuação<br />

de sua obra. (Cf. CLÁ DIAS, João<br />

Scognamiglio, EP. O dom de sabedoria<br />

na mente, vida e obra de <strong>Plinio</strong> Corrêa<br />

de Oliveira. Cidade do Vaticano: Libreria<br />

Editrice Vaticana; São Paulo:<br />

Instituto Lumen Sapientiae. 2016, v.<br />

IV, p. 287-291).<br />

25


Flávio Lourenço<br />

C<br />

alendário<br />

São Lino<br />

1. São Lupo, bispo (†c. 623). Bispo<br />

de Sens, França, exilado por haver<br />

afirmado que o povo deve obedecer<br />

mais a Deus do que aos governantes<br />

desta Terra.<br />

2. São Justo, bispo (†d. 381). Renunciou<br />

a Sé episcopal de Lyon após<br />

o Concílio de Aquileia e abraçou a<br />

humilde vida dos monges de um eremitério<br />

no Egito.<br />

3. São Gregório Magno, Papa e<br />

Doutor da Igreja (†604).<br />

Beata Brígida de Jesus Morello, viúva<br />

(†1679). Fundadora da Congregação<br />

das Irmãs Ursulinas de Maria<br />

dos Santos – ––––––<br />

Imaculada, em Piacenza, Itália, após<br />

ficar viúva.<br />

4. Beata Maria de Santa Cecília<br />

Romana (Dina Bélanger), virgem<br />

(†1929). Da Congregação das Religiosas<br />

de Jesus e Maria, em Quebec,<br />

Canadá. Suportou com paciência durante<br />

muitos anos a terrível enfermidade<br />

da qual morreu aos 32 anos.<br />

5. São Bertino, abade (†c. 698).<br />

Fundou com São Munolino em Saint-<br />

-Omer, França, o mosteiro de Sithieu,<br />

do qual foi abade durante cerca de<br />

quarenta anos.<br />

6. XXIII Domingo do Tempo Comum.<br />

Beato Bertrand de Garrigues,<br />

presbítero (†c. 1230). Discípulo de<br />

São Domingos, foi prior do convento<br />

de Toulouse e depois fundou conventos<br />

em Paris, Avignon e Montpelier.<br />

7. São Clodoaldo, presbítero (†560).<br />

De estirpe real, foi acolhido por sua<br />

avó Santa Clotilde após a morte de seu<br />

pai e seus irmãos. Fez-se sacerdote e<br />

morreu em Saint-Cloud, França.<br />

8. Natividade de Nossa Senhora.<br />

São Tomás de Villanueva, bispo<br />

(†1555). Religioso dominicano, aceitou<br />

por obediência o ministério episcopal<br />

de Valência, Espanha.<br />

9. São Pedro Claver, presbítero<br />

(†1654).<br />

Beato Pedro Bonhomme, presbítero<br />

(†1861). Dedicou às missões populares<br />

e à evangelização do mundo rural,<br />

e fundou a Congregação das Irmãs<br />

de Nossa Senhora do Calvário,<br />

em Gramat, França.<br />

10. Beato Tiago Gagnot, presbítero<br />

e mártir (†1794). Religioso carmelita<br />

que durante a Revolução Francesa foi<br />

preso numa sórdida embarcação em<br />

Rochefort, onde morreu consumido<br />

pelas enfermidades.<br />

11. Beato Boaventura de Barcelona,<br />

religioso (†1648). Irmão franciscano<br />

que fundou em território romano<br />

vários conventos e casas de retiros.<br />

12. Santíssimo Nome de Maria.<br />

São Francisco Ch’oe Kyong-hwan,<br />

mártir (†1839). Catequista preso em<br />

Seul por se recusar abjurar a Fé, dedicou-se<br />

no cárcere à catequese, até<br />

morrer extenuado pela atrocidade<br />

dos tormentos.<br />

13. XXIV Domingo do Tempo Comum.<br />

São João Crisóstomo, bispo e<br />

Doutor da Igreja (†407).<br />

Beata Maria de Jesus López Rivas,<br />

virgem (†1640). Discípula de<br />

Santa Teresa de Ávila e priora do<br />

Carmelo de Toledo. Recebeu no corpo<br />

e na alma a comunicação das dores<br />

da Paixão de Nosso Senhor.<br />

Augusto P.<br />

Santo Inácio de Santhiá<br />

26


––––––––––––––– * Setembro * ––––<br />

14. Exaltação da Santa<br />

Cruz.<br />

Santa Notburga, virgem<br />

(†1313). Dona de casa<br />

da aldeia de Eben, Áustria,<br />

serviu a Cristo nos<br />

pobres, dando aos camponeses<br />

um admirável exemplo<br />

de santidade.<br />

15. Nossa Senhora das<br />

Dores.<br />

Beato Paulo Manna,<br />

presbítero (†1952). Sacerdote<br />

do Instituto Pontifício<br />

para as Missões Estrangeiras<br />

que, deixando a ação<br />

missionária na Birmânia por<br />

causa da sua debilitada saúde,<br />

trabalhou na evangelização na Itália.<br />

16. São Cornélio, Papa (†253), e<br />

São Cipriano, bispo (†258), mártires.<br />

São Vital, abade (†1122). Renunciou<br />

aos encargos terrenos e fundou<br />

um mosteiro em Savigny, França, onde<br />

reuniu numerosos discípulos.<br />

17. São Roberto Belarmino, bispo e<br />

Doutor da Igreja (†1621).<br />

Beato Estanislau de Jesus e Maria,<br />

presbítero (†1701). Fundador<br />

dos Clérigos Marianos da Imaculada<br />

Conceição da Virgem Maria, em Gora<br />

Kalwária, Polônia.<br />

18. São José de Cupertino, presbítero<br />

(†1663). Religioso franciscano do<br />

convento de Osimo, Itália. Apesar das<br />

adversidades que teve de enfrentar<br />

durante sua vida, foi favorecido com<br />

graças místicas extraordinárias.<br />

19. São Januário, Bispo e mártir<br />

(†s. IV).<br />

Santa Maria de Cervelló, virgem<br />

(†1290). Primeira religiosa mercedária.<br />

Pela obra realizada em favor dos<br />

pobres e enfermos, ficou conhecida<br />

como “Maria do Socorro”.<br />

20. XXV Domingo do Tempo Comum.<br />

Santos Bertino e Munolino sobem em um barco,<br />

sem velas nem remos, guiados por um Anjo<br />

Santos André Kim Taegon, presbítero,<br />

Paulo Chong Hasang e companheiros,<br />

mártires (†1839-1867).<br />

São João Carlos Cornay, presbítero<br />

e mártir (†1837). Sacerdote da Sociedade<br />

das Missões Estrangeiras de<br />

Paris que, por decreto do imperador<br />

Minh Mang, foi decapitado na fortaleza<br />

de Són-Tây, Vietnã, depois de sofrer<br />

cruéis torturas.<br />

21. São Mateus, Apóstolo e Evangelista.<br />

São Jonas, profeta. Filho de Amitai,<br />

enviado por Deus para pregar em<br />

Nínive. Sua saída do ventre da baleia<br />

é evocada no próprio Evangelho como<br />

sinal da Ressurreição do Senhor.<br />

22. Santo Inácio de Santhiá, presbítero<br />

(†1770). Sacerdote capuchinho de Turim,<br />

muito assíduo na audição de Confissões<br />

e na assistência aos enfermos.<br />

23. São Pio de Pietrelcina, presbítero<br />

(†1968).<br />

São Lino, Papa e mártir (†s. I). Primeiro<br />

sucessor de São Pedro, eleito pelos<br />

próprios Apóstolos Pedro e Paulo.<br />

24. Beata Colomba Gabriel, abadessa<br />

(†1926). Injustamente caluniada,<br />

parte do mosteiro beneditino de Lviv,<br />

Samuel Holanda<br />

Ucrânia, do qual era abadessa,<br />

em direção a Roma.<br />

Ali funda a Congregação<br />

das Irmãs Beneditinas da<br />

Caridade e organiza a obra<br />

de apostolado social chamada<br />

Casa da Família.<br />

25. São Princípio, bispo<br />

(†s. VI). Irmão de São Remígio,<br />

Bispo de Soissons,<br />

França.<br />

26. Santos Cosme e Damião,<br />

mártires (†c. séc. III).<br />

Beato Luís Tezza, presbítero<br />

(†1923). Religioso da<br />

Ordem dos Clérigos Regrantes<br />

Ministros dos Enfermos<br />

e fundador da Congregação<br />

das Filhas de São Camilo, em Roma.<br />

27. XXVI Domingo do Tempo Comum.<br />

São Vicente de Paulo, presbítero<br />

(†1660).<br />

Beato Lourenço de Ripafratta,<br />

presbítero (†1456). Religioso dominicano<br />

do mosteiro de Pistoia, Itália,<br />

que observou durante sessenta anos<br />

a disciplina religiosa e dedicou-se ao<br />

Sacramento da Reconciliação.<br />

28. São Venceslau, mártir (†929-935).<br />

São Lourenço Ruiz e companheiros,<br />

mártires (†1633-1637).<br />

Beato Bernardino de Feltre, presbítero<br />

(†1494). Religioso franciscano.<br />

Para combater a usura promoveu<br />

a fundação de Montepios, instituições<br />

de caridade financeira. Morreu em<br />

Pavia, Itália, aos 55 anos.<br />

29. São Miguel, São Gabriel e São<br />

Rafael Arcanjos. Ver página 28.<br />

Beato Carlos de Blois, leigo (†1364).<br />

30. São Jerônimo, presbítero e<br />

Doutor da Igreja (†420).<br />

São Simão, monge (†1082). Sendo<br />

conde de Crépy, renunciou à pátria,<br />

matrimônio e riquezas para levar vida<br />

eremítica no Maciço do Jura.<br />

27


Hagiografia<br />

Flávio Lourenço<br />

São Miguel e os Anjos bons<br />

expulsando para o Inferno os<br />

espíritos rebeldes - Museu de<br />

Belas Artes, Valência, Espanha<br />

Escudo da Igreja e gládio<br />

contra os demônios<br />

Suscitado por Deus para precipitar no inferno os demônios,<br />

proteger a Igreja e os homens contras as investidas diabólicas,<br />

São Miguel Arcanjo, cavaleiro arquetípico da milícia celeste,<br />

é escudo e gládio em defesa dos planos divinos.<br />

Arespeito de São Miguel Arcanjo<br />

temos uma pequena nota:<br />

São Miguel, Príncipe da<br />

milícia celeste, na batalha que houve<br />

no Céu combateu os anjos rebeldes.<br />

Compete-lhe continuar essa luta para<br />

nos livrar do demônio. Dele dependem<br />

os Anjos da Guarda. É o Anjo protetor<br />

da Igreja e o que apresenta ao Padre<br />

Eterno a oblação eucarística.<br />

Cavaleiro leal, forte,<br />

puro e vitorioso<br />

Eu chamo a atenção para o fato<br />

de que São Miguel comandou a lu-<br />

ta contra o demônio e o precipitou<br />

no inferno e, além disso, é o chefe<br />

dos Anjos da Guarda dos indivíduos<br />

e das instituições. Ademais,<br />

é ele mesmo o Anjo da Guarda da<br />

Instituição das instituições, que é<br />

a Santa Igreja Católica Apostólica<br />

Romana.<br />

28


Flávio Lourenço<br />

São Miguel<br />

Arcanjo - Igreja<br />

de São Miguel,<br />

Gante, Bélgica<br />

Ele tem, portanto, uma função tutelar<br />

a respeito da qual podemos nos<br />

perguntar que relação há entre a sua<br />

missão, derrubando no inferno os<br />

que se levantavam contra Deus Nosso<br />

Senhor, e a proteção por ele<br />

dispensada à Igreja e aos homens<br />

neste vale de lágrimas,<br />

nesta arena que é a vida.<br />

Estas duas missões se concatenam.<br />

São Miguel defendeu<br />

a Deus que quis servir-Se dele<br />

como seu escudo contra o demônio,<br />

e quer que ele seja também<br />

o escudo da Santa Igreja e dos homens<br />

contra as investidas diabólicas.<br />

Porém, um escudo que é, ao mesmo<br />

tempo, um gládio. Portanto ele<br />

não se limita a defender, mas derrota<br />

e precipita no inferno. Eis a dupla<br />

missão de São Miguel.<br />

Por causa disso São Miguel era<br />

considerado na Idade Média como<br />

o primeiro dos cavaleiros, o cavaleiro<br />

celeste. Ideal e perfeitamente<br />

leal, forte, puro, vitorioso como<br />

um cavaleiro deve ser, pondo toda<br />

a sua confiança em Deus e em Nossa<br />

Senhora.<br />

É, portanto, esta figura admirável<br />

de São Miguel que,<br />

vista assim, devemos considerar<br />

enquanto sendo<br />

nosso aliado natural<br />

nas lutas, porque não<br />

queremos ser outra<br />

coisa senão homens<br />

que executam, no<br />

plano humano, a tarefa<br />

de São Miguel<br />

Arcanjo, ou seja,<br />

defender a honra<br />

de Deus, a glória<br />

de Nossa Senhora,<br />

a Igreja Católica,<br />

a Civilização Cristã,<br />

mas em nível de<br />

contraofensiva, de<br />

maneira a prostrar<br />

no chão o<br />

império do demônio<br />

e a estabelecer<br />

nesta<br />

Terra o Reino<br />

de Maria.<br />

Há, por<br />

conseguinte,<br />

uma afinidade enorme<br />

com nossa missão<br />

e procedem muito<br />

bem aqueles dentre<br />

nós que queiram<br />

constituir São Miguel<br />

Arcanjo seu especial<br />

patrono.<br />

“Para a frente, não<br />

esmoreçam, ataquem!”<br />

Em Anna Catarina Emmerich 1 ,<br />

Visões e Revelações completas, encontramos<br />

os seguintes dados a respeito<br />

de São Miguel:<br />

Vi novamente a Igreja de São Pedro<br />

com sua grande cúpula. Sobre ela resplandecia<br />

o Arcanjo São Miguel vestido<br />

de cor vermelha, tendo uma grande<br />

bandeira de combate nas mãos.<br />

A Terra era um imenso campo de<br />

batalha.<br />

Os verdes e azuis lutavam contra os<br />

brancos. Estes, sobre os quais reluzia<br />

uma espada de fogo, parece que iam<br />

sucumbir.<br />

Nem todos sabiam por qual causa<br />

combatiam.<br />

A Igreja era de cor sangrenta como<br />

a roupa do Arcanjo.<br />

Ouvi que me diziam: “Terá um Batismo<br />

de sangue. A Igreja vai ser purificada<br />

no sangue do martírio e da perseguição.”<br />

Quanto mais se prolongava<br />

o combate, mais se apagava a viva cor<br />

vermelha da Igreja e se tornava mais<br />

transparente.<br />

A purificação ia fazendo dela algo<br />

de diáfano, de puro.<br />

O Anjo desceu e se aproximou dos<br />

brancos. Estes adquiriram grande coragem<br />

sem saber de onde lhes vinha.<br />

O Anjo derrotou os inimigos que fugiram<br />

em todas as direções. A espada de<br />

fogo que estava sobre os brancos desapareceu.<br />

Era uma espécie de ação diabólica,<br />

de maldade, uma coisa assim que<br />

oprimia os brancos.<br />

Em meio ao combate, aumentava<br />

o número dos brancos. Grupos de adversários<br />

passavam para eles. E numa<br />

ocasião passaram em grande número.<br />

Sobre o campo de batalha havia, no espaço,<br />

legiões de Santos que faziam sinais<br />

com as mãos, diferentes uns dos<br />

outros, porém animados do mesmo espírito.<br />

São sinais que exortavam: “Para<br />

a frente, avancem, não esmoreçam,<br />

29


Hagiografia<br />

Flávio Lourenço<br />

O Arcanjo São Miguel derrota o demônio<br />

Museu Lázaro Galdiano, Madri, Espanha<br />

ataquem!”, enquanto os bons combatem<br />

embaixo sob esse sopro. É,<br />

portanto, o Céu inteiro aberto para<br />

os bons, e estes vencendo os maus<br />

para a implantação do Reino de Maria.<br />

Senso da bem-aventurança<br />

Temos também uma ficha de<br />

Dom Guéranger a respeito da vocação<br />

contemplativa dos Anjos:<br />

Assim, a Igreja considera São Miguel<br />

como o mediador de sua prece litúrgica.<br />

Ele se mantém entre a humanidade<br />

e a divindade. Deus que distribui,<br />

com uma ordem admirável, as<br />

hierarquias visíveis e invisíveis, emprega<br />

por opulência, para louvor de<br />

sua glória, o ministério desses espíritos<br />

celestes que contemplam sem cessar<br />

a face adorável do Pai, e que sa-<br />

Carl Ludwig Hofmeister (CC3.0)<br />

bem, melhor do que<br />

os homens, adorar e<br />

contemplar a beleza<br />

de suas perfeições<br />

infinitas.<br />

Mi-Ka-El: quem<br />

como Deus? Este nome<br />

exprime por si só,<br />

em sua brevidade, o<br />

louvor mais completo,<br />

a adoração mais<br />

perfeita, o reconhecimento<br />

mais inteiro<br />

da transcendência<br />

divina e a confissão<br />

mais humilde do nada<br />

da criatura.<br />

Modelo, portanto,<br />

de humildade.<br />

Porque quem exclama<br />

que ninguém é<br />

como Deus, afirma<br />

que não é nada. E<br />

esta é a humildade<br />

perfeita.<br />

A forma de humildade<br />

própria<br />

do cavaleiro é<br />

esta: Deus é<br />

tudo e ninguém<br />

é<br />

nada. Agora, a partir disto<br />

vamos conversar.<br />

Também a Igreja da Terra convida<br />

os espíritos celestes a bendizer o<br />

Senhor, cantá-Lo, louvá-Lo e bendizê-Lo<br />

sem cessar. Esta vocação contemplativa<br />

dos Anjos é o modelo da<br />

nossa, como nos faz lembrar o belo<br />

prefácio do Sacramentário de São<br />

Leão: “É verdadeiramente digno render<br />

graças a Vós, que nos ensinais<br />

por vosso Apóstolo que<br />

nossa vida é dirigida aos Céus;<br />

que com benevolência quereis<br />

que nos transportemos<br />

em espírito ao lugar onde<br />

servem esses que veneramos,<br />

especialmente<br />

dirigirmo-nos para essas<br />

alturas na festa do<br />

Bem-Aventurado<br />

Miguel Arcanjo.”<br />

Aqui está<br />

um tra-<br />

30


ço da devoção aos Anjos que é preciso<br />

muito notar. Os Anjos são habitantes<br />

da corte celeste, onde vivem<br />

na eterna contemplação de Deus<br />

face a face. E as visões de todos os<br />

grandes místicos nos referem as festas<br />

que há no Céu e que são verdadeiras<br />

solenidades. Não são imagens<br />

ou quimeras, mas autênticas festas<br />

em que Deus vai manifestando sucessivamente<br />

suas grandezas e eles<br />

aclamam com triunfos novos, que<br />

não terminam jamais.<br />

Há uma felicidade celeste, um<br />

senso de que é a pátria de nossa alma<br />

e propriamente a ordem de coisas<br />

para a qual fomos criados, que<br />

corresponde de modo pleno a todas<br />

as nossas aspirações. Algo desse senso<br />

da bem-aventurança celeste pela<br />

contemplação face a face de Deus,<br />

que é a perfeição absoluta de todas<br />

as coisas, pode e deve passar para a<br />

Terra. Nas épocas de verdadeira Fé<br />

alguma coisa dessa felicidade<br />

filtra, algo dessa<br />

piedade é sentida e comunicada<br />

pelas almas<br />

mais notavelmente<br />

piedosas, como<br />

um tesouro comum<br />

para toda<br />

a Igreja.<br />

Desejo das coisas celestes<br />

É isto que tanto falta hoje em dia,<br />

de maneira que não se tem a ideia<br />

de uma felicidade celeste. E sem essa<br />

ideia não se possui apetência do<br />

Céu, e as pessoas se chafurdam na<br />

pura apetência dos bens terrenos.<br />

Mas se pudessem compreender por<br />

um instante o que é uma consolação,<br />

uma graça do Espírito Santo, esse tipo<br />

de felicidade que a consideração<br />

dos bens celestes comunica, então<br />

começaria o desapego dos bens da<br />

Terra, viria a compreensão de como<br />

tudo é transitório, como há valores<br />

que estão acima das coisas terrenas<br />

e que tornam a Terra toda um pouco<br />

de poeira.<br />

É exatamente isso que os Santos<br />

Anjos podem nos obter, eles que estão<br />

inundados dessa felicidade,<br />

a qual de vez em<br />

quando se comunica sob esta<br />

forma aos Santos. Há um<br />

modo de fenômeno místico<br />

que se manifesta como um<br />

concerto muito longínquo,<br />

de uma harmonia maravilhosa<br />

e extraterrena. Santa<br />

Teresinha do Menino Jesus<br />

teve isto e ela até menciona<br />

na História de uma alma. É<br />

um pouco do eterno cântico<br />

dos Anjos que chega, por<br />

esta forma, aos ouvidos dos<br />

homens para lhes dar a apetência<br />

das coisas do Céu.<br />

Em nossa época esta<br />

apetência falta fabulosamente.<br />

As pessoas só se<br />

interessam e se empolgam<br />

pelas coisas da Terra, pelo<br />

dinheiro, pela politicagem,<br />

pelo mundanismo,<br />

pelas trivialidades do noticiário<br />

de todos os dias,<br />

mas não se empolgam pelos<br />

assuntos elevados,<br />

doutrinários e, menos ainda,<br />

pelas coisas especificamente<br />

celestes.<br />

Vamos pedir aos Anjos que nos<br />

comuniquem o desejo das coisas celestes<br />

de que eles estão inundados.<br />

Esta é uma excelente intenção para<br />

ser apresentada na festa de São Miguel<br />

Arcanjo, junto com o pedido<br />

de que ele nos faça seus imitadores,<br />

perfeitos cavaleiros de Nossa Senhora<br />

nesta Terra.<br />

v<br />

(Extraído de conferência de<br />

28/9/1966)<br />

1) Anna Catarina Emmerich (*1774 -<br />

†1824), terciária agostiniana alemã,<br />

beatificada em 2004. Recebeu os estigmas<br />

da Paixão e foi favorecida por<br />

muitas revelações místicas sobre Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo, Maria Santíssima<br />

e outros temas religiosos.<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1966<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

31


Luzes da Civilização Cristã<br />

The Bridgeman Art Library (CC3.0)<br />

Luís XIV e a<br />

respeitabilidade<br />

Luís XIV - Museu<br />

de Belas Artes,<br />

Tournai, Bélgica<br />

Durante a Revolução Francesa, a turba<br />

revolucionária violou os sarcófagos dos reis<br />

para roubar as riquezas com que estavam<br />

sepultados e profanar seus restos mortais. Ao<br />

abrirem o esquife de Luís XIV, seu cadáver<br />

possuía tal majestade que o populacho<br />

recuou. A verdadeira respeitabilidade produz<br />

estes dois efeitos: a veneração de quem<br />

admira e o ódio de quem se revolta.<br />

Luís XIV era um homem imensamente<br />

majestoso que realizava uma mistura<br />

muito feliz de duas nobilíssimas dinastias:<br />

a mãe dele era Habsburg e o pai, Bourbon.<br />

Aliás, duas nações – Áustria e França –<br />

cujas qualidades se equilibram muito.<br />

Elegância francesa e<br />

grandeza espanhola<br />

Royal Collection (CC3.0)<br />

swbexpo.bsz-bw.de (CC3.0)<br />

É bonito notar que a História francesa, depois<br />

da Idade Média, divide-se em etapas segundo<br />

a influência que sobre a França exerceu<br />

os países próximos. Assim, houve durante<br />

a Renascença o período da influência italiana,<br />

que marcou toda a arte francesa; depois<br />

tivemos o período da influência espanhola,<br />

com a penetração de temas espanhóis<br />

na literatura francesa, fenômeno do qual<br />

encontramos um sinal muito marcante em<br />

Corneille 1 .<br />

Luís XIII da França (Coleção Real, Londres, Inglaterra) e Ana da Áustria<br />

(Museu Staatliche Kunsthalle, Karlsruhe, Alemanha), pais de Luís XIV<br />

32


Felipe II<br />

Museu Internacional do<br />

Barroco, Puebla,<br />

México<br />

Luís XIV reunia à elegância do francês algo<br />

da solenidade compassada e majestosa<br />

do espanhol. A coexistência da elegância<br />

francesa com certa grandeza espanhola<br />

explica exatamente o que esse monarca<br />

tinha de solar.<br />

Isso uma vez explicitado, sente-se<br />

em Luís XIV qualquer coisa de Felipe<br />

II, o rei que de tal maneira incutia<br />

respeito que, em geral, quando as<br />

pessoas vinham à sua presença, ele<br />

precisava tranquilizá-las, dizendo:<br />

“Sosegaos” 2 . Creio que isso era dito<br />

com uma voz tão majestosa, que<br />

a pessoa não ficava muito mais sossegada…<br />

Acrescentem a essa majestade<br />

a graça francesa e compreenderão<br />

como daí só poderia sair uma verdadeira<br />

obra-prima. Esta foi Luís XIV.<br />

Durante a Revolução Francesa, a<br />

turba revolucionária violava os sarcófagos<br />

dos reis para roubar as riquezas com<br />

que estavam sepultados, e se vingar deles<br />

profanando seus cadáveres e jogando-os em<br />

uma vala comum, em meio à cal para serem consumidos,<br />

pois, devido a um sistema muito eficaz de embalsamamento,<br />

vários desses corpos mantinham-se conservados<br />

por muito tempo.<br />

Ao chegarem ao esquife de Luís XIV, abriram-no e se<br />

depararam com seu cadáver enegrecido, o qual possuía<br />

tal majestade que o populacho, ao invés de se atirar em<br />

cima como fizera com todos os outros, teve um suspense<br />

e recuou um pouco. Portanto até depois de morto o Rei-<br />

-Sol impôs respeito. Depois, recuperados<br />

do impacto, os revolucionários<br />

ficaram furiosos, avançaram, arrancaram<br />

o corpo de dentro do caixão e<br />

lançaram-no na vala comum.<br />

Poder-se-ia dizer que o respeito incutido<br />

por Luís XIV em seus contemporâneos<br />

provinha do fato de ser ele<br />

um monarca absoluto de quem dependia<br />

o futuro de muita gente e, por<br />

isso, metia um certo medo nas pessoas<br />

que o reverenciavam por interesse.<br />

Ora, aqueles facínoras sabiam<br />

perfeitamente que estavam diante de<br />

um cadáver, tinham aberto a sepultura<br />

e não podiam absolutamente esperar,<br />

supor ou recear que um rei morto<br />

fosse capaz de qualquer vingança<br />

contra eles. Logo, a impressão de respeito<br />

provocada pelo monarca nessa ocasião<br />

não tinha nenhuma relação com interesse,<br />

ambição ou temor, e explica melhor a respeitabilidade<br />

irradiada por ele em vida.<br />

Efeitos produzidos pela<br />

verdadeira respeitabilidade<br />

O que é essa respeitabilidade a<br />

qual um homem irradia em torno de<br />

si a ponto de até os malfeitores que<br />

vão estraçalhar o seu cadáver se detêm<br />

um instante, e depois, por ódio à<br />

respeitabilidade, profanam esse cadáver<br />

mais do a todos os outros? De fato,<br />

a verdadeira respeitabilidade produz<br />

estes dois efeitos: a veneração de<br />

quem admira e o ódio de quem se revolta.<br />

A própria majestade de Deus causava<br />

sobre os espíritos angélicos esse duplo<br />

efeito. Satanás e os dele se revoltaram, enquanto<br />

São Miguel e seus Anjos admiraram.<br />

Então, o que vem a ser essa respeitabilidade se,<br />

como vimos, se trata de um sentimento de inferioridade<br />

motivado pelo medo ou pela ambição?<br />

É, por certo, a irradiação de uma superioridade, mas<br />

não de uma superioridade qualquer, precisamente porque<br />

ela é irradiada pela pessoa e não incutida por algo<br />

que se sabe a respeito dela.<br />

Tomemos, por exemplo, Pasteur. Ele foi indiscutivelmente<br />

um grande sábio, um cientista que fez invenções geniais<br />

de uma grande utilidade para o gênero humano. Qualquer<br />

indivíduo que não tivesse o senso moral completamente ob-<br />

Luís XIV recebe Mehmet Riza Beg, embaixador do Xá<br />

Tahmasp II - Palácio de Versailles, França<br />

Flávio Lourenço<br />

Gabriel K.<br />

33


Luzes da Civilização Cristã<br />

château de Versailles (CC3.0)<br />

Luís XIV - Museu de História da França,<br />

Palácio de Versailles, França<br />

tuso, sabendo estar tratando com Pasteur, sentiria respeito.<br />

Contudo esse respeito vinha da constatação de seus feitos e<br />

não de uma irradiação de sua personalidade.<br />

Outro exemplo, o Marechal Foch. Sua figura nunca<br />

me pareceu irradiante de respeitabilidade. Se eu o visse<br />

andando à paisana num ônibus qualquer, meu olhar não<br />

se deteria nele nem um minuto, mas se o reconhecesse,<br />

pensaria: “O grande Marechal Foch, vencedor da Primeira<br />

Guerra Mundial!”, e lhe prestaria todo o respeito.<br />

Para dar um exemplo nacional, cito Santos Dumont.<br />

É inegável que ele proporcionou um importante avanço<br />

na Ciência ao inventar a dirigibilidade do avião, pelo<br />

que merece um lugar saliente na consideração das pessoas.<br />

Entretanto quem vê sua clássica fotografia, com<br />

aquele chapelão, não exclama: “Como sua personalidade<br />

irradia superioridade!” Porque não irradia.<br />

Esses exemplos correspondem, sem dúvida, a uma<br />

respeitabilidade autêntica e muito alta, mas incutida pelo<br />

mérito do sujeito e não irradiada por sua personalidade.<br />

Portanto, não é uma respeitabilidade proveniente do<br />

homem inteiro, mas de uma zona de sua alma, de uma<br />

capacidade. A respeitabilidade de Luís XIV, ao contrário,<br />

vinha de sua personalidade e irradiava dele inteiro.<br />

Analogia com a visão beatífica<br />

Então, em face do conceito segundo o qual há uma<br />

forma especial de superioridade que irradia, o que é essa<br />

superioridade?<br />

Em certo sentido, o corpo é o símbolo da alma, e as<br />

propriedades da alma irradiam através dele quando<br />

a pessoa possui certos gêneros de atributos num grau<br />

muito alto, por onde ao ver o aspecto físico de alguém de<br />

alguma maneira se discerne a alma, e se nota, de modo<br />

espiritual, uma realidade que fica por cima da realidade<br />

física. Assim, percebe-se a respeitabilidade na alma.<br />

Trata-se, pois, de um discernimento que vai além do<br />

olhar, e corresponde a um bem de ordem espiritual percebido<br />

através da consideração dos aspectos físicos. Olhando<br />

para a face de Luís XIV, percebo simbolicamente um<br />

bem de sua alma, a majestade de um rei no sentido pleno<br />

da palavra. Assim, através das aparências sensíveis,<br />

apreendo realidades espirituais que os sentidos não atingem,<br />

mas transparecem nos aspectos físicos.<br />

Quem vê o fenômeno espiritual dessa aparência de uma<br />

qualidade moral num homem acaba adquirindo uma ideia<br />

do que é, em si mesma, essa qualidade moral. Mas não é<br />

uma noção oriunda de uma definição; é uma ideia, por assim<br />

dizer, apalpada e sentida. Por mais que alguém definisse<br />

num dicionário ou tratado de Moral o que é majestade,<br />

não teria a noção de majestade que se teve vendo Luís XIV<br />

e, mediante suas feições físicas, a alma do Rei-Sol.<br />

Apalpar assim uma coisa que, entretanto, é abstrata,<br />

leva a outro passo que conduz a Deus. Porque d’Ele não<br />

podemos dizer apenas que é majestoso, mas devemos<br />

afirmar que é a Majestade, pois Deus não somente possui,<br />

mas é as qualidades. De maneira que Ele não é bom,<br />

mas a Bondade; não é sábio, e sim a Sabedoria.<br />

Por conseguinte, se olhando para um homem vi nele a<br />

majestade de sua alma e, através dela, formei uma ideia<br />

do que é a majestade em abstrato, considerada em seu<br />

modo absoluto, eu adquiri algo que tem certa analogia<br />

com a visão beatífica. De fato, mesmo sem explicitar, em<br />

Luís XIV algo da majestade de Deus foi vista.<br />

Isso nos explica<br />

porque aqueles<br />

bandidos recuaram<br />

quando viram<br />

o cadáver de Luís<br />

XIV. Sempre que<br />

um atributo bom e<br />

digno da alma de<br />

um homem aparece<br />

com tanta intensidade,<br />

a ponto<br />

de provocar um<br />

pasmo, uma surpresa,<br />

um entusiasmo,<br />

um enlevo<br />

ou um sentimento<br />

de veneração recolhida,<br />

há uma<br />

transparência de<br />

Alberto Santos Dumont<br />

Museu Paulista da USP (CC3.0)<br />

34


algo de divino. É o modo pelo qual se chega a conhecer a<br />

Deus pela quarta via indicada por São Tomás de Aquino.<br />

Alguém poderia objetar: “Mas, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, Luís XIV<br />

não foi um grande pecador?”<br />

Em primeiro lugar, do pecado a que aludem ele se penitenciou<br />

e passou seus últimos vinte anos como um homem<br />

de vida ilibada, modelar. Mas não é propriamente<br />

o que vem ao caso, pois assim como uma pedra ou um<br />

animal pode lembrar a Deus, por alguns lados o pecador<br />

portador de uma tradição católica enquanto tal também<br />

pode recordar a Deus. Por exemplo, um pai que, embora<br />

se encontre em estado de pecado mortal, trata seu filho<br />

carinhosamente, pode lembrar a Deus enquanto o Pai<br />

carinhoso. De maneira que essa seria uma objeção infantil,<br />

a qual podemos descartar.<br />

Modalidades de majestade:<br />

paternalidade e ímpeto para destruir<br />

bem, ela deve se manifestar sob a forma de uma afinidade,<br />

uma adesão, uma homogeneidade e um desejo de ajudar,<br />

socorrer, salvar aquele bem comprometido pelas influências<br />

contrárias que ali existem.<br />

Em sentido oposto, a majestade que encontra uma resistência<br />

empedernida e é insultada, por amor à ordem<br />

que representa ela deseja esmagar. Temos, assim, as duas<br />

modalidades de majestade.<br />

Vemos isso de modo infinito e paradigmático em Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo: infinitamente manso, ensinando<br />

que se deve ser manso e humilde de coração, mas de outro<br />

lado, em alguns episódios da vida, incutindo um assombro<br />

que deixava as pessoas sem saber o que dizer, como<br />

aqueles canalhas que foram prendê-Lo e caíram com<br />

a cara no chão, simplesmente pela afirmação: “Sou Eu!”<br />

Era a manifestação da infinita majestade d’Ele. v<br />

(Extraído de conferência de 23/3/1973)<br />

Concluo com uma consideração a respeito da majestade.<br />

A verdadeira majestade, colocada diante da boa vontade<br />

de quem é menor, se traduz em paternalidade e tem<br />

vontade de proteger; posta<br />

diante da resistência de<br />

quem é ruim, ela se traduz<br />

num ímpeto para destruir.<br />

Em tese, ambas disposições<br />

se complementam<br />

e se explicam por<br />

um mesmo fundo, porque<br />

o próprio da majestade<br />

não é ser grã-fina, elegante,<br />

mas é ter a supereminência<br />

do bem. Quem a<br />

possui deve amar todos os<br />

graus que essa supereminência<br />

inclui. Consequentemente,<br />

precisa amar todas<br />

as menores e mais débeis<br />

formas de bem que<br />

possam estar exiladas<br />

numa alma, ainda quando<br />

esta tenha muitos defeitos,<br />

pois, do contrário,<br />

a majestade mentiria a si<br />

mesma.<br />

Ora, não é a majestade<br />

e sim a iniquidade que<br />

mente a si mesma. Logo,<br />

percebendo qualquer<br />

pequena modalidade de<br />

1) Pierre Corneille (*1606 - †1684). <strong>Dr</strong>amaturgo francês, considerado<br />

o fundador da tragédia (estilo de drama) francesa.<br />

2) Do espanhol: sossegai-vos.<br />

O beijo de Judas - Museu de São Marcos, Florença, Itália<br />

Fra Angelico (CC3.0)<br />

35


Luz que<br />

Gabriel K.<br />

brilha nas<br />

trevas<br />

Segundo Santo Alberto Magno,<br />

entre os significados do nome de<br />

Maria está o de ser Aquela que<br />

ilumina.<br />

Nossa Senhora é a Virgem Imaculada,<br />

e só aquilo que não tem mancha é<br />

sumamente luminoso. Maria Santíssima<br />

é, portanto, uma alma luminosa,<br />

sem nenhuma forma de pecado. Ela é<br />

a Mulher revestida de Sol, que ilumina<br />

toda a Igreja Católica, e deu ao mundo<br />

a única Luz verdadeira, Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo.<br />

Para nós a Santíssima Virgem é uma<br />

luz num sentido especial da palavra,<br />

pois é a esperança e a alegria de nossa<br />

vida, a solução para todos os nossos problemas,<br />

o farol que brilha nas trevas.<br />

Compreende-se por que a Liturgia saúda<br />

Nossa Senhora de um modo tão poético,<br />

invocando-A como Estrela do Mar e<br />

doce Mãe do Redentor.<br />

(Extraído de conferência<br />

de 12/9/1966)<br />

Imaculada Conceição - Museu<br />

Nacional Palácio do Bispo Erazm<br />

Ciolek, Cracóvia, Polônia

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