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Gestão Hospitalar N.º 22 2020

Editorial | Eduardo Sá Ferreira Assembleia da República | O impacto da pandemia na democracia Pandemia nos Açores | A resposta da Região Autónoma dos Açores Médicos Dentistas | Médicos dentistas com competências de gestão Assistentes Sociais | A intervenção do serviço social em contexto hospitalar: visão e desafios no contexto atual Técnicos auxiliares de saúde | Valorizar a formação e a progressão das categorias Biólogos | Hora do reconhecimento de todos os profissionais de saúde A realidade no Hospital de Ovar pós cerca sanitária ao concelho Respostas sociais integradas em tempo de pandemia Saúde Militar | O apoio militar de emergência Investigação e cooperação no espaço lusófono e a pandemia Homenagem a Eduardo Sá Ferreira, um tímido atuante por António Correia de Campos Homenagem a Eduardo Sá Ferreira, homem amável, perspicaz e resiliente por José Menezes Correia Homenagem a Eduardo Sá Ferreira, uma vida plena Homenagem a Eduardo Sá Ferreira, pessoa afável e gestor competente por António Marques de Lima Homenagem a Eduardo Sá Ferreira: sabendo o que sei hoje, escolhia de novo ser Administrador Hospitalar Saúde pública e conhecimento: um elenco fundamental no futuro da governação clínica Risco de Covid-19 em profissionais de saúde Direito Biomédico Reflexões éticas e normativas a propósito do artigo “direitos humanos e mortes evitáveis” Diplomacia da saúde na era Covid-19 Doenças crónicas e Covid-19 Covid-19 e doenças cérebro cardiovasculares Prémio Healthcare Excelence Prémio vai reconhecer as melhores práticas no combate à Pandemia Prémio Healthcare Excelence Huddle Meeting: a sustentabilidade da melhoria contínua

Editorial | Eduardo Sá Ferreira
Assembleia da República | O impacto da pandemia na democracia
Pandemia nos Açores | A resposta da Região Autónoma dos Açores
Médicos Dentistas | Médicos dentistas com competências de gestão
Assistentes Sociais | A intervenção do serviço social em contexto hospitalar: visão e desafios no contexto atual
Técnicos auxiliares de saúde | Valorizar a formação e a progressão das categorias
Biólogos | Hora do reconhecimento de todos os profissionais de saúde
A realidade no Hospital de Ovar pós cerca sanitária ao concelho
Respostas sociais integradas em tempo de pandemia
Saúde Militar | O apoio militar de emergência Investigação e cooperação no espaço lusófono e a pandemia
Homenagem a Eduardo Sá Ferreira, um tímido atuante por António Correia de Campos
Homenagem a Eduardo Sá Ferreira, homem amável, perspicaz e resiliente por José Menezes Correia
Homenagem a Eduardo Sá Ferreira, uma vida plena
Homenagem a Eduardo Sá Ferreira, pessoa afável e gestor competente por António Marques de Lima
Homenagem a Eduardo Sá Ferreira: sabendo o que sei hoje, escolhia de novo ser Administrador Hospitalar
Saúde pública e conhecimento: um elenco fundamental no futuro da governação clínica
Risco de Covid-19 em profissionais de saúde Direito Biomédico Reflexões éticas e normativas a propósito do artigo “direitos humanos e mortes evitáveis”
Diplomacia da saúde na era Covid-19 Doenças crónicas e Covid-19 Covid-19 e doenças cérebro cardiovasculares
Prémio Healthcare Excelence Prémio vai reconhecer as melhores práticas no combate à Pandemia
Prémio Healthcare Excelence Huddle Meeting: a sustentabilidade da melhoria contínua

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JULHO AGOSTO SETEMBRO <strong>2020</strong><br />

Edição Trimestral<br />

N<strong>º</strong> <strong>22</strong><br />

GESTÃO<br />

HOSPITALAR<br />

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA aSSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE ADMINISTRADORES HOSPITALARES<br />

Eduardo Sá Ferreira<br />

1937-<strong>2020</strong>


GH OPhghgh<br />

GESTÃO<br />

HOSPITALAR<br />

PROPRIEDADE<br />

APAH - Associação Portuguesa<br />

de Administradores <strong>Hospitalar</strong>es<br />

Parque de Saúde de Lisboa Edíficio, 11 - 1<strong>º</strong> Andar<br />

Avenida do Brasil, 53<br />

1749-002 Lisboa<br />

secretariado@apah.pt<br />

www.apah.pt<br />

DIRETOR<br />

Alexandre Lourenço<br />

DIRETORA-ADJUNTA<br />

Bárbara Sofia de Carvalho<br />

COORDENAÇÃO EDITORIAL<br />

Catarina Baptista, Miguel Lopes<br />

COORDENAÇÃO TÉCNICA<br />

Alexandra Santos<br />

EDIÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO<br />

Bleed - Sociedade Editorial e Organização<br />

de Eventos, Ltda<br />

Av. das Forças Armadas, 4 - 8B<br />

1600 - 082 Lisboa<br />

Tel.: 217 957 045<br />

info@bleed.pt<br />

www.bleed.pt<br />

PROJETO GRÁFICO<br />

Sara Henriques<br />

DISTRIBUIÇÃO<br />

Gratuita<br />

PERIODICIDADE<br />

Trimestral<br />

DEPÓSITO LEGAL N.<strong>º</strong><br />

16288/97<br />

ISSN N.<strong>º</strong><br />

0871- 0767<br />

TIRAGEM<br />

2.000 exemplares<br />

IMPRESSÃO<br />

Grafisol, Lda<br />

Rua das Maçarocas<br />

Abrunheira Business Center, 3<br />

2710-056 Sintra<br />

Esta revista foi escrita segundo as novas regras<br />

do Acordo Ortográfico<br />

Estatuto Editorial disponível em www.apah.pt<br />

GH SUMÁRIO<br />

JULHO AGOSTO SETEMBRO <strong>2020</strong><br />

4<br />

6<br />

10<br />

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84<br />

88<br />

Editorial<br />

Eduardo Sá Ferreira<br />

Assembleia da República<br />

O impacto da pandemia na democracia<br />

Pandemia nos Açores<br />

A resposta da Região Autónoma dos Açores<br />

Visão I Médicos Dentistas<br />

Médicos dentistas com competências de gestão<br />

Visão I Assistentes Sociais<br />

A intervenção do serviço social em contexto hospitalar:<br />

visão e desafios no contexto atual<br />

Visão I Técnicos auxiliares de saúde<br />

Valorizar a formação e a progressão das categorias<br />

Visão I Biólogos<br />

Hora do reconhecimento de todos os profissionais de saúde<br />

Opinião<br />

A realidade no Hospital de Ovar pós cerca sanitária ao concelho<br />

Respostas Integradas<br />

Respostas sociais integradas em tempo de pandemia<br />

Saúde Militar<br />

O apoio militar de emergência<br />

Investigação<br />

Investigação e cooperação no espaço lusófono e a pandemia<br />

Homenagem<br />

Eduardo Sá Ferreira, um tímido atuante<br />

António Correia de Campos<br />

Homenagem<br />

Eduardo Sá Ferreira, homem amável, perspicaz e resiliente<br />

José Menezes Correia<br />

Homenagem<br />

Eduardo Sá Ferreira, uma vida plena<br />

Homenagem<br />

Eduardo Sá Ferreira, pessoa afável e gestor competente<br />

António Marques de Lima<br />

Homenagem<br />

Eduardo Sá Ferreira: sabendo o que sei hoje, escolhia de novo<br />

ser Administrador <strong>Hospitalar</strong><br />

Saúde pública<br />

Saúde pública e conhecimento: um elenco fundamental no futuro<br />

da governação clínica<br />

Espaço ENSP<br />

Risco de Covid-19 em profissionais de saúde<br />

Direito Biomédico<br />

Reflexões éticas e normativas a propósito do artigo “direitos<br />

humanos e mortes evitáveis”<br />

Diplomacia em saúde<br />

Diplomacia da saúde na era Covid-19<br />

Doenças crónicas e Covid-19<br />

Covid-19 e doenças cérebro cardiovasculares<br />

Iniciativa APAH I Prémio Healthcare Excelence<br />

Prémio vai reconhecer as melhores práticas no combate à Pandemia<br />

Iniciativa APAH I Prémio Healthcare Excelence<br />

Huddle Meeting: a sustentabilidade da melhoria contínua<br />

3


GH editorial<br />

Alexandre Lourenço<br />

Presidente da APAH<br />

Eduardo Sá Ferreira<br />

Conheci o Dr. Eduardo Sá Ferreira numa<br />

edição da <strong>Gestão</strong> <strong>Hospitalar</strong> da qual fazia<br />

capa. Passei a conhecer a sua generosidade<br />

durante este meu trajeto como<br />

Presidente da Associação Portuguesa<br />

de Administradores <strong>Hospitalar</strong>es (APAH). Apesar<br />

das suas limitações físicas, sempre demonstrou uma disponibilidade<br />

ímpar para a sua Associação. Não podendo<br />

deslocar-se a Lisboa, tive a honra de receber em<br />

seu nome a Medalha de Mérito de Serviços de Saúde<br />

Grau Ouro.<br />

Foi mestre dos mestres dos meus mestres. Pouco<br />

posso acrescentar a alguém que se formou em Rennes<br />

com distinção, nos seus 30 anos assumiu a administração<br />

do Hospital de São João, fundou a APAH<br />

e foi membro da Direção da European Association<br />

of Hospital Managers, organizou o quarto congresso<br />

desta associação em Espinho, foi sub-Director Geral<br />

do Departamento de <strong>Gestão</strong> Financeira do Ministério<br />

da Saúde, etc, etc. Ainda teve disponibilidade para<br />

dedicar mais de dez anos da sua vida profissional ao<br />

desenvolvimento dos serviços de saúde em São Tomé<br />

e Príncipe: no Hospital Escolar Dr. Agostinho Neto e,<br />

posteriormente, no Centro <strong>Hospitalar</strong> de São Tomé<br />

e Príncipe.<br />

Faleceu no seu Hospital: O Hospital de São João. Em<br />

sua homenagem dedicamos esta edição da GH, reproduzindo<br />

a entrevista que deu à jornalista Carla Pedro<br />

para o livro “50 Anos em 20 Olhares, O percurso<br />

da Administração <strong>Hospitalar</strong> em Portugal”. A ler com<br />

muita atenção. António Correia de Campos, José António<br />

Menezes Correia e António Marques de Lima<br />

complementam de forma valorosa esta homenagem<br />

ao fundador e primeiro Presidente da APAH. Numa<br />

próxima edição publicaremos vários pequenos episódios<br />

que decidiu destacar nos últimos meses. “Sabendo<br />

o que sei hoje, escolhia de novo ser administrador<br />

hospitalar” disse. Da memória e ensinamentos de Sá<br />

Ferreira, voltamos à tremenda realidade da Covid-19.<br />

No passado mês, em parceria com a Ordem dos<br />

Médicos e com o apoio da Roche, lançámos o Movimento<br />

Saúde em Dia. Um movimento que pretende<br />

alertar para a segurança no acesso a serviços de saúde<br />

e para a necessidade de assegurar o acesso a cuidados<br />

de saúde. Mais informação em www.saudeemdia.pt.<br />

Sobre a pandemia, contamos com a participação da<br />

Deputada Maria Antónia Almeida Santos (Presidente<br />

da Comissão Parlamentar de Saúde) e Teresa Luciano<br />

(Secretária Regional de Saúde dos Açores). Luís Miguel<br />

Ferreira fala do Hospital de Ovar no Pós-pandemia.<br />

O Tenente General Joaquim Formeiro Monteiro<br />

fala-nos do papel das Forças Armadas no contexto<br />

de emergência. Francisco Pavão aborda a diplomacia<br />

da saúde em contexto de pandemia e Filomeno<br />

Fortes fala-nos da relevância da investigação e cooperação<br />

no espaço lusófono.<br />

Problema presente, Lúcia Cardoso apela à intervenção<br />

sobre as causas sociais da doença de forma a garantir<br />

a continuidade de cuidados. Na mesma linha, Eugénio<br />

Fonseca da Caritas fala-nos do imperativo em cuidar<br />

através de respostas integradas.<br />

Na sequência da edição anterior, damos espaço aos<br />

representantes das várias profissões de saúde para exprimirem<br />

a sua visão sobre a evolução dos últimos meses.<br />

Desta feita contamos com os contributos das Ordens<br />

dos Médicos Dentistas e Biólogos, Associação de<br />

Profissionais de Serviço Social e Associação Portuguesa<br />

de Técnicos Auxiliares de Saúde. Em complemento,<br />

no espaço ENSP, António Sousa-Uva e colegas<br />

dissertam sobre o risco de Covid-19 em profissionais<br />

de saúde.<br />

Esta é a sua <strong>Gestão</strong> <strong>Hospitalar</strong> de sempre. A acompanhar<br />

os tempos, dedicada a Eduardo Sá Ferreira, um<br />

administrador hospitalar maior. Ã<br />

C<br />

M<br />

Y<br />

CM<br />

MY<br />

CY<br />

CMY<br />

K<br />

4


GH Assembleia da República<br />

O IMPACTO DA PANDEMIA<br />

NA DEMOCRACIA<br />

Maria Antónia de Almeida Santos<br />

Presidente da CP Saúde<br />

As pandemias, ao longo da história, têm<br />

tido inegavelmente um denominador<br />

comum: o facto de serem todas elas<br />

algo que surge de uma forma abrupta,<br />

pela perturbação inesperada que traz<br />

à vida em si mesma e pelas alterações a que obriga a<br />

nível dos comportamentos e das formas de estar quotidianas.<br />

A atual pandemia radicalizou, porém, esta noção<br />

de “abrupto”. A essa radicalização não pode ser alheia a<br />

assimetria, na corrente pandemia, na reação (em todas<br />

as valências da palavra) dos vários países, comunidades<br />

e agregados políticos que constituem o conjunto das nações<br />

do mundo.<br />

Chega a ser até paradoxal. Dada a facilidade comunicacional<br />

ao dispor de todos nós atualmente, como foi possível<br />

que o vírus entrasse em modo pandémico de forma<br />

tão rápida? Desde já, pela inabilidade e pela incapacidade<br />

de articulação institucional à escala global. Habituado às<br />

progressivas descobertas científicas e médicas e até a uma<br />

confiança amplamente alicerçada na conquista tecnológica,<br />

o mundo viu-se, de forma súbita, confrontado com<br />

algo potencialmente letal, mesmo tendo tido, na maioria<br />

dos casos (sobretudo no ocidente) antecipadamente notícia<br />

do mesmo. Hoje, para perceber a noção de “abrupto”<br />

aplicada à pandemia, é preciso acentuar-lhe não só a<br />

dimensão do “desconhecido” do ponto de vista científico<br />

e médico-terapêutico, mas também a de algo que foi desvalorizado<br />

por incapacidade de coordenação global. A<br />

facilidade da mobilidade global, a par da vulnerabilidade<br />

social, acabou por revelar-se o maior móbil inicial da transmissão<br />

do vírus.<br />

A produção de conhecimento acerca da pandemia tem<br />

sido abundante e transversal a todas as áreas. Esta é a<br />

pandemia em que a humanidade se encontra num estádio,<br />

mais do que nunca, propício à reflexão. Nessa<br />

mesma reflexão, há dois conceitos que se destacam: o<br />

de “crise” e o de “oportunidade”. Não como sinónimos<br />

ou como antónimos, ou sequer polos, mas mais como<br />

pontos sequenciais. O primeiro como ponto de partida,<br />

pela descrição que faz da situação e daquilo que lhe deu<br />

origem. O segundo, pelas propostas orientadas sobretudo<br />

para a mudança e para um ponto de chegada em que<br />

estaremos não só melhor, do ponto de vista da saúde<br />

e da vida, mas melhores enquanto civilização, enquanto<br />

seres humanos e enquanto sociedade democrática.<br />

O primeiro passo da ciência em relação ao vírus que enfrentamos<br />

foi a sua identificação e catalogação. Covid-19<br />

foi o nome atribuído pela Organização Mundial da Saúde<br />

à doença provocada pelo novo coronavírus SARS-<br />

-CoV-2, passível de causar uma infeção respiratória grave,<br />

como a pneumonia. Foi identificado pela primeira vez em<br />

humanos, no final de 2019. Muito mais haverá para dizer,<br />

do ponto de vista virológico, clínico, científico e não só.<br />

Mas gostaria de realçar a expressão “catástrofe natural”,<br />

que ouvi pela primeira vez aplicada à Covid-19, ao ex-<br />

-presidente da Federal Reserve norte-americana que liderou<br />

antes e depois da crise financeira de 2008, em declarações<br />

à CNBC, em março do corrente ano. Mais recentemente,<br />

também o virologista alemão Christian Drosten,<br />

cientista de referência e assessor do governo alemão para<br />

os temas da Covid-19, se socorreu da mesma expressão,<br />

numa entrevista para a Cimeira Mundial da Saúde (CMS).<br />

Considero a expressão particularmente bem-sucedida<br />

por mais do que um motivo. Primeiro, porque ao referirse<br />

a uma “catástrofe”, projeta a importância da resposta<br />

sistémica e da responsabilidade conjunta que lhe é inerente.<br />

Segundo, porque enfatiza o facto óbvio de os vírus<br />

existirem, de facto, na natureza e de serem, também eles,<br />

um circunstancialismo da própria vida. Em suma, anula a<br />

vontade de culpar que tem sido manifestada por muitos<br />

responsáveis políticos nesta questão.<br />

Mas não só. Entender a Covid-19 como uma catástrofe<br />

natural é também realçar o seu caráter de processo disruptivo<br />

entre o ambiente natural e o sistema social. Obviamente,<br />

não é o mesmo que as catástrofes naturais que<br />

há séculos assolam o planeta, como os sismos, a erupção<br />

de vulcões, furacões ou cheias. Um pouco à semelhança<br />

das alterações climáticas, sendo distinta de todas as<br />

primeiras, partilha com elas um denominador comum: o<br />

facto de verem a sua intensidade e frequência ampliadas<br />

pela intervenção humana. O conhecimento sobre o vírus<br />

e a sua origem que a comunidade científica tem até<br />

agora, corrobora este facto. No caso em concreto da Covid-19,<br />

essa intervenção humana deu-se na cadeia ambiental,<br />

com as decorrentes perturbações na cadeia alimentar<br />

e na qualidade da mesma.<br />

Há também outro facto pertinente (também ele com uma<br />

particularidade) ao reconhecimento do caráter de catástrofe<br />

natural da Covid-19. É certo que nesta pandemia<br />

(tal como em outras), a vulnerabilidade das diferentes<br />

sociedades depende do grau de desenvolvimento das<br />

mesmas, sobretudo a nível das respostas estruturais profiláticas<br />

e da terapêutica. Tivemos um ótimo exemplo<br />

disso a propósito da aquisição de materiais de proteção<br />

individual em contexto global. No entanto, a invulnerabilidade<br />

já não é uma certeza nos países desenvolvidos e<br />

caracterizados por elevada riqueza e elevada capacidade<br />

tecnológica e financeira.<br />

Não era possível tentar perceber os efeitos da pandemia<br />

sem esta breve introdução. Importante, também, é delinear<br />

minimamente o conceito de saúde a que se recorre<br />

e qual a relação do mesmo com a democracia. Não<br />

sendo a intenção deste artigo, de todo, uma definição<br />

conceptual, opto por realçar aquilo que nesta matéria a<br />

pandemia veio evidenciar. Logo à partida, enfatizou que o<br />

universo da saúde é bem mais do que a mera inexistência<br />

de uma doença. É o resultado de uma conjugação de<br />

fatores que condiciona o nosso bem-estar, em toda a sua<br />

integralidade. Tivemos uma perceção nítida disto mesmo,<br />

no confinamento e a propósito das perturbações que<br />

este trouxe a nível da economia e a nível familiar e psico-comportamental.<br />

Se maiores índices de pobreza, desigualdade,<br />

desemprego e desânimo geral vão originar estados<br />

de saúde da população que se vão revelar a curto<br />

ou médio prazo e que vão ser prejudiciais, as perspetivas<br />

de saúde pública não podem permanecer alheias a esse<br />

facto e têm de incorporar essa mesma realidade na delineação<br />

do conceito de saúde.<br />

Quando falamos da relação entre saúde e democracia,<br />

é impossível desvalorizar o conceito de sustentabilidade<br />

democrática. Quando falamos de sustentabilidade, pensamos<br />

em sustentabilidade económica, social ou ambiental<br />

e sempre do ponto de vista que implica a gestão de um<br />

ou mais recursos que temos por finitos. No entanto, raramente<br />

falamos na sustentabilidade democrática de uma<br />

determinada sociedade. Talvez isso se deva à dificuldade<br />

em mensurar aquilo que seria uma “sustentabilidade democrática”.<br />

Como fazê-lo, então?<br />

Uma das formas inequívocas de fazê-lo é observar a relação<br />

entre a democracia e a saúde pública. A história ensina-nos<br />

que é a democracia o regime que consagra o direito<br />

à saúde numa Constituição, o único que verdadeiramente<br />

a concretiza como fundamental, se pensarmos<br />

que sem saúde não se vive ou, vive-se mal. Temos como<br />

exemplo a criação do nosso Serviço Nacional de Saúde<br />

(SNS) ou até o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro,<br />

criado na década de oitenta do século passado, em pleno<br />

processo de redemocratização do Brasil. O nosso SNS<br />

permitiu-nos que os resultados em saúde em Portugal se<br />

comparem, em todos os índices, aos dos países mais desenvolvidos.<br />

É inegável a conclusão de que as instituições<br />

e as práticas democráticas influenciam o desenvolvimento<br />

humano em várias valências, incluindo o bem-estar e }<br />

6 7


GH Assembleia da República<br />

“<br />

É PRECISO NÃO ABDICAR<br />

DA REFLEXÃO EM TORNO<br />

DA QUESTÃO DO INVESTIMENTO<br />

EM SAÚDE. É PRECISO,<br />

MAIS DO QUE NUNCA,<br />

DAR SAÚDE À DEMOCRACIA.<br />

”<br />

a saúde pública. O primeiro impacto da pandemia na democracia<br />

deu-se no aspeto formal, desde logo nos parlamentos.<br />

Aos parlamentos cabia (e coube), enquanto instituição<br />

democrática, representar os cidadãos durante um<br />

ciclo político. Essas funções são naturalmente mantidas durante<br />

uma crise. No entanto, os parlamentos, em diálogo<br />

com as instituições governativas e executivas, tiveram de<br />

assegurar a harmonia entre as responsabilidades constitucionais<br />

em que se insere a garantia da continuidade de uma<br />

governação democrática e os poderes especiais conferidos<br />

para o combate ao vírus. Esse equilíbrio conseguiu-se<br />

pela monitorização e pela adequação de legislação.<br />

Por exemplo: Portugal, em pleno combate à pandemia,<br />

viu-se confrontado com a necessidade de adquirir equipamentos<br />

(de proteção individual e não só) num mercado<br />

global selvático, assoberbado pela emergência, pela<br />

escassez e pela limitação dos fornecedores. Daí decorreu<br />

a exigência de simplificação dos processos de aquisição e<br />

de flexibilização da contratação pública. Desse circunstancialismo<br />

(entre outros), decorreu também a necessidade<br />

de harmonizar os pressupostos constitucionais que salvaguardam<br />

a transparência, com o imperativo de salvar vidas<br />

em tempo útil. Foi criado um regime excecional para<br />

uma situação absolutamente excecional sem abdicar nunca<br />

do escrutínio e da publicação da contratação.<br />

Um segundo exemplo é a questão das liberdades e garantias<br />

em contexto epidémico/pandémico. Nas questões<br />

da saúde pública e no contexto desta crise, as nossas instituições<br />

parlamentares optaram pelo princípio básico da<br />

gradação e do equilíbrio entre a liberdade e a segurança,<br />

como algo que deve ser observado sempre. Poderia alguma<br />

vez, a título de exemplo, a georreferenciação ser<br />

utilizada como forma de controlo dos infetados? E em<br />

que moldes? E quanto ao tratamento de dados, quem<br />

monitoriza a anonimização? São dois exemplos práticos,<br />

pela positiva e circunscritos a Portugal. Em Portugal, as<br />

instituições democráticas, onde se inclui a Comissão Parlamentar<br />

de Saúde, não se demitiram da sua função durante<br />

a pandemia, acreditando sempre que é a vida quem<br />

tem de presidir às decisões políticas.<br />

E o resto do mundo? A democracia tem enfrentado nos<br />

últimos tempos algo que se assemelha a uma recessão, do<br />

ponto de vista dos valores que a suportam. Trump e Bolsonaro<br />

são a materialização (considerada em tempos apenas<br />

um risco) do populismo. Será possível que esta recessão<br />

seja potenciada pela corrente pandemia, com o risco de<br />

que se torne uma grande “depressão democrática”, com o<br />

autoritarismo a espalhar-se pelo mundo, por contaminação?<br />

Para já, o autoritarismo tem sido menos efetivo no que<br />

respeita à implementação de medidas profiláticas, nomeadamente<br />

na redução da mobilidade. A transparência,<br />

alicerçada na cooperação multigovernamental e na partilha<br />

multilateral de dados tem sido mais eficaz na construção<br />

de uma cadeia de confiança segura e mais capaz<br />

de combater as cadeias de transmissão. Falta perceber o<br />

impacto nas eleições, de uma forma geral. A instrumentalização<br />

da pandemia, por parte de movimentos populistas,<br />

terá custos para a democracia. Trump prepara-se já,<br />

por exemplo, para usar a pandemia como desculpa para<br />

contestar resultados eleitorais.<br />

Para caracterizar o momento que estamos a atravessar,<br />

temos de juntar ao “abrupto”, à “crise” e à “oportunidade”,<br />

mais um conceito-chave - o do “imponderável”. Mas<br />

nunca de uma forma derrotista e sempre com esperança.<br />

Para tal, tenho de reforçar que é preciso não abdicar<br />

da reflexão em torno da questão do investimento em<br />

saúde. É preciso, mais do que nunca, dar saúde à democracia.<br />

Do ponto de vista das políticas de saúde, a discussão<br />

dicotómica entre custo ou investimento vinha paulatinamente<br />

perdendo o seu espaço, reduzindo-se a um<br />

mero confronto retórico. Entre os mais diversos agentes<br />

do setor e não só, era já aceite de forma quase unânime<br />

que o investimento em saúde se traduz em múltiplas dimensões<br />

sociais, culturais, laborais e com isso igualmente<br />

económicas e financeiras. De algum modo, o foco da preocupação<br />

era mais o da sustentabilidade dos sistemas, debatendo<br />

o impacto dos cuidados de saúde no absentismo<br />

e na produtividade, por exemplo.<br />

Neste aspeto, a pandemia (também aqui) tem servido como<br />

wake up call. É que hoje é por de mais evidente que o<br />

investimento nos sistemas de saúde delineado com base<br />

científica e responsável não traz apenas sustentabilidade<br />

aos sistemas - traz sustentabilidade também à vida humana<br />

e à sua sobrevivência no planeta. E ao fazê-lo, traz também<br />

mais sustentabilidade à democracia. Ã<br />

8


GH Pandemia nos Açores<br />

A RESPOSTA DA REGIÃO<br />

AUTÓNOMA DOS AÇORES<br />

Teresa Machado Luciano<br />

Secretária Regional de Saúde<br />

O<br />

mundo mudou nos primeiros meses<br />

de <strong>2020</strong>. Governos, agentes económicos,<br />

sistemas e profissionais de saúde e<br />

de proteção civil e toda a população viram-se<br />

confrontados com uma emergência<br />

de saúde pública global que pôs à prova todas as<br />

formas de organização e de vida em comunidade. A este<br />

coronavírus chamaram SARS-CoV-2.<br />

A ameaça de sobrecarga e potencial colapso dos sistemas<br />

e serviços de saúde, resultante de um contágio generalizado,<br />

adquire severos contornos num arquipélago composto<br />

por nove ilhas, três delas com hospital. Por isso, o<br />

Governo dos Açores manteve-se atento e, quando o<br />

momento chegou, respondeu de forma assertiva.<br />

O objetivo foi, desde o primeiro momento, atrasar a chegada<br />

do surto à Região.<br />

Considerando a data de eventos chave, é possível ter uma<br />

visão mais alargada da posição da Região na comparação<br />

com o plano internacional (Figura 1).<br />

Potenciar fronteiras<br />

A evolução da pandemia determinou a tomada de um<br />

conjunto de medidas de carácter extraordinário em tempos<br />

de paz, algumas com impacto nos direitos, liberdades<br />

e garantias individuais. Durante dois meses, foram impostas<br />

severas restrições à mobilidade dos cidadãos, como<br />

forma de travar a propagação do vírus. A realidade arquipelágica<br />

constituiu-se, assim, em oportunidade para conter<br />

a pandemia.<br />

O escalonamento dos estados de prontidão previstos no<br />

Regime Jurídico do Sistema de Proteção Civil da Região<br />

Autónoma dos Açores permitiu adequar a resposta em<br />

função da severidade do quadro epidemiológico para cada<br />

uma das nove ilhas, adotando medidas objetivas e<br />

adaptadas a cada realidade. Foram determinados cordões<br />

sanitários em todos os concelhos de São Miguel, ilha mais<br />

afetada pela pandemia.<br />

Dando nota da preocupação com a exposição ao exterior,<br />

designadamente através do desembarque de passageiros<br />

na Região, foi suspensa a autorização de atracagem de<br />

navios de cruzeiro e iates nos portos e marinas dos Açores.<br />

Houve também uma graduação crescente das medidas<br />

que incidiram sobre a atividade da companhia SATA Air<br />

Açores, numa primeira fase através da concentração da<br />

sua capacidade operacional nos aeroportos de São Miguel<br />

e Terceira, passando à suspensão parcial em função<br />

da situação epidemiológica vivida em determinadas ilhas e<br />

culminando com a suspensão integral da atividade.<br />

No plano sanitário, foi determinado, primeiro, o confinamento<br />

obrigatório de todos os passageiros desembarcados<br />

nos Açores em unidade hoteleira, por 14 dias, medida<br />

esta que vigorou até 17 de maio, dia em que foi anunciada<br />

a decisão do Tribunal Judicial de Ponta Delgada relativamente<br />

a uma providência de habeas corpus aí intentada.<br />

A partir de 17 de maio, por forma a conter o surto pandémico<br />

na Região, foi determinado que os passageiros teriam<br />

de realizar teste de despiste ao SARS-CoV-2 e quarentena<br />

durante 14 dias.<br />

Posteriormente, em 28 de maio, determinou-se que os<br />

passageiros que chegassem do exterior à Região deixariam<br />

de estar sujeitos a isolamento profilático, mantendo-<br />

-se a necessidade de teste negativo feito antes da viagem<br />

ou à chegada aos Açores.<br />

Num primeiro momento, todos os passageiros desembarcados<br />

na Região estavam obrigados a realizar dois novos<br />

testes, no 5.<strong>º</strong> e no 13.<strong>º</strong> dia a contar da data de realização<br />

do primeiro teste de despiste ao SARS-CoV-2. Neste<br />

Figura 1<br />

momento, vigora a realização de um segundo teste.<br />

Preparar para a pandemia<br />

Os responsáveis políticos e as autoridades de saúde regionais<br />

mantiveram-se atentos desde o surgimento dos primeiros<br />

casos de pneumonia em Wuhan, no início de dezembro.<br />

A 16 de janeiro, a Direção Regional da Saúde emitiu as primeiras<br />

orientações para os viajantes que se dirigiam às regiões<br />

da China afetadas. Essas orientações foram sendo<br />

atualizadas, à medida que o surto foi evoluindo.<br />

No dia 26 de janeiro de <strong>2020</strong>, quando surgiu o primeiro<br />

caso suspeito em Portugal, já o Serviço Regional de Saúde<br />

e o Serviço Regional de Proteção Civil e Bombeiros dos<br />

Açores estavam a preparar a sua resposta, em plena articulação,<br />

beneficiando do facto de estarem sob tutela comum,<br />

no âmbito da Secretaria Regional da Saúde.<br />

A estratégia foi delineada, assentando em duas pedras basilares:<br />

aproveitamento das fronteiras naturais da Região<br />

e alargamento do rastreio e do diagnóstico de Covid-19.<br />

A preparação da Região iniciou-se com a criação de um<br />

Grupo Técnico de Coordenação, de natureza multidisciplinar,<br />

e de uma Sala de Crise, vitais para a coordenação<br />

de esforços e para o eficaz alinhamento das ações.<br />

Atenta a importância da comunicação do risco em saúde<br />

pública, foi delineado o plano de comunicação.<br />

Foram emitidas orientações para as unidades de saúde e<br />

para as respostas sociais, relativamente aos procedimentos<br />

a adotar em caso suspeito de infeção e à atualização dos<br />

planos de contingência, bem como para sectores estratégicos,<br />

como o portuário, o aeroportuário e o hoteleiro,<br />

e para a generalidade dos cidadãos.<br />

A pandemia determinou a mobilização de um avultado, mas<br />

necessário, investimento financeiro, tanto ao nível da infraestrutura<br />

existente, como no reforço dos recursos humanos<br />

e na aquisição de equipamentos e dispositivos clínicos com<br />

vista a uma resposta adequada a esta crise sanitária.<br />

O estado de relativa impreparação mundial para uma crise<br />

de saúde pública global desta dimensão, designadamente<br />

ao nível da disponibilidade de equipamentos de proteção<br />

individual, ventiladores e outros consumíveis clínicos, associada<br />

à inexistência de uma abordagem farmacológica eficaz,<br />

exerceu uma profunda pressão sobre a gestão.<br />

Num mercado global que registava intensa procura, o<br />

Serviço Regional de Saúde organizou-se para o levantamento<br />

centralizado de recursos e necessidades em matéria<br />

de internamento, ventiladores, capacidade laboratorial,<br />

recursos humanos e equipamentos de proteção individual,<br />

respondendo com um trabalho cooperativo entre<br />

todas as unidades de saúde para a sua aquisição e gestão. }<br />

10 11


GH Pandemia nos Açores<br />

“<br />

PROCURANDO ADIAR A ENTRADA<br />

DO CORONAVÍRUS NA REGIÃO,<br />

ALARGOU-SE O CONCEITO<br />

DE CASO SUSPEITO,<br />

ABRANGENDO INDIVÍDUOS<br />

ORIUNDOS DE TODAS AS ÁREAS<br />

COM TRANSMISSÃO LOCAL.<br />

Nas nove ilhas, desencadeou-se um intenso programa de<br />

formação de profissionais de saúde e bombeiros, responsáveis<br />

pelo transporte de doentes, para a correta utilização<br />

dos equipamentos de proteção individual.<br />

Procurando adiar a entrada do coronavírus na Região,<br />

alargou-se o conceito de caso suspeito, abrangendo indivíduos<br />

oriundos de todas as áreas com transmissão local.<br />

Introduziu-se, no final de fevereiro, procedimentos para a<br />

investigação epidemiológica dos viajantes que desembarcavam<br />

nos portos e aeroportos da Região e, em colaboração<br />

com a Universidade dos Açores, iniciou-se a vigilância<br />

de alunos, investigadores e docentes em programas<br />

de mobilidade.<br />

Foram restringidas as visitas nas unidades de saúde e estruturas<br />

residenciais para idosos.<br />

Mais tarde, a rede de laboratórios da Região foi alargada,<br />

através de convenção, incentivando os passageiros que<br />

embarcam em território continental português e na Região<br />

Autónoma da Madeira a chegar aos Açores com o seu<br />

teste à infeção por SARS-CoV-2 já realizado e negativo.<br />

Em meados de setembro, contando os mais de 125 mil<br />

testes realizados nos Açores e as 33 mil análises efetuadas<br />

ao abrigo da convenção estabelecida com laboratórios<br />

no exterior, tínhamos um rácio de 645 testes por cada<br />

mil residentes, quase o dobro da Região Autónoma da<br />

Madeira e quase o triplo de Portugal Continental.<br />

Através da convenção com laboratórios no exterior, foi<br />

possível detetar, até 15 de setembro, mais de seis dezenas<br />

de casos positivos antes do embarque, contribuindo<br />

decisivamente para a proteção da saúde de residentes e<br />

visitantes dos Açores.<br />

Neste momento, os viajantes dispõem da aplicação web<br />

My Safe Azores, disponível em https://mysafeazores.com/,<br />

que permite concretizar, numa só interação e antecipadamente,<br />

todos os passos antes da chegada à Região.<br />

Também o esclarecimento e o apoio ao cidadão foram definidos<br />

como eixos centrais na resposta, tendo sido criada,<br />

no dia do surgimento do primeiro caso positivo na Região,<br />

a Linha Açores de Esclarecimento Não Médico Covid-19<br />

- 800 29 29 29, para esclarecimento de dúvidas relativas a<br />

emprego, segurança social e apoios sociais e económicos.<br />

Foi ainda criada uma equipa para esclarecimento de dúvidas<br />

através de correio eletrónico (esclarecimentocovid19@azores.gov.pt),<br />

bem como um portal para agregação<br />

de toda a informação (https://destinoseguro.azores.gov.pt/).<br />

Retomar e recuperar a atividade assistencial<br />

A par da resposta à crise sanitária, foi necessário preparar<br />

a retoma, de forma estruturada e em articulação com<br />

todos os agentes e sectores da atividade.<br />

A <strong>22</strong> de maio, o Governo dos Açores abriu a Agenda para<br />

o Relançamento Social e Económico à participação dos<br />

parceiros sociais, ação vital para um regresso ordenado à<br />

nova realidade, mas também para salvaguardar uma retoma<br />

económica consistente, procurando mitigar o risco do<br />

surgimento de uma segunda vaga pandémica.<br />

No âmbito do Serviço Regional de Saúde, foi solicitada às<br />

Unidades de Saúde de Ilha e aos Hospitais a elaboração<br />

de um plano de recuperação, integrando a atividade produzida,<br />

estimativas da produção a realizar até ao final do<br />

ano e o cronograma da retoma da atividade assistencial,<br />

de acordo com as especificidades de cada unidade de<br />

saúde e da comunidade que esta serve.<br />

Foram determinados como eixos da recuperação da atividade<br />

assistencial o reforço da capacidade administrativa<br />

e organizacional, a identificação e a resposta às situações<br />

prioritárias, a promoção do acesso aos cuidados de saúde,<br />

a garantia da integralidade de cuidados e a coordenação<br />

e integração de cuidados.<br />

Para garantir uma resposta adequada às necessidades<br />

emergentes, quer ao nível da infraestrutura de cuidados<br />

à população infetada, quer ao nível da estrutura de saúde<br />

pública, foi necessário alterar o padrão de resposta dos<br />

serviços de saúde.<br />

Obedecendo ao imperativo de garantir a segurança dos<br />

utentes e adaptando-se às circunstâncias, mais de 40%<br />

das consultas dos cuidados de saúde primários realizam-<br />

-se agora por via indireta, isto é, seja por telefone, correio<br />

eletrónico ou com recurso a outras tecnologias.<br />

O Serviço Regional de Saúde garantiu, nos últimos meses,<br />

todas as cirurgias urgentes e inadiáveis. E, desde maio, temos<br />

assistido a um movimento seguro de retoma nos<br />

blocos operatórios dos nossos hospitais.<br />

O rastreio das doenças oncológicas, que esteve suspenso<br />

durante três meses, já regressou à normalidade, ainda que<br />

obrigando à mobilização de recursos adicionais.<br />

A recuperação da atividade assistencial cumpre-se, deste<br />

modo, de forma paulatina, mas segura, como exige a proteção<br />

da saúde, em todas as suas vertentes.<br />

Enfrentar a segunda vaga<br />

O Serviço Regional de Saúde e os seus profissionais enfrentam<br />

agora o desafio maior da recuperação da atividade<br />

assistencial, num contexto que se adivinha particularmente<br />

complexo, pela proximidade da época gripal e<br />

pelos prenúncios e riscos de uma segunda vaga, a nível<br />

global, de Covid-19.<br />

Dentro em breve, teremos vários vírus respiratórios em<br />

circulação, obrigando a maior controlo epidemiológico e<br />

ao reforço das medidas de segurança preconizadas nos<br />

planos de contingência das unidades de saúde.<br />

Neste contexto, o objetivo será proteger, sobretudo, as<br />

camadas mais vulneráveis da população e defender a capacidade<br />

do Serviço Regional de Saúde.<br />

Para fortalecer a resposta, foi aprovado um reforço financeiro<br />

para as nossas unidades de saúde e hospitais, elevando<br />

o orçamento da Saúde para 357 milhões de euros<br />

e o plano de investimentos anual para 60 milhões de<br />

euros, valores históricos.<br />

O Governo dos Açores desenvolve agora esforços para antecipar<br />

e alargar a vacinação contra a gripe nos grupos vulneráveis,<br />

em particular os indivíduos com mais de 65 anos.<br />

Aos nossos profissionais exigimos agora mais do que nunca.<br />

Mas estamos mais preparados, em instalações, equipamentos<br />

e, sobretudo, em conhecimento e competências.<br />

Avaliar esforços<br />

A luta à escala global contra um vírus desconhecido para<br />

a humanidade obrigou à tomada de medidas de natureza<br />

absolutamente excecional, com o intuito último de salvar vidas<br />

e evitar o colapso dos sistemas e serviços de saúde. Os<br />

custos humanos, sociais, de saúde e económicos que dessa<br />

luta resultam só poderão ser estimados no longo prazo.<br />

A Região Autónoma dos Açores implementou medidas<br />

assertivas, mas eficazes, para prevenção e controlo da disseminação<br />

da doença, tanto no que à Saúde Pública concerne,<br />

como nos restantes sectores de atividade, tendo<br />

em consideração a transversalidade da crise pandémica.<br />

Os últimos meses foram árduos para as organizações públicas,<br />

para as empresas, para quem teve de tomar decisões<br />

em contexto de incerteza, para os profissionais da<br />

saúde e da proteção civil e para as forças de segurança,<br />

na linha da frente deste combate. E, sobretudo, para cada<br />

um dos Açorianos, das nossas nove ilhas.<br />

Mas o Serviço Regional de Saúde e os seus profissionais<br />

responderam à chamada com escrupuloso sentido do dever,<br />

plena dedicação ao serviço público e o conhecimento<br />

e a competência que lhes são reconhecidos.<br />

Fizemos o que dita a ciência, num contexto em que o conhecimento<br />

se constrói dia a dia. E será a ciência que, a longo<br />

prazo, avaliará as medidas implementadas nas nossas<br />

nove ilhas, no país e no mundo. Ã<br />

”<br />

Perante as dificuldades de assegurar o transporte de equipamentos<br />

encomendados a fornecedores chineses, foram<br />

fretados dois aviões.<br />

O orçamento das Unidades de Saúde de Ilha e dos Hospitais<br />

sofreu um reforço de 15 milhões de euros, foram adquiridos<br />

equipamentos de proteção individual no valor de<br />

9,3 milhões de euros, aumentou-se a capacidade de testagem<br />

dos dois laboratórios públicos regionais.<br />

Foram criados dez quartos de pressão negativa no Hospital<br />

do Divino Espírito Santo de Ponta Delgada e três quartos<br />

de pressão negativa no Hospital da Horta, que se juntaram<br />

assim aos 13 quartos existentes no Hospital do Santo<br />

Espírito da Ilha Terceira.<br />

A este esforço de investimento público, juntaram-se cidadãos<br />

e entidades privadas, através de donativos de valor<br />

“<br />

superior a 620 mil euros.<br />

Para agilizar a resposta às necessidades emergentes da crise<br />

sanitária, foram suspensos os procedimentos relativos<br />

às autorizações para contratação de pessoal e aquisição<br />

A LUTA À ESCALA GLOBAL<br />

de serviços.<br />

A Linha de Saúde Açores - 808 24 60 24, para informação,<br />

CONTRA UM VÍRUS DESCONHECIDO<br />

aconselhamento e encaminhamento, foi reforçada, tanto<br />

em instalações, como em recursos humanos, adivinhando-se<br />

a forte procura que viria a registar. Foi introduzido<br />

PARA A HUMANIDADE OBRIGOU<br />

À TOMADA DE MEDIDAS<br />

o algoritmo dedicado ao rastreio e encaminhamento de<br />

casos suspeitos de Covid-19 e a utilização da Linha pas-<br />

DE NATUREZA ABSOLUTAMENTE<br />

sou a ser gratuita para os cidadãos.<br />

Foi desenvolvida a maior campanha de comunicação de<br />

EXCECIONAL, COM O INTUITO<br />

que a Saúde tem memória na Região, envolvendo televisão,<br />

rádio, imprensa e internet, procurando-se fomentar<br />

ÚLTIMO DE SALVAR VIDAS.<br />

a adoção de comportamentos preventivos, bem como o<br />

”<br />

conhecimento sobre o novo coronavírus e as suas formas<br />

de transmissão.<br />

12 13


GH VISÃO MÉDICOS DENTISTAS<br />

MÉDICOS DENTISTAS COM<br />

COMPETÊNCIAS DE GESTÃO<br />

Miguel Pavão<br />

Bastonário da Ordem dos Médicos Dentistas<br />

Cumpriram-se os primeiros seis meses desde<br />

que foi oficialmente anunciado pela<br />

OMS que o mundo tinha uma nova pandemia,<br />

causada pela Covid-19 e o nosso<br />

País, não sendo exceção, vive períodos excecionais<br />

e incomparáveis, mas sem nenhuma certeza e<br />

qualquer garantia de serem tempos irrepetíveis.<br />

Este longo semestre transformou as nossas vidas e rotinas<br />

e deixou marcas indeléveis em diversas dimensões que se<br />

acentuarão nos tempos vindouros, comprovando a saúde<br />

como bem único para a sociedade e demonstrando<br />

que os profissionais de saúde são agora os exércitos de<br />

salvação de um inimigo invisível e que ameaça a humanidade,<br />

colocando em causa a sua organização social.<br />

O que tem sido difícil em tempos de intranquilidade, é<br />

dominar o fator imprevisibilidade! O desconhecimento<br />

da tipologia deste novo vírus faz com que os tempos de<br />

espera por terapias ou soluções a esta nova ameaça nos<br />

reduzam a uma dura perceção, acerca da incapacidade<br />

humana e técnica perante um inimigo nanoscópico e desconhecido.<br />

Em Portugal como no Mundo, esta pandemia veio apenas<br />

reforçar o que já era uma evidência: a saúde é um assunto<br />

sério e deve ser priorizado. Para tal, os países mais preparados,<br />

com modelos de gestão e organização, são os que<br />

mais beneficiam. E por muito que custe acreditar, nem<br />

sempre são os mais ricos os que melhor ficam na fotografia<br />

final, perante uma crise de saúde pública à escala global,<br />

que não respeita fronteiras ou diferencia PIB’s estatais.<br />

É certo que uma pandemia coloca à prova todo um sistema<br />

de saúde, levando muitas vezes os profissionais de<br />

saúde à exaustão e os políticos à exasperação. Não sei se<br />

há possibilidade de ter uma visão positiva desta crise sa-<br />

nitária, mas há uma circunstância que não devemos desaproveitar<br />

em toda esta epidemia: devemos fazer uma reflexão<br />

acerca da importância da saúde e da gestão na saúde.<br />

Será que as prioridades em saúde estão corretas? Será que<br />

o modelo de gestão na saúde é o adequado? E a formação<br />

dos profissionais de saúde vai de encontro aos problemas<br />

futuros? São os modelos de gestão utilizados devidamente<br />

pelos serviços e entidades de saúde?<br />

Em Portugal, contrariamente a outras especialidades médicas,<br />

a medicina dentária é exercida maioritariamente em<br />

consultórios privados - segundo dados do Observatório<br />

da Saúde Oral, o que pressupõe que os médicos dentistas<br />

que gerem esses consultórios possuam ou necessitem<br />

de conhecimentos de gestão.<br />

A medicina dentária é uma profissão baseada em competências<br />

médicas e na ciência, onde a maior parte dos<br />

novos conhecimentos adquiridos são baseados no método<br />

científico. De forma contrária, os princípios subjacentes<br />

à prática de gestão são uma fusão de conhecimentos<br />

baseados na comunicação entre médicos dentistas, seus<br />

empregados e outros profissionais com experiência na<br />

área da gestão de consultórios dentários.<br />

De facto a área da gestão é vasta e complexa, pois além<br />

de possuir diferentes níveis, engloba muitas outras áreas<br />

que estão interligadas entre si numa organização, numa<br />

clínica. No entanto, esta área ainda não é muito dominada<br />

pelos médicos dentistas cuja formação assenta sobretudo<br />

nas ciências médicas e técnicas das ciências dentárias.<br />

E a incontestável mais-valia que as competências na área da<br />

gestão podem ser atualmente, e no futuro, para a sobrevivência<br />

e sucesso dos consultórios dentários, num quadro<br />

de plena mudança da sociedade e da forma como os<br />

clínicos se expõem à sociedade que necessita dos seus<br />

serviços. Os médicos dentistas são treinados para diagnosticar,<br />

tratar, e prevenir as doenças e condições relacionadas<br />

com os dentes e cavidade oral, pelo que a necessidade<br />

de rapidamente ganhar competências clínicas e<br />

científicas deixa pouco tempo para formação adicional.<br />

Quando entram no mercado de trabalho, a maioria dos<br />

médicos dentistas associam-se a outros profissionais ou<br />

tornam-se proprietários de micro empresas, o que requer<br />

um conjunto de aptidões, nomeadamente na área<br />

da gestão.<br />

Muitos médicos dentistas saem dos seus cursos com a<br />

sensação que não estão preparados para começar e gerir<br />

um consultório dentário. Devido às mudanças no mercado<br />

serem rápidas e dinâmicas, nem sempre é possível validar<br />

com estudos na literatura, as experiências efetuadas<br />

na área da gestão em medicina dentária.<br />

Profissionais de saúde, como os médicos dentistas, estão<br />

sujeitos a serem gestores das suas próprias empresas. A<br />

competitividade no mercado em que os profissionais da<br />

medicina dentária atuam articula-se em duas dimensões:<br />

a qualidade do ato profissional e todos os processos que<br />

envolvem a dimensão da gestão do seu negócio.<br />

O exercício da profissão liberal leva o profissional a deparar-se<br />

com as dificuldades inerentes à organização do<br />

negócio, desde aspetos legais da instalação, pagamentos<br />

e recebimentos, contratação de funcionários e compra<br />

de materiais.<br />

Tais atividades envolvem as quatro áreas funcionais da administração<br />

(gestão de pessoas, marketing, produção e finanças).<br />

“O profissional liberal precisa diversificar as suas habilidades<br />

para conseguir atuar nos vários aspetos inerentes ao<br />

exercício da profissão.” (Ribas, Siqueira e Binotto, 2010).<br />

Para os médicos dentistas jovens ou mais experientes, as<br />

competências na área da gestão são uma forma de obterem<br />

as habilidades e a confiança que precisam para a<br />

prática da medicina dentária a um alto nível ético e clínico.<br />

As rápidas mudanças no ambiente económico e os seus<br />

impactos na prática da medicina dentária sugerem que os<br />

médicos dentistas formados precisam, mais do que nunca,<br />

de mais conhecimentos nas áreas da gestão, como em<br />

marketing e contabilidade.<br />

O futuro da medicina dentária será similar a muitos outros<br />

negócios. Os que serão capazes de sobreviver e prosperar<br />

serão aqueles que possuírem sistemas de gestão<br />

e com excelente serviço ao cliente.<br />

O médico dentista deve possuir três habilidades para gerir<br />

o seu consultório: habilidades técnicas (conhecimento<br />

científico e da especialidade que executa); habilidades humanas<br />

(ser um líder, motivar a equipa e estar atento às<br />

expetativas desta); e habilidades conceituais (entender o<br />

mercado, auto-conhecimento, conhecer problemas internos<br />

da sua atividade e perspicácia na sua resolução).<br />

A gestão consiste no planeamento, organização, direção<br />

e controlo de todas as atividades que ocorrem na empresa.<br />

Cabe ao gestor, neste caso ao médico dentista, tomar<br />

decisões e ter uma visão estratégica de forma a conseguir<br />

realizar os objetivos da sua empresa.<br />

A contabilidade é uma boa ferramenta para o processo<br />

de tomada de decisões, pois sistematiza toda a informação<br />

da atividade da empresa. Através da análise das demonstrações<br />

financeiras é possível ao médico dentista saber<br />

o estado de “saúde” do seu negócio.<br />

O marketing é um valioso instrumento que permite captar<br />

clientes para o consultório, nomeadamente através do<br />

marketing interno e externo. O médico dentista precisa<br />

ter uma visão do mercado, saber qual o público-alvo pretendido<br />

e ainda saber criar valor no serviço prestado. Esta<br />

criação de valor pode ser obtida através de um serviço<br />

de excelência em que a experiência percecionada pelo<br />

paciente excede as expetativas deste.<br />

A equipa é de extrema importância para o sucesso do<br />

consultório pois acaba por se traduzir na imagem que o<br />

cliente tem sobre a clínica. A clínica, deve possuir pessoal<br />

qualificado, motivado e que saiba trabalhar em equipa.<br />

Assim, o médico dentista, como gestor de pessoas, deve<br />

possuir capacidades de comunicação, motivação, liderança<br />

e coordenação da equipa. Ã<br />

14 15


GH VISÃO assistentes sociais<br />

A INTERVENÇÃO DO SERVIÇO<br />

SOCIAL EM CONTEXTO<br />

HOSPITALAR: VISÃO E DESAFIOS<br />

NO CONTEXTO ATUAL<br />

Júlia Cardoso<br />

Assistente social, Doutora em Serviço Social pelo ISCTE-IUL<br />

e Presidente da Direção da APSS, Associação de Profissionais<br />

de Serviço Social<br />

A<br />

luta contra pestes e doenças virais<br />

que afetaram a sociedade ao longo<br />

dos tempos foi alvo de novos olhares<br />

a partir do séc. XIX, não só por influência<br />

do desenvolvimento da medicina<br />

como também pela emergência da ciência social<br />

e do que representou enquanto método científico para<br />

o estudo da sociedade e dos fenómenos que nela ocorrem.<br />

Em consequência, é nesta época em que surge um<br />

novo olhar sobre a saúde, relacionando-a com outras<br />

dimensões, nomeadamente com as condições sociais<br />

em que a maioria da população vivia. É na I Conferência<br />

Internacional de Saúde, realizada em Paris em 1851,<br />

que os países são desafiados a adotar medidas comuns<br />

para combate às doenças de incidência e propagação<br />

comunitária que, à época, vitimavam milhares de pessoas,<br />

como a peste, febre amarela e cólera. Documentos<br />

da época dão realce ao facto de as doenças mais se<br />

propagarem em meios sociais onde a pobreza e as más<br />

condições sanitárias existiam, podendo afirmar-se que é<br />

no final do séc. XIX que começa a sentir-se a necessidade<br />

da um ação articulada e coordenada entre a saúde<br />

pública e a assistência social, sendo esta assegurada quer<br />

por médicos, quer por elementos de organizações filantrópicas,<br />

sobretudo elementos femininos.<br />

A necessidade de se profissionalizarem as funções no<br />

campo da assistência social leva não só à criação de<br />

escolas para este fim como à produção de conteúdos<br />

formativos que corporizem a orientação para uma intervenção<br />

de natureza científica, baseada em métodos<br />

de atuação próprios, racionais. É a premência em chamar<br />

para o campo de ação outro tipo de atores, que<br />

não apenas médicos e enfermeiros, para lidar com as<br />

crises sanitárias que, se concluiu, encontravam na pobreza,<br />

nas más condições de vida e de higiene o principal<br />

meio de propagação.<br />

A publicação, em 1917, do Diagnóstico Social, de Mary<br />

Richmond, é a evidência da relação entre a Saúde e o<br />

Serviço Social, especificamente, entre os cuidados médicos<br />

e a intervenção no contexto de proximidade às<br />

pessoas e comunidades. Curiosamente, não só a denominação<br />

vai beber ao diagnóstico médico, como as<br />

suas etapas apresentam semelhanças com o mesmo. Tal<br />

como na vertente médica, também o diagnóstico social<br />

constitui, desde então, o elemento base para a definição<br />

do plano de intervenção a realizar pela assistente<br />

social (aqui utilizada a forma feminina porque, à época,<br />

o Serviço Social era uma profissão exercida exclusiva e<br />

obrigatoriamente apenas por mulheres).<br />

Em Portugal, é relevante o papel de Ricardo Jorge na<br />

criação de uma estrutura destinada à defesa da saúde<br />

da população, impelido, sobretudo, pela necessidade de<br />

combater a peste bubónica que afetou o país no final do<br />

séc. XIX e, de modo mais intenso, a cidade do Porto. O<br />

Instituto Central de Higiene, fundado em 1899, tornouse<br />

o embrião da formação de profissionais que viriam a<br />

atuar junto das populações e nas suas condições reais<br />

de vida, como é o caso dos profissionais que, anos mais<br />

tarde e sob influência francesa, seriam denominados de<br />

assistentes sociais.<br />

Na mesma linha de Ricardo Jorge, também o médico<br />

Pacheco de Miranda apontava o caráter limitado da intervenção<br />

centrada na patologia clínica. Em 1925, em<br />

sessão organizada pela Sociedade das Ciências Médicas<br />

de Lisboa, o médico Pacheco de Miranda apontava<br />

como limitada a intervenção hospitalar ao centrar-se na<br />

patologia clínica da pessoa, ao considerar “os doentes de<br />

forma isolada do seu meio, sem ter em conta as causas e<br />

consequências sociais da doença” (Matias, 1999, p. 110).<br />

Contudo, e apesar da evolução que se foi verificando 1 ,<br />

só em 1946, através da Lei da Organização <strong>Hospitalar</strong><br />

(Lei 2011/46 de 2 abril) é feita referência ao caráter imprescindível<br />

do diagnóstico social como complemento<br />

do clínico e os serviços hospitalares passam a contar<br />

com o Serviço Social na sua estrutura organizativa, tendo<br />

os profissionais desta área como funções a intervenção<br />

nos fatores, de natureza não clínica, influenciadores<br />

da sua recuperação e integração, a mediação entre os<br />

serviços de Saúde e o meio social, sendo esta intervenção<br />

identificada como “função humanizadora, na relação<br />

trifacetada doente-família-médico” (Teles, 1990; Portugal-MS,<br />

1998, apud Guadalupe, 2011:109).<br />

Até à criação do Serviço Nacional de Saúde, em 1979<br />

(Lei n.<strong>º</strong> 56/79) o Serviço Social é exercido, principalmente,<br />

em contexto hospitalar e as suas funções não<br />

sofreram alterações substantivas, concentrando-se na<br />

intervenção nos fatores psicossociais que podem interferir<br />

na doença (Guadalupe, 2011: 112). O que vamos<br />

percebendo, pelos dados da história, pelos documentos<br />

produzidos mas também pela análise da realidade<br />

da intervenção do Serviço Social na Saúde, é que a/o<br />

assistente social intervém nos problemas da sociedade<br />

não estando a sua solução na sua dependência ou responsabilidade<br />

direta. Não deixa, porém, de ser responsabilidade<br />

e dever do profissional atuar na promoção<br />

do bem-estar individual e familiar, no fortalecimento do<br />

tecido social e na garantia de uma sociedade mais justa.<br />

Na atualidade, os desafios da profissão mantêm-se relacionados<br />

com o campo de ação tradicional do Serviço<br />

Social, como é o caso da pobreza e das condições de<br />

precariedade das famílias ao nível da saúde, habitação e<br />

educação, mas também com problemas sociais que têm<br />

emergido na sociedade: uns relacionados com as alterações<br />

demográficas e estrutura sociofamiliar (isolamento }<br />

16 17


GH VISÃO assistentes sociais<br />

“<br />

NÃO FORAM POSTOS EM CAUSA<br />

OS DIREITOS DOS DOENTES,<br />

DESIGNADAMENTE O DIREITO<br />

AOS CUIDADOS, À SEGURANÇA<br />

E AO BEM ESTAR, O QUE EXIGIU<br />

A INTENSIFICAÇÃO DA FUNÇÃO<br />

DE MEDIAÇÃO NA RELAÇÃO<br />

EQUIPAS DE SAÚDE.<br />

”<br />

social, institucionalização), outros com os as migrações<br />

e refugiados, outros ainda com o ambiente, alterações<br />

climáticas e desenvolvimento tecnológico, também eles<br />

produtores de desigualdades sociais.<br />

A situação de pandemia que vivemos, sendo um problema<br />

de saúde pública, veio tornar ainda mais visíveis as<br />

vulnerabilidades sociais já existentes e fez emergir outras<br />

relacionadas com a diminuição da atividade económica<br />

e com o confinamento obrigatório, com consequências<br />

ao nível da saúde, sobretudo da saúde mental.<br />

Neste contexto particular, continua a exigir-se da/o assistente<br />

social um modo de agir que reflita a sua capacidade<br />

de análise da realidade social e competência<br />

técnica e ética para intervir nela. E, também importante,<br />

a dimensão política da profissão, não só no que diz respeito<br />

à operacionalização das medidas de política mas<br />

também na capacidade de influenciar os diferentes poderes<br />

para a sua adequação às necessidades.<br />

As/os assistentes sociais que exercem funções em hospitais<br />

foram, tal como os demais profissionais que nesse<br />

espaço intervêm, confrontados com a necessidade de<br />

adaptação rápida de métodos de trabalho, incluindo ao<br />

nível das formas de comunicação com doentes e com<br />

o seu meio. Tornou-se evidente, no meio hospitalar,<br />

que o reforço dos cuidados sociais em contexto da Covid-19<br />

era (é) condição essencial para responder a necessidades,<br />

muitas delas já conhecidas, mas cujos efeitos<br />

colaterais associados à pandemia poriam em risco quer<br />

a resposta das unidades de saúde, quer a própria saúde<br />

dos doentes.<br />

Os hospitais puderam contar com a intervenção das/<br />

os assistentes sociais que, cumprindo a sua missão e as<br />

funções específicas da profissão no campo da mediação<br />

entre as equipas de cuidados clínicos, doentes, famílias e<br />

estruturas da comunidade, procuraram, também, apoiarse<br />

mutuamente, através da produção de um conjunto<br />

de guias orientadores para a intervenção de emergência.<br />

No quadro das responsabilidades da Associação de<br />

Profissionais de Serviço Social, enquanto estrutura representativa<br />

da classe profissional, e com a participação<br />

ativa de um conjunto de assistentes sociais, foram elaborados<br />

e disponibilizados o Plano de Emergência do<br />

Serviço Social da Saúde Covid-19, Diretivas de Teletrabalho<br />

para Assistentes Sociais em Situações de Emergência<br />

de Saúde Pública, Guias de Intervenção Covid-19<br />

na área da Saúde Mental (Contexto <strong>Hospitalar</strong>, Equipas<br />

Técnicas de IPSS, Equipas Técnicas Especializadas em<br />

Comportamentos Aditivos e Dependências).<br />

De uma forma geral, os guias forneceram orientação ao<br />

nível da reorganização do Serviço Social na Unidade de<br />

Saúde, na definição de procedimentos de intervenção<br />

em situações de isolamento profilático e preventivo na<br />

comunidade e no âmbito do trabalho em rede focado<br />

na situação de emergência.<br />

Como afirmado anteriormente, os tempos atuais têm<br />

sido desafiantes para o Serviço Social, particularmente<br />

para o Serviço Social hospitalar. Porém, e do contacto<br />

que vamos tendo com os profissionais, pese embora as<br />

adaptações que tiveram de ser introduzidas no que diz<br />

respeito à realização dos atos próprios de assistente social,<br />

não foram postos em causa os direitos dos doentes,<br />

designadamente o direito aos cuidados, à segurança e<br />

ao bem estar, o que exigiu a intensificação da função de<br />

mediação na relação equipas de saúde, pessoa doente,<br />

famílias/ rede informal, entidades da comunidade. Esta é<br />

uma das funções mais importantes no quadro da intervenção<br />

hospitalar e uma das dimensões da humanização<br />

dos cuidados e em que o contributo e participação do<br />

Serviço Social tem de ser reconhecido.<br />

Não poderíamos deixar de referir o problema antigo e<br />

complexo dos denominados internamentos sociais. A<br />

incapacidade das famílias, por motivos diversos, e a falta<br />

de respostas na comunidade têm sido apontadas como<br />

as principais razões para o prolongamento da permanência<br />

em hospital, com os riscos que tal permanência<br />

comporta tanto do ponto de vista da saúde como do<br />

bem-estar ao nível mental e social. Esta é uma das áreas<br />

de intervenção do Serviço Social em que as dificuldades<br />

mais se têm feito sentir e que exige políticas públicas<br />

direcionadas a um problema que encerra em si outros<br />

problemas; mais do que ficar sob a responsabilidade do<br />

meio hospitalar ou alvo de afirmações que traduzem<br />

uma leitura parcelar da realidade social contemporânea,<br />

este é, de facto, um problema que merece atenção e<br />

atuação dos poderes públicos.<br />

Sabe-se que a maioria das altas hospitalares diz respeito<br />

a pessoas com mais de 65 anos, que não requerem<br />

atendimento como o previsto em situações agudas mas<br />

sim de uma abordagem mais global, que integre os diversos<br />

níveis de cuidados do sistema de saúde e respostas<br />

sociais do sistema de segurança social. O momento<br />

que vivemos tem sido também desafiante a este nível e<br />

uma das aprendizagens é a de que também neste setor<br />

são urgentes outras e melhores formas de resposta às<br />

necessidades, com a participação das autarquias locais e<br />

das organizações do setor solidário.<br />

Não sendo uma ilha, o Serviço Social na instituição hospitalar<br />

tem de continuar o percurso iniciado há mais de<br />

cem anos, atualizando as suas práticas em função dos<br />

contextos e das necessidades e com grau de exigência<br />

elevado quer no exercício profissional, quer na relação<br />

com os diferentes poderes, políticos e organizacionais.<br />

Os utilizadores dos serviços de saúde têm o direito a<br />

cuidados de qualidade, prestados com base na premissa<br />

da interdependência biopsicossocial e assentes em procedimentos<br />

que evitem a fragmentação e a descontinuidade<br />

dos cuidados. É grande a responsabilidade das/os<br />

assistentes sociais, neste âmbito.<br />

A organização hospitalar tem de ser o espaço de concretização<br />

do que, há cerca de um século, já se reivindicava<br />

como base para a intervenção em saúde: as causas<br />

e consequências sociais da doença, privilegiando-se a<br />

visão holística do ser humano. Ã<br />

1. Uma excelente cronologia sobre o Serviço Social na Saúde, até 2010, é feita<br />

por Sónia Guadalupe (Guadalupe, S., Anotações cronológicas sobre a trajetória do<br />

Serviço Social no Sistema de Saúde em Portugal. Revista Serviço Social & Saúde.<br />

UNICAMP Campinas, v. X, n. 12, Dez. 2011).<br />

• Alves, F. A., Ricardo Jorge e a Saúde Pública em Portugal - Um "Apostolado<br />

Sanitário". Scielo, Portugal. Arq Med v.<strong>22</strong> n.2-3 Porto. 2008.<br />

• Associação de Profissionais de Serviço Social (<strong>2020</strong>) Plano de Emergência do<br />

Serviço Social da Saúde COVID-19 (SS-Covid-19).<br />

• Espírito Santo, I. A intervenção do assistente social na saúde: «um fator preponderante».<br />

Just News, 16 abril 2019. https://justnews.pt/artigos/a-intervencao-do-assistente-social-na-saude-um-fator-preponderante#.X3BeaxSSnIW<br />

• Holofote nos cuidados. Texto não publicado. <strong>2020</strong>.<br />

• Guadalupe, S., Anotações cronológicas sobre a trajetória do Serviço Social no Sistema<br />

de Saúde em Portugal. Revista Serviço Social & Saúde. UNICAMP Campinas,<br />

v. X, n. 12, Dez. 2011.<br />

• Martinelli, M.L., Serviço Social na área da saúde: uma relação histórica. Intervenção<br />

Social, 28, 2003. p. 9-18.<br />

• Martins, A.M.C., Génese, Emergência e Institucionalização do Serviço Social Português.<br />

Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e a Tecnologia,<br />

1999.<br />

• Matias, M.A., Génese e emergência do Serviço Social na Saúde. Intervenção Social,<br />

20, 1999, p. 91-114.<br />

18


GH VISÃO técnicos auxiliares de saúde<br />

VALORIZAR A FORMAÇÃO E A<br />

PROGRESSÃO DAS CATEGORIAS<br />

QUERIA AINDA SALIENTAR QUE TEMOS AINDA MENOS AUXILIARES DE AÇÃO MÉDICA E QUE NÃO<br />

TEMOS SEQUER UMA CARREIRA ESPECIFICA PARA OS AUXILIARES. TEMOS MUITO MEDO DAS<br />

“CARREIRAS ESPECIAIS E DEPOIS ACABAMOS POR SER MAIS INEFICIENTES DO QUE GOSTARÍAMOS.<br />

Marta Temido, In Público, 13 de julho de 2018<br />

”<br />

Adão Artur M. Rocha<br />

Presidente da Direção da APTAS - Associação Portuguesa<br />

dos Técnicos Auxiliares de Saúde<br />

Muito aqui poderíamos escrever sobre<br />

esta nobre profissão, e o que é ser<br />

técnico auxiliar de saúde, por certo<br />

não esgotaríamos o tema, nem nos<br />

tornaríamos repetitivos no mesmo.<br />

Contudo, o nosso trabalho desenvolvido nas instituições<br />

onde é abrangente a nossa existência, profissão essa com<br />

mais de 40 anos, com provas dadas da sua importância<br />

para o bom funcionamento das mesmas, mas que desde<br />

o fatídico ano de 2008, operou-se uma mudança na persecução<br />

do cariz inserido no que a profissão representava<br />

para os profissionais e para a sociedade no geral.<br />

O reconhecimento da importância desta profissão, está<br />

explícita na Diretiva de 2013/55/UE do Parlamento Europeu<br />

e do Conselho, de 20 de novembro de 2013, que<br />

altera a Diretiva 2005/36/CE, relativa ao reconhecimento<br />

das qualificações profissionais e o Regulamento (UE)<br />

1024/2012, relativo à cooperação administrativa através<br />

do Sistema de Informação do Mercado Interno (Regulamento<br />

IMI), continuando o Estado Português em falta<br />

pelo não cumprimento dessa Diretiva.<br />

Podemos afirmar que Portugal é o único estado membro<br />

da EU que permite que entrem para estas instituições, de<br />

suma importância no nosso Serviço Nacional de Saúde e<br />

também o Social, pessoas sem qualificações ou certificação,<br />

para prestar um serviço de extrema responsabilidade<br />

para com seres humanos.<br />

Algo incompreensível, irresponsável, e podemos afirmar<br />

transgressora das diretrizes comunitárias, pois essa formação<br />

é ministrada pelo próprio Estado, o mesmo que<br />

defende a qualificação do capital humano, onde se gastam<br />

milhões de euros, sejam eles provenientes dos nossos impostos,<br />

ou dos fundos europeus, e acabam por não serem<br />

aproveitados a 100%, pois contratam pessoas sem qualquer<br />

qualificação para o exercício da profissão.<br />

Na verdade, em nosso entendimento, o Estado querendo<br />

retificar um pouco o erro cometido pelo anterior Governo,<br />

e pelos que sucederam, em 2013 através da ACSS -<br />

Administração Central do Sistema de Saúde IP, emanou<br />

uma circular normativa, com as prioridades formativas e de<br />

qualificação, que enviou para todos os Hospitais do SNS,<br />

visando a formação específica para os assistentes operacionais<br />

(ex. auxiliares de ação médica), numa perspetiva da<br />

formação contínua, de acordo com o Referencial de Qualificação<br />

dirigido ao Técnico Auxiliar de Saúde, publicado no<br />

Catálogo Nacional de Qualificações da Agência Nacional<br />

para a Qualificação, I.P.”. Normativa essa que nunca chegou<br />

a ser cumprida na íntegra por nenhuma unidade hospitalar.<br />

Em 2015, o Excelentíssimo Senhor Primeiro Ministro, António<br />

Costa respondeu a uma pergunta feita pelo técnico<br />

auxiliar de saúde (AO), João Fael, peticionário das duas petições<br />

apresentadas à Assembleia da República, que o indagava<br />

sobre se pretendia regulamentar a categoria de "técnico<br />

auxiliar de saúde", e qual a intenção relativamente aos<br />

ex. "auxiliares de ação médica". Obtendo como resposta a<br />

que passamos a transcrever:<br />

“Assim, consideramos necessária a regulamentação no sentido<br />

de valorizar os contextos de formação e de progressão<br />

das categorias em causa. A diferenciação, no contexto<br />

do SNS, deverá ser garantida de modo a permitir a requalificação<br />

técnica que permita potenciar o contributo específico<br />

destes profissionais no contexto das equipas e das instituições<br />

de saúde. Deverá igualmente ser promovida a diferenciação<br />

por áreas e funções no sentido de melhorar a<br />

eficiência global do sistema, bem como a melhoria das respetivas<br />

condições de operacionalidade. Neste sentido, defendemos<br />

a abertura aberto um processo de diálogo a fim<br />

de iniciar a revisão deste processo.<br />

Cordiais saudações. Um abraço. António Costa e Adalberto<br />

Campos Fernandes.”<br />

Perante esta resposta, entendemos lamentavelmente que<br />

em Portugal as leis não são respeitadas, e que a democracia<br />

vai sendo cada vez mais posta em causa, em especial por<br />

aqueles que a deveriam defender, honrando abril de 1974,<br />

pois como emana a nova lei de bases da Saúde, Artigo 3/<br />

base 28/29 referindo que:<br />

Base 28 - Profissionais de saúde<br />

1. São profissionais de saúde os trabalhadores envolvidos<br />

em ações cujo objetivo principal é a melhoria do estado de<br />

saúde de indivíduos ou das populações, incluindo os prestadores<br />

diretos de cuidados e os prestadores de atividades<br />

de suporte.<br />

2. Os profissionais de saúde, pela relevante função social<br />

que desempenham ao serviço das pessoas e da comunidade,<br />

estão sujeitos a deveres éticos e deontológicos acrescidos,<br />

nomeadamente a guardar sigilo profissional sobre a<br />

informação de que tomem conhecimento no exercício da<br />

sua atividade. }<br />

20 21


GH VISÃO técnicos auxiliares de saúde<br />

“<br />

TODOS OS PROFISSIONAIS<br />

DE SAÚDE QUE TRABALHAM<br />

NO SNS TÊM DIREITO A UMA<br />

CARREIRA PROFISSIONAL<br />

QUE RECONHEÇA A SUA<br />

DIFERENCIAÇÃO.<br />

3. O Estado deve promover uma política de recursos humanos<br />

que valorize a dedicação plena como regime de<br />

trabalho dos profissionais de saúde do SNS, podendo,<br />

para isso, estabelecer incentivos.<br />

Como reflexão, podemos afirmar que as mudanças operadas<br />

pela Lei em 2008, remetendo 450 carreiras para a<br />

categoria de assistente operacional, equiparando assim<br />

profissões com níveis de exigência bem acima da média<br />

e de máxima importância para estas instituições, a simples<br />

indiferenciados.<br />

Gerou esta Lei um grave problema, pois sendo esta uma<br />

profissão de desgaste rápido, seja ele físico e acima de tudo<br />

emocional, e com um grau de risco infeccioso acima da<br />

média, obter profissionais qualificados e dedicados à missão<br />

que as instituições necessitam, para que o seu objetivo<br />

fulcral seja alcançado, que é a excelência do atendimento<br />

aos seus utentes/doentes, é cada vez mais difícil, pois a informação<br />

que passa é de uma desqualificação profissional<br />

e pessoal cada vez mais aberrante no nosso panorama<br />

nacional.<br />

Na verdade, esta situação acaba por envergonhar o Estado<br />

Português, pois apesar de várias iniciativas perpetradas por<br />

alguns profissionais ex. auxiliares de saúde, que destaco,<br />

João Fael e Jorge Leandro, sendo o primeiro, responsável<br />

das duas petições entregues na Assembleia da República,<br />

tendo a primeira sido objeto de dois Projetos-lei n<strong>º</strong> 1073/<br />

XIII/4.ª (PAN) - Regulamenta a Profissão do Técnico Auxiliar<br />

de Saúde, e o Projeto-lei n<strong>º</strong> 1088/XIII/4.ª (BE) - Cria<br />

e regula a Carreira de Técnico Auxiliar de Saúde.<br />

• Projeto-lei n<strong>º</strong> 1073/XIII/4.ª (PAN) - Regulamenta a Profissão<br />

de Técnico Auxiliar de Saúde;<br />

Favor: BE, PCP, PEV, PAN e Ninsc<br />

Contra: PS<br />

Abstenção: PSD, CDS-PP e 1 Deputado do PS<br />

Rejeitado o Projeto-lei.<br />

• Projeto-lei n<strong>º</strong> 1088/XIII/4.ª (BE) - Cria e Regula a Carreira<br />

de Técnico Auxiliar de Saúde;<br />

Favor: BE, PCP, PEV e PAN<br />

Contra: PS<br />

Abstenção: PSD, CDS-PP, Ninsc e 1 Deputado do PS<br />

Rejeitado o Projeto-lei.<br />

Obtendo como resultado esta vergonhosa votação, pelos<br />

partidos com responsabilidade na situação em que<br />

se encontra a nossa carreira profissional, esperando com<br />

dignidade e perseverança, que o resultado favorável da<br />

segunda petição, da reunião da 13ª comissão, no PP dia<br />

<strong>2020</strong>-07-14, acerca da apreciação e votação do relatório<br />

final da Petição n.<strong>º</strong> 1/XIV/1.ª - Criação da Carreira de Técnico<br />

Auxiliar de Saúde, que foi aprovada por unanimidade<br />

pelos grupos parlamentares presentes, seja essa também<br />

objeto de um Projeto-lei.<br />

É neste sentido que a APTAS foi formada, tendo na sua<br />

génese a persecução de um objetivo primordial, que é<br />

reposição de uma profissão, que é de suma importância<br />

para a sociedade, dando aos profissionais, que todos os<br />

dias dão de si em prol dos outros, o digno reconhecimento<br />

da sua missão e serem inseridos como profissionais nas<br />

equipas especiais da saúde, dando-lhe um bem-estar pessoal,<br />

que vai muito além de qualquer questão monetária.<br />

Dentro deste pressuposto, a APTAS detém na sua raiz de<br />

existência, uma visão holística sobre o técnico auxiliar de<br />

saúde, e o que ele representa dentro do Serviço Nacional<br />

de Saúde, sabendo que será um trabalho árduo, pois<br />

vencer dogmas dos vários quadrantes, e em especial no<br />

seio dos profissionais inseridos nesta profissão, será uma<br />

cruzada, entendimento esse que nos levou a elaborar o<br />

nosso Código Deontológico.<br />

Como disse Fernando Pessoa: “Matar o sonho é matarmo-nos.<br />

É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos<br />

de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente<br />

nosso”.<br />

Esta é sem sombra de dúvida a frase que nos define, a AP-<br />

TAS nasceu de um sonho, sonho esse tornado realidade,<br />

mas não se estingue o ónus do sonho após a realização do<br />

mesmo, sonhamos elevar a nossa profissão a patamares de<br />

excelência, onde os objetivos primordiais sejam, educar,<br />

formar e qualificar todos aqueles que estejam abertos a<br />

serem Técnicos Auxiliares de Saúde, na sua excelência da<br />

profissão. Assim sendo, o que perspetivamos como base<br />

fundamental para esta nobre profissão, numa visão presente/futura,<br />

é qualificar todos os assistentes operacionais,<br />

que se encontrem a prestar serviços dentro das funções<br />

exigidas pelo referencial de técnico auxiliar de saúde, sendo<br />

esse o documento usado e aprovado pela ANQEP<br />

- Agência Nacional para a Qualificação e o Ensino Profissional,<br />

e que dentro desta mesma profissão se enquadrem<br />

as várias especificidades da mesma; auxiliares de enfermagem,<br />

alimentação, limpezas, descontaminação e desinfeções,<br />

estão descritas no referido referencial.<br />

Contudo, queremos que essa formação seja ministrada por<br />

profissionais do setor, sejam eles enfermeiros e ou técnicos<br />

auxiliares de saúde, pois sabemos que em várias<br />

entidades formativas e escolares temos pessoas a dar formação<br />

em áreas tão sensíveis, que de nada entendem ou<br />

percebem sobre o que é ser TAS (não se pode por um<br />

professor de ciências, a explicar como se prestam cuidados<br />

de higiene a um doente).<br />

Sabemos que a internet é pródiga em informação sobre a<br />

matéria, mas a experiência do que se faz na prática não é<br />

ensinada pelos manuais, são sim um complemento, esta é<br />

a fórmula de podermos ter profissionais qualificados, empenhados<br />

e motivados, para dar ainda mais e melhores<br />

cuidados aos que deles precisam.<br />

Demograficamente, Portugal está a ficar cada vez mais envelhecido,<br />

a família, que há umas décadas atrás era ainda<br />

alargada, passou rapidamente para uma família nuclear, o<br />

suporte familiar modificou-se completamente nos últimos<br />

20 anos, os vários ganhos a nível socioeconómico, bem<br />

como a evolução da ciência, resultou com o prolongamento<br />

da esperança de vida, pelo que teremos cada vez mais<br />

idosos, mas a precisar cada vez mais de cuidados.<br />

Isso reflete-se em especial nos doentes de longa duração,<br />

esgotando a capacidade das unidades de cuidados continuados<br />

e ou mesmo os lares, mas também será uma população<br />

muito mais esclarecida sobre os seus direitos, isso<br />

traz um desafio acrescido para os profissionais de saúde, e<br />

para o Serviço Nacional de Saúde.<br />

Com este intuito a APTAS foca a sua visão de querer preparar<br />

melhor os técnicos auxiliares de saúde, sejam os atuais<br />

assistentes operacionais, bem como os que se estão a formar.<br />

O saber-saber, o saber-fazer e em especial o saber-<br />

-ser/estar, são fundamentais para a persecução de um Serviço<br />

Nacional de Saúde de excelência.<br />

As instituições devem em nosso entender adotar políticas<br />

de contratação orientadas para profissionais que preencham<br />

estes requisitos. Ter um SNS, que preconiza a humanização<br />

como regra fundamental, não se pode dar ao desplante<br />

de contratar qualquer um para esta nobre missão<br />

que é cuidar dos outros.<br />

A procura da excelência nos cuidados sejam eles quais forem,<br />

tendo como pedra basilar a humanização, é sem<br />

sombra de dúvida a nossa bússola, e um dos objetivos da<br />

APTAS, contudo temos clareza de pensamento, sabemos<br />

dos constrangimentos das instituições, por isso queremos<br />

ser um parceiro ativo na resolução dos mesmos, mas nunca<br />

descurando a nossa principal orientação e doutrina, que<br />

é a defesa dos profissionais, técnicos auxiliares de saúde,<br />

na verdade a respetiva humanização terá de existir em<br />

primeiro para com os próprios profissionais de saúde, só<br />

assim eles estarão em condições de a prestar a 100% aos<br />

que dependem deles. Ã<br />

”<br />

3.Os profissionais de saúde têm direito a aceder à formação<br />

e ao aperfeiçoamento profissionais, tendo em conta<br />

a natureza da atividade prestada, com vista à permanente<br />

atualização de conhecimentos.<br />

4. Os profissionais de saúde têm o direito e o dever de,<br />

inseridos em carreiras profissionais, exercer a sua atividade<br />

de acordo com a legis artis e com as regras deontológicas,<br />

devendo respeitar os direitos da pessoa a quem prestam<br />

cuidados, mas podendo exercer a objeção de consciência,<br />

nos termos da lei.<br />

5. O membro do Governo responsável pela área da saúde<br />

organiza um registo nacional de profissionais de saúde,<br />

incluindo aqueles cuja inscrição seja obrigatória numa associação<br />

pública profissional.<br />

6. Os profissionais de saúde que exerçam funções no âmbito<br />

de estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde<br />

estão sujeitos a auditoria, inspeção e fiscalização do ministério<br />

responsável pela área da saúde, sem prejuízo das<br />

atribuições cometidas a associações públicas profissionais.<br />

“<br />

7. Os profissionais de saúde em regime de trabalho independente<br />

devem ser titulares de seguro contra os riscos<br />

decorrentes do exercício da sua atividade.<br />

Base 29 - Profissionais do SNS<br />

O SABER-FAZER E EM ESPECIAL<br />

1. Todos os profissionais de saúde que trabalham no SNS<br />

têm direito a uma carreira profissional que reconheça a<br />

O SABER-SER/ESTAR,<br />

sua diferenciação na área da saúde.<br />

SÃO FUNDAMENTAIS PARA<br />

2. O Estado deve promover uma política de recursos humanos<br />

que garanta:<br />

A PERSECUÇÃO DE UM SERVIÇO<br />

a) A estabilidade do vínculo aos profissionais;<br />

b) O combate à precariedade e à existência de trabalhadores<br />

sem vínculo;<br />

NACIONAL DE SAÚDE<br />

c) O trabalho em equipa, multidisciplinar e de complementaridade<br />

entre os diferentes profissionais de saúde;<br />

DE EXCELÊNCIA.<br />

”<br />

d) A formação profissional contínua e permanente dos<br />

seus profissionais.<br />

<strong>22</strong> 23


GH VISÃO biólogos<br />

HORA DO RECONHECIMENTO<br />

DE TODOS OS PROFISSIONAIS<br />

DE SAÚDE<br />

José Pereira de Matos<br />

Bastonário da Ordem dos Biólogos<br />

A<br />

Biologia é a ciência que estuda a vida,<br />

desde o nível de organização molecular<br />

até ao nível da interação dos seres<br />

vivos entre si e destes com o ambiente:<br />

a Ecologia.<br />

Nesta abordagem muito holística e absolutamente transversal<br />

a todos os setores da nossa sociedade, a Biologia<br />

está a montante de grande parte das áreas da saúde. Se<br />

por um lado, os ramos da Biologia, como a microbiologia,<br />

micologia, bacteriologia, entomologia, parasitologia e<br />

virologia, estudam os agentes patogénicos, causadores de<br />

grande parte das doenças infecciosas humanas e animais,<br />

bem como dos seus vetores; por outro lado, a fisiologia<br />

e a citologia estudam as alterações que ocorrem desde o<br />

nível celular até ao organismo no seu todo.<br />

Adicionalmente, a genética permite cada vez mais desvendar<br />

os mecanismos e a etiologia de patologias, síndromes<br />

e anomalias de base genética, tais como o cancro e as doenças<br />

raras; e a biologia ambiental permite a identificação<br />

e a prevenção de um número cada vez mais alargado de<br />

doenças provocadas pelos efeitos da poluição e pela transmissão<br />

de agentes patogénicos entre humanos e outras<br />

espécies animais.<br />

De um modo muito simplificado, mas fundamentado, podemos<br />

afirmar que a Biologia está na base do estudo de todos<br />

os agentes patogénicos e dos seus hospedeiros, bem<br />

como das interações entre todos os seres vivos e o ambiente,<br />

com grande impacto no bem-estar e na saúde humana.<br />

Não é por isso de estranhar que a Biologia esteja hoje presente<br />

nas questões societais, na estratégia ambiental, eco-<br />

nómica e social, e portanto na política, sendo o biólogo o<br />

agente desta ciência vasta e abrangente.<br />

A atividade profissional do biólogo em saúde tem duas<br />

vertentes de enorme influência nas nossas vidas: o biólogo<br />

que desenvolve a sua atividade em investigação científica,<br />

com aplicação direta ou indireta na saúde humana; e<br />

o biólogo que desenvolve a sua atividade literalmente em<br />

saúde, seja no Serviço Nacional de Saúde, em entidades<br />

do setor privado, cooperativo ou social.<br />

Quando nos referimos em particular ao biólogo da área<br />

da saúde, referimo-nos ao conceito anglo-saxónico dos<br />

profissionais de life sciences, ou seja, abrangendo não apenas<br />

aqueles que possuem formação específica em Biologia,<br />

mas também os que possuem formação de base em<br />

bioquímica e ciências afins. Esses profissionais têm desenvolvido<br />

nas últimas décadas uma atividade qualificada e<br />

diferenciadora em todas as vertentes do Sistema Nacional<br />

de Saúde.<br />

A imagem de marca do biólogo continua a ser a do ambiente,<br />

estereotipada através de programas televisivos<br />

sobre a vida na Terra, nos quais o biólogo, normalmente<br />

retratado de chapéu, colete e binóculos ao peito, melhor<br />

do que ninguém, desvenda as intrincadas relações entre<br />

seres vivos, normalmente com a informação a ser servida<br />

por imagens de fundo maravilhosas, em ambientes<br />

paradisíacos, muitas vezes podendo até fazer esquecer a<br />

mensagem mais importante subjacente a essas imagens:<br />

a necessidade da conservação da biodiversidade, sem a<br />

qual a “nossa vida” (a vida do ser humano, não a do planeta)<br />

sofrerá, a curto prazo, danos irreversíveis.<br />

Com menor visibilidade surge a imagem do biólogo investigador,<br />

cientista. Raramente se associam as descobertas<br />

mais revolucionárias da medicina e da saúde humana aos<br />

biólogos, embora seja a eles atribuída uma percentagem<br />

considerável dos Prémios Nobel da Medicina e Fisiologia<br />

ou da Química, e sejam eles os coordenadores e colaboradores<br />

de grande parte das equipas de investigação na<br />

área da saúde em todo o mundo.<br />

Embora seja esta a realidade há já muitos anos, é em relação<br />

à atividade do biólogo em saúde que a sociedade<br />

civil tem um maior desconhecimento. Poucos sabem que,<br />

no nosso País, se os biólogos deixassem de trabalhar hoje,<br />

amanhã seguramente que deixariam de ser aplicados<br />

os programas de reprodução medicamente assistida (na<br />

sua maior parte assegurada por biólogos que desempenham<br />

funções nos laboratórios dos centro de medicina<br />

reprodutiva), os testes genéticos seriam reduzidos a um<br />

mínimo e as análises clínicas sofreriam enormes quebras<br />

de disponibilidade e resposta de serviços.<br />

É um facto que a atividade do biólogo em saúde teve nos<br />

últimos anos um notável incremento nas áreas de diagnóstico,<br />

investigação, ensino e assessoria técnico-científica, entre<br />

outras, e está representada pela ação destes em laboratórios<br />

de centros hospitalares, universidades ou na indústria,<br />

de que são exemplo a indústria do medicamento<br />

e a indústria biomédica.<br />

Se considerarmos a atividade hospitalar, recai sobre os<br />

biólogos muita da responsabilidade pela atividade laboratorial,<br />

quer de diagnóstico quer de investigação científica,<br />

em particular na área das análises clínicas, genética humana<br />

e embriologia e reprodução humana, promovendo<br />

maior conhecimento, maior capacidade de resposta e por<br />

isso garantia de integridade e saúde dos indivíduos.<br />

Neste momento que atravessamos, dado o seu domínio<br />

científico, os biólogos especialistas em saúde lideram inúmeros<br />

grupos de investigação e encontram-se integrados<br />

em equipas multidisciplinares com papel determinante na<br />

dinâmica da pandemia provocada pelo vírus SARS-CoV-2<br />

que assola o mundo.<br />

Desempenham o papel de investigadores, virologistas ou<br />

epidemiologistas, presentes em várias frentes ao estudarem<br />

a natureza e virulência do vírus, ao desenvolveram<br />

testes de diagnóstico, genéticos ou serológicos, ou a realizarem<br />

pesquisas para a produção urgente de uma vacina.<br />

Ao mesmo tempo, têm tido também um papel determinante<br />

na estratégia de controlo de vigilância sanitária e<br />

na monitorização das alterações no meio ambiente. Para<br />

toda a sociedade, mas para nós biólogos, em particular,<br />

este é seguramente o maior desafio deste século.<br />

Em Portugal são também muitos os desafios que se colocam<br />

hoje a estes profissionais de saúde, uma vez que persistem<br />

constrangimentos, não só no acesso à profissão na<br />

área laboratorial (do setor público e do setor privado),<br />

como também no reconhecimento da elevada diferenciação<br />

e especialização que possuem.<br />

Contrariamente a muitos países da União Europeia nos<br />

quais os chamados science constituem a principal força<br />

profissional nas áreas laboratoriais de análises clínicas e de<br />

genética humana, esse caminho no nosso País só agora<br />

está a ser consolidado, embora a uma velocidade lenta, o<br />

que provoca constrangimentos na integração no mercado<br />

de profissionais qualificados.<br />

A visão do biólogo é vasta e abrangente e as suas valências<br />

estão identificadas e não são sobreponíveis, mas sim complementares<br />

às de outros profissionais. Esta é a hora do<br />

reconhecimento de todos os profissionais de saúde, muito<br />

em particular daqueles cuja profissão é autorregulada e<br />

que por isso estão obrigados ao cumprimento do respetivo<br />

código profissional e deontológico: biólogos, enfermei- }<br />

24 25


GH VISÃO biólogos<br />

ros, farmacêuticos, médicos, médicos dentistas, médicos<br />

veterinários, nutricionistas e psicólogos.<br />

Nos últimos seis meses, os laboratórios portugueses tiveram<br />

a capacidade de rapidamente se adaptarem e passarem<br />

do zero à realização de quase dois milhões de testes<br />

moleculares ao SARS-CoV-2. Por trás da maioria destes<br />

testes estão centenas de técnicos que têm dado o seu melhor<br />

para que os cidadãos tenham ao seu dispor um serviço<br />

de diagnóstico rápido e seguro, trabalhando em turnos<br />

insanos, cancelando ou adiando férias e assegurando que<br />

o nosso País possa ser uma referência em matéria de testagem.<br />

No setor público e no setor privado, o trabalho destes profissionais,<br />

quase sempre afastado do reconhecimento público<br />

e raramente elogiado, tem sido de uma importância<br />

fundamental. Grande parte desses profissionais são biólogos.<br />

De igual forma, dentro das universidade, dos institutos públicos,<br />

dos centros e laboratórios de investigação, o trabalho<br />

dos biólogos foi absolutamente fundamental para o<br />

estabelecimento de uma rede nacional de testagem eficaz,<br />

quer para o aumento do conhecimento sobre a diversidade<br />

genética do vírus (filogenia) nos infetados portugueses,<br />

quer para um trabalho inovador e pioneiro em matéria do<br />

estudo serológico.<br />

Apesar do papel de enorme relevo dos biólogos enquanto<br />

profissionais de saúde, a nossa formação não nos permite,<br />

em qualquer área do conhecimento e profissional,<br />

abandonar a nossa abordagem de ecossistema: ninguém<br />

trabalha sozinho, a ciência é necessariamente um trabalho<br />

de equipa. As condições que levaram a enormes avanços<br />

oriundos do trabalho solitário dos sábios do século XIX<br />

não são replicáveis atualmente.<br />

A saúde precisa de todos os seus intervenientes em trabalho<br />

colaborativo. O médico não salva uma vida se o bombeiro<br />

não conseguir transportar o doente a tempo e o biólogo<br />

não faz o diagnóstico rápido se o investigador/cientista<br />

não tiver criado e validado o método de diagnóstico.<br />

Mais do que a multidisciplinaridade, é a transdisciplinaridade<br />

que deve nortear o trabalho de equipa, no qual seguramente<br />

o resultado final é superior à soma das partes e<br />

é através desse esforço conjunto que se atinge a inovação<br />

e se amplia o conhecimento.<br />

Os biólogos sabem que uma bactéria multirresistente pode<br />

ser desastrosa para um hospital, que um fungo pode<br />

parar uma sala de cirurgia durante dias e que um vírus pode<br />

parar o mundo durante meses. A natureza arranja<br />

sempre formas de se adaptar, de nos surpreender e de<br />

nos criar novos desafios.<br />

Os biólogos estão prontos para enfrentar os novos desafios.<br />

Não isoladamente, mas em equipa, dando o seu<br />

contributo para sermos mais resilientes, para compreendermos<br />

melhor o que nos rodeia e para encontrarmos<br />

sempre as melhores soluções, com sustentabilidade e<br />

com espírito científico.<br />

Acreditem: na saúde, como em toda a parte, os biólogos<br />

criam bom ambiente! Ã<br />

26


GH opinião<br />

A REALIDADE NO HOSPITAL<br />

DE OVAR PÓS CERCA<br />

SANITÁRIA AO CONCELHO<br />

Luís Miguel Ferreira<br />

Presidente do Conselho Diretivo<br />

do Hospital Dr. Francisco Zagalo, Ovar<br />

Para concretizarmos uma reflexão sobre a<br />

realidade no Hospital de Ovar pós cerca<br />

sanitária ao concelho vareiro, é importante<br />

passarmos em revista alguns aspetos<br />

vividos nesse período de tempo em que<br />

Ovar esteve esteve perante um autêntico furação. Será<br />

também importante termos consciência (porque o País<br />

não tem bem essa consciência) da dimensão do Hospital<br />

de Ovar e da resposta que foi, localmente, possível dar<br />

graças ao esforço e dedicação dos nossos profissionais<br />

e da organização que foi montada com o envolvimento<br />

das forças vivas da comunidade, em articulação permanente<br />

com a autoridade local de Saúde Pública, com os<br />

Cuidados de Saúde Primários, com a ARS do Centro e,<br />

naturalmente, com a equipa ministerial da tutela.<br />

Ora, o Hospital Dr. Francisco Zagalo - Ovar (HFZ-Ovar)<br />

é um hospital pequeno, que mantém ainda o estatuto<br />

de hospital do Setor Público Administrativo (SPA), um<br />

dos cinco existentes no nosso País, vivendo assim com<br />

todas as desvantagens e vantagens (porque também as<br />

há) decorrentes desta característica jurídica. No entanto,<br />

as questões da segurança e qualidade dos cuidados,<br />

da eficiência e humanidade, do acesso e equidade, da<br />

exigência e rigor, colocam-se neste como se colocam<br />

no maior hospital do País. A universalidade do Serviço<br />

Nacional de Saúde assim o exige.<br />

Esta instituição de saúde serve uma população que ronda<br />

as 60 mil pessoas, não possuindo serviço de urgência,<br />

pelo que a atividade é, essencialmente, programada, as-<br />

segurada por um quadro de profissionais, composto por<br />

menos de 200 pessoas (de todas as carreiras), reforçado<br />

por cerca de 50 prestadores de serviço. Conta com um<br />

serviço de Medicina Interna, uma Unidade de Hospitalização<br />

Domiciliária, uma Unidade de Convalescença<br />

integrada na RNCCI, Serviços Cirúrgicos, Bloco Operatório<br />

e Consulta Externa (em várias especialidades), valências<br />

apoiadas por serviços que realizam um conjunto<br />

também limitado de MCDT’s, radiologia, farmácia, laboratório,<br />

esterilização, nutrição, psicologia, serviço social,<br />

medicina física e de reabilitação (fisioterapia, terapia da<br />

fala e terapia ocupacional).<br />

Tudo isto, bem como o funcionamento dos vários serviços<br />

de apoio (financeiros, aprovisionamento, jurídico,<br />

recursos humanos, admissão e gestão de doentes, informática,<br />

instalações e equipamentos, entre outros), é<br />

assegurado por equipas muito reduzidas, mas com as<br />

mesmas regras legais e os mesmos padrões de exigência<br />

técnica e de segurança que se registam no maior hospital<br />

do País. O desígnio do Serviço Nacional de Saúde<br />

assim o determina.<br />

Por todas estas características, sempre soubemos que o<br />

impacto, na nossa organização, de uma pandemia como<br />

a que estamos a viver seria severo e muito exigente. E<br />

como todos somos conhecedores, em Ovar o assunto<br />

assumiu particular gravidade, obrigando inclusivamente,<br />

que se instituísse uma cerca sanitária entre 17 de março<br />

de <strong>2020</strong> e 18 de abril de <strong>2020</strong>, uma medida que nenhum<br />

de nós havia vivido.<br />

Perante tais dificuldades, o Hospital de Ovar assumiuse,<br />

numa lógica de hospital de proximidade, como uma<br />

importante plataforma de resposta às necessidades que<br />

vinham surgindo no dia-a-dia até porque, olhando para<br />

trás, ninguém sabia quais seriam as necessidades nas<br />

instituições de saúde de referência ao nível de cuidados<br />

intensivos e intermédios, não incluídos na nossa carteira<br />

de cuidados de saúde.<br />

Estávamos a atingir patamares de infeção preocupantes,<br />

em que o número médio de casos secundários que<br />

resultam de um caso infetado, medido em função do<br />

tempo (o chamado Rt), assumia em Ovar um valor que<br />

rondava os 4.5 (segundo os números da saúde pública).<br />

Isto obrigou a que tivéssemos de reagir localmente, com<br />

determinação e rapidez, mobilizando recursos e toda a<br />

energia que fosse possível.<br />

Face à declaração de situação de “Calamidade Pública<br />

no Município de Ovar”, por despacho da Presidência do<br />

Conselho de Ministros e da Administração Interna, foi<br />

ativado o Plano Municipal de Emergência de Proteção<br />

Civil de Ovar, sendo criado um Gabinete de Crise liderado<br />

pelo Senhor Presidente da Câmara Municipal de<br />

Ovar, Salvador Malheiro, e coordenado pelo Comandante<br />

da Base Aérea de Maceda, José Nogueira, composto<br />

por entidades das mais variadas áreas.<br />

Para além das Juntas de Freguesia, integrou o Gabinete<br />

de Crise também o Hospital de Ovar, a Autoridade Local<br />

de Saúde Pública, a PSP, a GNR, os Bombeiros de<br />

Ovar e de Esmoriz, sendo que, ao longo do seu funcionamento,<br />

outras entidades como a ASAE, a Segurança<br />

Social, a Cruz Vermelha, foram sempre acompanhando<br />

e participando nos trabalhos.<br />

Em boa verdade, a existência e o bom e eficiente funcionamento<br />

deste Gabinete de Crise, que reunia diariamente,<br />

foram determinantes para a eficácia do que<br />

foi sendo necessário implementar no terreno, possibilitando<br />

a articulação de entidades que, tradicionalmente,<br />

revelam algumas dificuldades em conseguir fazê-lo.<br />

As Juntas de Freguesia de diferentes forças partidárias<br />

caminharam no mesmo sentido, os Bombeiros de duas<br />

cidades diferentes do mesmo concelho convergiram no<br />

objetivo, a PSP e a GNR alinharam na mesma estratégia,<br />

o Hospital e os Cuidados de Saúde Primários articularam<br />

os seus recursos. Foi extraordinária a experiência<br />

de cooperação, de entrega e dedicação absoluta de todas<br />

as entidades envolvidas.<br />

Uma vez que a Autoridade de Saúde Pública reconheceu<br />

que o município de Ovar vivia uma situação epidemiológica<br />

compatível com transmissão comunitária<br />

ativa, constituindo perigo para a saúde pública o que,<br />

aliás, motivou a criação da cerca sanitária, o Hospital<br />

de Ovar, teve a necessidade de responder “presente”<br />

naquelas que iam sendo as enormes necessidades identificadas.<br />

Assim:<br />

• Encetámos uma estratégia agressiva de testagem, em<br />

total articulação com a autoridade local de Saúde Pública<br />

(entre 20 de março e 16 de junho foram efetuadas<br />

5.000 colheitas em zaragatoa que, para a realização de }<br />

28 29


GH opinião<br />

“<br />

TUDO ISTO FOI FEITO<br />

COM DEDICAÇÃO PLENA<br />

DOS PROFISSIONAIS<br />

DO HOSPITAL DE OVAR QUE,<br />

DESTA FORMA, HONRARAM<br />

O SERVIÇO NACIONAL<br />

DE SAÚDE.<br />

”<br />

testes ao Sars-coV-2, foram remetidas para onde encontrámos,<br />

na altura, disponibilidade: INSA, ULS Guarda,<br />

CHVNG/E, CHBV, CHSJ, bem como laboratórios<br />

privados). Com os Bombeiros de Esmoriz e com a Cruz<br />

Vermelha de Ovar foi montada uma estrutura de recolha<br />

no exterior do Hospital, dinamizada por equipas<br />

mistas de profissionais (compostas por elementos do<br />

Hospital e dos CSP);<br />

• Suspendemos toda a atividade programada ao nível<br />

da consulta externa, cirurgia e MCDT’s, bem como as<br />

visitas aos doentes internados no Hospital, medidas tomadas<br />

antes do Ministério da Saúde ter determinado<br />

isso mesmo para todo o contexto do SNS;<br />

• Encontrámos alternativas às visitas presenciais (através<br />

de sessões de videochamada) e para a realização<br />

de teleconsultas e/ou de contactos telefónicos com os<br />

doentes, sendo que ainda tivemos disponibilidade para<br />

acolher a realização da primeira teleconsulta através da<br />

RSE Live, entretanto disponibilizada pela SPMS e pelo<br />

Ministério da Saúde para o contexto do SNS;<br />

• Abrimos uma consulta hospitalar Covid, em complemento<br />

à Área Dedicadas Covid-19 Comunidade<br />

(ADC) do Aces Baixo Vouga, com quem era feita articulação<br />

permanente;<br />

• Transformámos a enfermaria dos serviços cirúrgicos do<br />

Hospital numa enfermaria totalmente dedicada a receber<br />

doentes Covid (sem necessidades de cuidados intensivos),<br />

reforçada pela adaptação do ginásio da Medicina<br />

Física e de Reabilitação numa nova enfermaria Covid;<br />

• Deslocalizámos (mais tarde, com a retoma de alguma<br />

atividade) o ginásio da Medicina Física e de Reabilitação<br />

para um espaço cedido pelos Bombeiros de Ovar;<br />

• Apoiámos tecnicamente a Câmara Municipal na operacionalização<br />

de um espaço, na Pousada da Juventude,<br />

dedicado a receber doentes infetados que, não precisando<br />

de cuidados hospitalares, não tinham retaguarda<br />

familiar para a sua convalescença e isolamento em condições<br />

de segurança e dignidade;<br />

• Garantimos também a operacionalização do Hospital<br />

de Campanha montado pelo INEM e ARS-Centro<br />

que, na prática, constituiu uma nova enfermaria Covid<br />

do HFZ-Ovar, na verdadeira e plena aceção da palavra<br />

(EPI’s, farmácia, rouparia, alimentação, recolha de resíduos,<br />

camas articuladas, equipamento médico variado,<br />

RX, rede de oxigénio, rede informática ligada, por VPN<br />

à rede hospitalar nas componentes médica e de enfermagem,<br />

médicos, enfermeiros, assistentes operacionais,<br />

administrativos, TSDT’s, entre outros aspetos), uma estrutura<br />

que esteve em funcionamento entre 13 de abril<br />

e 5 de junho.<br />

Para alguns, este intenso conjunto de ações pode parecer<br />

pouco. Mas tudo isto foi feito com dedicação plena<br />

dos profissionais do Hospital de Ovar que, desta forma,<br />

honraram o Serviço Nacional de Saúde com uma resposta<br />

às necessidades da população local, mergulhada<br />

que estava num contexto dramático e de evolução, naquela<br />

altura, totalmente imprevisível. E sempre vivido e<br />

dinamizado em estreita cooperação entre as estruturas<br />

locais liderada, superiormente, pela Câmara Municipal<br />

que, também do ponto de vista financeiro, suportou<br />

encargos bastante significativos.<br />

Ainda assim, antes de refletirmos sobre o futuro pós<br />

cerca, importa sublinhar alguns aspetos que se revelaram<br />

cruciais para que a fase mais difícil fosse ultrapassada<br />

e que nos permitiu chegar onde estamos hoje.<br />

Em primeiro lugar, houve sempre uma enorme atenção<br />

da tutela, em particular da equipa ministerial (da<br />

Senhora Ministra, da Senhora e do Senhor Secretários<br />

de Estado), para com o que se ia passando no concelho,<br />

disponibilizando todos os meios e recursos que eram<br />

necessários mobilizar, dentro das possibilidades do momento.<br />

A título de exemplo, foram recrutadas mais de<br />

50 pessoas das várias carreiras (para substituir profissionais<br />

infetados e reforçar as equipas para o Hospital de<br />

Campanha), fomos abastecidos de EPI’s à dimensão das<br />

nossas necessidades e foram criadas condições para desenvolvermos<br />

uma estratégia significativa de testagem.<br />

Em segundo lugar, a grande maioria dos profissionais<br />

do nosso Hospital deu tudo o que tinha, empenhando<br />

o seu esforço e dedicação para conseguirmos ultrapassar<br />

as dificuldades. Muitos dos nossos profissionais, para<br />

protegerem as suas próprias famílias em nome da sua<br />

missão nesta instituição hospitalar e no SNS, ficaram<br />

alojados em quartos de hotel local (disponibilizados<br />

pela Câmara Municipal de Ovar) e em bungalows pelo<br />

Parque de Campismo do Furadouro que também se<br />

prontificou a ajudar.<br />

Em terceiro lugar, o envolvimento da comunidade foi<br />

crucial. A experiência do Gabinete de Crise, a liderança<br />

assumida pela Câmara Municipal e pelo seu Presidente,<br />

o comovente empenhamento e compromisso de todas<br />

as entidades, foram decisivos para que o espírito de<br />

união imperasse e os desafios fossem sendo ultrapassados<br />

com sucesso e cumplicidade. A onda de solidariedade<br />

da comunidade, que passou também por alguns donativos<br />

que nos chegaram, essencialmente, em espécie,<br />

foram também muito importantes para irmos buscar a<br />

força anímica que não podia, nunca, faltar.<br />

Daí que possamos dizer que a cerca sanitária e a grande<br />

exigência e responsabilidade que recaiu sobre o Hospital<br />

de Ovar e os seus profissionais fizeram com que<br />

sejamos, hoje, uma unidade de saúde bastante diferente.<br />

Aliás, depois deste período complexo já muita coisa<br />

ocorreu, obrigando a repensar espaços e circuitos, procedimentos<br />

e práticas tal como, obviamente, sucedeu e<br />

continua a suceder na generalidade das instituições de<br />

saúde do País e do mundo.<br />

Em boa verdade, quando a cerca sanitária terminou, ao<br />

pensar na resposta que dava quando me perguntavam<br />

se as coisas estavam mais calmas no hospital, chegava<br />

sempre à conclusão que não. A vida num hospital nunca<br />

é calma porque os desafios são permanentes e a superação<br />

dos nossos profissionais é sempre uma realidade,<br />

para além de uma necessidade. Passámos a pensar na<br />

retoma e a transformar novamente o nosso dia-a-dia,<br />

ajustando a estrutura à situação atual, hoje ainda em<br />

contexto de pandemia, pensando também naquilo que<br />

se espera para os próximos meses.<br />

Os números que hoje colocam Ovar num dos concelhos<br />

com maior número de casos por 10.000 habitantes<br />

(143/10.000 habitantes para 62/10.000 registados em<br />

Portugal como um todo) não nos permitem ousar sequer<br />

baixar a guarda e pensar que tudo já passou e que pode<br />

voltar tudo à normalidade como a conhecíamos. De facto,<br />

não podemos fazer o que fazíamos antes da mesma maneira<br />

e com os mesmos métodos. Ainda que o furacão<br />

não esteja hoje em Ovar, mas antes noutros pontos do<br />

País, que vivem situações preocupantes, o nosso nível de<br />

alerta e de cuidado deve manter-se igualmente elevado.<br />

Desde logo torna-se necessário contarmos com ferramentas<br />

e implementarmos metodologias que nos permitam<br />

antecipar cenários e atender a contextos mais ou<br />

menos difíceis que venham a ocorrer. Daí que, na linha<br />

da inovação que temos tentado imprimir no Hospital<br />

de Ovar, foi desenvolvido um projeto financiado pela<br />

Fundação para a Ciência e Tecnologia, por um consórcio<br />

do qual fizemos parte com a Winning e o Centro<br />

de Investigação em Saúde Cintesis (sediado na Universidade<br />

do Porto) que, na prática, criou uma escala de<br />

risco hospitalar e definiu planos de contingência a aplicar<br />

consoante o comportamento evolutivo da epidemia de<br />

Covid-19 para o HFZ-Ovar.<br />

O objetivo foi, então, o de desenvolver uma ferramenta<br />

preditiva que permita analisar o comportamento<br />

da epidemia da Covid-19 em Ovar e determinar uma<br />

escala de risco para áreas do hospital que pudessem<br />

apresentar compromisso de capacidade (em termos<br />

de número de camas, EPI’s, recursos humanos, entre<br />

outras). O resultado deste trabalho é consubstanciado<br />

numa ferramenta PRISA Covid que, julgo, constituir uma<br />

ferramenta com enorme potencial de antecipação de<br />

cenários de risco para o ecossistema da saúde, possibilitando<br />

a adoção de decisões e medidas concretas com<br />

vista a preparar o SNS e todo o sistema de saúde para<br />

contextos de dificuldade a curto e médio prazos.<br />

Por outro lado, todo o sistema precisará de ser capaz de<br />

dar resposta para além da Covid o que, de certa forma<br />

e pelos mais variados motivos, ficou bastante comprometido<br />

na primeira parte deste problema surgido em<br />

março de <strong>2020</strong>, levando ao cancelamento de milhares<br />

de cirurgias e consultas não urgentes. Neste momento,<br />

o Ministério da Saúde já alinhou com os Hospitais a<br />

estratégia de recuperação das consultas e cirurgias não<br />

realizadas durante os meses em que tal atividade pro- }<br />

30 31


GH opinião<br />

“<br />

UMA COISA É CERTA: AINDA<br />

COM TEMPOS MAIS SEGUROS,<br />

COM PROCESSOS MAIS EXIGENTES<br />

E COM EQUIPAS MAIS BEM<br />

PREPARADAS, TEREMOS<br />

DE CONTINUAR A DAR<br />

A RESPOSTA ABRANGENTE<br />

QUE OS PORTUGUESES PRECISAM<br />

E QUE O NOSSO SISTEMA<br />

DE SAÚDE TEM CAPACIDADE<br />

DE DAR, DE FORMA ARTICULADA,<br />

COMPLEMENTAR, SEGMENTADA.<br />

”<br />

gramada havia sido suspensa, sendo que essa estratégia<br />

deverá ser de forma sistemática monitorizada e reajustada.<br />

Uma coisa é certa: ainda com tempos mais seguros,<br />

com processos mais exigentes e com equipas mais<br />

bem preparadas, teremos de continuar a dar a resposta<br />

abrangente que os portugueses precisam e que o nosso<br />

sistema de saúde tem capacidade de dar, de forma<br />

articulada, complementar, segmentada, sendo certo que<br />

todos não podemos fazer tudo ao mesmo tempo. Por<br />

outro lado, devemos continuar a perseguir uma estratégia<br />

de investimento no SNS e de aposta permanente<br />

na inovação, de adoção de melhores práticas clínicas e<br />

de tecnologias modernas, bem como de valorização e<br />

reforço dos nossos recursos humanos.<br />

Naturalmente que a capacidade instalada ao nível de<br />

cuidados intensivos e intermédios deverá ser gradualmente<br />

reforçada, na linha do que tem sido a estratégia<br />

do Ministério da Saúde, tanto mais que um dos indicadores<br />

mais relevantes a ter sempre presente tem a ver<br />

com o volume dos internamentos hospitalares, principalmente<br />

com aqueles níveis de cuidados, para que o<br />

que aconteceu noutros países não venha a ocorrer em<br />

Portugal. Nesta matéria é de sublinhar os passos que,<br />

entretanto, foram dados na melhoria da nossa capacidade<br />

instalada.<br />

Também é muito importante mantermos os nossos stocks<br />

(EPI’s, farmácia, reagentes, dispositivos médicos, entre<br />

outros) a níveis superiores às necessidades atuais do<br />

dia-a-dia. A decisão do Ministério da Saúde em determinar<br />

isso mesmo desde já foi, de facto, bastante importante,<br />

gerando nos hospitais, ainda assim, alguma pressão<br />

financeira que importa ter em conta e problemas ao<br />

nível dos espaços para armazenamento, principalmente<br />

em hospitais com o nosso perfil. No hospital de Ovar,<br />

já foi necessário recorrer ao aluguer e aquisição de contentores,<br />

por exemplo.<br />

A adaptação dos espaços deve ser, igualmente, uma<br />

prioridade. Espaços de espera e circulação para os<br />

doentes que nos procuram, distâncias entre as camas<br />

nas enfermarias, tempos e acessos controlados aos espaços<br />

hospitalares, reorganização das agendas dos vários<br />

serviços, utilização de tecnologias para desincentivar<br />

deslocações dispensáveis aos hospitais, adaptação de<br />

portas e relocalização de mobiliário, reajustamento de<br />

salas para tarefas mais administrativas que assegurem<br />

o distanciamento entre as pessoas, aposta na hospitalização<br />

domiciliária e na telemonitorização são medidas<br />

necessárias e exigirão alguns investimentos, inevitavelmente.<br />

Os tempos que correm são ainda de alguma incerteza,<br />

principalmente agora que nos aproximamos do inverno,<br />

uma época que, já por si, agudiza a pressão nas nossas<br />

estruturas de saúde. O foco no essencial e a determinação<br />

no combate aos problemas, o conhecimento<br />

em tempo real da situação epidemiológica concreta e<br />

a capacidade de antecipar cenários, a coordenação das<br />

várias infraestruturas de saúde que consiga otimizar recursos<br />

e permitir que a população consiga continuar a<br />

aceder, em segurança e com confiança, a cuidados de<br />

saúde diversificados, a articulação entre diferentes níveis<br />

de cuidados (designadamente hospitalares e cuidados<br />

de saúde primários), a manutenção de níveis elevados<br />

de motivação e operacionalidade dos nossos profissionais,<br />

a disponibilidade para reforço das equipas dos hospitais,<br />

dos CSP e da Saúde Pública, a capacidade de investimento,<br />

de inovação e investigação, o envolvimento<br />

das comunidades locais na definição e implementação<br />

das estratégias de saúde junto das populações, nomeadamente<br />

ao nível da inibição de comportamentos de<br />

risco e da promoção de boas práticas e da adoção das<br />

recomendações das autoridades sanitárias, a capacidade<br />

de resposta para apoiar estruturas locais dedicadas, em<br />

particular, à terceira idade, são, sem qualquer dúvida, aspetos<br />

a ter em conta nos próximos tempos.<br />

De facto, não podemos, coletivamente, falhar para continuarmos<br />

a acreditar que “vai correr tudo bem”! Ã<br />

A Aurora Innovation foi fundada em 1996 na Suécia e é especializada<br />

em comunicação entre utentes e profissionais da saúde. A<br />

empresa desenvolveu a Aurora teleQ, uma plataforma digital que<br />

ajuda o setor da saúde a obter o controlo de todas as chamadas e<br />

garantir que cada uma delas é respondida, melhorando a experiência<br />

e confiança do utente ao saber que será contactado dentro de<br />

um prazo razoável.<br />

A plataforma é adequada para qualquer tipo de unidade de saúde,<br />

como centros de saúde, serviços de consulta externa ou departamento<br />

hospitalar que precisa de comunicar com utentes. Trata-se de<br />

um software cloud, desenvolvido após muitos anos de experiência<br />

que fornece a estrutura completa que respeita todos os requisitos da<br />

assistência médica. Com o “retorno de chamada” com hora determinada,<br />

o utente saberá a hora exata em que será contactado pela<br />

unidade de saúde, possibilitando ao utente prosseguir com o seu dia<br />

a dia sem esperar ao telefone.<br />

A Aurora teleQ possui outras funções como fila de espera, chat,<br />

SMS, e-mail e videoconferência, o que torna a plataforma na ferramenta<br />

única e necessária para organizar toda a comunicação entre a<br />

unidade de saúde e os utentes.<br />

O sistema é fácil e intuitivo, além de fornecer ao gerente vários relatórios<br />

sobre o que está a acontecer na sua unidade de saúde. Todas<br />

as chamadas entrantes são organizadas e monitoradas no computador<br />

numa única tela, permitindo ao gerente e administrador acompanhar<br />

a situação em tempo real.<br />

Aurora teleQ<br />

PUBLICIDADE<br />

Com a plataforma Aurora teleQ, os colaboradores responsáveis pelo<br />

atendimento das chamadas podem observar o alcance de resultados<br />

através do aumento da satisfação dos utentes, o que contribui para<br />

que eles sintam que o seu trabalho é realizado com mais eficiência.<br />

Quais são os resultados imediatos ao usar Aurora teleQ? Os utentes<br />

obtêm, antes de tudo, uma imagem melhor do hospital ou centro<br />

de saúde, como sendo mais profissional, mais eficiente e no<br />

qual podem confiar porque serão contactados. Por outro lado, os<br />

colaboradores veem o seu trabalho facilitado, com mais qualidade<br />

e menores níveis de stress.<br />

32


GH respostas integradas<br />

RESPOSTAS SOCIAIS<br />

INTEGRADAS EM TEMPO<br />

DE PANDEMIA<br />

Eugénio Fonseca<br />

Presidente da Caritas Portugal<br />

Da pandemia sanitária à crise socioeconómica<br />

O mundo está numa encruzilhada com<br />

uma complexidade não vista há mais de<br />

um século: o surgimento de uma crise<br />

sanitária, ainda sem um fim previsível. Esta crise originou<br />

outra que terá consequências, quiçá ainda mais gravosas,<br />

numa dimensão muito mais vasta, podendo mesmo pôr<br />

em causa, durante muito tempo, a subsistência de uma<br />

miríade de pessoas, o empobrecimento de um número<br />

incalculável de famílias e o enfraquecimento para níveis<br />

ainda não previstos da economia mundial.<br />

Portugal será um dos países mais atingidos, pelo menos<br />

no espaço dos que se situam no designado primeiro<br />

mundo. Se temos conseguido, apesar de muitas debilidades,<br />

comparativamente com países vizinhos e até mesmo<br />

com outros mais evoluídos nos domínios técnico-científicos<br />

e económicos, enfrentar este surto pandémico, o<br />

impacto na nossa economia está a ser devastador por ela<br />

já ter pouca consistência e uma dependência dos mercados<br />

externos que parece crónica e se situa, com poucas<br />

variações, na ordem dos 60%.<br />

Propositadamente, quis assumir esta preocupação dos<br />

impactos que a Covid-19 está a ter na retração da economia<br />

portuguesa, porque as múltiplas consequências<br />

que ela tem na vida de qualquer pessoa, sobretudos nas<br />

classes média e empobrecidas, terão reflexos negativos e<br />

inevitáveis no equilíbrio da saúde e no acesso aos cuidados<br />

para recuperar o que se perde ou agrava em termos<br />

de sanidade.<br />

Não sei se toda a população portuguesa, absorvida que<br />

está pelo medo dos efeitos da atual pandemia, estará a<br />

tomar consciência dos tempos ainda mais difíceis que já<br />

estão a dar sinais e que, a curto e a médio prazos, serão<br />

muito mais penosos. Disso, nos estão, continuamente, a<br />

recordar entendidos em várias áreas científicas. Um deles<br />

é Frederico de Carvalho que refere as suas preocupações,<br />

ao afirmar:<br />

“Persiste o receio de que à crise sanitária seguirá uma violenta<br />

queda de rendimentos do ano e, depois, uma série<br />

de encadeamentos aterrorizadores. Variados setores não<br />

resistiriam e o desemprego atingiria níveis sem registo. (…)<br />

Identifico aqui circunstâncias que irão denotar uma dinamização<br />

a médio prazo, inesperada e até surpreendente.<br />

Atribuo este facto, ironicamente, ao histórico medíocre<br />

aproveitamento das nossas potencialidades e vantagens<br />

competitivas, e ao nosso espírito de ordem e de abnegação,<br />

e até de inventiva quando enfrentamos períodos<br />

negros. Desde a (re)conquista do território que o nosso<br />

caminho foi feito de enganos e mudanças de rumo, mas<br />

também de redescoberta e redobrado enriquecimento.” 1<br />

O receio deste engenheiro, bem como o reconhecimento<br />

das capacidades de abnegação e de criatividade dos<br />

portugueses, estão a concretizar-se. Desde já, nas muitas<br />

ações em curso para prevenir a contaminação da Covid-19<br />

e atenuar as suas consequências e suavizar os efeitos<br />

da falta ou ausência de rendimentos. São pequenas<br />

evidências de que não queremos cruzar os braços.<br />

As respostas sociais no combate à pandemia<br />

É verdade que se está a verificar uma falta de planeamento,<br />

de segurança, de assertividade e de avaliação em algumas<br />

das ações que se têm vindo a desenvolver, tanto no<br />

plano da saúde como no da intervenção social. Há que<br />

admitir que não estávamos preparados para responder a<br />

tão grave situação generalizada por este novo coronavírus.<br />

Sabemos da existência de constrangimentos estruturais<br />

na aplicação de muitas das medidas encetadas no quadro<br />

das políticas públicas e muito pouco temos feito para os<br />

eliminar, como sejam a pouca importância dada ao planeamento<br />

realista, a opção reiterada pela uniformização<br />

das respostas sociais, o vício do individualismo institucional<br />

(nos domínios públicos e particulares) e a relutância<br />

em assumir procedimentos de avaliação, de próxima e de<br />

regular dimensão.<br />

A juntar a estas dificuldades, somos confrontados, inesperada<br />

e repentinamente, com um gravíssimo problema à<br />

escala global, totalmente desconhecido e com alterações<br />

imprevisíveis. Assim, nenhuma organização, por mais perfeita<br />

que fosse conseguiria estar à altura das exigências<br />

criadas por tão gravosa pandemia. Mesmo assim, com as<br />

práticas anómalas que foram acontecendo em países vizinhos,<br />

temos caminhado no sentido de reduzir os efeitos<br />

nefastos da Covid-19.<br />

Reorganizaram-se equipamentos e valências sociais, concretamente<br />

no que diz respeito ao apoio à infância; transformaram-se<br />

as respostas dadas pelos Centros de Dia<br />

em apoio domiciliário, sem deixar de fora os serviços que<br />

não poderiam ser prestados em casa; intensificaram-se as<br />

medidas de segurança alimentar para os já beneficiários<br />

das IPSS e os que começaram a surgir logo que a debilidade<br />

da economia começou a dar os primeiros sinais;<br />

reforçou-se o apoio psicológico; apoiaram-se as múltiplas<br />

iniciativas de prevenção; com a total abertura dos colaboradores<br />

das instituições, sempre que necessário, praticouse<br />

a polivalência na ação para que nenhuma necessidade<br />

identificada ficasse sem as mais elementares respostas;<br />

com criatividade, mesmo que artesanalmente, muitas instituições<br />

produziram máscaras para aliviar a insuficiência<br />

do mercado…<br />

Importa não esquecer a importância dada ao trabalho insano<br />

de muita gente que, individualmente ou enquadrado<br />

por instituições de voluntários ou que os integram, auxiliaram<br />

na distribuição de alimentos e no apoio à satisfação<br />

de necessidades básicas de quem, obrigatoriamente, estava<br />

sujeito ao confinamento.<br />

É certo que houve problemas que se poderiam ter evitado,<br />

como os que mais se evidenciaram no que à proteção<br />

dos idosos diz respeito. Tudo teria sido diferente se já existisse<br />

a imprescindível relação entre a saúde e a proteção<br />

social e se estivessem sido acauteladas, em devido tempo,<br />

a restruturação de muitos edificados que servem de lares,<br />

a revisão do quadro do pessoal para esta e outras valências,<br />

com as devidas contrapartidas financeiras, a formação<br />

contínua dos colaboradores das valências destinadas aos<br />

idosos, a intervenção atempada nos lares clandestinos.<br />

As fiscalizações devem existir, mas num quadro de leal cooperação<br />

e, antes de tudo, com uma perspetiva pedagógica,<br />

sem deixar de se envolverem as entidades competentes<br />

sempre que, comprovadamente, existir dolo. Porém, não<br />

se pode ter uma atitude de criminalização generalizada dos<br />

responsáveis atuais, já que muitas das situações existentes<br />

resultam de problemas estruturais que não se conseguem<br />

resolver no imediato ou que foram sendo criados ou não<br />

resolvidos, em devido tempo, pelos sucessivos governos e<br />

órgãos de gestão das instituições anteriores.<br />

A responsabilidade já será bem diferente se não forem<br />

geradas sinergias no sentido de alterar o que não está tão<br />

bem. Olhemos para esta crise não só pelo lado negativo,<br />

mas como uma oportunidade, porque, na opinião do<br />

teólogo e sociólogo brasileiro Leonardo Boff, “as crises<br />

pertencem à vida: não são algo que deva ser deplorado }<br />

34 35


GH respostas integradas<br />

“<br />

PORTUGAL PRECISA DA DEFINIÇÃO<br />

DE POLÍTICAS PÚBLICAS<br />

QUE RESPONDAM ÀS<br />

NECESSIDADES ESTRUTURAIS<br />

QUE, INEXPLICAVELMENTE,<br />

TARDAM EM SER RESOLVIDAS<br />

POR ESBARRAREM COM<br />

MEDIDAS DESAJUSTADAS<br />

DAS REALIDADES CONCRETAS.<br />

”<br />

e evitado, mas explorado, assumido e exaurido em seu<br />

valor enriquecedor para novas formas de vida.” 2<br />

Respostas sociais integradas, a incontornável estratégia<br />

“Vai ficar tudo bem!”. Esta é a palavra de ordem mais<br />

difundida em todo o mundo. Também tenho a esperança<br />

de que a vida irá regressar ao normal, mas não pode ficar<br />

tudo bem, porque em centenas de pessoas e famílias a<br />

Covid-19 está a deixar marcas para sempre.<br />

Mesmo que viesse a ser verdade que tudo vai ficar mesmo<br />

bem, o que eu, veementemente, não gostaria é que<br />

ficasse tudo na mesma. Seria um clamoroso desperdício<br />

das muitas e dolorosas energias despendidas, até agora, e<br />

das que ainda terão de o ser com o devir da pandemia.<br />

Será que alguém terá dúvidas de que, desde há muito,<br />

diversos factos, a níveis mais globais, regionais e locais, têm<br />

dado sinais de que o modelo civilizacional predominante já<br />

não responde às necessidades hodiernas? Concretamente,<br />

o sistema económico está a ser demolidor do equilíbrio<br />

do cosmos nas suas diferentes componentes. Por várias<br />

vezes, o Papa Francisco tem avisado que “esta economia<br />

mata” 3 . Decerto, que umas pequenas minorias (os poderosos<br />

deste mundo) não estão interessadas em transformações<br />

muito profundas. Mas, enquanto elas não acontecerem<br />

de forma convicta e determinada, andaremos de<br />

crise em crise até a uma imposição mais radical por parte<br />

da Natureza ou pela rebelião generalizadas dos excluídos.<br />

Todavia, não podemos ficar passivamente a aguardar a<br />

concretização de uma nova civilização. Entretanto, há que<br />

assumir e avançar com as alterações possíveis e realistas<br />

que apontem para a minimização dos problemas mais<br />

agudos com que o mundo se está a confrontar. “Pensar<br />

global e agir local” nem sempre serve como estratégia<br />

para determinadas atuações.<br />

Em muitas áreas, em particular nas ciências humanas, a<br />

experiência tem-me demonstrado que, por vezes, é mais<br />

eficaz “pensar com ousadia e agir com determinação”. A<br />

falta destas duas atitudes, têm gerado vários constrangimentos<br />

à construção de um desenvolvimento propiciador<br />

de coesão social. Indico alguns.<br />

Antes de tudo, Portugal precisa da definição de políticas<br />

públicas que respondam às necessidades estruturais que,<br />

inexplicavelmente, tardam em ser resolvidas por esbarrarem<br />

com medidas desajustadas das realidades concretas<br />

das pessoas e dos recursos endógenos do país; este desajustamento<br />

resulta, muitas vezes, do desconhecimento<br />

dos reais problemas e dos que são vítimas deles; das motivações<br />

que levam à criação de determinadas políticas<br />

para satisfação de interesses corporativos e nem tanto<br />

para a resolução das necessidades das pessoas; de um tipo<br />

de “esquizofrenia” que ataca a grande parte das organizações<br />

públicas e particulares; da preocupação de protagonismos<br />

institucionais que resultam numa afirmação<br />

pública, facilitadora de obtenção de votos ou de acesso<br />

mais simples a oportunidades disponibilizadas; de um tipo<br />

de governação que alimenta a dependência dos cidadãos<br />

e das instituições; de recursos que deveriam ser atribuídos<br />

com base nos direitos de cidadania e não como subsídios<br />

discricionários.<br />

Acrescento ainda a inexistência dos planos de desenvolvimento<br />

económico e social, previstos nos artigos 90<strong>º</strong> e<br />

91<strong>º</strong> da Constituição da República Portuguesa, bem como<br />

de políticas centradas no desenvolvimento do setor cooperativo<br />

e social (artigo 82<strong>º</strong> da Constituição). Estas são<br />

as causas que identifico como impeditivas pela opção de<br />

medidas de política direcionada para a coesão social e a<br />

pouca utilidade de algumas das existentes.<br />

Admito existirem outras, mas estas são as mais predominantes<br />

na minha experiência da ação que tenho desenvolvido<br />

em várias instâncias de participação cívica e social.<br />

Com base nesta mesma experiência, tendo em conta a<br />

realidade do nosso País, no plano social e na relação com<br />

o Serviço Nacional de Saúde (SNS), arrisco a avançar<br />

com algumas sugestões que, pelo menos, tornem mais<br />

eficazes as ações das respostas sociais em curso e das<br />

que se vierem a considerar necessárias face às exigências<br />

criadas pela pandemia e pela grave crise económica dela<br />

decorrente. Sugestões que têm a preocupação de uma<br />

maior eficiência, pois as necessidades são muitas e escassos<br />

os recursos disponíveis. São as seguintes:<br />

1. A compilação das informações sobre as necessidades existentes<br />

e as causas que as originam. Estes dados estão na posse<br />

de vários centros de atendimento social de proximidade.<br />

Só este conhecimento permitirá as reais condições para se<br />

definirem políticas mais consentâneas com a realidade;<br />

2. O enquadramento das respostas sociais no plano do<br />

desenvolvimento comunitário, local, sociolocal, solidário…,<br />

como se queira designar, garantindo uma maior<br />

envolvência de atores de diferentes áreas que permitiriam<br />

uma consolidação maior da economia social e da<br />

solidária, reconhecendo o papel destas no desenvolvimento,<br />

no povoamento do interior do país, na aposta<br />

por uma “ecologia integral” 4 , na reabilitação, renovação e<br />

humanização das cidades;<br />

3. Uma clara definição de estratégias para que o SNS<br />

esteja, no tempo certo, ao serviço de todos e assegure<br />

cuidados de saúde de qualidade a todos os cidadãos,<br />

preferencialmente aos mais vulneráveis à doença que<br />

são também os fragilizados no plano económico e social.<br />

A fazer alterações, só para o melhorar, incluindo a integração<br />

explícita do envolvimento das respostas sociais<br />

mais adequadas. A este propósito, não sei se não seria<br />

de se regressar ao Ministério dos Assuntos Sociais, onde<br />

estivessem integradas a saúde, solidariedade e segurança<br />

social. O trabalho tem também fortes implicações sociais,<br />

mas face aos enormíssimos desafios que este setor tem<br />

pela frente, talvez se justificasse uma autonomização desta<br />

área ministerial;<br />

4. Revisão das estruturas e funcionamentos da Rede Social<br />

e das Comissões Socais de Freguesia. São instâncias<br />

privilegiadas para se conseguirem respostas sociais integradas.<br />

Mas há ainda um caminho longo a percorrer para<br />

que exista de facto uma participação dos diferentes parceiros<br />

em verdadeira paridade;<br />

5. As respostas sociais de apoio a determinados grupos-<br />

-alvo devem contemplar a integração de todas as instituições<br />

que garantam uma intervenção em patamares como<br />

a prevenção, a resolução e a garantia de sustentação das<br />

soluções operacionalizadas. Não há problemática alguma<br />

que apenas se resolva com ações unilaterais e meramente<br />

assistenciais;<br />

6. Incentivar os Centros de Responsabilidade Integrados<br />

(CRI) no âmbito da saúde, valorizando o trabalho em<br />

equipas multidisciplinares, com várias especialidades em<br />

vários patamares do SNS: os cuidados primários, hospitalares<br />

e continuados. Nestas equipas deveria estar, explicitamente,<br />

presente a dimensão social;<br />

7. Criar um rendimento de subsistência, substituindo ou<br />

reformulando, o atual Rendimento Social de Inserção<br />

(RSI) para que tivesse uma garantia de subsistência e reintegração<br />

social, quem viesse, inesperadamente, a ficar em<br />

situação de privação de recursos financeiros.<br />

Estas são apenas algumas propostas, dado o espaço que<br />

disponho, para a criação de políticas públicas que na execução<br />

terão de, incontornavelmente, se apoiarem no princípio<br />

da subsidiariedade. Não defendo a pura estatização das<br />

respostas sociais nem de quaisquer outras, mas ao Estado<br />

compete assegurar que nenhum justo anseio dos cidadãos<br />

fique a descoberto. Quem faz, deve ser quem garanta<br />

maior eficácia e eficiência na execução das medidas.<br />

Em jeito de conclusão<br />

São recorrentes os pronunciamentos sobre o que irá<br />

acontecer a diferentes áreas da vida comum na era pós-<br />

Covid-19. As implicações de tão grave crise sanitária e<br />

as suas laterais consequências vão originar o que já se<br />

designa por uma “nova normalidade”. O que vier a surgir<br />

de novo seja no sentido de uma maior consciencialização<br />

de que somos seres-em-relação com todas as criaturas e<br />

demais elementos que constituem o cosmos. Tem de ser<br />

um imperativo a integração ordenada de todos estes elementos,<br />

através das organizações específicas de cada um<br />

deles em ordem a uma organização mais atenta e assumida<br />

a que o Papa Francisco chama de “Casa Comum”.<br />

Só verdadeiras e eficazes respostas sociais integradas conseguirão<br />

assegurar o cumprimento de um dos maiores<br />

desígnios que a todos deve galvanizar, orientadas por<br />

uma palavra de ordem, sejam quais forem os desafios.<br />

Cuidar é essa palavra que tem, decididamente, de fazer<br />

parte do léxico das respostas sociais integradas ou de<br />

outras áreas de intervenção em ordem ao desejável desenvolvimento<br />

integral e sustentado. “O cuidado é «uma<br />

constituição ontológica» sempre subjacente a tudo o que<br />

o ser humano empreende, projeta e faz…” 5<br />

Todavia, não nos limitemos a prestar cuidados. Sejamos<br />

“cuidado”, pois sendo assim seremos humanos. Ã<br />

1. Cf. Brotas, de Carvalho Frederico, “Ressurgimento económico”, Ressurgir:<br />

40 Perguntas sobre a Pandemia, Paulinas Editora, Prior Velho, <strong>2020</strong>, 17.<br />

2. cf. Boff Leonardo, “Crise-Oportunidades de Crescimento”, Editora Vozes, Petrópolis,<br />

2010, 30.<br />

3. cf. Francisco, “Exortação Apostólica Evangelii Gaudium”, (24 de novembro de<br />

2013), Lisboa, Secretariado-Geral do Episcopado, 2013, 53.<br />

4. Cf. Carta Encíclica “Laudato Si” - sobre o cuidado da Casa Comum, (24 de maio<br />

de 2015), Lisboa: Secretariado-Geral do Episcopado, 2015, 137-138.<br />

5. cf. Boff Leonardo, “Saber cuidar: Ética do humano- compaixão pela terra”, Editora<br />

Vozes, Petrópolis, 1999, 89.<br />

• AAVV, “Ressurgir: 40 Perguntas sobre a Pandemia”, Paulinas Editora, Prior Velho,<br />

<strong>2020</strong>.<br />

• Boff Leonardo, “Crise - Oportunidades de Crescimento”, Editora Vozes, Petrópolis,<br />

2010.<br />

• Boff Leonardo, “Saber cuidar: Ética do humano - compaixão pela terra”, Editora<br />

Vozes, Petrópolis, 1999.<br />

• Carta Encíclica “Laudato Si” - sobre o cuidado da Casa Comum, (24 de maio de<br />

2015), Lisboa: Secretariado-Geral do Episcopado, 2015.<br />

• Francisco, “Exortação Apostólica Evangelii Gaudium”, (24 de novembro de<br />

2013), Lisboa, Secretariado-Geral do Episcopado, 2013.<br />

36 37


GH saúde militar<br />

O APOIO MILITAR<br />

DE EMERGÊNCIA<br />

Joaquim Formeiro Monteiro<br />

Tenente General (ex-Comandante da Logística do Exército)<br />

Do Conceito Estratégico de Defesa Nacional<br />

(CEDN), aprovado em 2013,<br />

retira-se do seu articulado a intenção<br />

de levantar uma unidade militar de ajuda<br />

de emergência, com a ressalva cautelar<br />

de não poder haver lugar ao aumento de efectivos<br />

das Forças Armadas (FA).<br />

Necessariamente, tratava-se de um desígnio perfeitamente<br />

adequado às missões das FA, no sentido do<br />

apoio às populações, em situações de calamidade e catástrofe,<br />

através de um levantamento de capacidades,<br />

e que de forma autónoma, pudessem utilizar os seus<br />

meios orgânicos passíveis de utilização dual.<br />

Embora podendo questionar-se o timing desta intenção,<br />

uma vez que, eventualmente, por desconhecimento ou<br />

distracção do legislador, as capacidades inerentes aquele<br />

desígnio já estavam levantadas, organizadas e testadas<br />

pelo Exército, desde 2011, releva-se o facto da matéria<br />

ter sido inscrita no diploma em questão.<br />

O Levantamento de Capacidades<br />

Na realidade, em 2011, perante um quadro de graves calamidades<br />

naturais que assolaram várias regiões do globo,<br />

impunha-se uma reflexão atempada sobre a optimização<br />

dos recursos disponíveis para fazer face, no país, a situações<br />

daquela natureza, por parte das entidades responsáveis.<br />

Não estando Portugal, de forma alguma, isento da ocorrência<br />

de catástrofes e calamidades naturais que representassem<br />

graves riscos para a sobrevivência e qualidade<br />

de vida da sua população, o Exército português, tendo<br />

em consideração as suas capacidades, entendeu que a<br />

sua acção, neste domínio, poderia ir mais além do que a<br />

colaboração pontual com o Serviço Nacional de Protecção<br />

Civil (SNPC), como vinha acontecendo.<br />

Acentuava-se, assim, o reconhecimento de que alguns<br />

meios do Exército reuniam condições para poderem<br />

ser mais rentabilizados no âmbito do chamado duplo<br />

uso, com a particularidade de alguns deles apresentarem<br />

capacidades únicas, no panorama nacional, que importaria<br />

valorizar.<br />

Nesse sentido, de acordo com orientações do Comando<br />

do Exército, teve lugar um conjunto de estudos e<br />

trabalhos, no Comando da Logística, com o objectivo de<br />

levantar, organizar e implementar uma nova capacidade,<br />

que, agregando pessoal, meios e equipamentos, pudesse<br />

garantir uma resposta autónoma e credível, por parte do<br />

Ramo, face a cenários de emergência e catástrofe, que<br />

pudessem ocorrer no território nacional (TN).<br />

Tendo já em consideração, na altura, as limitações existentes<br />

ao nível dos efectivos, a par das pesadas restrições<br />

de ordem orçamental que se faziam sentir nas FA,<br />

foi levantado um modelo organizacional que pudesse<br />

responder aquele desafio, sem comprometimento da<br />

missão principal das Unidades e Órgãos a empenhar.<br />

A Unidade Logística de Emergência (ULE)<br />

Neste âmbito, foi desenhada e projectada a estrutura<br />

da denominada Unidade Logística de Emergência (ULE),<br />

tendo por base os meios disponíveis, com características<br />

de utilização dual, na premissa da impossibilidade de aumento<br />

de efectivos, e na indisponibilidade de dispor de<br />

outros meios e equipamentos, que não fossem aqueles,<br />

que, à época, eram os orgânicos do Exército.<br />

O desafio centrava-se, assim, na organização e preparação<br />

de pessoal e meios com vista à estruturação e empenhamento<br />

de uma nova capacidade do Exército, com<br />

base nas Unidades e Órgãos do Comando da Logística,<br />

onde residia a quase totalidade dos equipamentos e<br />

meios a utilizar, bem como dos efectivos indispensáveis<br />

à respectiva operação e emprego.<br />

Deste modo, e de acordo com o despacho do General<br />

Chefe do Estado Maior do Exército (GEN CEME) de<br />

03 de Junho de 2011, a ULE foi projectada, tendo em<br />

consideração os seguintes pressupostos:<br />

• O Exército não dispunha, à data, de nenhuma capacidade<br />

desta natureza;<br />

• Tratava-se de uma Unidade de escalão companhia,<br />

com um grau de prontidão de 4 a 6 horas, e que deveria<br />

estar à ordem do GEN CEME;<br />

• Considerava-se que seria uma Unidade que resultaria<br />

da agregação de capacidades existentes, guarnecida exclusivamente<br />

por pessoal em acumulação de funções, e<br />

em ordem de batalha (OB);<br />

• Os meios e equipamentos necessários ao preenchimento<br />

do respectivo quadro orgânico de material encontravam-se<br />

ao serviço, nomeadamente nas Unidades<br />

e Órgãos do Comando da Logística;<br />

• Após solicitação ao Exército para colaborar nas acções<br />

de protecção civil, esta Unidade poderia conduzir a<br />

sua acção, caso necessário, sob o comando operacional<br />

do Comando das Forças Terrestres (CFT).<br />

Como possibilidades, a ULE, através dos seus meios, podia<br />

garantir a montagem de um campo de desalojados<br />

com uma capacidade base de alojamento, alimentação,<br />

serviços e apoio sanitário para 500 pessoas, nas primeiras<br />

24 horas, após activação, e com possibilidades de<br />

expansão até 1000 pessoas a instalar de forma faseada,<br />

após aquele período de tempo, em qualquer ponto do<br />

TN, da seguinte forma:<br />

Numa primeira fase, 24 horas após activação, garante:<br />

• Capacidade inicial de alojamento, alimentação (ração<br />

de reserva) e serviços para 500 desalojados, bem como<br />

o respectivo transporte;<br />

• Avaliação de infra estruturas e apoio geográfico na<br />

área sinistrada;<br />

• Triagem, reanimação, retenção limitada e evacuação<br />

de indisponíveis e doentes críticos.<br />

Numa segunda fase, decorridas as primeiras 24 horas, e<br />

até 48 horas após a activação, assegura:<br />

• Capacidade intermédia de alojamento, confecção e distribuição<br />

de alimentação quente, bem como serviços de<br />

lavandaria e banhos para 500 desalojados;<br />

• Fornecimento de energia e iluminação no campo de<br />

desalojados;<br />

• Triagem, reanimação, retenção acrescida e evacuação<br />

de doentes críticos.<br />

Após as primeiras 72 horas, depois da activação, e numa<br />

terceira fase, garante a totalidade das suas restantes capacidades<br />

na zona sinistrada, e o reforço do apoio em alojamento,<br />

alimentação e serviços até 1000 desalojados.<br />

Com um total de 189 militares (20 Oficiais, 45 Sargentos<br />

e 115 praças), a estrutura da ULE foi desenhada de<br />

forma a garantir as funções logísticas de reabastecimento<br />

e transportes, manutenção, evacuação-hospitalização,<br />

e serviços.<br />

Sendo constituída à custa dos meios e equipamentos<br />

das Unidades e Órgãos, na dependência do Comando<br />

da Logística, e ainda, pelos módulos de comunicações e<br />

de segurança do CFT, a ULE assumia, desta forma, características<br />

modulares, com um grau de prontidão adequado<br />

à exigência da sua missão.<br />

Neste sentido, a organização modular da ULE apresentava-se<br />

da seguinte forma: }<br />

38 39


GH saúde militar<br />

Módulo de comando<br />

Garantido pela Unidade de Apoio da Área Militar Amadora<br />

Sintra (UnApAMAS), no que diz respeito ao respectivo<br />

comando e controlo.<br />

Módulo de reabastecimento<br />

O Depósito Geral de Material do Exército (DGME) e a<br />

Manutenção Militar (MM) proporcionavam o reabastecimento<br />

de artigos das classes I, II, III, VII e IX, bem como<br />

o transporte dos artigos das classes I e III.<br />

Módulo de manutenção<br />

Assegurado pelo Regimento de Manutenção (RMan), no<br />

domínio da manutenção de material e viaturas da ULE.<br />

Módulo de energia<br />

Com o fornecimento de energia, instalação e manutenção<br />

da rede eléctrica no campo de desalojados a ser<br />

garantido pelo Centro Militar de Electrónica (CME).<br />

Módulo de serviços<br />

A UnApAMAS detinha, ainda, como responsabilidade<br />

acrescida o fornecimento de alojamento, alimentação<br />

confeccionada e serviços de banhos, latrinas e lavandaria.<br />

Módulo de apoio sanitário<br />

Ao Hospital de Campanha, Laboratório de Bromatologia,<br />

Laboratório de Defesa Biológica e Laboratório Militar<br />

de Produtos Químicos e Farmacêuticos competiam<br />

a triagem e reanimação, evacuação sanitária, retenção<br />

limitada para doentes críticos, consultas médicas, apoio<br />

psicológico, farmácia, segurança alimentar e epidemiológica,<br />

e, ainda, o reabastecimento de artigos classe VIII.<br />

Módulo de avaliação de infra estruturas e apoio geográfico<br />

Este módulo era garantido pela Direcção de Infra-estruturas<br />

do Exército (DIE) e pelo Instituto geográfico do<br />

Exército (IGEOE), executando o reconhecimento e selecção<br />

das áreas para instalação do campo de desalojados,<br />

bem como o reconhecimento e avaliação da estabilidade<br />

do edificado na área sinistrada, a par de uma<br />

actualização da informação geográfica da zona sinistrada.<br />

Módulo de transportes<br />

Assentava na participação do Regimento de Transportes<br />

(Rtransp) com a afectação dos meios indispensáveis<br />

ao transporte de desalojados para o respectivo campo,<br />

bem como ao transporte de bens e equipamentos de<br />

natureza vária.<br />

Deste modo, o modelo da ULE estruturava-se na agregação<br />

funcional dos materiais e equipamentos das várias<br />

Unidades e Órgãos referenciados, bem como na concentração,<br />

à ordem, dos respectivos módulos e parte<br />

significativa dos seus meios, numa unidade pré definida,<br />

situação que facilitaria a formação e treino dos efectivos<br />

envolvidos. Atendendo à rapidez e ao elevado grau de<br />

preparação exigido, o material e equipamento a utilizar<br />

deveriam encontrar-se preparados, contentorizados<br />

ou rapidamente contentorizáveis, ou, ainda, palatizados,<br />

devendo a capacidade de transporte, em segurança e<br />

rapidez, constituir-se como atributo fundamental para o<br />

sucesso da manobra.<br />

A ULE foi formalmente apresentada no Depósito Geral<br />

de Material do Exército (DGME), em Benavente, em<br />

19 de Maio de 2011, apresentando a sua organização e<br />

capacidades na presença de várias entidades, destacando-se<br />

o Ministro da Defesa Nacional e o General Chefe<br />

do Estado Maior do Exército, à época.<br />

Para enquadrar esta demonstração, foi levantado um<br />

cenário de ocorrência de um abalo sísmico na região<br />

do Vale do Tejo, afectando a Área Metropolitana de<br />

Lisboa, de que teriam resultado centenas de mortos e<br />

feridos, bem como milhares de desalojados, para além<br />

de extensos danos no edificado e nas infra estruturas da<br />

zona afectada.<br />

Foi, então, solicitado ao Exército o apoio em assistência<br />

médica e sanitária, evacuação e hospitalização de feridos,<br />

reconhecimento e alojamento, alimentação e serviços<br />

para os desalojados, vítimas da catástrofe.<br />

A demonstração dinâmica visou demonstrar as actividades<br />

que se desenrolariam no âmbito de uma situação<br />

daquela natureza, fazendo uso das capacidades, meios e<br />

equipamentos duais do Exército, disponíveis para o efeito,<br />

envolvendo 92 efectivos, 32 viaturas, empilhadores,<br />

grupos geradores, atrelados de cozinha, de banhos e de<br />

lavandaria, tendas de alojamento, contentores hospitalares<br />

e demais material complementar, num somatório<br />

de várias toneladas.<br />

Conjugando os diversos módulos constituintes da ULE,<br />

foi, então, levantado um campo de desalojados, com<br />

capacidade para alojar e prestar os respectivos serviços<br />

de apoio a 500 pessoas, com as seguintes áreas:<br />

Área de apoio sanitário<br />

Local onde se instalaram as componentes do hospital<br />

de campanha, farmácia e equipa de emergência biológica,<br />

preparados para prestar cuidados de saúde de emergência,<br />

cirurgia de estabilização, cuidados continuados,<br />

tratamentos comuns, prevenção e controlo de doenças<br />

infecciosas, epidemias e outras doenças.<br />

Área de alojamento e serviços, com a seguinte constituição:<br />

• Comando e administração, tendo como objectivo o<br />

registo de desalojados e a administração e controlo de<br />

todas as actividades logísticas a desenvolver; a avaliação<br />

de danos em infra estruturas, e o levantamento e a produção<br />

de informação geográfica conveniente;<br />

• Zonas comunitárias de alojamento e serviços, agrupadas<br />

em três blocos (128 pessoas, cada) constituídos,<br />

cada um, por 16 tendas de campanha climatizadas, duas<br />

áreas de instalações sanitárias e duches, bem como<br />

lavandaria e depósitos de água, com capacidade para<br />

apoiar até 384 pessoas, com capacidade de expansão;<br />

• Área de apoio, guarnecida com tendas de campanha<br />

de 5 arcos para serviços de refeitório, bem como cozinhas<br />

de campanha, contentores frigoríficos de conservação<br />

de víveres, depósito de água e estação de tratamento<br />

e purificação de águas para armazenagem, confecção<br />

e distribuição de alimentação;<br />

• Serviços de apoio, responsáveis pela recolha, transporte,<br />

armazenagem de géneros e combustíveis; reabastecimento<br />

de materiais e equipamentos, com vista }<br />

40


GH saúde militar<br />

“<br />

O EXÉRCITO, PELA SUA<br />

ORGANIZAÇÃO, CONHECIMENTO<br />

E EXPERIÊNCIA,E PELOS MEIOS<br />

E EQUIPAMENTOS DE QUE<br />

DISPUNHA, DEMOSTRAVA, ASSIM,<br />

QUE SE ENCONTRAVA<br />

ESPECIALMENTE CAPACITADO<br />

PARA PRESTAR APOIO MILITAR<br />

DE EMERGÊNCIA, TANTO NA FASE<br />

DE RESPOSTA, COMO NA FASE<br />

INICIAL DA RECUPERAÇÃO<br />

DE UM DESASTRE OU CATÁSTROFE,<br />

COM ESPECIAL DESTAQUE<br />

PARA O APOIO HUMANITÁRIO,<br />

DESENHANDO E PROJECTANDO,<br />

PARA O EFEITO.<br />

”<br />

à distribuição de utensílios e artigos de higiene pessoal,<br />

vestuário e agasalhos; evacuação e transporte de indisponíveis<br />

e material diverso; fornecimento de energia<br />

eléctrica, e manutenção e reparação de material e equipamento<br />

orgânico.<br />

A ULE materializava, desta forma, publicamente, uma<br />

resposta autónoma do Exército para intervir em situações<br />

de emergência e catástrofe, traduzida num modelo<br />

integrador das capacidades duais do Ramo, em apoio às<br />

populações sinistradas, em qualquer ponto do TN.<br />

Neste sentido, devem ser interpretadas as palavras do<br />

MDN, na altura, ao sublinhar a importância do Exército<br />

ter ficado melhor preparado para intervir mais activamente<br />

na “sustentação da protecção civil e na promoção<br />

do desenvolvimento e bem-estar das populações.”<br />

O Exército, pela sua organização, conhecimento e experiência,<br />

e pelos meios e equipamentos de que dispunha,<br />

demostrava, assim, que se encontrava especialmente capacitado<br />

para prestar apoio militar de emergência, tanto<br />

na fase de resposta, como na fase inicial da recuperação<br />

de um desastre ou catástrofe, com especial destaque<br />

para o apoio humanitário, desenhando e projectando,<br />

para o efeito, uma capacidade integradora dos meios<br />

orgânicos existentes nas suas Unidades Estabelecimentos<br />

e Órgãos.<br />

A ULE assumia-se como uma unidade de composição<br />

modular, com organização variável, dependendo da<br />

situação e das condições de emprego, em que a respectiva<br />

estrutura orgânica de pessoal se encontrava em<br />

ordem de batalha, e em que os materiais e equipamentos<br />

necessários à sua acção eram orgânicos do Exército,<br />

com possibilidades de garantir apoio logístico humanitário<br />

até 1000 pessoas, em qualquer ponto do TN, e com<br />

um grau de prontidão de 4 a 6 horas, naturalmente sem<br />

contar com o deslocamento para a zona de operações.<br />

As possibilidades da ULE, publicamente apresentadas,<br />

ficavam reconhecidas pelo MDN, que destacaria a importância<br />

e a oportunidade desta nova capacidade do<br />

Exército, no quadro do reforço da protecção das populações,<br />

em ambiente de emergência e catástrofe.<br />

A Unidade de Apoio Militar de Emergência (UAME)<br />

Terá sido com base neste modelo organizacional e na<br />

nova capacidade, entretanto, antecipada, que, em 2016,<br />

o Exército procedeu ao levantamento do Regimento<br />

de Apoio Militar de Emergência (RAME), localizado em<br />

Abrantes, nas instalações da ex-Escola Prática de Cavalaria,<br />

entretanto extinta.<br />

Do “produto operacional” desta nova Unidade do<br />

Exército, resultava a UAME, que passava a ficar com<br />

a responsabilidade de comando, controlo e emprego<br />

operacional dos meios do Exército vocacionados para<br />

as operações de socorro às populações, nas áreas<br />

afectadas por situações de acidentes graves e catástrofe,<br />

através do apoio às entidades responsáveis pela Protecção<br />

Civil.<br />

Com uma organização conceptualmente semelhante<br />

à ULE, embora dotada de alguns elementos adicionais,<br />

continuava a deter, como principais possibilidades de<br />

emprego, as capacidades dos módulos de engenharia,<br />

do apoio sanitário e psicológico, do reabastecimento e<br />

serviços, da manutenção e transportes, e da defesa biológica,<br />

química e radiológica.<br />

De considerar, que não sendo possível a localização<br />

concentrada na UAME dos respectivos módulos integradores,<br />

pela carência dos meios disponíveis, aqueles<br />

são aprontados e cedidos por diferentes Unidades e<br />

Órgãos do Exército, realidade que, por via da sua dispersão<br />

territorial, acaba por induzir reconhecidas restri-<br />

ções na capacidade de apoio, em cada momento.<br />

Considerações finais<br />

As severas restrições orçamentais que, entretanto, se<br />

vêm abatendo sobre o edifício da Defesa Nacional, não<br />

permitindo a aquisição suficiente de meios e equipamentos<br />

indispensáveis àquela capacidade, a par da drástica<br />

diminuição dos efectivos nas Forças Armadas, vêm<br />

acrescer seriamente as limitações da Unidade, impondo<br />

que as entidades políticas competentes devessem encarar,<br />

com realismo e responsabilidade, as medidas indispensáveis<br />

a uma ajustada alocação de recursos e meios,<br />

da qual pudesse resultar o indispensável acréscimo de<br />

eficácia de uma capacidade única das Forças Armadas,<br />

tão necessária ao País.<br />

Num quadro transnacional de progressivas situações<br />

de emergência e crise, como aquela que o País, actualmente,<br />

atravessa, os Portugueses esperam, justamente,<br />

que as FA possam contribuir, efectivamente, para o seu<br />

combate e mitigação, e dificilmente compreenderiam<br />

outras opções políticas, que não fossem aquelas que<br />

contribuíssem para o reforço e credibilização das suas<br />

capacidades mais intrínsecas, em tempo de paz. Ã<br />

Obs: Este trabalho resulta da adaptação de um artigo publicado, pelo autor,<br />

na Revista Militar de Dezembro de 2013.<br />

42 43


GH Investigação e cooperação<br />

INVESTIGAÇÃO<br />

E COOPERAÇÃO NO ESPAÇO<br />

LUSÓFONO E A PANDEMIA<br />

Filomeno Fortes<br />

Diretor do Instituto de Higiene e Medicina Tropical<br />

da Universidade NOVA de Lisboa<br />

Em 30 de janeiro de <strong>2020</strong> seguindo as<br />

recomendações do Comité de Emergência,<br />

o Diretor Geral da OMS (Organização<br />

Mundial da Saúde) declarou<br />

a epidemia provocada pelo vírus SARS-<br />

-CoV-2 como emergência de saúde pública. O primeiro<br />

caso foi reportado em 31 de dezembro de 2019 com<br />

origem em Wuhan, República Popular da China com a<br />

pandemia declarada em 11 de Março do ano seguinte.<br />

O espaço lusófono (Comunidade dos Países de Língua<br />

Portuguesa - CPLP), é um agregado geomorfológico intercontinental<br />

com grande polimorfismo político, social,<br />

científico e organizacional incluindo Portugal (Europa),<br />

Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa - PALOP<br />

(Africa), Brasil (América Latina) e Timor Leste (Ásia). O<br />

comportamento da pandemia afetou de forma diferente<br />

os países da CPLP. Portugal não fugiu ao padrão de<br />

transmissão Europeu com os idosos e os portadores de<br />

doenças crónicas como principal grupo de risco e com<br />

uma capacidade de resposta diferente em relação aos<br />

demais países da CPLP. O Brasil apresenta-se como o<br />

país mais afetado da CPLP tendo ultrapassado os 4,7<br />

milhões de casos e 140 mil mortes. Globalmente, antes<br />

da transmissão comunitária, os primeiros casos de<br />

Covid-19 nos PALOP foram importados de pessoas<br />

oriundas do continente Europeu, afetando maioritariamente<br />

a população mais jovem (20 e 39 anos de idade).<br />

Estes países (incluindo o Brasil) apresentam grandes fragilidades<br />

dos sistemas de saúde, agravado pela carên-<br />

cia de recursos financeiros, técnicos e humanos para a<br />

prevenção, diagnóstico da doença e gestão de casos,<br />

apesar da tradicional experiência do Brasil, de Angola<br />

e de Moçambique no combate a epidemias de dengue,<br />

febre amarela, cólera, Marburg (Angola) e resposta a<br />

catástrofes naturais (Brasil e Moçambique). Os últimos<br />

relatórios sobre a situação epidemiológica nos países da<br />

CPLP (mês de Setembro) mostram aumento da incidência<br />

da doença em Portugal, Moçambique e Angola,<br />

com o Brasil, S. Tomé e Príncipe e Cabo Verde a notificarem<br />

menos casos. Neste contexto, a investigação e a<br />

cooperação no espaço lusófono constituem elementos<br />

importantes na gestão da pandemia. Este trabalho faz<br />

uma abordagem generalista sobre a importância destas<br />

duas componentes estratégicas no reforço da solidariedade<br />

institucional e na identificação de pontes de execução<br />

de projetos que contribuam para a melhoria do<br />

conhecimento científico da Covid-19 nos países CPLP e<br />

consequentemente na resposta a questões específicas.<br />

Covid-19/Investigação<br />

A investigação é uma ferramenta fundamental na estratégia<br />

de controlo de qualquer epidemia, com valor<br />

acrescentado em situação de pandemia. Os pilares básicos<br />

são a disponibilidade financeira, recursos técnicos<br />

materiais e humanos competentes e regulamentação<br />

ética. Os resultados devem ser robustos e com forte<br />

evidência em relação à sua eficácia. A investigação suporta<br />

as várias componentes estratégicas como a prevenção,<br />

deteção, rastreamento e tratamento.<br />

Em fevereiro de <strong>2020</strong>, a OMS realizou um encontro<br />

científico para recolha de informação sobre o “novo”<br />

vírus, concluindo que dadas as incertezas sobre o conhecimento<br />

deste agente patológico se deveria acelerar<br />

urgentemente a pesquisa na busca de respostas rápidas.<br />

Esta pesquisa deveria basear-se num objetivo de curto<br />

prazo para contenção da disseminação da doença e num<br />

segundo objetivo de melhoria de resposta a um próximo<br />

imprevisível surto pandémico. Para implementação<br />

foi reativado um mecanismo designado R&D Blueprint<br />

que no passado estivera na base de uma resposta global<br />

e integrada para a aceleração da resposta a epidemias<br />

de vírus de Ébola, SARS-CoV e MERS-CoV, incluindo o<br />

desenvolvimento de vacinas, tratamentos farmacêuticos<br />

e reforço dos sistemas de comunicação entre os países,<br />

devendo agora incluir a componente diagnóstica. Embora<br />

a Covid-19 seja uma doença infeciosa, o seu impacto<br />

psico-social (incluindo doenças como a depressão e o<br />

burnout dos profissionais de saúde), e o económico exigem<br />

igualmente investigação sociológica e antropológica.<br />

A investigação a nível da CPLP deve incluir estudo do<br />

SARS-CoV-2 (infetividade, patogenicidade, virulência,<br />

dose infetante, poder invasivo, imunogenicidade), do<br />

hospedeiro (assintomáticos, sintomáticos, imunocompetentes<br />

e população de risco) e do sistema de saúde<br />

(cobertura sanitária, qualidade da atenção, avanço tecnológico,<br />

dependência científica e tecnológica, recursos<br />

humanos e financeiros). No geral, a pandemia em curso<br />

ainda tem lacunas de conhecimento que carecem de<br />

investigação adequada, nomeadamente a dinâmica da<br />

resposta imunológica, a severidade da doença em populações<br />

com características variadas, a relação entre a<br />

concentração viral e a severidade da doença, a relação<br />

entre o estado de melhoria com o desaparecimento do<br />

vírus, validação dos testes serológicos, possibilidade de<br />

mutações na estrutura genética do vírus que possam<br />

interferir na eficácia dos testes moleculares, vacinas e<br />

medidas terapêuticas. A prevalência de doenças genéticas<br />

como a drepanocitose (anemia de células falciformes),<br />

as doenças tropicais negligenciadas (uso da ivermectina<br />

nas filarioses), a malária, a tuberculose e VIH/<br />

SIDA (co-infeção, uso de anti-retrovirais) são de particular<br />

interesse científico a nível dos PALOP e do Brasil.<br />

Neste domínio, a metodologia científica conhecida<br />

por Genome-Wide Association Studies (GWAS) procura<br />

quantificar o nível de associação entre a presença da<br />

doença e as variações genéticas de segmentos específicos<br />

do genoma humano. Esta análise, de acordo com o<br />

The Severe Covid-19 GWAS, permite a estratificação de<br />

risco de doentes com Covid-19. Do ponto de vista de<br />

vigilância epidemiológica sublinha-se a identificação do R<br />

(replicação do vírus), R2 (replicação para terceiros sem<br />

imunidade) e do Tc (taxa global de ataque clínico). O<br />

domínio destes dados permite uma melhor monitorização<br />

da situação e tomada de decisões mais adequadas.<br />

O envolvimento da bioestatística é importante a partir<br />

de protocolos que possam dar suporte científico. Igualmente<br />

importante o estudo das cadeias de transmissão<br />

principalmente em países de grande extensão geográfica<br />

como Brasil, Moçambique e Angola. A eficácia das<br />

medidas de distanciamento social, o uso de máscaras e<br />

proteções oculares apesar de grande consenso continuam<br />

a merecer alguma interrogação, talvez devido à<br />

ausência de estudos específicos em países com caraterísticas<br />

culturais e comportamentais complexas.<br />

O aumento da infeção em trabalhadores da saúde em<br />

Portugal, Brasil, Moçambique, Guiné-Bissau e mais recentemente<br />

em Angola, confirma o resultado do trabalho<br />

de investigação desenvolvido por Roger Chou et al em<br />

relação à frequência das infeções por SARS-CoV-2 }<br />

44 45


GH Investigação e cooperação<br />

“ “<br />

OUTRO PONTO DE INTERROGAÇÃO<br />

DE INTERESSE NA CPLP É A<br />

EVENTUALIDADE DA INTERAÇÃO<br />

IMUNOLÓGICA FAVORÁVEL<br />

COM A VACINA BCG.<br />

UM ESTUDO DE SOLIMAN ET AL<br />

NÃO CONFIRMA ESTA HIPÓTESE<br />

CONSIDERANDO QUE CARECE<br />

DE MAIS INVESTIGAÇÃO.<br />

nos profissionais da saúde e a necessidade de implementação<br />

de medidas anti contágio eficazes incluindo métodos<br />

gerais de controlo de infeções. A fraca cobertura<br />

dos cuidados primários de saúde agravada pelo receio<br />

das populações ocorrerem às unidades para tratamento<br />

de doenças correntes, exige a necessidade de estudos<br />

para a criação de novos paradigmas de atendimento<br />

médico. O papel dos laboratórios na investigação é relevante,<br />

desde a monitorização virológica (sintomáticos,<br />

assintomáticos), evolução genética (sequenciação do<br />

vírus para estudo de eventuais mutações), vacinas, imunidade<br />

de grupo, eficácia terapêutica, monitorização de<br />

doentes etc. A deteção do vírus através da utilização da<br />

técnica designada por RT-qPCR (Reverse Transcriptasequantitative<br />

Polymerase Chain Reaction) em tempo real,<br />

que pressupõe a replicação do DNA de forma a obtenção<br />

de um número de moléculas detetáveis a partir<br />

de um fragmento complementar designado por primer,<br />

com uma sensibilidade que pode chegar aos 95% é facto<br />

consumado. No entanto, por ter a capacidade de detetar<br />

RNA degradado, esta técnica pode dar positiva em<br />

indivíduos não infeciosos, havendo necessidade de se<br />

investigar a combinação de formas de confirmação diagnóstico<br />

complementar em assintomáticos ou doentes<br />

que evoluíram favoravelmente do ponto de vista clínico.<br />

Nos países com fraca cobertura sanitária como os<br />

PALOP, a introdução de tecnologia de point of care é<br />

um elemento importante para facilitar o diagnóstico e<br />

suporte à investigação. Dinnes et al apresentaram recentemente<br />

dados importantes sobre a utilização de<br />

testes rápidos, nomeadamente de testes de antigénios<br />

com 56% de sensibilidade (IC 95% = 29,5% - 79,8%) e<br />

testes moleculares rápidos com 95,2% de sensibilidade<br />

(IC 95% = 867% - 98,3%).<br />

A investigação deve apoiar o diagnóstico clínico e laboratorial<br />

nos PALOP e no Brasil devido à possibilidade de<br />

intercorrência de síndromes febris frequentes de malária,<br />

Chikungunya ou Dengue. Esta nota estende-se ao tratamento<br />

já que qualquer destes síndromes, à semelhança<br />

do SARS-CoV-2 pode cursar com trombocitopenia e<br />

alteração dos factores de coagulação por mecanismos diferentes<br />

com orientação terapêutica oposta (na Dengue<br />

está contra-indicado o uso de anti-coagulantes exatamente<br />

o inverso do que se preconiza para o tratamento da<br />

Covid-19). Ainda em relação ao tratamento questiona-se<br />

a utilização adequada da oxigenoterapia, sobretudo nos<br />

PALOP tendo em conta as carências em cuidados intensivos<br />

e as reticências apresentadas por Cumpstey AF et al<br />

no estudo sobre o nível de intensidade de oxigenoterapia<br />

em doentes com Covid-19 e ARDS.<br />

Em 4 de julho de <strong>2020</strong>, a OMS aceitou a recomendação<br />

do Solidarity Trial’s International Steering Committee para<br />

se interromper os estudos sobre o uso da hidroxicloroquina<br />

devido sobretudo aos efeitos secundários encontrados<br />

em doentes hospitalizados. Contudo, a OMS não<br />

invalida a possibilidade de se manter a investigação para<br />

o uso desta droga em doentes não hospitalizados e/ou<br />

como potencial profilático. Países lusófonos há que continuam<br />

a utilizar este fármaco por carência de remdesivir<br />

ou porque a prática médica corrente não é concludente<br />

com a recomendação da OMS, mantendo-se aqui mais<br />

uma vez a possibilidade de se compreender melhor o<br />

efeito desta droga em contextos específicos e com informação<br />

mais robusta. Outro ponto de interrogação<br />

de interesse na CPLP é a eventualidade da interação<br />

imunológica favorável com a vacina BCG. Um estudo de<br />

Soliman et al não confirma esta hipótese considerando<br />

que carece de mais investigação. A transmissão oro-fecal<br />

continua a ser uma hipótese de trabalho crucial em<br />

países com dificuldades de saneamento do meio como<br />

Angola, Brasil e Moçambique. Jefferson T et al, demonstraram<br />

que 12% dos doentes com Covid-19 apresentam<br />

sintomas gastrintestinais com deteção de partículas<br />

virais completas do SARS-CoV-2 nas fezes e deteção<br />

do vírus em instalações sanitárias e esgotos hospitalares.<br />

Este tipo transmissão nos PALOP, pode constituir um<br />

elemento de alto risco de contágio a nível das escolas.<br />

Covid19/Cooperação no Espaço Lusófono<br />

No início de Abril, cientistas de todo o mundo lançaram<br />

a Coligação de Pesquisa Clínica da Covid-19, com mais<br />

de 70 Instituições e fundações de cerca de 30 países.<br />

Algumas Organizações como a Academia Africana de<br />

Ciências (AAS), a União Europeia (Programa de Resposta<br />

Global), juntaram-se a este movimento tendo<br />

sido angariados valores insuficientes tendo em conta<br />

as especificidades e gravidade da pandemia. Em África<br />

o Programa de Desenvolvimento da União Africana<br />

designado por NEPAD (sigla em inglês) considera que<br />

embora o continente tenha cientistas renomáveis, a falta<br />

de recursos financeiros e tecnológicos limita o conhecimento.<br />

A pandemia pode ser uma oportunidade para<br />

desenvolver a pesquisa na CPLP, sendo claro que as<br />

prioridades em termos de investigação e de cooperação<br />

devem incluir a prevenção da doença (prioridade), diagnóstico<br />

precoce, tratamento adequado, e a recuperação<br />

dos doentes.<br />

Maria de Belém, presidente do Conselho Consultivo<br />

do IHMT-NOVA no Webinar Covid-19 promovido<br />

por aquela instituição dedicado à diplomacia em saúde<br />

afirmou que “a língua surge como um instrumento de<br />

combate às desigualdades” no âmbito da cooperação<br />

da investigação em saúde. Esta afirmação foi precedida<br />

no mesmo evento pelo Embaixador de Portugal<br />

na República da Guiné-Bissau, António de Carvalho,<br />

sublinhando que “a saúde neste momento é um sector<br />

estratégico para a diplomacia dos países”. Em 2021<br />

Portugal assumirá a Presidência da União Europeia e<br />

Angola a Presidência da CPLP. A investigação deverá<br />

constituir um ponto estratégico fundamental na visão e<br />

gestão dessas organizações, considerando que o regresso<br />

à “normalidade” dependerá do desenvolvimento da<br />

ciência nos próximos tempos. Seria desejável e oportuno,<br />

que os Ministérios da Cooperação/Negócios Estrangeiros,<br />

Saúde, Ensino Superior, Ciência e Tecnologia e<br />

Inovação dos países da CPLP, colocassem na sua agenda<br />

mecanismos específicos de cooperação interinstitucional<br />

direcionados à Cooperação/Investigação Covid-19.<br />

Recomendação<br />

A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP)<br />

é o foro multilateral privilegiado para o aprofundamento<br />

da amizade mútua e da cooperação entre os seus<br />

membros incluindo os domínios da saúde, da ciência e<br />

tecnologia. Neste período especial de pandemia sem um<br />

horizonte temporal previsível para o seu controlo, recomendar-se-ia<br />

que a CPLP assuma um papel de liderança,<br />

propondo aos seus membros a adequação do Plano Estratégico<br />

de Cooperação em Saúde (PECS) à situação<br />

da Pandemia Covid-19. Nesta base, a investigação faria<br />

parte do plano como uma componente prioritária, recorrendo<br />

estrategicamente aos seus Observadores Consultivos<br />

e Assessores Técnicos, nomeadamente o Instituto<br />

de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova<br />

de Lisboa e à FIOCRUZ-Brasil, e envolvendo de forma<br />

prática as redes institucionais, com destaque para a Rede<br />

dos Institutos Nacionais de Saúde (RINSP). Ã<br />

EM 2021 PORTUGAL ASSUMIRÁ<br />

A PRESIDÊNCIA DA UNIÃO<br />

EUROPEIA E ANGOLA<br />

A PRESIDÊNCIA DA CPLP.<br />

A INVESTIGAÇÃO DEVERÁ<br />

CONSTITUIR UM PONTO<br />

ESTRATÉGICO FUNDAMENTAL<br />

NA VISÃO E GESTÃO DESSAS<br />

ORGANIZAÇÕES.<br />

” ”<br />

• Cumpstey, AF et al. “Oxygen targets in the intensive care unit during mechanical<br />

ventilation for acute respiratory distress syndrome: a rapid review”. Cochrane<br />

Database of Systematic Reviews <strong>2020</strong>, Issu 9. Art. No: CD013708. DOI<br />

10.1002/14651858.CD013708.<br />

• Derek, K Chu et al. “Physical distancing, face masks, and eye protection to prevent<br />

person-to person transmission of SARS-CoV-2 and Covid-19; a systematic<br />

review and meta-analysis”. Lancet June 1, https://doi.org/10.1016/50140-6736<br />

(20)31142-9.<br />

• Rosenberg Eli S. et al: “Association of treatment with hydroxychloroquine or<br />

azithromycin with in hospital mortality in patients with Covid-19 in New York<br />

State”. JAMA May 11, <strong>2020</strong>. Doi:10.1001/jama.<strong>2020</strong>.8630.<br />

• https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/global-research-on-novel-coronavirus-2019-ncov<br />

• https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/global-research-on-novel-coronavirus-2019-ncov/solidarity-clinical-trial-for-covid-19-treatments<br />

• https://www.who.int/teams/blueprint/covid-19<br />

• IHMT-NOVA E-book Webinars sobre Covid-19.<br />

• Jefferson T et al: “SARS-CoV-2 and the role of orofecal transmission: evidence brief”<br />

In.: Analysis of the transmission dynamics of Covid-19: An open evidence review.<br />

http://www.cebm.net/evidence-synthesis//transmission-dynamics-of-covid-19/.<br />

• Soliman, R et al. “Does BCG vaccination protect against acute respiratory infections<br />

and Covid-19? A rapid review of current evidence”. https://www.cebm.net/<br />

covid-19/does-bcg-vaccination-protect-against-acute-respiratory-infections-andcovid-19-a-rapid-review-of-current-evidence/.<br />

• The Severe Covid-19 GWAS Group. “Genomewide study of severe Covid-19<br />

with respiratory failure”. NEJM. Published on June 17 <strong>2020</strong> DOI:10.1056/NEJMoa<br />

<strong>2020</strong>283.<br />

• “WHO Africa Situation Report_Covid-19” WHOAFRO-<strong>2020</strong>-09-23-eng.pdf.<br />

• www.gov.br<br />

46 47


GH homenagem<br />

EDUARDO SÁ FERREIRA,<br />

então consideravam manifestação essencial da sua força<br />

sindical. O IV Governo, nas vascas da agonia, contra<br />

a vontade do responsável pela Saúde o Doutor Mário<br />

UM TÍMIDO ATUANTE<br />

Marques, homem íntegro e corajoso, tinha aceite uma<br />

versão do estatuto que, entre outras enormidades, considerava<br />

que doravante nenhuma decisão política sobre<br />

saúde poderia sem tomada sem o consentimento e não<br />

apenas o conhecimento, da Ordem dos Médicos. Por<br />

outras palavras, a Ordem pretendia não apenas ser sindicato,<br />

mas Governo.<br />

O V Governo Constitucional, presidido por Maria de<br />

Lourdes Pintasilgo, tendo como Ministro dos Assuntos<br />

Sociais Alfredo Bruto da Costa e este vosso amigo como<br />

Secretário de Estado da Saúde, jamais poderia aceitar o<br />

Estatuto Médico que o Governo anterior tinha admitido<br />

António Correia de Campos<br />

sob forte pressão. Os governos então duravam pouco<br />

Sócio Honorário da APAH<br />

e o V Governo tinha data de termo para as eleições de<br />

Dezembro. A OM tinha pressa em aproveitar a ocasião.<br />

Em plena posse governativa, num dos quentes meses da<br />

pós-revolução, manteve uma greve médica, extraordinariamente<br />

bem-sucedida em Agosto, mês de férias. Apro-<br />

O<br />

tímido Eduardo Sá Ferreira era afinal para mais tarde ser o administrador do Serviço de Luta<br />

um lutador. Venceu a adversidade da Anti Tuberculosa e depois o respeitado administrador<br />

ximava-se Setembro e do novo governo nem novas nem<br />

doença até ao fim. De poucas falas, do Hospital Maria Pia, optando por uma aposentação<br />

mandados. O governo recusava receber a OM enquanto<br />

reflexivo, astuto, direto, quando se precoce para, em retiro socrático, ser um patriarca da<br />

a greve se mantivesse e a OM entendia que a greve não<br />

decidia era um trator. Não hesitava. mais qualificada teoria de administração. Pela minha parte<br />

poderia terminar enquanto o novo governo não aceitasse<br />

Sá Ferreira era originário de Esmoriz. Estudou e trabalhou<br />

fui sempre ensinando sem saber fazer administração,<br />

o tal estatuto que havia negociado com o governo ante-<br />

sempre no Porto. Formou-se com esforço, estudante<br />

pois meu mestre Coriolano a tal me havia obrigado parior.<br />

Bruto da Costa tinha a paciência dos orientais e decicário<br />

trabalhador, adquiriu experiência de balcão banra<br />

o ajudar, com Caldeira da Silva, a lançar o primeiro<br />

diu "gerir o silêncio”, isto é, nada dizia quanto ao assunto.<br />

que muito útil lhe foi mais tarde no trato da sua curso para administradores, no longínquo ano de 1970.<br />

Todos os dias a OM incitava o ministério a pronunciar-se<br />

vida profissional.<br />

Eduardo Sá Ferreira foi durante décadas um sólido administrador<br />

e este permanecia cada vez mais silencioso.<br />

Entrámos no Ministério da Saúde no mesmo ano, ele no<br />

do segundo maior hospital do País e o pri-<br />

Como acontece em qualquer pequeno país, havia men-<br />

Porto, eu em Coimbra. Estivemos juntos em todas as meiro do Norte. Conhecendo muito bem a mentalidade<br />

sageiros secretos que tentavam a aproximação, mas sem<br />

ações de formação que a Direção-Geral dos Hospitais<br />

das gentes que servia, reservado mas não timorato,<br />

resultado. A dada altura a OM divide-se e comete o ersageiros<br />

promoveu em 1967 e 1968, uma prática pouco seguida Sá Ferreira fez obra. Quando achou chegada a altura de<br />

ro fatal. O seu ramo do Norte, menos diplomático, resolve<br />

depois e hoje quase ignorada. Fomos selecionados para outros voos, teve a humildade de escolher um exílio<br />

convocar greve total, inclusivamente às urgências.<br />

estudar direção dos hospitais, como os franceses designavam<br />

tropical em São Tomé, onde brilhantemente serviu a<br />

Foi isso o que o ministério queria ouvir e aí foi essen-<br />

a administração hospitalar, em Rennes, França. cooperação portuguesa e ajudou aquele pequeno país<br />

cial o papel de Sá Ferreira. Convocado a prestar declatropical<br />

“<br />

Formámos com Moreno Rodrigues, Meneses Correia, a desembaraçar-se dos seus múltiplos problemas sanitários.<br />

Jamais se ouviu falar de qualquer sombra de colo-<br />

no primeiro dia da greve às urgências um doente mor-<br />

rações sobre o que poderia suceder no seu hospital se<br />

Meneses Duarte e Cristiano de Freitas o grupo dos<br />

meninos de Rennes que Coriolano Ferreira, com rasgada<br />

visão estratégica mandara preparar para refrescar a ção. Sá Ferreira procurava passar despercebido e fazer<br />

acabou por declarar, num rompante que inundou o pe-<br />

SÁ FERREIRA PROCURAVA<br />

nialismo ou de fácil crítica dos beneficiários da cooperaresse<br />

por falta de assistência, depois de muito se torcer,<br />

administração dos grandes hospitais nacionais. Cristiano honradamente o seu trabalho. No fim de vários anos<br />

queno écran: se amanhã morrer um doente nessas circunstâncias,<br />

o médico e a equipa que estavam escalados<br />

PASSAR DESPERCEBIDO E FAZER<br />

passou depois à direção do Hospital de Santa Maria, regressou, passando a prestar colaboração pública e privada.<br />

A sua luta contra a doença marcou a década final<br />

para aquele dia e hora serão responsáveis disciplinar,<br />

Meneses Duarte especializou-se em aprovisionamento<br />

e terminou a sua carreira a administrar com superior de vida, lutando sempre até ao limite da sua vontade.<br />

civil e criminalmente por recusa de assistência a pessoa<br />

HONRADAMENTE O SEU<br />

qualidade o Hospital de Pulido Valente, depois de ter Não posso terminar sem a evocação de um episódio<br />

em perigo! Uma bomba!<br />

TRABALHO. NO FIM DE VÁRIOS<br />

dirigido os serviços centrais de aprovisionamento e ter pessoal de interesse público. No segundo semestre de<br />

Chamado a comentar a situação no segundo canal, meia<br />

ensinado na ENSP, Moreno Rodrigues foi de imediato 1979, a Ordem dos Médicos (OM) desencadeou uma<br />

hora depois, a meio da emissão, sou informado que a ANOS REGRESSOU, PASSANDO<br />

colocado no Hospital Geral da Santo António onde fez greve insólita, demonstrando a sua força social e então<br />

sobretudo sindical, perante sucessivos governos de<br />

mais ouviu falar do Estatuto Médico, embora ele sur-<br />

OM havia levantado a greve em todo o país. Ninguém<br />

toda a sua carreira com respeito unânime, Meneses Correia<br />

A PRESTAR COLABORAÇÃO<br />

foi logo destacado para Beja, administrando o mais curta duração, sobretudo os IV e V, de iniciativa pregisse,<br />

já inofensivo, nas páginas do Diário da República.<br />

PÚBLICA E PRIVADA.<br />

recente dos hospitais distritais de então e depois para o sidencial. O pretexto era a aprovação de um famoso<br />

Devo a Sá Ferreira esse ato de enorme coragem.<br />

São João onde ajudava Sá Ferreira em inúmeras tarefas, Estatuto do Médico que os dirigentes profissionais de<br />

O País deve-lhe muito mais.<br />

”<br />

Ã<br />

48 49


GH homenagem<br />

EDUARDO SÁ FERREIRA,<br />

HOMEM AMÁVEL,<br />

PERSPICAZ E RESILIENTE<br />

Menezes Correia<br />

Sócio de Mérito da APAH<br />

Conhecemo-nos nas vésperas de ir para<br />

Rennes frequentar o Curso de Administração<br />

<strong>Hospitalar</strong>. Em Rennes tornámonos<br />

amigos, uma amizade para a vida.<br />

No regresso de Rennes o Dr. Augusto<br />

Mantas incumbiu o Sá Ferreira de elaborar o Plano<br />

de Contas, tarefa para a qual ele era, indiscutivelmente,<br />

a pessoa melhor preparada no Ministério da Saúde. O<br />

Plano de Contas dos Serviços de Saúde (POCS) era um<br />

instrumento indispensável à concretização do conceito<br />

de Hospital, explicitado no Estatuto <strong>Hospitalar</strong> e no<br />

Regulamento Geral dos Hospitais, publicados em 1968.<br />

Para o Ministério das Finanças, no entanto, interessado<br />

tão só no controlo orçamental, apenas importava a Contabilidade<br />

Pública!<br />

Para se compreender quanto a elaboração do POCS foi<br />

inovadora, basta dizer que só em 1997, quase vinte anos<br />

depois, o Plano Oficial de Contas da Administração Pública<br />

foi oficialmente adotado!<br />

O Dr. Mantas sabia bem que não bastava existir um<br />

POCS. Era necessária muita formação, para explicar e<br />

praticar a sua implementação. Tornaram-se célebres os<br />

Cursos da Figueira da Foz onde durante muitos anos o<br />

Sá Ferreira pontificou, acompanhado de Colegas da Administração<br />

<strong>Hospitalar</strong>, primeiro o Dr. Costa Almeida e<br />

depois também a Dr.ª Margarida Trindade. Uma palavra<br />

de saudade para o Costa Almeida, um ótimo profissional<br />

e um grande amigo que partiu há poucos anos.<br />

Mais tarde o Sá Ferreira colaboraria estreitamente com o<br />

Dr. Mantas ao aceitar o seu convite para, em acumulação<br />

com a Administração do São João, exercer as funções de<br />

Subdiretor Geral do Departamento de <strong>Gestão</strong> Financeira<br />

do Ministério da Saúde.<br />

Não era com certeza sem razão que era tão solicitado por<br />

diferentes entidades para prestar a sua colaboração. A sua<br />

experiência, aliada a um grande bom senso e uma saudável<br />

relação com a tutela, estavam na base desses convites.<br />

Enquanto o Sá Ferreira era incumbido de elaborar o PO-<br />

CS, fui destacado para Beja para exercer as funções de<br />

Administrador do Hospital junto da Comissão Instaladora,<br />

que havia sido nomeada no ano anterior.<br />

Em 71 foi aberto concurso para Diretor de Serviços de<br />

Aprovisionamento do Hospital de São João. Por múltiplas<br />

razões concorri a esse lugar. Soube, entretanto, que o Sá<br />

Ferreira tinha concorrido ao lugar de Administrador. Telefonei-lhe<br />

a exprimir a minha satisfação por vir a trabalhar<br />

com ele, o que naturalmente foi do seu agrado. Resolvidos<br />

os concursos, quis que começássemos a trabalhar<br />

no mesmo dia e por isso antecipei a minha vinda de<br />

Beja uma semana, dado que minha mulher só terminava<br />

os seus trabalhos docentes na semana seguinte. Insistiu<br />

em que, durante essa semana, ficasse em sua casa em<br />

Espinho onde fui magnificamente acolhido pela família,<br />

esposa e duas meninas, que eram os seus amores.<br />

Claro que o autor do POCS não podia deixar de definir<br />

como objetivo operacional a instalação da contabilidade<br />

analítica no seu Hospital. A mim, no que se refere a esse<br />

objetivo, competia-me reorganizar os Armazéns, criar<br />

uma boa relação fornecedor/cliente com os serviços e<br />

automatizar os stocks. Terminada a sua automatização, o<br />

Serviço de Contabilidade perdeu o alibi para não instalar<br />

a contabilidade analítica. Sabendo que o Centro Mecanográfico<br />

do SUCH, instalado nos HUC e dirigido pelo<br />

Santos Cardoso tinha operacionalizado o POCS em<br />

Hospitais Distritais, sugeri ao Sá Ferreira que o consultasse.<br />

Aceitou a sugestão e o Santos Cardoso com uma<br />

equipa do Centro Mecanográfico da Zona Centro veio<br />

ao São João para reuniões de trabalho com os responsáveis<br />

da Contabilidade. O Sá Ferreira não ignorava que<br />

o benchmarking não é o forte da administração pública,<br />

principalmente quando a comparação se faz com serviços<br />

similares. Mas geriu o “conflito” com mestria e o São João<br />

passou a ter contabilidade analítica.<br />

Ao fim de dois anos e meio fui convidado para integrar a<br />

Comissão Instaladora do Instituto de Assistência Nacional<br />

aos Tuberculosos, com a missão de reestruturar o IANT,<br />

assumindo, cumulativamente, o lugar de Administrador<br />

do Sanatório D. Manuel II. A reestruturação do IANT<br />

previa a reconversão do Sanatório D. Manuel II em Hospital<br />

Geral e, naturalmente, aí permaneci, integrando a<br />

Comissão Instaladora do Hospital Geral Eduardo Santos<br />

Silva, como passou a ser designado oficialmente.<br />

Em 1976 o Sá Ferreira convidou-me para regressar ao<br />

São João como Diretor de Serviço, mas com funções<br />

de seu adjunto. O sentimento da fraca probabilidade de<br />

aprovação de um Plano Diretor para o Hospital Eduardo<br />

Santos Silva e o aliciante convite do meu colega motivaram-me<br />

a pedir a exoneração do lugar que ocupava e a<br />

concorrer para Diretor de Serviço do HSJ.<br />

Foi, principalmente, durante essa fase que tive oportunidade<br />

de apreciar a sua capacidade negocial, prudência,<br />

perspicácia, capacidade de envolver os colaboradores e<br />

muita, muita resiliência.<br />

Entre os dois, estabeleceu-se uma relação win-win: eu beneficiava<br />

porque, mais afastado da pesada rotina hospitalar,<br />

tinha tempo para estudar e preparar propostas de<br />

decisão, ele porque podia decidir melhor informado e levar<br />

ao Conselho de Gerência propostas mais fundamentadas.<br />

Tendo sido convidado para integrar a Comissão Instaladora<br />

do Serviço de Informática da Saúde, analisamos ambos<br />

a hipótese de voltar a deixar temporariamente o Hospital<br />

e concluímos que era importante colaborar no desenvolvimento<br />

do PDIS (Plano Diretor de Informática da Saúde).<br />

No Serviço de Informática da Saúde demorei mais tempo<br />

do que ambos desejávamos, porque, entretanto, o Serviço<br />

integrou a Direção Geral dos Serviços Financeiros e<br />

pedir a exoneração ao Dr. Mantas não era tarefa fácil.<br />

Mas finalmente arranjei coragem e regressei ao S. João.<br />

Quando, para responder às diversas solicitações, o Sá Ferreira,<br />

era obrigado a deixar o Hospital, por alguns dias ou<br />

semanas, obviamente assegurava-lhe a substituição.<br />

Nunca estas situações causaram qualquer problema entre<br />

nós, dada a confiança que tínhamos um no outro. Por<br />

“<br />

CONSIDERAVA QUE A PASSAGEM<br />

EM SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE<br />

TINHA CONSTITUÍDO<br />

UMA DAS EXPERIÊNCIAS<br />

MAIS ENRIQUECEDORAS<br />

DA SUA CARREIRA.<br />

”<br />

outro lado, tenho a agradecer-lhe não me ter recusado<br />

nenhum pedido de formação. Pelo contrário, era o primeiro<br />

a estimular-me para adquirir novas competências,<br />

porque, inteligentemente, esperava que daí adviesse algum<br />

retorno para o Hospital.<br />

Em 1987 fomos dispensados do HSJ. Um Sá Ferreira naturalmente<br />

amargurado recebeu de bom grado o convite<br />

para cooperar com São Tomé e Príncipe. Durante a sua<br />

estadia em São Tomé - que era para ser de 15 dias e,<br />

afinal, foi de 15 anos, como gostava de dizer - convidoume<br />

para ser monitor de um módulo de um programa<br />

de formação de pessoal em técnicas hospitalares. Tive<br />

oportunidade de constatar a sua capacidade de superar<br />

as situações adversas, resultantes da escassez de meios<br />

de toda a ordem, e o otimismo com que encarava a sua<br />

estadia, só possível pelo apoio da Dª Maria de Fátima,<br />

sua segunda esposa, que desempenhou um papel fundamental<br />

na sua estadia em São Tomé. Ao casal Sá Ferreira<br />

ficámos a dever, eu minha mulher que me acompanhou,<br />

inexcedíveis atenções.<br />

Na altura dava apoio a um pequeno hospital, o Hospital<br />

Dr. Agostinho Neto. Mas acabou por fazer parte<br />

do Conselho de Administração do Centro <strong>Hospitalar</strong><br />

de São Tomé que teve a missão de integrar o Hospital<br />

Ayres de Menezes, o Hospital Agostinho Neto e o Hospital<br />

do Príncipe.<br />

Considerava que a passagem em São Tomé e Príncipe<br />

tinha constituído uma das experiências mais enriquecedoras<br />

da sua carreira. Em São Tomé gozava de muito<br />

prestígio, tendo estabelecido frutuosos contactos com as<br />

autoridades daquele país, com o Embaixador Português<br />

com quem mantinha relações muito próximas e com o<br />

Bispo da Diocese de quem se tornou amigo.<br />

Para o fundador da nossa Associação, fica o meu obrigado<br />

e um adeus muito sentido. Ã<br />

50 51


GH homenagem<br />

EDUARDO SÁ FERREIRA,<br />

UMA VIDA PLENA<br />

2 3<br />

4 5<br />

1<br />

8<br />

9<br />

10<br />

1. José Menezes Correia e Eduardo Sá Ferreira<br />

em Rennes, 1969<br />

2. Vista aérea do Hospital de São João à data<br />

da tomada de posse<br />

3. Tomada de posse como Administrador Delegado<br />

do Hospital São João, Porto<br />

4. Jantar de homenagem dos funcionários<br />

administrativos do Hospital de São João<br />

em 1988<br />

5. Reunião, na mesma época, entre a Sr.ª Ministra<br />

da Saúde e a equipa de cooperação<br />

6. Foto alusiva à formação levada a cabo nas diversas<br />

categorias (médicos, enfermeiros, administrativos).<br />

Na foto acompanhado pelo Dr. Magão<br />

7. Dr. Eduardo Sá Ferreira, coordenador do projeto,<br />

e esposa Mª de Fátima Sá Ferreira, secretariado<br />

do projeto. Este evento, do qual se seguem algumas<br />

fotos (8 e 9), decorria sempre no final do ano<br />

e juntava os melhores artistas santomenses<br />

8. Marcavam presença neste evento anualmente<br />

o Bispo de São Tomé e Príncipe e Angola, Abílio Ribas;<br />

esposa do Presidente da República de São Tomé;<br />

Diretora de Enfermagem; Diretora do Centro Hospital<br />

de São Tomé e Presidente da Cruz Vermelha<br />

9. Ministro da Saúde de São Tomé<br />

10. Visita do então Primeiro Ministro, António<br />

Guterres, e Ministra da Saúde, Maria de Belém,<br />

a São Tomé aquando da inauguração do equipamento<br />

oferecido pela cooperação portuguesa. Na foto<br />

acompanhado pelo Primeiro Ministro, Ministro<br />

da Saúde de São Tomé e Diretora do Hospital<br />

11. Durante a visita referida a verificar o equipamento<br />

6<br />

7<br />

11<br />

Fotos gentilmente cedidas por Deolinda Rugeiro Cruz e Menezes Correia<br />

52<br />

53


GH homenagem<br />

GH homenagem<br />

12<br />

13<br />

EDUARDO SÁ FERREIRA,<br />

PESSOA AFÁVEL<br />

E GESTOR COMPETENTE<br />

14 15<br />

António Soares Marques de Lima<br />

Cirurgião ortopedista<br />

12. Na foto acompanhado pelo Ministro da Saúde de São<br />

Tomé, Embaixador português, Professor Torgal e Dr. José<br />

Carlos Lopes Martins<br />

13. Vários encontros com membros das comitivas do Projeto<br />

de Cooperação, tanto a nível do Ministério da Saúde como<br />

dos Negócios Estrangeiros. Na foto acompanhado pelo Ministro<br />

da Saúde de São Tomé, Deolinda Rogeiro, Presidente da O.M.S.<br />

e Embaixador português<br />

14. Visita de S. S. o Papa João Paulo II a São Tomé<br />

15. Confraternização no Dia do Hospital, em São Tomé e Príncipe<br />

16. Curso de formação em <strong>Gestão</strong> de Saúde para profissionais<br />

de Saúde realizado em São Vicente<br />

17. Curso de Formação em <strong>Gestão</strong> de Saúde em Maputo<br />

54<br />

18. Curso de Formação na cidade de São Vicente<br />

16 17<br />

18<br />

Nos finais da década de 80, mais precisamente<br />

em fevereiro de 1989, o Dr.<br />

Eduardo Sá Ferreira pisou as terras de<br />

São Tomé. Trazia na bagagem a incumbência<br />

de proceder ao diagnóstico da<br />

situação de saúde no país, como um primeiro passo para<br />

a implementação de um projeto no domínio hospitalar<br />

com financiamento da cooperação portuguesa.<br />

Na empresa Agostinho Neto, antiga Roça Rio do Ouro,<br />

uma das roças mais emblemáticas de São Tomé e Príncipe<br />

existia um imponente hospital, o Hospital Agostinho<br />

Neto. São Tomé e Príncipe e Portugal acordaram em<br />

transformar este hospital num hospital de referência nacional<br />

e também de referência para os países da região<br />

do Golfo da Guiné.<br />

Nomeado administrador do referido hospital, o Dr. Eduardo<br />

Sá Ferreira desempenhou esta função com uma dedicação<br />

e competência notáveis levando o mesmo a ser<br />

uma das instituições sanitárias de preferência dos residentes,<br />

quer nacionais quer estrangeiros, mas também de<br />

pessoas que visitavam o país.<br />

Perante a excelente qualidade de cuidados prestados ao<br />

nível do Hospital Agostinho Neto as autoridades sanitárias<br />

nacionais em parceria com as autoridades portuguesas<br />

decidiram estender este modelo de gestão ao<br />

Hospital Dr. Ayres de Menezes, o maior hospital do pais.<br />

Surge assim a ideia da criação do Centro <strong>Hospitalar</strong> de<br />

São Tomé e Príncipe, Centro este que passaria a integrar<br />

os dois Hospitais. Nos trabalhos conducentes à criação<br />

deste Centro estavam envolvidos a equipa portuguesa,<br />

chefiada pelo Dr. Eduardo Sá Ferreira, e a equipa santomense<br />

que era chefiada por mim.<br />

Foram semanas de trabalho intenso em que pude observar<br />

e admirar a competência profissional do Dr. Eduardo<br />

Sá Ferreira bem como as suas excelentes qualidades de<br />

relacionamento humano, o que permitiu concluir os trabalhos<br />

com sucesso.<br />

Finalizado e aprovado o projeto do Centro <strong>Hospitalar</strong> de<br />

São Tomé e Príncipe foi dado início à sua implementação<br />

tendo sido o Dr. Eduardo Sá Ferreira indigitado em 1996<br />

seu Administrador Delegado, incutindo nesta função a<br />

mesma dinâmica que vinha aplicando no Hospital Agostinho<br />

Neto. O paradigma de funcionamento do Hospital<br />

Dr. Ayres de Menezes mudou consideravelmente observando-se<br />

uma melhoria visível na qualidade dos cuidados<br />

prestados.<br />

Enquanto administrador do Centro <strong>Hospitalar</strong> de São<br />

Tomé e Príncipe, o Dr. Eduardo Sá Ferreira não se esqueceu<br />

da população da Ilha irmã do Príncipe deslocando-se<br />

pessoalmente e proporcionando a ida regular de missões<br />

médicas a esta parcela do território nacional bem como o<br />

abastecimento em medicamentos e outros consumíveis.<br />

Por mais de uma década de uma contribuição inestimável<br />

para o fortalecimento do sistema nacional de saúde e<br />

melhoria da saúde da população de São Tomé e Príncipe,<br />

estou convicto que os santomenses jamais esquecerão<br />

o Dr. Eduardo Sá Ferreira enquanto gestor competente,<br />

pessoa afável e amigo dos seus amigos.<br />

Foi com muita mágoa que te vimos partir caro administrador<br />

hospitalar, companheiro de trabalho, amigo e<br />

compadre Dr. Eduardo Sá Ferreira<br />

Um bem-haja por tudo o que fizeste por São Tomé e<br />

Príncipe e por cada um de nós.<br />

Que Deus tenha em paz a sua alma. Ã<br />

55


GH homenagem<br />

EDUARDO SÁ FERREIRA<br />

1937 <strong>2020</strong><br />

SABENDO O QUE SEI HOJE,<br />

ESCOLHIA DE NOVO SER<br />

ADMINISTRADOR HOSPITALAR<br />

Nascido em Esmoriz, foi fundador e sócio n<strong>º</strong>. 1 da APAH, tendo sido o primeiro presidente<br />

da sua direção até 1984. Licenciado em Economia, foi nos serviços da Zona <strong>Hospitalar</strong><br />

do Norte que começou a apaixonar-se pela área da saúde. Teve uma longa carreira<br />

no setor, revelando que foi uma aposta ganha e, em jeito de balanço, afirma que “voltaria<br />

a fazer tudo igual”. A 7 de abril de 2018 foi galardoado com a Medalha de Ouro<br />

de Serviços Distintos do Ministério da Saúde. Em sua homenagem reproduzimos a entrevista<br />

que deu à jornalista Carla Pedro para o livro “50 Anos em 29 Olhares, O percurso<br />

da Administração <strong>Hospitalar</strong> em Portugal”, uma iniciativa da APAH, publicada pela Almedina.<br />

A<br />

afirmação da profissão<br />

Nestes 50 anos da carreira de administrador<br />

hospitalar destaco a afirmação<br />

da profissão, quer ao nível dos serviços,<br />

quer ao nível do poder.<br />

Hoje são os próprios diretores de serviço que solicitam<br />

o apoio de administradores hospitalares para os seus<br />

serviços, muito embora reconheça que por vezes é mais<br />

como alguém para lhes fazer as contas, as compras e<br />

as estatísticas - mas esse aspeto depende dos próprios<br />

administradores hospitalares, que quando aceitam o<br />

lugar deveriam colocar logo a questão das suas competências<br />

e não aceitar se for só para exercer funções<br />

de “tesoureiro encartado”. No poder também cada vez<br />

se nota mais a sua chamada para ocuparem lugares de<br />

governação. Atualmente, são vários os administradores<br />

hospitalares que fazem parte do Ministério da Saúde.<br />

Trabalhar para estudar<br />

Vou recuar um pouco na minha vida. Como os meus pais<br />

não tinham posses para eu ir para a universidade, resolvi ir<br />

trabalhar para pagar os estudos, tendo arranjado emprego<br />

no Banco Português do Atlântico (BPA), atual Millennium.<br />

O curso era no Porto e dava-me a possibilidade de só frequentar<br />

as aulas práticas que terminavam às 10h. Saía um<br />

pouco mais cedo para chegar a tempo de marcar o ponto<br />

no BPA. Éramos vários nessas circunstâncias e até havia<br />

quem nos chamasse os corredores dos bancos.<br />

Naquele tempo, a progressão na carreira bancária era feita<br />

anualmente, mas dependia muito das informações do<br />

Chefe da Secção e se um funcionário não caísse nas boas<br />

graças do chefe dificilmente saía da “cepa torta”. Ora, eu<br />

nunca fui muito dado a bajulações e portanto, não tive<br />

nem nunca teria grande futuro como bancário. Portanto,<br />

quando acabei o curso, não fui minimamente reconhecido<br />

e, como é lógico, decidi procurar outras profissões.<br />

Paixão pela vida hospitalar<br />

Felizmente, quase a seguir a terminar o curso, abriu um concurso<br />

para Técnico de Organização e Administração (TOA)<br />

da Direção da Zona <strong>Hospitalar</strong> do Norte, que era a extensão<br />

da extinta Direção Geral dos Hospitais (DGH) - e cujo<br />

diretor era o saudoso professor Coriolano Ferreira, a<br />

maior das referências da nossa Administração <strong>Hospitalar</strong>.<br />

Como TOA, as minhas funções consistiam em dar apoio<br />

aos serviços administrativos dos hospitais a norte de Avei- }<br />

56<br />

57


GH homenagem<br />

ro, quase todos explorados por Misericórdias. Esse apoio<br />

era sobretudo ao nível do planeamento dos quadros de<br />

pessoal, estudos financeiros e pareceres sobre pedidos<br />

de apoios financeiros. Comecei aí a apaixonar-me pela<br />

vida hospitalar, até porque sabia que não tinha que bajular<br />

ninguém para progredir na carreira.<br />

Um menino de Rennes<br />

A DGH iniciou um ciclo de ações de formação sobre<br />

financiamento, aprovisionamento, técnicas de gestão de<br />

pessoal, e estatísticas direcionadas para os hospitais. Essas<br />

ações eram realizadas no Hospital de Santa Maria.<br />

Eu, mesmo estando colocado no Porto, penso que frequentei<br />

todas as ações, as quais me deram uma grande<br />

bagagem de conhecimentos e uma grande ajuda para o<br />

curso de Diretores de Hospitais que vim a frequentar<br />

em Rennes, uma vez que todos os monitores das ações<br />

eram franceses. Já estava apaixonado pela profissão, mas<br />

o curso de Rennes na Escola Nacional de Saúde Pública<br />

de França, e sobretudo o estágio que fiz no hospital de<br />

Reims (integrado no curso) - onde tive a oportunidade<br />

de acompanhar de perto o trabalho do diretor-geral -<br />

foram a cereja em cima do bolo. Aí decidi que queria ser<br />

administrador hospitalar.<br />

O Parque Jurássico da Administração <strong>Hospitalar</strong><br />

Na minha opinião, a minha geração de administradores é<br />

uma espécie de Parque Jurássico da administração hospitalar,<br />

porque no tempo em que iniciei funções de administrador<br />

do Hospital de São João, o grande objetivo era<br />

o apuramento dos custos dos serviços - o que obrigava<br />

a ter uma gestão de stocks que possibilitasse saber os<br />

consumos de cada serviço; uma gestão de pessoal que<br />

permitisse o saber quanto se gastava em pessoal em cada<br />

serviço; e estatísticas fiáveis.<br />

Nestas vertentes, tive a sorte de ter excelentes colaboradores.<br />

Nos stocks, o Meneses Correia; no pessoal, o Dr.<br />

Joaquim Carneiro, infelizmente já falecido; nas estatísticas,<br />

o Dr. Carlos Magalhães, também infelizmente já falecido;<br />

e nos serviços financeiros era bem apoiado pela Dra.<br />

Margarida Trindade e pelos seus colaboradores, alguns<br />

com muita competência.<br />

Com a evolução tecnológica, admito que todos estes<br />

objetivos sejam passado. Hoje o administrador hospitalar,<br />

quando inicia funções, nem lhe passará pela cabeça<br />

não ter esses instrumentos de gestão, ou seja, os custos<br />

dos serviços e a sua discriminação por tipo de despesa,<br />

estatísticas fiáveis e gestão de stocks, para saber onde se<br />

gasta e como se gasta. Além disso, o sistema informático<br />

é completamente diferente, para melhor, do meu tempo.<br />

No meu tempo, os computadores ocupavam uma parede<br />

e funcionavam com cartões perfurados. Lembro-me<br />

que a informática só se utilizava na emissão dos recibos<br />

dos vencimentos, para o que era necessário um batalhão<br />

de pessoal em horas extra para perfurar os cartões. Ora,<br />

hoje qualquer pessoa pode ter um computador no bolso,<br />

desde que tenha um smartphone.<br />

Isto para justificar, por um lado, o epíteto que coloquei<br />

nos administradores da minha geração, e, por outro, para<br />

dizer que a administração hospitalar terá de se adaptar rapidamente<br />

à evolução tecnológica. Mas julgo que a Associação<br />

Europeia de Diretores de Hospitais (AEDH) está<br />

atenta e já formou um grupo de trabalho para o efeito,<br />

onde está representada a APAH. Faço mais um parênteses<br />

para referir o excelente trabalho que o presidente<br />

Dr. Alexandre Lourenço tem vindo a fazer em prol da<br />

afirmação da profissão.<br />

Portanto, em resumo, há necessidade de os administradores<br />

hospitalares que acabam o curso e iniciam as funções<br />

terem realizado o estágio em hospitais devidamente<br />

credenciados para o efeito, credenciais que devem ter o<br />

aval da APAH e que devem ter em conta a análise dos<br />

instrumentos de gestão existentes para o bom desempenho<br />

do administrador.<br />

E já agora, que se inicie a avaliação dos conselhos de administração<br />

dos hospitais há muito prometida, mas que<br />

“não ata nem desata”, se calhar por razões mais obscuras.<br />

Mas, como agora temos uma ministra administradora<br />

hospitalar, talvez seja desta.<br />

A experiência em São Tomé e Príncipe<br />

Recuando um pouco na minha vida, recordo-me que a<br />

passagem por São Tomé e Príncipe foi das experiências<br />

mais enriquecedoras da minha carreira, a par do período<br />

do PREC - este foi dose, mas com os dois aprendi muito.<br />

Em 1989 fui a São Tomé e Príncipe a pedido do diretor<br />

do Instituto Amaro da Costa, o Dr. Anacoreta Correia,<br />

que mais tarde viria a ser embaixador de Portugal naquele<br />

país. Fui lá por 15 dias para fazer uma análise aos serviços<br />

de saúde e propor possíveis área de cooperação - e<br />

esses 15 dias transformaram-se em 15 anos.<br />

É um país maravilhoso, com um povo maravilhoso, onde<br />

qualquer coisa que se faça é sempre objeto de agradecimento.<br />

E então na área da saúde…<br />

Comecei a trabalhar no Hospital Dr. Agostinho Neto,<br />

que tinha sido objeto de obras de beneficiação por parte<br />

da cooperação portuguesa. Ali fizemos um excelente<br />

trabalho, com a responsabilidade do apoio à cooperação<br />

a ser assumida pelo Departamento de Relações Internacionais<br />

da Direção-Geral de Saúde, em conjunto com os<br />

Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC).<br />

O hospital era fácil de gerir porque era muito pequeno,<br />

com 45 camas repartidas por Pediatria e Medicina Interna.<br />

O problema que se me punha eram as mudanças das<br />

equipas de seis em seis meses e nunca se saber o que dali<br />

viria. Cheguei a desconfiar que os serviços em Portugal,<br />

quando se queriam ver livres de alguém, mandavam a<br />

pessoa para uma missão de cooperação em São Tomé<br />

e Príncipe. Tive problemas gravíssimos com alguns deles.<br />

Aproveitando a ida a São Tomé e Príncipe do então ministro<br />

da Saúde, Dr. Paulo Mendo, as autoridades sanitárias<br />

santomenses pediram para que a cooperação se estendesse<br />

ao principal hospital de S. Tomé, o Hospital Dr.<br />

Ayres de Menezes, situado na cidade capital. O Ministério<br />

da Saúde de São Tomé e Príncipe entendeu acrescentar<br />

a esse pedido o hospital da Ilha do Príncipe, criando assim<br />

o Centro <strong>Hospitalar</strong> de São Tomé (CHST - composto<br />

pelo Hospital Agostinho Neto (HAN), pelo Hospital Dr.<br />

Ayres de Menezes (HAM) e pelo Hospital do Príncipe).<br />

Com a tomada de posse do conselho de administração<br />

do CHST deu-se início ao trabalho do Centro <strong>Hospitalar</strong>.<br />

Mas muitos foram os condicionalismos e entraves que tiveram<br />

de ser vencidos e ultrapassados.<br />

Entre esses entraves estava, desde logo, o facto de se estar<br />

a instalar uma coisa nova em cima de uma outra já<br />

existente e com rotinas adquiridas ao longo de anos. Foi<br />

preciso vencê-las - e para as vencer foi necessário procurar<br />

a colaboração do pessoal, o que muitas vezes se tornou<br />

difícil porque o pessoal se mostrava avesso a alterar<br />

as rotinas.<br />

Os cerca de 6.000 km que separam São Tomé e Príncipe<br />

de Portugal muitas vezes provocaram, como é óbvio,<br />

dificuldades acrescidas no funcionamento do CHST. Foi<br />

necessário criar ligações corretas com os órgãos portugueses<br />

que coordenavam e orientavam o projeto em<br />

Portugal. Foi preciso reorganizar serviços, incluindo novas<br />

estruturas orgânicas, o que muitas vezes implicou recuos<br />

do processo - já que se verificava que, na prática, a mudança<br />

não resultava da forma pretendida.<br />

Houve também necessidade de criar meios de controlo<br />

de gestão para que os muitos recursos postos à disposição<br />

do projeto não fossem desbaratados. E foi necessário<br />

prover os lugares dos quadros santomenses e portugueses:<br />

quanto à parte santomense, foi necessário pôr em<br />

marcha a máquina pesada dos concursos; quanto ao quadro<br />

português, no início a dificuldade na oferta de pessoal<br />

médico das especialidades requeridas no projeto obrigou<br />

a recorrer a missões encurtadas na sua duração, o que, no<br />

meu entender, não era vantajoso para o projeto.<br />

Tivemos ainda dificuldades iniciais com a disponibilização<br />

atempada dos financiamentos - quer português, quer santomense.<br />

Mas, acertadas de parte a parte as regras de<br />

funcionamento, o trabalho desenvolvido começou a dar<br />

resultados bem evidenciados nas realizações efetuadas. E<br />

dou alguns exemplos.<br />

“<br />

RECUANDO UM POUCO<br />

NA MINHA VIDA, RECORDO-ME<br />

QUE A PASSAGEM POR SÃO TOMÉ<br />

E PRÍNCIPE FOI DAS EXPERIÊNCIAS<br />

MAIS ENRIQUECEDORAS DA MINHA<br />

CARREIRA, A PAR DO PERÍODO<br />

DO PREC - ESTE FOI DOSE, MAS<br />

COM OS DOIS APRENDI MUITO.<br />

Regulamentação e organização do CHST<br />

No campo da regulamentação e organização, o conselho<br />

de administração publicou regulamentos, despachos, cir-<br />

”<br />

culares e ordens de serviço que abrangiam ações, atividades<br />

e serviços visando a melhoria das prestações do Centro<br />

<strong>Hospitalar</strong>; organizaram-se serviços numa perspetiva<br />

de máxima rentabilização dos recursos disponíveis; abriram-se<br />

pavilhões que estavam encerrados, apresentou-<br />

-se o projeto de obras e de reequipamento da cozinha;<br />

centralizaram-se os serviços de Pediatria, do Laboratório<br />

de Análises Clínicas e de Imagiologia - e com esta centralização<br />

pouparam-se recursos, sobretudo os humanos.<br />

Mas houve mais. Implementou-se, em área improvisada,<br />

uma consulta externa no Hospital Dr. Ayres de Menezes,<br />

que não existia. Tanto a organização funcional como a higiene<br />

e limpeza deram a todos os utentes uma imagem<br />

acolhedora. Implementou-se também, nesse mesmo hospital,<br />

um sector de arquivo clínico que até então não existia.<br />

Além disso, organizou-se o secretariado da direção, administração<br />

e conselho de administração; informatizaram-<br />

-se os sectores de secretariado, secretaria, arquivo clínico,<br />

laboratório, farmácia e administração; organizaram-se os<br />

armazéns de medicamentos, o dos materiais e produtos<br />

de consumo de enfermagem, hoteleiros e gerais, e o de<br />

materiais administrativos - implementando-se uma disciplina<br />

de recepção e entrega de produtos aos serviços.<br />

Reorganizaram-se ainda os serviços de Urgência, Medicina,<br />

Pediatria e Tisiologia, com uma reestruturação hierárquica<br />

e de atribuição de responsabilidades de chefia.<br />

Por outro lado, estabeleceram-se com os HUC protocolos<br />

de funcionamento financeiro e de aprovisionamento;<br />

regulamentaram-se muitos serviços e sectores através de<br />

ordens de serviços, despachos ou regulamentos; e o conselho<br />

de administração passou a reunir-se semanalmente. }<br />

58 59


GH homenagem<br />

Dotação de recursos humanos suficientes<br />

No campo dos recursos humanos, materiais e financeiros,<br />

também houve grandes desenvolvimentos. Procurou<br />

dotar-se o CHST com recursos humanos suficientes em<br />

qualidade e quantidade para a assistência praticada; realizaram-se<br />

concursos de provimento do quadro de pessoal<br />

santomense; procurou manter-se os stocks de consumíveis<br />

a níveis corretos e, salvo um caso ou outro caso,<br />

sempre foi conseguido este objetivo.<br />

Ainda neste domínio, conseguiu-se também manter a<br />

gestão dentro dos envelopes financeiros atribuídos e lançou-se<br />

o sistema de recuperação de custo.<br />

Investimentos relevantes para São Tomé<br />

Realizaram-se também importantes investimentos, nomeadamente<br />

na nova cozinha - tendo havido aqui um<br />

grande apoio do Ministério da Saúde de Portugal e da<br />

Fundação Calouste Gulbenkian, na iluminação do terreno<br />

hospitalar, na canalização de água para o Hospital Dr.<br />

Ayres de Menezes, no fornecimento de energia, na rede<br />

para a cablagem dos telefones, na pavimentação de parte<br />

do terreno, na capacidade de frio para armazenagem de<br />

produtos alimentares, e no equipamento informático.<br />

Também se beneficiaram os serviços de Pediatria 2, com<br />

pinturas e arranjos interiores e exteriores; e recuperou-se<br />

o Armazém Geral, que estava destelhado e sem segurança.<br />

Solucionou-se ainda o problema do fornecimento de<br />

água aos serviços de Radiologia, Maternidade, Pediatria<br />

1 e 2, Laboratório de Análises Clínicas, Armazém Geral,<br />

Edifício da Administração, Refeitório do Pessoal e Cozinha.<br />

Com isto, foi praticamente resolvido um problema<br />

que existia há muitos anos no Hospital Dr. Ayres de Menezes:<br />

o da falta de água em quase todo o hospital.<br />

Mas não só. Avançou-se com a recuperação das câmaras<br />

frigoríficas da Casa Mortuária, há muitos anos sem<br />

funcionar; fez-se uma obra de beneficiação do Serviço<br />

de Urgência, cujas instalações estavam muito degradadas;<br />

instalou-se um novo equipamento de Oftalmologia; fizeram-se<br />

obras e instalaram-se novos equipamentos na Lavandaria,<br />

tornando-a mais moderna, higiénica e funcional;<br />

e procedeu-se à iluminação de todo o terreno do hospital,<br />

o que aumentou consideravelmente a segurança.<br />

Melhores prestações de serviço<br />

Melhorou-se também substancialmente a qualidade e<br />

quantidade da assistência praticada; melhorou-se inegavelmente<br />

a qualidade e a quantidade das dietas servidas<br />

a doentes e pessoal em serviço; melhorou-se de forma<br />

considerável a qualidade do alojamento; e investiu-se na<br />

segurança do hospital. Abriram-se igualmente os Pavilhões<br />

de Medicina e de Pediatria, que há muito se encontravam<br />

encerrados, dando aos doentes condições de alojamento<br />

muito boas. Tornou-se mais humano o atendimento nestes<br />

serviços. Além disso, conseguiu-se resolver o problema,<br />

que se arrastava há muitos meses, do fornecimento<br />

de energia ao HAM; redistribuíram-se os doentes entre o<br />

HAM e o HAN; e melhorou-se nitidamente a qualidade<br />

e a quantidade das refeições servidas a doentes e pessoal.<br />

Mais formação e maior aposta no domínio social<br />

No campo da formação, investiu-se na formação de pessoal<br />

- quer com ações no exterior, quer, e sobretudo,<br />

com a formação em serviço e interna.<br />

Praticaram-se ações de formação a médicos, através de<br />

sessões e visitas clínicas, bem como um programa de formação<br />

para pessoal de enfermagem em sistema modular.<br />

Já no domínio social, houve uma preocupação evidente<br />

de beneficiar socialmente os trabalhadores do CHST,<br />

atribuindo várias regalias, as quais foram extensivas aos<br />

trabalhadores do Hospital do Príncipe; e realizaram-se<br />

também convívios e festejaram-se datas e ações consideradas<br />

relevantes. Por outro lado, e numa perspetiva de<br />

disciplinar o funcionamento do CHST em todos os seus<br />

aspetos, pôs-se a funcionar um refeitório para todas as<br />

categorias de pessoal - um refeitório decente com condições<br />

de atendimento.<br />

Especificidades locais levaram ao encerramento do HAN<br />

e, por outro lado, a redesenhar o Centro <strong>Hospitalar</strong> de<br />

São Tomé e Príncipe (CHSTP), já que se decidiu estender<br />

o apoio de Portugal ao Hospital Manuel Quaresma<br />

Dias da Graça, no Príncipe - houve apoio das refeições a<br />

doentes e pessoal; houve também algum investimento,<br />

sobretudo para beneficiação das estruturas físicas do internamento<br />

e consultas; fornecimento de medicamentos,<br />

produtos de laboratório, produtos de radiologia, produtos<br />

hoteleiros e de limpeza e material administrativo; e,<br />

não menos importante, apoio nas viagens disponibilizadas<br />

pela Embaixada de Portugal pelos seus créditos mensais<br />

do AVIOCAR. E foi assim a minha experiência em São<br />

Tomé e Príncipe, que tanto me enriqueceu e da qual tanto<br />

me orgulho.<br />

O declínio do SNS<br />

Hoje, pelo que me apercebo, o Serviço Nacional de Saúde<br />

(SNS) está em declínio. Pelo que ouvimos e lemos na<br />

imprensa, torna-se difícil ao utente obter consultas, fazer<br />

exames de diagnóstico, ser internado, ser operado quando<br />

necessitado de intervenção cirúrgica.<br />

Com a greve cirúrgica dos enfermeiros, as coisas parecem<br />

ter piorado. Há que tomar decisões para que tal situação<br />

não se arraste por muito mais tempo. Parece que esse<br />

também é o entendimento do Ministério da Saúde. Falta<br />

saber se o problema é mesmo resolvido. Digo isto porque<br />

enquanto o Ministério da Saúde estiver refém do Ministério<br />

das Finanças, parece-me difícil, muito embora entenda<br />

também a posição do Ministério das Finanças - que não<br />

pretende “mandar pelo cano” tudo o que se conseguiu.<br />

Serão precisos muitos milhões de euros para fazer com<br />

que o SNS possa de novo responder às necessidades dos<br />

utentes. Mas os contribuintes estão cada vez mais informados<br />

dos seus direitos e o desenvolvimento tecnológico<br />

não pára. Basta ver o que se passa nos WebSummit.<br />

Eu, por experiência própria, já pude constatar essa evolução<br />

com o tratamento de radioterapia: comecei com<br />

um aparelho muito diferente do último, em que o equipamento<br />

era muito diferente do equipamento das sessões<br />

anteriores (Cyberknife), mas cujo preço deve ser<br />

muito elevado e quase incomportável para os hospitais<br />

portugueses, cujo financiamento não está conforme as<br />

necessidades. Só mesmo um sistema de financiamento<br />

renovado é que permitirá aos hospitais portugueses<br />

acompanhar a evolução tecnológica em que “o que vale<br />

hoje, amanhã está desatualizado”.<br />

Quatro desafios na Saúde<br />

Na minha perspetiva, há que repensar:<br />

• O sistema de financiamento;<br />

• A organização dos hospitais e dos demais serviços de<br />

saúde públicos;<br />

• O grau de autonomia das direções dos serviços de saúde,<br />

para que uma simples decisão não tenha de passar<br />

por vários serviços em que todos querem apor uma assinatura,<br />

muitas vezes só para justificar o seu lugar;<br />

• A possibilidade de cruzar dados clínicos entre hospitais<br />

privados e públicos.<br />

Lembro-me que quando estava no Hospital de São João,<br />

um dia pedi autorização para fazer uma admissão de um<br />

enfermeiro - muito necessário para apoiar o serviço de<br />

Cirurgia Cardíaca. Quando o ofício me foi devolvido (passados<br />

três ou quatro meses), trazia 30 assinaturas de concordância!<br />

Só que, entretanto, o diretor de Serviço, e com<br />

muita razão, já me tinha massacrado a cabeça porque não<br />

compreendia como um lugar que estava previsto no quadro,<br />

tendo portanto cabimento, demorava tanto tempo<br />

a decidir - ao ponto de o enfermeiro que ele queria já ter<br />

arranjado outro local. Não sei se as coisas ainda funcionam<br />

assim - porque se funcionam assim, então não funcionam.<br />

Nos últimos anos, o SNS tem sido vítima de um arrastado<br />

processo de degradação no funcionamento e na resposta<br />

às necessidades dos seus utentes, e de degenerescência<br />

dos seus princípios fundadores.<br />

A proposta da Nova Lei de Bases pretende reforçar os<br />

direitos dos refugiados e imigrantes ilegais em matéria de<br />

saúde, incluindo de forma explícita os requerentes de asilo<br />

e os migrantes sem a situação legalizada na lista de beneficiários<br />

do Serviço Nacional de Saúde, a prevenção da<br />

doença e a presença da saúde em todas as políticas. Mas<br />

também versa sobre a garantia do acesso aos serviços<br />

públicos de saúde, as profissões, os aspetos organizativos<br />

“<br />

SOBRE A CARREIRA, SÓ A DIREÇÃO<br />

ATUAL DA APAH E OS ATUAIS<br />

COLEGAS PODERÃO DIZER<br />

O QUE ESPERAM, MAS ESPERO<br />

QUE EVOLUA NO BOM SENTIDO.<br />

MAS ISSO DEPENDE DE COMO<br />

OS NOVOS ADMINISTRADORES H<br />

OSPITALARES ENCAREM ESTA<br />

EXIGENTE PROFISSÃO.<br />

”<br />

do SNS, o financiamento e a regulação do sector privado.<br />

Acrescento que seria um avanço muito grande se todos<br />

os hospitais públicos e privados pudessem ter acesso total<br />

ao processo clínico dos utentes. Por experiência própria,<br />

já fui obrigado a realizar exames que tinha feito noutro<br />

estabelecimento. Poupava-se em consumo de materiais<br />

e sobretudo em desgaste para o utente, sobretudo se<br />

forem exames que recorram ao raio X.<br />

Hoje faria tudo igual<br />

Sobre a carreira, só a direção atual da APAH e os atuais<br />

colegas poderão dizer o que esperam, mas espero que<br />

evolua no bom sentido. Mas isso depende muito de como<br />

os novos administradores hospitalares encarem esta<br />

exigente profissão que, tanto quanto sei, ainda não é remunerada<br />

como devia ser. Mas também não pode ser<br />

só o dinheiro a orientar as escolhas. Terá de ser o gosto<br />

por esta linda profissão. Se fosse hoje que estivesse a começar<br />

a trabalhar, e sabendo o que sei hoje, escolhia de<br />

novo ser administrador hospitalar. Ã<br />

Vila Nova de Gaia, 11 de janeiro de 2019.<br />

60 61


GH saúde pública<br />

SAÚDE PÚBLICA<br />

E CONHECIMENTO: UM ELENCO<br />

FUNDAMENTAL NO FUTURO<br />

DA GOVERNAÇÃO CLÍNICA<br />

“<br />

Dr.<br />

PARA QUEM NÃO SABE O QUE DESEJA ALCANÇAR, QUALQUER AÇÃO É IGUALMENTE VÁLIDA...<br />

”<br />

Ricardo Eufrásio<br />

Médico Assistente de Saúde Pública, ACES Baixo<br />

Vouga - Administração Regional de Saúde do Centro<br />

A<br />

consciência de que há a possibilidade de<br />

melhorar a utilização dos recursos disponíveis,<br />

tem conduzido à implementação<br />

de reformas no setor da saúde.<br />

O debate sobre a arquitetura da prestação<br />

e distribuição dos recursos, é fundamental para garantir<br />

a sustentabilidade financeira e a otimização da qualidade<br />

da resposta às necessidades e expectativas dos utentes.<br />

Ambiciona-se uma cultura organizacional suportada por<br />

um conjunto de atividades agrupadas em análise, planeamento,<br />

execução e avaliação. Pretende-se que seja indutora<br />

de maior responsabilização e exigência, para alcançar<br />

melhores resultados em saúde, aumentando o envolvimento<br />

e a eficiência dos prestadores.<br />

Tal implica um sentido de exigência e responsabilização dos<br />

prestadores, o conhecimento das necessidades da população,<br />

a existência de uma política de saúde com prioridades<br />

bem definidas, especificando-se os cuidados a serem<br />

E IGUALMENTE INÚTIL.<br />

Pedro Beja Afonso, Seminário Faculdade Economia, Universidade de Coimbra, 2016<br />

prestados, avaliação e responsabilização, salvaguardando<br />

elevados padrões de qualidade. Deverá ser um processo<br />

blindado da volatilidade do sistema ou opções políticas.<br />

Eis então que nos surge o conceito da mudança paradigmática:<br />

governação clínica. Nos finais da década de 1990,<br />

o conceito de governação clínica, apesar de impreciso,<br />

e com diferentes interpretações, considerado central na<br />

reforma dos serviços de saúde, tornou-se reconhecido internacionalmente.<br />

Tentava lidar de forma inovadora com<br />

a necessidade de maior eficiência, sendo largamente reconhecida<br />

a importância e inovação da mudança de cultura<br />

organizacional introduzida; uma de serviço, qualidade<br />

e responsabilidade social. 1,5<br />

Em 1998, definia-se governação clínica como “...uma rede<br />

através da qual as organizações do Serviço Nacional de<br />

Saúde são responsabilizadas pela contínua melhoria da<br />

qualidade dos seus serviços, salvaguardando elevados padrões<br />

de cuidados, criando um ambiente no qual a excelência<br />

nos cuidados de saúde desenvolver-se-á.” 2,5,6<br />

A governação clínica integra princípios e processos orientados<br />

na gestão da mudança e inovação nos serviços de<br />

saúde, assumindo e promovendo um compromisso e uma<br />

responsabilidade na definição de padrões de qualidade assistencial,<br />

numa abordagem sistemática para assegurar<br />

melhoria de qualidade nos referidos serviços, introduzindo-a<br />

nas agendas institucionais, anteriormente dominadas<br />

por questões económicas de natureza não assistencial, reconhecendo<br />

a satisfação dos utentes e profissionais de<br />

saúde, como um dos principais motores para a eficiência<br />

financeira e económica nos serviços de saúde. 1,3,5<br />

A Organização Mundial de Saúde sistematiza a qualidade<br />

em quatro princípios: desempenho profissional, eficiência,<br />

gestão de risco (risco de lesão ou doença relacionado<br />

com a prestação de cuidados) e satisfação dos utentes. 5<br />

Na governação clínica, o desenvolvimento de valores, objetivos,<br />

planos e ações, que traduzam os princípios supracitados<br />

na gestão dos serviços, considera: 2,3,5,6,8-12<br />

• Transparência, responsabilização (“prestação de contas”),<br />

orientação para os resultados em equilíbrio com a<br />

satisfação das necessidades;<br />

• Qualidade centrada e orientada nos utentes;<br />

• Liderança dos profissionais nos processos de tomada<br />

de decisão vinculados ao processo assistencial;<br />

• <strong>Gestão</strong> de risco, monitorização de resultados, processos<br />

de auditoria clínica, sistema de gestão de reclamações e<br />

queixas, e prática médica baseada e informada na evidência;<br />

• Envolvimento dos profissionais, trabalho em equipa multidisciplinar<br />

(confiança, cooperação e responsabilização);<br />

• Participação e integração dos próprios utentes na definição<br />

de padrões de qualidade, expectativas de serviço e<br />

processos de avaliação;<br />

• Responsabilidade social;<br />

• Investigação e conhecimento;<br />

• Formação contínua dos profissionais, permitindo gerir e<br />

partilhar o seu conhecimento.<br />

É fácil identificarem-se três constrangimentos que dificultam<br />

a implementação da mudança preconizada pela governação<br />

clínica: 3<br />

• Escassez de recursos afetos;<br />

• Dificuldade de criar ambiente aberto e participativo entre<br />

os profissionais;<br />

• Dificuldade de desenvolver uma dimensão multidisciplinar<br />

de trabalho.<br />

Apesar dos constrangimentos, sistematizam-se três abordagens<br />

diferentes, complementares e indissociáveis, focadas:<br />

13<br />

• Na doença (modelo biomédico);<br />

• No doente (modelo humanista);<br />

• Na população (modelo de saúde pública).<br />

É evidente que muitos dos desafios que afetam a saúde<br />

das populações, envolvem a abordagem de problemas<br />

complexos. As doenças crónicas não transmissíveis (DC<br />

NT) (ex.: diabetes, doença pulmonar obstrutiva crónica) e<br />

respetivos fatores de risco representam, em despesas de<br />

saúde, até 6,7% do PIB em alguns países europeus. 14 Os<br />

determinantes comportamentais, tais como hábitos tabágicos,<br />

alcoólicos, alimentares, de atividade física/sedentarismo,<br />

têm impacto significativo na saúde, particularmente<br />

no aumento de prevalência das DCNT. Curiosamente,<br />

passíveis de prevenção.<br />

A necessidade de alerta e resposta para fenómenos inesperados,<br />

diferentes estirpes de influenza, epidemias “ocul-<br />

tas” (ex.: doença Lyme, febre Q), emergência de microrganismos<br />

resistentes aos antibióticos (assumindo contornos<br />

“pandémicos” em algumas regiões do globo), a transição<br />

epidemiológica da tuberculose, ou até a incidência de<br />

traumatismos cranioencefálicos nas crianças em acidentes<br />

de bicicleta, são apenas alguns exemplos de como a vigilância<br />

epidemiológica e intervenção comunitária são (ou<br />

deveriam ser) elementos chave no contexto dos serviços<br />

de saúde pública (SP).<br />

Saúde pública e governação clínica<br />

Os serviços de SP são confrontados com limitações na<br />

sua área de intervenção. Atualmente renovam-se prioridades,<br />

compromissos e intenções repetidas, com particular<br />

ênfase na prevenção, defendendo sistemas de saúde<br />

reforçados, e desenvolvimento de estratégias e políticas<br />

nacionais de saúde.<br />

Os serviços de SP oferecem mecanismos essenciais no<br />

planeamento em saúde, para uma perspetiva compre- }<br />

62 63


GH saúde pública<br />

“<br />

O PROBLEMA DA GESTÃO<br />

DE QUALIDADE NÃO É<br />

O QUE AS PESSOAS<br />

DESCONHECEM SOBRE ISSO.<br />

É O DE QUE JULGAM SEREM<br />

SABEDORAS".<br />

(PHILIP CROSBY<br />

IN "QUALITY IS FREE"<br />

”<br />

ensiva e horizontal das necessidades em saúde da população,<br />

analisando estratégias mais abrangentes, criando redes<br />

inovadoras para ação, envolvendo diferentes intervenientes,<br />

de que é exemplo, a elaboração dos Planos Locais<br />

de Saúde.<br />

O planeamento em saúde é um processo permanente,<br />

contínuo e dinâmico. Contribui para a racionalidade da tomada<br />

de decisões, selecionando, entre várias alternativas,<br />

um percurso de ação, implicando uma causalidade entre<br />

a ação tomada e os resultados determinados, permitindo<br />

a racionalização dos recursos de saúde, necessários para<br />

atingir determinados objetivos, segundo uma ordem de<br />

prioridade estabelecida. 15,16<br />

Para a SP assumir a liderança na melhoria dos serviços de<br />

saúde, deveremos reforçar as respetivas intervenções, capacidades<br />

e serviços. Tal requer uma definição clara do seu<br />

papel. Considerando as competências e operações técnicas<br />

essenciais na área, estas tornam-na um colaborador<br />

ideal na implementação e dinamização da governação clínica<br />

nos serviços de saúde.<br />

Os componentes técnicos da “reforma” da SP incluem<br />

uma cultura positiva de melhoria, que deverá ser suportada<br />

por várias estratégias: trabalho em equipa; liderança;<br />

qualidade e efetividade dos serviços; sistemas de informação;<br />

investigação e conhecimento.<br />

Trabalho em equipa<br />

Ninguém faz nada sozinho. A governação clínica sugere<br />

uma mudança cultural, para uma de aprendizagem e participação,<br />

recetiva à análise e reflexão dos cuidados prestados,<br />

criando um ambiente de trabalho, aberto e participativo,<br />

onde as ideias e boa prática são partilhados, onde<br />

a formação e a investigação são valorizadas, e onde a “culpa”<br />

raramente é usada. 2,7<br />

Para que as transformações sejam sustentáveis, as soluções<br />

deverão ser contextualizadas com envolvimento<br />

alargado, permitindo superar conflitos entre gestores e<br />

médicos. O paradigma baseia-se na busca da eficiência,<br />

propondo a participação dos médicos na gestão para assegurar<br />

o controlo dos gastos através do seu controlo<br />

direto ou indireto. 3,4,6<br />

O diálogo é mais fácil onde as relações de trabalho se<br />

baseiam num significado e propósito partilhado. 2,7 O futuro<br />

passa por uma cultura em que médicos, gestores e<br />

demais profissionais trabalham com o mínimo de hierarquias<br />

e fronteiras entre si. 5<br />

Liderança<br />

Os líderes participativos poderão ter uma contribuição<br />

determinante no desígnio de alcançar melhores resultados<br />

em saúde. 6,7 As lideranças exigem grande capacidade<br />

de diálogo e preparação técnica robusta, entre as quais<br />

se destacam a capacidade de interpretar criticamente os<br />

resultados de investigação clínica. 2,6<br />

É fundamental que a liderança esteja confortável na inovação<br />

e gestão da mudança. Estas, podem ser encaradas<br />

como ameaças, mas na realidade são oportunidades de<br />

desenvolvimento e evolução. É inegável o seu papel na<br />

sustentação, apoio e promoção da cultura de gestão pela<br />

qualidade. É fundamental encarar os profissionais como<br />

elementos chave na mudança, considerando o equilíbrio<br />

entre a respetiva autonomia e independência profissional,<br />

integradas num sentido de responsabilidade coletiva. 5,7<br />

Qualidade e efetividade dos serviços<br />

Entre os principais objetivos da governação clínica, está<br />

a promoção de responsabilização dos profissionais pelos<br />

respetivos desempenhos. A necessidade de “prestar<br />

contas” alarga a noção de responsabilidade profissional,<br />

implementando processos que visam aumentar a transparência,<br />

entre os quais: reclamações, auditorias, ou vigilância<br />

de rotina. 5,6,17<br />

As auditorias clínicas estão entre os principais elementos<br />

para controlar a qualidade. 3,17 Apenas são possíveis<br />

se existirem os recursos necessários para implementar<br />

as alterações necessárias, que se demonstrem necessárias,<br />

face a limitações ou constrangimentos identificados.<br />

É determinante promover melhores cuidados de saúde,<br />

aprender com as falhas identificadas e procurar oportunidades<br />

constantes de melhoria e aprendizagem.<br />

São necessários sistemas de informação em saúde (SIS),<br />

que demonstrem como estão a ser prestados os cuidados,<br />

sendo dos elementos que mais discussões têm criado,<br />

nesta reforma cultural. 6,20<br />

Sistemas de informação<br />

Nada se move tão depressa como a informação. Esta<br />

realidade torna a sua partilha, um dos elementos fundamentais<br />

em SP, evidenciando o “tempo” como um dos<br />

seus recursos mais valiosos. Neste contexto, os sistemas<br />

de informação facilitam o acesso rápido a múltiplas fontes<br />

de informação numa variedade de formatos, e aplicações,<br />

oferecendo uma ambicionada e coerente eficiência, sem<br />

prejudicar as interações entre doente e médico. 13<br />

A recolha e análise de informação estão a tornar-se uma<br />

competência “nevrálgica” central no planeamento e administração<br />

nas organizações de saúde, 3,5,7 no qual os sistemas<br />

de informação serão um instrumento fundamental,<br />

mas nunca um fim em si mesmo. Em vez de se considerarem<br />

apenas os problemas que os sistemas de informação<br />

podem resolver, tais como uma caligrafia ilegível,<br />

a investigação deve ser dirigida aos novos problemas e<br />

oportunidades que podem aparecer com a utilização das<br />

tecnologias de informação.<br />

A informação e investigação em saúde são os princípios<br />

fundamentais para o reforço dos serviços e políticas de<br />

saúde, sendo os sistemas de informação um instrumento<br />

integrante e estrutural na governação clínica, e crítico na<br />

transformação dos serviços de saúde. No passado recente<br />

têm servido sobretudo necessidades de monitorização<br />

de níveis superiores, ao invés de facilitarem, uma das suas<br />

essências, a tomada de decisão clínica.<br />

Uma limitação substancial e transversal aos referidos sistemas<br />

está na qualidade da informação registada. É necessário<br />

maior compromisso na precisão, adequação e análise<br />

para avaliar a respetiva qualidade, e impacto no processo<br />

de governação clínica. 5,20<br />

Os SIS são um instrumento essencial para o conhecimento,<br />

mas infelizmente subaproveitados. Há uma necessidade<br />

crescente para uma maior e melhor compreensão<br />

de como a investigação e conhecimento são produzidos<br />

e aplicados.<br />

Investigação e conhecimento<br />

No dicionário de Língua Portuguesa “investigação” significa<br />

“seguir os vestígios de; indagar; pesquisar; esquadrinhar;<br />

inquirir”. Neste contexto, investigar é um estado de espírito<br />

que tem como objetivo colher informações, as quais<br />

constituem a base de qualquer ação ou intervenção.<br />

O incentivo à investigação, à elaboração de normas de<br />

orientação clínica e implementação de protocolos baseados<br />

na evidência de efetividade, é estrutural na ambição<br />

pela qualidade nos cuidados de saúde.<br />

Entre 2% e 53% (média 19%) dos tratamentos oferecidos<br />

aos utentes não têm investigação substancial que os<br />

suporte. 19 Um estudo de 16 normas de orientação do<br />

Colégio Americano de Cardiologia e da Sociedade Americana<br />

de Cardiologia, concluiu que apenas 314 (11%) de<br />

2711 recomendações eram suportadas por elevado grau<br />

de evidência. 19<br />

A partilha e competências de gestão de conhecimento<br />

têm de ser priorizadas, desenvolvidas e implementadas<br />

na agenda dos programas de saúde.<br />

Saúde pública e conhecimento<br />

A saúde pública é uma especialidade médica na qual me<br />

identifico com uma palavra-chave: o conhecimento; cuja<br />

produção é sem dúvida uma das suas atribuições.<br />

É fundamental pensá-lo estrategicamente, e comunicá-lo<br />

eficazmente. Esta comunicação é vital e estrutural em<br />

qualquer organização, instituição ou serviço, sob pena de<br />

comprometer a eficácia de uma decisão tecnicamente<br />

sustentada. O conhecimento é essencial à tomada de decisões.<br />

Esta, combina arte e ciência, informação e execução,<br />

procurando factos ou elementos relevantes, em vez }<br />

64 65


GH saúde pública<br />

de medidas emocionais, identificando necessidades, limitações,<br />

constrangimentos, fundamentando a decisão informada.<br />

Jamais, a tomada de decisões poderá continuar<br />

a ser confortavelmente baseada apenas, em “achismos”.<br />

Considerando o conhecimento, um recurso estratégico<br />

na governação clínica, é fundamental compreender-se<br />

como é produzido e usado (ou não) na prática. Quando<br />

se discute atualmente a “Reforma da SP”, são necessárias<br />

novas abordagens no reforço da evidência, para orientar<br />

os decisores em intervenções eficazes e custo-efetivas a<br />

longo prazo.<br />

O planeamento e desenvolvimento de investigação em<br />

saúde, requer uma relação negociada entre o investigador<br />

e os utilizadores do conhecimento. Nestas circunstâncias,<br />

a troca, partilha de conhecimento ocorre através<br />

da construção de redes de comunicação nos contextos<br />

locais, interinstitucionais.<br />

A gestão do conhecimento é uma competência e capacidade<br />

cada vez mais valorizada. Exige um planeamento<br />

cuidadoso, e uma dinâmica e comunicação competentes.<br />

A revolução da informação e o seu potencial sucesso têm<br />

sido, de forma inquestionável, absorvidos pelos sistemas<br />

de saúde, se bem que a velocidades diferentes.<br />

A arquitetura da governação clínica aspira ambiciosamente<br />

que todas as organizações de saúde tenham um compromisso<br />

regulamentado na procura da melhoria da qualidade.<br />

1,5 É necessário que todos os serviços desenvolvam<br />

sistemas de responsabilização para a qualidade dos cuidados<br />

que disponibilizam aos utentes. 2 É necessário identificar<br />

limitações, que importem resolver, nomeadamente<br />

as que resultam da escolha de prioridades, da distribuição<br />

de recursos e da definição de objetivos de ação, entre os<br />

profissionais, a administração e a comunidade. 5<br />

A inovação que a governação clínica aporta está na sua<br />

dimensão organizativa. Apenas uma visão estratégica global<br />

pode garantir um processo efetivo de melhoria contínua<br />

da qualidade, contribuindo para que a governação<br />

clínica seja um recurso em si mesmo.<br />

A prevenção de doença e promoção de saúde são elementos<br />

particularmente importantes da SP, infelizmente<br />

pouco desenvolvidos, resultado de opções do passado<br />

recente, bem como reformas e alterações estruturais,<br />

que priorizaram outros domínios, sem o adequado planeamento<br />

e investimento em serviços de prevenção.<br />

Aprendi que o conhecimento, recurso estratégico na<br />

governação clínica, é determinante no planeamento em<br />

saúde. O “espírito” da governação clínica é o de se autocorrigir,<br />

com novos resultados, novas conclusões, e novas<br />

ideias. É a liberdade da investigação que gera o conhecimento.<br />

É à liberdade da investigação que o conhecimento<br />

se consagra.<br />

O futuro da especialidade médica de saúde pública, exigirá<br />

uma articulação multidisciplinar e complementar com<br />

os demais serviços de saúde, no processamento da informação<br />

e produção de conhecimento.<br />

Acredito que o meu futuro na especialidade médica de<br />

saúde pública me exigirá uma capacidade constante de<br />

inovação, imaginação e decisão. Constituirá sem dúvida,<br />

um desafio. Vejo-o como uma oportunidade para o desenvolvimento<br />

e evolução na prestação de serviços, numa<br />

visão comunitária de saúde. Ã<br />

1. Specchia ML, Belvis AG, Parente P, Avolio M, Ricciardi W, Damiani G. (2016).<br />

“Wind of Change: the role of Human centered healthcare factors in the implementation<br />

of clinical governance in an Italian University teaching hospital”. Ann Ist<br />

Super Sanitá 2016; Vol.52 N. 2:281-288. DOI: 10.4415/ANN_16_02_<strong>22</strong>.<br />

2. Freeman T. (2003). “Measuring progress in clinical governance: assessing the reliability<br />

and validity of the Clinical Governance Climate Questionnaire”. Health Services<br />

Management Research 16, 234-250. Health Services Management Centre 2003.<br />

3. Iglesias R (2004). “A qué nos referimos cuando hablamos de Gestión Clínica?”.<br />

Inv. Clin. Farm. 2004, Vol. 1 (4): 24-34.<br />

4. Goodman NW (1998). “Clinical governance”. BMJ 1998; 317:1725-7.<br />

5. Scally G, Donaldson LJ (1998). “Clinical governance and the drive for quality<br />

improvement in the new NHS in England”. BMJ 1998; 317:61-65.<br />

6. Santos I, Sá E (2010). “Estratégias de governação clínica”. Dossier: Erro Médico.<br />

Ver Port Clin Geral 2010; 26:606-12.<br />

7. Huntington J, Gillam S, Rosen R. (2000) “Organisational development for Clinical<br />

Governance”. BMJ 2000; 321:679-82.<br />

8. WHO (2008). “The World Health Report 2008: Primary Health Care - Now<br />

more than Ever”. World Health Organization, Geneva 2008.<br />

9. WHO (2015). “Priorities for health systems strengthening in the WHO European<br />

Region 2015-<strong>2020</strong>: walking the talk on people centeredness”. Regional<br />

Committee for Europe 65th Session, Vilnius, Lithuania, 14-17 September 2015.<br />

10. The NHS Confederation (2004). “The development of integrated governance”.<br />

The voice of NHS management; No.3, May 2004.<br />

11. Omaswa F, Rice J, Martin K (2014). “Leadership and Governance for Enhanced<br />

HRH Contributions to Health Systems Strengthening - Insights. Imperatives.<br />

Investments”. By Technical Working Group N<strong>º</strong>.5, Draft number 5, August 2014.<br />

12. Bullivant J, Deighan M, Stoten B, Corbett-Nolan A (2008). “Integrated Governance<br />

II: Governance Between Organisations”. Learning from Investigations,<br />

Healthcare Commission, Feb 2008.<br />

13. Rosen R. (2000). “Improving quality in the changing world of primary care”.<br />

BMJ 2000; 321:551-4. doi:10.1136/bmj.321.7260.551.<br />

14. European health report 2009. Health and health systems. Copenhagen, World<br />

Health Organization 2009. Disponível em http://www.euro.who.int/data/assets/pdf<br />

_file/0009/82386/E93103.pdf.<br />

15. Tavares, A. (1992). “Métodos e Técnicas de Planeamento em Saúde”, Lisboa, Ministério<br />

da Saúde, DRH, Centro de Formação e Aperfeiçoamento Profissional, 1992.<br />

16. Relatório do Grupo Consultivo para a Reforma dos Cuidados de Saúde Primários.<br />

Fevereiro 2009 Disponível em http://www.min-saude.pt/NR/rdonlyres/7BC-<br />

7CBA8-CAFB-4BA0-8CEE-D214AF7316A5/0/RelatorioCSPFev2009FECHA-<br />

DOx300dpi.pdf.<br />

17. Pauline Allen (2000). “Accountability for clinical governance: Developing collective<br />

responsibility for quality in primary care”. BMJ 2000; 321: 608-611.<br />

18. McCullough JM; Goodin K, (2016) “Clinical Data Systems to Support Public<br />

Health Practice: A National Survey of Software and Storage Systems Among Local<br />

Health Departments”. J Public Health Management Practice, 2016, <strong>22</strong>(6 Supp),<br />

S18–S26.<br />

19. BOLDER Research Group (2016). “Better Outcomes through Learning, Data,<br />

Engagement, and Research (BOLDER) - a system for improving evidence and clinical<br />

practice in low and middle income countries”. F1000Research 2016, 5:693<br />

(doi: 10.12688/f1000research.8392.1).<br />

20. Hopkinson RB (1999). “Clinical Governance: putting it into practice in an acute<br />

trust”. Clinician in Management 1999; 8: 81-88.<br />

C<br />

M<br />

Y<br />

CM<br />

MY<br />

CY<br />

CMY<br />

K<br />

NÃO MASCARE<br />

A SUA SAÚDE<br />

Neste contexto de pandemia, tão importante<br />

como estar protegido por fora, é manter-se<br />

protegido por dentro. Descurar a saúde pode<br />

ser grave. Dê atenção a sintomas, continue os<br />

seus tratamentos e lembre-se que ir ao médico,<br />

continua a ser essencial e seguro.<br />

#saudeemdia<br />

www.saudeemdia.pt<br />

APOIO<br />

66


GH espaço ensp<br />

RISCO DE COVID 19<br />

EM PROFISSIONAIS DE SAÚDE<br />

António Sousa-Uva<br />

Médico do Trabalho, Imunoalergologista<br />

e Professor Catedrático da ENSP da UNL<br />

Mafalda Sousa-Uva<br />

Doutorada em Epidemiologia pela ENSP-<br />

-NOVA, Investigadora em Epidemiologia<br />

das Doenças Crónicas<br />

Os profissionais de saúde (PS) são, no<br />

contexto da atual pandemia de Covid-19,<br />

e entre outros, um dos grupos<br />

que apresenta maior risco de contágio,<br />

já que o exercício da sua atividade<br />

profissional determina tal realidade. Trata-se de um<br />

grupo de pessoas com contacto direto com casos suspeitos<br />

e doentes infetados pelo SARS-CoV-2 que tem,<br />

portanto, necessariamente de ser protegido pela sua (e<br />

a nossa) saúde. Uma vez que os PS se encontram em<br />

contacto próximo com os casos suspeitos e doentes<br />

infetados pelo SARS-CoV-2, devem ser asseguradas as<br />

melhores condições de trabalho que lhes permitam, por<br />

um lado, estar e sentirem-se protegidos e, por outro<br />

lado, protegerem os seus doentes. Se não cuidarmos da<br />

sua saúde e segurança, e não exclusivamente com recurso<br />

a equipamentos de proteção individual, a qualidade<br />

da prestação de cuidados será afetada já que a saúde<br />

dos cidadãos também depende da saúde e segurança<br />

dos prestadores de cuidados.<br />

O grupo de investigação em Saúde Ocupacional do Barómetro<br />

Covid-19 da Escola Nacional de Saúde Pública<br />

da Universidade Nova de Lisboa realizou um estudo<br />

transversal, constituído por três questionários consecutivamente<br />

aplicados online e de preenchimento individual,<br />

com o objetivo de caracterizar alguns fatores de risco<br />

profissionais a que estão expostos os profissionais de saúde<br />

portugueses no decorrer da pandemia por Covid-19.<br />

A participação (em abril e maio) foi voluntária e anónima<br />

e traduz a perceção individual de cada profissional de saúde<br />

sobre a forma como decorreu a sua atividade no local<br />

de trabalho nos quinze dias anteriores à sua participação.<br />

Florentino Serranheira<br />

Ergonomista, Coordenador do Mestrado em Saúde<br />

Ocupacional Escola Nacional de Saúde Pública<br />

- Universidade NOVA de Lisboa<br />

Responderam pela primeira vez, a qualquer um dos três<br />

questionários aplicados, um total de 5.365 profissionais<br />

de saúde. Note-se, porém, que globalmente foram obtidas<br />

6.803 respostas, uma vez que alguns participantes<br />

responderam a mais do que um dos três questionários.<br />

Os profissionais de saúde respondentes são maioritariamente<br />

(76,7%) do sexo feminino (n=4.032) e predominantemente<br />

com idades compreendidas entre os<br />

30 e os 39 anos (n=1.670). Participaram 1.592 médicos,<br />

1.641 enfermeiros, 983 técnicos de diagnóstico e<br />

terapêutica, 141 assistentes operacionais e outros, designadamente<br />

farmacêuticos, nutricionistas, psicólogos e<br />

profissionais das carreiras laboratoriais.<br />

A maioria desempenha funções no setor social (n=<br />

3.239), seguido do setor público (n=2.241) e do privado<br />

(n=865). A localização geográfica dominante dos respondentes<br />

situa-se na Região de Lisboa e Vale do Tejo (n=<br />

2.421), seguido da Região Norte (n=1.814), Centro (n=<br />

741) e Ilhas (n=71). 36,7% dos respondentes (n=1.937)<br />

trabalha em áreas dedicadas ao tratamento de doentes ou<br />

suspeitos Covid-19, nomeadamente, em Cuidados Primários<br />

(39,3%), Urgências (40,7%), Enfermarias (6,4%) e em<br />

Unidades de Cuidados Intensivos (13,4%).<br />

Foram casos suspeitos de estar infetados 13% (n=661)<br />

dos respondentes. Destes, mais de metade (60%) foram<br />

submetidos a vigilância passiva e a larga maioria<br />

(77,5%) foi testada para a Covid-19, maioritariamente realizada<br />

72 horas após serem casos suspeitos. Entre os que<br />

trabalhavam em área dedicada à Covid-19, apenas 15,1%<br />

foram casos suspeitos e 42,7% foram sujeitos a vigilância<br />

ativa, o que indicia uma efetiva gestão do risco.<br />

Os testes à Covid-19 (n=533) foram na sua maioria<br />

(58,7%) realizados em hospitais, apesar de um grande<br />

número de profissionais de saúde os ter efetuado em<br />

locais privados ou de iniciativa municipal (33,3%).<br />

Dos profissionais de saúde que responderam aos questionários,<br />

mais de um terço (36,7%) trabalha em área<br />

dedicada aos doentes Covid-19, representando quase<br />

2.000 profissionais de saúde (n=1.937) e mais de metade<br />

(51,1%) trabalhou na última semana, oito ou mais<br />

horas diárias (dos quais, 13,7% mais de 12 horas diárias).<br />

Mais de um terço (35,4%) dos profissionais de saúde<br />

refere que no seu trabalho não existe Serviço de Saúde<br />

Ocupacional (ou de Saúde e Segurança do Trabalho)<br />

que realize a gestão dos riscos profissionais, designadamente,<br />

do risco de infeção por Covid-19.<br />

O contacto dos profissionais de saúde com doentes (ou<br />

casos suspeitos) de Covid-19 pode também ter impacto<br />

na sua saúde mental, tendo-se constatado que quase<br />

três quartos dos respondentes apresentavam níveis de<br />

ansiedade elevados ou muito elevados, como resposta<br />

às situações de stress que vivenciam e que quase 15%<br />

tinham mesmo níveis de depressão moderados ou<br />

elevados. De igual forma, quase três em cada quatro<br />

(78,3%) dos respondentes apresentava níveis elevados<br />

de burnout, revelando um agravamento dos já elevados<br />

níveis reportados nestes grupos profissionais.<br />

Metade dos profissionais de saúde (42,7%) refere que<br />

dorme menos de seis horas diárias o que, associado à<br />

sensação de fadiga que é reportada como intensa ou<br />

muito intensa por quase três em cada cinco profissionais<br />

de saúde (53,8%), testemunha uma situação próxima<br />

da exaustão ou, se preferirmos um termo mais<br />

popular, de “esgotamento”.<br />

Em relação aos aspetos de risco microbiológico, de forma<br />

mantida, um terço (33,3%) dos respondentes não<br />

realiza individualmente a sua monitorização diária, que<br />

seria expectável que fosse a regra na perspetiva quer<br />

da proteção da saúde do profissional de saúde, quer<br />

da redução da probabilidade do risco de contágio. Adicionalmente,<br />

cerca de 13% dos profissionais de saúde<br />

inquiridos foram casos suspeitos e 80 dos trabalhadores<br />

testados (15,3%) tiveram um teste positivo, testes esses<br />

em que 30,1% foram realizados mais de 3 dias após a<br />

suspeita. São resultados reveladores da morbilidade aumentada<br />

nestes grupos profissionais em relação à população<br />

geral, mesmo com o recurso a Equipamentos<br />

de Proteção Individual (EPI) e, aparentemente, a uma<br />

insuficiente rapidez no esclarecimento das situações<br />

suspeitas.<br />

A disponibilidade de EPI no último questionário, em relação<br />

aos anteriores, é considerada por mais de metade<br />

dos profissionais de saúde melhor ou mesmo muito<br />

melhor (72,9%), o que consolida a melhoria da situação<br />

ao longo do desenvolvimento da onda pandémica. Na<br />

“<br />

O CONTACTO DOS PROFISSIONAIS<br />

DE SAÚDE COM DOENTES<br />

(OU CASOS SUSPEITOS)<br />

DE COVID-19 PODE TAMBÉM<br />

TER IMPACTO PARA A SUA<br />

SAÚDE MENTAL.<br />

”<br />

opinião da grande maioria dos respondentes (79,9%), os<br />

EPI são adequados ou muito adequados.<br />

Um dos aspetos fundamentais na prevenção dos riscos<br />

profissionais é a organização de serviços competentes<br />

nessa matéria, Serviços de Saúde Ocupacional ou de<br />

Saúde e Segurança do Trabalho, habitualmente insuficientemente<br />

valorizados pelas organizações de saúde<br />

e, muitas vezes até, reduzidos apenas à expressão do<br />

“cumprimento administrativo” por imposição legal, designadamente<br />

com as fichas de aptidão para o trabalho,<br />

da responsabilidade da Medicina do Trabalho. Os<br />

resultados agora obtidos apontam exatamente nesse<br />

sentido, nomeadamente, os níveis de stress e de burnout.<br />

Tal devia constituir motivo de reflexão profunda entre<br />

as organizações de saúde, em particular, nos Cuidados<br />

de Saúde Primários, pois a Saúde Ocupacional deveria<br />

estar presente, não numa perspetiva dominante de<br />

cumprimento das disposições normativas, mas na componente<br />

substantiva da prevenção dos riscos profissionais<br />

entre outros aspetos, tais como a promoção da<br />

saúde e a manutenção da capacidade de trabalho dos<br />

profissionais de saúde.<br />

O trabalho com doentes Covid-19 (ou com casos suspeitos)<br />

exige, como se sabe, a utilização permanente de<br />

EPI o que determina, reconhecidamente, uma sobrecarga<br />

de trabalho, aliada ao extremo desconforto que também<br />

acarretam. Tal situação entre os profissionais de saúde<br />

é, de resto, muito semelhante ao que acontece noutros<br />

grupos profissionais do setor secundário de atividade,<br />

como é o exemplo dos EPI de prevenção de acidentes<br />

de trabalho e de doenças profissionais a que, aparentemente,<br />

nunca se deu suficiente importância. Ã<br />

68 69


GH direito biomédico<br />

REFLEXÕES ÉTICAS E NORMATIVAS<br />

A PROPÓSITO DO ARTIGO<br />

"DIREITOS HUMANOS E MORTES<br />

EVITÁVEIS"<br />

Dos turnos rotativos dos trabalhadores em estruturas residenciais ao direito<br />

de visita familiar a lares e hospitais<br />

André Dias Pereira<br />

Diretor do Centro de Direito Biomédico, Professor da Faculdade<br />

de Direito da Universidade de Coimbra, Conselho Nacional<br />

de Ética para as Ciências da Vida<br />

Heloísa Santos<br />

Presidente da Comissão de Bioética da Sociedade Portuguesa<br />

de Genética Humana (SPGH), Membro (2002-2005) do International<br />

Committee of Bioethics (UNESCO)<br />

Embora seja apenas divulgada pela DGS<br />

a mortalidade por Covid-19 distribuída<br />

por idades e, nos briefings governamentais,<br />

só enfatizada a preocupante letalidade<br />

em maiores de setenta anos, informações<br />

complementares, incluindo o conhecimento de<br />

que cerca de 40% dos doentes falecidos residiam em<br />

lares e, ainda, que há nestas instituições extensos surtos<br />

quase diários, leva-nos a concluir que, hoje em Portugal,<br />

a população residente nos lares contribui substancialmente<br />

para a maioria ou totalidade das mortes diárias<br />

e também para o atual crescente aumento de internamentos<br />

hospitalares, incluindo em cuidados intensivos.<br />

Sabemos também que muitos residentes, além de avançada<br />

idade, têm várias morbilidades e pertencem a grupos<br />

de risco considerados responsáveis pelo aumento<br />

da mortalidade geral, em Portugal, em períodos de clássica<br />

gripe sazonal. A permanência destas pessoas em espaços<br />

fechados e pouco ventilados, tal como nos cruzeiros,<br />

aumenta igualmente o risco de transmissão pelo novo<br />

vírus, bem assim como o facto de serem reféns de jovens<br />

cuidadores assintomáticos que lhes transmitem infeções<br />

contraídas no exterior.<br />

Se nos lembrarmos das assustadoras imagens televisi-<br />

vas dos últimos invernos com os serviços de urgência<br />

hospitalares apinhados de doentes e jazendo em macas,<br />

coladas umas às outras, um ambiente apetitoso para a<br />

infeção pelo novo vírus, podemos concluir que teremos<br />

de usar toda a nossa determinação - e imaginação! - para<br />

que uma tragédia “à italiana” não caia, ainda este ano,<br />

no colo dos profissionais do SNS, incluindo administradores<br />

hospitalares.<br />

E, para o evitarmos, além da vacina da gripe rapidamente<br />

disponível e administrada a estes grupos de risco, incluindo<br />

cuidadores, e uma mais adequada vigilância às<br />

condições sanitárias e de saúde de todos e, ainda, duma<br />

atempada mudança quando adversas as condições institucionais,<br />

teremos de criar estratégias que diminuam<br />

drasticamente a entrada de infeções nestes locais.<br />

Foi neste sentido que um dos autores, Heloísa Santos,<br />

defendeu em “Direitos Humanos e morte evitáveis”,<br />

texto publicado, em agosto, pelo jornal Público online 1 ,<br />

a existência, em lares para idosos cujas condições o<br />

permitam, dum regime de exclusividade dos cuidadores<br />

com internamento rotativo por equipas.<br />

“(...) Começo pela estratégia proposta para os lares. Sabemos<br />

que aí se encontra a população mais frágil porque,<br />

além da idade avançada e de morbilidades, está<br />

confinada em espaços fechados. Contudo, algumas mortes<br />

poderão ser evitadas se mudarem a estratégia adotada<br />

antes do inverno. Em vez da cruel proibição das visitas,<br />

deveria já ter sido considerada a exigência de, sempre<br />

que possível, os funcionários, habitual fonte de contágio,<br />

passarem, após testagem, a regime de exclusividade<br />

com internamento rotativo por equipas. Estes profissionais,<br />

acumulando atividades em locais infetados, inclusive<br />

em hospitais, contagiando-se lá fora, mas também<br />

adoecendo por contágio de outros colegas e residentes,<br />

ao manterem-se dentro das residências ficariam também<br />

eles próprios e os seus familiares mais protegidos.<br />

Poderá afirmar-se que hoje não será legalmente possível<br />

manter estes trabalhadores confinados periodicamente,<br />

contudo, quando se exigiu que médicos e enfermeiros se<br />

mantivessem no local de trabalho, esta decisão não teria<br />

sido difícil de impor e teria salvo muitas vidas. E, se esta<br />

estratégia passar a ser estimulada, em regime de voluntariado,<br />

o apoio financeiro da Comissão Europeia poderá<br />

contribuir para o novo regime de pagamento e eventual<br />

apoio social às famílias destes funcionários até ao fim da<br />

epidemia. O JAMA 2 acaba de publicar os resultados da<br />

experiência francesa comparando os lares em regime de<br />

internamento dos funcionários com aqueles em que es-<br />

te não existiu e confirmou a sua grande eficácia. A redução<br />

em França do número de infeções e mortes foi<br />

significativa.” 3<br />

Nesta “opinião” foi igualmente criticada a tirânica proibição<br />

a la carte de visitas no âmbito das estruturas residenciais<br />

e que também se verifica nos hospitais com doentes<br />

não infetados:<br />

“Para além da falta de eficácia, também a ausência imposta<br />

da presença de familiares, deprime e abrevia a morte<br />

por outras causas. E, contudo, sabe-se que não é através<br />

dos parentes, que as infeções surgem. E, atualmente,<br />

com testes disponíveis, continuam os residentes a ser<br />

privados dos seus plenos direitos de ver a família como<br />

se a ida para um lar, mesmo quando não estão infetados,<br />

conduzisse a uma automática perda do respeito pelos<br />

direitos que lhes são devidos como seres humanos.<br />

E também se ignora o direito das famílias a estarem com<br />

eles. Quer haja, ou não, surtos nas residências. Também<br />

os infetados e as suas famílias devem manter sem interrupção<br />

o apoio humano não presencial que lhes é muitas<br />

vezes sonegado. Se não houver sensibilidade para se<br />

mudar totalmente a conduta nos lares, devemos preparar-nos<br />

para uma tragédia nos próximos meses potenciada<br />

pela habitual invernosa epidemia de gripe. (...)” }<br />

70 71


GH direito biomédico<br />

“<br />

ESTÁ DEMONSTRADO<br />

HOJE QUE, AO CONTRÁRIO<br />

DOS VISITANTES FAMILIARES,<br />

OS CUIDADORES, INCLUINDO<br />

OS PRÓPRIOS PROFISSIONAIS<br />

DE SAÚDE, SÃO UMA<br />

POPULAÇÃO QUE APRESENTA<br />

ELEVADO RISCO DE INFEÇÃO<br />

POR SARS-COV-2.<br />

”<br />

Analisemos estes dois aspetos aparentemente contraditórios:<br />

1. Turnos (semanais) rotativos dos profissionais das<br />

estruturas residenciais?<br />

Está demonstrado hoje que, ao contrário dos visitantes familiares,<br />

os cuidadores, incluindo os próprios profissionais<br />

de saúde, são uma população que apresenta elevado risco<br />

de infeção por SARS-CoV-2 e os residentes têm-se revelado,<br />

pela facilidade de contágio, um “alvo” indefeso com<br />

consequente elevadíssima mortalidade.<br />

Segundo a DGS, “O impacto de Covid-19 (morbilidade<br />

e letalidade) é maior em pessoas com mais de 65 anos<br />

e com várias morbilidades, nomeadamente doenças cardiovasculares,<br />

patologia respiratória crónica, ou diabetes.<br />

Os utentes das Estruturas Residenciais para Idosos (ERPI),<br />

Estruturas Residências para a área da Saúde Mental ou das<br />

Unidades de Cuidados Continuados Integrados (UCCI) da<br />

Rede Nacional de Cuidados Continuados (RNCCI), independentemente<br />

da tipologia, encontram-se numa situação<br />

de risco acrescido de maior disseminação da infeção.” 4 A<br />

Orientação DGS 009/<strong>2020</strong> coloca ênfase nas seguintes estratégias:<br />

a) higiene, limpeza, desinfeção e gestão dos resíduos;<br />

b) distanciamento social, concentração de pessoas e<br />

ventilação dos espaços; e c) limitação de visitas.<br />

Relativamente aos profissionais, este documento prevê<br />

apenas normas de conduta dentro da instituição: “usar<br />

máscara cirúrgica”, “observar medidas estritas de higiene<br />

das mãos e etiqueta respiratória, assim como o distanciamento<br />

entre pessoas (1 a 2 metros)”, “separação por<br />

grupos”, “em caso de suspeitas, separação de grupos<br />

de cuidadores para os doentes respiratórios e grupos<br />

de cuidadores para os outros utentes/residentes”, monitorização<br />

da “temperatura corporal e sintomas como<br />

a tosse e falta de ar, no início e fim da jornada de trabalho”,<br />

“profissionais que apresentem sintomas não devem<br />

apresentar-se ao serviço”, “se já estão a trabalhar<br />

devem dirigir-se para a área de isolamento designada...”<br />

e a imposição à instituição de um plano de contingência,<br />

com vista a “proceder à substituição dos trabalhadores<br />

que forem casos suspeitos/confirmados, de forma<br />

a continuar a satisfazer as necessidades dos utilizadores,<br />

sem interrupção.”<br />

Por seu turno, o movimento sindical revela desconforto<br />

relativamente às experiências de turnos semanais rotativos,<br />

entendendo poder estar em causa uma violação<br />

dos direitos fundamentais dos trabalhadores. Assim, o<br />

CESP - Sindicato dos Trabalhadores do Comércio e Serviços,<br />

numa nota à comunicação social, acerca das condições<br />

de trabalho a que estão a ser sujeitos, desde março,<br />

os trabalhadores das IPSS e Misericórdias denunciou,<br />

em termos críticos, esta prática. 5 Destaca este sindicato<br />

que o risco de acidente laboral aumenta. 6 De salientar,<br />

todavia, que, reconhecendo o período excecional que<br />

estamos a viver e a premência em se pouparem vidas,<br />

se desconhece qual a posição deste, perante a existência<br />

de prévio consentimento do trabalhador.<br />

Considerando o habitual pluriemprego por parte dos<br />

profissionais desta área, uma vez que, por via de regra,<br />

acumulam horários, em diferentes instituições, verificamos<br />

que são eles próprios a contribuir voluntariamente<br />

para a ultrapassagem do período normal de trabalho<br />

diário. Esse o que se sugere é que cumpram as mesmas<br />

horas num único local e desincentivado o pluriemprego,<br />

dada a potenciação da transmissão do vírus entre<br />

instituições. O regime de internato rotativo de curta duração,<br />

de forma alguma, significa ausência de descanso.<br />

No plano do direito em vigor, devemos tecer as seguintes<br />

considerações e apresentar argumentos de cautela<br />

e ponderação.<br />

O consentimento do trabalhador está sujeito a limitações.<br />

A liberdade não é plena no Direito do Trabalho, para<br />

proteção do próprio trabalhador. Pode haver fundadas<br />

dúvidas de que, em geral, o trabalhador possa consentir<br />

em trabalhar por turnos de 7 dias, sem se ausentar<br />

da instituição, ainda que por razões de saúde pública<br />

muito importantes, como as apresentadas.<br />

As dúvidas em subscrever esta proposta, no plano do di-<br />

reito em vigor, resultam da consideração das normas do<br />

Código do Trabalho, que preveem que o regime de turnos<br />

está sujeito a regras rigorosas. Por um lado, em regra,<br />

“o período normal de trabalho não pode exceder<br />

oito horas por dia e quarenta horas por semana” (n.<strong>º</strong> 1<br />

do artigo 203.<strong>º</strong>), podendo (com certos pressupostos)<br />

ser aumentado até quatro horas diárias e, em casos delimitados,<br />

a “duração do trabalho semanal pode atingir<br />

sessenta horas” (artigo 204.<strong>º</strong>).<br />

O artigo 210.<strong>º</strong> prevê exceções aos limites máximos do<br />

período normal de trabalho que poderão ser consideradas<br />

para o problema em análise: “1 - Os limites do<br />

período normal de trabalho (...) só podem ser ultrapassados<br />

nos casos expressamente previstos neste Código,<br />

ou quando instrumento de regulamentação coletiva de<br />

trabalho o permita nas seguintes situações: a) Em relação<br />

a trabalhador de entidade sem fim lucrativo ou estreitamente<br />

ligada ao interesse público, desde que a sujeição<br />

do período normal de trabalho a esses limites seja incomportável;<br />

b) Em relação a trabalhador cujo trabalho seja<br />

acentuadamente intermitente ou de simples presença.”<br />

Mas estes são tempos extraordinários. O quadro jurídico-laboral<br />

em vigor não foi feito a pensar em pandemias<br />

desta gravidade e dimensão, pelo que o debate é pertinente!<br />

Assim, será necessária uma alteração expressa<br />

do Código do Trabalho admitindo esta solução que tão<br />

boas provas deu em França? Ao menos para vigorar durante<br />

o período de estado de contingência?<br />

Recorde-se que há profissões que, pela sua própria<br />

natureza, acarretam uma vinculação do trabalhador ao<br />

“local de trabalho” durante largos períodos de tempo,<br />

como, por exemplo, os trabalhadores do transporte<br />

rodoviário ou os trabalhadores da marinha mercante,<br />

transitários, viagem e pesca.<br />

No mundo da saúde é também amplamente conhecido<br />

o regime, aceite e praticado nos Estados Unidos da<br />

América, dos médicos internos, trabalhando 80 horas<br />

por semana. Na Europa, vigora a Diretiva 2003/88/CE<br />

do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de novembro<br />

de 2003, relativa a determinados aspetos da organização<br />

do tempo de trabalho que prevê as 48 horas<br />

como tempo máximo de trabalho, embora o Código do<br />

Trabalho (artigo 204.<strong>º</strong>) permita, em casos devidamente<br />

delimitados, que a duração do trabalho semanal atinja<br />

sessenta horas. 7 O artigo 207.<strong>º</strong> refere que o período de<br />

referência pode ser aumentado de quatro para seis meses,<br />

no âmbito do regime da adaptabilidade, podendo<br />

valer para “i) Receção, tratamento ou cuidados providenciados<br />

por hospital ou estabelecimento semelhante,<br />

incluindo a atividade de médico em formação, ou por<br />

instituição residencial ou prisão.”<br />

Sem entrarmos em aspetos de técnica e pormenor jurídico,<br />

podemos afirmar que há abertura no âmbito do<br />

Código do Trabalho para que, no setor da saúde e das<br />

estruturas residenciais, se pratiquem períodos de trabalho<br />

semanal até 60 horas, em períodos de maior exigência.<br />

Ora, o tempo com a pandemia Covid-19, ou pelo<br />

menos os períodos do estado de contingência por esta<br />

provocados, poderão ser precisamente justificativos de<br />

maior exigência face ao trabalhador nesta matéria. Não<br />

se podendo olvidar os benefícios que este regime pode<br />

ter para a sua saúde (menor exposição ao risco de<br />

Covid-19), apesar dos extraordinários incómodos que<br />

pode causar na vida familiar destes trabalhadores.<br />

A Resolução do Conselho de Ministros n.<strong>º</strong> 70-A/<strong>2020</strong> 8<br />

prevê normas sobre o Teletrabalho e organização de trabalho<br />

(artigo 4.<strong>º</strong>), impondo a obrigatoriedade, nas áreas<br />

metropolitanas de Lisboa e do Porto, do regime de “rotatividade”,<br />

designadamente: “podem ser implementadas,<br />

dentro dos limites máximos do período normal de<br />

trabalho e com respeito pelo direito ao descanso diário<br />

e semanal previstos na lei ou em instrumento de regulamentação<br />

coletiva de trabalho aplicável, medidas de<br />

prevenção e mitigação dos riscos decorrentes da pandemia<br />

da doença Covid-19, nomeadamente a adoção de<br />

escalas de rotatividade de trabalhadores entre o regime<br />

de teletrabalho e o trabalho prestado no local de traba- }<br />

72 73


GH direito biomédico<br />

“<br />

DEVENDO O LEGISLADOR<br />

SEGUIR AS MELHORES PRÁTICAS,<br />

À LUZ DA PROVA CIENTÍFICA,<br />

ESTA É UMA DIMENSÃO<br />

IMPORTANTE DA LUTA<br />

CONTRA A COVID-19 QUE<br />

DEVEMOS APROFUNDAR.<br />

”<br />

lho habitual, diárias ou semanais, de horários diferenciados<br />

de entrada e saída ou de horários diferenciados de<br />

pausas e de refeições.”<br />

Trata-se de uma alteração ao regime geral do trabalho<br />

com vista a evitar a propagação do vírus. Seria de equacionar<br />

também para o setor específico das estruturas<br />

residenciais, mormente das instituições que trabalham<br />

com doentes e idosos, a hipótese de uma lei específica<br />

que estabelecesse a possibilidade de turnos semanais<br />

(com respeito pelo direito ao descanso diário e semanal),<br />

com as devidas compensações financeiras e devido<br />

descanso após o turno e sempre com o consentimento<br />

dos trabalhadores. É essa a pista que o estudo científico<br />

francês supracitado nos aponta.<br />

Devendo o legislador seguir as melhores práticas, à luz<br />

da prova científica, esta é uma dimensão importante da<br />

luta contra a Covid-19 que devemos aprofundar.<br />

Um outro problema é o das condições dos tempos de<br />

lazer e descanso fora do horário de trabalho. Têm as instituições<br />

condições de alojamento e recreio para os trabalhadores<br />

que fiquem 7 dias “retidos” dentro da instituição? 9<br />

É uma questão que merece o melhor estudo jurídico, mas<br />

sobretudo uma profunda reflexão da gestão da saúde. Por<br />

outro lado, deveria haver maior abertura a admitir o acordo<br />

em áreas geográficas com maior risco de contágio.<br />

Convém voltar a salientar que existem igualmente para<br />

os trabalhadores (e seus familiares) claras vantagens. São<br />

muitas vezes infetados por colegas menos zelosos do<br />

afastamento social ou que exercem igualmente funções<br />

em hospitais e centros de saúde. Com esta medida, as infeções,<br />

sempre com origem no exterior, iriam diminuir. E<br />

ainda a frequente transmissão às famílias e à comunidade.<br />

Porque já é hoje conhecido que a circulação de profissionais<br />

entre instituições é "um dos principais fatores de<br />

risco para uma propagação descontrolada do contágio".<br />

Alguns hospitais, incluindo do SNS, exigem atualmente<br />

exclusividade aos seus profissionais de saúde, mormente<br />

enfermeiros, designadamente para evitarem o risco<br />

de infeções hospitalares cruzadas. 10 Trata-se de uma política<br />

com demonstrados efeitos positivos.<br />

2. Direito de visita a utentes em estruturas residenciais<br />

A já referida Resolução do Conselho de Ministros n.<strong>º</strong> 70-<br />

-A/<strong>2020</strong> prevê a possibilidade de visitas a estruturas residenciais.<br />

É um bom princípio! Assim afirma a al. d) do<br />

artigo 23.<strong>º</strong>: “Permissão da realização de visitas a utentes,<br />

com observação das regras definidas pela DGS, e<br />

avaliação da necessidade de suspensão das mesmas por<br />

tempo limitado e de acordo com a situação epidemiológica<br />

específica, em articulação com a autoridade de<br />

saúde local.”<br />

As regras definidas pela DGS constam da Informação<br />

n.<strong>º</strong> 011/<strong>2020</strong>, de 11/05/<strong>2020</strong>, atualizada a 18/05/<strong>2020</strong> 11 ,<br />

das quais destacamos as seguintes:<br />

“3. A instituição deve garantir o agendamento prévio das<br />

visitas, de forma a garantir a utilização adequada do espaço<br />

que lhe está alocado, a respetiva higienização entre visitas<br />

e a manutenção do distanciamento físico apropriado.<br />

4. A instituição deve ter organizado um registo de visitantes,<br />

por data, hora, nome, contacto e residente visitado.<br />

5. As pessoas que participam na visita devem manter o<br />

cumprimento de todas as medidas de distanciamento<br />

físico, etiqueta respiratória e higienização das mãos (desinfeção<br />

com solução à base de álcool ou lavagem com<br />

água e sabão).<br />

6. As pessoas com sinais ou sintomas sugestivos de Covid-19<br />

ou com contacto com um caso suspeito ou confirmado<br />

de Covid-19 nos últimos 14 dias, não devem realizar<br />

ou receber visitas.”<br />

Por seu turno, a instituição “deve garantir que a visita decorre<br />

em espaço próprio, amplo e com condições de arejamento<br />

(idealmente, espaço exterior), não devendo ser<br />

realizadas visitas na sala de convívio dos utentes ou no<br />

próprio quarto, exceto nos casos em que o utente se<br />

encontra acamado (nos casos de quartos partilhados terão<br />

de ser criadas condições de separação física).”<br />

Aplaudimos esta solução, que deverá ser adaptada e<br />

expandida, genericamente, aos hospitais 12 , pois a saúde<br />

mental das pessoas vulneráveis é um fator fundamental<br />

para a qualidade de vida e para a própria sobrevivência,<br />

sendo de notar que o extraordinário aumento da<br />

taxa de mortalidade das pessoas idosas, em Portugal,<br />

ultrapassa em muito as mortes causadas diretamente<br />

pela Covid-19 (até hoje, 16 de setembro, no número<br />

de 1.875 óbitos), numa dimensão que importa estudar<br />

cientificamente. As causas desse aumento da mortalidade<br />

geral podem ficar a dever-se:<br />

• Ao ambiente depressivo e de isolamento em que as<br />

pessoas (idosas) vivem, quer em lares, quer mesmo fechadas<br />

nas suas próprias casas;<br />

• À dificuldade de acesso a cuidados de saúde, sobretudo<br />

os cuidados de saúde primários que se apresentam<br />

como uma parede opaca, com telefones a funcionar<br />

mal, ou a exigir marcações por email (que muitos utentes<br />

idosos usam com dificuldade ou não usam), quantas<br />

vezes fechando a porta também a solicitações urgentes;<br />

• Ao medo que muitas pessoas têm de recorrer a um<br />

serviço (de urgência) hospitalar ou realizar uma cirurgia<br />

porque deixam de receber visitas e correm o risco de<br />

vir a falecer sozinhas e sem voltarem a estar com os<br />

seus entes queridos.<br />

Estas normas violam todos os princípios já estabelecidos<br />

de humanização em saúde, no nosso País, porque não<br />

respeitam os direitos humanos e já deveriam há muito<br />

ter sido interrompidas.<br />

E é curioso verificar que nas cadeias o regime proposto<br />

foi o oposto e com bons resultados. Para reduzirem a<br />

lotação dos estabelecimentos fechados e diminuírem o<br />

risco para a população prisional, medida fundamental de<br />

saúde pública, muitos presos foram libertados. Pertenciam<br />

a grupos de risco ou estavam próximo do termo<br />

da sua pena.<br />

Racionalmente, não foi privilegiado um maior isolamento<br />

destes “residentes”, já anteriormente a este regime<br />

condenados. Ou seja, apenas o Ministério da Justiça criou<br />

medidas preventivas eficazes mantendo o respeito pelos<br />

referidos direitos humanos também presentes na nossa<br />

Constituição. A ênfase não foi colocada no aumento do<br />

isolamento e proibição de visitas, mas sim na vantajosa<br />

saída de alguma população prisional para o exterior.<br />

É, pois, de lamentar a posição oposta de administrações<br />

de lares à saída provisória de residentes, nomeadamente<br />

para a casa de familiares, e à aceitação imediata de novos<br />

residentes nos lares cuja lotação ficou reduzida por mortes<br />

ou saídas definitivas de anteriores residentes.<br />

Também é de lamentar que muitos hospitais, sem criarem<br />

áreas de total separação para doentes Covid e não }<br />

74


GH direito biomédico<br />

“<br />

APRENDAMOS A VIVER SOB<br />

A AMEAÇA DA COVID-19 S<br />

EM PERDERMOS AS CONQUISTAS<br />

CIVILIZACIONAIS DOS DIREITOS<br />

HUMANOSE OS PRINCÍPIOS<br />

ANTROPOLÓGICOS BÁSICOS<br />

DA COMPAIXÃO E DA<br />

SOLICITUDE, ESPECIALMENTE<br />

FACE ÀS PESSOAS VULNERÁVEIS.<br />

”<br />

Covid, continuem a interromper as visitas a doentes com<br />

outras patologias e testes negativos, de familiares saudáveis<br />

(com testes negativos), assim que surgem surtos<br />

noutros locais da instituição. É sempre tentador tomar<br />

este tipo de medidas de estratégia “militar”, porém, sendo<br />

estas compreensíveis no início de uma pandemia com<br />

um vírus desconhecido, por contrariarem grosseiramente<br />

os direitos humanos e a dignidade de doentes e famílias,<br />

e conduzirem a traumas psicológicos que, inclusive,<br />

prejudicam a evolução de qualquer doença, já deveriam<br />

ter sido abandonadas.<br />

Aprendamos a viver sob a ameaça da Covid-19 sem perdermos<br />

as conquistas civilizacionais dos direitos humanos<br />

e os princípios antropológicos básicos da compaixão<br />

e da solicitude, especialmente face às pessoas vulneráveis.<br />

Se não o conseguirmos, poderemos ter aplanado a<br />

curva, descoberto uma vacina e, até, conseguido que o<br />

novo coronavírus, como acontece, por vezes, tenha desistido<br />

de nós, mas a humanidade ficará para sempre negativamente<br />

marcada, porque, por medo, termos promovido<br />

ou aceitado sem luta, rígidos exageros autoritários<br />

ainda mais cruéis para as pessoas e para a sociedade<br />

do que as restantes medidas diretas, preventivas ou terapêuticas,<br />

que são indispensáveis ao combate ao SAR-<br />

S-CoV-2. Estes exageros e esta falta de sensibilidade, a<br />

manterem-se, serão uma triste demonstração de que<br />

foi suficiente um simples vírus para sermos derrotados<br />

como seres humanos. Ã<br />

1. Cf. https://www.publico.pt/<strong>2020</strong>/08/26/ciencia/opiniao/direitos-humanos-mortesevitaveis-1929249<br />

2. Joël Belmin/ Nathavy Um-Din/ Cristiano Donadio, “Coronavirus Disease 2019<br />

Outcomes in French Nursing Homes That Implemented Staff Confinement with<br />

Residents”, JAMA New Open. <strong>2020</strong>;3(8): e2017533. doi:10.1001/jamanetworkopen.<strong>2020</strong>.17533.<br />

August 13, <strong>2020</strong>. https://jamanetwork.com/journals/jamanetwork<br />

open/fullarticle/2769241<br />

3. “This cohort study including 17 nursing homes with staff self-confinement and<br />

9513 nursing homes in a national survey found that nursing homes with staff self-confinement<br />

experienced lower mortality related to Covid-19 among residents and lower<br />

incidence of Covid-19 among residents and staff members than rates recorded<br />

in a national survey.”<br />

4. https://covid19.min-saude.pt/dgs-atualiza-orientacao-para-lares-de-idosos/<br />

5. http://www.cgtp.pt/accao-e-luta-geral/13788-cesp-denuncia-tentativa-de-regimesde-internato-nas-ipss-s-e-misericordias<br />

6. “Esta exaustão dos trabalhadores aumenta significativamente o risco de acidentes<br />

nos cuidados aos utentes, pelo que convém desde já salvaguardar que aos trabalhadores<br />

não serão atribuídas quaisquer responsabilidades, da mesma forma que<br />

em caso de acidente de trabalho do trabalhador exausto a instituição terá de ser<br />

responsabilizada a todos os níveis pela reparação do mesmo.”<br />

7. Segundo esta Diretiva, os países da UEdevem tomar as medidas necessárias para<br />

que todos os trabalhadores beneficiem de: um período mínimo de descanso<br />

diário de 11 horas consecutivas por cada período de 24 horas; um período de pausa<br />

no caso de o período de trabalho diário ser superior a seis horas; um período<br />

de descanso ininterrupto de 24 horas, às quais se adicionam as 11 horas de descanso<br />

diário, por cada período de sete dias; férias anuais remuneradas de, pelo menos,<br />

quatro semanas; uma duração máxima de trabalho de 48 horas em média por<br />

semana, incluindo as horas extraordinárias, em cada período de sete dias.<br />

8. Esta Resolução pouca novidade traz relativamente a medidas no âmbito das estruturas<br />

residenciais (artigo 23.<strong>º</strong>).<br />

9. Os turnos no regime de laboração contínua e dos trabalhadores que assegurem<br />

serviços que não possam ser interrompidos, nomeadamente pessoal operacional<br />

de vigilância, transporte e tratamento de sistemas eletrónicos de segurança, devem<br />

ser organizados de modo a que aos trabalhadores de cada turno seja concedido,<br />

pelo menos, um dia de descanso em cada período de 7 dias, sem prejuízo do período<br />

excedente de descanso a que o trabalhador tenha direito.<br />

10. https://www.jn.pt/nacional/braga-e-pedro-hispano-exigem-exclusividade-aos-seusprofissionais-11939743.html<br />

11. https://www.dgs.pt/normas-orientacoes-e-informacoes/informacoes/informacaon-011<strong>2020</strong>-de-1105<strong>2020</strong>-pdf.aspx<br />

12. Registamos com agrado que alguns hospitais estão a retomar gradualmente o<br />

regime de visitas hospitalares, desde finais de julho. O Centro <strong>Hospitalar</strong> e Universitário<br />

de Coimbra (CHUC) anunciou a retoma de visitas a doentes internados<br />

nas suas unidades de saúde, após terem sido suspensas, a 12 de março, face à pandemia<br />

de Covid-19, embora sujeitas a autorização prévia e com caráter excecional:<br />

“todos os serviços podem autorizar as visitas de caráter excecional, a qual deve<br />

ser solicitada pela família ao diretor do serviço/médico assistente (especialista<br />

responsável) ou enfermeiro gestor.” https://observador.pt/<strong>2020</strong>/07/24/hospitaisde-coimbra-retomam-visitas-a-doentes-internados-com-autorizacao-previa/<br />

No Centro <strong>Hospitalar</strong> do Médio Tejo: “As visitas a doentes internados no Centro<br />

<strong>Hospitalar</strong> do Médio Tejo (CHMT), suspensas desde 13 de março, serão retomadas<br />

amanhã, dia 15 de agosto, anunciou a instituição, com exceção das áreas de<br />

prestação de cuidados dedicadas à Covid-19.” https://www.jornalmedico.pt/atualidade/39475-visitas-a-doentes-internados-no-centro-hospitalar-do-medio-tejo-retomadas-amanha.html<br />

76


GH diplomacia em saúde<br />

DIPLOMACIA DA SAÚDE<br />

NA ERA COVID 19<br />

Francisco Pavão<br />

Médico, especialista em saúde pública,<br />

Gabinete Diplomacia da Saúde da Ordem dos Médicos<br />

Decorridos seis meses após ser declarada<br />

pela Organização Mundial da Saúde<br />

(OMS) a pandemia por SARS-CoV-2,<br />

continuamos a viver tempos de enorme<br />

incerteza, preocupação, constante<br />

adaptação e suspensos de garantias até que seja encontrado<br />

um tratamento seguro e eficaz, uma vacina ou<br />

atingida a imunidade de grupo, estratégia fortemente<br />

desencorajada pela OMS.<br />

O mundo moderno e globalizado do Séc. XXI enfrenta<br />

uma crise sanitária sem precedentes e de enormes implicações<br />

económicas e sociais. Os sistemas de saúde,<br />

para além do amplo esforço de preparação e resposta à<br />

epidemia, enfrentam consequências paralelas fraturantes<br />

que terão impacto na saúde das populações. Contudo é<br />

este o tempo de reinventar e reestruturar respostas, não<br />

temer políticas de saúde concretas - transversais a todos<br />

os setores - e garantir o esforço de financiamento do sistema<br />

de saúde, como há muito é anunciado e desejado.<br />

São múltiplos e constantes os desafios que a Covid-19<br />

trouxe à sociedade, às regiões, países, comunidades e<br />

ao mundo no seu todo. Vimos o impensável a ter lugar:<br />

estradas e espaços aéreos desertos, indústria parada e<br />

empresas em risco, fronteiras do mundo livre e democrático<br />

encerradas, lutas nos corredores internacionais<br />

na busca e garantia de material médico e de proteção<br />

individual, rápidos acordos bilaterais de cooperação e<br />

ajuda internacional entre regimes opostos, grandes crises,<br />

temas e prioridades internacionais a esfumarem-se<br />

para dar lugar a um único agente que desde há meses<br />

ocupa lugar cimeiro nos noticiários.<br />

Porém, devemos recuar até meados do século XIX pa-<br />

ra perceber que a história da saúde pública é feita dos<br />

processos de relações entre sociedades, de tal forma<br />

que os eventos em saúde das populações numa parte<br />

do mundo têm efeitos sobre a saúde das pessoas e em<br />

países distantes. 1<br />

Foi em Paris, no ano de 1851, que teve lugar a primeira<br />

reunião entre nações para decidir que medidas conjuntas<br />

deviam adotar para conter a transmissão de doenças<br />

infecciosas, não obstante neste tempo ainda não serem<br />

conhecidos os mecanismos de transmissão das doenças.<br />

Portugal fez parte deste pequeno grupo, sendo representado<br />

por um médico, Dr. José Maria Grande, e um<br />

diplomata, João Mouzinho da Silveira, tal como constava<br />

dos estatutos da conferência. À época “as políticas nacionais<br />

falharam em prevenir a propagação da doença,<br />

mas também criaram descontentamento entre os comerciantes,<br />

que suportaram o impacto das medidas de<br />

quarentena e exortaram os seus governos a tomar medidas<br />

internacionais”. 1,2,3<br />

É por esta razão, consequência da globalização e dos problemas<br />

de saúde nacionais não poderem ser tratados<br />

de forma isolada, exigindo, pelo contrário, esforços coordenados<br />

e conjuntos pela saúde global que surge a Diplomacia<br />

da Saúde. Sendo uma área de evolução académica<br />

e profissional, reclamando para a sua prática a<br />

multissetorialidade e multidisciplinaridade, encerra em si<br />

resultados essenciais na melhoria da saúde global e sustentabilidade<br />

pública das populações, bem como a manutenção<br />

e fortalecimento das relações internacionais. 4,5<br />

O decorrer dos anos, e na sequência destas conferências<br />

sanitárias que levaram a acordos de cooperação internacional,<br />

foi fundada em 1969 a OMS, tendo poste-<br />

riormente sido criado o Regulamento Sanitário Internacional<br />

(RSI), um acordo que regula como é que países<br />

se devem relacionar para vigiar doenças que podem<br />

causar epidemias e a forma de atuar perante uma<br />

ameaça em saúde pública. Este regulamento foi revisto<br />

pela última vez em 2005 e a OMS estuda agora a sua<br />

eventual revisão, através de uma comissão internacional<br />

independente, motivado pelo vírus SARS-CoV-2. 6<br />

No panorama mundial a Covid-19 permitiu-nos observar<br />

inúmeros exemplos da íntima relação entre a saúde, a<br />

economia e as relações internacionais. A pandemia exigiu<br />

um enorme esforço e desafio à diplomacia tradicional,<br />

que se nos últimos anos percebia a importância da extensão<br />

da sua prática para os temas da saúde e a viabilidade<br />

dos seus negócios, atualmente torna-se imperativo o seu<br />

desenvolvimento, formação e partilha do conhecimento.<br />

A Ordem dos Médicos (OM) e Associação Portuguesa<br />

de Administradores <strong>Hospitalar</strong>es (APAH), atentas a<br />

novas dinâmicas e promissoras áreas de trabalho, desde<br />

o passado que vêm a apoiar e participar em fóruns de<br />

debate e discussão no âmbito da Saúde Global e Diplomacia<br />

da Saúde - seja no domínio da cooperação<br />

entre os países lusófonos ou as estreitas relações com<br />

parceiros europeus.<br />

Por este motivo não é de estranhar que no dia 12 de março<br />

(um dia após a OMS ter feito a declaração de pandemia),<br />

estas duas organizações tenham promovido com a<br />

Câmara de Indústria e Comércio Portugal-Hong Kong a<br />

Conferência “O impacto económico, diplomático e na<br />

saúde da Covid-19”. 7<br />

Posteriormente no mês de abril foi publicado no Jornal<br />

Público um artigo conjunto, “Diálogo em tempo de incertezas”,<br />

8 onde se incluem todos os dirigentes e representantes<br />

dos médicos da lusofonia, e nos subsequentes<br />

meses integrando um ciclo de webinars, com o apoio<br />

do Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT),<br />

tiveram lugar duas importantes, quanto inéditas, conferências<br />

dedicadas à Diplomacia da Saúde na Era Covid-19:<br />

“Impactos e desafios às dinâmicas na Diplomacia<br />

Global” 9 e “A pandemia e os desafios à investigação<br />

e cooperação na África Lusófona”, 10 respetivamente.<br />

Registe-se, como nota, que participaram nestes eventos<br />

distintos embaixadores, prestigiados profissionais de<br />

saúde e professores universitários.<br />

Uma vez que Portugal assumirá em breve a presidência<br />

da União Europeia, em tempos de excecional exigência<br />

e nunca antes vividos pela comunidade, o nosso País poderá<br />

ter uma oportunidade única de colocar a saúde como<br />

ponto central da agenda internacional. Neste contexto,<br />

não posso deixar de registar que urge reativar a<br />

boa iniciativa do Alto-Comissariado para a Saúde Global<br />

em Portugal. 11 A nossa posição estratégica na geografia<br />

mundial, com os eixos Norte e Sul Atlântico, Mediterrânico<br />

e o Norte de África, a par da língua comum que<br />

partilhamos com cerca de 500 milhões de pessoas em<br />

todo o mudo, criam oportunidades únicas para as quais<br />

devemos ser arrojados e criativos.<br />

Sobre o mote “Inovar e Liderar na Incerteza” será realizada<br />

no mês de outubro a 8ª conferência de valor da APAH<br />

e para este evento estamos já a preparar um workshop de<br />

continuidade ao debate da Diplomacia da Saúde, onde<br />

iremos ouvir opiniões e perspetivas de experimentados<br />

profissionais e feitas análises que nos ajudam a perceber<br />

melhor os meandros das relações internacionais.<br />

As decisões da Comunidade Europeia ou as imposições<br />

independentes de cada país que a constituí; os avanços e<br />

recuos da Comissão; as exigências da indústria farmacêutica<br />

na vacina contra a Covid-19; as barreiras ao digital;<br />

as reformas do setor da saúde; o diálogo entre Estados;<br />

os objetivos das manifestações públicas; a necessidade de<br />

revisão de regulamentos internacionais e a comunicação<br />

das instituições que lideram os caminhos na luta contra a<br />

pandemia são alguns dos temas que queremos sejam de<br />

partilha, reflexão, estudo e motivo de atração dos participantes.<br />

É nossa convicção que será um êxito. Ã<br />

1. Fidler D., The globalization of public health: the first 100 years of international<br />

health diplomacy. Bulletin of the World Health Organization, 2001, 79 (9).<br />

2. Howard-Jones N., The Scientific Backgroug of the International Sanitary Conferences<br />

1851-1938. History of international public health, No. 1. World Health<br />

Organization 2007.<br />

3. Garnel MRL., Portugal e as Conferências Sanitárias Internacionais (Em torno das<br />

epidemias oitocentistas de cholera-morbus). Revista de História da Sociedade e<br />

da Cultura - Centro de História da Sociedade e da Cultura da Universidade de<br />

Coimbra, 2009.<br />

4. Kickbusch I, Silberschmidt G, Buss P. Global health diplomacy: the need foe new<br />

perspectives, strategic approaches and skills in global health. Bulletin of the World<br />

Health Organization 2007, 85 (3).<br />

5. Kickbusch I, Berger C. Diplomacia da Saúde. RECIIS - Rio de Janeiro, v.4, n.1,<br />

p.19-24, mar., 2010.<br />

6. https://sicnoticias.pt/especiais/coronavirus/<strong>2020</strong>-08-27-OMS-diz-que-vai-estudareventual-revisao-de-Regulamento-Sanitario-Internacional<br />

7. Revista da Ordem dos Médicos, Jan. - Mai. <strong>2020</strong>, pag. 65,66 e 67.<br />

8. https://www.publico.pt/<strong>2020</strong>/04/20/sociedade/opiniao/dialogo-tempo-incertezas-<br />

1912979<br />

9. https://www.ihmt.unl.pt/webinar-covid-19-e-o-momento-dos-politicos-comecarema-acreditar-mais-nos-cientistas-diz-filomeno-fortes/<br />

10. https://www.ihmt.unl.pt/webinar-covid-19-falar-da-diplomacia-em-saude-e-de-inegavel-importancia-para-todos-e-em-particular-para-o-mundo-lusofono/<br />

11. Resolução do Conselho de Ministros n.<strong>º</strong> 53/2018. Em: Diário da República<br />

n.<strong>º</strong> 86/2018, Série I de 2018-05-04.<br />

78 79


GH Doenças crónicas e Covid 19<br />

COVID 19 E DOENÇAS<br />

CÉREBRO CARDIOVASCULARES<br />

“<br />

QUEM SUPERA A CRISE SUPERA-SE A SI MESMO.<br />

Einstein<br />

”<br />

Filipe Macedo<br />

Diretor do PNDCCV, Diretor do Serviço de Cardiologia,<br />

Centro <strong>Hospitalar</strong> Universitário de São João, Porto,<br />

Professor de Cardiologia, Faculdade de Medicina<br />

da Universidade do Porto<br />

Elsa Azevedo<br />

Coordenadora Adjunta do PNDCCV para a área cerebrovascular,<br />

Diretora do Serviço de Neurologia, Centro <strong>Hospitalar</strong> Universitário<br />

de São João, Porto, Professora de Neurologia, Faculdade de Medicina<br />

da Universidade do Porto<br />

A<br />

pandemia causada pela Doença do<br />

Coronavírus, designação atribuída pela<br />

OMS à doença provocada pelo novo<br />

coronavírus, é um grande encargo<br />

para os sistemas de saúde e está a<br />

impor mudanças na prática de muitas áreas da medicina.<br />

A Covid-19 é uma infeção viral que pode resultar numa<br />

inflamação sistémica grave e também numa síndroma<br />

respiratória aguda grave, sendo que ambas as condições<br />

condicionam grandes efeitos no coração e no cérebro.<br />

A SARS-CoV-2 “severe acute respiratory syndrome coronavirus<br />

2” provoca efetivamente em certas situações<br />

doença pulmonar grave, com necessidade de internamento<br />

hospitalar; nos casos mais graves obriga mesmo a<br />

cuidados mais diferenciados de medicina intensiva. Contudo,<br />

na grande maioria dos casos, a doença apresenta<br />

um quadro clínico leve a moderado, cujo tratamento é<br />

meramente sintomático e pode ser realizado em casa.<br />

Esta patologia tem grandes implicações no funcionamento<br />

do sistema cardiovascular. Pacientes que apresentam<br />

fatores de risco cardiovascular como tabagismo, diabetes,<br />

hipertensão arterial, obesidade e idade avançada, indivíduos<br />

do sexo masculino, para além dos pacientes com<br />

doença cardiovascular e cerebrovascular conhecida, foram<br />

identificados como sendo grupos particularmente<br />

vulneráveis, com taxas crescentes de morbilidade e mortalidade<br />

quando infetados por este vírus.<br />

O risco de infeção por SARS-CoV-2 pode ser maior<br />

em pacientes com insuficiência cardíaca crónica devido<br />

à idade avançada e à presença de várias comorbilidades.<br />

Pacientes com doença cardiovascular ou doença cardíaca<br />

valvular (particularmente aqueles que apresentam disfunção<br />

do ventrículo direito ou esquerdo ou hipertensão<br />

pulmonar) poderão estar particularmente em risco durante<br />

a pandemia por Covid-19.<br />

Desde a emergência da Covid-19, tem vindo a acumularse<br />

a evidência da associação desta doença ao risco de<br />

acidente vascular cerebral (AVC). O doente com AVC<br />

agudo tem um maior risco de contrair a Covid-19, particularmente<br />

as formas mais graves. Por outro lado, entre<br />

os doentes hospitalizados por infeção respiratória pelo<br />

SARS-CoV-2 cerca de 5% podem sofrer um AVC.<br />

Um tema de constante polémica tem sido a hipertensão<br />

arterial e qual a melhor atitude perante os doentes com<br />

hipertensão arterial. Não existe atualmente nenhuma evidência<br />

que sugira que a hipertensão arterial por si só seja<br />

um fator de risco independente e consequentemente<br />

conduza a complicações graves ou morte por infeção por<br />

Covid-19. O tratamento da hipertensão arterial (HTA)<br />

poderá ser temporariamente suspenso nos doentes internados<br />

com quadros clínicos agudos. Estes doentes têm<br />

geralmente hipotensão arterial e lesão renal aguda secundária<br />

a infeção grave por Covid-19.<br />

Têm surgido inúmeros artigos que questionam este tema<br />

da HTA. As recomendações da Sociedade Europeia de<br />

Cardiologia e da Sociedade Europeia de Hipertensão “recomendam<br />

veemente que médicos e pacientes devem<br />

manter o seu tratamento habitual da hipertensão, pois<br />

não existe nenhuma evidência científica ou clínica que indique<br />

que o tratamento com Inibidores da ECA (enzima<br />

de conversão da angiotensina) e ARBs (bloqueadores do<br />

recetor da angiotensina II) devam ser suspensos devido à<br />

infeção por Covid-19”.<br />

A doença cardiovascular pode ser um fenómeno primário,<br />

se tivermos em consideração o papel da SRA (Sistema<br />

Renina Angiotensina)/ECE2 (Enzima conversora Angiotensina<br />

2) no sistema cardiovascular, bem como a sua<br />

presença no coração humano e células vasculares. As complicações<br />

cardíacas comuns devido à SARS são fundamentalmente<br />

a hipotensão arterial, miocardite, arritmia e morte<br />

súbita cardíaca.<br />

A investigação diagnóstica durante a infeção por SARS revelou<br />

alterações eletrocardiográficas, disfunção diastólica<br />

subclínica do ventrículo esquerdo e subida de marcadores<br />

de necrose miocárdica como as troponinas. A lesão do miocárdio<br />

e os níveis aumentados dos biomarcadores cardíacos<br />

estão provavelmente associados à miocardite e isquemia<br />

condicionando diferentes graus de insuficiência cardíaca.<br />

Deve ser salientado que concentrações aumentadas de<br />

troponina I/T cardíaca num paciente com Covid-19 devem<br />

ser vistas como a combinação da presença ou extensão da<br />

doença cardíaca pré-existente e a lesão aguda relacionada<br />

a Covid-19, sendo um marcador quantitativo de lesão dos<br />

cardiomiócitos. As infeções graves por Covid-19 também<br />

estão potencialmente associadas a arritmias cardíacas, em<br />

parte devido à miocardite no contexto da infeção.<br />

A miocardite surge em pacientes com Covid-19 vários<br />

dias após o início da febre. Isto indica a presença de lesão<br />

do miocárdio provocada pela infeção viral. Os mecanismos<br />

de lesão do miocárdio induzidos por SARS-CoV-2<br />

podem estar relacionados com a suprarregulação de<br />

ECA2 no coração e nos vasos coronários. A insuficiência<br />

respiratória e a hipóxia em doentes com Covid-19 também<br />

podem causar danos ao miocárdio devendo dar-se<br />

especial importância aos mecanismos imunológicos de<br />

inflamação miocárdica.<br />

Relativamente ao AVC, há estudos a relacionar a Covid-<br />

-19 com AVC isquémico, hemorrágico e trombose venosa<br />

cerebral, embora a maioria se reporte ao AVC isquémico.<br />

O aumento do risco de AVC em doentes mais }<br />

80 81


GH Doenças crónicas e Covid 19<br />

“<br />

A PANDEMIA DA DOENÇA<br />

CORONAVÍRUS (COVID-19) CRIOU<br />

NOVOS E IMPREVISÍVEIS DESAFIOS<br />

PARA A MEDICINA MODERNA.<br />

”<br />

idosos e com maior número de comorbilidades tem<br />

sido uma realidade, como também se tem associado a<br />

Covid-19 a AVC em doentes mais novos e previamente<br />

saudáveis, com predomínio nos homens.<br />

Muitos estudos propõem a coagulopatia como um mecanismo<br />

fisiopatológico relevante subjacente a estes<br />

eventos cerebrovasculares. Adicionalmente, estes doentes<br />

com AVC e infeção pelo SARS-CoV-2 apresentam<br />

mais vezes enfartes cerebrais múltiplos, coagulopatias sistémicas<br />

em vários órgãos, trombose em locais menos comuns<br />

e mesmo evidência de trombos arteriais e venosos<br />

simultâneos. De uma forma geral, parece haver maior gravidade<br />

e mortalidade no doente com AVC associado à<br />

infeção por SARS-CoV-2.<br />

Pacientes que estejam infetados com Covid-19 provavelmente<br />

apresentam maior risco de tromboembolismo venoso<br />

e os dados recentes de Klok et al. publicados na revista<br />

Thombosis Research sugerem que as taxas de complicações<br />

trombóticas podem chegar a 31% em pacientes<br />

graves infetados com Covid-19. Os diferentes trabalhos<br />

sugerem parâmetros de coagulação anormais em pacientes<br />

hospitalizados com doença Covid-19 grave. Está comprovado<br />

que em doentes com pneumonia, estados de hipercoagulabilidade<br />

e atividade inflamatória sistémica, estes<br />

transtornos podem persistir por um longo período.<br />

Relativamente à abordagem médica e diagnóstica destes<br />

doentes deve sempre ter em linha de conta a opção<br />

criteriosa dos diferentes meios complementares de<br />

diagnóstico. A utilização de medicamentos como hidroxicloroquina<br />

ou azitromicina, muito prescritos a pacientes<br />

com Covid-19, são conhecidos por prolongar o intervalo<br />

QT. Cerca de 6% dos pacientes com Covid-19 têm um<br />

QT (corrigido)> 500 ms. Portanto, o uso indiscriminado<br />

dessa medicação pode levar a arritmias potencialmente<br />

fatais, principalmente na presença de importantes variações<br />

eletrolíticas e disfunção renal.<br />

O estudo imagiológico cardíaco e vascular cerebral não<br />

urgente ou eletivo deve ser realizado de forma criteriosa<br />

em doentes com suspeita ou confirmação de infeção<br />

por Covid-19. Em pacientes infetados com Covid-19, recomenda-se<br />

o recurso a POCUS (point of care ultrsasound),<br />

com ecocardiografia focada (FoCUS) e eco-Doppler<br />

cervicocefálico focado (neuroPOCUS), centrados exclusivamente<br />

na aquisição de imagens necessárias para responder<br />

à questão clínica, a fim de reduzir o contacto do paciente<br />

com o equipamento e com o profissional de saúde.<br />

A deteção de ventrículo direito dilatado e hipertensão<br />

pulmonar pode levar à necessidade de realização de TAC<br />

com contraste para descartar a ocorrência de embolia<br />

pulmonar. Em doentes com dor torácica aguda e suspeita<br />

de doença obstrutiva das artérias coronárias, a AngioTac<br />

cardíaca é a modalidade de imagem não invasiva de eleição,<br />

pois é precisa e rápida.<br />

Também no doente com suspeita de AVC agudo a TAC<br />

cerebral com angio é o exame emergente a fazer. Em<br />

doentes com dificuldade respiratória, a TAC pulmonar é<br />

recomendada para avaliar características de imagem típicas<br />

de Covid-19 e diferenciá-las de outras causas (insuficiência<br />

cardíaca e embolismo pulmonar).<br />

Desde o início da pandemia Covid-19 reforçou-se a proteção<br />

da via verde do AVC e da via verde coronária, com<br />

circuitos próprios, de forma a não colocar em perigo de<br />

infeção o doente com AVC ou enfarte de miocárdio<br />

(EAM), mantendo, no entanto, a celeridade do processo<br />

necessária à otimização dos resultados do tratamento de<br />

fase aguda, sobretudo a revascularização. É importante<br />

que a população não tenha receio de ligar para o 112 em<br />

caso de sinais de alerta de AVC ou EAM. A fase provavelmente<br />

mais prejudicada da cadeia de cuidados do doente<br />

vascular foi a da reabilitação, que urge não parar novamente<br />

neste novo aumento da incidência de Covid-19,<br />

pois o preço em termos de sequelas permanentes é muito<br />

elevado.<br />

É essencial também manter o acompanhamento dos doentes<br />

em prevenção primária ou secundária de eventos<br />

vasculares, recorrendo sempre que oportuno à telemedicina<br />

para não o descontinuar, pois a doença cérebro-<br />

-cardiovascular continua a ser uma pandemia muito mais<br />

letal do que a da Covid-19, sendo crucial combatê-la com<br />

a mesma tenacidade.<br />

A pandemia da doença provocada pelo novo coronavírus<br />

criou novos e imprevisíveis desafios para a medicina<br />

moderna e para os sistemas de saúde. Para além dos<br />

profissionais de medicina intensiva, também os cardiologistas,<br />

neurologistas e internistas estão a ser fortemente<br />

afetados por essa rápida mudança. Temos de pensar que<br />

depois desta crise sanitária estar ultrapassada, vamos ter<br />

de fazer esforços redobrados para voltarmos a acordar<br />

num Portugal moderno e próspero. Ã<br />

82


GH Iniciativa APAH | Prémio Healthcare excellence<br />

PRÉMIO<br />

VAI RECONHECER<br />

AS MELHORES PRÁTICAS<br />

NA RESPOSTA<br />

À PANDEMIA COVID 19<br />

Com o objetivo de reconhecer e incentivar<br />

projetos nacionais desenvolvidos e implementados<br />

por organizações públicas,<br />

sociais e privadas, direcionados para a melhoria<br />

da qualidade na prestação de cuidados<br />

de saúde, a Associação Portuguesa de Administradores<br />

<strong>Hospitalar</strong>es (APAH) com o apoio da biofarmacêutica<br />

AbbVie atribui anualmente o Prémio Healthcare<br />

Excellence.<br />

A 7.ª edição desta iniciativa é dedicada em especial a<br />

projetos desenvolvidos no âmbito da resposta à pandemia<br />

da Covid-19 e visa premiar e distinguir a excelência,<br />

reconhecendo as boas práticas no domínio da melhoria<br />

do serviço aos utentes, promovendo a sua partilha como<br />

ponto de partida para a criação de um verdadeiro<br />

network colaborativo entre as várias Instituições de<br />

Saúde e incentivar a sua consolidação e implementação<br />

pelo Sistema de Saúde Português.<br />

São, muitas vezes, ideias aparentemente simples para a<br />

resolução de problemas muitas vezes comuns às várias<br />

Instituições de Saúde, fáceis de adaptar, que exigem<br />

pouco ou nenhum investimento financeiro, mas que<br />

permitem simultaneamente contribuir para a sustentabilidade<br />

da Saúde em Portugal e assegurar ganhos com<br />

grande impacto e valor para a qualidade de vida dos<br />

doentes e das suas famílias.<br />

Em <strong>2020</strong>, foram recebidas um total de 70 candidaturas<br />

representativas de todo o território português desenvolvidos<br />

e implementados por organizações públicas,<br />

sociais e privadas e que contribuíram para a melhoria da<br />

qualidade de cuidados de saúde em tempo de pandemia.<br />

Destas 8 foram selecionadas pelo júri para a reunião<br />

final que decorre a 21 de outubro no auditório do Hospital<br />

Júlio de Matos - Parque da Saúde de Lisboa. Entre<br />

os finalistas estão projetos do Agrupamento de Centro<br />

Saúde Douro Sul, do Centro <strong>Hospitalar</strong> e Psiquiátrico<br />

de Lisboa, do Centro <strong>Hospitalar</strong> e Universitário de São<br />

João, do Health Cluster Portugal, do Hospital Garcia de<br />

Orta, do Hospital Senhora da Oliveira - Guimarães, dos<br />

Serviços Partilhados do Ministério da Saúde e da Sociedade<br />

Portuguesa de Esclerose Múltipla.<br />

Na reunião final do Prémio serão apresentados os projetos<br />

finalistas e será distinguido o Vencedor da edição<br />

<strong>2020</strong>. Para além da qualidade da apresentação final dos<br />

Prémio Healthcare Excellence<br />

6 Edições | 6 Vencedores<br />

2014<br />

Inteligência Clínica<br />

Centro <strong>Hospitalar</strong> de São João<br />

2015<br />

Implementação da metodologia KAIZEN<br />

DIÁRIO, com as equipas naturais envolvidas<br />

na atividade do Bloco Operatório<br />

no Hospital de Santo António<br />

Centro <strong>Hospitalar</strong> do Porto<br />

2016<br />

Capacitar para Melhor Cuidar - O cuidador<br />

no Projeto Vida Ativa<br />

Hospital Vila Franca de Xira<br />

2017<br />

Portal do Utente de Matosinhos<br />

Unidade Local de Saúde de Matosinhos<br />

2018<br />

Via Verde Reanimação<br />

Instituto Nacional de Emergência Médica<br />

2019<br />

Intervenção humanitária de saúde<br />

e amparo social<br />

Associação Aldeias Humanitar<br />

projetos candidatos, a inovação e a replicabilidade em<br />

outras instituições de saúde são também critérios de<br />

avaliação. A decisão ficará a cargo do júri constituído<br />

por Delfim Rodrigues, Presidente do Júri e Vice-Presidente<br />

da APAH; Dulce Salzedas, Jornalista da SIC; Ricardo<br />

Mexia, Presidente da Associação Nacional de Médicos<br />

de Saúde Pública e Ricardo Mestre, Vogal Executivo<br />

da Administração Central do Sistema de Saúde. Ã<br />

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GH Prémio Healthcare excellence | HUDDLE MEETING<br />

HUDDLE MEETING:<br />

A SUSTENTABILIDADE<br />

DA MELHORIA CONTÍNUA<br />

Ana Lúcia Ferreira, Elsa Silva, Mercedes Ganito, Mercedes Bilbao, Filomena Postiço,<br />

José Luis Ferreira, Hugo Trindade, Teresa Cenicante, Paula Duarte, Cátia Neves,<br />

Ana Leal, Fátima Alves, Joana Ximenes, Joana Ovidio, Sofia Morão, Joana Seringa 1 ,<br />

Rui Cortes e Sara Moreira 2<br />

1. Ferreira A., Silva E., Ganito M., Bilbao M., Postiço F., Ferreira J., Trindade H., Cenicante T.,<br />

Duarte P., Neves C., Leal A., Alves F., Ximenes J., Ovidio J., Morão S. e Seringa J.,<br />

como colaboradores do Centro <strong>Hospitalar</strong> Universitário de Lisboa Central, Hospital Dona Estefânia.<br />

2. Cortes R., Moreira S., como colaboradores da LeanHealth Portugal.<br />

O<br />

Hospital de Dona Estefânia (HDE),<br />

localizado em Lisboa, é uma unidade<br />

de referência em pediatria da zona sul<br />

do País, encontrando-se integrado no<br />

Centro <strong>Hospitalar</strong> Universitário de Lisboa<br />

Central EPE (CHULC). No Bloco Operatório Central<br />

Pediátrico desta instituição desenvolveu-se um projeto<br />

de melhoria contínua com metodologia Lean, direcionado<br />

ao percurso do doente cirúrgico.<br />

A metodologia Lean pode ser descrita como uma filosofia,<br />

um conjunto de ferramentas ou até mesmo<br />

um sistema de gestão de melhoria de desempenho, ao<br />

eliminar obstáculos e assegurar uma utilização eficiente<br />

dos recursos disponíveis. Este processo organizado,<br />

permite que os profissionais se concentrem no foco da<br />

sua atividade, aumentando a produção e qualidade dos<br />

cuidados, diminuindo os erros e melhorando os resultados.<br />

Inicialmente, otimizou-se o percurso do doente<br />

cirúrgico desde a primeira consulta pré-cirúrgica até à<br />

consulta de pós-operatório. Mais tarde, através da ferramenta<br />

do Huddle Meeting implementou-se a reunião<br />

semanal dos “irritantes”.<br />

Esta reunião de profissionais que intervêm no processo<br />

cirúrgico tem como objetivo identificar, em equipa,<br />

problemas (irritantes) e soluções, de forma a criar um<br />

ambiente de melhoria contínua através de consenso<br />

de ideias e fluxo de informação (Institute for Healthcare<br />

Improvement, 2016). Realizada em ambiente clínico,<br />

perto do local ou no local de ação (bloco operatório),<br />

esta reunião não dura mais do que uma hora, sendo<br />

este tempo variável de acordo com a quantidade de assuntos<br />

levantados. Os intervenientes participantes são:<br />

enfermeiros, administrativos, assistentes operacionais,<br />

cirurgiões das várias especialidades e anestesiologistas.<br />

Enquadramento e objetivos<br />

Em 2017, o Bloco Operatório Central Pediátrico do<br />

Hospital da Dona Estefânia realizou um projeto de melhoria<br />

contínua, focado no percurso do doente cirúrgico,<br />

reconhecido com o prémio da Associação Portuguesa<br />

de Qualidade, com o 1<strong>º</strong> prémio de Qualidade/Inovação<br />

- APQ 2017, na rubrica projetos de equipa de melhoria.<br />

Este projeto permitiu melhorar vários pontos do processo,<br />

bem como a experiência do doente. Não obstante,<br />

essas melhorias, houve áreas que continuavam<br />

aquém da qualidade pretendida, pelo que a equipa de<br />

enfermagem do BO, decidiu iniciar um novo projeto de<br />

melhoria contínua, em dezembro de 2018, utilizando o<br />

modelo de Huddle Meeting.<br />

Com o Huddle Meeting pretende-se criar um ambiente<br />

de melhoria contínua que proporciona a oportunidade<br />

de melhorar a gestão de qualidade, gestão de segurança,<br />

rever recomendações de boas práticas, monitorizar<br />

a melhoria, permitindo a identificação de outras áreas<br />

passíveis de intervenção e rever os desvios perante os<br />

processos esperados (Institute for Healthcare Improvement,<br />

2016).<br />

Esta segunda fase do projeto de melhoria contínua foi<br />

também reconhecida com a 2ª Menção Honrosa - Healthcare<br />

Excellence, 2019 da APAH.<br />

Metodologia de implementação<br />

Numa fase inicial, e tendo por base o ciclo PDCA<br />

(Fig.1), o enfermeiro chefe da equipa de gestão do bloco<br />

operatório identificou os participantes dinamizadores<br />

do projeto, divulgou o projeto à equipa multidisciplinar<br />

e convidou todos a registar num quadro os problemas<br />

ou situações irritantes que afetam o fluxo do trabalho e<br />

a qualidade dos cuidados ao doente cirúrgico.<br />

Com esta base de trabalho deu-se início ao Huddle<br />

Meeting. O grupo inicial foi constituído pela equipa de<br />

gestão do bloco operatório (enfermeiro chefe e anestesiologista),<br />

dois enfermeiros perioperatórios, um cirurgião<br />

representante da cirurgia pediátrica, dois assistentes<br />

operacionais e um administrativo. Ao longo das semanas<br />

seguintes o número de pessoas foi aumentando passando<br />

para cerca de 17 participantes e que representam<br />

todas as equipas e especialidades cirúrgicas (Fig. 2).<br />

O Huddle Meeting realiza-se em dia e hora fixa (sextasfeiras<br />

às 10h), no bloco operatório, onde os profissionais<br />

discutem, em pé, os vários problemas levantados.<br />

Esta reunião tem como apoio um quadro designado<br />

por “quadro dos irritantes”, onde são colocados post-its<br />

com o registo das ineficiências, problemas e “irritantes”,<br />

sentidos pela equipa e que carecem de uma melhoria.<br />

No quadro são separados os problemas (post-it) cuja<br />

resolução depende da equipa do bloco operatório,<br />

daqueles cuja resolução depende de outros serviços e<br />

intervenientes. Os primeiros são depois separados em<br />

quatro quadrantes de acordo com a classificação de<br />

maior/menor benefício e de maior/menor facilidade de<br />

resolução (análise SWOT), para a sistematização dos<br />

processos (Fig. 3).<br />

São selecionados três problemas que tenham um alto<br />

benefício e baixa dificuldade de resolução e são definidas<br />

medidas de melhoria, responsabilidades, metodologia<br />

de monitorização e indicadores de resultados e de<br />

processos.<br />

A monitorização é realizada pela equipa em tempo real<br />

e de forma transparente (Fig. 4) e o plano de acompanhamento<br />

é do conhecimento de todos os intervenientes<br />

(Fig. 5).<br />

Os resultados são expostos em gráficos e tabelas (Fig.<br />

6) e utilizam-se avatares/figuras para distinguir os profissionais<br />

mais ou menos cumpridores de forma a incentivar<br />

a competitividade positiva, sem expor e sem<br />

culpabilizar (Fig 7).<br />

O recurso a tabelas, quadros e cronogramas são essenciais<br />

para motivação dos profissionais, ao fornecerem<br />

feedback à equipa acerca das melhorias que estão a ser<br />

implementadas, processos que estão a ser monitorizados<br />

e resultados alcançados.<br />

São assim utilizadas várias estratégias de forma a manter<br />

o foco na resolução dos problemas e melhoria contínua,<br />

garantindo o nível de adesão de toda a equipa.<br />

1. Melhorias alcançadas e em curso<br />

Foram identificados vários “irritantes” que espelhavam<br />

ineficiências e cuja melhoria estava ao alcance da inter- }<br />

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“<br />

FOI ATINGIDA UMA MELHORIA<br />

EXTRAORDINÁRIA DE 97%<br />

DOS DOENTES NA MARCAÇÃO<br />

DO LOCAL CIRÚRGICO (FIG. 10).<br />

PARA ASSEGURAR A CONSISTÊNCIA<br />

DESTAS MEDIDAS MANTÉM-SE<br />

O ACOMPANHAMENTO PERIÓDICO<br />

Figura 1: Ciclo PDCA: Plan-Do-Study-Act.<br />

POR ESPECIALIDADE E A DISTINÇÃO<br />

DOS PROFISSIONAIS CUMPRIDORES<br />

NO QUADRO DE AVATARES.<br />

”<br />

Figura 2: O Huddle Meeting.<br />

venção da equipa, sendo que neste artigo destacamos<br />

apenas seis:<br />

• Padrão de higienização da sala de operações;<br />

• Prescrição de anestesia;<br />

• Consentimento informado assinado no dia da cirurgia;<br />

• Marcação da lateralidade no doente;<br />

• Registo do procedimento cirúrgico e codificação<br />

(ICD9) nos doentes urgentes;<br />

• Informação presente no plano operatório.<br />

Padrão de higienização da sala de operações<br />

Verificaram-se algumas falhas no padrão de limpeza das<br />

salas que se atribuiu à pressão sentida pelos profissionais<br />

de limpeza, à necessidade de formação e elevada rotatividade<br />

dos mesmos. Formaram-se equipas fixas de limpeza,<br />

estabeleceram-se tarefas e distribuição de postos<br />

de trabalho por tempo mais alargado, fez-se formação e<br />

criaram-se listas de tarefas para orientação e registo. O<br />

processo foi monitorizado tendo-se verificado a eficácia<br />

das medidas.<br />

Prescrição de anestesia<br />

A falta de prescrição escrita da anestesia, a prescrição<br />

oral, ou a prescrição realizada fora da sala de operações,<br />

com impacto no início dos programas e na segurança da<br />

administração terapêutica, foi um dos “irritantes” considerados<br />

prioritários pela equipa.<br />

Criou-se um impresso de prescrição escrita (o sistema<br />

informático foi considerado pouco adequado), que foi<br />

apresentado à equipa e colocado em local acessível<br />

aos prescritores.<br />

Monitorizou-se a implementação tendo em conta 3 parâmetros:<br />

prescrição escrita; prescrição antes das 8h15; e<br />

prescrição em presença física na sala junto da equipa.<br />

Observaram-se melhorias significativas nos 3 parâmetros<br />

com evidente melhoria na comunicação e na hora<br />

de início das salas operatórias, como se encontra expresso<br />

na figura 8.<br />

Consentimento informado assinado no dia da cirurgia<br />

O elevado número de doentes que chegavam ao bloco<br />

operatório no dia da cirurgia sem o consentimento<br />

informado assinado tornou-se um problema que urgia<br />

melhorar. Era sobretudo necessário aumentar o número<br />

de consentimentos informados assinados na consulta<br />

e estes fossem digitalizados antes da chegada ao<br />

bloco operatório.<br />

Houve intervenção junto dos cirurgiões, dos secretariados<br />

e das equipas de enfermagem dos serviços cirúrgicos<br />

e do bloco operatório, tendo sido possível obter<br />

uma melhoria de 42% neste ponto.<br />

As melhorias estão ainda em progressão, existindo, pontualmente,<br />

algumas situações em que se verifica a inexistência<br />

do consentimento informado ou de atrasos na<br />

digitalização do mesmo.<br />

Marcação de lateralidade no doente<br />

A falta de marcação do local cirúrgico, sobretudo nos<br />

doentes com necessidade de identificação da lateralidade,<br />

acontecia em cerca de 45% das situações.<br />

Como estratégia, foi aplicada de forma rigorosa a circular<br />

normativa, que indicava a retenção do doente na<br />

unidade até à marcação da lateralidade. O impacto desta<br />

medida foi monitorizado durante 6 semanas, verificando-se<br />

o cumprimento por especialidade cirúrgica e<br />

por unidade clínica.<br />

Foi atingida uma melhoria extraordinária de 97% dos<br />

doentes na marcação do local cirúrgico (Fig. 10). Para<br />

assegurar a consistência destas medidas mantém-se o<br />

acompanhamento periódico por especialidade e a distinção<br />

dos profissionais cumpridores no quadro de avatares.<br />

Registo do procedimento cirúrgico e codificação<br />

(ICD9) nos doentes urgentes<br />

A falha sistemática da codificação e registo do procedimento<br />

cirúrgico (ICD9) no SClínico, em cirurgias urgentes,<br />

tem impacto na qualidade dos registos, finan- }<br />

Figura 3: Quadro dos “irritantes”.<br />

Figura 4: Quadro de monitorização.<br />

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Figura 5: Plano de acompanhamento.<br />

Figura 6: Medidas em curso com codificação por cor.<br />

“<br />

OS HUDDLE MEETINGS SÃO<br />

ACIMA DE TUDO UMA FORMA<br />

DE MELHORAR A COMUNICAÇÃO<br />

ENTRE OS PROFISSIONAIS.<br />

Figura 7: Quadro dos avatares.<br />

ciamento da atividade e desperdício de tempo dos assistentes<br />

técnicos.<br />

Através da monitorização dos registos foram identificados<br />

os cirurgiões que não cumpriam, foi feita formação<br />

personalizada e foram informados os responsáveis das<br />

especialidades. Foi, também, divulgado o impresso que<br />

pode ser utilizado em caso de falha do sistema informático.<br />

Com estas medidas verificou-se uma melhoria<br />

ligeira passando a percentagem de procedimentos sem<br />

registo de 29% para 21%,<br />

Informação presente no plano operatório<br />

A omissão frequente de informação imprescindível nos<br />

planos operatórios causava problemas de comunicação<br />

e falhas na articulação entre os profissionais, levando a<br />

atrasos ou conflitos que poderiam pôr em causa a segurança<br />

dos cuidados.<br />

A monitorização permitiu identificar as necessidades de<br />

melhoria de informação nos planos operatórios, com intervenção<br />

específica por especialidade. Numa primeira<br />

fase interveio-se em três especialidades: urologia, cirurgia<br />

geral e otorrinolaringologia.<br />

Verificaram-se melhorias na preparação pré-operatória,<br />

na garantia da disponibilidade de recursos para a cirurgia<br />

e no planeamento dos cuidados perioperatórios (Fig. 12).<br />

Discussão<br />

Os Huddle Meetings são acima de tudo uma forma de melhorar<br />

a comunicação entre os profissionais, contribuindo<br />

para uma cultura de transparência e de não culpabilidade.<br />

Este é um modelo passível de ser replicado noutros blocos<br />

operatórios, onde numa fase inicial serão encontradas<br />

certamente resistências, naturais, como em qualquer<br />

processo de mudança. Contudo, os resultados positivos<br />

observados, tornam evidente de que o Huddle Meeting,<br />

melhora o fluxo de informação e possibilita que vários<br />

intervenientes comuniquem na perspetiva de melhorar<br />

o ambiente de trabalho e a experiência do doente.<br />

A cultura de melhoria contínua tem como um dos maiores<br />

desafios a sua sustentabilidade, e o Huddle Meeting,<br />

revelou-se uma forma de os profissionais manterem um<br />

olhar atento e crítico sobre os processos.<br />

Apesar dos importantes benefícios conseguidos tanto a<br />

nível organizacional como a nível da qualidade do serviço<br />

para com os utentes e famílias, é importante ter em<br />

conta os constrangimentos e obstáculos que são necessários<br />

ultrapassar para garantir o sucesso desta metodologia,<br />

dos quais destacamos:<br />

• A disponibilidade dos profissionais para as reuniões<br />

semanais;<br />

”<br />

• A manutenção dos níveis de adesão da equipa ao processo;<br />

• A consistência, ao longo do tempo, das melhorias conseguidas.<br />

Estes constrangimentos têm sido mitigados através da<br />

divulgação de atas e resumos, que são partilhados com<br />

os profissionais que não puderam estar presentes na<br />

reunião, e com a divulgação dos resultados, que contribuem<br />

para que a equipa se mantenha motivada.<br />

De realçar que, os registos e monitorizações em tempo<br />

real, que são parte do ciclo de PDCA, são também, por<br />

vezes, um desafio, por serem realizados em simultâneo<br />

com os cuidados. No entanto, apresentam-se essenciais<br />

na medida em que contribuem para a avaliação do impacto<br />

imediato das melhorias introduzidas e para ajustar<br />

as perceções individuais e da equipa à realidade.<br />

Conclusões<br />

Neste projeto foram utilizadas ferramentas simples, inovadoras<br />

e sem custos associados. A aplicação persistente<br />

e sustentada no tempo, permitiram criar uma cultura<br />

no serviço, focada na resolução de problemas que dependem<br />

da equipa, sempre com o intuito de melhorar o<br />

ambiente de trabalho e a experiência do doente.<br />

Os resultados desta iniciativa tornam explícita a melho- }<br />

Figura 8: Prescrição do primeiro tempo de anestesia.<br />

Figura 9: Consentimento informado.<br />

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Figura 10: Marcação das lateralidades.<br />

“<br />

COM O LEAN E O HUDDLE MEETING,<br />

CRIARAM-SE OPORTUNIDADES<br />

DE MELHORIA DOS PROCESSOS<br />

DE TRABALHO, OBSERVA-SE<br />

MAIOR SATISFAÇÃO.<br />

”<br />

Figura 11: Sem registo dos códigos dos procedimentos.<br />

ria dos processos, associada a um fluxo de informação<br />

mais eficaz e a um incentivo à competitividade positiva.<br />

As frustrações diárias e irritações são transformadas em<br />

atitudes criativas e construtivas. O olhar entre pares é<br />

diferente. A equipa multiprofissional comunica e procura<br />

soluções em vez de culpados. Há um maior conhecimento<br />

do contributo de cada um para o resultado final<br />

e das dificuldades que por vezes se impõem.<br />

Com o Lean e o Huddle Meeting, criaram-se oportunidades<br />

de melhoria dos processos de trabalho, observase<br />

maior satisfação, cooperação, melhores relações interpessoais,<br />

mas sobretudo criou-se um ambiente mais<br />

seguro e melhores cuidados para o doente pediátrico<br />

e família. Ã<br />

Figura 12: Informação presente no plano operatório.<br />

• Batalden PB, Davidoff F. What is “quality improvement” and how can it transform<br />

healthcare? Qual Saf Health Care 2007; 16:2–3.<br />

• Feldman MS. A performance perspective on stability and change in organizational<br />

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• Harvard Business School Publishing Company. The four phases of project management.<br />

In: HBR guide to project management. Boston, MA: Harvard Business<br />

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White Paper. Cambridge, Massachusetts: Institute for Healthcare Improvement;<br />

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• Scoville R, Little K. Comparing Lean and Quality Improvement. IHI White Paper.<br />

Cambridge, Massachusetts: Institute for Healthcare Improvement; 2014. (Available<br />

at ihi.org).<br />

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