Gestão Hospitalar N.º 22 2020
Editorial | Eduardo Sá Ferreira Assembleia da República | O impacto da pandemia na democracia Pandemia nos Açores | A resposta da Região Autónoma dos Açores Médicos Dentistas | Médicos dentistas com competências de gestão Assistentes Sociais | A intervenção do serviço social em contexto hospitalar: visão e desafios no contexto atual Técnicos auxiliares de saúde | Valorizar a formação e a progressão das categorias Biólogos | Hora do reconhecimento de todos os profissionais de saúde A realidade no Hospital de Ovar pós cerca sanitária ao concelho Respostas sociais integradas em tempo de pandemia Saúde Militar | O apoio militar de emergência Investigação e cooperação no espaço lusófono e a pandemia Homenagem a Eduardo Sá Ferreira, um tímido atuante por António Correia de Campos Homenagem a Eduardo Sá Ferreira, homem amável, perspicaz e resiliente por José Menezes Correia Homenagem a Eduardo Sá Ferreira, uma vida plena Homenagem a Eduardo Sá Ferreira, pessoa afável e gestor competente por António Marques de Lima Homenagem a Eduardo Sá Ferreira: sabendo o que sei hoje, escolhia de novo ser Administrador Hospitalar Saúde pública e conhecimento: um elenco fundamental no futuro da governação clínica Risco de Covid-19 em profissionais de saúde Direito Biomédico Reflexões éticas e normativas a propósito do artigo “direitos humanos e mortes evitáveis” Diplomacia da saúde na era Covid-19 Doenças crónicas e Covid-19 Covid-19 e doenças cérebro cardiovasculares Prémio Healthcare Excelence Prémio vai reconhecer as melhores práticas no combate à Pandemia Prémio Healthcare Excelence Huddle Meeting: a sustentabilidade da melhoria contínua
Editorial | Eduardo Sá Ferreira
Assembleia da República | O impacto da pandemia na democracia
Pandemia nos Açores | A resposta da Região Autónoma dos Açores
Médicos Dentistas | Médicos dentistas com competências de gestão
Assistentes Sociais | A intervenção do serviço social em contexto hospitalar: visão e desafios no contexto atual
Técnicos auxiliares de saúde | Valorizar a formação e a progressão das categorias
Biólogos | Hora do reconhecimento de todos os profissionais de saúde
A realidade no Hospital de Ovar pós cerca sanitária ao concelho
Respostas sociais integradas em tempo de pandemia
Saúde Militar | O apoio militar de emergência Investigação e cooperação no espaço lusófono e a pandemia
Homenagem a Eduardo Sá Ferreira, um tímido atuante por António Correia de Campos
Homenagem a Eduardo Sá Ferreira, homem amável, perspicaz e resiliente por José Menezes Correia
Homenagem a Eduardo Sá Ferreira, uma vida plena
Homenagem a Eduardo Sá Ferreira, pessoa afável e gestor competente por António Marques de Lima
Homenagem a Eduardo Sá Ferreira: sabendo o que sei hoje, escolhia de novo ser Administrador Hospitalar
Saúde pública e conhecimento: um elenco fundamental no futuro da governação clínica
Risco de Covid-19 em profissionais de saúde Direito Biomédico Reflexões éticas e normativas a propósito do artigo “direitos humanos e mortes evitáveis”
Diplomacia da saúde na era Covid-19 Doenças crónicas e Covid-19 Covid-19 e doenças cérebro cardiovasculares
Prémio Healthcare Excelence Prémio vai reconhecer as melhores práticas no combate à Pandemia
Prémio Healthcare Excelence Huddle Meeting: a sustentabilidade da melhoria contínua
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JULHO AGOSTO SETEMBRO <strong>2020</strong><br />
Edição Trimestral<br />
N<strong>º</strong> <strong>22</strong><br />
GESTÃO<br />
HOSPITALAR<br />
DISTRIBUIÇÃO GRATUITA aSSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE ADMINISTRADORES HOSPITALARES<br />
Eduardo Sá Ferreira<br />
1937-<strong>2020</strong>
GH OPhghgh<br />
GESTÃO<br />
HOSPITALAR<br />
PROPRIEDADE<br />
APAH - Associação Portuguesa<br />
de Administradores <strong>Hospitalar</strong>es<br />
Parque de Saúde de Lisboa Edíficio, 11 - 1<strong>º</strong> Andar<br />
Avenida do Brasil, 53<br />
1749-002 Lisboa<br />
secretariado@apah.pt<br />
www.apah.pt<br />
DIRETOR<br />
Alexandre Lourenço<br />
DIRETORA-ADJUNTA<br />
Bárbara Sofia de Carvalho<br />
COORDENAÇÃO EDITORIAL<br />
Catarina Baptista, Miguel Lopes<br />
COORDENAÇÃO TÉCNICA<br />
Alexandra Santos<br />
EDIÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO<br />
Bleed - Sociedade Editorial e Organização<br />
de Eventos, Ltda<br />
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1600 - 082 Lisboa<br />
Tel.: 217 957 045<br />
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PROJETO GRÁFICO<br />
Sara Henriques<br />
DISTRIBUIÇÃO<br />
Gratuita<br />
PERIODICIDADE<br />
Trimestral<br />
DEPÓSITO LEGAL N.<strong>º</strong><br />
16288/97<br />
ISSN N.<strong>º</strong><br />
0871- 0767<br />
TIRAGEM<br />
2.000 exemplares<br />
IMPRESSÃO<br />
Grafisol, Lda<br />
Rua das Maçarocas<br />
Abrunheira Business Center, 3<br />
2710-056 Sintra<br />
Esta revista foi escrita segundo as novas regras<br />
do Acordo Ortográfico<br />
Estatuto Editorial disponível em www.apah.pt<br />
GH SUMÁRIO<br />
JULHO AGOSTO SETEMBRO <strong>2020</strong><br />
4<br />
6<br />
10<br />
14<br />
16<br />
20<br />
24<br />
28<br />
34<br />
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52<br />
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62<br />
68<br />
70<br />
78<br />
80<br />
84<br />
88<br />
Editorial<br />
Eduardo Sá Ferreira<br />
Assembleia da República<br />
O impacto da pandemia na democracia<br />
Pandemia nos Açores<br />
A resposta da Região Autónoma dos Açores<br />
Visão I Médicos Dentistas<br />
Médicos dentistas com competências de gestão<br />
Visão I Assistentes Sociais<br />
A intervenção do serviço social em contexto hospitalar:<br />
visão e desafios no contexto atual<br />
Visão I Técnicos auxiliares de saúde<br />
Valorizar a formação e a progressão das categorias<br />
Visão I Biólogos<br />
Hora do reconhecimento de todos os profissionais de saúde<br />
Opinião<br />
A realidade no Hospital de Ovar pós cerca sanitária ao concelho<br />
Respostas Integradas<br />
Respostas sociais integradas em tempo de pandemia<br />
Saúde Militar<br />
O apoio militar de emergência<br />
Investigação<br />
Investigação e cooperação no espaço lusófono e a pandemia<br />
Homenagem<br />
Eduardo Sá Ferreira, um tímido atuante<br />
António Correia de Campos<br />
Homenagem<br />
Eduardo Sá Ferreira, homem amável, perspicaz e resiliente<br />
José Menezes Correia<br />
Homenagem<br />
Eduardo Sá Ferreira, uma vida plena<br />
Homenagem<br />
Eduardo Sá Ferreira, pessoa afável e gestor competente<br />
António Marques de Lima<br />
Homenagem<br />
Eduardo Sá Ferreira: sabendo o que sei hoje, escolhia de novo<br />
ser Administrador <strong>Hospitalar</strong><br />
Saúde pública<br />
Saúde pública e conhecimento: um elenco fundamental no futuro<br />
da governação clínica<br />
Espaço ENSP<br />
Risco de Covid-19 em profissionais de saúde<br />
Direito Biomédico<br />
Reflexões éticas e normativas a propósito do artigo “direitos<br />
humanos e mortes evitáveis”<br />
Diplomacia em saúde<br />
Diplomacia da saúde na era Covid-19<br />
Doenças crónicas e Covid-19<br />
Covid-19 e doenças cérebro cardiovasculares<br />
Iniciativa APAH I Prémio Healthcare Excelence<br />
Prémio vai reconhecer as melhores práticas no combate à Pandemia<br />
Iniciativa APAH I Prémio Healthcare Excelence<br />
Huddle Meeting: a sustentabilidade da melhoria contínua<br />
3
GH editorial<br />
Alexandre Lourenço<br />
Presidente da APAH<br />
Eduardo Sá Ferreira<br />
Conheci o Dr. Eduardo Sá Ferreira numa<br />
edição da <strong>Gestão</strong> <strong>Hospitalar</strong> da qual fazia<br />
capa. Passei a conhecer a sua generosidade<br />
durante este meu trajeto como<br />
Presidente da Associação Portuguesa<br />
de Administradores <strong>Hospitalar</strong>es (APAH). Apesar<br />
das suas limitações físicas, sempre demonstrou uma disponibilidade<br />
ímpar para a sua Associação. Não podendo<br />
deslocar-se a Lisboa, tive a honra de receber em<br />
seu nome a Medalha de Mérito de Serviços de Saúde<br />
Grau Ouro.<br />
Foi mestre dos mestres dos meus mestres. Pouco<br />
posso acrescentar a alguém que se formou em Rennes<br />
com distinção, nos seus 30 anos assumiu a administração<br />
do Hospital de São João, fundou a APAH<br />
e foi membro da Direção da European Association<br />
of Hospital Managers, organizou o quarto congresso<br />
desta associação em Espinho, foi sub-Director Geral<br />
do Departamento de <strong>Gestão</strong> Financeira do Ministério<br />
da Saúde, etc, etc. Ainda teve disponibilidade para<br />
dedicar mais de dez anos da sua vida profissional ao<br />
desenvolvimento dos serviços de saúde em São Tomé<br />
e Príncipe: no Hospital Escolar Dr. Agostinho Neto e,<br />
posteriormente, no Centro <strong>Hospitalar</strong> de São Tomé<br />
e Príncipe.<br />
Faleceu no seu Hospital: O Hospital de São João. Em<br />
sua homenagem dedicamos esta edição da GH, reproduzindo<br />
a entrevista que deu à jornalista Carla Pedro<br />
para o livro “50 Anos em 20 Olhares, O percurso<br />
da Administração <strong>Hospitalar</strong> em Portugal”. A ler com<br />
muita atenção. António Correia de Campos, José António<br />
Menezes Correia e António Marques de Lima<br />
complementam de forma valorosa esta homenagem<br />
ao fundador e primeiro Presidente da APAH. Numa<br />
próxima edição publicaremos vários pequenos episódios<br />
que decidiu destacar nos últimos meses. “Sabendo<br />
o que sei hoje, escolhia de novo ser administrador<br />
hospitalar” disse. Da memória e ensinamentos de Sá<br />
Ferreira, voltamos à tremenda realidade da Covid-19.<br />
No passado mês, em parceria com a Ordem dos<br />
Médicos e com o apoio da Roche, lançámos o Movimento<br />
Saúde em Dia. Um movimento que pretende<br />
alertar para a segurança no acesso a serviços de saúde<br />
e para a necessidade de assegurar o acesso a cuidados<br />
de saúde. Mais informação em www.saudeemdia.pt.<br />
Sobre a pandemia, contamos com a participação da<br />
Deputada Maria Antónia Almeida Santos (Presidente<br />
da Comissão Parlamentar de Saúde) e Teresa Luciano<br />
(Secretária Regional de Saúde dos Açores). Luís Miguel<br />
Ferreira fala do Hospital de Ovar no Pós-pandemia.<br />
O Tenente General Joaquim Formeiro Monteiro<br />
fala-nos do papel das Forças Armadas no contexto<br />
de emergência. Francisco Pavão aborda a diplomacia<br />
da saúde em contexto de pandemia e Filomeno<br />
Fortes fala-nos da relevância da investigação e cooperação<br />
no espaço lusófono.<br />
Problema presente, Lúcia Cardoso apela à intervenção<br />
sobre as causas sociais da doença de forma a garantir<br />
a continuidade de cuidados. Na mesma linha, Eugénio<br />
Fonseca da Caritas fala-nos do imperativo em cuidar<br />
através de respostas integradas.<br />
Na sequência da edição anterior, damos espaço aos<br />
representantes das várias profissões de saúde para exprimirem<br />
a sua visão sobre a evolução dos últimos meses.<br />
Desta feita contamos com os contributos das Ordens<br />
dos Médicos Dentistas e Biólogos, Associação de<br />
Profissionais de Serviço Social e Associação Portuguesa<br />
de Técnicos Auxiliares de Saúde. Em complemento,<br />
no espaço ENSP, António Sousa-Uva e colegas<br />
dissertam sobre o risco de Covid-19 em profissionais<br />
de saúde.<br />
Esta é a sua <strong>Gestão</strong> <strong>Hospitalar</strong> de sempre. A acompanhar<br />
os tempos, dedicada a Eduardo Sá Ferreira, um<br />
administrador hospitalar maior. Ã<br />
C<br />
M<br />
Y<br />
CM<br />
MY<br />
CY<br />
CMY<br />
K<br />
4
GH Assembleia da República<br />
O IMPACTO DA PANDEMIA<br />
NA DEMOCRACIA<br />
Maria Antónia de Almeida Santos<br />
Presidente da CP Saúde<br />
As pandemias, ao longo da história, têm<br />
tido inegavelmente um denominador<br />
comum: o facto de serem todas elas<br />
algo que surge de uma forma abrupta,<br />
pela perturbação inesperada que traz<br />
à vida em si mesma e pelas alterações a que obriga a<br />
nível dos comportamentos e das formas de estar quotidianas.<br />
A atual pandemia radicalizou, porém, esta noção<br />
de “abrupto”. A essa radicalização não pode ser alheia a<br />
assimetria, na corrente pandemia, na reação (em todas<br />
as valências da palavra) dos vários países, comunidades<br />
e agregados políticos que constituem o conjunto das nações<br />
do mundo.<br />
Chega a ser até paradoxal. Dada a facilidade comunicacional<br />
ao dispor de todos nós atualmente, como foi possível<br />
que o vírus entrasse em modo pandémico de forma<br />
tão rápida? Desde já, pela inabilidade e pela incapacidade<br />
de articulação institucional à escala global. Habituado às<br />
progressivas descobertas científicas e médicas e até a uma<br />
confiança amplamente alicerçada na conquista tecnológica,<br />
o mundo viu-se, de forma súbita, confrontado com<br />
algo potencialmente letal, mesmo tendo tido, na maioria<br />
dos casos (sobretudo no ocidente) antecipadamente notícia<br />
do mesmo. Hoje, para perceber a noção de “abrupto”<br />
aplicada à pandemia, é preciso acentuar-lhe não só a<br />
dimensão do “desconhecido” do ponto de vista científico<br />
e médico-terapêutico, mas também a de algo que foi desvalorizado<br />
por incapacidade de coordenação global. A<br />
facilidade da mobilidade global, a par da vulnerabilidade<br />
social, acabou por revelar-se o maior móbil inicial da transmissão<br />
do vírus.<br />
A produção de conhecimento acerca da pandemia tem<br />
sido abundante e transversal a todas as áreas. Esta é a<br />
pandemia em que a humanidade se encontra num estádio,<br />
mais do que nunca, propício à reflexão. Nessa<br />
mesma reflexão, há dois conceitos que se destacam: o<br />
de “crise” e o de “oportunidade”. Não como sinónimos<br />
ou como antónimos, ou sequer polos, mas mais como<br />
pontos sequenciais. O primeiro como ponto de partida,<br />
pela descrição que faz da situação e daquilo que lhe deu<br />
origem. O segundo, pelas propostas orientadas sobretudo<br />
para a mudança e para um ponto de chegada em que<br />
estaremos não só melhor, do ponto de vista da saúde<br />
e da vida, mas melhores enquanto civilização, enquanto<br />
seres humanos e enquanto sociedade democrática.<br />
O primeiro passo da ciência em relação ao vírus que enfrentamos<br />
foi a sua identificação e catalogação. Covid-19<br />
foi o nome atribuído pela Organização Mundial da Saúde<br />
à doença provocada pelo novo coronavírus SARS-<br />
-CoV-2, passível de causar uma infeção respiratória grave,<br />
como a pneumonia. Foi identificado pela primeira vez em<br />
humanos, no final de 2019. Muito mais haverá para dizer,<br />
do ponto de vista virológico, clínico, científico e não só.<br />
Mas gostaria de realçar a expressão “catástrofe natural”,<br />
que ouvi pela primeira vez aplicada à Covid-19, ao ex-<br />
-presidente da Federal Reserve norte-americana que liderou<br />
antes e depois da crise financeira de 2008, em declarações<br />
à CNBC, em março do corrente ano. Mais recentemente,<br />
também o virologista alemão Christian Drosten,<br />
cientista de referência e assessor do governo alemão para<br />
os temas da Covid-19, se socorreu da mesma expressão,<br />
numa entrevista para a Cimeira Mundial da Saúde (CMS).<br />
Considero a expressão particularmente bem-sucedida<br />
por mais do que um motivo. Primeiro, porque ao referirse<br />
a uma “catástrofe”, projeta a importância da resposta<br />
sistémica e da responsabilidade conjunta que lhe é inerente.<br />
Segundo, porque enfatiza o facto óbvio de os vírus<br />
existirem, de facto, na natureza e de serem, também eles,<br />
um circunstancialismo da própria vida. Em suma, anula a<br />
vontade de culpar que tem sido manifestada por muitos<br />
responsáveis políticos nesta questão.<br />
Mas não só. Entender a Covid-19 como uma catástrofe<br />
natural é também realçar o seu caráter de processo disruptivo<br />
entre o ambiente natural e o sistema social. Obviamente,<br />
não é o mesmo que as catástrofes naturais que<br />
há séculos assolam o planeta, como os sismos, a erupção<br />
de vulcões, furacões ou cheias. Um pouco à semelhança<br />
das alterações climáticas, sendo distinta de todas as<br />
primeiras, partilha com elas um denominador comum: o<br />
facto de verem a sua intensidade e frequência ampliadas<br />
pela intervenção humana. O conhecimento sobre o vírus<br />
e a sua origem que a comunidade científica tem até<br />
agora, corrobora este facto. No caso em concreto da Covid-19,<br />
essa intervenção humana deu-se na cadeia ambiental,<br />
com as decorrentes perturbações na cadeia alimentar<br />
e na qualidade da mesma.<br />
Há também outro facto pertinente (também ele com uma<br />
particularidade) ao reconhecimento do caráter de catástrofe<br />
natural da Covid-19. É certo que nesta pandemia<br />
(tal como em outras), a vulnerabilidade das diferentes<br />
sociedades depende do grau de desenvolvimento das<br />
mesmas, sobretudo a nível das respostas estruturais profiláticas<br />
e da terapêutica. Tivemos um ótimo exemplo<br />
disso a propósito da aquisição de materiais de proteção<br />
individual em contexto global. No entanto, a invulnerabilidade<br />
já não é uma certeza nos países desenvolvidos e<br />
caracterizados por elevada riqueza e elevada capacidade<br />
tecnológica e financeira.<br />
Não era possível tentar perceber os efeitos da pandemia<br />
sem esta breve introdução. Importante, também, é delinear<br />
minimamente o conceito de saúde a que se recorre<br />
e qual a relação do mesmo com a democracia. Não<br />
sendo a intenção deste artigo, de todo, uma definição<br />
conceptual, opto por realçar aquilo que nesta matéria a<br />
pandemia veio evidenciar. Logo à partida, enfatizou que o<br />
universo da saúde é bem mais do que a mera inexistência<br />
de uma doença. É o resultado de uma conjugação de<br />
fatores que condiciona o nosso bem-estar, em toda a sua<br />
integralidade. Tivemos uma perceção nítida disto mesmo,<br />
no confinamento e a propósito das perturbações que<br />
este trouxe a nível da economia e a nível familiar e psico-comportamental.<br />
Se maiores índices de pobreza, desigualdade,<br />
desemprego e desânimo geral vão originar estados<br />
de saúde da população que se vão revelar a curto<br />
ou médio prazo e que vão ser prejudiciais, as perspetivas<br />
de saúde pública não podem permanecer alheias a esse<br />
facto e têm de incorporar essa mesma realidade na delineação<br />
do conceito de saúde.<br />
Quando falamos da relação entre saúde e democracia,<br />
é impossível desvalorizar o conceito de sustentabilidade<br />
democrática. Quando falamos de sustentabilidade, pensamos<br />
em sustentabilidade económica, social ou ambiental<br />
e sempre do ponto de vista que implica a gestão de um<br />
ou mais recursos que temos por finitos. No entanto, raramente<br />
falamos na sustentabilidade democrática de uma<br />
determinada sociedade. Talvez isso se deva à dificuldade<br />
em mensurar aquilo que seria uma “sustentabilidade democrática”.<br />
Como fazê-lo, então?<br />
Uma das formas inequívocas de fazê-lo é observar a relação<br />
entre a democracia e a saúde pública. A história ensina-nos<br />
que é a democracia o regime que consagra o direito<br />
à saúde numa Constituição, o único que verdadeiramente<br />
a concretiza como fundamental, se pensarmos<br />
que sem saúde não se vive ou, vive-se mal. Temos como<br />
exemplo a criação do nosso Serviço Nacional de Saúde<br />
(SNS) ou até o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro,<br />
criado na década de oitenta do século passado, em pleno<br />
processo de redemocratização do Brasil. O nosso SNS<br />
permitiu-nos que os resultados em saúde em Portugal se<br />
comparem, em todos os índices, aos dos países mais desenvolvidos.<br />
É inegável a conclusão de que as instituições<br />
e as práticas democráticas influenciam o desenvolvimento<br />
humano em várias valências, incluindo o bem-estar e }<br />
6 7
GH Assembleia da República<br />
“<br />
É PRECISO NÃO ABDICAR<br />
DA REFLEXÃO EM TORNO<br />
DA QUESTÃO DO INVESTIMENTO<br />
EM SAÚDE. É PRECISO,<br />
MAIS DO QUE NUNCA,<br />
DAR SAÚDE À DEMOCRACIA.<br />
”<br />
a saúde pública. O primeiro impacto da pandemia na democracia<br />
deu-se no aspeto formal, desde logo nos parlamentos.<br />
Aos parlamentos cabia (e coube), enquanto instituição<br />
democrática, representar os cidadãos durante um<br />
ciclo político. Essas funções são naturalmente mantidas durante<br />
uma crise. No entanto, os parlamentos, em diálogo<br />
com as instituições governativas e executivas, tiveram de<br />
assegurar a harmonia entre as responsabilidades constitucionais<br />
em que se insere a garantia da continuidade de uma<br />
governação democrática e os poderes especiais conferidos<br />
para o combate ao vírus. Esse equilíbrio conseguiu-se<br />
pela monitorização e pela adequação de legislação.<br />
Por exemplo: Portugal, em pleno combate à pandemia,<br />
viu-se confrontado com a necessidade de adquirir equipamentos<br />
(de proteção individual e não só) num mercado<br />
global selvático, assoberbado pela emergência, pela<br />
escassez e pela limitação dos fornecedores. Daí decorreu<br />
a exigência de simplificação dos processos de aquisição e<br />
de flexibilização da contratação pública. Desse circunstancialismo<br />
(entre outros), decorreu também a necessidade<br />
de harmonizar os pressupostos constitucionais que salvaguardam<br />
a transparência, com o imperativo de salvar vidas<br />
em tempo útil. Foi criado um regime excecional para<br />
uma situação absolutamente excecional sem abdicar nunca<br />
do escrutínio e da publicação da contratação.<br />
Um segundo exemplo é a questão das liberdades e garantias<br />
em contexto epidémico/pandémico. Nas questões<br />
da saúde pública e no contexto desta crise, as nossas instituições<br />
parlamentares optaram pelo princípio básico da<br />
gradação e do equilíbrio entre a liberdade e a segurança,<br />
como algo que deve ser observado sempre. Poderia alguma<br />
vez, a título de exemplo, a georreferenciação ser<br />
utilizada como forma de controlo dos infetados? E em<br />
que moldes? E quanto ao tratamento de dados, quem<br />
monitoriza a anonimização? São dois exemplos práticos,<br />
pela positiva e circunscritos a Portugal. Em Portugal, as<br />
instituições democráticas, onde se inclui a Comissão Parlamentar<br />
de Saúde, não se demitiram da sua função durante<br />
a pandemia, acreditando sempre que é a vida quem<br />
tem de presidir às decisões políticas.<br />
E o resto do mundo? A democracia tem enfrentado nos<br />
últimos tempos algo que se assemelha a uma recessão, do<br />
ponto de vista dos valores que a suportam. Trump e Bolsonaro<br />
são a materialização (considerada em tempos apenas<br />
um risco) do populismo. Será possível que esta recessão<br />
seja potenciada pela corrente pandemia, com o risco de<br />
que se torne uma grande “depressão democrática”, com o<br />
autoritarismo a espalhar-se pelo mundo, por contaminação?<br />
Para já, o autoritarismo tem sido menos efetivo no que<br />
respeita à implementação de medidas profiláticas, nomeadamente<br />
na redução da mobilidade. A transparência,<br />
alicerçada na cooperação multigovernamental e na partilha<br />
multilateral de dados tem sido mais eficaz na construção<br />
de uma cadeia de confiança segura e mais capaz<br />
de combater as cadeias de transmissão. Falta perceber o<br />
impacto nas eleições, de uma forma geral. A instrumentalização<br />
da pandemia, por parte de movimentos populistas,<br />
terá custos para a democracia. Trump prepara-se já,<br />
por exemplo, para usar a pandemia como desculpa para<br />
contestar resultados eleitorais.<br />
Para caracterizar o momento que estamos a atravessar,<br />
temos de juntar ao “abrupto”, à “crise” e à “oportunidade”,<br />
mais um conceito-chave - o do “imponderável”. Mas<br />
nunca de uma forma derrotista e sempre com esperança.<br />
Para tal, tenho de reforçar que é preciso não abdicar<br />
da reflexão em torno da questão do investimento em<br />
saúde. É preciso, mais do que nunca, dar saúde à democracia.<br />
Do ponto de vista das políticas de saúde, a discussão<br />
dicotómica entre custo ou investimento vinha paulatinamente<br />
perdendo o seu espaço, reduzindo-se a um<br />
mero confronto retórico. Entre os mais diversos agentes<br />
do setor e não só, era já aceite de forma quase unânime<br />
que o investimento em saúde se traduz em múltiplas dimensões<br />
sociais, culturais, laborais e com isso igualmente<br />
económicas e financeiras. De algum modo, o foco da preocupação<br />
era mais o da sustentabilidade dos sistemas, debatendo<br />
o impacto dos cuidados de saúde no absentismo<br />
e na produtividade, por exemplo.<br />
Neste aspeto, a pandemia (também aqui) tem servido como<br />
wake up call. É que hoje é por de mais evidente que o<br />
investimento nos sistemas de saúde delineado com base<br />
científica e responsável não traz apenas sustentabilidade<br />
aos sistemas - traz sustentabilidade também à vida humana<br />
e à sua sobrevivência no planeta. E ao fazê-lo, traz também<br />
mais sustentabilidade à democracia. Ã<br />
8
GH Pandemia nos Açores<br />
A RESPOSTA DA REGIÃO<br />
AUTÓNOMA DOS AÇORES<br />
Teresa Machado Luciano<br />
Secretária Regional de Saúde<br />
O<br />
mundo mudou nos primeiros meses<br />
de <strong>2020</strong>. Governos, agentes económicos,<br />
sistemas e profissionais de saúde e<br />
de proteção civil e toda a população viram-se<br />
confrontados com uma emergência<br />
de saúde pública global que pôs à prova todas as<br />
formas de organização e de vida em comunidade. A este<br />
coronavírus chamaram SARS-CoV-2.<br />
A ameaça de sobrecarga e potencial colapso dos sistemas<br />
e serviços de saúde, resultante de um contágio generalizado,<br />
adquire severos contornos num arquipélago composto<br />
por nove ilhas, três delas com hospital. Por isso, o<br />
Governo dos Açores manteve-se atento e, quando o<br />
momento chegou, respondeu de forma assertiva.<br />
O objetivo foi, desde o primeiro momento, atrasar a chegada<br />
do surto à Região.<br />
Considerando a data de eventos chave, é possível ter uma<br />
visão mais alargada da posição da Região na comparação<br />
com o plano internacional (Figura 1).<br />
Potenciar fronteiras<br />
A evolução da pandemia determinou a tomada de um<br />
conjunto de medidas de carácter extraordinário em tempos<br />
de paz, algumas com impacto nos direitos, liberdades<br />
e garantias individuais. Durante dois meses, foram impostas<br />
severas restrições à mobilidade dos cidadãos, como<br />
forma de travar a propagação do vírus. A realidade arquipelágica<br />
constituiu-se, assim, em oportunidade para conter<br />
a pandemia.<br />
O escalonamento dos estados de prontidão previstos no<br />
Regime Jurídico do Sistema de Proteção Civil da Região<br />
Autónoma dos Açores permitiu adequar a resposta em<br />
função da severidade do quadro epidemiológico para cada<br />
uma das nove ilhas, adotando medidas objetivas e<br />
adaptadas a cada realidade. Foram determinados cordões<br />
sanitários em todos os concelhos de São Miguel, ilha mais<br />
afetada pela pandemia.<br />
Dando nota da preocupação com a exposição ao exterior,<br />
designadamente através do desembarque de passageiros<br />
na Região, foi suspensa a autorização de atracagem de<br />
navios de cruzeiro e iates nos portos e marinas dos Açores.<br />
Houve também uma graduação crescente das medidas<br />
que incidiram sobre a atividade da companhia SATA Air<br />
Açores, numa primeira fase através da concentração da<br />
sua capacidade operacional nos aeroportos de São Miguel<br />
e Terceira, passando à suspensão parcial em função<br />
da situação epidemiológica vivida em determinadas ilhas e<br />
culminando com a suspensão integral da atividade.<br />
No plano sanitário, foi determinado, primeiro, o confinamento<br />
obrigatório de todos os passageiros desembarcados<br />
nos Açores em unidade hoteleira, por 14 dias, medida<br />
esta que vigorou até 17 de maio, dia em que foi anunciada<br />
a decisão do Tribunal Judicial de Ponta Delgada relativamente<br />
a uma providência de habeas corpus aí intentada.<br />
A partir de 17 de maio, por forma a conter o surto pandémico<br />
na Região, foi determinado que os passageiros teriam<br />
de realizar teste de despiste ao SARS-CoV-2 e quarentena<br />
durante 14 dias.<br />
Posteriormente, em 28 de maio, determinou-se que os<br />
passageiros que chegassem do exterior à Região deixariam<br />
de estar sujeitos a isolamento profilático, mantendo-<br />
-se a necessidade de teste negativo feito antes da viagem<br />
ou à chegada aos Açores.<br />
Num primeiro momento, todos os passageiros desembarcados<br />
na Região estavam obrigados a realizar dois novos<br />
testes, no 5.<strong>º</strong> e no 13.<strong>º</strong> dia a contar da data de realização<br />
do primeiro teste de despiste ao SARS-CoV-2. Neste<br />
Figura 1<br />
momento, vigora a realização de um segundo teste.<br />
Preparar para a pandemia<br />
Os responsáveis políticos e as autoridades de saúde regionais<br />
mantiveram-se atentos desde o surgimento dos primeiros<br />
casos de pneumonia em Wuhan, no início de dezembro.<br />
A 16 de janeiro, a Direção Regional da Saúde emitiu as primeiras<br />
orientações para os viajantes que se dirigiam às regiões<br />
da China afetadas. Essas orientações foram sendo<br />
atualizadas, à medida que o surto foi evoluindo.<br />
No dia 26 de janeiro de <strong>2020</strong>, quando surgiu o primeiro<br />
caso suspeito em Portugal, já o Serviço Regional de Saúde<br />
e o Serviço Regional de Proteção Civil e Bombeiros dos<br />
Açores estavam a preparar a sua resposta, em plena articulação,<br />
beneficiando do facto de estarem sob tutela comum,<br />
no âmbito da Secretaria Regional da Saúde.<br />
A estratégia foi delineada, assentando em duas pedras basilares:<br />
aproveitamento das fronteiras naturais da Região<br />
e alargamento do rastreio e do diagnóstico de Covid-19.<br />
A preparação da Região iniciou-se com a criação de um<br />
Grupo Técnico de Coordenação, de natureza multidisciplinar,<br />
e de uma Sala de Crise, vitais para a coordenação<br />
de esforços e para o eficaz alinhamento das ações.<br />
Atenta a importância da comunicação do risco em saúde<br />
pública, foi delineado o plano de comunicação.<br />
Foram emitidas orientações para as unidades de saúde e<br />
para as respostas sociais, relativamente aos procedimentos<br />
a adotar em caso suspeito de infeção e à atualização dos<br />
planos de contingência, bem como para sectores estratégicos,<br />
como o portuário, o aeroportuário e o hoteleiro,<br />
e para a generalidade dos cidadãos.<br />
A pandemia determinou a mobilização de um avultado, mas<br />
necessário, investimento financeiro, tanto ao nível da infraestrutura<br />
existente, como no reforço dos recursos humanos<br />
e na aquisição de equipamentos e dispositivos clínicos com<br />
vista a uma resposta adequada a esta crise sanitária.<br />
O estado de relativa impreparação mundial para uma crise<br />
de saúde pública global desta dimensão, designadamente<br />
ao nível da disponibilidade de equipamentos de proteção<br />
individual, ventiladores e outros consumíveis clínicos, associada<br />
à inexistência de uma abordagem farmacológica eficaz,<br />
exerceu uma profunda pressão sobre a gestão.<br />
Num mercado global que registava intensa procura, o<br />
Serviço Regional de Saúde organizou-se para o levantamento<br />
centralizado de recursos e necessidades em matéria<br />
de internamento, ventiladores, capacidade laboratorial,<br />
recursos humanos e equipamentos de proteção individual,<br />
respondendo com um trabalho cooperativo entre<br />
todas as unidades de saúde para a sua aquisição e gestão. }<br />
10 11
GH Pandemia nos Açores<br />
“<br />
PROCURANDO ADIAR A ENTRADA<br />
DO CORONAVÍRUS NA REGIÃO,<br />
ALARGOU-SE O CONCEITO<br />
DE CASO SUSPEITO,<br />
ABRANGENDO INDIVÍDUOS<br />
ORIUNDOS DE TODAS AS ÁREAS<br />
COM TRANSMISSÃO LOCAL.<br />
Nas nove ilhas, desencadeou-se um intenso programa de<br />
formação de profissionais de saúde e bombeiros, responsáveis<br />
pelo transporte de doentes, para a correta utilização<br />
dos equipamentos de proteção individual.<br />
Procurando adiar a entrada do coronavírus na Região,<br />
alargou-se o conceito de caso suspeito, abrangendo indivíduos<br />
oriundos de todas as áreas com transmissão local.<br />
Introduziu-se, no final de fevereiro, procedimentos para a<br />
investigação epidemiológica dos viajantes que desembarcavam<br />
nos portos e aeroportos da Região e, em colaboração<br />
com a Universidade dos Açores, iniciou-se a vigilância<br />
de alunos, investigadores e docentes em programas<br />
de mobilidade.<br />
Foram restringidas as visitas nas unidades de saúde e estruturas<br />
residenciais para idosos.<br />
Mais tarde, a rede de laboratórios da Região foi alargada,<br />
através de convenção, incentivando os passageiros que<br />
embarcam em território continental português e na Região<br />
Autónoma da Madeira a chegar aos Açores com o seu<br />
teste à infeção por SARS-CoV-2 já realizado e negativo.<br />
Em meados de setembro, contando os mais de 125 mil<br />
testes realizados nos Açores e as 33 mil análises efetuadas<br />
ao abrigo da convenção estabelecida com laboratórios<br />
no exterior, tínhamos um rácio de 645 testes por cada<br />
mil residentes, quase o dobro da Região Autónoma da<br />
Madeira e quase o triplo de Portugal Continental.<br />
Através da convenção com laboratórios no exterior, foi<br />
possível detetar, até 15 de setembro, mais de seis dezenas<br />
de casos positivos antes do embarque, contribuindo<br />
decisivamente para a proteção da saúde de residentes e<br />
visitantes dos Açores.<br />
Neste momento, os viajantes dispõem da aplicação web<br />
My Safe Azores, disponível em https://mysafeazores.com/,<br />
que permite concretizar, numa só interação e antecipadamente,<br />
todos os passos antes da chegada à Região.<br />
Também o esclarecimento e o apoio ao cidadão foram definidos<br />
como eixos centrais na resposta, tendo sido criada,<br />
no dia do surgimento do primeiro caso positivo na Região,<br />
a Linha Açores de Esclarecimento Não Médico Covid-19<br />
- 800 29 29 29, para esclarecimento de dúvidas relativas a<br />
emprego, segurança social e apoios sociais e económicos.<br />
Foi ainda criada uma equipa para esclarecimento de dúvidas<br />
através de correio eletrónico (esclarecimentocovid19@azores.gov.pt),<br />
bem como um portal para agregação<br />
de toda a informação (https://destinoseguro.azores.gov.pt/).<br />
Retomar e recuperar a atividade assistencial<br />
A par da resposta à crise sanitária, foi necessário preparar<br />
a retoma, de forma estruturada e em articulação com<br />
todos os agentes e sectores da atividade.<br />
A <strong>22</strong> de maio, o Governo dos Açores abriu a Agenda para<br />
o Relançamento Social e Económico à participação dos<br />
parceiros sociais, ação vital para um regresso ordenado à<br />
nova realidade, mas também para salvaguardar uma retoma<br />
económica consistente, procurando mitigar o risco do<br />
surgimento de uma segunda vaga pandémica.<br />
No âmbito do Serviço Regional de Saúde, foi solicitada às<br />
Unidades de Saúde de Ilha e aos Hospitais a elaboração<br />
de um plano de recuperação, integrando a atividade produzida,<br />
estimativas da produção a realizar até ao final do<br />
ano e o cronograma da retoma da atividade assistencial,<br />
de acordo com as especificidades de cada unidade de<br />
saúde e da comunidade que esta serve.<br />
Foram determinados como eixos da recuperação da atividade<br />
assistencial o reforço da capacidade administrativa<br />
e organizacional, a identificação e a resposta às situações<br />
prioritárias, a promoção do acesso aos cuidados de saúde,<br />
a garantia da integralidade de cuidados e a coordenação<br />
e integração de cuidados.<br />
Para garantir uma resposta adequada às necessidades<br />
emergentes, quer ao nível da infraestrutura de cuidados<br />
à população infetada, quer ao nível da estrutura de saúde<br />
pública, foi necessário alterar o padrão de resposta dos<br />
serviços de saúde.<br />
Obedecendo ao imperativo de garantir a segurança dos<br />
utentes e adaptando-se às circunstâncias, mais de 40%<br />
das consultas dos cuidados de saúde primários realizam-<br />
-se agora por via indireta, isto é, seja por telefone, correio<br />
eletrónico ou com recurso a outras tecnologias.<br />
O Serviço Regional de Saúde garantiu, nos últimos meses,<br />
todas as cirurgias urgentes e inadiáveis. E, desde maio, temos<br />
assistido a um movimento seguro de retoma nos<br />
blocos operatórios dos nossos hospitais.<br />
O rastreio das doenças oncológicas, que esteve suspenso<br />
durante três meses, já regressou à normalidade, ainda que<br />
obrigando à mobilização de recursos adicionais.<br />
A recuperação da atividade assistencial cumpre-se, deste<br />
modo, de forma paulatina, mas segura, como exige a proteção<br />
da saúde, em todas as suas vertentes.<br />
Enfrentar a segunda vaga<br />
O Serviço Regional de Saúde e os seus profissionais enfrentam<br />
agora o desafio maior da recuperação da atividade<br />
assistencial, num contexto que se adivinha particularmente<br />
complexo, pela proximidade da época gripal e<br />
pelos prenúncios e riscos de uma segunda vaga, a nível<br />
global, de Covid-19.<br />
Dentro em breve, teremos vários vírus respiratórios em<br />
circulação, obrigando a maior controlo epidemiológico e<br />
ao reforço das medidas de segurança preconizadas nos<br />
planos de contingência das unidades de saúde.<br />
Neste contexto, o objetivo será proteger, sobretudo, as<br />
camadas mais vulneráveis da população e defender a capacidade<br />
do Serviço Regional de Saúde.<br />
Para fortalecer a resposta, foi aprovado um reforço financeiro<br />
para as nossas unidades de saúde e hospitais, elevando<br />
o orçamento da Saúde para 357 milhões de euros<br />
e o plano de investimentos anual para 60 milhões de<br />
euros, valores históricos.<br />
O Governo dos Açores desenvolve agora esforços para antecipar<br />
e alargar a vacinação contra a gripe nos grupos vulneráveis,<br />
em particular os indivíduos com mais de 65 anos.<br />
Aos nossos profissionais exigimos agora mais do que nunca.<br />
Mas estamos mais preparados, em instalações, equipamentos<br />
e, sobretudo, em conhecimento e competências.<br />
Avaliar esforços<br />
A luta à escala global contra um vírus desconhecido para<br />
a humanidade obrigou à tomada de medidas de natureza<br />
absolutamente excecional, com o intuito último de salvar vidas<br />
e evitar o colapso dos sistemas e serviços de saúde. Os<br />
custos humanos, sociais, de saúde e económicos que dessa<br />
luta resultam só poderão ser estimados no longo prazo.<br />
A Região Autónoma dos Açores implementou medidas<br />
assertivas, mas eficazes, para prevenção e controlo da disseminação<br />
da doença, tanto no que à Saúde Pública concerne,<br />
como nos restantes sectores de atividade, tendo<br />
em consideração a transversalidade da crise pandémica.<br />
Os últimos meses foram árduos para as organizações públicas,<br />
para as empresas, para quem teve de tomar decisões<br />
em contexto de incerteza, para os profissionais da<br />
saúde e da proteção civil e para as forças de segurança,<br />
na linha da frente deste combate. E, sobretudo, para cada<br />
um dos Açorianos, das nossas nove ilhas.<br />
Mas o Serviço Regional de Saúde e os seus profissionais<br />
responderam à chamada com escrupuloso sentido do dever,<br />
plena dedicação ao serviço público e o conhecimento<br />
e a competência que lhes são reconhecidos.<br />
Fizemos o que dita a ciência, num contexto em que o conhecimento<br />
se constrói dia a dia. E será a ciência que, a longo<br />
prazo, avaliará as medidas implementadas nas nossas<br />
nove ilhas, no país e no mundo. Ã<br />
”<br />
Perante as dificuldades de assegurar o transporte de equipamentos<br />
encomendados a fornecedores chineses, foram<br />
fretados dois aviões.<br />
O orçamento das Unidades de Saúde de Ilha e dos Hospitais<br />
sofreu um reforço de 15 milhões de euros, foram adquiridos<br />
equipamentos de proteção individual no valor de<br />
9,3 milhões de euros, aumentou-se a capacidade de testagem<br />
dos dois laboratórios públicos regionais.<br />
Foram criados dez quartos de pressão negativa no Hospital<br />
do Divino Espírito Santo de Ponta Delgada e três quartos<br />
de pressão negativa no Hospital da Horta, que se juntaram<br />
assim aos 13 quartos existentes no Hospital do Santo<br />
Espírito da Ilha Terceira.<br />
A este esforço de investimento público, juntaram-se cidadãos<br />
e entidades privadas, através de donativos de valor<br />
“<br />
superior a 620 mil euros.<br />
Para agilizar a resposta às necessidades emergentes da crise<br />
sanitária, foram suspensos os procedimentos relativos<br />
às autorizações para contratação de pessoal e aquisição<br />
A LUTA À ESCALA GLOBAL<br />
de serviços.<br />
A Linha de Saúde Açores - 808 24 60 24, para informação,<br />
CONTRA UM VÍRUS DESCONHECIDO<br />
aconselhamento e encaminhamento, foi reforçada, tanto<br />
em instalações, como em recursos humanos, adivinhando-se<br />
a forte procura que viria a registar. Foi introduzido<br />
PARA A HUMANIDADE OBRIGOU<br />
À TOMADA DE MEDIDAS<br />
o algoritmo dedicado ao rastreio e encaminhamento de<br />
casos suspeitos de Covid-19 e a utilização da Linha pas-<br />
DE NATUREZA ABSOLUTAMENTE<br />
sou a ser gratuita para os cidadãos.<br />
Foi desenvolvida a maior campanha de comunicação de<br />
EXCECIONAL, COM O INTUITO<br />
que a Saúde tem memória na Região, envolvendo televisão,<br />
rádio, imprensa e internet, procurando-se fomentar<br />
ÚLTIMO DE SALVAR VIDAS.<br />
a adoção de comportamentos preventivos, bem como o<br />
”<br />
conhecimento sobre o novo coronavírus e as suas formas<br />
de transmissão.<br />
12 13
GH VISÃO MÉDICOS DENTISTAS<br />
MÉDICOS DENTISTAS COM<br />
COMPETÊNCIAS DE GESTÃO<br />
Miguel Pavão<br />
Bastonário da Ordem dos Médicos Dentistas<br />
Cumpriram-se os primeiros seis meses desde<br />
que foi oficialmente anunciado pela<br />
OMS que o mundo tinha uma nova pandemia,<br />
causada pela Covid-19 e o nosso<br />
País, não sendo exceção, vive períodos excecionais<br />
e incomparáveis, mas sem nenhuma certeza e<br />
qualquer garantia de serem tempos irrepetíveis.<br />
Este longo semestre transformou as nossas vidas e rotinas<br />
e deixou marcas indeléveis em diversas dimensões que se<br />
acentuarão nos tempos vindouros, comprovando a saúde<br />
como bem único para a sociedade e demonstrando<br />
que os profissionais de saúde são agora os exércitos de<br />
salvação de um inimigo invisível e que ameaça a humanidade,<br />
colocando em causa a sua organização social.<br />
O que tem sido difícil em tempos de intranquilidade, é<br />
dominar o fator imprevisibilidade! O desconhecimento<br />
da tipologia deste novo vírus faz com que os tempos de<br />
espera por terapias ou soluções a esta nova ameaça nos<br />
reduzam a uma dura perceção, acerca da incapacidade<br />
humana e técnica perante um inimigo nanoscópico e desconhecido.<br />
Em Portugal como no Mundo, esta pandemia veio apenas<br />
reforçar o que já era uma evidência: a saúde é um assunto<br />
sério e deve ser priorizado. Para tal, os países mais preparados,<br />
com modelos de gestão e organização, são os que<br />
mais beneficiam. E por muito que custe acreditar, nem<br />
sempre são os mais ricos os que melhor ficam na fotografia<br />
final, perante uma crise de saúde pública à escala global,<br />
que não respeita fronteiras ou diferencia PIB’s estatais.<br />
É certo que uma pandemia coloca à prova todo um sistema<br />
de saúde, levando muitas vezes os profissionais de<br />
saúde à exaustão e os políticos à exasperação. Não sei se<br />
há possibilidade de ter uma visão positiva desta crise sa-<br />
nitária, mas há uma circunstância que não devemos desaproveitar<br />
em toda esta epidemia: devemos fazer uma reflexão<br />
acerca da importância da saúde e da gestão na saúde.<br />
Será que as prioridades em saúde estão corretas? Será que<br />
o modelo de gestão na saúde é o adequado? E a formação<br />
dos profissionais de saúde vai de encontro aos problemas<br />
futuros? São os modelos de gestão utilizados devidamente<br />
pelos serviços e entidades de saúde?<br />
Em Portugal, contrariamente a outras especialidades médicas,<br />
a medicina dentária é exercida maioritariamente em<br />
consultórios privados - segundo dados do Observatório<br />
da Saúde Oral, o que pressupõe que os médicos dentistas<br />
que gerem esses consultórios possuam ou necessitem<br />
de conhecimentos de gestão.<br />
A medicina dentária é uma profissão baseada em competências<br />
médicas e na ciência, onde a maior parte dos<br />
novos conhecimentos adquiridos são baseados no método<br />
científico. De forma contrária, os princípios subjacentes<br />
à prática de gestão são uma fusão de conhecimentos<br />
baseados na comunicação entre médicos dentistas, seus<br />
empregados e outros profissionais com experiência na<br />
área da gestão de consultórios dentários.<br />
De facto a área da gestão é vasta e complexa, pois além<br />
de possuir diferentes níveis, engloba muitas outras áreas<br />
que estão interligadas entre si numa organização, numa<br />
clínica. No entanto, esta área ainda não é muito dominada<br />
pelos médicos dentistas cuja formação assenta sobretudo<br />
nas ciências médicas e técnicas das ciências dentárias.<br />
E a incontestável mais-valia que as competências na área da<br />
gestão podem ser atualmente, e no futuro, para a sobrevivência<br />
e sucesso dos consultórios dentários, num quadro<br />
de plena mudança da sociedade e da forma como os<br />
clínicos se expõem à sociedade que necessita dos seus<br />
serviços. Os médicos dentistas são treinados para diagnosticar,<br />
tratar, e prevenir as doenças e condições relacionadas<br />
com os dentes e cavidade oral, pelo que a necessidade<br />
de rapidamente ganhar competências clínicas e<br />
científicas deixa pouco tempo para formação adicional.<br />
Quando entram no mercado de trabalho, a maioria dos<br />
médicos dentistas associam-se a outros profissionais ou<br />
tornam-se proprietários de micro empresas, o que requer<br />
um conjunto de aptidões, nomeadamente na área<br />
da gestão.<br />
Muitos médicos dentistas saem dos seus cursos com a<br />
sensação que não estão preparados para começar e gerir<br />
um consultório dentário. Devido às mudanças no mercado<br />
serem rápidas e dinâmicas, nem sempre é possível validar<br />
com estudos na literatura, as experiências efetuadas<br />
na área da gestão em medicina dentária.<br />
Profissionais de saúde, como os médicos dentistas, estão<br />
sujeitos a serem gestores das suas próprias empresas. A<br />
competitividade no mercado em que os profissionais da<br />
medicina dentária atuam articula-se em duas dimensões:<br />
a qualidade do ato profissional e todos os processos que<br />
envolvem a dimensão da gestão do seu negócio.<br />
O exercício da profissão liberal leva o profissional a deparar-se<br />
com as dificuldades inerentes à organização do<br />
negócio, desde aspetos legais da instalação, pagamentos<br />
e recebimentos, contratação de funcionários e compra<br />
de materiais.<br />
Tais atividades envolvem as quatro áreas funcionais da administração<br />
(gestão de pessoas, marketing, produção e finanças).<br />
“O profissional liberal precisa diversificar as suas habilidades<br />
para conseguir atuar nos vários aspetos inerentes ao<br />
exercício da profissão.” (Ribas, Siqueira e Binotto, 2010).<br />
Para os médicos dentistas jovens ou mais experientes, as<br />
competências na área da gestão são uma forma de obterem<br />
as habilidades e a confiança que precisam para a<br />
prática da medicina dentária a um alto nível ético e clínico.<br />
As rápidas mudanças no ambiente económico e os seus<br />
impactos na prática da medicina dentária sugerem que os<br />
médicos dentistas formados precisam, mais do que nunca,<br />
de mais conhecimentos nas áreas da gestão, como em<br />
marketing e contabilidade.<br />
O futuro da medicina dentária será similar a muitos outros<br />
negócios. Os que serão capazes de sobreviver e prosperar<br />
serão aqueles que possuírem sistemas de gestão<br />
e com excelente serviço ao cliente.<br />
O médico dentista deve possuir três habilidades para gerir<br />
o seu consultório: habilidades técnicas (conhecimento<br />
científico e da especialidade que executa); habilidades humanas<br />
(ser um líder, motivar a equipa e estar atento às<br />
expetativas desta); e habilidades conceituais (entender o<br />
mercado, auto-conhecimento, conhecer problemas internos<br />
da sua atividade e perspicácia na sua resolução).<br />
A gestão consiste no planeamento, organização, direção<br />
e controlo de todas as atividades que ocorrem na empresa.<br />
Cabe ao gestor, neste caso ao médico dentista, tomar<br />
decisões e ter uma visão estratégica de forma a conseguir<br />
realizar os objetivos da sua empresa.<br />
A contabilidade é uma boa ferramenta para o processo<br />
de tomada de decisões, pois sistematiza toda a informação<br />
da atividade da empresa. Através da análise das demonstrações<br />
financeiras é possível ao médico dentista saber<br />
o estado de “saúde” do seu negócio.<br />
O marketing é um valioso instrumento que permite captar<br />
clientes para o consultório, nomeadamente através do<br />
marketing interno e externo. O médico dentista precisa<br />
ter uma visão do mercado, saber qual o público-alvo pretendido<br />
e ainda saber criar valor no serviço prestado. Esta<br />
criação de valor pode ser obtida através de um serviço<br />
de excelência em que a experiência percecionada pelo<br />
paciente excede as expetativas deste.<br />
A equipa é de extrema importância para o sucesso do<br />
consultório pois acaba por se traduzir na imagem que o<br />
cliente tem sobre a clínica. A clínica, deve possuir pessoal<br />
qualificado, motivado e que saiba trabalhar em equipa.<br />
Assim, o médico dentista, como gestor de pessoas, deve<br />
possuir capacidades de comunicação, motivação, liderança<br />
e coordenação da equipa. Ã<br />
14 15
GH VISÃO assistentes sociais<br />
A INTERVENÇÃO DO SERVIÇO<br />
SOCIAL EM CONTEXTO<br />
HOSPITALAR: VISÃO E DESAFIOS<br />
NO CONTEXTO ATUAL<br />
Júlia Cardoso<br />
Assistente social, Doutora em Serviço Social pelo ISCTE-IUL<br />
e Presidente da Direção da APSS, Associação de Profissionais<br />
de Serviço Social<br />
A<br />
luta contra pestes e doenças virais<br />
que afetaram a sociedade ao longo<br />
dos tempos foi alvo de novos olhares<br />
a partir do séc. XIX, não só por influência<br />
do desenvolvimento da medicina<br />
como também pela emergência da ciência social<br />
e do que representou enquanto método científico para<br />
o estudo da sociedade e dos fenómenos que nela ocorrem.<br />
Em consequência, é nesta época em que surge um<br />
novo olhar sobre a saúde, relacionando-a com outras<br />
dimensões, nomeadamente com as condições sociais<br />
em que a maioria da população vivia. É na I Conferência<br />
Internacional de Saúde, realizada em Paris em 1851,<br />
que os países são desafiados a adotar medidas comuns<br />
para combate às doenças de incidência e propagação<br />
comunitária que, à época, vitimavam milhares de pessoas,<br />
como a peste, febre amarela e cólera. Documentos<br />
da época dão realce ao facto de as doenças mais se<br />
propagarem em meios sociais onde a pobreza e as más<br />
condições sanitárias existiam, podendo afirmar-se que é<br />
no final do séc. XIX que começa a sentir-se a necessidade<br />
da um ação articulada e coordenada entre a saúde<br />
pública e a assistência social, sendo esta assegurada quer<br />
por médicos, quer por elementos de organizações filantrópicas,<br />
sobretudo elementos femininos.<br />
A necessidade de se profissionalizarem as funções no<br />
campo da assistência social leva não só à criação de<br />
escolas para este fim como à produção de conteúdos<br />
formativos que corporizem a orientação para uma intervenção<br />
de natureza científica, baseada em métodos<br />
de atuação próprios, racionais. É a premência em chamar<br />
para o campo de ação outro tipo de atores, que<br />
não apenas médicos e enfermeiros, para lidar com as<br />
crises sanitárias que, se concluiu, encontravam na pobreza,<br />
nas más condições de vida e de higiene o principal<br />
meio de propagação.<br />
A publicação, em 1917, do Diagnóstico Social, de Mary<br />
Richmond, é a evidência da relação entre a Saúde e o<br />
Serviço Social, especificamente, entre os cuidados médicos<br />
e a intervenção no contexto de proximidade às<br />
pessoas e comunidades. Curiosamente, não só a denominação<br />
vai beber ao diagnóstico médico, como as<br />
suas etapas apresentam semelhanças com o mesmo. Tal<br />
como na vertente médica, também o diagnóstico social<br />
constitui, desde então, o elemento base para a definição<br />
do plano de intervenção a realizar pela assistente<br />
social (aqui utilizada a forma feminina porque, à época,<br />
o Serviço Social era uma profissão exercida exclusiva e<br />
obrigatoriamente apenas por mulheres).<br />
Em Portugal, é relevante o papel de Ricardo Jorge na<br />
criação de uma estrutura destinada à defesa da saúde<br />
da população, impelido, sobretudo, pela necessidade de<br />
combater a peste bubónica que afetou o país no final do<br />
séc. XIX e, de modo mais intenso, a cidade do Porto. O<br />
Instituto Central de Higiene, fundado em 1899, tornouse<br />
o embrião da formação de profissionais que viriam a<br />
atuar junto das populações e nas suas condições reais<br />
de vida, como é o caso dos profissionais que, anos mais<br />
tarde e sob influência francesa, seriam denominados de<br />
assistentes sociais.<br />
Na mesma linha de Ricardo Jorge, também o médico<br />
Pacheco de Miranda apontava o caráter limitado da intervenção<br />
centrada na patologia clínica. Em 1925, em<br />
sessão organizada pela Sociedade das Ciências Médicas<br />
de Lisboa, o médico Pacheco de Miranda apontava<br />
como limitada a intervenção hospitalar ao centrar-se na<br />
patologia clínica da pessoa, ao considerar “os doentes de<br />
forma isolada do seu meio, sem ter em conta as causas e<br />
consequências sociais da doença” (Matias, 1999, p. 110).<br />
Contudo, e apesar da evolução que se foi verificando 1 ,<br />
só em 1946, através da Lei da Organização <strong>Hospitalar</strong><br />
(Lei 2011/46 de 2 abril) é feita referência ao caráter imprescindível<br />
do diagnóstico social como complemento<br />
do clínico e os serviços hospitalares passam a contar<br />
com o Serviço Social na sua estrutura organizativa, tendo<br />
os profissionais desta área como funções a intervenção<br />
nos fatores, de natureza não clínica, influenciadores<br />
da sua recuperação e integração, a mediação entre os<br />
serviços de Saúde e o meio social, sendo esta intervenção<br />
identificada como “função humanizadora, na relação<br />
trifacetada doente-família-médico” (Teles, 1990; Portugal-MS,<br />
1998, apud Guadalupe, 2011:109).<br />
Até à criação do Serviço Nacional de Saúde, em 1979<br />
(Lei n.<strong>º</strong> 56/79) o Serviço Social é exercido, principalmente,<br />
em contexto hospitalar e as suas funções não<br />
sofreram alterações substantivas, concentrando-se na<br />
intervenção nos fatores psicossociais que podem interferir<br />
na doença (Guadalupe, 2011: 112). O que vamos<br />
percebendo, pelos dados da história, pelos documentos<br />
produzidos mas também pela análise da realidade<br />
da intervenção do Serviço Social na Saúde, é que a/o<br />
assistente social intervém nos problemas da sociedade<br />
não estando a sua solução na sua dependência ou responsabilidade<br />
direta. Não deixa, porém, de ser responsabilidade<br />
e dever do profissional atuar na promoção<br />
do bem-estar individual e familiar, no fortalecimento do<br />
tecido social e na garantia de uma sociedade mais justa.<br />
Na atualidade, os desafios da profissão mantêm-se relacionados<br />
com o campo de ação tradicional do Serviço<br />
Social, como é o caso da pobreza e das condições de<br />
precariedade das famílias ao nível da saúde, habitação e<br />
educação, mas também com problemas sociais que têm<br />
emergido na sociedade: uns relacionados com as alterações<br />
demográficas e estrutura sociofamiliar (isolamento }<br />
16 17
GH VISÃO assistentes sociais<br />
“<br />
NÃO FORAM POSTOS EM CAUSA<br />
OS DIREITOS DOS DOENTES,<br />
DESIGNADAMENTE O DIREITO<br />
AOS CUIDADOS, À SEGURANÇA<br />
E AO BEM ESTAR, O QUE EXIGIU<br />
A INTENSIFICAÇÃO DA FUNÇÃO<br />
DE MEDIAÇÃO NA RELAÇÃO<br />
EQUIPAS DE SAÚDE.<br />
”<br />
social, institucionalização), outros com os as migrações<br />
e refugiados, outros ainda com o ambiente, alterações<br />
climáticas e desenvolvimento tecnológico, também eles<br />
produtores de desigualdades sociais.<br />
A situação de pandemia que vivemos, sendo um problema<br />
de saúde pública, veio tornar ainda mais visíveis as<br />
vulnerabilidades sociais já existentes e fez emergir outras<br />
relacionadas com a diminuição da atividade económica<br />
e com o confinamento obrigatório, com consequências<br />
ao nível da saúde, sobretudo da saúde mental.<br />
Neste contexto particular, continua a exigir-se da/o assistente<br />
social um modo de agir que reflita a sua capacidade<br />
de análise da realidade social e competência<br />
técnica e ética para intervir nela. E, também importante,<br />
a dimensão política da profissão, não só no que diz respeito<br />
à operacionalização das medidas de política mas<br />
também na capacidade de influenciar os diferentes poderes<br />
para a sua adequação às necessidades.<br />
As/os assistentes sociais que exercem funções em hospitais<br />
foram, tal como os demais profissionais que nesse<br />
espaço intervêm, confrontados com a necessidade de<br />
adaptação rápida de métodos de trabalho, incluindo ao<br />
nível das formas de comunicação com doentes e com<br />
o seu meio. Tornou-se evidente, no meio hospitalar,<br />
que o reforço dos cuidados sociais em contexto da Covid-19<br />
era (é) condição essencial para responder a necessidades,<br />
muitas delas já conhecidas, mas cujos efeitos<br />
colaterais associados à pandemia poriam em risco quer<br />
a resposta das unidades de saúde, quer a própria saúde<br />
dos doentes.<br />
Os hospitais puderam contar com a intervenção das/<br />
os assistentes sociais que, cumprindo a sua missão e as<br />
funções específicas da profissão no campo da mediação<br />
entre as equipas de cuidados clínicos, doentes, famílias e<br />
estruturas da comunidade, procuraram, também, apoiarse<br />
mutuamente, através da produção de um conjunto<br />
de guias orientadores para a intervenção de emergência.<br />
No quadro das responsabilidades da Associação de<br />
Profissionais de Serviço Social, enquanto estrutura representativa<br />
da classe profissional, e com a participação<br />
ativa de um conjunto de assistentes sociais, foram elaborados<br />
e disponibilizados o Plano de Emergência do<br />
Serviço Social da Saúde Covid-19, Diretivas de Teletrabalho<br />
para Assistentes Sociais em Situações de Emergência<br />
de Saúde Pública, Guias de Intervenção Covid-19<br />
na área da Saúde Mental (Contexto <strong>Hospitalar</strong>, Equipas<br />
Técnicas de IPSS, Equipas Técnicas Especializadas em<br />
Comportamentos Aditivos e Dependências).<br />
De uma forma geral, os guias forneceram orientação ao<br />
nível da reorganização do Serviço Social na Unidade de<br />
Saúde, na definição de procedimentos de intervenção<br />
em situações de isolamento profilático e preventivo na<br />
comunidade e no âmbito do trabalho em rede focado<br />
na situação de emergência.<br />
Como afirmado anteriormente, os tempos atuais têm<br />
sido desafiantes para o Serviço Social, particularmente<br />
para o Serviço Social hospitalar. Porém, e do contacto<br />
que vamos tendo com os profissionais, pese embora as<br />
adaptações que tiveram de ser introduzidas no que diz<br />
respeito à realização dos atos próprios de assistente social,<br />
não foram postos em causa os direitos dos doentes,<br />
designadamente o direito aos cuidados, à segurança e<br />
ao bem estar, o que exigiu a intensificação da função de<br />
mediação na relação equipas de saúde, pessoa doente,<br />
famílias/ rede informal, entidades da comunidade. Esta é<br />
uma das funções mais importantes no quadro da intervenção<br />
hospitalar e uma das dimensões da humanização<br />
dos cuidados e em que o contributo e participação do<br />
Serviço Social tem de ser reconhecido.<br />
Não poderíamos deixar de referir o problema antigo e<br />
complexo dos denominados internamentos sociais. A<br />
incapacidade das famílias, por motivos diversos, e a falta<br />
de respostas na comunidade têm sido apontadas como<br />
as principais razões para o prolongamento da permanência<br />
em hospital, com os riscos que tal permanência<br />
comporta tanto do ponto de vista da saúde como do<br />
bem-estar ao nível mental e social. Esta é uma das áreas<br />
de intervenção do Serviço Social em que as dificuldades<br />
mais se têm feito sentir e que exige políticas públicas<br />
direcionadas a um problema que encerra em si outros<br />
problemas; mais do que ficar sob a responsabilidade do<br />
meio hospitalar ou alvo de afirmações que traduzem<br />
uma leitura parcelar da realidade social contemporânea,<br />
este é, de facto, um problema que merece atenção e<br />
atuação dos poderes públicos.<br />
Sabe-se que a maioria das altas hospitalares diz respeito<br />
a pessoas com mais de 65 anos, que não requerem<br />
atendimento como o previsto em situações agudas mas<br />
sim de uma abordagem mais global, que integre os diversos<br />
níveis de cuidados do sistema de saúde e respostas<br />
sociais do sistema de segurança social. O momento<br />
que vivemos tem sido também desafiante a este nível e<br />
uma das aprendizagens é a de que também neste setor<br />
são urgentes outras e melhores formas de resposta às<br />
necessidades, com a participação das autarquias locais e<br />
das organizações do setor solidário.<br />
Não sendo uma ilha, o Serviço Social na instituição hospitalar<br />
tem de continuar o percurso iniciado há mais de<br />
cem anos, atualizando as suas práticas em função dos<br />
contextos e das necessidades e com grau de exigência<br />
elevado quer no exercício profissional, quer na relação<br />
com os diferentes poderes, políticos e organizacionais.<br />
Os utilizadores dos serviços de saúde têm o direito a<br />
cuidados de qualidade, prestados com base na premissa<br />
da interdependência biopsicossocial e assentes em procedimentos<br />
que evitem a fragmentação e a descontinuidade<br />
dos cuidados. É grande a responsabilidade das/os<br />
assistentes sociais, neste âmbito.<br />
A organização hospitalar tem de ser o espaço de concretização<br />
do que, há cerca de um século, já se reivindicava<br />
como base para a intervenção em saúde: as causas<br />
e consequências sociais da doença, privilegiando-se a<br />
visão holística do ser humano. Ã<br />
1. Uma excelente cronologia sobre o Serviço Social na Saúde, até 2010, é feita<br />
por Sónia Guadalupe (Guadalupe, S., Anotações cronológicas sobre a trajetória do<br />
Serviço Social no Sistema de Saúde em Portugal. Revista Serviço Social & Saúde.<br />
UNICAMP Campinas, v. X, n. 12, Dez. 2011).<br />
• Alves, F. A., Ricardo Jorge e a Saúde Pública em Portugal - Um "Apostolado<br />
Sanitário". Scielo, Portugal. Arq Med v.<strong>22</strong> n.2-3 Porto. 2008.<br />
• Associação de Profissionais de Serviço Social (<strong>2020</strong>) Plano de Emergência do<br />
Serviço Social da Saúde COVID-19 (SS-Covid-19).<br />
• Espírito Santo, I. A intervenção do assistente social na saúde: «um fator preponderante».<br />
Just News, 16 abril 2019. https://justnews.pt/artigos/a-intervencao-do-assistente-social-na-saude-um-fator-preponderante#.X3BeaxSSnIW<br />
• Holofote nos cuidados. Texto não publicado. <strong>2020</strong>.<br />
• Guadalupe, S., Anotações cronológicas sobre a trajetória do Serviço Social no Sistema<br />
de Saúde em Portugal. Revista Serviço Social & Saúde. UNICAMP Campinas,<br />
v. X, n. 12, Dez. 2011.<br />
• Martinelli, M.L., Serviço Social na área da saúde: uma relação histórica. Intervenção<br />
Social, 28, 2003. p. 9-18.<br />
• Martins, A.M.C., Génese, Emergência e Institucionalização do Serviço Social Português.<br />
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e a Tecnologia,<br />
1999.<br />
• Matias, M.A., Génese e emergência do Serviço Social na Saúde. Intervenção Social,<br />
20, 1999, p. 91-114.<br />
18
GH VISÃO técnicos auxiliares de saúde<br />
VALORIZAR A FORMAÇÃO E A<br />
PROGRESSÃO DAS CATEGORIAS<br />
QUERIA AINDA SALIENTAR QUE TEMOS AINDA MENOS AUXILIARES DE AÇÃO MÉDICA E QUE NÃO<br />
TEMOS SEQUER UMA CARREIRA ESPECIFICA PARA OS AUXILIARES. TEMOS MUITO MEDO DAS<br />
“CARREIRAS ESPECIAIS E DEPOIS ACABAMOS POR SER MAIS INEFICIENTES DO QUE GOSTARÍAMOS.<br />
Marta Temido, In Público, 13 de julho de 2018<br />
”<br />
Adão Artur M. Rocha<br />
Presidente da Direção da APTAS - Associação Portuguesa<br />
dos Técnicos Auxiliares de Saúde<br />
Muito aqui poderíamos escrever sobre<br />
esta nobre profissão, e o que é ser<br />
técnico auxiliar de saúde, por certo<br />
não esgotaríamos o tema, nem nos<br />
tornaríamos repetitivos no mesmo.<br />
Contudo, o nosso trabalho desenvolvido nas instituições<br />
onde é abrangente a nossa existência, profissão essa com<br />
mais de 40 anos, com provas dadas da sua importância<br />
para o bom funcionamento das mesmas, mas que desde<br />
o fatídico ano de 2008, operou-se uma mudança na persecução<br />
do cariz inserido no que a profissão representava<br />
para os profissionais e para a sociedade no geral.<br />
O reconhecimento da importância desta profissão, está<br />
explícita na Diretiva de 2013/55/UE do Parlamento Europeu<br />
e do Conselho, de 20 de novembro de 2013, que<br />
altera a Diretiva 2005/36/CE, relativa ao reconhecimento<br />
das qualificações profissionais e o Regulamento (UE)<br />
1024/2012, relativo à cooperação administrativa através<br />
do Sistema de Informação do Mercado Interno (Regulamento<br />
IMI), continuando o Estado Português em falta<br />
pelo não cumprimento dessa Diretiva.<br />
Podemos afirmar que Portugal é o único estado membro<br />
da EU que permite que entrem para estas instituições, de<br />
suma importância no nosso Serviço Nacional de Saúde e<br />
também o Social, pessoas sem qualificações ou certificação,<br />
para prestar um serviço de extrema responsabilidade<br />
para com seres humanos.<br />
Algo incompreensível, irresponsável, e podemos afirmar<br />
transgressora das diretrizes comunitárias, pois essa formação<br />
é ministrada pelo próprio Estado, o mesmo que<br />
defende a qualificação do capital humano, onde se gastam<br />
milhões de euros, sejam eles provenientes dos nossos impostos,<br />
ou dos fundos europeus, e acabam por não serem<br />
aproveitados a 100%, pois contratam pessoas sem qualquer<br />
qualificação para o exercício da profissão.<br />
Na verdade, em nosso entendimento, o Estado querendo<br />
retificar um pouco o erro cometido pelo anterior Governo,<br />
e pelos que sucederam, em 2013 através da ACSS -<br />
Administração Central do Sistema de Saúde IP, emanou<br />
uma circular normativa, com as prioridades formativas e de<br />
qualificação, que enviou para todos os Hospitais do SNS,<br />
visando a formação específica para os assistentes operacionais<br />
(ex. auxiliares de ação médica), numa perspetiva da<br />
formação contínua, de acordo com o Referencial de Qualificação<br />
dirigido ao Técnico Auxiliar de Saúde, publicado no<br />
Catálogo Nacional de Qualificações da Agência Nacional<br />
para a Qualificação, I.P.”. Normativa essa que nunca chegou<br />
a ser cumprida na íntegra por nenhuma unidade hospitalar.<br />
Em 2015, o Excelentíssimo Senhor Primeiro Ministro, António<br />
Costa respondeu a uma pergunta feita pelo técnico<br />
auxiliar de saúde (AO), João Fael, peticionário das duas petições<br />
apresentadas à Assembleia da República, que o indagava<br />
sobre se pretendia regulamentar a categoria de "técnico<br />
auxiliar de saúde", e qual a intenção relativamente aos<br />
ex. "auxiliares de ação médica". Obtendo como resposta a<br />
que passamos a transcrever:<br />
“Assim, consideramos necessária a regulamentação no sentido<br />
de valorizar os contextos de formação e de progressão<br />
das categorias em causa. A diferenciação, no contexto<br />
do SNS, deverá ser garantida de modo a permitir a requalificação<br />
técnica que permita potenciar o contributo específico<br />
destes profissionais no contexto das equipas e das instituições<br />
de saúde. Deverá igualmente ser promovida a diferenciação<br />
por áreas e funções no sentido de melhorar a<br />
eficiência global do sistema, bem como a melhoria das respetivas<br />
condições de operacionalidade. Neste sentido, defendemos<br />
a abertura aberto um processo de diálogo a fim<br />
de iniciar a revisão deste processo.<br />
Cordiais saudações. Um abraço. António Costa e Adalberto<br />
Campos Fernandes.”<br />
Perante esta resposta, entendemos lamentavelmente que<br />
em Portugal as leis não são respeitadas, e que a democracia<br />
vai sendo cada vez mais posta em causa, em especial por<br />
aqueles que a deveriam defender, honrando abril de 1974,<br />
pois como emana a nova lei de bases da Saúde, Artigo 3/<br />
base 28/29 referindo que:<br />
Base 28 - Profissionais de saúde<br />
1. São profissionais de saúde os trabalhadores envolvidos<br />
em ações cujo objetivo principal é a melhoria do estado de<br />
saúde de indivíduos ou das populações, incluindo os prestadores<br />
diretos de cuidados e os prestadores de atividades<br />
de suporte.<br />
2. Os profissionais de saúde, pela relevante função social<br />
que desempenham ao serviço das pessoas e da comunidade,<br />
estão sujeitos a deveres éticos e deontológicos acrescidos,<br />
nomeadamente a guardar sigilo profissional sobre a<br />
informação de que tomem conhecimento no exercício da<br />
sua atividade. }<br />
20 21
GH VISÃO técnicos auxiliares de saúde<br />
“<br />
TODOS OS PROFISSIONAIS<br />
DE SAÚDE QUE TRABALHAM<br />
NO SNS TÊM DIREITO A UMA<br />
CARREIRA PROFISSIONAL<br />
QUE RECONHEÇA A SUA<br />
DIFERENCIAÇÃO.<br />
3. O Estado deve promover uma política de recursos humanos<br />
que valorize a dedicação plena como regime de<br />
trabalho dos profissionais de saúde do SNS, podendo,<br />
para isso, estabelecer incentivos.<br />
Como reflexão, podemos afirmar que as mudanças operadas<br />
pela Lei em 2008, remetendo 450 carreiras para a<br />
categoria de assistente operacional, equiparando assim<br />
profissões com níveis de exigência bem acima da média<br />
e de máxima importância para estas instituições, a simples<br />
indiferenciados.<br />
Gerou esta Lei um grave problema, pois sendo esta uma<br />
profissão de desgaste rápido, seja ele físico e acima de tudo<br />
emocional, e com um grau de risco infeccioso acima da<br />
média, obter profissionais qualificados e dedicados à missão<br />
que as instituições necessitam, para que o seu objetivo<br />
fulcral seja alcançado, que é a excelência do atendimento<br />
aos seus utentes/doentes, é cada vez mais difícil, pois a informação<br />
que passa é de uma desqualificação profissional<br />
e pessoal cada vez mais aberrante no nosso panorama<br />
nacional.<br />
Na verdade, esta situação acaba por envergonhar o Estado<br />
Português, pois apesar de várias iniciativas perpetradas por<br />
alguns profissionais ex. auxiliares de saúde, que destaco,<br />
João Fael e Jorge Leandro, sendo o primeiro, responsável<br />
das duas petições entregues na Assembleia da República,<br />
tendo a primeira sido objeto de dois Projetos-lei n<strong>º</strong> 1073/<br />
XIII/4.ª (PAN) - Regulamenta a Profissão do Técnico Auxiliar<br />
de Saúde, e o Projeto-lei n<strong>º</strong> 1088/XIII/4.ª (BE) - Cria<br />
e regula a Carreira de Técnico Auxiliar de Saúde.<br />
• Projeto-lei n<strong>º</strong> 1073/XIII/4.ª (PAN) - Regulamenta a Profissão<br />
de Técnico Auxiliar de Saúde;<br />
Favor: BE, PCP, PEV, PAN e Ninsc<br />
Contra: PS<br />
Abstenção: PSD, CDS-PP e 1 Deputado do PS<br />
Rejeitado o Projeto-lei.<br />
• Projeto-lei n<strong>º</strong> 1088/XIII/4.ª (BE) - Cria e Regula a Carreira<br />
de Técnico Auxiliar de Saúde;<br />
Favor: BE, PCP, PEV e PAN<br />
Contra: PS<br />
Abstenção: PSD, CDS-PP, Ninsc e 1 Deputado do PS<br />
Rejeitado o Projeto-lei.<br />
Obtendo como resultado esta vergonhosa votação, pelos<br />
partidos com responsabilidade na situação em que<br />
se encontra a nossa carreira profissional, esperando com<br />
dignidade e perseverança, que o resultado favorável da<br />
segunda petição, da reunião da 13ª comissão, no PP dia<br />
<strong>2020</strong>-07-14, acerca da apreciação e votação do relatório<br />
final da Petição n.<strong>º</strong> 1/XIV/1.ª - Criação da Carreira de Técnico<br />
Auxiliar de Saúde, que foi aprovada por unanimidade<br />
pelos grupos parlamentares presentes, seja essa também<br />
objeto de um Projeto-lei.<br />
É neste sentido que a APTAS foi formada, tendo na sua<br />
génese a persecução de um objetivo primordial, que é<br />
reposição de uma profissão, que é de suma importância<br />
para a sociedade, dando aos profissionais, que todos os<br />
dias dão de si em prol dos outros, o digno reconhecimento<br />
da sua missão e serem inseridos como profissionais nas<br />
equipas especiais da saúde, dando-lhe um bem-estar pessoal,<br />
que vai muito além de qualquer questão monetária.<br />
Dentro deste pressuposto, a APTAS detém na sua raiz de<br />
existência, uma visão holística sobre o técnico auxiliar de<br />
saúde, e o que ele representa dentro do Serviço Nacional<br />
de Saúde, sabendo que será um trabalho árduo, pois<br />
vencer dogmas dos vários quadrantes, e em especial no<br />
seio dos profissionais inseridos nesta profissão, será uma<br />
cruzada, entendimento esse que nos levou a elaborar o<br />
nosso Código Deontológico.<br />
Como disse Fernando Pessoa: “Matar o sonho é matarmo-nos.<br />
É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos<br />
de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente<br />
nosso”.<br />
Esta é sem sombra de dúvida a frase que nos define, a AP-<br />
TAS nasceu de um sonho, sonho esse tornado realidade,<br />
mas não se estingue o ónus do sonho após a realização do<br />
mesmo, sonhamos elevar a nossa profissão a patamares de<br />
excelência, onde os objetivos primordiais sejam, educar,<br />
formar e qualificar todos aqueles que estejam abertos a<br />
serem Técnicos Auxiliares de Saúde, na sua excelência da<br />
profissão. Assim sendo, o que perspetivamos como base<br />
fundamental para esta nobre profissão, numa visão presente/futura,<br />
é qualificar todos os assistentes operacionais,<br />
que se encontrem a prestar serviços dentro das funções<br />
exigidas pelo referencial de técnico auxiliar de saúde, sendo<br />
esse o documento usado e aprovado pela ANQEP<br />
- Agência Nacional para a Qualificação e o Ensino Profissional,<br />
e que dentro desta mesma profissão se enquadrem<br />
as várias especificidades da mesma; auxiliares de enfermagem,<br />
alimentação, limpezas, descontaminação e desinfeções,<br />
estão descritas no referido referencial.<br />
Contudo, queremos que essa formação seja ministrada por<br />
profissionais do setor, sejam eles enfermeiros e ou técnicos<br />
auxiliares de saúde, pois sabemos que em várias<br />
entidades formativas e escolares temos pessoas a dar formação<br />
em áreas tão sensíveis, que de nada entendem ou<br />
percebem sobre o que é ser TAS (não se pode por um<br />
professor de ciências, a explicar como se prestam cuidados<br />
de higiene a um doente).<br />
Sabemos que a internet é pródiga em informação sobre a<br />
matéria, mas a experiência do que se faz na prática não é<br />
ensinada pelos manuais, são sim um complemento, esta é<br />
a fórmula de podermos ter profissionais qualificados, empenhados<br />
e motivados, para dar ainda mais e melhores<br />
cuidados aos que deles precisam.<br />
Demograficamente, Portugal está a ficar cada vez mais envelhecido,<br />
a família, que há umas décadas atrás era ainda<br />
alargada, passou rapidamente para uma família nuclear, o<br />
suporte familiar modificou-se completamente nos últimos<br />
20 anos, os vários ganhos a nível socioeconómico, bem<br />
como a evolução da ciência, resultou com o prolongamento<br />
da esperança de vida, pelo que teremos cada vez mais<br />
idosos, mas a precisar cada vez mais de cuidados.<br />
Isso reflete-se em especial nos doentes de longa duração,<br />
esgotando a capacidade das unidades de cuidados continuados<br />
e ou mesmo os lares, mas também será uma população<br />
muito mais esclarecida sobre os seus direitos, isso<br />
traz um desafio acrescido para os profissionais de saúde, e<br />
para o Serviço Nacional de Saúde.<br />
Com este intuito a APTAS foca a sua visão de querer preparar<br />
melhor os técnicos auxiliares de saúde, sejam os atuais<br />
assistentes operacionais, bem como os que se estão a formar.<br />
O saber-saber, o saber-fazer e em especial o saber-<br />
-ser/estar, são fundamentais para a persecução de um Serviço<br />
Nacional de Saúde de excelência.<br />
As instituições devem em nosso entender adotar políticas<br />
de contratação orientadas para profissionais que preencham<br />
estes requisitos. Ter um SNS, que preconiza a humanização<br />
como regra fundamental, não se pode dar ao desplante<br />
de contratar qualquer um para esta nobre missão<br />
que é cuidar dos outros.<br />
A procura da excelência nos cuidados sejam eles quais forem,<br />
tendo como pedra basilar a humanização, é sem<br />
sombra de dúvida a nossa bússola, e um dos objetivos da<br />
APTAS, contudo temos clareza de pensamento, sabemos<br />
dos constrangimentos das instituições, por isso queremos<br />
ser um parceiro ativo na resolução dos mesmos, mas nunca<br />
descurando a nossa principal orientação e doutrina, que<br />
é a defesa dos profissionais, técnicos auxiliares de saúde,<br />
na verdade a respetiva humanização terá de existir em<br />
primeiro para com os próprios profissionais de saúde, só<br />
assim eles estarão em condições de a prestar a 100% aos<br />
que dependem deles. Ã<br />
”<br />
3.Os profissionais de saúde têm direito a aceder à formação<br />
e ao aperfeiçoamento profissionais, tendo em conta<br />
a natureza da atividade prestada, com vista à permanente<br />
atualização de conhecimentos.<br />
4. Os profissionais de saúde têm o direito e o dever de,<br />
inseridos em carreiras profissionais, exercer a sua atividade<br />
de acordo com a legis artis e com as regras deontológicas,<br />
devendo respeitar os direitos da pessoa a quem prestam<br />
cuidados, mas podendo exercer a objeção de consciência,<br />
nos termos da lei.<br />
5. O membro do Governo responsável pela área da saúde<br />
organiza um registo nacional de profissionais de saúde,<br />
incluindo aqueles cuja inscrição seja obrigatória numa associação<br />
pública profissional.<br />
6. Os profissionais de saúde que exerçam funções no âmbito<br />
de estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde<br />
estão sujeitos a auditoria, inspeção e fiscalização do ministério<br />
responsável pela área da saúde, sem prejuízo das<br />
atribuições cometidas a associações públicas profissionais.<br />
“<br />
7. Os profissionais de saúde em regime de trabalho independente<br />
devem ser titulares de seguro contra os riscos<br />
decorrentes do exercício da sua atividade.<br />
Base 29 - Profissionais do SNS<br />
O SABER-FAZER E EM ESPECIAL<br />
1. Todos os profissionais de saúde que trabalham no SNS<br />
têm direito a uma carreira profissional que reconheça a<br />
O SABER-SER/ESTAR,<br />
sua diferenciação na área da saúde.<br />
SÃO FUNDAMENTAIS PARA<br />
2. O Estado deve promover uma política de recursos humanos<br />
que garanta:<br />
A PERSECUÇÃO DE UM SERVIÇO<br />
a) A estabilidade do vínculo aos profissionais;<br />
b) O combate à precariedade e à existência de trabalhadores<br />
sem vínculo;<br />
NACIONAL DE SAÚDE<br />
c) O trabalho em equipa, multidisciplinar e de complementaridade<br />
entre os diferentes profissionais de saúde;<br />
DE EXCELÊNCIA.<br />
”<br />
d) A formação profissional contínua e permanente dos<br />
seus profissionais.<br />
<strong>22</strong> 23
GH VISÃO biólogos<br />
HORA DO RECONHECIMENTO<br />
DE TODOS OS PROFISSIONAIS<br />
DE SAÚDE<br />
José Pereira de Matos<br />
Bastonário da Ordem dos Biólogos<br />
A<br />
Biologia é a ciência que estuda a vida,<br />
desde o nível de organização molecular<br />
até ao nível da interação dos seres<br />
vivos entre si e destes com o ambiente:<br />
a Ecologia.<br />
Nesta abordagem muito holística e absolutamente transversal<br />
a todos os setores da nossa sociedade, a Biologia<br />
está a montante de grande parte das áreas da saúde. Se<br />
por um lado, os ramos da Biologia, como a microbiologia,<br />
micologia, bacteriologia, entomologia, parasitologia e<br />
virologia, estudam os agentes patogénicos, causadores de<br />
grande parte das doenças infecciosas humanas e animais,<br />
bem como dos seus vetores; por outro lado, a fisiologia<br />
e a citologia estudam as alterações que ocorrem desde o<br />
nível celular até ao organismo no seu todo.<br />
Adicionalmente, a genética permite cada vez mais desvendar<br />
os mecanismos e a etiologia de patologias, síndromes<br />
e anomalias de base genética, tais como o cancro e as doenças<br />
raras; e a biologia ambiental permite a identificação<br />
e a prevenção de um número cada vez mais alargado de<br />
doenças provocadas pelos efeitos da poluição e pela transmissão<br />
de agentes patogénicos entre humanos e outras<br />
espécies animais.<br />
De um modo muito simplificado, mas fundamentado, podemos<br />
afirmar que a Biologia está na base do estudo de todos<br />
os agentes patogénicos e dos seus hospedeiros, bem<br />
como das interações entre todos os seres vivos e o ambiente,<br />
com grande impacto no bem-estar e na saúde humana.<br />
Não é por isso de estranhar que a Biologia esteja hoje presente<br />
nas questões societais, na estratégia ambiental, eco-<br />
nómica e social, e portanto na política, sendo o biólogo o<br />
agente desta ciência vasta e abrangente.<br />
A atividade profissional do biólogo em saúde tem duas<br />
vertentes de enorme influência nas nossas vidas: o biólogo<br />
que desenvolve a sua atividade em investigação científica,<br />
com aplicação direta ou indireta na saúde humana; e<br />
o biólogo que desenvolve a sua atividade literalmente em<br />
saúde, seja no Serviço Nacional de Saúde, em entidades<br />
do setor privado, cooperativo ou social.<br />
Quando nos referimos em particular ao biólogo da área<br />
da saúde, referimo-nos ao conceito anglo-saxónico dos<br />
profissionais de life sciences, ou seja, abrangendo não apenas<br />
aqueles que possuem formação específica em Biologia,<br />
mas também os que possuem formação de base em<br />
bioquímica e ciências afins. Esses profissionais têm desenvolvido<br />
nas últimas décadas uma atividade qualificada e<br />
diferenciadora em todas as vertentes do Sistema Nacional<br />
de Saúde.<br />
A imagem de marca do biólogo continua a ser a do ambiente,<br />
estereotipada através de programas televisivos<br />
sobre a vida na Terra, nos quais o biólogo, normalmente<br />
retratado de chapéu, colete e binóculos ao peito, melhor<br />
do que ninguém, desvenda as intrincadas relações entre<br />
seres vivos, normalmente com a informação a ser servida<br />
por imagens de fundo maravilhosas, em ambientes<br />
paradisíacos, muitas vezes podendo até fazer esquecer a<br />
mensagem mais importante subjacente a essas imagens:<br />
a necessidade da conservação da biodiversidade, sem a<br />
qual a “nossa vida” (a vida do ser humano, não a do planeta)<br />
sofrerá, a curto prazo, danos irreversíveis.<br />
Com menor visibilidade surge a imagem do biólogo investigador,<br />
cientista. Raramente se associam as descobertas<br />
mais revolucionárias da medicina e da saúde humana aos<br />
biólogos, embora seja a eles atribuída uma percentagem<br />
considerável dos Prémios Nobel da Medicina e Fisiologia<br />
ou da Química, e sejam eles os coordenadores e colaboradores<br />
de grande parte das equipas de investigação na<br />
área da saúde em todo o mundo.<br />
Embora seja esta a realidade há já muitos anos, é em relação<br />
à atividade do biólogo em saúde que a sociedade<br />
civil tem um maior desconhecimento. Poucos sabem que,<br />
no nosso País, se os biólogos deixassem de trabalhar hoje,<br />
amanhã seguramente que deixariam de ser aplicados<br />
os programas de reprodução medicamente assistida (na<br />
sua maior parte assegurada por biólogos que desempenham<br />
funções nos laboratórios dos centro de medicina<br />
reprodutiva), os testes genéticos seriam reduzidos a um<br />
mínimo e as análises clínicas sofreriam enormes quebras<br />
de disponibilidade e resposta de serviços.<br />
É um facto que a atividade do biólogo em saúde teve nos<br />
últimos anos um notável incremento nas áreas de diagnóstico,<br />
investigação, ensino e assessoria técnico-científica, entre<br />
outras, e está representada pela ação destes em laboratórios<br />
de centros hospitalares, universidades ou na indústria,<br />
de que são exemplo a indústria do medicamento<br />
e a indústria biomédica.<br />
Se considerarmos a atividade hospitalar, recai sobre os<br />
biólogos muita da responsabilidade pela atividade laboratorial,<br />
quer de diagnóstico quer de investigação científica,<br />
em particular na área das análises clínicas, genética humana<br />
e embriologia e reprodução humana, promovendo<br />
maior conhecimento, maior capacidade de resposta e por<br />
isso garantia de integridade e saúde dos indivíduos.<br />
Neste momento que atravessamos, dado o seu domínio<br />
científico, os biólogos especialistas em saúde lideram inúmeros<br />
grupos de investigação e encontram-se integrados<br />
em equipas multidisciplinares com papel determinante na<br />
dinâmica da pandemia provocada pelo vírus SARS-CoV-2<br />
que assola o mundo.<br />
Desempenham o papel de investigadores, virologistas ou<br />
epidemiologistas, presentes em várias frentes ao estudarem<br />
a natureza e virulência do vírus, ao desenvolveram<br />
testes de diagnóstico, genéticos ou serológicos, ou a realizarem<br />
pesquisas para a produção urgente de uma vacina.<br />
Ao mesmo tempo, têm tido também um papel determinante<br />
na estratégia de controlo de vigilância sanitária e<br />
na monitorização das alterações no meio ambiente. Para<br />
toda a sociedade, mas para nós biólogos, em particular,<br />
este é seguramente o maior desafio deste século.<br />
Em Portugal são também muitos os desafios que se colocam<br />
hoje a estes profissionais de saúde, uma vez que persistem<br />
constrangimentos, não só no acesso à profissão na<br />
área laboratorial (do setor público e do setor privado),<br />
como também no reconhecimento da elevada diferenciação<br />
e especialização que possuem.<br />
Contrariamente a muitos países da União Europeia nos<br />
quais os chamados science constituem a principal força<br />
profissional nas áreas laboratoriais de análises clínicas e de<br />
genética humana, esse caminho no nosso País só agora<br />
está a ser consolidado, embora a uma velocidade lenta, o<br />
que provoca constrangimentos na integração no mercado<br />
de profissionais qualificados.<br />
A visão do biólogo é vasta e abrangente e as suas valências<br />
estão identificadas e não são sobreponíveis, mas sim complementares<br />
às de outros profissionais. Esta é a hora do<br />
reconhecimento de todos os profissionais de saúde, muito<br />
em particular daqueles cuja profissão é autorregulada e<br />
que por isso estão obrigados ao cumprimento do respetivo<br />
código profissional e deontológico: biólogos, enfermei- }<br />
24 25
GH VISÃO biólogos<br />
ros, farmacêuticos, médicos, médicos dentistas, médicos<br />
veterinários, nutricionistas e psicólogos.<br />
Nos últimos seis meses, os laboratórios portugueses tiveram<br />
a capacidade de rapidamente se adaptarem e passarem<br />
do zero à realização de quase dois milhões de testes<br />
moleculares ao SARS-CoV-2. Por trás da maioria destes<br />
testes estão centenas de técnicos que têm dado o seu melhor<br />
para que os cidadãos tenham ao seu dispor um serviço<br />
de diagnóstico rápido e seguro, trabalhando em turnos<br />
insanos, cancelando ou adiando férias e assegurando que<br />
o nosso País possa ser uma referência em matéria de testagem.<br />
No setor público e no setor privado, o trabalho destes profissionais,<br />
quase sempre afastado do reconhecimento público<br />
e raramente elogiado, tem sido de uma importância<br />
fundamental. Grande parte desses profissionais são biólogos.<br />
De igual forma, dentro das universidade, dos institutos públicos,<br />
dos centros e laboratórios de investigação, o trabalho<br />
dos biólogos foi absolutamente fundamental para o<br />
estabelecimento de uma rede nacional de testagem eficaz,<br />
quer para o aumento do conhecimento sobre a diversidade<br />
genética do vírus (filogenia) nos infetados portugueses,<br />
quer para um trabalho inovador e pioneiro em matéria do<br />
estudo serológico.<br />
Apesar do papel de enorme relevo dos biólogos enquanto<br />
profissionais de saúde, a nossa formação não nos permite,<br />
em qualquer área do conhecimento e profissional,<br />
abandonar a nossa abordagem de ecossistema: ninguém<br />
trabalha sozinho, a ciência é necessariamente um trabalho<br />
de equipa. As condições que levaram a enormes avanços<br />
oriundos do trabalho solitário dos sábios do século XIX<br />
não são replicáveis atualmente.<br />
A saúde precisa de todos os seus intervenientes em trabalho<br />
colaborativo. O médico não salva uma vida se o bombeiro<br />
não conseguir transportar o doente a tempo e o biólogo<br />
não faz o diagnóstico rápido se o investigador/cientista<br />
não tiver criado e validado o método de diagnóstico.<br />
Mais do que a multidisciplinaridade, é a transdisciplinaridade<br />
que deve nortear o trabalho de equipa, no qual seguramente<br />
o resultado final é superior à soma das partes e<br />
é através desse esforço conjunto que se atinge a inovação<br />
e se amplia o conhecimento.<br />
Os biólogos sabem que uma bactéria multirresistente pode<br />
ser desastrosa para um hospital, que um fungo pode<br />
parar uma sala de cirurgia durante dias e que um vírus pode<br />
parar o mundo durante meses. A natureza arranja<br />
sempre formas de se adaptar, de nos surpreender e de<br />
nos criar novos desafios.<br />
Os biólogos estão prontos para enfrentar os novos desafios.<br />
Não isoladamente, mas em equipa, dando o seu<br />
contributo para sermos mais resilientes, para compreendermos<br />
melhor o que nos rodeia e para encontrarmos<br />
sempre as melhores soluções, com sustentabilidade e<br />
com espírito científico.<br />
Acreditem: na saúde, como em toda a parte, os biólogos<br />
criam bom ambiente! Ã<br />
26
GH opinião<br />
A REALIDADE NO HOSPITAL<br />
DE OVAR PÓS CERCA<br />
SANITÁRIA AO CONCELHO<br />
Luís Miguel Ferreira<br />
Presidente do Conselho Diretivo<br />
do Hospital Dr. Francisco Zagalo, Ovar<br />
Para concretizarmos uma reflexão sobre a<br />
realidade no Hospital de Ovar pós cerca<br />
sanitária ao concelho vareiro, é importante<br />
passarmos em revista alguns aspetos<br />
vividos nesse período de tempo em que<br />
Ovar esteve esteve perante um autêntico furação. Será<br />
também importante termos consciência (porque o País<br />
não tem bem essa consciência) da dimensão do Hospital<br />
de Ovar e da resposta que foi, localmente, possível dar<br />
graças ao esforço e dedicação dos nossos profissionais<br />
e da organização que foi montada com o envolvimento<br />
das forças vivas da comunidade, em articulação permanente<br />
com a autoridade local de Saúde Pública, com os<br />
Cuidados de Saúde Primários, com a ARS do Centro e,<br />
naturalmente, com a equipa ministerial da tutela.<br />
Ora, o Hospital Dr. Francisco Zagalo - Ovar (HFZ-Ovar)<br />
é um hospital pequeno, que mantém ainda o estatuto<br />
de hospital do Setor Público Administrativo (SPA), um<br />
dos cinco existentes no nosso País, vivendo assim com<br />
todas as desvantagens e vantagens (porque também as<br />
há) decorrentes desta característica jurídica. No entanto,<br />
as questões da segurança e qualidade dos cuidados,<br />
da eficiência e humanidade, do acesso e equidade, da<br />
exigência e rigor, colocam-se neste como se colocam<br />
no maior hospital do País. A universalidade do Serviço<br />
Nacional de Saúde assim o exige.<br />
Esta instituição de saúde serve uma população que ronda<br />
as 60 mil pessoas, não possuindo serviço de urgência,<br />
pelo que a atividade é, essencialmente, programada, as-<br />
segurada por um quadro de profissionais, composto por<br />
menos de 200 pessoas (de todas as carreiras), reforçado<br />
por cerca de 50 prestadores de serviço. Conta com um<br />
serviço de Medicina Interna, uma Unidade de Hospitalização<br />
Domiciliária, uma Unidade de Convalescença<br />
integrada na RNCCI, Serviços Cirúrgicos, Bloco Operatório<br />
e Consulta Externa (em várias especialidades), valências<br />
apoiadas por serviços que realizam um conjunto<br />
também limitado de MCDT’s, radiologia, farmácia, laboratório,<br />
esterilização, nutrição, psicologia, serviço social,<br />
medicina física e de reabilitação (fisioterapia, terapia da<br />
fala e terapia ocupacional).<br />
Tudo isto, bem como o funcionamento dos vários serviços<br />
de apoio (financeiros, aprovisionamento, jurídico,<br />
recursos humanos, admissão e gestão de doentes, informática,<br />
instalações e equipamentos, entre outros), é<br />
assegurado por equipas muito reduzidas, mas com as<br />
mesmas regras legais e os mesmos padrões de exigência<br />
técnica e de segurança que se registam no maior hospital<br />
do País. O desígnio do Serviço Nacional de Saúde<br />
assim o determina.<br />
Por todas estas características, sempre soubemos que o<br />
impacto, na nossa organização, de uma pandemia como<br />
a que estamos a viver seria severo e muito exigente. E<br />
como todos somos conhecedores, em Ovar o assunto<br />
assumiu particular gravidade, obrigando inclusivamente,<br />
que se instituísse uma cerca sanitária entre 17 de março<br />
de <strong>2020</strong> e 18 de abril de <strong>2020</strong>, uma medida que nenhum<br />
de nós havia vivido.<br />
Perante tais dificuldades, o Hospital de Ovar assumiuse,<br />
numa lógica de hospital de proximidade, como uma<br />
importante plataforma de resposta às necessidades que<br />
vinham surgindo no dia-a-dia até porque, olhando para<br />
trás, ninguém sabia quais seriam as necessidades nas<br />
instituições de saúde de referência ao nível de cuidados<br />
intensivos e intermédios, não incluídos na nossa carteira<br />
de cuidados de saúde.<br />
Estávamos a atingir patamares de infeção preocupantes,<br />
em que o número médio de casos secundários que<br />
resultam de um caso infetado, medido em função do<br />
tempo (o chamado Rt), assumia em Ovar um valor que<br />
rondava os 4.5 (segundo os números da saúde pública).<br />
Isto obrigou a que tivéssemos de reagir localmente, com<br />
determinação e rapidez, mobilizando recursos e toda a<br />
energia que fosse possível.<br />
Face à declaração de situação de “Calamidade Pública<br />
no Município de Ovar”, por despacho da Presidência do<br />
Conselho de Ministros e da Administração Interna, foi<br />
ativado o Plano Municipal de Emergência de Proteção<br />
Civil de Ovar, sendo criado um Gabinete de Crise liderado<br />
pelo Senhor Presidente da Câmara Municipal de<br />
Ovar, Salvador Malheiro, e coordenado pelo Comandante<br />
da Base Aérea de Maceda, José Nogueira, composto<br />
por entidades das mais variadas áreas.<br />
Para além das Juntas de Freguesia, integrou o Gabinete<br />
de Crise também o Hospital de Ovar, a Autoridade Local<br />
de Saúde Pública, a PSP, a GNR, os Bombeiros de<br />
Ovar e de Esmoriz, sendo que, ao longo do seu funcionamento,<br />
outras entidades como a ASAE, a Segurança<br />
Social, a Cruz Vermelha, foram sempre acompanhando<br />
e participando nos trabalhos.<br />
Em boa verdade, a existência e o bom e eficiente funcionamento<br />
deste Gabinete de Crise, que reunia diariamente,<br />
foram determinantes para a eficácia do que<br />
foi sendo necessário implementar no terreno, possibilitando<br />
a articulação de entidades que, tradicionalmente,<br />
revelam algumas dificuldades em conseguir fazê-lo.<br />
As Juntas de Freguesia de diferentes forças partidárias<br />
caminharam no mesmo sentido, os Bombeiros de duas<br />
cidades diferentes do mesmo concelho convergiram no<br />
objetivo, a PSP e a GNR alinharam na mesma estratégia,<br />
o Hospital e os Cuidados de Saúde Primários articularam<br />
os seus recursos. Foi extraordinária a experiência<br />
de cooperação, de entrega e dedicação absoluta de todas<br />
as entidades envolvidas.<br />
Uma vez que a Autoridade de Saúde Pública reconheceu<br />
que o município de Ovar vivia uma situação epidemiológica<br />
compatível com transmissão comunitária<br />
ativa, constituindo perigo para a saúde pública o que,<br />
aliás, motivou a criação da cerca sanitária, o Hospital<br />
de Ovar, teve a necessidade de responder “presente”<br />
naquelas que iam sendo as enormes necessidades identificadas.<br />
Assim:<br />
• Encetámos uma estratégia agressiva de testagem, em<br />
total articulação com a autoridade local de Saúde Pública<br />
(entre 20 de março e 16 de junho foram efetuadas<br />
5.000 colheitas em zaragatoa que, para a realização de }<br />
28 29
GH opinião<br />
“<br />
TUDO ISTO FOI FEITO<br />
COM DEDICAÇÃO PLENA<br />
DOS PROFISSIONAIS<br />
DO HOSPITAL DE OVAR QUE,<br />
DESTA FORMA, HONRARAM<br />
O SERVIÇO NACIONAL<br />
DE SAÚDE.<br />
”<br />
testes ao Sars-coV-2, foram remetidas para onde encontrámos,<br />
na altura, disponibilidade: INSA, ULS Guarda,<br />
CHVNG/E, CHBV, CHSJ, bem como laboratórios<br />
privados). Com os Bombeiros de Esmoriz e com a Cruz<br />
Vermelha de Ovar foi montada uma estrutura de recolha<br />
no exterior do Hospital, dinamizada por equipas<br />
mistas de profissionais (compostas por elementos do<br />
Hospital e dos CSP);<br />
• Suspendemos toda a atividade programada ao nível<br />
da consulta externa, cirurgia e MCDT’s, bem como as<br />
visitas aos doentes internados no Hospital, medidas tomadas<br />
antes do Ministério da Saúde ter determinado<br />
isso mesmo para todo o contexto do SNS;<br />
• Encontrámos alternativas às visitas presenciais (através<br />
de sessões de videochamada) e para a realização<br />
de teleconsultas e/ou de contactos telefónicos com os<br />
doentes, sendo que ainda tivemos disponibilidade para<br />
acolher a realização da primeira teleconsulta através da<br />
RSE Live, entretanto disponibilizada pela SPMS e pelo<br />
Ministério da Saúde para o contexto do SNS;<br />
• Abrimos uma consulta hospitalar Covid, em complemento<br />
à Área Dedicadas Covid-19 Comunidade<br />
(ADC) do Aces Baixo Vouga, com quem era feita articulação<br />
permanente;<br />
• Transformámos a enfermaria dos serviços cirúrgicos do<br />
Hospital numa enfermaria totalmente dedicada a receber<br />
doentes Covid (sem necessidades de cuidados intensivos),<br />
reforçada pela adaptação do ginásio da Medicina<br />
Física e de Reabilitação numa nova enfermaria Covid;<br />
• Deslocalizámos (mais tarde, com a retoma de alguma<br />
atividade) o ginásio da Medicina Física e de Reabilitação<br />
para um espaço cedido pelos Bombeiros de Ovar;<br />
• Apoiámos tecnicamente a Câmara Municipal na operacionalização<br />
de um espaço, na Pousada da Juventude,<br />
dedicado a receber doentes infetados que, não precisando<br />
de cuidados hospitalares, não tinham retaguarda<br />
familiar para a sua convalescença e isolamento em condições<br />
de segurança e dignidade;<br />
• Garantimos também a operacionalização do Hospital<br />
de Campanha montado pelo INEM e ARS-Centro<br />
que, na prática, constituiu uma nova enfermaria Covid<br />
do HFZ-Ovar, na verdadeira e plena aceção da palavra<br />
(EPI’s, farmácia, rouparia, alimentação, recolha de resíduos,<br />
camas articuladas, equipamento médico variado,<br />
RX, rede de oxigénio, rede informática ligada, por VPN<br />
à rede hospitalar nas componentes médica e de enfermagem,<br />
médicos, enfermeiros, assistentes operacionais,<br />
administrativos, TSDT’s, entre outros aspetos), uma estrutura<br />
que esteve em funcionamento entre 13 de abril<br />
e 5 de junho.<br />
Para alguns, este intenso conjunto de ações pode parecer<br />
pouco. Mas tudo isto foi feito com dedicação plena<br />
dos profissionais do Hospital de Ovar que, desta forma,<br />
honraram o Serviço Nacional de Saúde com uma resposta<br />
às necessidades da população local, mergulhada<br />
que estava num contexto dramático e de evolução, naquela<br />
altura, totalmente imprevisível. E sempre vivido e<br />
dinamizado em estreita cooperação entre as estruturas<br />
locais liderada, superiormente, pela Câmara Municipal<br />
que, também do ponto de vista financeiro, suportou<br />
encargos bastante significativos.<br />
Ainda assim, antes de refletirmos sobre o futuro pós<br />
cerca, importa sublinhar alguns aspetos que se revelaram<br />
cruciais para que a fase mais difícil fosse ultrapassada<br />
e que nos permitiu chegar onde estamos hoje.<br />
Em primeiro lugar, houve sempre uma enorme atenção<br />
da tutela, em particular da equipa ministerial (da<br />
Senhora Ministra, da Senhora e do Senhor Secretários<br />
de Estado), para com o que se ia passando no concelho,<br />
disponibilizando todos os meios e recursos que eram<br />
necessários mobilizar, dentro das possibilidades do momento.<br />
A título de exemplo, foram recrutadas mais de<br />
50 pessoas das várias carreiras (para substituir profissionais<br />
infetados e reforçar as equipas para o Hospital de<br />
Campanha), fomos abastecidos de EPI’s à dimensão das<br />
nossas necessidades e foram criadas condições para desenvolvermos<br />
uma estratégia significativa de testagem.<br />
Em segundo lugar, a grande maioria dos profissionais<br />
do nosso Hospital deu tudo o que tinha, empenhando<br />
o seu esforço e dedicação para conseguirmos ultrapassar<br />
as dificuldades. Muitos dos nossos profissionais, para<br />
protegerem as suas próprias famílias em nome da sua<br />
missão nesta instituição hospitalar e no SNS, ficaram<br />
alojados em quartos de hotel local (disponibilizados<br />
pela Câmara Municipal de Ovar) e em bungalows pelo<br />
Parque de Campismo do Furadouro que também se<br />
prontificou a ajudar.<br />
Em terceiro lugar, o envolvimento da comunidade foi<br />
crucial. A experiência do Gabinete de Crise, a liderança<br />
assumida pela Câmara Municipal e pelo seu Presidente,<br />
o comovente empenhamento e compromisso de todas<br />
as entidades, foram decisivos para que o espírito de<br />
união imperasse e os desafios fossem sendo ultrapassados<br />
com sucesso e cumplicidade. A onda de solidariedade<br />
da comunidade, que passou também por alguns donativos<br />
que nos chegaram, essencialmente, em espécie,<br />
foram também muito importantes para irmos buscar a<br />
força anímica que não podia, nunca, faltar.<br />
Daí que possamos dizer que a cerca sanitária e a grande<br />
exigência e responsabilidade que recaiu sobre o Hospital<br />
de Ovar e os seus profissionais fizeram com que<br />
sejamos, hoje, uma unidade de saúde bastante diferente.<br />
Aliás, depois deste período complexo já muita coisa<br />
ocorreu, obrigando a repensar espaços e circuitos, procedimentos<br />
e práticas tal como, obviamente, sucedeu e<br />
continua a suceder na generalidade das instituições de<br />
saúde do País e do mundo.<br />
Em boa verdade, quando a cerca sanitária terminou, ao<br />
pensar na resposta que dava quando me perguntavam<br />
se as coisas estavam mais calmas no hospital, chegava<br />
sempre à conclusão que não. A vida num hospital nunca<br />
é calma porque os desafios são permanentes e a superação<br />
dos nossos profissionais é sempre uma realidade,<br />
para além de uma necessidade. Passámos a pensar na<br />
retoma e a transformar novamente o nosso dia-a-dia,<br />
ajustando a estrutura à situação atual, hoje ainda em<br />
contexto de pandemia, pensando também naquilo que<br />
se espera para os próximos meses.<br />
Os números que hoje colocam Ovar num dos concelhos<br />
com maior número de casos por 10.000 habitantes<br />
(143/10.000 habitantes para 62/10.000 registados em<br />
Portugal como um todo) não nos permitem ousar sequer<br />
baixar a guarda e pensar que tudo já passou e que pode<br />
voltar tudo à normalidade como a conhecíamos. De facto,<br />
não podemos fazer o que fazíamos antes da mesma maneira<br />
e com os mesmos métodos. Ainda que o furacão<br />
não esteja hoje em Ovar, mas antes noutros pontos do<br />
País, que vivem situações preocupantes, o nosso nível de<br />
alerta e de cuidado deve manter-se igualmente elevado.<br />
Desde logo torna-se necessário contarmos com ferramentas<br />
e implementarmos metodologias que nos permitam<br />
antecipar cenários e atender a contextos mais ou<br />
menos difíceis que venham a ocorrer. Daí que, na linha<br />
da inovação que temos tentado imprimir no Hospital<br />
de Ovar, foi desenvolvido um projeto financiado pela<br />
Fundação para a Ciência e Tecnologia, por um consórcio<br />
do qual fizemos parte com a Winning e o Centro<br />
de Investigação em Saúde Cintesis (sediado na Universidade<br />
do Porto) que, na prática, criou uma escala de<br />
risco hospitalar e definiu planos de contingência a aplicar<br />
consoante o comportamento evolutivo da epidemia de<br />
Covid-19 para o HFZ-Ovar.<br />
O objetivo foi, então, o de desenvolver uma ferramenta<br />
preditiva que permita analisar o comportamento<br />
da epidemia da Covid-19 em Ovar e determinar uma<br />
escala de risco para áreas do hospital que pudessem<br />
apresentar compromisso de capacidade (em termos<br />
de número de camas, EPI’s, recursos humanos, entre<br />
outras). O resultado deste trabalho é consubstanciado<br />
numa ferramenta PRISA Covid que, julgo, constituir uma<br />
ferramenta com enorme potencial de antecipação de<br />
cenários de risco para o ecossistema da saúde, possibilitando<br />
a adoção de decisões e medidas concretas com<br />
vista a preparar o SNS e todo o sistema de saúde para<br />
contextos de dificuldade a curto e médio prazos.<br />
Por outro lado, todo o sistema precisará de ser capaz de<br />
dar resposta para além da Covid o que, de certa forma<br />
e pelos mais variados motivos, ficou bastante comprometido<br />
na primeira parte deste problema surgido em<br />
março de <strong>2020</strong>, levando ao cancelamento de milhares<br />
de cirurgias e consultas não urgentes. Neste momento,<br />
o Ministério da Saúde já alinhou com os Hospitais a<br />
estratégia de recuperação das consultas e cirurgias não<br />
realizadas durante os meses em que tal atividade pro- }<br />
30 31
GH opinião<br />
“<br />
UMA COISA É CERTA: AINDA<br />
COM TEMPOS MAIS SEGUROS,<br />
COM PROCESSOS MAIS EXIGENTES<br />
E COM EQUIPAS MAIS BEM<br />
PREPARADAS, TEREMOS<br />
DE CONTINUAR A DAR<br />
A RESPOSTA ABRANGENTE<br />
QUE OS PORTUGUESES PRECISAM<br />
E QUE O NOSSO SISTEMA<br />
DE SAÚDE TEM CAPACIDADE<br />
DE DAR, DE FORMA ARTICULADA,<br />
COMPLEMENTAR, SEGMENTADA.<br />
”<br />
gramada havia sido suspensa, sendo que essa estratégia<br />
deverá ser de forma sistemática monitorizada e reajustada.<br />
Uma coisa é certa: ainda com tempos mais seguros,<br />
com processos mais exigentes e com equipas mais<br />
bem preparadas, teremos de continuar a dar a resposta<br />
abrangente que os portugueses precisam e que o nosso<br />
sistema de saúde tem capacidade de dar, de forma<br />
articulada, complementar, segmentada, sendo certo que<br />
todos não podemos fazer tudo ao mesmo tempo. Por<br />
outro lado, devemos continuar a perseguir uma estratégia<br />
de investimento no SNS e de aposta permanente<br />
na inovação, de adoção de melhores práticas clínicas e<br />
de tecnologias modernas, bem como de valorização e<br />
reforço dos nossos recursos humanos.<br />
Naturalmente que a capacidade instalada ao nível de<br />
cuidados intensivos e intermédios deverá ser gradualmente<br />
reforçada, na linha do que tem sido a estratégia<br />
do Ministério da Saúde, tanto mais que um dos indicadores<br />
mais relevantes a ter sempre presente tem a ver<br />
com o volume dos internamentos hospitalares, principalmente<br />
com aqueles níveis de cuidados, para que o<br />
que aconteceu noutros países não venha a ocorrer em<br />
Portugal. Nesta matéria é de sublinhar os passos que,<br />
entretanto, foram dados na melhoria da nossa capacidade<br />
instalada.<br />
Também é muito importante mantermos os nossos stocks<br />
(EPI’s, farmácia, reagentes, dispositivos médicos, entre<br />
outros) a níveis superiores às necessidades atuais do<br />
dia-a-dia. A decisão do Ministério da Saúde em determinar<br />
isso mesmo desde já foi, de facto, bastante importante,<br />
gerando nos hospitais, ainda assim, alguma pressão<br />
financeira que importa ter em conta e problemas ao<br />
nível dos espaços para armazenamento, principalmente<br />
em hospitais com o nosso perfil. No hospital de Ovar,<br />
já foi necessário recorrer ao aluguer e aquisição de contentores,<br />
por exemplo.<br />
A adaptação dos espaços deve ser, igualmente, uma<br />
prioridade. Espaços de espera e circulação para os<br />
doentes que nos procuram, distâncias entre as camas<br />
nas enfermarias, tempos e acessos controlados aos espaços<br />
hospitalares, reorganização das agendas dos vários<br />
serviços, utilização de tecnologias para desincentivar<br />
deslocações dispensáveis aos hospitais, adaptação de<br />
portas e relocalização de mobiliário, reajustamento de<br />
salas para tarefas mais administrativas que assegurem<br />
o distanciamento entre as pessoas, aposta na hospitalização<br />
domiciliária e na telemonitorização são medidas<br />
necessárias e exigirão alguns investimentos, inevitavelmente.<br />
Os tempos que correm são ainda de alguma incerteza,<br />
principalmente agora que nos aproximamos do inverno,<br />
uma época que, já por si, agudiza a pressão nas nossas<br />
estruturas de saúde. O foco no essencial e a determinação<br />
no combate aos problemas, o conhecimento<br />
em tempo real da situação epidemiológica concreta e<br />
a capacidade de antecipar cenários, a coordenação das<br />
várias infraestruturas de saúde que consiga otimizar recursos<br />
e permitir que a população consiga continuar a<br />
aceder, em segurança e com confiança, a cuidados de<br />
saúde diversificados, a articulação entre diferentes níveis<br />
de cuidados (designadamente hospitalares e cuidados<br />
de saúde primários), a manutenção de níveis elevados<br />
de motivação e operacionalidade dos nossos profissionais,<br />
a disponibilidade para reforço das equipas dos hospitais,<br />
dos CSP e da Saúde Pública, a capacidade de investimento,<br />
de inovação e investigação, o envolvimento<br />
das comunidades locais na definição e implementação<br />
das estratégias de saúde junto das populações, nomeadamente<br />
ao nível da inibição de comportamentos de<br />
risco e da promoção de boas práticas e da adoção das<br />
recomendações das autoridades sanitárias, a capacidade<br />
de resposta para apoiar estruturas locais dedicadas, em<br />
particular, à terceira idade, são, sem qualquer dúvida, aspetos<br />
a ter em conta nos próximos tempos.<br />
De facto, não podemos, coletivamente, falhar para continuarmos<br />
a acreditar que “vai correr tudo bem”! Ã<br />
A Aurora Innovation foi fundada em 1996 na Suécia e é especializada<br />
em comunicação entre utentes e profissionais da saúde. A<br />
empresa desenvolveu a Aurora teleQ, uma plataforma digital que<br />
ajuda o setor da saúde a obter o controlo de todas as chamadas e<br />
garantir que cada uma delas é respondida, melhorando a experiência<br />
e confiança do utente ao saber que será contactado dentro de<br />
um prazo razoável.<br />
A plataforma é adequada para qualquer tipo de unidade de saúde,<br />
como centros de saúde, serviços de consulta externa ou departamento<br />
hospitalar que precisa de comunicar com utentes. Trata-se de<br />
um software cloud, desenvolvido após muitos anos de experiência<br />
que fornece a estrutura completa que respeita todos os requisitos da<br />
assistência médica. Com o “retorno de chamada” com hora determinada,<br />
o utente saberá a hora exata em que será contactado pela<br />
unidade de saúde, possibilitando ao utente prosseguir com o seu dia<br />
a dia sem esperar ao telefone.<br />
A Aurora teleQ possui outras funções como fila de espera, chat,<br />
SMS, e-mail e videoconferência, o que torna a plataforma na ferramenta<br />
única e necessária para organizar toda a comunicação entre a<br />
unidade de saúde e os utentes.<br />
O sistema é fácil e intuitivo, além de fornecer ao gerente vários relatórios<br />
sobre o que está a acontecer na sua unidade de saúde. Todas<br />
as chamadas entrantes são organizadas e monitoradas no computador<br />
numa única tela, permitindo ao gerente e administrador acompanhar<br />
a situação em tempo real.<br />
Aurora teleQ<br />
PUBLICIDADE<br />
Com a plataforma Aurora teleQ, os colaboradores responsáveis pelo<br />
atendimento das chamadas podem observar o alcance de resultados<br />
através do aumento da satisfação dos utentes, o que contribui para<br />
que eles sintam que o seu trabalho é realizado com mais eficiência.<br />
Quais são os resultados imediatos ao usar Aurora teleQ? Os utentes<br />
obtêm, antes de tudo, uma imagem melhor do hospital ou centro<br />
de saúde, como sendo mais profissional, mais eficiente e no<br />
qual podem confiar porque serão contactados. Por outro lado, os<br />
colaboradores veem o seu trabalho facilitado, com mais qualidade<br />
e menores níveis de stress.<br />
32
GH respostas integradas<br />
RESPOSTAS SOCIAIS<br />
INTEGRADAS EM TEMPO<br />
DE PANDEMIA<br />
Eugénio Fonseca<br />
Presidente da Caritas Portugal<br />
Da pandemia sanitária à crise socioeconómica<br />
O mundo está numa encruzilhada com<br />
uma complexidade não vista há mais de<br />
um século: o surgimento de uma crise<br />
sanitária, ainda sem um fim previsível. Esta crise originou<br />
outra que terá consequências, quiçá ainda mais gravosas,<br />
numa dimensão muito mais vasta, podendo mesmo pôr<br />
em causa, durante muito tempo, a subsistência de uma<br />
miríade de pessoas, o empobrecimento de um número<br />
incalculável de famílias e o enfraquecimento para níveis<br />
ainda não previstos da economia mundial.<br />
Portugal será um dos países mais atingidos, pelo menos<br />
no espaço dos que se situam no designado primeiro<br />
mundo. Se temos conseguido, apesar de muitas debilidades,<br />
comparativamente com países vizinhos e até mesmo<br />
com outros mais evoluídos nos domínios técnico-científicos<br />
e económicos, enfrentar este surto pandémico, o<br />
impacto na nossa economia está a ser devastador por ela<br />
já ter pouca consistência e uma dependência dos mercados<br />
externos que parece crónica e se situa, com poucas<br />
variações, na ordem dos 60%.<br />
Propositadamente, quis assumir esta preocupação dos<br />
impactos que a Covid-19 está a ter na retração da economia<br />
portuguesa, porque as múltiplas consequências<br />
que ela tem na vida de qualquer pessoa, sobretudos nas<br />
classes média e empobrecidas, terão reflexos negativos e<br />
inevitáveis no equilíbrio da saúde e no acesso aos cuidados<br />
para recuperar o que se perde ou agrava em termos<br />
de sanidade.<br />
Não sei se toda a população portuguesa, absorvida que<br />
está pelo medo dos efeitos da atual pandemia, estará a<br />
tomar consciência dos tempos ainda mais difíceis que já<br />
estão a dar sinais e que, a curto e a médio prazos, serão<br />
muito mais penosos. Disso, nos estão, continuamente, a<br />
recordar entendidos em várias áreas científicas. Um deles<br />
é Frederico de Carvalho que refere as suas preocupações,<br />
ao afirmar:<br />
“Persiste o receio de que à crise sanitária seguirá uma violenta<br />
queda de rendimentos do ano e, depois, uma série<br />
de encadeamentos aterrorizadores. Variados setores não<br />
resistiriam e o desemprego atingiria níveis sem registo. (…)<br />
Identifico aqui circunstâncias que irão denotar uma dinamização<br />
a médio prazo, inesperada e até surpreendente.<br />
Atribuo este facto, ironicamente, ao histórico medíocre<br />
aproveitamento das nossas potencialidades e vantagens<br />
competitivas, e ao nosso espírito de ordem e de abnegação,<br />
e até de inventiva quando enfrentamos períodos<br />
negros. Desde a (re)conquista do território que o nosso<br />
caminho foi feito de enganos e mudanças de rumo, mas<br />
também de redescoberta e redobrado enriquecimento.” 1<br />
O receio deste engenheiro, bem como o reconhecimento<br />
das capacidades de abnegação e de criatividade dos<br />
portugueses, estão a concretizar-se. Desde já, nas muitas<br />
ações em curso para prevenir a contaminação da Covid-19<br />
e atenuar as suas consequências e suavizar os efeitos<br />
da falta ou ausência de rendimentos. São pequenas<br />
evidências de que não queremos cruzar os braços.<br />
As respostas sociais no combate à pandemia<br />
É verdade que se está a verificar uma falta de planeamento,<br />
de segurança, de assertividade e de avaliação em algumas<br />
das ações que se têm vindo a desenvolver, tanto no<br />
plano da saúde como no da intervenção social. Há que<br />
admitir que não estávamos preparados para responder a<br />
tão grave situação generalizada por este novo coronavírus.<br />
Sabemos da existência de constrangimentos estruturais<br />
na aplicação de muitas das medidas encetadas no quadro<br />
das políticas públicas e muito pouco temos feito para os<br />
eliminar, como sejam a pouca importância dada ao planeamento<br />
realista, a opção reiterada pela uniformização<br />
das respostas sociais, o vício do individualismo institucional<br />
(nos domínios públicos e particulares) e a relutância<br />
em assumir procedimentos de avaliação, de próxima e de<br />
regular dimensão.<br />
A juntar a estas dificuldades, somos confrontados, inesperada<br />
e repentinamente, com um gravíssimo problema à<br />
escala global, totalmente desconhecido e com alterações<br />
imprevisíveis. Assim, nenhuma organização, por mais perfeita<br />
que fosse conseguiria estar à altura das exigências<br />
criadas por tão gravosa pandemia. Mesmo assim, com as<br />
práticas anómalas que foram acontecendo em países vizinhos,<br />
temos caminhado no sentido de reduzir os efeitos<br />
nefastos da Covid-19.<br />
Reorganizaram-se equipamentos e valências sociais, concretamente<br />
no que diz respeito ao apoio à infância; transformaram-se<br />
as respostas dadas pelos Centros de Dia<br />
em apoio domiciliário, sem deixar de fora os serviços que<br />
não poderiam ser prestados em casa; intensificaram-se as<br />
medidas de segurança alimentar para os já beneficiários<br />
das IPSS e os que começaram a surgir logo que a debilidade<br />
da economia começou a dar os primeiros sinais;<br />
reforçou-se o apoio psicológico; apoiaram-se as múltiplas<br />
iniciativas de prevenção; com a total abertura dos colaboradores<br />
das instituições, sempre que necessário, praticouse<br />
a polivalência na ação para que nenhuma necessidade<br />
identificada ficasse sem as mais elementares respostas;<br />
com criatividade, mesmo que artesanalmente, muitas instituições<br />
produziram máscaras para aliviar a insuficiência<br />
do mercado…<br />
Importa não esquecer a importância dada ao trabalho insano<br />
de muita gente que, individualmente ou enquadrado<br />
por instituições de voluntários ou que os integram, auxiliaram<br />
na distribuição de alimentos e no apoio à satisfação<br />
de necessidades básicas de quem, obrigatoriamente, estava<br />
sujeito ao confinamento.<br />
É certo que houve problemas que se poderiam ter evitado,<br />
como os que mais se evidenciaram no que à proteção<br />
dos idosos diz respeito. Tudo teria sido diferente se já existisse<br />
a imprescindível relação entre a saúde e a proteção<br />
social e se estivessem sido acauteladas, em devido tempo,<br />
a restruturação de muitos edificados que servem de lares,<br />
a revisão do quadro do pessoal para esta e outras valências,<br />
com as devidas contrapartidas financeiras, a formação<br />
contínua dos colaboradores das valências destinadas aos<br />
idosos, a intervenção atempada nos lares clandestinos.<br />
As fiscalizações devem existir, mas num quadro de leal cooperação<br />
e, antes de tudo, com uma perspetiva pedagógica,<br />
sem deixar de se envolverem as entidades competentes<br />
sempre que, comprovadamente, existir dolo. Porém, não<br />
se pode ter uma atitude de criminalização generalizada dos<br />
responsáveis atuais, já que muitas das situações existentes<br />
resultam de problemas estruturais que não se conseguem<br />
resolver no imediato ou que foram sendo criados ou não<br />
resolvidos, em devido tempo, pelos sucessivos governos e<br />
órgãos de gestão das instituições anteriores.<br />
A responsabilidade já será bem diferente se não forem<br />
geradas sinergias no sentido de alterar o que não está tão<br />
bem. Olhemos para esta crise não só pelo lado negativo,<br />
mas como uma oportunidade, porque, na opinião do<br />
teólogo e sociólogo brasileiro Leonardo Boff, “as crises<br />
pertencem à vida: não são algo que deva ser deplorado }<br />
34 35
GH respostas integradas<br />
“<br />
PORTUGAL PRECISA DA DEFINIÇÃO<br />
DE POLÍTICAS PÚBLICAS<br />
QUE RESPONDAM ÀS<br />
NECESSIDADES ESTRUTURAIS<br />
QUE, INEXPLICAVELMENTE,<br />
TARDAM EM SER RESOLVIDAS<br />
POR ESBARRAREM COM<br />
MEDIDAS DESAJUSTADAS<br />
DAS REALIDADES CONCRETAS.<br />
”<br />
e evitado, mas explorado, assumido e exaurido em seu<br />
valor enriquecedor para novas formas de vida.” 2<br />
Respostas sociais integradas, a incontornável estratégia<br />
“Vai ficar tudo bem!”. Esta é a palavra de ordem mais<br />
difundida em todo o mundo. Também tenho a esperança<br />
de que a vida irá regressar ao normal, mas não pode ficar<br />
tudo bem, porque em centenas de pessoas e famílias a<br />
Covid-19 está a deixar marcas para sempre.<br />
Mesmo que viesse a ser verdade que tudo vai ficar mesmo<br />
bem, o que eu, veementemente, não gostaria é que<br />
ficasse tudo na mesma. Seria um clamoroso desperdício<br />
das muitas e dolorosas energias despendidas, até agora, e<br />
das que ainda terão de o ser com o devir da pandemia.<br />
Será que alguém terá dúvidas de que, desde há muito,<br />
diversos factos, a níveis mais globais, regionais e locais, têm<br />
dado sinais de que o modelo civilizacional predominante já<br />
não responde às necessidades hodiernas? Concretamente,<br />
o sistema económico está a ser demolidor do equilíbrio<br />
do cosmos nas suas diferentes componentes. Por várias<br />
vezes, o Papa Francisco tem avisado que “esta economia<br />
mata” 3 . Decerto, que umas pequenas minorias (os poderosos<br />
deste mundo) não estão interessadas em transformações<br />
muito profundas. Mas, enquanto elas não acontecerem<br />
de forma convicta e determinada, andaremos de<br />
crise em crise até a uma imposição mais radical por parte<br />
da Natureza ou pela rebelião generalizadas dos excluídos.<br />
Todavia, não podemos ficar passivamente a aguardar a<br />
concretização de uma nova civilização. Entretanto, há que<br />
assumir e avançar com as alterações possíveis e realistas<br />
que apontem para a minimização dos problemas mais<br />
agudos com que o mundo se está a confrontar. “Pensar<br />
global e agir local” nem sempre serve como estratégia<br />
para determinadas atuações.<br />
Em muitas áreas, em particular nas ciências humanas, a<br />
experiência tem-me demonstrado que, por vezes, é mais<br />
eficaz “pensar com ousadia e agir com determinação”. A<br />
falta destas duas atitudes, têm gerado vários constrangimentos<br />
à construção de um desenvolvimento propiciador<br />
de coesão social. Indico alguns.<br />
Antes de tudo, Portugal precisa da definição de políticas<br />
públicas que respondam às necessidades estruturais que,<br />
inexplicavelmente, tardam em ser resolvidas por esbarrarem<br />
com medidas desajustadas das realidades concretas<br />
das pessoas e dos recursos endógenos do país; este desajustamento<br />
resulta, muitas vezes, do desconhecimento<br />
dos reais problemas e dos que são vítimas deles; das motivações<br />
que levam à criação de determinadas políticas<br />
para satisfação de interesses corporativos e nem tanto<br />
para a resolução das necessidades das pessoas; de um tipo<br />
de “esquizofrenia” que ataca a grande parte das organizações<br />
públicas e particulares; da preocupação de protagonismos<br />
institucionais que resultam numa afirmação<br />
pública, facilitadora de obtenção de votos ou de acesso<br />
mais simples a oportunidades disponibilizadas; de um tipo<br />
de governação que alimenta a dependência dos cidadãos<br />
e das instituições; de recursos que deveriam ser atribuídos<br />
com base nos direitos de cidadania e não como subsídios<br />
discricionários.<br />
Acrescento ainda a inexistência dos planos de desenvolvimento<br />
económico e social, previstos nos artigos 90<strong>º</strong> e<br />
91<strong>º</strong> da Constituição da República Portuguesa, bem como<br />
de políticas centradas no desenvolvimento do setor cooperativo<br />
e social (artigo 82<strong>º</strong> da Constituição). Estas são<br />
as causas que identifico como impeditivas pela opção de<br />
medidas de política direcionada para a coesão social e a<br />
pouca utilidade de algumas das existentes.<br />
Admito existirem outras, mas estas são as mais predominantes<br />
na minha experiência da ação que tenho desenvolvido<br />
em várias instâncias de participação cívica e social.<br />
Com base nesta mesma experiência, tendo em conta a<br />
realidade do nosso País, no plano social e na relação com<br />
o Serviço Nacional de Saúde (SNS), arrisco a avançar<br />
com algumas sugestões que, pelo menos, tornem mais<br />
eficazes as ações das respostas sociais em curso e das<br />
que se vierem a considerar necessárias face às exigências<br />
criadas pela pandemia e pela grave crise económica dela<br />
decorrente. Sugestões que têm a preocupação de uma<br />
maior eficiência, pois as necessidades são muitas e escassos<br />
os recursos disponíveis. São as seguintes:<br />
1. A compilação das informações sobre as necessidades existentes<br />
e as causas que as originam. Estes dados estão na posse<br />
de vários centros de atendimento social de proximidade.<br />
Só este conhecimento permitirá as reais condições para se<br />
definirem políticas mais consentâneas com a realidade;<br />
2. O enquadramento das respostas sociais no plano do<br />
desenvolvimento comunitário, local, sociolocal, solidário…,<br />
como se queira designar, garantindo uma maior<br />
envolvência de atores de diferentes áreas que permitiriam<br />
uma consolidação maior da economia social e da<br />
solidária, reconhecendo o papel destas no desenvolvimento,<br />
no povoamento do interior do país, na aposta<br />
por uma “ecologia integral” 4 , na reabilitação, renovação e<br />
humanização das cidades;<br />
3. Uma clara definição de estratégias para que o SNS<br />
esteja, no tempo certo, ao serviço de todos e assegure<br />
cuidados de saúde de qualidade a todos os cidadãos,<br />
preferencialmente aos mais vulneráveis à doença que<br />
são também os fragilizados no plano económico e social.<br />
A fazer alterações, só para o melhorar, incluindo a integração<br />
explícita do envolvimento das respostas sociais<br />
mais adequadas. A este propósito, não sei se não seria<br />
de se regressar ao Ministério dos Assuntos Sociais, onde<br />
estivessem integradas a saúde, solidariedade e segurança<br />
social. O trabalho tem também fortes implicações sociais,<br />
mas face aos enormíssimos desafios que este setor tem<br />
pela frente, talvez se justificasse uma autonomização desta<br />
área ministerial;<br />
4. Revisão das estruturas e funcionamentos da Rede Social<br />
e das Comissões Socais de Freguesia. São instâncias<br />
privilegiadas para se conseguirem respostas sociais integradas.<br />
Mas há ainda um caminho longo a percorrer para<br />
que exista de facto uma participação dos diferentes parceiros<br />
em verdadeira paridade;<br />
5. As respostas sociais de apoio a determinados grupos-<br />
-alvo devem contemplar a integração de todas as instituições<br />
que garantam uma intervenção em patamares como<br />
a prevenção, a resolução e a garantia de sustentação das<br />
soluções operacionalizadas. Não há problemática alguma<br />
que apenas se resolva com ações unilaterais e meramente<br />
assistenciais;<br />
6. Incentivar os Centros de Responsabilidade Integrados<br />
(CRI) no âmbito da saúde, valorizando o trabalho em<br />
equipas multidisciplinares, com várias especialidades em<br />
vários patamares do SNS: os cuidados primários, hospitalares<br />
e continuados. Nestas equipas deveria estar, explicitamente,<br />
presente a dimensão social;<br />
7. Criar um rendimento de subsistência, substituindo ou<br />
reformulando, o atual Rendimento Social de Inserção<br />
(RSI) para que tivesse uma garantia de subsistência e reintegração<br />
social, quem viesse, inesperadamente, a ficar em<br />
situação de privação de recursos financeiros.<br />
Estas são apenas algumas propostas, dado o espaço que<br />
disponho, para a criação de políticas públicas que na execução<br />
terão de, incontornavelmente, se apoiarem no princípio<br />
da subsidiariedade. Não defendo a pura estatização das<br />
respostas sociais nem de quaisquer outras, mas ao Estado<br />
compete assegurar que nenhum justo anseio dos cidadãos<br />
fique a descoberto. Quem faz, deve ser quem garanta<br />
maior eficácia e eficiência na execução das medidas.<br />
Em jeito de conclusão<br />
São recorrentes os pronunciamentos sobre o que irá<br />
acontecer a diferentes áreas da vida comum na era pós-<br />
Covid-19. As implicações de tão grave crise sanitária e<br />
as suas laterais consequências vão originar o que já se<br />
designa por uma “nova normalidade”. O que vier a surgir<br />
de novo seja no sentido de uma maior consciencialização<br />
de que somos seres-em-relação com todas as criaturas e<br />
demais elementos que constituem o cosmos. Tem de ser<br />
um imperativo a integração ordenada de todos estes elementos,<br />
através das organizações específicas de cada um<br />
deles em ordem a uma organização mais atenta e assumida<br />
a que o Papa Francisco chama de “Casa Comum”.<br />
Só verdadeiras e eficazes respostas sociais integradas conseguirão<br />
assegurar o cumprimento de um dos maiores<br />
desígnios que a todos deve galvanizar, orientadas por<br />
uma palavra de ordem, sejam quais forem os desafios.<br />
Cuidar é essa palavra que tem, decididamente, de fazer<br />
parte do léxico das respostas sociais integradas ou de<br />
outras áreas de intervenção em ordem ao desejável desenvolvimento<br />
integral e sustentado. “O cuidado é «uma<br />
constituição ontológica» sempre subjacente a tudo o que<br />
o ser humano empreende, projeta e faz…” 5<br />
Todavia, não nos limitemos a prestar cuidados. Sejamos<br />
“cuidado”, pois sendo assim seremos humanos. Ã<br />
1. Cf. Brotas, de Carvalho Frederico, “Ressurgimento económico”, Ressurgir:<br />
40 Perguntas sobre a Pandemia, Paulinas Editora, Prior Velho, <strong>2020</strong>, 17.<br />
2. cf. Boff Leonardo, “Crise-Oportunidades de Crescimento”, Editora Vozes, Petrópolis,<br />
2010, 30.<br />
3. cf. Francisco, “Exortação Apostólica Evangelii Gaudium”, (24 de novembro de<br />
2013), Lisboa, Secretariado-Geral do Episcopado, 2013, 53.<br />
4. Cf. Carta Encíclica “Laudato Si” - sobre o cuidado da Casa Comum, (24 de maio<br />
de 2015), Lisboa: Secretariado-Geral do Episcopado, 2015, 137-138.<br />
5. cf. Boff Leonardo, “Saber cuidar: Ética do humano- compaixão pela terra”, Editora<br />
Vozes, Petrópolis, 1999, 89.<br />
• AAVV, “Ressurgir: 40 Perguntas sobre a Pandemia”, Paulinas Editora, Prior Velho,<br />
<strong>2020</strong>.<br />
• Boff Leonardo, “Crise - Oportunidades de Crescimento”, Editora Vozes, Petrópolis,<br />
2010.<br />
• Boff Leonardo, “Saber cuidar: Ética do humano - compaixão pela terra”, Editora<br />
Vozes, Petrópolis, 1999.<br />
• Carta Encíclica “Laudato Si” - sobre o cuidado da Casa Comum, (24 de maio de<br />
2015), Lisboa: Secretariado-Geral do Episcopado, 2015.<br />
• Francisco, “Exortação Apostólica Evangelii Gaudium”, (24 de novembro de<br />
2013), Lisboa, Secretariado-Geral do Episcopado, 2013.<br />
36 37
GH saúde militar<br />
O APOIO MILITAR<br />
DE EMERGÊNCIA<br />
Joaquim Formeiro Monteiro<br />
Tenente General (ex-Comandante da Logística do Exército)<br />
Do Conceito Estratégico de Defesa Nacional<br />
(CEDN), aprovado em 2013,<br />
retira-se do seu articulado a intenção<br />
de levantar uma unidade militar de ajuda<br />
de emergência, com a ressalva cautelar<br />
de não poder haver lugar ao aumento de efectivos<br />
das Forças Armadas (FA).<br />
Necessariamente, tratava-se de um desígnio perfeitamente<br />
adequado às missões das FA, no sentido do<br />
apoio às populações, em situações de calamidade e catástrofe,<br />
através de um levantamento de capacidades,<br />
e que de forma autónoma, pudessem utilizar os seus<br />
meios orgânicos passíveis de utilização dual.<br />
Embora podendo questionar-se o timing desta intenção,<br />
uma vez que, eventualmente, por desconhecimento ou<br />
distracção do legislador, as capacidades inerentes aquele<br />
desígnio já estavam levantadas, organizadas e testadas<br />
pelo Exército, desde 2011, releva-se o facto da matéria<br />
ter sido inscrita no diploma em questão.<br />
O Levantamento de Capacidades<br />
Na realidade, em 2011, perante um quadro de graves calamidades<br />
naturais que assolaram várias regiões do globo,<br />
impunha-se uma reflexão atempada sobre a optimização<br />
dos recursos disponíveis para fazer face, no país, a situações<br />
daquela natureza, por parte das entidades responsáveis.<br />
Não estando Portugal, de forma alguma, isento da ocorrência<br />
de catástrofes e calamidades naturais que representassem<br />
graves riscos para a sobrevivência e qualidade<br />
de vida da sua população, o Exército português, tendo<br />
em consideração as suas capacidades, entendeu que a<br />
sua acção, neste domínio, poderia ir mais além do que a<br />
colaboração pontual com o Serviço Nacional de Protecção<br />
Civil (SNPC), como vinha acontecendo.<br />
Acentuava-se, assim, o reconhecimento de que alguns<br />
meios do Exército reuniam condições para poderem<br />
ser mais rentabilizados no âmbito do chamado duplo<br />
uso, com a particularidade de alguns deles apresentarem<br />
capacidades únicas, no panorama nacional, que importaria<br />
valorizar.<br />
Nesse sentido, de acordo com orientações do Comando<br />
do Exército, teve lugar um conjunto de estudos e<br />
trabalhos, no Comando da Logística, com o objectivo de<br />
levantar, organizar e implementar uma nova capacidade,<br />
que, agregando pessoal, meios e equipamentos, pudesse<br />
garantir uma resposta autónoma e credível, por parte do<br />
Ramo, face a cenários de emergência e catástrofe, que<br />
pudessem ocorrer no território nacional (TN).<br />
Tendo já em consideração, na altura, as limitações existentes<br />
ao nível dos efectivos, a par das pesadas restrições<br />
de ordem orçamental que se faziam sentir nas FA,<br />
foi levantado um modelo organizacional que pudesse<br />
responder aquele desafio, sem comprometimento da<br />
missão principal das Unidades e Órgãos a empenhar.<br />
A Unidade Logística de Emergência (ULE)<br />
Neste âmbito, foi desenhada e projectada a estrutura<br />
da denominada Unidade Logística de Emergência (ULE),<br />
tendo por base os meios disponíveis, com características<br />
de utilização dual, na premissa da impossibilidade de aumento<br />
de efectivos, e na indisponibilidade de dispor de<br />
outros meios e equipamentos, que não fossem aqueles,<br />
que, à época, eram os orgânicos do Exército.<br />
O desafio centrava-se, assim, na organização e preparação<br />
de pessoal e meios com vista à estruturação e empenhamento<br />
de uma nova capacidade do Exército, com<br />
base nas Unidades e Órgãos do Comando da Logística,<br />
onde residia a quase totalidade dos equipamentos e<br />
meios a utilizar, bem como dos efectivos indispensáveis<br />
à respectiva operação e emprego.<br />
Deste modo, e de acordo com o despacho do General<br />
Chefe do Estado Maior do Exército (GEN CEME) de<br />
03 de Junho de 2011, a ULE foi projectada, tendo em<br />
consideração os seguintes pressupostos:<br />
• O Exército não dispunha, à data, de nenhuma capacidade<br />
desta natureza;<br />
• Tratava-se de uma Unidade de escalão companhia,<br />
com um grau de prontidão de 4 a 6 horas, e que deveria<br />
estar à ordem do GEN CEME;<br />
• Considerava-se que seria uma Unidade que resultaria<br />
da agregação de capacidades existentes, guarnecida exclusivamente<br />
por pessoal em acumulação de funções, e<br />
em ordem de batalha (OB);<br />
• Os meios e equipamentos necessários ao preenchimento<br />
do respectivo quadro orgânico de material encontravam-se<br />
ao serviço, nomeadamente nas Unidades<br />
e Órgãos do Comando da Logística;<br />
• Após solicitação ao Exército para colaborar nas acções<br />
de protecção civil, esta Unidade poderia conduzir a<br />
sua acção, caso necessário, sob o comando operacional<br />
do Comando das Forças Terrestres (CFT).<br />
Como possibilidades, a ULE, através dos seus meios, podia<br />
garantir a montagem de um campo de desalojados<br />
com uma capacidade base de alojamento, alimentação,<br />
serviços e apoio sanitário para 500 pessoas, nas primeiras<br />
24 horas, após activação, e com possibilidades de<br />
expansão até 1000 pessoas a instalar de forma faseada,<br />
após aquele período de tempo, em qualquer ponto do<br />
TN, da seguinte forma:<br />
Numa primeira fase, 24 horas após activação, garante:<br />
• Capacidade inicial de alojamento, alimentação (ração<br />
de reserva) e serviços para 500 desalojados, bem como<br />
o respectivo transporte;<br />
• Avaliação de infra estruturas e apoio geográfico na<br />
área sinistrada;<br />
• Triagem, reanimação, retenção limitada e evacuação<br />
de indisponíveis e doentes críticos.<br />
Numa segunda fase, decorridas as primeiras 24 horas, e<br />
até 48 horas após a activação, assegura:<br />
• Capacidade intermédia de alojamento, confecção e distribuição<br />
de alimentação quente, bem como serviços de<br />
lavandaria e banhos para 500 desalojados;<br />
• Fornecimento de energia e iluminação no campo de<br />
desalojados;<br />
• Triagem, reanimação, retenção acrescida e evacuação<br />
de doentes críticos.<br />
Após as primeiras 72 horas, depois da activação, e numa<br />
terceira fase, garante a totalidade das suas restantes capacidades<br />
na zona sinistrada, e o reforço do apoio em alojamento,<br />
alimentação e serviços até 1000 desalojados.<br />
Com um total de 189 militares (20 Oficiais, 45 Sargentos<br />
e 115 praças), a estrutura da ULE foi desenhada de<br />
forma a garantir as funções logísticas de reabastecimento<br />
e transportes, manutenção, evacuação-hospitalização,<br />
e serviços.<br />
Sendo constituída à custa dos meios e equipamentos<br />
das Unidades e Órgãos, na dependência do Comando<br />
da Logística, e ainda, pelos módulos de comunicações e<br />
de segurança do CFT, a ULE assumia, desta forma, características<br />
modulares, com um grau de prontidão adequado<br />
à exigência da sua missão.<br />
Neste sentido, a organização modular da ULE apresentava-se<br />
da seguinte forma: }<br />
38 39
GH saúde militar<br />
Módulo de comando<br />
Garantido pela Unidade de Apoio da Área Militar Amadora<br />
Sintra (UnApAMAS), no que diz respeito ao respectivo<br />
comando e controlo.<br />
Módulo de reabastecimento<br />
O Depósito Geral de Material do Exército (DGME) e a<br />
Manutenção Militar (MM) proporcionavam o reabastecimento<br />
de artigos das classes I, II, III, VII e IX, bem como<br />
o transporte dos artigos das classes I e III.<br />
Módulo de manutenção<br />
Assegurado pelo Regimento de Manutenção (RMan), no<br />
domínio da manutenção de material e viaturas da ULE.<br />
Módulo de energia<br />
Com o fornecimento de energia, instalação e manutenção<br />
da rede eléctrica no campo de desalojados a ser<br />
garantido pelo Centro Militar de Electrónica (CME).<br />
Módulo de serviços<br />
A UnApAMAS detinha, ainda, como responsabilidade<br />
acrescida o fornecimento de alojamento, alimentação<br />
confeccionada e serviços de banhos, latrinas e lavandaria.<br />
Módulo de apoio sanitário<br />
Ao Hospital de Campanha, Laboratório de Bromatologia,<br />
Laboratório de Defesa Biológica e Laboratório Militar<br />
de Produtos Químicos e Farmacêuticos competiam<br />
a triagem e reanimação, evacuação sanitária, retenção<br />
limitada para doentes críticos, consultas médicas, apoio<br />
psicológico, farmácia, segurança alimentar e epidemiológica,<br />
e, ainda, o reabastecimento de artigos classe VIII.<br />
Módulo de avaliação de infra estruturas e apoio geográfico<br />
Este módulo era garantido pela Direcção de Infra-estruturas<br />
do Exército (DIE) e pelo Instituto geográfico do<br />
Exército (IGEOE), executando o reconhecimento e selecção<br />
das áreas para instalação do campo de desalojados,<br />
bem como o reconhecimento e avaliação da estabilidade<br />
do edificado na área sinistrada, a par de uma<br />
actualização da informação geográfica da zona sinistrada.<br />
Módulo de transportes<br />
Assentava na participação do Regimento de Transportes<br />
(Rtransp) com a afectação dos meios indispensáveis<br />
ao transporte de desalojados para o respectivo campo,<br />
bem como ao transporte de bens e equipamentos de<br />
natureza vária.<br />
Deste modo, o modelo da ULE estruturava-se na agregação<br />
funcional dos materiais e equipamentos das várias<br />
Unidades e Órgãos referenciados, bem como na concentração,<br />
à ordem, dos respectivos módulos e parte<br />
significativa dos seus meios, numa unidade pré definida,<br />
situação que facilitaria a formação e treino dos efectivos<br />
envolvidos. Atendendo à rapidez e ao elevado grau de<br />
preparação exigido, o material e equipamento a utilizar<br />
deveriam encontrar-se preparados, contentorizados<br />
ou rapidamente contentorizáveis, ou, ainda, palatizados,<br />
devendo a capacidade de transporte, em segurança e<br />
rapidez, constituir-se como atributo fundamental para o<br />
sucesso da manobra.<br />
A ULE foi formalmente apresentada no Depósito Geral<br />
de Material do Exército (DGME), em Benavente, em<br />
19 de Maio de 2011, apresentando a sua organização e<br />
capacidades na presença de várias entidades, destacando-se<br />
o Ministro da Defesa Nacional e o General Chefe<br />
do Estado Maior do Exército, à época.<br />
Para enquadrar esta demonstração, foi levantado um<br />
cenário de ocorrência de um abalo sísmico na região<br />
do Vale do Tejo, afectando a Área Metropolitana de<br />
Lisboa, de que teriam resultado centenas de mortos e<br />
feridos, bem como milhares de desalojados, para além<br />
de extensos danos no edificado e nas infra estruturas da<br />
zona afectada.<br />
Foi, então, solicitado ao Exército o apoio em assistência<br />
médica e sanitária, evacuação e hospitalização de feridos,<br />
reconhecimento e alojamento, alimentação e serviços<br />
para os desalojados, vítimas da catástrofe.<br />
A demonstração dinâmica visou demonstrar as actividades<br />
que se desenrolariam no âmbito de uma situação<br />
daquela natureza, fazendo uso das capacidades, meios e<br />
equipamentos duais do Exército, disponíveis para o efeito,<br />
envolvendo 92 efectivos, 32 viaturas, empilhadores,<br />
grupos geradores, atrelados de cozinha, de banhos e de<br />
lavandaria, tendas de alojamento, contentores hospitalares<br />
e demais material complementar, num somatório<br />
de várias toneladas.<br />
Conjugando os diversos módulos constituintes da ULE,<br />
foi, então, levantado um campo de desalojados, com<br />
capacidade para alojar e prestar os respectivos serviços<br />
de apoio a 500 pessoas, com as seguintes áreas:<br />
Área de apoio sanitário<br />
Local onde se instalaram as componentes do hospital<br />
de campanha, farmácia e equipa de emergência biológica,<br />
preparados para prestar cuidados de saúde de emergência,<br />
cirurgia de estabilização, cuidados continuados,<br />
tratamentos comuns, prevenção e controlo de doenças<br />
infecciosas, epidemias e outras doenças.<br />
Área de alojamento e serviços, com a seguinte constituição:<br />
• Comando e administração, tendo como objectivo o<br />
registo de desalojados e a administração e controlo de<br />
todas as actividades logísticas a desenvolver; a avaliação<br />
de danos em infra estruturas, e o levantamento e a produção<br />
de informação geográfica conveniente;<br />
• Zonas comunitárias de alojamento e serviços, agrupadas<br />
em três blocos (128 pessoas, cada) constituídos,<br />
cada um, por 16 tendas de campanha climatizadas, duas<br />
áreas de instalações sanitárias e duches, bem como<br />
lavandaria e depósitos de água, com capacidade para<br />
apoiar até 384 pessoas, com capacidade de expansão;<br />
• Área de apoio, guarnecida com tendas de campanha<br />
de 5 arcos para serviços de refeitório, bem como cozinhas<br />
de campanha, contentores frigoríficos de conservação<br />
de víveres, depósito de água e estação de tratamento<br />
e purificação de águas para armazenagem, confecção<br />
e distribuição de alimentação;<br />
• Serviços de apoio, responsáveis pela recolha, transporte,<br />
armazenagem de géneros e combustíveis; reabastecimento<br />
de materiais e equipamentos, com vista }<br />
40
GH saúde militar<br />
“<br />
O EXÉRCITO, PELA SUA<br />
ORGANIZAÇÃO, CONHECIMENTO<br />
E EXPERIÊNCIA,E PELOS MEIOS<br />
E EQUIPAMENTOS DE QUE<br />
DISPUNHA, DEMOSTRAVA, ASSIM,<br />
QUE SE ENCONTRAVA<br />
ESPECIALMENTE CAPACITADO<br />
PARA PRESTAR APOIO MILITAR<br />
DE EMERGÊNCIA, TANTO NA FASE<br />
DE RESPOSTA, COMO NA FASE<br />
INICIAL DA RECUPERAÇÃO<br />
DE UM DESASTRE OU CATÁSTROFE,<br />
COM ESPECIAL DESTAQUE<br />
PARA O APOIO HUMANITÁRIO,<br />
DESENHANDO E PROJECTANDO,<br />
PARA O EFEITO.<br />
”<br />
à distribuição de utensílios e artigos de higiene pessoal,<br />
vestuário e agasalhos; evacuação e transporte de indisponíveis<br />
e material diverso; fornecimento de energia<br />
eléctrica, e manutenção e reparação de material e equipamento<br />
orgânico.<br />
A ULE materializava, desta forma, publicamente, uma<br />
resposta autónoma do Exército para intervir em situações<br />
de emergência e catástrofe, traduzida num modelo<br />
integrador das capacidades duais do Ramo, em apoio às<br />
populações sinistradas, em qualquer ponto do TN.<br />
Neste sentido, devem ser interpretadas as palavras do<br />
MDN, na altura, ao sublinhar a importância do Exército<br />
ter ficado melhor preparado para intervir mais activamente<br />
na “sustentação da protecção civil e na promoção<br />
do desenvolvimento e bem-estar das populações.”<br />
O Exército, pela sua organização, conhecimento e experiência,<br />
e pelos meios e equipamentos de que dispunha,<br />
demostrava, assim, que se encontrava especialmente capacitado<br />
para prestar apoio militar de emergência, tanto<br />
na fase de resposta, como na fase inicial da recuperação<br />
de um desastre ou catástrofe, com especial destaque<br />
para o apoio humanitário, desenhando e projectando,<br />
para o efeito, uma capacidade integradora dos meios<br />
orgânicos existentes nas suas Unidades Estabelecimentos<br />
e Órgãos.<br />
A ULE assumia-se como uma unidade de composição<br />
modular, com organização variável, dependendo da<br />
situação e das condições de emprego, em que a respectiva<br />
estrutura orgânica de pessoal se encontrava em<br />
ordem de batalha, e em que os materiais e equipamentos<br />
necessários à sua acção eram orgânicos do Exército,<br />
com possibilidades de garantir apoio logístico humanitário<br />
até 1000 pessoas, em qualquer ponto do TN, e com<br />
um grau de prontidão de 4 a 6 horas, naturalmente sem<br />
contar com o deslocamento para a zona de operações.<br />
As possibilidades da ULE, publicamente apresentadas,<br />
ficavam reconhecidas pelo MDN, que destacaria a importância<br />
e a oportunidade desta nova capacidade do<br />
Exército, no quadro do reforço da protecção das populações,<br />
em ambiente de emergência e catástrofe.<br />
A Unidade de Apoio Militar de Emergência (UAME)<br />
Terá sido com base neste modelo organizacional e na<br />
nova capacidade, entretanto, antecipada, que, em 2016,<br />
o Exército procedeu ao levantamento do Regimento<br />
de Apoio Militar de Emergência (RAME), localizado em<br />
Abrantes, nas instalações da ex-Escola Prática de Cavalaria,<br />
entretanto extinta.<br />
Do “produto operacional” desta nova Unidade do<br />
Exército, resultava a UAME, que passava a ficar com<br />
a responsabilidade de comando, controlo e emprego<br />
operacional dos meios do Exército vocacionados para<br />
as operações de socorro às populações, nas áreas<br />
afectadas por situações de acidentes graves e catástrofe,<br />
através do apoio às entidades responsáveis pela Protecção<br />
Civil.<br />
Com uma organização conceptualmente semelhante<br />
à ULE, embora dotada de alguns elementos adicionais,<br />
continuava a deter, como principais possibilidades de<br />
emprego, as capacidades dos módulos de engenharia,<br />
do apoio sanitário e psicológico, do reabastecimento e<br />
serviços, da manutenção e transportes, e da defesa biológica,<br />
química e radiológica.<br />
De considerar, que não sendo possível a localização<br />
concentrada na UAME dos respectivos módulos integradores,<br />
pela carência dos meios disponíveis, aqueles<br />
são aprontados e cedidos por diferentes Unidades e<br />
Órgãos do Exército, realidade que, por via da sua dispersão<br />
territorial, acaba por induzir reconhecidas restri-<br />
ções na capacidade de apoio, em cada momento.<br />
Considerações finais<br />
As severas restrições orçamentais que, entretanto, se<br />
vêm abatendo sobre o edifício da Defesa Nacional, não<br />
permitindo a aquisição suficiente de meios e equipamentos<br />
indispensáveis àquela capacidade, a par da drástica<br />
diminuição dos efectivos nas Forças Armadas, vêm<br />
acrescer seriamente as limitações da Unidade, impondo<br />
que as entidades políticas competentes devessem encarar,<br />
com realismo e responsabilidade, as medidas indispensáveis<br />
a uma ajustada alocação de recursos e meios,<br />
da qual pudesse resultar o indispensável acréscimo de<br />
eficácia de uma capacidade única das Forças Armadas,<br />
tão necessária ao País.<br />
Num quadro transnacional de progressivas situações<br />
de emergência e crise, como aquela que o País, actualmente,<br />
atravessa, os Portugueses esperam, justamente,<br />
que as FA possam contribuir, efectivamente, para o seu<br />
combate e mitigação, e dificilmente compreenderiam<br />
outras opções políticas, que não fossem aquelas que<br />
contribuíssem para o reforço e credibilização das suas<br />
capacidades mais intrínsecas, em tempo de paz. Ã<br />
Obs: Este trabalho resulta da adaptação de um artigo publicado, pelo autor,<br />
na Revista Militar de Dezembro de 2013.<br />
42 43
GH Investigação e cooperação<br />
INVESTIGAÇÃO<br />
E COOPERAÇÃO NO ESPAÇO<br />
LUSÓFONO E A PANDEMIA<br />
Filomeno Fortes<br />
Diretor do Instituto de Higiene e Medicina Tropical<br />
da Universidade NOVA de Lisboa<br />
Em 30 de janeiro de <strong>2020</strong> seguindo as<br />
recomendações do Comité de Emergência,<br />
o Diretor Geral da OMS (Organização<br />
Mundial da Saúde) declarou<br />
a epidemia provocada pelo vírus SARS-<br />
-CoV-2 como emergência de saúde pública. O primeiro<br />
caso foi reportado em 31 de dezembro de 2019 com<br />
origem em Wuhan, República Popular da China com a<br />
pandemia declarada em 11 de Março do ano seguinte.<br />
O espaço lusófono (Comunidade dos Países de Língua<br />
Portuguesa - CPLP), é um agregado geomorfológico intercontinental<br />
com grande polimorfismo político, social,<br />
científico e organizacional incluindo Portugal (Europa),<br />
Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa - PALOP<br />
(Africa), Brasil (América Latina) e Timor Leste (Ásia). O<br />
comportamento da pandemia afetou de forma diferente<br />
os países da CPLP. Portugal não fugiu ao padrão de<br />
transmissão Europeu com os idosos e os portadores de<br />
doenças crónicas como principal grupo de risco e com<br />
uma capacidade de resposta diferente em relação aos<br />
demais países da CPLP. O Brasil apresenta-se como o<br />
país mais afetado da CPLP tendo ultrapassado os 4,7<br />
milhões de casos e 140 mil mortes. Globalmente, antes<br />
da transmissão comunitária, os primeiros casos de<br />
Covid-19 nos PALOP foram importados de pessoas<br />
oriundas do continente Europeu, afetando maioritariamente<br />
a população mais jovem (20 e 39 anos de idade).<br />
Estes países (incluindo o Brasil) apresentam grandes fragilidades<br />
dos sistemas de saúde, agravado pela carên-<br />
cia de recursos financeiros, técnicos e humanos para a<br />
prevenção, diagnóstico da doença e gestão de casos,<br />
apesar da tradicional experiência do Brasil, de Angola<br />
e de Moçambique no combate a epidemias de dengue,<br />
febre amarela, cólera, Marburg (Angola) e resposta a<br />
catástrofes naturais (Brasil e Moçambique). Os últimos<br />
relatórios sobre a situação epidemiológica nos países da<br />
CPLP (mês de Setembro) mostram aumento da incidência<br />
da doença em Portugal, Moçambique e Angola,<br />
com o Brasil, S. Tomé e Príncipe e Cabo Verde a notificarem<br />
menos casos. Neste contexto, a investigação e a<br />
cooperação no espaço lusófono constituem elementos<br />
importantes na gestão da pandemia. Este trabalho faz<br />
uma abordagem generalista sobre a importância destas<br />
duas componentes estratégicas no reforço da solidariedade<br />
institucional e na identificação de pontes de execução<br />
de projetos que contribuam para a melhoria do<br />
conhecimento científico da Covid-19 nos países CPLP e<br />
consequentemente na resposta a questões específicas.<br />
Covid-19/Investigação<br />
A investigação é uma ferramenta fundamental na estratégia<br />
de controlo de qualquer epidemia, com valor<br />
acrescentado em situação de pandemia. Os pilares básicos<br />
são a disponibilidade financeira, recursos técnicos<br />
materiais e humanos competentes e regulamentação<br />
ética. Os resultados devem ser robustos e com forte<br />
evidência em relação à sua eficácia. A investigação suporta<br />
as várias componentes estratégicas como a prevenção,<br />
deteção, rastreamento e tratamento.<br />
Em fevereiro de <strong>2020</strong>, a OMS realizou um encontro<br />
científico para recolha de informação sobre o “novo”<br />
vírus, concluindo que dadas as incertezas sobre o conhecimento<br />
deste agente patológico se deveria acelerar<br />
urgentemente a pesquisa na busca de respostas rápidas.<br />
Esta pesquisa deveria basear-se num objetivo de curto<br />
prazo para contenção da disseminação da doença e num<br />
segundo objetivo de melhoria de resposta a um próximo<br />
imprevisível surto pandémico. Para implementação<br />
foi reativado um mecanismo designado R&D Blueprint<br />
que no passado estivera na base de uma resposta global<br />
e integrada para a aceleração da resposta a epidemias<br />
de vírus de Ébola, SARS-CoV e MERS-CoV, incluindo o<br />
desenvolvimento de vacinas, tratamentos farmacêuticos<br />
e reforço dos sistemas de comunicação entre os países,<br />
devendo agora incluir a componente diagnóstica. Embora<br />
a Covid-19 seja uma doença infeciosa, o seu impacto<br />
psico-social (incluindo doenças como a depressão e o<br />
burnout dos profissionais de saúde), e o económico exigem<br />
igualmente investigação sociológica e antropológica.<br />
A investigação a nível da CPLP deve incluir estudo do<br />
SARS-CoV-2 (infetividade, patogenicidade, virulência,<br />
dose infetante, poder invasivo, imunogenicidade), do<br />
hospedeiro (assintomáticos, sintomáticos, imunocompetentes<br />
e população de risco) e do sistema de saúde<br />
(cobertura sanitária, qualidade da atenção, avanço tecnológico,<br />
dependência científica e tecnológica, recursos<br />
humanos e financeiros). No geral, a pandemia em curso<br />
ainda tem lacunas de conhecimento que carecem de<br />
investigação adequada, nomeadamente a dinâmica da<br />
resposta imunológica, a severidade da doença em populações<br />
com características variadas, a relação entre a<br />
concentração viral e a severidade da doença, a relação<br />
entre o estado de melhoria com o desaparecimento do<br />
vírus, validação dos testes serológicos, possibilidade de<br />
mutações na estrutura genética do vírus que possam<br />
interferir na eficácia dos testes moleculares, vacinas e<br />
medidas terapêuticas. A prevalência de doenças genéticas<br />
como a drepanocitose (anemia de células falciformes),<br />
as doenças tropicais negligenciadas (uso da ivermectina<br />
nas filarioses), a malária, a tuberculose e VIH/<br />
SIDA (co-infeção, uso de anti-retrovirais) são de particular<br />
interesse científico a nível dos PALOP e do Brasil.<br />
Neste domínio, a metodologia científica conhecida<br />
por Genome-Wide Association Studies (GWAS) procura<br />
quantificar o nível de associação entre a presença da<br />
doença e as variações genéticas de segmentos específicos<br />
do genoma humano. Esta análise, de acordo com o<br />
The Severe Covid-19 GWAS, permite a estratificação de<br />
risco de doentes com Covid-19. Do ponto de vista de<br />
vigilância epidemiológica sublinha-se a identificação do R<br />
(replicação do vírus), R2 (replicação para terceiros sem<br />
imunidade) e do Tc (taxa global de ataque clínico). O<br />
domínio destes dados permite uma melhor monitorização<br />
da situação e tomada de decisões mais adequadas.<br />
O envolvimento da bioestatística é importante a partir<br />
de protocolos que possam dar suporte científico. Igualmente<br />
importante o estudo das cadeias de transmissão<br />
principalmente em países de grande extensão geográfica<br />
como Brasil, Moçambique e Angola. A eficácia das<br />
medidas de distanciamento social, o uso de máscaras e<br />
proteções oculares apesar de grande consenso continuam<br />
a merecer alguma interrogação, talvez devido à<br />
ausência de estudos específicos em países com caraterísticas<br />
culturais e comportamentais complexas.<br />
O aumento da infeção em trabalhadores da saúde em<br />
Portugal, Brasil, Moçambique, Guiné-Bissau e mais recentemente<br />
em Angola, confirma o resultado do trabalho<br />
de investigação desenvolvido por Roger Chou et al em<br />
relação à frequência das infeções por SARS-CoV-2 }<br />
44 45
GH Investigação e cooperação<br />
“ “<br />
OUTRO PONTO DE INTERROGAÇÃO<br />
DE INTERESSE NA CPLP É A<br />
EVENTUALIDADE DA INTERAÇÃO<br />
IMUNOLÓGICA FAVORÁVEL<br />
COM A VACINA BCG.<br />
UM ESTUDO DE SOLIMAN ET AL<br />
NÃO CONFIRMA ESTA HIPÓTESE<br />
CONSIDERANDO QUE CARECE<br />
DE MAIS INVESTIGAÇÃO.<br />
nos profissionais da saúde e a necessidade de implementação<br />
de medidas anti contágio eficazes incluindo métodos<br />
gerais de controlo de infeções. A fraca cobertura<br />
dos cuidados primários de saúde agravada pelo receio<br />
das populações ocorrerem às unidades para tratamento<br />
de doenças correntes, exige a necessidade de estudos<br />
para a criação de novos paradigmas de atendimento<br />
médico. O papel dos laboratórios na investigação é relevante,<br />
desde a monitorização virológica (sintomáticos,<br />
assintomáticos), evolução genética (sequenciação do<br />
vírus para estudo de eventuais mutações), vacinas, imunidade<br />
de grupo, eficácia terapêutica, monitorização de<br />
doentes etc. A deteção do vírus através da utilização da<br />
técnica designada por RT-qPCR (Reverse Transcriptasequantitative<br />
Polymerase Chain Reaction) em tempo real,<br />
que pressupõe a replicação do DNA de forma a obtenção<br />
de um número de moléculas detetáveis a partir<br />
de um fragmento complementar designado por primer,<br />
com uma sensibilidade que pode chegar aos 95% é facto<br />
consumado. No entanto, por ter a capacidade de detetar<br />
RNA degradado, esta técnica pode dar positiva em<br />
indivíduos não infeciosos, havendo necessidade de se<br />
investigar a combinação de formas de confirmação diagnóstico<br />
complementar em assintomáticos ou doentes<br />
que evoluíram favoravelmente do ponto de vista clínico.<br />
Nos países com fraca cobertura sanitária como os<br />
PALOP, a introdução de tecnologia de point of care é<br />
um elemento importante para facilitar o diagnóstico e<br />
suporte à investigação. Dinnes et al apresentaram recentemente<br />
dados importantes sobre a utilização de<br />
testes rápidos, nomeadamente de testes de antigénios<br />
com 56% de sensibilidade (IC 95% = 29,5% - 79,8%) e<br />
testes moleculares rápidos com 95,2% de sensibilidade<br />
(IC 95% = 867% - 98,3%).<br />
A investigação deve apoiar o diagnóstico clínico e laboratorial<br />
nos PALOP e no Brasil devido à possibilidade de<br />
intercorrência de síndromes febris frequentes de malária,<br />
Chikungunya ou Dengue. Esta nota estende-se ao tratamento<br />
já que qualquer destes síndromes, à semelhança<br />
do SARS-CoV-2 pode cursar com trombocitopenia e<br />
alteração dos factores de coagulação por mecanismos diferentes<br />
com orientação terapêutica oposta (na Dengue<br />
está contra-indicado o uso de anti-coagulantes exatamente<br />
o inverso do que se preconiza para o tratamento da<br />
Covid-19). Ainda em relação ao tratamento questiona-se<br />
a utilização adequada da oxigenoterapia, sobretudo nos<br />
PALOP tendo em conta as carências em cuidados intensivos<br />
e as reticências apresentadas por Cumpstey AF et al<br />
no estudo sobre o nível de intensidade de oxigenoterapia<br />
em doentes com Covid-19 e ARDS.<br />
Em 4 de julho de <strong>2020</strong>, a OMS aceitou a recomendação<br />
do Solidarity Trial’s International Steering Committee para<br />
se interromper os estudos sobre o uso da hidroxicloroquina<br />
devido sobretudo aos efeitos secundários encontrados<br />
em doentes hospitalizados. Contudo, a OMS não<br />
invalida a possibilidade de se manter a investigação para<br />
o uso desta droga em doentes não hospitalizados e/ou<br />
como potencial profilático. Países lusófonos há que continuam<br />
a utilizar este fármaco por carência de remdesivir<br />
ou porque a prática médica corrente não é concludente<br />
com a recomendação da OMS, mantendo-se aqui mais<br />
uma vez a possibilidade de se compreender melhor o<br />
efeito desta droga em contextos específicos e com informação<br />
mais robusta. Outro ponto de interrogação<br />
de interesse na CPLP é a eventualidade da interação<br />
imunológica favorável com a vacina BCG. Um estudo de<br />
Soliman et al não confirma esta hipótese considerando<br />
que carece de mais investigação. A transmissão oro-fecal<br />
continua a ser uma hipótese de trabalho crucial em<br />
países com dificuldades de saneamento do meio como<br />
Angola, Brasil e Moçambique. Jefferson T et al, demonstraram<br />
que 12% dos doentes com Covid-19 apresentam<br />
sintomas gastrintestinais com deteção de partículas<br />
virais completas do SARS-CoV-2 nas fezes e deteção<br />
do vírus em instalações sanitárias e esgotos hospitalares.<br />
Este tipo transmissão nos PALOP, pode constituir um<br />
elemento de alto risco de contágio a nível das escolas.<br />
Covid19/Cooperação no Espaço Lusófono<br />
No início de Abril, cientistas de todo o mundo lançaram<br />
a Coligação de Pesquisa Clínica da Covid-19, com mais<br />
de 70 Instituições e fundações de cerca de 30 países.<br />
Algumas Organizações como a Academia Africana de<br />
Ciências (AAS), a União Europeia (Programa de Resposta<br />
Global), juntaram-se a este movimento tendo<br />
sido angariados valores insuficientes tendo em conta<br />
as especificidades e gravidade da pandemia. Em África<br />
o Programa de Desenvolvimento da União Africana<br />
designado por NEPAD (sigla em inglês) considera que<br />
embora o continente tenha cientistas renomáveis, a falta<br />
de recursos financeiros e tecnológicos limita o conhecimento.<br />
A pandemia pode ser uma oportunidade para<br />
desenvolver a pesquisa na CPLP, sendo claro que as<br />
prioridades em termos de investigação e de cooperação<br />
devem incluir a prevenção da doença (prioridade), diagnóstico<br />
precoce, tratamento adequado, e a recuperação<br />
dos doentes.<br />
Maria de Belém, presidente do Conselho Consultivo<br />
do IHMT-NOVA no Webinar Covid-19 promovido<br />
por aquela instituição dedicado à diplomacia em saúde<br />
afirmou que “a língua surge como um instrumento de<br />
combate às desigualdades” no âmbito da cooperação<br />
da investigação em saúde. Esta afirmação foi precedida<br />
no mesmo evento pelo Embaixador de Portugal<br />
na República da Guiné-Bissau, António de Carvalho,<br />
sublinhando que “a saúde neste momento é um sector<br />
estratégico para a diplomacia dos países”. Em 2021<br />
Portugal assumirá a Presidência da União Europeia e<br />
Angola a Presidência da CPLP. A investigação deverá<br />
constituir um ponto estratégico fundamental na visão e<br />
gestão dessas organizações, considerando que o regresso<br />
à “normalidade” dependerá do desenvolvimento da<br />
ciência nos próximos tempos. Seria desejável e oportuno,<br />
que os Ministérios da Cooperação/Negócios Estrangeiros,<br />
Saúde, Ensino Superior, Ciência e Tecnologia e<br />
Inovação dos países da CPLP, colocassem na sua agenda<br />
mecanismos específicos de cooperação interinstitucional<br />
direcionados à Cooperação/Investigação Covid-19.<br />
Recomendação<br />
A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP)<br />
é o foro multilateral privilegiado para o aprofundamento<br />
da amizade mútua e da cooperação entre os seus<br />
membros incluindo os domínios da saúde, da ciência e<br />
tecnologia. Neste período especial de pandemia sem um<br />
horizonte temporal previsível para o seu controlo, recomendar-se-ia<br />
que a CPLP assuma um papel de liderança,<br />
propondo aos seus membros a adequação do Plano Estratégico<br />
de Cooperação em Saúde (PECS) à situação<br />
da Pandemia Covid-19. Nesta base, a investigação faria<br />
parte do plano como uma componente prioritária, recorrendo<br />
estrategicamente aos seus Observadores Consultivos<br />
e Assessores Técnicos, nomeadamente o Instituto<br />
de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova<br />
de Lisboa e à FIOCRUZ-Brasil, e envolvendo de forma<br />
prática as redes institucionais, com destaque para a Rede<br />
dos Institutos Nacionais de Saúde (RINSP). Ã<br />
EM 2021 PORTUGAL ASSUMIRÁ<br />
A PRESIDÊNCIA DA UNIÃO<br />
EUROPEIA E ANGOLA<br />
A PRESIDÊNCIA DA CPLP.<br />
A INVESTIGAÇÃO DEVERÁ<br />
CONSTITUIR UM PONTO<br />
ESTRATÉGICO FUNDAMENTAL<br />
NA VISÃO E GESTÃO DESSAS<br />
ORGANIZAÇÕES.<br />
” ”<br />
• Cumpstey, AF et al. “Oxygen targets in the intensive care unit during mechanical<br />
ventilation for acute respiratory distress syndrome: a rapid review”. Cochrane<br />
Database of Systematic Reviews <strong>2020</strong>, Issu 9. Art. No: CD013708. DOI<br />
10.1002/14651858.CD013708.<br />
• Derek, K Chu et al. “Physical distancing, face masks, and eye protection to prevent<br />
person-to person transmission of SARS-CoV-2 and Covid-19; a systematic<br />
review and meta-analysis”. Lancet June 1, https://doi.org/10.1016/50140-6736<br />
(20)31142-9.<br />
• Rosenberg Eli S. et al: “Association of treatment with hydroxychloroquine or<br />
azithromycin with in hospital mortality in patients with Covid-19 in New York<br />
State”. JAMA May 11, <strong>2020</strong>. Doi:10.1001/jama.<strong>2020</strong>.8630.<br />
• https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/global-research-on-novel-coronavirus-2019-ncov<br />
• https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/global-research-on-novel-coronavirus-2019-ncov/solidarity-clinical-trial-for-covid-19-treatments<br />
• https://www.who.int/teams/blueprint/covid-19<br />
• IHMT-NOVA E-book Webinars sobre Covid-19.<br />
• Jefferson T et al: “SARS-CoV-2 and the role of orofecal transmission: evidence brief”<br />
In.: Analysis of the transmission dynamics of Covid-19: An open evidence review.<br />
http://www.cebm.net/evidence-synthesis//transmission-dynamics-of-covid-19/.<br />
• Soliman, R et al. “Does BCG vaccination protect against acute respiratory infections<br />
and Covid-19? A rapid review of current evidence”. https://www.cebm.net/<br />
covid-19/does-bcg-vaccination-protect-against-acute-respiratory-infections-andcovid-19-a-rapid-review-of-current-evidence/.<br />
• The Severe Covid-19 GWAS Group. “Genomewide study of severe Covid-19<br />
with respiratory failure”. NEJM. Published on June 17 <strong>2020</strong> DOI:10.1056/NEJMoa<br />
<strong>2020</strong>283.<br />
• “WHO Africa Situation Report_Covid-19” WHOAFRO-<strong>2020</strong>-09-23-eng.pdf.<br />
• www.gov.br<br />
46 47
GH homenagem<br />
EDUARDO SÁ FERREIRA,<br />
então consideravam manifestação essencial da sua força<br />
sindical. O IV Governo, nas vascas da agonia, contra<br />
a vontade do responsável pela Saúde o Doutor Mário<br />
UM TÍMIDO ATUANTE<br />
Marques, homem íntegro e corajoso, tinha aceite uma<br />
versão do estatuto que, entre outras enormidades, considerava<br />
que doravante nenhuma decisão política sobre<br />
saúde poderia sem tomada sem o consentimento e não<br />
apenas o conhecimento, da Ordem dos Médicos. Por<br />
outras palavras, a Ordem pretendia não apenas ser sindicato,<br />
mas Governo.<br />
O V Governo Constitucional, presidido por Maria de<br />
Lourdes Pintasilgo, tendo como Ministro dos Assuntos<br />
Sociais Alfredo Bruto da Costa e este vosso amigo como<br />
Secretário de Estado da Saúde, jamais poderia aceitar o<br />
Estatuto Médico que o Governo anterior tinha admitido<br />
António Correia de Campos<br />
sob forte pressão. Os governos então duravam pouco<br />
Sócio Honorário da APAH<br />
e o V Governo tinha data de termo para as eleições de<br />
Dezembro. A OM tinha pressa em aproveitar a ocasião.<br />
Em plena posse governativa, num dos quentes meses da<br />
pós-revolução, manteve uma greve médica, extraordinariamente<br />
bem-sucedida em Agosto, mês de férias. Apro-<br />
O<br />
tímido Eduardo Sá Ferreira era afinal para mais tarde ser o administrador do Serviço de Luta<br />
um lutador. Venceu a adversidade da Anti Tuberculosa e depois o respeitado administrador<br />
ximava-se Setembro e do novo governo nem novas nem<br />
doença até ao fim. De poucas falas, do Hospital Maria Pia, optando por uma aposentação<br />
mandados. O governo recusava receber a OM enquanto<br />
reflexivo, astuto, direto, quando se precoce para, em retiro socrático, ser um patriarca da<br />
a greve se mantivesse e a OM entendia que a greve não<br />
decidia era um trator. Não hesitava. mais qualificada teoria de administração. Pela minha parte<br />
poderia terminar enquanto o novo governo não aceitasse<br />
Sá Ferreira era originário de Esmoriz. Estudou e trabalhou<br />
fui sempre ensinando sem saber fazer administração,<br />
o tal estatuto que havia negociado com o governo ante-<br />
sempre no Porto. Formou-se com esforço, estudante<br />
pois meu mestre Coriolano a tal me havia obrigado parior.<br />
Bruto da Costa tinha a paciência dos orientais e decicário<br />
trabalhador, adquiriu experiência de balcão banra<br />
o ajudar, com Caldeira da Silva, a lançar o primeiro<br />
diu "gerir o silêncio”, isto é, nada dizia quanto ao assunto.<br />
que muito útil lhe foi mais tarde no trato da sua curso para administradores, no longínquo ano de 1970.<br />
Todos os dias a OM incitava o ministério a pronunciar-se<br />
vida profissional.<br />
Eduardo Sá Ferreira foi durante décadas um sólido administrador<br />
e este permanecia cada vez mais silencioso.<br />
Entrámos no Ministério da Saúde no mesmo ano, ele no<br />
do segundo maior hospital do País e o pri-<br />
Como acontece em qualquer pequeno país, havia men-<br />
Porto, eu em Coimbra. Estivemos juntos em todas as meiro do Norte. Conhecendo muito bem a mentalidade<br />
sageiros secretos que tentavam a aproximação, mas sem<br />
ações de formação que a Direção-Geral dos Hospitais<br />
das gentes que servia, reservado mas não timorato,<br />
resultado. A dada altura a OM divide-se e comete o ersageiros<br />
promoveu em 1967 e 1968, uma prática pouco seguida Sá Ferreira fez obra. Quando achou chegada a altura de<br />
ro fatal. O seu ramo do Norte, menos diplomático, resolve<br />
depois e hoje quase ignorada. Fomos selecionados para outros voos, teve a humildade de escolher um exílio<br />
convocar greve total, inclusivamente às urgências.<br />
estudar direção dos hospitais, como os franceses designavam<br />
tropical em São Tomé, onde brilhantemente serviu a<br />
Foi isso o que o ministério queria ouvir e aí foi essen-<br />
a administração hospitalar, em Rennes, França. cooperação portuguesa e ajudou aquele pequeno país<br />
cial o papel de Sá Ferreira. Convocado a prestar declatropical<br />
“<br />
Formámos com Moreno Rodrigues, Meneses Correia, a desembaraçar-se dos seus múltiplos problemas sanitários.<br />
Jamais se ouviu falar de qualquer sombra de colo-<br />
no primeiro dia da greve às urgências um doente mor-<br />
rações sobre o que poderia suceder no seu hospital se<br />
Meneses Duarte e Cristiano de Freitas o grupo dos<br />
meninos de Rennes que Coriolano Ferreira, com rasgada<br />
visão estratégica mandara preparar para refrescar a ção. Sá Ferreira procurava passar despercebido e fazer<br />
acabou por declarar, num rompante que inundou o pe-<br />
SÁ FERREIRA PROCURAVA<br />
nialismo ou de fácil crítica dos beneficiários da cooperaresse<br />
por falta de assistência, depois de muito se torcer,<br />
administração dos grandes hospitais nacionais. Cristiano honradamente o seu trabalho. No fim de vários anos<br />
queno écran: se amanhã morrer um doente nessas circunstâncias,<br />
o médico e a equipa que estavam escalados<br />
PASSAR DESPERCEBIDO E FAZER<br />
passou depois à direção do Hospital de Santa Maria, regressou, passando a prestar colaboração pública e privada.<br />
A sua luta contra a doença marcou a década final<br />
para aquele dia e hora serão responsáveis disciplinar,<br />
Meneses Duarte especializou-se em aprovisionamento<br />
e terminou a sua carreira a administrar com superior de vida, lutando sempre até ao limite da sua vontade.<br />
civil e criminalmente por recusa de assistência a pessoa<br />
HONRADAMENTE O SEU<br />
qualidade o Hospital de Pulido Valente, depois de ter Não posso terminar sem a evocação de um episódio<br />
em perigo! Uma bomba!<br />
TRABALHO. NO FIM DE VÁRIOS<br />
dirigido os serviços centrais de aprovisionamento e ter pessoal de interesse público. No segundo semestre de<br />
Chamado a comentar a situação no segundo canal, meia<br />
ensinado na ENSP, Moreno Rodrigues foi de imediato 1979, a Ordem dos Médicos (OM) desencadeou uma<br />
hora depois, a meio da emissão, sou informado que a ANOS REGRESSOU, PASSANDO<br />
colocado no Hospital Geral da Santo António onde fez greve insólita, demonstrando a sua força social e então<br />
sobretudo sindical, perante sucessivos governos de<br />
mais ouviu falar do Estatuto Médico, embora ele sur-<br />
OM havia levantado a greve em todo o país. Ninguém<br />
toda a sua carreira com respeito unânime, Meneses Correia<br />
A PRESTAR COLABORAÇÃO<br />
foi logo destacado para Beja, administrando o mais curta duração, sobretudo os IV e V, de iniciativa pregisse,<br />
já inofensivo, nas páginas do Diário da República.<br />
PÚBLICA E PRIVADA.<br />
recente dos hospitais distritais de então e depois para o sidencial. O pretexto era a aprovação de um famoso<br />
Devo a Sá Ferreira esse ato de enorme coragem.<br />
São João onde ajudava Sá Ferreira em inúmeras tarefas, Estatuto do Médico que os dirigentes profissionais de<br />
O País deve-lhe muito mais.<br />
”<br />
Ã<br />
48 49
GH homenagem<br />
EDUARDO SÁ FERREIRA,<br />
HOMEM AMÁVEL,<br />
PERSPICAZ E RESILIENTE<br />
Menezes Correia<br />
Sócio de Mérito da APAH<br />
Conhecemo-nos nas vésperas de ir para<br />
Rennes frequentar o Curso de Administração<br />
<strong>Hospitalar</strong>. Em Rennes tornámonos<br />
amigos, uma amizade para a vida.<br />
No regresso de Rennes o Dr. Augusto<br />
Mantas incumbiu o Sá Ferreira de elaborar o Plano<br />
de Contas, tarefa para a qual ele era, indiscutivelmente,<br />
a pessoa melhor preparada no Ministério da Saúde. O<br />
Plano de Contas dos Serviços de Saúde (POCS) era um<br />
instrumento indispensável à concretização do conceito<br />
de Hospital, explicitado no Estatuto <strong>Hospitalar</strong> e no<br />
Regulamento Geral dos Hospitais, publicados em 1968.<br />
Para o Ministério das Finanças, no entanto, interessado<br />
tão só no controlo orçamental, apenas importava a Contabilidade<br />
Pública!<br />
Para se compreender quanto a elaboração do POCS foi<br />
inovadora, basta dizer que só em 1997, quase vinte anos<br />
depois, o Plano Oficial de Contas da Administração Pública<br />
foi oficialmente adotado!<br />
O Dr. Mantas sabia bem que não bastava existir um<br />
POCS. Era necessária muita formação, para explicar e<br />
praticar a sua implementação. Tornaram-se célebres os<br />
Cursos da Figueira da Foz onde durante muitos anos o<br />
Sá Ferreira pontificou, acompanhado de Colegas da Administração<br />
<strong>Hospitalar</strong>, primeiro o Dr. Costa Almeida e<br />
depois também a Dr.ª Margarida Trindade. Uma palavra<br />
de saudade para o Costa Almeida, um ótimo profissional<br />
e um grande amigo que partiu há poucos anos.<br />
Mais tarde o Sá Ferreira colaboraria estreitamente com o<br />
Dr. Mantas ao aceitar o seu convite para, em acumulação<br />
com a Administração do São João, exercer as funções de<br />
Subdiretor Geral do Departamento de <strong>Gestão</strong> Financeira<br />
do Ministério da Saúde.<br />
Não era com certeza sem razão que era tão solicitado por<br />
diferentes entidades para prestar a sua colaboração. A sua<br />
experiência, aliada a um grande bom senso e uma saudável<br />
relação com a tutela, estavam na base desses convites.<br />
Enquanto o Sá Ferreira era incumbido de elaborar o PO-<br />
CS, fui destacado para Beja para exercer as funções de<br />
Administrador do Hospital junto da Comissão Instaladora,<br />
que havia sido nomeada no ano anterior.<br />
Em 71 foi aberto concurso para Diretor de Serviços de<br />
Aprovisionamento do Hospital de São João. Por múltiplas<br />
razões concorri a esse lugar. Soube, entretanto, que o Sá<br />
Ferreira tinha concorrido ao lugar de Administrador. Telefonei-lhe<br />
a exprimir a minha satisfação por vir a trabalhar<br />
com ele, o que naturalmente foi do seu agrado. Resolvidos<br />
os concursos, quis que começássemos a trabalhar<br />
no mesmo dia e por isso antecipei a minha vinda de<br />
Beja uma semana, dado que minha mulher só terminava<br />
os seus trabalhos docentes na semana seguinte. Insistiu<br />
em que, durante essa semana, ficasse em sua casa em<br />
Espinho onde fui magnificamente acolhido pela família,<br />
esposa e duas meninas, que eram os seus amores.<br />
Claro que o autor do POCS não podia deixar de definir<br />
como objetivo operacional a instalação da contabilidade<br />
analítica no seu Hospital. A mim, no que se refere a esse<br />
objetivo, competia-me reorganizar os Armazéns, criar<br />
uma boa relação fornecedor/cliente com os serviços e<br />
automatizar os stocks. Terminada a sua automatização, o<br />
Serviço de Contabilidade perdeu o alibi para não instalar<br />
a contabilidade analítica. Sabendo que o Centro Mecanográfico<br />
do SUCH, instalado nos HUC e dirigido pelo<br />
Santos Cardoso tinha operacionalizado o POCS em<br />
Hospitais Distritais, sugeri ao Sá Ferreira que o consultasse.<br />
Aceitou a sugestão e o Santos Cardoso com uma<br />
equipa do Centro Mecanográfico da Zona Centro veio<br />
ao São João para reuniões de trabalho com os responsáveis<br />
da Contabilidade. O Sá Ferreira não ignorava que<br />
o benchmarking não é o forte da administração pública,<br />
principalmente quando a comparação se faz com serviços<br />
similares. Mas geriu o “conflito” com mestria e o São João<br />
passou a ter contabilidade analítica.<br />
Ao fim de dois anos e meio fui convidado para integrar a<br />
Comissão Instaladora do Instituto de Assistência Nacional<br />
aos Tuberculosos, com a missão de reestruturar o IANT,<br />
assumindo, cumulativamente, o lugar de Administrador<br />
do Sanatório D. Manuel II. A reestruturação do IANT<br />
previa a reconversão do Sanatório D. Manuel II em Hospital<br />
Geral e, naturalmente, aí permaneci, integrando a<br />
Comissão Instaladora do Hospital Geral Eduardo Santos<br />
Silva, como passou a ser designado oficialmente.<br />
Em 1976 o Sá Ferreira convidou-me para regressar ao<br />
São João como Diretor de Serviço, mas com funções<br />
de seu adjunto. O sentimento da fraca probabilidade de<br />
aprovação de um Plano Diretor para o Hospital Eduardo<br />
Santos Silva e o aliciante convite do meu colega motivaram-me<br />
a pedir a exoneração do lugar que ocupava e a<br />
concorrer para Diretor de Serviço do HSJ.<br />
Foi, principalmente, durante essa fase que tive oportunidade<br />
de apreciar a sua capacidade negocial, prudência,<br />
perspicácia, capacidade de envolver os colaboradores e<br />
muita, muita resiliência.<br />
Entre os dois, estabeleceu-se uma relação win-win: eu beneficiava<br />
porque, mais afastado da pesada rotina hospitalar,<br />
tinha tempo para estudar e preparar propostas de<br />
decisão, ele porque podia decidir melhor informado e levar<br />
ao Conselho de Gerência propostas mais fundamentadas.<br />
Tendo sido convidado para integrar a Comissão Instaladora<br />
do Serviço de Informática da Saúde, analisamos ambos<br />
a hipótese de voltar a deixar temporariamente o Hospital<br />
e concluímos que era importante colaborar no desenvolvimento<br />
do PDIS (Plano Diretor de Informática da Saúde).<br />
No Serviço de Informática da Saúde demorei mais tempo<br />
do que ambos desejávamos, porque, entretanto, o Serviço<br />
integrou a Direção Geral dos Serviços Financeiros e<br />
pedir a exoneração ao Dr. Mantas não era tarefa fácil.<br />
Mas finalmente arranjei coragem e regressei ao S. João.<br />
Quando, para responder às diversas solicitações, o Sá Ferreira,<br />
era obrigado a deixar o Hospital, por alguns dias ou<br />
semanas, obviamente assegurava-lhe a substituição.<br />
Nunca estas situações causaram qualquer problema entre<br />
nós, dada a confiança que tínhamos um no outro. Por<br />
“<br />
CONSIDERAVA QUE A PASSAGEM<br />
EM SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE<br />
TINHA CONSTITUÍDO<br />
UMA DAS EXPERIÊNCIAS<br />
MAIS ENRIQUECEDORAS<br />
DA SUA CARREIRA.<br />
”<br />
outro lado, tenho a agradecer-lhe não me ter recusado<br />
nenhum pedido de formação. Pelo contrário, era o primeiro<br />
a estimular-me para adquirir novas competências,<br />
porque, inteligentemente, esperava que daí adviesse algum<br />
retorno para o Hospital.<br />
Em 1987 fomos dispensados do HSJ. Um Sá Ferreira naturalmente<br />
amargurado recebeu de bom grado o convite<br />
para cooperar com São Tomé e Príncipe. Durante a sua<br />
estadia em São Tomé - que era para ser de 15 dias e,<br />
afinal, foi de 15 anos, como gostava de dizer - convidoume<br />
para ser monitor de um módulo de um programa<br />
de formação de pessoal em técnicas hospitalares. Tive<br />
oportunidade de constatar a sua capacidade de superar<br />
as situações adversas, resultantes da escassez de meios<br />
de toda a ordem, e o otimismo com que encarava a sua<br />
estadia, só possível pelo apoio da Dª Maria de Fátima,<br />
sua segunda esposa, que desempenhou um papel fundamental<br />
na sua estadia em São Tomé. Ao casal Sá Ferreira<br />
ficámos a dever, eu minha mulher que me acompanhou,<br />
inexcedíveis atenções.<br />
Na altura dava apoio a um pequeno hospital, o Hospital<br />
Dr. Agostinho Neto. Mas acabou por fazer parte<br />
do Conselho de Administração do Centro <strong>Hospitalar</strong><br />
de São Tomé que teve a missão de integrar o Hospital<br />
Ayres de Menezes, o Hospital Agostinho Neto e o Hospital<br />
do Príncipe.<br />
Considerava que a passagem em São Tomé e Príncipe<br />
tinha constituído uma das experiências mais enriquecedoras<br />
da sua carreira. Em São Tomé gozava de muito<br />
prestígio, tendo estabelecido frutuosos contactos com as<br />
autoridades daquele país, com o Embaixador Português<br />
com quem mantinha relações muito próximas e com o<br />
Bispo da Diocese de quem se tornou amigo.<br />
Para o fundador da nossa Associação, fica o meu obrigado<br />
e um adeus muito sentido. Ã<br />
50 51
GH homenagem<br />
EDUARDO SÁ FERREIRA,<br />
UMA VIDA PLENA<br />
2 3<br />
4 5<br />
1<br />
8<br />
9<br />
10<br />
1. José Menezes Correia e Eduardo Sá Ferreira<br />
em Rennes, 1969<br />
2. Vista aérea do Hospital de São João à data<br />
da tomada de posse<br />
3. Tomada de posse como Administrador Delegado<br />
do Hospital São João, Porto<br />
4. Jantar de homenagem dos funcionários<br />
administrativos do Hospital de São João<br />
em 1988<br />
5. Reunião, na mesma época, entre a Sr.ª Ministra<br />
da Saúde e a equipa de cooperação<br />
6. Foto alusiva à formação levada a cabo nas diversas<br />
categorias (médicos, enfermeiros, administrativos).<br />
Na foto acompanhado pelo Dr. Magão<br />
7. Dr. Eduardo Sá Ferreira, coordenador do projeto,<br />
e esposa Mª de Fátima Sá Ferreira, secretariado<br />
do projeto. Este evento, do qual se seguem algumas<br />
fotos (8 e 9), decorria sempre no final do ano<br />
e juntava os melhores artistas santomenses<br />
8. Marcavam presença neste evento anualmente<br />
o Bispo de São Tomé e Príncipe e Angola, Abílio Ribas;<br />
esposa do Presidente da República de São Tomé;<br />
Diretora de Enfermagem; Diretora do Centro Hospital<br />
de São Tomé e Presidente da Cruz Vermelha<br />
9. Ministro da Saúde de São Tomé<br />
10. Visita do então Primeiro Ministro, António<br />
Guterres, e Ministra da Saúde, Maria de Belém,<br />
a São Tomé aquando da inauguração do equipamento<br />
oferecido pela cooperação portuguesa. Na foto<br />
acompanhado pelo Primeiro Ministro, Ministro<br />
da Saúde de São Tomé e Diretora do Hospital<br />
11. Durante a visita referida a verificar o equipamento<br />
6<br />
7<br />
11<br />
Fotos gentilmente cedidas por Deolinda Rugeiro Cruz e Menezes Correia<br />
52<br />
53
GH homenagem<br />
GH homenagem<br />
12<br />
13<br />
EDUARDO SÁ FERREIRA,<br />
PESSOA AFÁVEL<br />
E GESTOR COMPETENTE<br />
14 15<br />
António Soares Marques de Lima<br />
Cirurgião ortopedista<br />
12. Na foto acompanhado pelo Ministro da Saúde de São<br />
Tomé, Embaixador português, Professor Torgal e Dr. José<br />
Carlos Lopes Martins<br />
13. Vários encontros com membros das comitivas do Projeto<br />
de Cooperação, tanto a nível do Ministério da Saúde como<br />
dos Negócios Estrangeiros. Na foto acompanhado pelo Ministro<br />
da Saúde de São Tomé, Deolinda Rogeiro, Presidente da O.M.S.<br />
e Embaixador português<br />
14. Visita de S. S. o Papa João Paulo II a São Tomé<br />
15. Confraternização no Dia do Hospital, em São Tomé e Príncipe<br />
16. Curso de formação em <strong>Gestão</strong> de Saúde para profissionais<br />
de Saúde realizado em São Vicente<br />
17. Curso de Formação em <strong>Gestão</strong> de Saúde em Maputo<br />
54<br />
18. Curso de Formação na cidade de São Vicente<br />
16 17<br />
18<br />
Nos finais da década de 80, mais precisamente<br />
em fevereiro de 1989, o Dr.<br />
Eduardo Sá Ferreira pisou as terras de<br />
São Tomé. Trazia na bagagem a incumbência<br />
de proceder ao diagnóstico da<br />
situação de saúde no país, como um primeiro passo para<br />
a implementação de um projeto no domínio hospitalar<br />
com financiamento da cooperação portuguesa.<br />
Na empresa Agostinho Neto, antiga Roça Rio do Ouro,<br />
uma das roças mais emblemáticas de São Tomé e Príncipe<br />
existia um imponente hospital, o Hospital Agostinho<br />
Neto. São Tomé e Príncipe e Portugal acordaram em<br />
transformar este hospital num hospital de referência nacional<br />
e também de referência para os países da região<br />
do Golfo da Guiné.<br />
Nomeado administrador do referido hospital, o Dr. Eduardo<br />
Sá Ferreira desempenhou esta função com uma dedicação<br />
e competência notáveis levando o mesmo a ser<br />
uma das instituições sanitárias de preferência dos residentes,<br />
quer nacionais quer estrangeiros, mas também de<br />
pessoas que visitavam o país.<br />
Perante a excelente qualidade de cuidados prestados ao<br />
nível do Hospital Agostinho Neto as autoridades sanitárias<br />
nacionais em parceria com as autoridades portuguesas<br />
decidiram estender este modelo de gestão ao<br />
Hospital Dr. Ayres de Menezes, o maior hospital do pais.<br />
Surge assim a ideia da criação do Centro <strong>Hospitalar</strong> de<br />
São Tomé e Príncipe, Centro este que passaria a integrar<br />
os dois Hospitais. Nos trabalhos conducentes à criação<br />
deste Centro estavam envolvidos a equipa portuguesa,<br />
chefiada pelo Dr. Eduardo Sá Ferreira, e a equipa santomense<br />
que era chefiada por mim.<br />
Foram semanas de trabalho intenso em que pude observar<br />
e admirar a competência profissional do Dr. Eduardo<br />
Sá Ferreira bem como as suas excelentes qualidades de<br />
relacionamento humano, o que permitiu concluir os trabalhos<br />
com sucesso.<br />
Finalizado e aprovado o projeto do Centro <strong>Hospitalar</strong> de<br />
São Tomé e Príncipe foi dado início à sua implementação<br />
tendo sido o Dr. Eduardo Sá Ferreira indigitado em 1996<br />
seu Administrador Delegado, incutindo nesta função a<br />
mesma dinâmica que vinha aplicando no Hospital Agostinho<br />
Neto. O paradigma de funcionamento do Hospital<br />
Dr. Ayres de Menezes mudou consideravelmente observando-se<br />
uma melhoria visível na qualidade dos cuidados<br />
prestados.<br />
Enquanto administrador do Centro <strong>Hospitalar</strong> de São<br />
Tomé e Príncipe, o Dr. Eduardo Sá Ferreira não se esqueceu<br />
da população da Ilha irmã do Príncipe deslocando-se<br />
pessoalmente e proporcionando a ida regular de missões<br />
médicas a esta parcela do território nacional bem como o<br />
abastecimento em medicamentos e outros consumíveis.<br />
Por mais de uma década de uma contribuição inestimável<br />
para o fortalecimento do sistema nacional de saúde e<br />
melhoria da saúde da população de São Tomé e Príncipe,<br />
estou convicto que os santomenses jamais esquecerão<br />
o Dr. Eduardo Sá Ferreira enquanto gestor competente,<br />
pessoa afável e amigo dos seus amigos.<br />
Foi com muita mágoa que te vimos partir caro administrador<br />
hospitalar, companheiro de trabalho, amigo e<br />
compadre Dr. Eduardo Sá Ferreira<br />
Um bem-haja por tudo o que fizeste por São Tomé e<br />
Príncipe e por cada um de nós.<br />
Que Deus tenha em paz a sua alma. Ã<br />
55
GH homenagem<br />
EDUARDO SÁ FERREIRA<br />
1937 <strong>2020</strong><br />
SABENDO O QUE SEI HOJE,<br />
ESCOLHIA DE NOVO SER<br />
ADMINISTRADOR HOSPITALAR<br />
Nascido em Esmoriz, foi fundador e sócio n<strong>º</strong>. 1 da APAH, tendo sido o primeiro presidente<br />
da sua direção até 1984. Licenciado em Economia, foi nos serviços da Zona <strong>Hospitalar</strong><br />
do Norte que começou a apaixonar-se pela área da saúde. Teve uma longa carreira<br />
no setor, revelando que foi uma aposta ganha e, em jeito de balanço, afirma que “voltaria<br />
a fazer tudo igual”. A 7 de abril de 2018 foi galardoado com a Medalha de Ouro<br />
de Serviços Distintos do Ministério da Saúde. Em sua homenagem reproduzimos a entrevista<br />
que deu à jornalista Carla Pedro para o livro “50 Anos em 29 Olhares, O percurso<br />
da Administração <strong>Hospitalar</strong> em Portugal”, uma iniciativa da APAH, publicada pela Almedina.<br />
A<br />
afirmação da profissão<br />
Nestes 50 anos da carreira de administrador<br />
hospitalar destaco a afirmação<br />
da profissão, quer ao nível dos serviços,<br />
quer ao nível do poder.<br />
Hoje são os próprios diretores de serviço que solicitam<br />
o apoio de administradores hospitalares para os seus<br />
serviços, muito embora reconheça que por vezes é mais<br />
como alguém para lhes fazer as contas, as compras e<br />
as estatísticas - mas esse aspeto depende dos próprios<br />
administradores hospitalares, que quando aceitam o<br />
lugar deveriam colocar logo a questão das suas competências<br />
e não aceitar se for só para exercer funções<br />
de “tesoureiro encartado”. No poder também cada vez<br />
se nota mais a sua chamada para ocuparem lugares de<br />
governação. Atualmente, são vários os administradores<br />
hospitalares que fazem parte do Ministério da Saúde.<br />
Trabalhar para estudar<br />
Vou recuar um pouco na minha vida. Como os meus pais<br />
não tinham posses para eu ir para a universidade, resolvi ir<br />
trabalhar para pagar os estudos, tendo arranjado emprego<br />
no Banco Português do Atlântico (BPA), atual Millennium.<br />
O curso era no Porto e dava-me a possibilidade de só frequentar<br />
as aulas práticas que terminavam às 10h. Saía um<br />
pouco mais cedo para chegar a tempo de marcar o ponto<br />
no BPA. Éramos vários nessas circunstâncias e até havia<br />
quem nos chamasse os corredores dos bancos.<br />
Naquele tempo, a progressão na carreira bancária era feita<br />
anualmente, mas dependia muito das informações do<br />
Chefe da Secção e se um funcionário não caísse nas boas<br />
graças do chefe dificilmente saía da “cepa torta”. Ora, eu<br />
nunca fui muito dado a bajulações e portanto, não tive<br />
nem nunca teria grande futuro como bancário. Portanto,<br />
quando acabei o curso, não fui minimamente reconhecido<br />
e, como é lógico, decidi procurar outras profissões.<br />
Paixão pela vida hospitalar<br />
Felizmente, quase a seguir a terminar o curso, abriu um concurso<br />
para Técnico de Organização e Administração (TOA)<br />
da Direção da Zona <strong>Hospitalar</strong> do Norte, que era a extensão<br />
da extinta Direção Geral dos Hospitais (DGH) - e cujo<br />
diretor era o saudoso professor Coriolano Ferreira, a<br />
maior das referências da nossa Administração <strong>Hospitalar</strong>.<br />
Como TOA, as minhas funções consistiam em dar apoio<br />
aos serviços administrativos dos hospitais a norte de Avei- }<br />
56<br />
57
GH homenagem<br />
ro, quase todos explorados por Misericórdias. Esse apoio<br />
era sobretudo ao nível do planeamento dos quadros de<br />
pessoal, estudos financeiros e pareceres sobre pedidos<br />
de apoios financeiros. Comecei aí a apaixonar-me pela<br />
vida hospitalar, até porque sabia que não tinha que bajular<br />
ninguém para progredir na carreira.<br />
Um menino de Rennes<br />
A DGH iniciou um ciclo de ações de formação sobre<br />
financiamento, aprovisionamento, técnicas de gestão de<br />
pessoal, e estatísticas direcionadas para os hospitais. Essas<br />
ações eram realizadas no Hospital de Santa Maria.<br />
Eu, mesmo estando colocado no Porto, penso que frequentei<br />
todas as ações, as quais me deram uma grande<br />
bagagem de conhecimentos e uma grande ajuda para o<br />
curso de Diretores de Hospitais que vim a frequentar<br />
em Rennes, uma vez que todos os monitores das ações<br />
eram franceses. Já estava apaixonado pela profissão, mas<br />
o curso de Rennes na Escola Nacional de Saúde Pública<br />
de França, e sobretudo o estágio que fiz no hospital de<br />
Reims (integrado no curso) - onde tive a oportunidade<br />
de acompanhar de perto o trabalho do diretor-geral -<br />
foram a cereja em cima do bolo. Aí decidi que queria ser<br />
administrador hospitalar.<br />
O Parque Jurássico da Administração <strong>Hospitalar</strong><br />
Na minha opinião, a minha geração de administradores é<br />
uma espécie de Parque Jurássico da administração hospitalar,<br />
porque no tempo em que iniciei funções de administrador<br />
do Hospital de São João, o grande objetivo era<br />
o apuramento dos custos dos serviços - o que obrigava<br />
a ter uma gestão de stocks que possibilitasse saber os<br />
consumos de cada serviço; uma gestão de pessoal que<br />
permitisse o saber quanto se gastava em pessoal em cada<br />
serviço; e estatísticas fiáveis.<br />
Nestas vertentes, tive a sorte de ter excelentes colaboradores.<br />
Nos stocks, o Meneses Correia; no pessoal, o Dr.<br />
Joaquim Carneiro, infelizmente já falecido; nas estatísticas,<br />
o Dr. Carlos Magalhães, também infelizmente já falecido;<br />
e nos serviços financeiros era bem apoiado pela Dra.<br />
Margarida Trindade e pelos seus colaboradores, alguns<br />
com muita competência.<br />
Com a evolução tecnológica, admito que todos estes<br />
objetivos sejam passado. Hoje o administrador hospitalar,<br />
quando inicia funções, nem lhe passará pela cabeça<br />
não ter esses instrumentos de gestão, ou seja, os custos<br />
dos serviços e a sua discriminação por tipo de despesa,<br />
estatísticas fiáveis e gestão de stocks, para saber onde se<br />
gasta e como se gasta. Além disso, o sistema informático<br />
é completamente diferente, para melhor, do meu tempo.<br />
No meu tempo, os computadores ocupavam uma parede<br />
e funcionavam com cartões perfurados. Lembro-me<br />
que a informática só se utilizava na emissão dos recibos<br />
dos vencimentos, para o que era necessário um batalhão<br />
de pessoal em horas extra para perfurar os cartões. Ora,<br />
hoje qualquer pessoa pode ter um computador no bolso,<br />
desde que tenha um smartphone.<br />
Isto para justificar, por um lado, o epíteto que coloquei<br />
nos administradores da minha geração, e, por outro, para<br />
dizer que a administração hospitalar terá de se adaptar rapidamente<br />
à evolução tecnológica. Mas julgo que a Associação<br />
Europeia de Diretores de Hospitais (AEDH) está<br />
atenta e já formou um grupo de trabalho para o efeito,<br />
onde está representada a APAH. Faço mais um parênteses<br />
para referir o excelente trabalho que o presidente<br />
Dr. Alexandre Lourenço tem vindo a fazer em prol da<br />
afirmação da profissão.<br />
Portanto, em resumo, há necessidade de os administradores<br />
hospitalares que acabam o curso e iniciam as funções<br />
terem realizado o estágio em hospitais devidamente<br />
credenciados para o efeito, credenciais que devem ter o<br />
aval da APAH e que devem ter em conta a análise dos<br />
instrumentos de gestão existentes para o bom desempenho<br />
do administrador.<br />
E já agora, que se inicie a avaliação dos conselhos de administração<br />
dos hospitais há muito prometida, mas que<br />
“não ata nem desata”, se calhar por razões mais obscuras.<br />
Mas, como agora temos uma ministra administradora<br />
hospitalar, talvez seja desta.<br />
A experiência em São Tomé e Príncipe<br />
Recuando um pouco na minha vida, recordo-me que a<br />
passagem por São Tomé e Príncipe foi das experiências<br />
mais enriquecedoras da minha carreira, a par do período<br />
do PREC - este foi dose, mas com os dois aprendi muito.<br />
Em 1989 fui a São Tomé e Príncipe a pedido do diretor<br />
do Instituto Amaro da Costa, o Dr. Anacoreta Correia,<br />
que mais tarde viria a ser embaixador de Portugal naquele<br />
país. Fui lá por 15 dias para fazer uma análise aos serviços<br />
de saúde e propor possíveis área de cooperação - e<br />
esses 15 dias transformaram-se em 15 anos.<br />
É um país maravilhoso, com um povo maravilhoso, onde<br />
qualquer coisa que se faça é sempre objeto de agradecimento.<br />
E então na área da saúde…<br />
Comecei a trabalhar no Hospital Dr. Agostinho Neto,<br />
que tinha sido objeto de obras de beneficiação por parte<br />
da cooperação portuguesa. Ali fizemos um excelente<br />
trabalho, com a responsabilidade do apoio à cooperação<br />
a ser assumida pelo Departamento de Relações Internacionais<br />
da Direção-Geral de Saúde, em conjunto com os<br />
Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC).<br />
O hospital era fácil de gerir porque era muito pequeno,<br />
com 45 camas repartidas por Pediatria e Medicina Interna.<br />
O problema que se me punha eram as mudanças das<br />
equipas de seis em seis meses e nunca se saber o que dali<br />
viria. Cheguei a desconfiar que os serviços em Portugal,<br />
quando se queriam ver livres de alguém, mandavam a<br />
pessoa para uma missão de cooperação em São Tomé<br />
e Príncipe. Tive problemas gravíssimos com alguns deles.<br />
Aproveitando a ida a São Tomé e Príncipe do então ministro<br />
da Saúde, Dr. Paulo Mendo, as autoridades sanitárias<br />
santomenses pediram para que a cooperação se estendesse<br />
ao principal hospital de S. Tomé, o Hospital Dr.<br />
Ayres de Menezes, situado na cidade capital. O Ministério<br />
da Saúde de São Tomé e Príncipe entendeu acrescentar<br />
a esse pedido o hospital da Ilha do Príncipe, criando assim<br />
o Centro <strong>Hospitalar</strong> de São Tomé (CHST - composto<br />
pelo Hospital Agostinho Neto (HAN), pelo Hospital Dr.<br />
Ayres de Menezes (HAM) e pelo Hospital do Príncipe).<br />
Com a tomada de posse do conselho de administração<br />
do CHST deu-se início ao trabalho do Centro <strong>Hospitalar</strong>.<br />
Mas muitos foram os condicionalismos e entraves que tiveram<br />
de ser vencidos e ultrapassados.<br />
Entre esses entraves estava, desde logo, o facto de se estar<br />
a instalar uma coisa nova em cima de uma outra já<br />
existente e com rotinas adquiridas ao longo de anos. Foi<br />
preciso vencê-las - e para as vencer foi necessário procurar<br />
a colaboração do pessoal, o que muitas vezes se tornou<br />
difícil porque o pessoal se mostrava avesso a alterar<br />
as rotinas.<br />
Os cerca de 6.000 km que separam São Tomé e Príncipe<br />
de Portugal muitas vezes provocaram, como é óbvio,<br />
dificuldades acrescidas no funcionamento do CHST. Foi<br />
necessário criar ligações corretas com os órgãos portugueses<br />
que coordenavam e orientavam o projeto em<br />
Portugal. Foi preciso reorganizar serviços, incluindo novas<br />
estruturas orgânicas, o que muitas vezes implicou recuos<br />
do processo - já que se verificava que, na prática, a mudança<br />
não resultava da forma pretendida.<br />
Houve também necessidade de criar meios de controlo<br />
de gestão para que os muitos recursos postos à disposição<br />
do projeto não fossem desbaratados. E foi necessário<br />
prover os lugares dos quadros santomenses e portugueses:<br />
quanto à parte santomense, foi necessário pôr em<br />
marcha a máquina pesada dos concursos; quanto ao quadro<br />
português, no início a dificuldade na oferta de pessoal<br />
médico das especialidades requeridas no projeto obrigou<br />
a recorrer a missões encurtadas na sua duração, o que, no<br />
meu entender, não era vantajoso para o projeto.<br />
Tivemos ainda dificuldades iniciais com a disponibilização<br />
atempada dos financiamentos - quer português, quer santomense.<br />
Mas, acertadas de parte a parte as regras de<br />
funcionamento, o trabalho desenvolvido começou a dar<br />
resultados bem evidenciados nas realizações efetuadas. E<br />
dou alguns exemplos.<br />
“<br />
RECUANDO UM POUCO<br />
NA MINHA VIDA, RECORDO-ME<br />
QUE A PASSAGEM POR SÃO TOMÉ<br />
E PRÍNCIPE FOI DAS EXPERIÊNCIAS<br />
MAIS ENRIQUECEDORAS DA MINHA<br />
CARREIRA, A PAR DO PERÍODO<br />
DO PREC - ESTE FOI DOSE, MAS<br />
COM OS DOIS APRENDI MUITO.<br />
Regulamentação e organização do CHST<br />
No campo da regulamentação e organização, o conselho<br />
de administração publicou regulamentos, despachos, cir-<br />
”<br />
culares e ordens de serviço que abrangiam ações, atividades<br />
e serviços visando a melhoria das prestações do Centro<br />
<strong>Hospitalar</strong>; organizaram-se serviços numa perspetiva<br />
de máxima rentabilização dos recursos disponíveis; abriram-se<br />
pavilhões que estavam encerrados, apresentou-<br />
-se o projeto de obras e de reequipamento da cozinha;<br />
centralizaram-se os serviços de Pediatria, do Laboratório<br />
de Análises Clínicas e de Imagiologia - e com esta centralização<br />
pouparam-se recursos, sobretudo os humanos.<br />
Mas houve mais. Implementou-se, em área improvisada,<br />
uma consulta externa no Hospital Dr. Ayres de Menezes,<br />
que não existia. Tanto a organização funcional como a higiene<br />
e limpeza deram a todos os utentes uma imagem<br />
acolhedora. Implementou-se também, nesse mesmo hospital,<br />
um sector de arquivo clínico que até então não existia.<br />
Além disso, organizou-se o secretariado da direção, administração<br />
e conselho de administração; informatizaram-<br />
-se os sectores de secretariado, secretaria, arquivo clínico,<br />
laboratório, farmácia e administração; organizaram-se os<br />
armazéns de medicamentos, o dos materiais e produtos<br />
de consumo de enfermagem, hoteleiros e gerais, e o de<br />
materiais administrativos - implementando-se uma disciplina<br />
de recepção e entrega de produtos aos serviços.<br />
Reorganizaram-se ainda os serviços de Urgência, Medicina,<br />
Pediatria e Tisiologia, com uma reestruturação hierárquica<br />
e de atribuição de responsabilidades de chefia.<br />
Por outro lado, estabeleceram-se com os HUC protocolos<br />
de funcionamento financeiro e de aprovisionamento;<br />
regulamentaram-se muitos serviços e sectores através de<br />
ordens de serviços, despachos ou regulamentos; e o conselho<br />
de administração passou a reunir-se semanalmente. }<br />
58 59
GH homenagem<br />
Dotação de recursos humanos suficientes<br />
No campo dos recursos humanos, materiais e financeiros,<br />
também houve grandes desenvolvimentos. Procurou<br />
dotar-se o CHST com recursos humanos suficientes em<br />
qualidade e quantidade para a assistência praticada; realizaram-se<br />
concursos de provimento do quadro de pessoal<br />
santomense; procurou manter-se os stocks de consumíveis<br />
a níveis corretos e, salvo um caso ou outro caso,<br />
sempre foi conseguido este objetivo.<br />
Ainda neste domínio, conseguiu-se também manter a<br />
gestão dentro dos envelopes financeiros atribuídos e lançou-se<br />
o sistema de recuperação de custo.<br />
Investimentos relevantes para São Tomé<br />
Realizaram-se também importantes investimentos, nomeadamente<br />
na nova cozinha - tendo havido aqui um<br />
grande apoio do Ministério da Saúde de Portugal e da<br />
Fundação Calouste Gulbenkian, na iluminação do terreno<br />
hospitalar, na canalização de água para o Hospital Dr.<br />
Ayres de Menezes, no fornecimento de energia, na rede<br />
para a cablagem dos telefones, na pavimentação de parte<br />
do terreno, na capacidade de frio para armazenagem de<br />
produtos alimentares, e no equipamento informático.<br />
Também se beneficiaram os serviços de Pediatria 2, com<br />
pinturas e arranjos interiores e exteriores; e recuperou-se<br />
o Armazém Geral, que estava destelhado e sem segurança.<br />
Solucionou-se ainda o problema do fornecimento de<br />
água aos serviços de Radiologia, Maternidade, Pediatria<br />
1 e 2, Laboratório de Análises Clínicas, Armazém Geral,<br />
Edifício da Administração, Refeitório do Pessoal e Cozinha.<br />
Com isto, foi praticamente resolvido um problema<br />
que existia há muitos anos no Hospital Dr. Ayres de Menezes:<br />
o da falta de água em quase todo o hospital.<br />
Mas não só. Avançou-se com a recuperação das câmaras<br />
frigoríficas da Casa Mortuária, há muitos anos sem<br />
funcionar; fez-se uma obra de beneficiação do Serviço<br />
de Urgência, cujas instalações estavam muito degradadas;<br />
instalou-se um novo equipamento de Oftalmologia; fizeram-se<br />
obras e instalaram-se novos equipamentos na Lavandaria,<br />
tornando-a mais moderna, higiénica e funcional;<br />
e procedeu-se à iluminação de todo o terreno do hospital,<br />
o que aumentou consideravelmente a segurança.<br />
Melhores prestações de serviço<br />
Melhorou-se também substancialmente a qualidade e<br />
quantidade da assistência praticada; melhorou-se inegavelmente<br />
a qualidade e a quantidade das dietas servidas<br />
a doentes e pessoal em serviço; melhorou-se de forma<br />
considerável a qualidade do alojamento; e investiu-se na<br />
segurança do hospital. Abriram-se igualmente os Pavilhões<br />
de Medicina e de Pediatria, que há muito se encontravam<br />
encerrados, dando aos doentes condições de alojamento<br />
muito boas. Tornou-se mais humano o atendimento nestes<br />
serviços. Além disso, conseguiu-se resolver o problema,<br />
que se arrastava há muitos meses, do fornecimento<br />
de energia ao HAM; redistribuíram-se os doentes entre o<br />
HAM e o HAN; e melhorou-se nitidamente a qualidade<br />
e a quantidade das refeições servidas a doentes e pessoal.<br />
Mais formação e maior aposta no domínio social<br />
No campo da formação, investiu-se na formação de pessoal<br />
- quer com ações no exterior, quer, e sobretudo,<br />
com a formação em serviço e interna.<br />
Praticaram-se ações de formação a médicos, através de<br />
sessões e visitas clínicas, bem como um programa de formação<br />
para pessoal de enfermagem em sistema modular.<br />
Já no domínio social, houve uma preocupação evidente<br />
de beneficiar socialmente os trabalhadores do CHST,<br />
atribuindo várias regalias, as quais foram extensivas aos<br />
trabalhadores do Hospital do Príncipe; e realizaram-se<br />
também convívios e festejaram-se datas e ações consideradas<br />
relevantes. Por outro lado, e numa perspetiva de<br />
disciplinar o funcionamento do CHST em todos os seus<br />
aspetos, pôs-se a funcionar um refeitório para todas as<br />
categorias de pessoal - um refeitório decente com condições<br />
de atendimento.<br />
Especificidades locais levaram ao encerramento do HAN<br />
e, por outro lado, a redesenhar o Centro <strong>Hospitalar</strong> de<br />
São Tomé e Príncipe (CHSTP), já que se decidiu estender<br />
o apoio de Portugal ao Hospital Manuel Quaresma<br />
Dias da Graça, no Príncipe - houve apoio das refeições a<br />
doentes e pessoal; houve também algum investimento,<br />
sobretudo para beneficiação das estruturas físicas do internamento<br />
e consultas; fornecimento de medicamentos,<br />
produtos de laboratório, produtos de radiologia, produtos<br />
hoteleiros e de limpeza e material administrativo; e,<br />
não menos importante, apoio nas viagens disponibilizadas<br />
pela Embaixada de Portugal pelos seus créditos mensais<br />
do AVIOCAR. E foi assim a minha experiência em São<br />
Tomé e Príncipe, que tanto me enriqueceu e da qual tanto<br />
me orgulho.<br />
O declínio do SNS<br />
Hoje, pelo que me apercebo, o Serviço Nacional de Saúde<br />
(SNS) está em declínio. Pelo que ouvimos e lemos na<br />
imprensa, torna-se difícil ao utente obter consultas, fazer<br />
exames de diagnóstico, ser internado, ser operado quando<br />
necessitado de intervenção cirúrgica.<br />
Com a greve cirúrgica dos enfermeiros, as coisas parecem<br />
ter piorado. Há que tomar decisões para que tal situação<br />
não se arraste por muito mais tempo. Parece que esse<br />
também é o entendimento do Ministério da Saúde. Falta<br />
saber se o problema é mesmo resolvido. Digo isto porque<br />
enquanto o Ministério da Saúde estiver refém do Ministério<br />
das Finanças, parece-me difícil, muito embora entenda<br />
também a posição do Ministério das Finanças - que não<br />
pretende “mandar pelo cano” tudo o que se conseguiu.<br />
Serão precisos muitos milhões de euros para fazer com<br />
que o SNS possa de novo responder às necessidades dos<br />
utentes. Mas os contribuintes estão cada vez mais informados<br />
dos seus direitos e o desenvolvimento tecnológico<br />
não pára. Basta ver o que se passa nos WebSummit.<br />
Eu, por experiência própria, já pude constatar essa evolução<br />
com o tratamento de radioterapia: comecei com<br />
um aparelho muito diferente do último, em que o equipamento<br />
era muito diferente do equipamento das sessões<br />
anteriores (Cyberknife), mas cujo preço deve ser<br />
muito elevado e quase incomportável para os hospitais<br />
portugueses, cujo financiamento não está conforme as<br />
necessidades. Só mesmo um sistema de financiamento<br />
renovado é que permitirá aos hospitais portugueses<br />
acompanhar a evolução tecnológica em que “o que vale<br />
hoje, amanhã está desatualizado”.<br />
Quatro desafios na Saúde<br />
Na minha perspetiva, há que repensar:<br />
• O sistema de financiamento;<br />
• A organização dos hospitais e dos demais serviços de<br />
saúde públicos;<br />
• O grau de autonomia das direções dos serviços de saúde,<br />
para que uma simples decisão não tenha de passar<br />
por vários serviços em que todos querem apor uma assinatura,<br />
muitas vezes só para justificar o seu lugar;<br />
• A possibilidade de cruzar dados clínicos entre hospitais<br />
privados e públicos.<br />
Lembro-me que quando estava no Hospital de São João,<br />
um dia pedi autorização para fazer uma admissão de um<br />
enfermeiro - muito necessário para apoiar o serviço de<br />
Cirurgia Cardíaca. Quando o ofício me foi devolvido (passados<br />
três ou quatro meses), trazia 30 assinaturas de concordância!<br />
Só que, entretanto, o diretor de Serviço, e com<br />
muita razão, já me tinha massacrado a cabeça porque não<br />
compreendia como um lugar que estava previsto no quadro,<br />
tendo portanto cabimento, demorava tanto tempo<br />
a decidir - ao ponto de o enfermeiro que ele queria já ter<br />
arranjado outro local. Não sei se as coisas ainda funcionam<br />
assim - porque se funcionam assim, então não funcionam.<br />
Nos últimos anos, o SNS tem sido vítima de um arrastado<br />
processo de degradação no funcionamento e na resposta<br />
às necessidades dos seus utentes, e de degenerescência<br />
dos seus princípios fundadores.<br />
A proposta da Nova Lei de Bases pretende reforçar os<br />
direitos dos refugiados e imigrantes ilegais em matéria de<br />
saúde, incluindo de forma explícita os requerentes de asilo<br />
e os migrantes sem a situação legalizada na lista de beneficiários<br />
do Serviço Nacional de Saúde, a prevenção da<br />
doença e a presença da saúde em todas as políticas. Mas<br />
também versa sobre a garantia do acesso aos serviços<br />
públicos de saúde, as profissões, os aspetos organizativos<br />
“<br />
SOBRE A CARREIRA, SÓ A DIREÇÃO<br />
ATUAL DA APAH E OS ATUAIS<br />
COLEGAS PODERÃO DIZER<br />
O QUE ESPERAM, MAS ESPERO<br />
QUE EVOLUA NO BOM SENTIDO.<br />
MAS ISSO DEPENDE DE COMO<br />
OS NOVOS ADMINISTRADORES H<br />
OSPITALARES ENCAREM ESTA<br />
EXIGENTE PROFISSÃO.<br />
”<br />
do SNS, o financiamento e a regulação do sector privado.<br />
Acrescento que seria um avanço muito grande se todos<br />
os hospitais públicos e privados pudessem ter acesso total<br />
ao processo clínico dos utentes. Por experiência própria,<br />
já fui obrigado a realizar exames que tinha feito noutro<br />
estabelecimento. Poupava-se em consumo de materiais<br />
e sobretudo em desgaste para o utente, sobretudo se<br />
forem exames que recorram ao raio X.<br />
Hoje faria tudo igual<br />
Sobre a carreira, só a direção atual da APAH e os atuais<br />
colegas poderão dizer o que esperam, mas espero que<br />
evolua no bom sentido. Mas isso depende muito de como<br />
os novos administradores hospitalares encarem esta<br />
exigente profissão que, tanto quanto sei, ainda não é remunerada<br />
como devia ser. Mas também não pode ser<br />
só o dinheiro a orientar as escolhas. Terá de ser o gosto<br />
por esta linda profissão. Se fosse hoje que estivesse a começar<br />
a trabalhar, e sabendo o que sei hoje, escolhia de<br />
novo ser administrador hospitalar. Ã<br />
Vila Nova de Gaia, 11 de janeiro de 2019.<br />
60 61
GH saúde pública<br />
SAÚDE PÚBLICA<br />
E CONHECIMENTO: UM ELENCO<br />
FUNDAMENTAL NO FUTURO<br />
DA GOVERNAÇÃO CLÍNICA<br />
“<br />
Dr.<br />
PARA QUEM NÃO SABE O QUE DESEJA ALCANÇAR, QUALQUER AÇÃO É IGUALMENTE VÁLIDA...<br />
”<br />
Ricardo Eufrásio<br />
Médico Assistente de Saúde Pública, ACES Baixo<br />
Vouga - Administração Regional de Saúde do Centro<br />
A<br />
consciência de que há a possibilidade de<br />
melhorar a utilização dos recursos disponíveis,<br />
tem conduzido à implementação<br />
de reformas no setor da saúde.<br />
O debate sobre a arquitetura da prestação<br />
e distribuição dos recursos, é fundamental para garantir<br />
a sustentabilidade financeira e a otimização da qualidade<br />
da resposta às necessidades e expectativas dos utentes.<br />
Ambiciona-se uma cultura organizacional suportada por<br />
um conjunto de atividades agrupadas em análise, planeamento,<br />
execução e avaliação. Pretende-se que seja indutora<br />
de maior responsabilização e exigência, para alcançar<br />
melhores resultados em saúde, aumentando o envolvimento<br />
e a eficiência dos prestadores.<br />
Tal implica um sentido de exigência e responsabilização dos<br />
prestadores, o conhecimento das necessidades da população,<br />
a existência de uma política de saúde com prioridades<br />
bem definidas, especificando-se os cuidados a serem<br />
E IGUALMENTE INÚTIL.<br />
Pedro Beja Afonso, Seminário Faculdade Economia, Universidade de Coimbra, 2016<br />
prestados, avaliação e responsabilização, salvaguardando<br />
elevados padrões de qualidade. Deverá ser um processo<br />
blindado da volatilidade do sistema ou opções políticas.<br />
Eis então que nos surge o conceito da mudança paradigmática:<br />
governação clínica. Nos finais da década de 1990,<br />
o conceito de governação clínica, apesar de impreciso,<br />
e com diferentes interpretações, considerado central na<br />
reforma dos serviços de saúde, tornou-se reconhecido internacionalmente.<br />
Tentava lidar de forma inovadora com<br />
a necessidade de maior eficiência, sendo largamente reconhecida<br />
a importância e inovação da mudança de cultura<br />
organizacional introduzida; uma de serviço, qualidade<br />
e responsabilidade social. 1,5<br />
Em 1998, definia-se governação clínica como “...uma rede<br />
através da qual as organizações do Serviço Nacional de<br />
Saúde são responsabilizadas pela contínua melhoria da<br />
qualidade dos seus serviços, salvaguardando elevados padrões<br />
de cuidados, criando um ambiente no qual a excelência<br />
nos cuidados de saúde desenvolver-se-á.” 2,5,6<br />
A governação clínica integra princípios e processos orientados<br />
na gestão da mudança e inovação nos serviços de<br />
saúde, assumindo e promovendo um compromisso e uma<br />
responsabilidade na definição de padrões de qualidade assistencial,<br />
numa abordagem sistemática para assegurar<br />
melhoria de qualidade nos referidos serviços, introduzindo-a<br />
nas agendas institucionais, anteriormente dominadas<br />
por questões económicas de natureza não assistencial, reconhecendo<br />
a satisfação dos utentes e profissionais de<br />
saúde, como um dos principais motores para a eficiência<br />
financeira e económica nos serviços de saúde. 1,3,5<br />
A Organização Mundial de Saúde sistematiza a qualidade<br />
em quatro princípios: desempenho profissional, eficiência,<br />
gestão de risco (risco de lesão ou doença relacionado<br />
com a prestação de cuidados) e satisfação dos utentes. 5<br />
Na governação clínica, o desenvolvimento de valores, objetivos,<br />
planos e ações, que traduzam os princípios supracitados<br />
na gestão dos serviços, considera: 2,3,5,6,8-12<br />
• Transparência, responsabilização (“prestação de contas”),<br />
orientação para os resultados em equilíbrio com a<br />
satisfação das necessidades;<br />
• Qualidade centrada e orientada nos utentes;<br />
• Liderança dos profissionais nos processos de tomada<br />
de decisão vinculados ao processo assistencial;<br />
• <strong>Gestão</strong> de risco, monitorização de resultados, processos<br />
de auditoria clínica, sistema de gestão de reclamações e<br />
queixas, e prática médica baseada e informada na evidência;<br />
• Envolvimento dos profissionais, trabalho em equipa multidisciplinar<br />
(confiança, cooperação e responsabilização);<br />
• Participação e integração dos próprios utentes na definição<br />
de padrões de qualidade, expectativas de serviço e<br />
processos de avaliação;<br />
• Responsabilidade social;<br />
• Investigação e conhecimento;<br />
• Formação contínua dos profissionais, permitindo gerir e<br />
partilhar o seu conhecimento.<br />
É fácil identificarem-se três constrangimentos que dificultam<br />
a implementação da mudança preconizada pela governação<br />
clínica: 3<br />
• Escassez de recursos afetos;<br />
• Dificuldade de criar ambiente aberto e participativo entre<br />
os profissionais;<br />
• Dificuldade de desenvolver uma dimensão multidisciplinar<br />
de trabalho.<br />
Apesar dos constrangimentos, sistematizam-se três abordagens<br />
diferentes, complementares e indissociáveis, focadas:<br />
13<br />
• Na doença (modelo biomédico);<br />
• No doente (modelo humanista);<br />
• Na população (modelo de saúde pública).<br />
É evidente que muitos dos desafios que afetam a saúde<br />
das populações, envolvem a abordagem de problemas<br />
complexos. As doenças crónicas não transmissíveis (DC<br />
NT) (ex.: diabetes, doença pulmonar obstrutiva crónica) e<br />
respetivos fatores de risco representam, em despesas de<br />
saúde, até 6,7% do PIB em alguns países europeus. 14 Os<br />
determinantes comportamentais, tais como hábitos tabágicos,<br />
alcoólicos, alimentares, de atividade física/sedentarismo,<br />
têm impacto significativo na saúde, particularmente<br />
no aumento de prevalência das DCNT. Curiosamente,<br />
passíveis de prevenção.<br />
A necessidade de alerta e resposta para fenómenos inesperados,<br />
diferentes estirpes de influenza, epidemias “ocul-<br />
tas” (ex.: doença Lyme, febre Q), emergência de microrganismos<br />
resistentes aos antibióticos (assumindo contornos<br />
“pandémicos” em algumas regiões do globo), a transição<br />
epidemiológica da tuberculose, ou até a incidência de<br />
traumatismos cranioencefálicos nas crianças em acidentes<br />
de bicicleta, são apenas alguns exemplos de como a vigilância<br />
epidemiológica e intervenção comunitária são (ou<br />
deveriam ser) elementos chave no contexto dos serviços<br />
de saúde pública (SP).<br />
Saúde pública e governação clínica<br />
Os serviços de SP são confrontados com limitações na<br />
sua área de intervenção. Atualmente renovam-se prioridades,<br />
compromissos e intenções repetidas, com particular<br />
ênfase na prevenção, defendendo sistemas de saúde<br />
reforçados, e desenvolvimento de estratégias e políticas<br />
nacionais de saúde.<br />
Os serviços de SP oferecem mecanismos essenciais no<br />
planeamento em saúde, para uma perspetiva compre- }<br />
62 63
GH saúde pública<br />
“<br />
O PROBLEMA DA GESTÃO<br />
DE QUALIDADE NÃO É<br />
O QUE AS PESSOAS<br />
DESCONHECEM SOBRE ISSO.<br />
É O DE QUE JULGAM SEREM<br />
SABEDORAS".<br />
(PHILIP CROSBY<br />
IN "QUALITY IS FREE"<br />
”<br />
ensiva e horizontal das necessidades em saúde da população,<br />
analisando estratégias mais abrangentes, criando redes<br />
inovadoras para ação, envolvendo diferentes intervenientes,<br />
de que é exemplo, a elaboração dos Planos Locais<br />
de Saúde.<br />
O planeamento em saúde é um processo permanente,<br />
contínuo e dinâmico. Contribui para a racionalidade da tomada<br />
de decisões, selecionando, entre várias alternativas,<br />
um percurso de ação, implicando uma causalidade entre<br />
a ação tomada e os resultados determinados, permitindo<br />
a racionalização dos recursos de saúde, necessários para<br />
atingir determinados objetivos, segundo uma ordem de<br />
prioridade estabelecida. 15,16<br />
Para a SP assumir a liderança na melhoria dos serviços de<br />
saúde, deveremos reforçar as respetivas intervenções, capacidades<br />
e serviços. Tal requer uma definição clara do seu<br />
papel. Considerando as competências e operações técnicas<br />
essenciais na área, estas tornam-na um colaborador<br />
ideal na implementação e dinamização da governação clínica<br />
nos serviços de saúde.<br />
Os componentes técnicos da “reforma” da SP incluem<br />
uma cultura positiva de melhoria, que deverá ser suportada<br />
por várias estratégias: trabalho em equipa; liderança;<br />
qualidade e efetividade dos serviços; sistemas de informação;<br />
investigação e conhecimento.<br />
Trabalho em equipa<br />
Ninguém faz nada sozinho. A governação clínica sugere<br />
uma mudança cultural, para uma de aprendizagem e participação,<br />
recetiva à análise e reflexão dos cuidados prestados,<br />
criando um ambiente de trabalho, aberto e participativo,<br />
onde as ideias e boa prática são partilhados, onde<br />
a formação e a investigação são valorizadas, e onde a “culpa”<br />
raramente é usada. 2,7<br />
Para que as transformações sejam sustentáveis, as soluções<br />
deverão ser contextualizadas com envolvimento<br />
alargado, permitindo superar conflitos entre gestores e<br />
médicos. O paradigma baseia-se na busca da eficiência,<br />
propondo a participação dos médicos na gestão para assegurar<br />
o controlo dos gastos através do seu controlo<br />
direto ou indireto. 3,4,6<br />
O diálogo é mais fácil onde as relações de trabalho se<br />
baseiam num significado e propósito partilhado. 2,7 O futuro<br />
passa por uma cultura em que médicos, gestores e<br />
demais profissionais trabalham com o mínimo de hierarquias<br />
e fronteiras entre si. 5<br />
Liderança<br />
Os líderes participativos poderão ter uma contribuição<br />
determinante no desígnio de alcançar melhores resultados<br />
em saúde. 6,7 As lideranças exigem grande capacidade<br />
de diálogo e preparação técnica robusta, entre as quais<br />
se destacam a capacidade de interpretar criticamente os<br />
resultados de investigação clínica. 2,6<br />
É fundamental que a liderança esteja confortável na inovação<br />
e gestão da mudança. Estas, podem ser encaradas<br />
como ameaças, mas na realidade são oportunidades de<br />
desenvolvimento e evolução. É inegável o seu papel na<br />
sustentação, apoio e promoção da cultura de gestão pela<br />
qualidade. É fundamental encarar os profissionais como<br />
elementos chave na mudança, considerando o equilíbrio<br />
entre a respetiva autonomia e independência profissional,<br />
integradas num sentido de responsabilidade coletiva. 5,7<br />
Qualidade e efetividade dos serviços<br />
Entre os principais objetivos da governação clínica, está<br />
a promoção de responsabilização dos profissionais pelos<br />
respetivos desempenhos. A necessidade de “prestar<br />
contas” alarga a noção de responsabilidade profissional,<br />
implementando processos que visam aumentar a transparência,<br />
entre os quais: reclamações, auditorias, ou vigilância<br />
de rotina. 5,6,17<br />
As auditorias clínicas estão entre os principais elementos<br />
para controlar a qualidade. 3,17 Apenas são possíveis<br />
se existirem os recursos necessários para implementar<br />
as alterações necessárias, que se demonstrem necessárias,<br />
face a limitações ou constrangimentos identificados.<br />
É determinante promover melhores cuidados de saúde,<br />
aprender com as falhas identificadas e procurar oportunidades<br />
constantes de melhoria e aprendizagem.<br />
São necessários sistemas de informação em saúde (SIS),<br />
que demonstrem como estão a ser prestados os cuidados,<br />
sendo dos elementos que mais discussões têm criado,<br />
nesta reforma cultural. 6,20<br />
Sistemas de informação<br />
Nada se move tão depressa como a informação. Esta<br />
realidade torna a sua partilha, um dos elementos fundamentais<br />
em SP, evidenciando o “tempo” como um dos<br />
seus recursos mais valiosos. Neste contexto, os sistemas<br />
de informação facilitam o acesso rápido a múltiplas fontes<br />
de informação numa variedade de formatos, e aplicações,<br />
oferecendo uma ambicionada e coerente eficiência, sem<br />
prejudicar as interações entre doente e médico. 13<br />
A recolha e análise de informação estão a tornar-se uma<br />
competência “nevrálgica” central no planeamento e administração<br />
nas organizações de saúde, 3,5,7 no qual os sistemas<br />
de informação serão um instrumento fundamental,<br />
mas nunca um fim em si mesmo. Em vez de se considerarem<br />
apenas os problemas que os sistemas de informação<br />
podem resolver, tais como uma caligrafia ilegível,<br />
a investigação deve ser dirigida aos novos problemas e<br />
oportunidades que podem aparecer com a utilização das<br />
tecnologias de informação.<br />
A informação e investigação em saúde são os princípios<br />
fundamentais para o reforço dos serviços e políticas de<br />
saúde, sendo os sistemas de informação um instrumento<br />
integrante e estrutural na governação clínica, e crítico na<br />
transformação dos serviços de saúde. No passado recente<br />
têm servido sobretudo necessidades de monitorização<br />
de níveis superiores, ao invés de facilitarem, uma das suas<br />
essências, a tomada de decisão clínica.<br />
Uma limitação substancial e transversal aos referidos sistemas<br />
está na qualidade da informação registada. É necessário<br />
maior compromisso na precisão, adequação e análise<br />
para avaliar a respetiva qualidade, e impacto no processo<br />
de governação clínica. 5,20<br />
Os SIS são um instrumento essencial para o conhecimento,<br />
mas infelizmente subaproveitados. Há uma necessidade<br />
crescente para uma maior e melhor compreensão<br />
de como a investigação e conhecimento são produzidos<br />
e aplicados.<br />
Investigação e conhecimento<br />
No dicionário de Língua Portuguesa “investigação” significa<br />
“seguir os vestígios de; indagar; pesquisar; esquadrinhar;<br />
inquirir”. Neste contexto, investigar é um estado de espírito<br />
que tem como objetivo colher informações, as quais<br />
constituem a base de qualquer ação ou intervenção.<br />
O incentivo à investigação, à elaboração de normas de<br />
orientação clínica e implementação de protocolos baseados<br />
na evidência de efetividade, é estrutural na ambição<br />
pela qualidade nos cuidados de saúde.<br />
Entre 2% e 53% (média 19%) dos tratamentos oferecidos<br />
aos utentes não têm investigação substancial que os<br />
suporte. 19 Um estudo de 16 normas de orientação do<br />
Colégio Americano de Cardiologia e da Sociedade Americana<br />
de Cardiologia, concluiu que apenas 314 (11%) de<br />
2711 recomendações eram suportadas por elevado grau<br />
de evidência. 19<br />
A partilha e competências de gestão de conhecimento<br />
têm de ser priorizadas, desenvolvidas e implementadas<br />
na agenda dos programas de saúde.<br />
Saúde pública e conhecimento<br />
A saúde pública é uma especialidade médica na qual me<br />
identifico com uma palavra-chave: o conhecimento; cuja<br />
produção é sem dúvida uma das suas atribuições.<br />
É fundamental pensá-lo estrategicamente, e comunicá-lo<br />
eficazmente. Esta comunicação é vital e estrutural em<br />
qualquer organização, instituição ou serviço, sob pena de<br />
comprometer a eficácia de uma decisão tecnicamente<br />
sustentada. O conhecimento é essencial à tomada de decisões.<br />
Esta, combina arte e ciência, informação e execução,<br />
procurando factos ou elementos relevantes, em vez }<br />
64 65
GH saúde pública<br />
de medidas emocionais, identificando necessidades, limitações,<br />
constrangimentos, fundamentando a decisão informada.<br />
Jamais, a tomada de decisões poderá continuar<br />
a ser confortavelmente baseada apenas, em “achismos”.<br />
Considerando o conhecimento, um recurso estratégico<br />
na governação clínica, é fundamental compreender-se<br />
como é produzido e usado (ou não) na prática. Quando<br />
se discute atualmente a “Reforma da SP”, são necessárias<br />
novas abordagens no reforço da evidência, para orientar<br />
os decisores em intervenções eficazes e custo-efetivas a<br />
longo prazo.<br />
O planeamento e desenvolvimento de investigação em<br />
saúde, requer uma relação negociada entre o investigador<br />
e os utilizadores do conhecimento. Nestas circunstâncias,<br />
a troca, partilha de conhecimento ocorre através<br />
da construção de redes de comunicação nos contextos<br />
locais, interinstitucionais.<br />
A gestão do conhecimento é uma competência e capacidade<br />
cada vez mais valorizada. Exige um planeamento<br />
cuidadoso, e uma dinâmica e comunicação competentes.<br />
A revolução da informação e o seu potencial sucesso têm<br />
sido, de forma inquestionável, absorvidos pelos sistemas<br />
de saúde, se bem que a velocidades diferentes.<br />
A arquitetura da governação clínica aspira ambiciosamente<br />
que todas as organizações de saúde tenham um compromisso<br />
regulamentado na procura da melhoria da qualidade.<br />
1,5 É necessário que todos os serviços desenvolvam<br />
sistemas de responsabilização para a qualidade dos cuidados<br />
que disponibilizam aos utentes. 2 É necessário identificar<br />
limitações, que importem resolver, nomeadamente<br />
as que resultam da escolha de prioridades, da distribuição<br />
de recursos e da definição de objetivos de ação, entre os<br />
profissionais, a administração e a comunidade. 5<br />
A inovação que a governação clínica aporta está na sua<br />
dimensão organizativa. Apenas uma visão estratégica global<br />
pode garantir um processo efetivo de melhoria contínua<br />
da qualidade, contribuindo para que a governação<br />
clínica seja um recurso em si mesmo.<br />
A prevenção de doença e promoção de saúde são elementos<br />
particularmente importantes da SP, infelizmente<br />
pouco desenvolvidos, resultado de opções do passado<br />
recente, bem como reformas e alterações estruturais,<br />
que priorizaram outros domínios, sem o adequado planeamento<br />
e investimento em serviços de prevenção.<br />
Aprendi que o conhecimento, recurso estratégico na<br />
governação clínica, é determinante no planeamento em<br />
saúde. O “espírito” da governação clínica é o de se autocorrigir,<br />
com novos resultados, novas conclusões, e novas<br />
ideias. É a liberdade da investigação que gera o conhecimento.<br />
É à liberdade da investigação que o conhecimento<br />
se consagra.<br />
O futuro da especialidade médica de saúde pública, exigirá<br />
uma articulação multidisciplinar e complementar com<br />
os demais serviços de saúde, no processamento da informação<br />
e produção de conhecimento.<br />
Acredito que o meu futuro na especialidade médica de<br />
saúde pública me exigirá uma capacidade constante de<br />
inovação, imaginação e decisão. Constituirá sem dúvida,<br />
um desafio. Vejo-o como uma oportunidade para o desenvolvimento<br />
e evolução na prestação de serviços, numa<br />
visão comunitária de saúde. Ã<br />
1. Specchia ML, Belvis AG, Parente P, Avolio M, Ricciardi W, Damiani G. (2016).<br />
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and validity of the Clinical Governance Climate Questionnaire”. Health Services<br />
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Inv. Clin. Farm. 2004, Vol. 1 (4): 24-34.<br />
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improvement in the new NHS in England”. BMJ 1998; 317:61-65.<br />
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more than Ever”. World Health Organization, Geneva 2008.<br />
9. WHO (2015). “Priorities for health systems strengthening in the WHO European<br />
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10. The NHS Confederation (2004). “The development of integrated governance”.<br />
The voice of NHS management; No.3, May 2004.<br />
11. Omaswa F, Rice J, Martin K (2014). “Leadership and Governance for Enhanced<br />
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Investments”. By Technical Working Group N<strong>º</strong>.5, Draft number 5, August 2014.<br />
12. Bullivant J, Deighan M, Stoten B, Corbett-Nolan A (2008). “Integrated Governance<br />
II: Governance Between Organisations”. Learning from Investigations,<br />
Healthcare Commission, Feb 2008.<br />
13. Rosen R. (2000). “Improving quality in the changing world of primary care”.<br />
BMJ 2000; 321:551-4. doi:10.1136/bmj.321.7260.551.<br />
14. European health report 2009. Health and health systems. Copenhagen, World<br />
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_file/0009/82386/E93103.pdf.<br />
15. Tavares, A. (1992). “Métodos e Técnicas de Planeamento em Saúde”, Lisboa, Ministério<br />
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Fevereiro 2009 Disponível em http://www.min-saude.pt/NR/rdonlyres/7BC-<br />
7CBA8-CAFB-4BA0-8CEE-D214AF7316A5/0/RelatorioCSPFev2009FECHA-<br />
DOx300dpi.pdf.<br />
17. Pauline Allen (2000). “Accountability for clinical governance: Developing collective<br />
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19. BOLDER Research Group (2016). “Better Outcomes through Learning, Data,<br />
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(doi: 10.12688/f1000research.8392.1).<br />
20. Hopkinson RB (1999). “Clinical Governance: putting it into practice in an acute<br />
trust”. Clinician in Management 1999; 8: 81-88.<br />
C<br />
M<br />
Y<br />
CM<br />
MY<br />
CY<br />
CMY<br />
K<br />
NÃO MASCARE<br />
A SUA SAÚDE<br />
Neste contexto de pandemia, tão importante<br />
como estar protegido por fora, é manter-se<br />
protegido por dentro. Descurar a saúde pode<br />
ser grave. Dê atenção a sintomas, continue os<br />
seus tratamentos e lembre-se que ir ao médico,<br />
continua a ser essencial e seguro.<br />
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www.saudeemdia.pt<br />
APOIO<br />
66
GH espaço ensp<br />
RISCO DE COVID 19<br />
EM PROFISSIONAIS DE SAÚDE<br />
António Sousa-Uva<br />
Médico do Trabalho, Imunoalergologista<br />
e Professor Catedrático da ENSP da UNL<br />
Mafalda Sousa-Uva<br />
Doutorada em Epidemiologia pela ENSP-<br />
-NOVA, Investigadora em Epidemiologia<br />
das Doenças Crónicas<br />
Os profissionais de saúde (PS) são, no<br />
contexto da atual pandemia de Covid-19,<br />
e entre outros, um dos grupos<br />
que apresenta maior risco de contágio,<br />
já que o exercício da sua atividade<br />
profissional determina tal realidade. Trata-se de um<br />
grupo de pessoas com contacto direto com casos suspeitos<br />
e doentes infetados pelo SARS-CoV-2 que tem,<br />
portanto, necessariamente de ser protegido pela sua (e<br />
a nossa) saúde. Uma vez que os PS se encontram em<br />
contacto próximo com os casos suspeitos e doentes<br />
infetados pelo SARS-CoV-2, devem ser asseguradas as<br />
melhores condições de trabalho que lhes permitam, por<br />
um lado, estar e sentirem-se protegidos e, por outro<br />
lado, protegerem os seus doentes. Se não cuidarmos da<br />
sua saúde e segurança, e não exclusivamente com recurso<br />
a equipamentos de proteção individual, a qualidade<br />
da prestação de cuidados será afetada já que a saúde<br />
dos cidadãos também depende da saúde e segurança<br />
dos prestadores de cuidados.<br />
O grupo de investigação em Saúde Ocupacional do Barómetro<br />
Covid-19 da Escola Nacional de Saúde Pública<br />
da Universidade Nova de Lisboa realizou um estudo<br />
transversal, constituído por três questionários consecutivamente<br />
aplicados online e de preenchimento individual,<br />
com o objetivo de caracterizar alguns fatores de risco<br />
profissionais a que estão expostos os profissionais de saúde<br />
portugueses no decorrer da pandemia por Covid-19.<br />
A participação (em abril e maio) foi voluntária e anónima<br />
e traduz a perceção individual de cada profissional de saúde<br />
sobre a forma como decorreu a sua atividade no local<br />
de trabalho nos quinze dias anteriores à sua participação.<br />
Florentino Serranheira<br />
Ergonomista, Coordenador do Mestrado em Saúde<br />
Ocupacional Escola Nacional de Saúde Pública<br />
- Universidade NOVA de Lisboa<br />
Responderam pela primeira vez, a qualquer um dos três<br />
questionários aplicados, um total de 5.365 profissionais<br />
de saúde. Note-se, porém, que globalmente foram obtidas<br />
6.803 respostas, uma vez que alguns participantes<br />
responderam a mais do que um dos três questionários.<br />
Os profissionais de saúde respondentes são maioritariamente<br />
(76,7%) do sexo feminino (n=4.032) e predominantemente<br />
com idades compreendidas entre os<br />
30 e os 39 anos (n=1.670). Participaram 1.592 médicos,<br />
1.641 enfermeiros, 983 técnicos de diagnóstico e<br />
terapêutica, 141 assistentes operacionais e outros, designadamente<br />
farmacêuticos, nutricionistas, psicólogos e<br />
profissionais das carreiras laboratoriais.<br />
A maioria desempenha funções no setor social (n=<br />
3.239), seguido do setor público (n=2.241) e do privado<br />
(n=865). A localização geográfica dominante dos respondentes<br />
situa-se na Região de Lisboa e Vale do Tejo (n=<br />
2.421), seguido da Região Norte (n=1.814), Centro (n=<br />
741) e Ilhas (n=71). 36,7% dos respondentes (n=1.937)<br />
trabalha em áreas dedicadas ao tratamento de doentes ou<br />
suspeitos Covid-19, nomeadamente, em Cuidados Primários<br />
(39,3%), Urgências (40,7%), Enfermarias (6,4%) e em<br />
Unidades de Cuidados Intensivos (13,4%).<br />
Foram casos suspeitos de estar infetados 13% (n=661)<br />
dos respondentes. Destes, mais de metade (60%) foram<br />
submetidos a vigilância passiva e a larga maioria<br />
(77,5%) foi testada para a Covid-19, maioritariamente realizada<br />
72 horas após serem casos suspeitos. Entre os que<br />
trabalhavam em área dedicada à Covid-19, apenas 15,1%<br />
foram casos suspeitos e 42,7% foram sujeitos a vigilância<br />
ativa, o que indicia uma efetiva gestão do risco.<br />
Os testes à Covid-19 (n=533) foram na sua maioria<br />
(58,7%) realizados em hospitais, apesar de um grande<br />
número de profissionais de saúde os ter efetuado em<br />
locais privados ou de iniciativa municipal (33,3%).<br />
Dos profissionais de saúde que responderam aos questionários,<br />
mais de um terço (36,7%) trabalha em área<br />
dedicada aos doentes Covid-19, representando quase<br />
2.000 profissionais de saúde (n=1.937) e mais de metade<br />
(51,1%) trabalhou na última semana, oito ou mais<br />
horas diárias (dos quais, 13,7% mais de 12 horas diárias).<br />
Mais de um terço (35,4%) dos profissionais de saúde<br />
refere que no seu trabalho não existe Serviço de Saúde<br />
Ocupacional (ou de Saúde e Segurança do Trabalho)<br />
que realize a gestão dos riscos profissionais, designadamente,<br />
do risco de infeção por Covid-19.<br />
O contacto dos profissionais de saúde com doentes (ou<br />
casos suspeitos) de Covid-19 pode também ter impacto<br />
na sua saúde mental, tendo-se constatado que quase<br />
três quartos dos respondentes apresentavam níveis de<br />
ansiedade elevados ou muito elevados, como resposta<br />
às situações de stress que vivenciam e que quase 15%<br />
tinham mesmo níveis de depressão moderados ou<br />
elevados. De igual forma, quase três em cada quatro<br />
(78,3%) dos respondentes apresentava níveis elevados<br />
de burnout, revelando um agravamento dos já elevados<br />
níveis reportados nestes grupos profissionais.<br />
Metade dos profissionais de saúde (42,7%) refere que<br />
dorme menos de seis horas diárias o que, associado à<br />
sensação de fadiga que é reportada como intensa ou<br />
muito intensa por quase três em cada cinco profissionais<br />
de saúde (53,8%), testemunha uma situação próxima<br />
da exaustão ou, se preferirmos um termo mais<br />
popular, de “esgotamento”.<br />
Em relação aos aspetos de risco microbiológico, de forma<br />
mantida, um terço (33,3%) dos respondentes não<br />
realiza individualmente a sua monitorização diária, que<br />
seria expectável que fosse a regra na perspetiva quer<br />
da proteção da saúde do profissional de saúde, quer<br />
da redução da probabilidade do risco de contágio. Adicionalmente,<br />
cerca de 13% dos profissionais de saúde<br />
inquiridos foram casos suspeitos e 80 dos trabalhadores<br />
testados (15,3%) tiveram um teste positivo, testes esses<br />
em que 30,1% foram realizados mais de 3 dias após a<br />
suspeita. São resultados reveladores da morbilidade aumentada<br />
nestes grupos profissionais em relação à população<br />
geral, mesmo com o recurso a Equipamentos<br />
de Proteção Individual (EPI) e, aparentemente, a uma<br />
insuficiente rapidez no esclarecimento das situações<br />
suspeitas.<br />
A disponibilidade de EPI no último questionário, em relação<br />
aos anteriores, é considerada por mais de metade<br />
dos profissionais de saúde melhor ou mesmo muito<br />
melhor (72,9%), o que consolida a melhoria da situação<br />
ao longo do desenvolvimento da onda pandémica. Na<br />
“<br />
O CONTACTO DOS PROFISSIONAIS<br />
DE SAÚDE COM DOENTES<br />
(OU CASOS SUSPEITOS)<br />
DE COVID-19 PODE TAMBÉM<br />
TER IMPACTO PARA A SUA<br />
SAÚDE MENTAL.<br />
”<br />
opinião da grande maioria dos respondentes (79,9%), os<br />
EPI são adequados ou muito adequados.<br />
Um dos aspetos fundamentais na prevenção dos riscos<br />
profissionais é a organização de serviços competentes<br />
nessa matéria, Serviços de Saúde Ocupacional ou de<br />
Saúde e Segurança do Trabalho, habitualmente insuficientemente<br />
valorizados pelas organizações de saúde<br />
e, muitas vezes até, reduzidos apenas à expressão do<br />
“cumprimento administrativo” por imposição legal, designadamente<br />
com as fichas de aptidão para o trabalho,<br />
da responsabilidade da Medicina do Trabalho. Os<br />
resultados agora obtidos apontam exatamente nesse<br />
sentido, nomeadamente, os níveis de stress e de burnout.<br />
Tal devia constituir motivo de reflexão profunda entre<br />
as organizações de saúde, em particular, nos Cuidados<br />
de Saúde Primários, pois a Saúde Ocupacional deveria<br />
estar presente, não numa perspetiva dominante de<br />
cumprimento das disposições normativas, mas na componente<br />
substantiva da prevenção dos riscos profissionais<br />
entre outros aspetos, tais como a promoção da<br />
saúde e a manutenção da capacidade de trabalho dos<br />
profissionais de saúde.<br />
O trabalho com doentes Covid-19 (ou com casos suspeitos)<br />
exige, como se sabe, a utilização permanente de<br />
EPI o que determina, reconhecidamente, uma sobrecarga<br />
de trabalho, aliada ao extremo desconforto que também<br />
acarretam. Tal situação entre os profissionais de saúde<br />
é, de resto, muito semelhante ao que acontece noutros<br />
grupos profissionais do setor secundário de atividade,<br />
como é o exemplo dos EPI de prevenção de acidentes<br />
de trabalho e de doenças profissionais a que, aparentemente,<br />
nunca se deu suficiente importância. Ã<br />
68 69
GH direito biomédico<br />
REFLEXÕES ÉTICAS E NORMATIVAS<br />
A PROPÓSITO DO ARTIGO<br />
"DIREITOS HUMANOS E MORTES<br />
EVITÁVEIS"<br />
Dos turnos rotativos dos trabalhadores em estruturas residenciais ao direito<br />
de visita familiar a lares e hospitais<br />
André Dias Pereira<br />
Diretor do Centro de Direito Biomédico, Professor da Faculdade<br />
de Direito da Universidade de Coimbra, Conselho Nacional<br />
de Ética para as Ciências da Vida<br />
Heloísa Santos<br />
Presidente da Comissão de Bioética da Sociedade Portuguesa<br />
de Genética Humana (SPGH), Membro (2002-2005) do International<br />
Committee of Bioethics (UNESCO)<br />
Embora seja apenas divulgada pela DGS<br />
a mortalidade por Covid-19 distribuída<br />
por idades e, nos briefings governamentais,<br />
só enfatizada a preocupante letalidade<br />
em maiores de setenta anos, informações<br />
complementares, incluindo o conhecimento de<br />
que cerca de 40% dos doentes falecidos residiam em<br />
lares e, ainda, que há nestas instituições extensos surtos<br />
quase diários, leva-nos a concluir que, hoje em Portugal,<br />
a população residente nos lares contribui substancialmente<br />
para a maioria ou totalidade das mortes diárias<br />
e também para o atual crescente aumento de internamentos<br />
hospitalares, incluindo em cuidados intensivos.<br />
Sabemos também que muitos residentes, além de avançada<br />
idade, têm várias morbilidades e pertencem a grupos<br />
de risco considerados responsáveis pelo aumento<br />
da mortalidade geral, em Portugal, em períodos de clássica<br />
gripe sazonal. A permanência destas pessoas em espaços<br />
fechados e pouco ventilados, tal como nos cruzeiros,<br />
aumenta igualmente o risco de transmissão pelo novo<br />
vírus, bem assim como o facto de serem reféns de jovens<br />
cuidadores assintomáticos que lhes transmitem infeções<br />
contraídas no exterior.<br />
Se nos lembrarmos das assustadoras imagens televisi-<br />
vas dos últimos invernos com os serviços de urgência<br />
hospitalares apinhados de doentes e jazendo em macas,<br />
coladas umas às outras, um ambiente apetitoso para a<br />
infeção pelo novo vírus, podemos concluir que teremos<br />
de usar toda a nossa determinação - e imaginação! - para<br />
que uma tragédia “à italiana” não caia, ainda este ano,<br />
no colo dos profissionais do SNS, incluindo administradores<br />
hospitalares.<br />
E, para o evitarmos, além da vacina da gripe rapidamente<br />
disponível e administrada a estes grupos de risco, incluindo<br />
cuidadores, e uma mais adequada vigilância às<br />
condições sanitárias e de saúde de todos e, ainda, duma<br />
atempada mudança quando adversas as condições institucionais,<br />
teremos de criar estratégias que diminuam<br />
drasticamente a entrada de infeções nestes locais.<br />
Foi neste sentido que um dos autores, Heloísa Santos,<br />
defendeu em “Direitos Humanos e morte evitáveis”,<br />
texto publicado, em agosto, pelo jornal Público online 1 ,<br />
a existência, em lares para idosos cujas condições o<br />
permitam, dum regime de exclusividade dos cuidadores<br />
com internamento rotativo por equipas.<br />
“(...) Começo pela estratégia proposta para os lares. Sabemos<br />
que aí se encontra a população mais frágil porque,<br />
além da idade avançada e de morbilidades, está<br />
confinada em espaços fechados. Contudo, algumas mortes<br />
poderão ser evitadas se mudarem a estratégia adotada<br />
antes do inverno. Em vez da cruel proibição das visitas,<br />
deveria já ter sido considerada a exigência de, sempre<br />
que possível, os funcionários, habitual fonte de contágio,<br />
passarem, após testagem, a regime de exclusividade<br />
com internamento rotativo por equipas. Estes profissionais,<br />
acumulando atividades em locais infetados, inclusive<br />
em hospitais, contagiando-se lá fora, mas também<br />
adoecendo por contágio de outros colegas e residentes,<br />
ao manterem-se dentro das residências ficariam também<br />
eles próprios e os seus familiares mais protegidos.<br />
Poderá afirmar-se que hoje não será legalmente possível<br />
manter estes trabalhadores confinados periodicamente,<br />
contudo, quando se exigiu que médicos e enfermeiros se<br />
mantivessem no local de trabalho, esta decisão não teria<br />
sido difícil de impor e teria salvo muitas vidas. E, se esta<br />
estratégia passar a ser estimulada, em regime de voluntariado,<br />
o apoio financeiro da Comissão Europeia poderá<br />
contribuir para o novo regime de pagamento e eventual<br />
apoio social às famílias destes funcionários até ao fim da<br />
epidemia. O JAMA 2 acaba de publicar os resultados da<br />
experiência francesa comparando os lares em regime de<br />
internamento dos funcionários com aqueles em que es-<br />
te não existiu e confirmou a sua grande eficácia. A redução<br />
em França do número de infeções e mortes foi<br />
significativa.” 3<br />
Nesta “opinião” foi igualmente criticada a tirânica proibição<br />
a la carte de visitas no âmbito das estruturas residenciais<br />
e que também se verifica nos hospitais com doentes<br />
não infetados:<br />
“Para além da falta de eficácia, também a ausência imposta<br />
da presença de familiares, deprime e abrevia a morte<br />
por outras causas. E, contudo, sabe-se que não é através<br />
dos parentes, que as infeções surgem. E, atualmente,<br />
com testes disponíveis, continuam os residentes a ser<br />
privados dos seus plenos direitos de ver a família como<br />
se a ida para um lar, mesmo quando não estão infetados,<br />
conduzisse a uma automática perda do respeito pelos<br />
direitos que lhes são devidos como seres humanos.<br />
E também se ignora o direito das famílias a estarem com<br />
eles. Quer haja, ou não, surtos nas residências. Também<br />
os infetados e as suas famílias devem manter sem interrupção<br />
o apoio humano não presencial que lhes é muitas<br />
vezes sonegado. Se não houver sensibilidade para se<br />
mudar totalmente a conduta nos lares, devemos preparar-nos<br />
para uma tragédia nos próximos meses potenciada<br />
pela habitual invernosa epidemia de gripe. (...)” }<br />
70 71
GH direito biomédico<br />
“<br />
ESTÁ DEMONSTRADO<br />
HOJE QUE, AO CONTRÁRIO<br />
DOS VISITANTES FAMILIARES,<br />
OS CUIDADORES, INCLUINDO<br />
OS PRÓPRIOS PROFISSIONAIS<br />
DE SAÚDE, SÃO UMA<br />
POPULAÇÃO QUE APRESENTA<br />
ELEVADO RISCO DE INFEÇÃO<br />
POR SARS-COV-2.<br />
”<br />
Analisemos estes dois aspetos aparentemente contraditórios:<br />
1. Turnos (semanais) rotativos dos profissionais das<br />
estruturas residenciais?<br />
Está demonstrado hoje que, ao contrário dos visitantes familiares,<br />
os cuidadores, incluindo os próprios profissionais<br />
de saúde, são uma população que apresenta elevado risco<br />
de infeção por SARS-CoV-2 e os residentes têm-se revelado,<br />
pela facilidade de contágio, um “alvo” indefeso com<br />
consequente elevadíssima mortalidade.<br />
Segundo a DGS, “O impacto de Covid-19 (morbilidade<br />
e letalidade) é maior em pessoas com mais de 65 anos<br />
e com várias morbilidades, nomeadamente doenças cardiovasculares,<br />
patologia respiratória crónica, ou diabetes.<br />
Os utentes das Estruturas Residenciais para Idosos (ERPI),<br />
Estruturas Residências para a área da Saúde Mental ou das<br />
Unidades de Cuidados Continuados Integrados (UCCI) da<br />
Rede Nacional de Cuidados Continuados (RNCCI), independentemente<br />
da tipologia, encontram-se numa situação<br />
de risco acrescido de maior disseminação da infeção.” 4 A<br />
Orientação DGS 009/<strong>2020</strong> coloca ênfase nas seguintes estratégias:<br />
a) higiene, limpeza, desinfeção e gestão dos resíduos;<br />
b) distanciamento social, concentração de pessoas e<br />
ventilação dos espaços; e c) limitação de visitas.<br />
Relativamente aos profissionais, este documento prevê<br />
apenas normas de conduta dentro da instituição: “usar<br />
máscara cirúrgica”, “observar medidas estritas de higiene<br />
das mãos e etiqueta respiratória, assim como o distanciamento<br />
entre pessoas (1 a 2 metros)”, “separação por<br />
grupos”, “em caso de suspeitas, separação de grupos<br />
de cuidadores para os doentes respiratórios e grupos<br />
de cuidadores para os outros utentes/residentes”, monitorização<br />
da “temperatura corporal e sintomas como<br />
a tosse e falta de ar, no início e fim da jornada de trabalho”,<br />
“profissionais que apresentem sintomas não devem<br />
apresentar-se ao serviço”, “se já estão a trabalhar<br />
devem dirigir-se para a área de isolamento designada...”<br />
e a imposição à instituição de um plano de contingência,<br />
com vista a “proceder à substituição dos trabalhadores<br />
que forem casos suspeitos/confirmados, de forma<br />
a continuar a satisfazer as necessidades dos utilizadores,<br />
sem interrupção.”<br />
Por seu turno, o movimento sindical revela desconforto<br />
relativamente às experiências de turnos semanais rotativos,<br />
entendendo poder estar em causa uma violação<br />
dos direitos fundamentais dos trabalhadores. Assim, o<br />
CESP - Sindicato dos Trabalhadores do Comércio e Serviços,<br />
numa nota à comunicação social, acerca das condições<br />
de trabalho a que estão a ser sujeitos, desde março,<br />
os trabalhadores das IPSS e Misericórdias denunciou,<br />
em termos críticos, esta prática. 5 Destaca este sindicato<br />
que o risco de acidente laboral aumenta. 6 De salientar,<br />
todavia, que, reconhecendo o período excecional que<br />
estamos a viver e a premência em se pouparem vidas,<br />
se desconhece qual a posição deste, perante a existência<br />
de prévio consentimento do trabalhador.<br />
Considerando o habitual pluriemprego por parte dos<br />
profissionais desta área, uma vez que, por via de regra,<br />
acumulam horários, em diferentes instituições, verificamos<br />
que são eles próprios a contribuir voluntariamente<br />
para a ultrapassagem do período normal de trabalho<br />
diário. Esse o que se sugere é que cumpram as mesmas<br />
horas num único local e desincentivado o pluriemprego,<br />
dada a potenciação da transmissão do vírus entre<br />
instituições. O regime de internato rotativo de curta duração,<br />
de forma alguma, significa ausência de descanso.<br />
No plano do direito em vigor, devemos tecer as seguintes<br />
considerações e apresentar argumentos de cautela<br />
e ponderação.<br />
O consentimento do trabalhador está sujeito a limitações.<br />
A liberdade não é plena no Direito do Trabalho, para<br />
proteção do próprio trabalhador. Pode haver fundadas<br />
dúvidas de que, em geral, o trabalhador possa consentir<br />
em trabalhar por turnos de 7 dias, sem se ausentar<br />
da instituição, ainda que por razões de saúde pública<br />
muito importantes, como as apresentadas.<br />
As dúvidas em subscrever esta proposta, no plano do di-<br />
reito em vigor, resultam da consideração das normas do<br />
Código do Trabalho, que preveem que o regime de turnos<br />
está sujeito a regras rigorosas. Por um lado, em regra,<br />
“o período normal de trabalho não pode exceder<br />
oito horas por dia e quarenta horas por semana” (n.<strong>º</strong> 1<br />
do artigo 203.<strong>º</strong>), podendo (com certos pressupostos)<br />
ser aumentado até quatro horas diárias e, em casos delimitados,<br />
a “duração do trabalho semanal pode atingir<br />
sessenta horas” (artigo 204.<strong>º</strong>).<br />
O artigo 210.<strong>º</strong> prevê exceções aos limites máximos do<br />
período normal de trabalho que poderão ser consideradas<br />
para o problema em análise: “1 - Os limites do<br />
período normal de trabalho (...) só podem ser ultrapassados<br />
nos casos expressamente previstos neste Código,<br />
ou quando instrumento de regulamentação coletiva de<br />
trabalho o permita nas seguintes situações: a) Em relação<br />
a trabalhador de entidade sem fim lucrativo ou estreitamente<br />
ligada ao interesse público, desde que a sujeição<br />
do período normal de trabalho a esses limites seja incomportável;<br />
b) Em relação a trabalhador cujo trabalho seja<br />
acentuadamente intermitente ou de simples presença.”<br />
Mas estes são tempos extraordinários. O quadro jurídico-laboral<br />
em vigor não foi feito a pensar em pandemias<br />
desta gravidade e dimensão, pelo que o debate é pertinente!<br />
Assim, será necessária uma alteração expressa<br />
do Código do Trabalho admitindo esta solução que tão<br />
boas provas deu em França? Ao menos para vigorar durante<br />
o período de estado de contingência?<br />
Recorde-se que há profissões que, pela sua própria<br />
natureza, acarretam uma vinculação do trabalhador ao<br />
“local de trabalho” durante largos períodos de tempo,<br />
como, por exemplo, os trabalhadores do transporte<br />
rodoviário ou os trabalhadores da marinha mercante,<br />
transitários, viagem e pesca.<br />
No mundo da saúde é também amplamente conhecido<br />
o regime, aceite e praticado nos Estados Unidos da<br />
América, dos médicos internos, trabalhando 80 horas<br />
por semana. Na Europa, vigora a Diretiva 2003/88/CE<br />
do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de novembro<br />
de 2003, relativa a determinados aspetos da organização<br />
do tempo de trabalho que prevê as 48 horas<br />
como tempo máximo de trabalho, embora o Código do<br />
Trabalho (artigo 204.<strong>º</strong>) permita, em casos devidamente<br />
delimitados, que a duração do trabalho semanal atinja<br />
sessenta horas. 7 O artigo 207.<strong>º</strong> refere que o período de<br />
referência pode ser aumentado de quatro para seis meses,<br />
no âmbito do regime da adaptabilidade, podendo<br />
valer para “i) Receção, tratamento ou cuidados providenciados<br />
por hospital ou estabelecimento semelhante,<br />
incluindo a atividade de médico em formação, ou por<br />
instituição residencial ou prisão.”<br />
Sem entrarmos em aspetos de técnica e pormenor jurídico,<br />
podemos afirmar que há abertura no âmbito do<br />
Código do Trabalho para que, no setor da saúde e das<br />
estruturas residenciais, se pratiquem períodos de trabalho<br />
semanal até 60 horas, em períodos de maior exigência.<br />
Ora, o tempo com a pandemia Covid-19, ou pelo<br />
menos os períodos do estado de contingência por esta<br />
provocados, poderão ser precisamente justificativos de<br />
maior exigência face ao trabalhador nesta matéria. Não<br />
se podendo olvidar os benefícios que este regime pode<br />
ter para a sua saúde (menor exposição ao risco de<br />
Covid-19), apesar dos extraordinários incómodos que<br />
pode causar na vida familiar destes trabalhadores.<br />
A Resolução do Conselho de Ministros n.<strong>º</strong> 70-A/<strong>2020</strong> 8<br />
prevê normas sobre o Teletrabalho e organização de trabalho<br />
(artigo 4.<strong>º</strong>), impondo a obrigatoriedade, nas áreas<br />
metropolitanas de Lisboa e do Porto, do regime de “rotatividade”,<br />
designadamente: “podem ser implementadas,<br />
dentro dos limites máximos do período normal de<br />
trabalho e com respeito pelo direito ao descanso diário<br />
e semanal previstos na lei ou em instrumento de regulamentação<br />
coletiva de trabalho aplicável, medidas de<br />
prevenção e mitigação dos riscos decorrentes da pandemia<br />
da doença Covid-19, nomeadamente a adoção de<br />
escalas de rotatividade de trabalhadores entre o regime<br />
de teletrabalho e o trabalho prestado no local de traba- }<br />
72 73
GH direito biomédico<br />
“<br />
DEVENDO O LEGISLADOR<br />
SEGUIR AS MELHORES PRÁTICAS,<br />
À LUZ DA PROVA CIENTÍFICA,<br />
ESTA É UMA DIMENSÃO<br />
IMPORTANTE DA LUTA<br />
CONTRA A COVID-19 QUE<br />
DEVEMOS APROFUNDAR.<br />
”<br />
lho habitual, diárias ou semanais, de horários diferenciados<br />
de entrada e saída ou de horários diferenciados de<br />
pausas e de refeições.”<br />
Trata-se de uma alteração ao regime geral do trabalho<br />
com vista a evitar a propagação do vírus. Seria de equacionar<br />
também para o setor específico das estruturas<br />
residenciais, mormente das instituições que trabalham<br />
com doentes e idosos, a hipótese de uma lei específica<br />
que estabelecesse a possibilidade de turnos semanais<br />
(com respeito pelo direito ao descanso diário e semanal),<br />
com as devidas compensações financeiras e devido<br />
descanso após o turno e sempre com o consentimento<br />
dos trabalhadores. É essa a pista que o estudo científico<br />
francês supracitado nos aponta.<br />
Devendo o legislador seguir as melhores práticas, à luz<br />
da prova científica, esta é uma dimensão importante da<br />
luta contra a Covid-19 que devemos aprofundar.<br />
Um outro problema é o das condições dos tempos de<br />
lazer e descanso fora do horário de trabalho. Têm as instituições<br />
condições de alojamento e recreio para os trabalhadores<br />
que fiquem 7 dias “retidos” dentro da instituição? 9<br />
É uma questão que merece o melhor estudo jurídico, mas<br />
sobretudo uma profunda reflexão da gestão da saúde. Por<br />
outro lado, deveria haver maior abertura a admitir o acordo<br />
em áreas geográficas com maior risco de contágio.<br />
Convém voltar a salientar que existem igualmente para<br />
os trabalhadores (e seus familiares) claras vantagens. São<br />
muitas vezes infetados por colegas menos zelosos do<br />
afastamento social ou que exercem igualmente funções<br />
em hospitais e centros de saúde. Com esta medida, as infeções,<br />
sempre com origem no exterior, iriam diminuir. E<br />
ainda a frequente transmissão às famílias e à comunidade.<br />
Porque já é hoje conhecido que a circulação de profissionais<br />
entre instituições é "um dos principais fatores de<br />
risco para uma propagação descontrolada do contágio".<br />
Alguns hospitais, incluindo do SNS, exigem atualmente<br />
exclusividade aos seus profissionais de saúde, mormente<br />
enfermeiros, designadamente para evitarem o risco<br />
de infeções hospitalares cruzadas. 10 Trata-se de uma política<br />
com demonstrados efeitos positivos.<br />
2. Direito de visita a utentes em estruturas residenciais<br />
A já referida Resolução do Conselho de Ministros n.<strong>º</strong> 70-<br />
-A/<strong>2020</strong> prevê a possibilidade de visitas a estruturas residenciais.<br />
É um bom princípio! Assim afirma a al. d) do<br />
artigo 23.<strong>º</strong>: “Permissão da realização de visitas a utentes,<br />
com observação das regras definidas pela DGS, e<br />
avaliação da necessidade de suspensão das mesmas por<br />
tempo limitado e de acordo com a situação epidemiológica<br />
específica, em articulação com a autoridade de<br />
saúde local.”<br />
As regras definidas pela DGS constam da Informação<br />
n.<strong>º</strong> 011/<strong>2020</strong>, de 11/05/<strong>2020</strong>, atualizada a 18/05/<strong>2020</strong> 11 ,<br />
das quais destacamos as seguintes:<br />
“3. A instituição deve garantir o agendamento prévio das<br />
visitas, de forma a garantir a utilização adequada do espaço<br />
que lhe está alocado, a respetiva higienização entre visitas<br />
e a manutenção do distanciamento físico apropriado.<br />
4. A instituição deve ter organizado um registo de visitantes,<br />
por data, hora, nome, contacto e residente visitado.<br />
5. As pessoas que participam na visita devem manter o<br />
cumprimento de todas as medidas de distanciamento<br />
físico, etiqueta respiratória e higienização das mãos (desinfeção<br />
com solução à base de álcool ou lavagem com<br />
água e sabão).<br />
6. As pessoas com sinais ou sintomas sugestivos de Covid-19<br />
ou com contacto com um caso suspeito ou confirmado<br />
de Covid-19 nos últimos 14 dias, não devem realizar<br />
ou receber visitas.”<br />
Por seu turno, a instituição “deve garantir que a visita decorre<br />
em espaço próprio, amplo e com condições de arejamento<br />
(idealmente, espaço exterior), não devendo ser<br />
realizadas visitas na sala de convívio dos utentes ou no<br />
próprio quarto, exceto nos casos em que o utente se<br />
encontra acamado (nos casos de quartos partilhados terão<br />
de ser criadas condições de separação física).”<br />
Aplaudimos esta solução, que deverá ser adaptada e<br />
expandida, genericamente, aos hospitais 12 , pois a saúde<br />
mental das pessoas vulneráveis é um fator fundamental<br />
para a qualidade de vida e para a própria sobrevivência,<br />
sendo de notar que o extraordinário aumento da<br />
taxa de mortalidade das pessoas idosas, em Portugal,<br />
ultrapassa em muito as mortes causadas diretamente<br />
pela Covid-19 (até hoje, 16 de setembro, no número<br />
de 1.875 óbitos), numa dimensão que importa estudar<br />
cientificamente. As causas desse aumento da mortalidade<br />
geral podem ficar a dever-se:<br />
• Ao ambiente depressivo e de isolamento em que as<br />
pessoas (idosas) vivem, quer em lares, quer mesmo fechadas<br />
nas suas próprias casas;<br />
• À dificuldade de acesso a cuidados de saúde, sobretudo<br />
os cuidados de saúde primários que se apresentam<br />
como uma parede opaca, com telefones a funcionar<br />
mal, ou a exigir marcações por email (que muitos utentes<br />
idosos usam com dificuldade ou não usam), quantas<br />
vezes fechando a porta também a solicitações urgentes;<br />
• Ao medo que muitas pessoas têm de recorrer a um<br />
serviço (de urgência) hospitalar ou realizar uma cirurgia<br />
porque deixam de receber visitas e correm o risco de<br />
vir a falecer sozinhas e sem voltarem a estar com os<br />
seus entes queridos.<br />
Estas normas violam todos os princípios já estabelecidos<br />
de humanização em saúde, no nosso País, porque não<br />
respeitam os direitos humanos e já deveriam há muito<br />
ter sido interrompidas.<br />
E é curioso verificar que nas cadeias o regime proposto<br />
foi o oposto e com bons resultados. Para reduzirem a<br />
lotação dos estabelecimentos fechados e diminuírem o<br />
risco para a população prisional, medida fundamental de<br />
saúde pública, muitos presos foram libertados. Pertenciam<br />
a grupos de risco ou estavam próximo do termo<br />
da sua pena.<br />
Racionalmente, não foi privilegiado um maior isolamento<br />
destes “residentes”, já anteriormente a este regime<br />
condenados. Ou seja, apenas o Ministério da Justiça criou<br />
medidas preventivas eficazes mantendo o respeito pelos<br />
referidos direitos humanos também presentes na nossa<br />
Constituição. A ênfase não foi colocada no aumento do<br />
isolamento e proibição de visitas, mas sim na vantajosa<br />
saída de alguma população prisional para o exterior.<br />
É, pois, de lamentar a posição oposta de administrações<br />
de lares à saída provisória de residentes, nomeadamente<br />
para a casa de familiares, e à aceitação imediata de novos<br />
residentes nos lares cuja lotação ficou reduzida por mortes<br />
ou saídas definitivas de anteriores residentes.<br />
Também é de lamentar que muitos hospitais, sem criarem<br />
áreas de total separação para doentes Covid e não }<br />
74
GH direito biomédico<br />
“<br />
APRENDAMOS A VIVER SOB<br />
A AMEAÇA DA COVID-19 S<br />
EM PERDERMOS AS CONQUISTAS<br />
CIVILIZACIONAIS DOS DIREITOS<br />
HUMANOSE OS PRINCÍPIOS<br />
ANTROPOLÓGICOS BÁSICOS<br />
DA COMPAIXÃO E DA<br />
SOLICITUDE, ESPECIALMENTE<br />
FACE ÀS PESSOAS VULNERÁVEIS.<br />
”<br />
Covid, continuem a interromper as visitas a doentes com<br />
outras patologias e testes negativos, de familiares saudáveis<br />
(com testes negativos), assim que surgem surtos<br />
noutros locais da instituição. É sempre tentador tomar<br />
este tipo de medidas de estratégia “militar”, porém, sendo<br />
estas compreensíveis no início de uma pandemia com<br />
um vírus desconhecido, por contrariarem grosseiramente<br />
os direitos humanos e a dignidade de doentes e famílias,<br />
e conduzirem a traumas psicológicos que, inclusive,<br />
prejudicam a evolução de qualquer doença, já deveriam<br />
ter sido abandonadas.<br />
Aprendamos a viver sob a ameaça da Covid-19 sem perdermos<br />
as conquistas civilizacionais dos direitos humanos<br />
e os princípios antropológicos básicos da compaixão<br />
e da solicitude, especialmente face às pessoas vulneráveis.<br />
Se não o conseguirmos, poderemos ter aplanado a<br />
curva, descoberto uma vacina e, até, conseguido que o<br />
novo coronavírus, como acontece, por vezes, tenha desistido<br />
de nós, mas a humanidade ficará para sempre negativamente<br />
marcada, porque, por medo, termos promovido<br />
ou aceitado sem luta, rígidos exageros autoritários<br />
ainda mais cruéis para as pessoas e para a sociedade<br />
do que as restantes medidas diretas, preventivas ou terapêuticas,<br />
que são indispensáveis ao combate ao SAR-<br />
S-CoV-2. Estes exageros e esta falta de sensibilidade, a<br />
manterem-se, serão uma triste demonstração de que<br />
foi suficiente um simples vírus para sermos derrotados<br />
como seres humanos. Ã<br />
1. Cf. https://www.publico.pt/<strong>2020</strong>/08/26/ciencia/opiniao/direitos-humanos-mortesevitaveis-1929249<br />
2. Joël Belmin/ Nathavy Um-Din/ Cristiano Donadio, “Coronavirus Disease 2019<br />
Outcomes in French Nursing Homes That Implemented Staff Confinement with<br />
Residents”, JAMA New Open. <strong>2020</strong>;3(8): e2017533. doi:10.1001/jamanetworkopen.<strong>2020</strong>.17533.<br />
August 13, <strong>2020</strong>. https://jamanetwork.com/journals/jamanetwork<br />
open/fullarticle/2769241<br />
3. “This cohort study including 17 nursing homes with staff self-confinement and<br />
9513 nursing homes in a national survey found that nursing homes with staff self-confinement<br />
experienced lower mortality related to Covid-19 among residents and lower<br />
incidence of Covid-19 among residents and staff members than rates recorded<br />
in a national survey.”<br />
4. https://covid19.min-saude.pt/dgs-atualiza-orientacao-para-lares-de-idosos/<br />
5. http://www.cgtp.pt/accao-e-luta-geral/13788-cesp-denuncia-tentativa-de-regimesde-internato-nas-ipss-s-e-misericordias<br />
6. “Esta exaustão dos trabalhadores aumenta significativamente o risco de acidentes<br />
nos cuidados aos utentes, pelo que convém desde já salvaguardar que aos trabalhadores<br />
não serão atribuídas quaisquer responsabilidades, da mesma forma que<br />
em caso de acidente de trabalho do trabalhador exausto a instituição terá de ser<br />
responsabilizada a todos os níveis pela reparação do mesmo.”<br />
7. Segundo esta Diretiva, os países da UEdevem tomar as medidas necessárias para<br />
que todos os trabalhadores beneficiem de: um período mínimo de descanso<br />
diário de 11 horas consecutivas por cada período de 24 horas; um período de pausa<br />
no caso de o período de trabalho diário ser superior a seis horas; um período<br />
de descanso ininterrupto de 24 horas, às quais se adicionam as 11 horas de descanso<br />
diário, por cada período de sete dias; férias anuais remuneradas de, pelo menos,<br />
quatro semanas; uma duração máxima de trabalho de 48 horas em média por<br />
semana, incluindo as horas extraordinárias, em cada período de sete dias.<br />
8. Esta Resolução pouca novidade traz relativamente a medidas no âmbito das estruturas<br />
residenciais (artigo 23.<strong>º</strong>).<br />
9. Os turnos no regime de laboração contínua e dos trabalhadores que assegurem<br />
serviços que não possam ser interrompidos, nomeadamente pessoal operacional<br />
de vigilância, transporte e tratamento de sistemas eletrónicos de segurança, devem<br />
ser organizados de modo a que aos trabalhadores de cada turno seja concedido,<br />
pelo menos, um dia de descanso em cada período de 7 dias, sem prejuízo do período<br />
excedente de descanso a que o trabalhador tenha direito.<br />
10. https://www.jn.pt/nacional/braga-e-pedro-hispano-exigem-exclusividade-aos-seusprofissionais-11939743.html<br />
11. https://www.dgs.pt/normas-orientacoes-e-informacoes/informacoes/informacaon-011<strong>2020</strong>-de-1105<strong>2020</strong>-pdf.aspx<br />
12. Registamos com agrado que alguns hospitais estão a retomar gradualmente o<br />
regime de visitas hospitalares, desde finais de julho. O Centro <strong>Hospitalar</strong> e Universitário<br />
de Coimbra (CHUC) anunciou a retoma de visitas a doentes internados<br />
nas suas unidades de saúde, após terem sido suspensas, a 12 de março, face à pandemia<br />
de Covid-19, embora sujeitas a autorização prévia e com caráter excecional:<br />
“todos os serviços podem autorizar as visitas de caráter excecional, a qual deve<br />
ser solicitada pela família ao diretor do serviço/médico assistente (especialista<br />
responsável) ou enfermeiro gestor.” https://observador.pt/<strong>2020</strong>/07/24/hospitaisde-coimbra-retomam-visitas-a-doentes-internados-com-autorizacao-previa/<br />
No Centro <strong>Hospitalar</strong> do Médio Tejo: “As visitas a doentes internados no Centro<br />
<strong>Hospitalar</strong> do Médio Tejo (CHMT), suspensas desde 13 de março, serão retomadas<br />
amanhã, dia 15 de agosto, anunciou a instituição, com exceção das áreas de<br />
prestação de cuidados dedicadas à Covid-19.” https://www.jornalmedico.pt/atualidade/39475-visitas-a-doentes-internados-no-centro-hospitalar-do-medio-tejo-retomadas-amanha.html<br />
76
GH diplomacia em saúde<br />
DIPLOMACIA DA SAÚDE<br />
NA ERA COVID 19<br />
Francisco Pavão<br />
Médico, especialista em saúde pública,<br />
Gabinete Diplomacia da Saúde da Ordem dos Médicos<br />
Decorridos seis meses após ser declarada<br />
pela Organização Mundial da Saúde<br />
(OMS) a pandemia por SARS-CoV-2,<br />
continuamos a viver tempos de enorme<br />
incerteza, preocupação, constante<br />
adaptação e suspensos de garantias até que seja encontrado<br />
um tratamento seguro e eficaz, uma vacina ou<br />
atingida a imunidade de grupo, estratégia fortemente<br />
desencorajada pela OMS.<br />
O mundo moderno e globalizado do Séc. XXI enfrenta<br />
uma crise sanitária sem precedentes e de enormes implicações<br />
económicas e sociais. Os sistemas de saúde,<br />
para além do amplo esforço de preparação e resposta à<br />
epidemia, enfrentam consequências paralelas fraturantes<br />
que terão impacto na saúde das populações. Contudo é<br />
este o tempo de reinventar e reestruturar respostas, não<br />
temer políticas de saúde concretas - transversais a todos<br />
os setores - e garantir o esforço de financiamento do sistema<br />
de saúde, como há muito é anunciado e desejado.<br />
São múltiplos e constantes os desafios que a Covid-19<br />
trouxe à sociedade, às regiões, países, comunidades e<br />
ao mundo no seu todo. Vimos o impensável a ter lugar:<br />
estradas e espaços aéreos desertos, indústria parada e<br />
empresas em risco, fronteiras do mundo livre e democrático<br />
encerradas, lutas nos corredores internacionais<br />
na busca e garantia de material médico e de proteção<br />
individual, rápidos acordos bilaterais de cooperação e<br />
ajuda internacional entre regimes opostos, grandes crises,<br />
temas e prioridades internacionais a esfumarem-se<br />
para dar lugar a um único agente que desde há meses<br />
ocupa lugar cimeiro nos noticiários.<br />
Porém, devemos recuar até meados do século XIX pa-<br />
ra perceber que a história da saúde pública é feita dos<br />
processos de relações entre sociedades, de tal forma<br />
que os eventos em saúde das populações numa parte<br />
do mundo têm efeitos sobre a saúde das pessoas e em<br />
países distantes. 1<br />
Foi em Paris, no ano de 1851, que teve lugar a primeira<br />
reunião entre nações para decidir que medidas conjuntas<br />
deviam adotar para conter a transmissão de doenças<br />
infecciosas, não obstante neste tempo ainda não serem<br />
conhecidos os mecanismos de transmissão das doenças.<br />
Portugal fez parte deste pequeno grupo, sendo representado<br />
por um médico, Dr. José Maria Grande, e um<br />
diplomata, João Mouzinho da Silveira, tal como constava<br />
dos estatutos da conferência. À época “as políticas nacionais<br />
falharam em prevenir a propagação da doença,<br />
mas também criaram descontentamento entre os comerciantes,<br />
que suportaram o impacto das medidas de<br />
quarentena e exortaram os seus governos a tomar medidas<br />
internacionais”. 1,2,3<br />
É por esta razão, consequência da globalização e dos problemas<br />
de saúde nacionais não poderem ser tratados<br />
de forma isolada, exigindo, pelo contrário, esforços coordenados<br />
e conjuntos pela saúde global que surge a Diplomacia<br />
da Saúde. Sendo uma área de evolução académica<br />
e profissional, reclamando para a sua prática a<br />
multissetorialidade e multidisciplinaridade, encerra em si<br />
resultados essenciais na melhoria da saúde global e sustentabilidade<br />
pública das populações, bem como a manutenção<br />
e fortalecimento das relações internacionais. 4,5<br />
O decorrer dos anos, e na sequência destas conferências<br />
sanitárias que levaram a acordos de cooperação internacional,<br />
foi fundada em 1969 a OMS, tendo poste-<br />
riormente sido criado o Regulamento Sanitário Internacional<br />
(RSI), um acordo que regula como é que países<br />
se devem relacionar para vigiar doenças que podem<br />
causar epidemias e a forma de atuar perante uma<br />
ameaça em saúde pública. Este regulamento foi revisto<br />
pela última vez em 2005 e a OMS estuda agora a sua<br />
eventual revisão, através de uma comissão internacional<br />
independente, motivado pelo vírus SARS-CoV-2. 6<br />
No panorama mundial a Covid-19 permitiu-nos observar<br />
inúmeros exemplos da íntima relação entre a saúde, a<br />
economia e as relações internacionais. A pandemia exigiu<br />
um enorme esforço e desafio à diplomacia tradicional,<br />
que se nos últimos anos percebia a importância da extensão<br />
da sua prática para os temas da saúde e a viabilidade<br />
dos seus negócios, atualmente torna-se imperativo o seu<br />
desenvolvimento, formação e partilha do conhecimento.<br />
A Ordem dos Médicos (OM) e Associação Portuguesa<br />
de Administradores <strong>Hospitalar</strong>es (APAH), atentas a<br />
novas dinâmicas e promissoras áreas de trabalho, desde<br />
o passado que vêm a apoiar e participar em fóruns de<br />
debate e discussão no âmbito da Saúde Global e Diplomacia<br />
da Saúde - seja no domínio da cooperação<br />
entre os países lusófonos ou as estreitas relações com<br />
parceiros europeus.<br />
Por este motivo não é de estranhar que no dia 12 de março<br />
(um dia após a OMS ter feito a declaração de pandemia),<br />
estas duas organizações tenham promovido com a<br />
Câmara de Indústria e Comércio Portugal-Hong Kong a<br />
Conferência “O impacto económico, diplomático e na<br />
saúde da Covid-19”. 7<br />
Posteriormente no mês de abril foi publicado no Jornal<br />
Público um artigo conjunto, “Diálogo em tempo de incertezas”,<br />
8 onde se incluem todos os dirigentes e representantes<br />
dos médicos da lusofonia, e nos subsequentes<br />
meses integrando um ciclo de webinars, com o apoio<br />
do Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT),<br />
tiveram lugar duas importantes, quanto inéditas, conferências<br />
dedicadas à Diplomacia da Saúde na Era Covid-19:<br />
“Impactos e desafios às dinâmicas na Diplomacia<br />
Global” 9 e “A pandemia e os desafios à investigação<br />
e cooperação na África Lusófona”, 10 respetivamente.<br />
Registe-se, como nota, que participaram nestes eventos<br />
distintos embaixadores, prestigiados profissionais de<br />
saúde e professores universitários.<br />
Uma vez que Portugal assumirá em breve a presidência<br />
da União Europeia, em tempos de excecional exigência<br />
e nunca antes vividos pela comunidade, o nosso País poderá<br />
ter uma oportunidade única de colocar a saúde como<br />
ponto central da agenda internacional. Neste contexto,<br />
não posso deixar de registar que urge reativar a<br />
boa iniciativa do Alto-Comissariado para a Saúde Global<br />
em Portugal. 11 A nossa posição estratégica na geografia<br />
mundial, com os eixos Norte e Sul Atlântico, Mediterrânico<br />
e o Norte de África, a par da língua comum que<br />
partilhamos com cerca de 500 milhões de pessoas em<br />
todo o mudo, criam oportunidades únicas para as quais<br />
devemos ser arrojados e criativos.<br />
Sobre o mote “Inovar e Liderar na Incerteza” será realizada<br />
no mês de outubro a 8ª conferência de valor da APAH<br />
e para este evento estamos já a preparar um workshop de<br />
continuidade ao debate da Diplomacia da Saúde, onde<br />
iremos ouvir opiniões e perspetivas de experimentados<br />
profissionais e feitas análises que nos ajudam a perceber<br />
melhor os meandros das relações internacionais.<br />
As decisões da Comunidade Europeia ou as imposições<br />
independentes de cada país que a constituí; os avanços e<br />
recuos da Comissão; as exigências da indústria farmacêutica<br />
na vacina contra a Covid-19; as barreiras ao digital;<br />
as reformas do setor da saúde; o diálogo entre Estados;<br />
os objetivos das manifestações públicas; a necessidade de<br />
revisão de regulamentos internacionais e a comunicação<br />
das instituições que lideram os caminhos na luta contra a<br />
pandemia são alguns dos temas que queremos sejam de<br />
partilha, reflexão, estudo e motivo de atração dos participantes.<br />
É nossa convicção que será um êxito. Ã<br />
1. Fidler D., The globalization of public health: the first 100 years of international<br />
health diplomacy. Bulletin of the World Health Organization, 2001, 79 (9).<br />
2. Howard-Jones N., The Scientific Backgroug of the International Sanitary Conferences<br />
1851-1938. History of international public health, No. 1. World Health<br />
Organization 2007.<br />
3. Garnel MRL., Portugal e as Conferências Sanitárias Internacionais (Em torno das<br />
epidemias oitocentistas de cholera-morbus). Revista de História da Sociedade e<br />
da Cultura - Centro de História da Sociedade e da Cultura da Universidade de<br />
Coimbra, 2009.<br />
4. Kickbusch I, Silberschmidt G, Buss P. Global health diplomacy: the need foe new<br />
perspectives, strategic approaches and skills in global health. Bulletin of the World<br />
Health Organization 2007, 85 (3).<br />
5. Kickbusch I, Berger C. Diplomacia da Saúde. RECIIS - Rio de Janeiro, v.4, n.1,<br />
p.19-24, mar., 2010.<br />
6. https://sicnoticias.pt/especiais/coronavirus/<strong>2020</strong>-08-27-OMS-diz-que-vai-estudareventual-revisao-de-Regulamento-Sanitario-Internacional<br />
7. Revista da Ordem dos Médicos, Jan. - Mai. <strong>2020</strong>, pag. 65,66 e 67.<br />
8. https://www.publico.pt/<strong>2020</strong>/04/20/sociedade/opiniao/dialogo-tempo-incertezas-<br />
1912979<br />
9. https://www.ihmt.unl.pt/webinar-covid-19-e-o-momento-dos-politicos-comecarema-acreditar-mais-nos-cientistas-diz-filomeno-fortes/<br />
10. https://www.ihmt.unl.pt/webinar-covid-19-falar-da-diplomacia-em-saude-e-de-inegavel-importancia-para-todos-e-em-particular-para-o-mundo-lusofono/<br />
11. Resolução do Conselho de Ministros n.<strong>º</strong> 53/2018. Em: Diário da República<br />
n.<strong>º</strong> 86/2018, Série I de 2018-05-04.<br />
78 79
GH Doenças crónicas e Covid 19<br />
COVID 19 E DOENÇAS<br />
CÉREBRO CARDIOVASCULARES<br />
“<br />
QUEM SUPERA A CRISE SUPERA-SE A SI MESMO.<br />
Einstein<br />
”<br />
Filipe Macedo<br />
Diretor do PNDCCV, Diretor do Serviço de Cardiologia,<br />
Centro <strong>Hospitalar</strong> Universitário de São João, Porto,<br />
Professor de Cardiologia, Faculdade de Medicina<br />
da Universidade do Porto<br />
Elsa Azevedo<br />
Coordenadora Adjunta do PNDCCV para a área cerebrovascular,<br />
Diretora do Serviço de Neurologia, Centro <strong>Hospitalar</strong> Universitário<br />
de São João, Porto, Professora de Neurologia, Faculdade de Medicina<br />
da Universidade do Porto<br />
A<br />
pandemia causada pela Doença do<br />
Coronavírus, designação atribuída pela<br />
OMS à doença provocada pelo novo<br />
coronavírus, é um grande encargo<br />
para os sistemas de saúde e está a<br />
impor mudanças na prática de muitas áreas da medicina.<br />
A Covid-19 é uma infeção viral que pode resultar numa<br />
inflamação sistémica grave e também numa síndroma<br />
respiratória aguda grave, sendo que ambas as condições<br />
condicionam grandes efeitos no coração e no cérebro.<br />
A SARS-CoV-2 “severe acute respiratory syndrome coronavirus<br />
2” provoca efetivamente em certas situações<br />
doença pulmonar grave, com necessidade de internamento<br />
hospitalar; nos casos mais graves obriga mesmo a<br />
cuidados mais diferenciados de medicina intensiva. Contudo,<br />
na grande maioria dos casos, a doença apresenta<br />
um quadro clínico leve a moderado, cujo tratamento é<br />
meramente sintomático e pode ser realizado em casa.<br />
Esta patologia tem grandes implicações no funcionamento<br />
do sistema cardiovascular. Pacientes que apresentam<br />
fatores de risco cardiovascular como tabagismo, diabetes,<br />
hipertensão arterial, obesidade e idade avançada, indivíduos<br />
do sexo masculino, para além dos pacientes com<br />
doença cardiovascular e cerebrovascular conhecida, foram<br />
identificados como sendo grupos particularmente<br />
vulneráveis, com taxas crescentes de morbilidade e mortalidade<br />
quando infetados por este vírus.<br />
O risco de infeção por SARS-CoV-2 pode ser maior<br />
em pacientes com insuficiência cardíaca crónica devido<br />
à idade avançada e à presença de várias comorbilidades.<br />
Pacientes com doença cardiovascular ou doença cardíaca<br />
valvular (particularmente aqueles que apresentam disfunção<br />
do ventrículo direito ou esquerdo ou hipertensão<br />
pulmonar) poderão estar particularmente em risco durante<br />
a pandemia por Covid-19.<br />
Desde a emergência da Covid-19, tem vindo a acumularse<br />
a evidência da associação desta doença ao risco de<br />
acidente vascular cerebral (AVC). O doente com AVC<br />
agudo tem um maior risco de contrair a Covid-19, particularmente<br />
as formas mais graves. Por outro lado, entre<br />
os doentes hospitalizados por infeção respiratória pelo<br />
SARS-CoV-2 cerca de 5% podem sofrer um AVC.<br />
Um tema de constante polémica tem sido a hipertensão<br />
arterial e qual a melhor atitude perante os doentes com<br />
hipertensão arterial. Não existe atualmente nenhuma evidência<br />
que sugira que a hipertensão arterial por si só seja<br />
um fator de risco independente e consequentemente<br />
conduza a complicações graves ou morte por infeção por<br />
Covid-19. O tratamento da hipertensão arterial (HTA)<br />
poderá ser temporariamente suspenso nos doentes internados<br />
com quadros clínicos agudos. Estes doentes têm<br />
geralmente hipotensão arterial e lesão renal aguda secundária<br />
a infeção grave por Covid-19.<br />
Têm surgido inúmeros artigos que questionam este tema<br />
da HTA. As recomendações da Sociedade Europeia de<br />
Cardiologia e da Sociedade Europeia de Hipertensão “recomendam<br />
veemente que médicos e pacientes devem<br />
manter o seu tratamento habitual da hipertensão, pois<br />
não existe nenhuma evidência científica ou clínica que indique<br />
que o tratamento com Inibidores da ECA (enzima<br />
de conversão da angiotensina) e ARBs (bloqueadores do<br />
recetor da angiotensina II) devam ser suspensos devido à<br />
infeção por Covid-19”.<br />
A doença cardiovascular pode ser um fenómeno primário,<br />
se tivermos em consideração o papel da SRA (Sistema<br />
Renina Angiotensina)/ECE2 (Enzima conversora Angiotensina<br />
2) no sistema cardiovascular, bem como a sua<br />
presença no coração humano e células vasculares. As complicações<br />
cardíacas comuns devido à SARS são fundamentalmente<br />
a hipotensão arterial, miocardite, arritmia e morte<br />
súbita cardíaca.<br />
A investigação diagnóstica durante a infeção por SARS revelou<br />
alterações eletrocardiográficas, disfunção diastólica<br />
subclínica do ventrículo esquerdo e subida de marcadores<br />
de necrose miocárdica como as troponinas. A lesão do miocárdio<br />
e os níveis aumentados dos biomarcadores cardíacos<br />
estão provavelmente associados à miocardite e isquemia<br />
condicionando diferentes graus de insuficiência cardíaca.<br />
Deve ser salientado que concentrações aumentadas de<br />
troponina I/T cardíaca num paciente com Covid-19 devem<br />
ser vistas como a combinação da presença ou extensão da<br />
doença cardíaca pré-existente e a lesão aguda relacionada<br />
a Covid-19, sendo um marcador quantitativo de lesão dos<br />
cardiomiócitos. As infeções graves por Covid-19 também<br />
estão potencialmente associadas a arritmias cardíacas, em<br />
parte devido à miocardite no contexto da infeção.<br />
A miocardite surge em pacientes com Covid-19 vários<br />
dias após o início da febre. Isto indica a presença de lesão<br />
do miocárdio provocada pela infeção viral. Os mecanismos<br />
de lesão do miocárdio induzidos por SARS-CoV-2<br />
podem estar relacionados com a suprarregulação de<br />
ECA2 no coração e nos vasos coronários. A insuficiência<br />
respiratória e a hipóxia em doentes com Covid-19 também<br />
podem causar danos ao miocárdio devendo dar-se<br />
especial importância aos mecanismos imunológicos de<br />
inflamação miocárdica.<br />
Relativamente ao AVC, há estudos a relacionar a Covid-<br />
-19 com AVC isquémico, hemorrágico e trombose venosa<br />
cerebral, embora a maioria se reporte ao AVC isquémico.<br />
O aumento do risco de AVC em doentes mais }<br />
80 81
GH Doenças crónicas e Covid 19<br />
“<br />
A PANDEMIA DA DOENÇA<br />
CORONAVÍRUS (COVID-19) CRIOU<br />
NOVOS E IMPREVISÍVEIS DESAFIOS<br />
PARA A MEDICINA MODERNA.<br />
”<br />
idosos e com maior número de comorbilidades tem<br />
sido uma realidade, como também se tem associado a<br />
Covid-19 a AVC em doentes mais novos e previamente<br />
saudáveis, com predomínio nos homens.<br />
Muitos estudos propõem a coagulopatia como um mecanismo<br />
fisiopatológico relevante subjacente a estes<br />
eventos cerebrovasculares. Adicionalmente, estes doentes<br />
com AVC e infeção pelo SARS-CoV-2 apresentam<br />
mais vezes enfartes cerebrais múltiplos, coagulopatias sistémicas<br />
em vários órgãos, trombose em locais menos comuns<br />
e mesmo evidência de trombos arteriais e venosos<br />
simultâneos. De uma forma geral, parece haver maior gravidade<br />
e mortalidade no doente com AVC associado à<br />
infeção por SARS-CoV-2.<br />
Pacientes que estejam infetados com Covid-19 provavelmente<br />
apresentam maior risco de tromboembolismo venoso<br />
e os dados recentes de Klok et al. publicados na revista<br />
Thombosis Research sugerem que as taxas de complicações<br />
trombóticas podem chegar a 31% em pacientes<br />
graves infetados com Covid-19. Os diferentes trabalhos<br />
sugerem parâmetros de coagulação anormais em pacientes<br />
hospitalizados com doença Covid-19 grave. Está comprovado<br />
que em doentes com pneumonia, estados de hipercoagulabilidade<br />
e atividade inflamatória sistémica, estes<br />
transtornos podem persistir por um longo período.<br />
Relativamente à abordagem médica e diagnóstica destes<br />
doentes deve sempre ter em linha de conta a opção<br />
criteriosa dos diferentes meios complementares de<br />
diagnóstico. A utilização de medicamentos como hidroxicloroquina<br />
ou azitromicina, muito prescritos a pacientes<br />
com Covid-19, são conhecidos por prolongar o intervalo<br />
QT. Cerca de 6% dos pacientes com Covid-19 têm um<br />
QT (corrigido)> 500 ms. Portanto, o uso indiscriminado<br />
dessa medicação pode levar a arritmias potencialmente<br />
fatais, principalmente na presença de importantes variações<br />
eletrolíticas e disfunção renal.<br />
O estudo imagiológico cardíaco e vascular cerebral não<br />
urgente ou eletivo deve ser realizado de forma criteriosa<br />
em doentes com suspeita ou confirmação de infeção<br />
por Covid-19. Em pacientes infetados com Covid-19, recomenda-se<br />
o recurso a POCUS (point of care ultrsasound),<br />
com ecocardiografia focada (FoCUS) e eco-Doppler<br />
cervicocefálico focado (neuroPOCUS), centrados exclusivamente<br />
na aquisição de imagens necessárias para responder<br />
à questão clínica, a fim de reduzir o contacto do paciente<br />
com o equipamento e com o profissional de saúde.<br />
A deteção de ventrículo direito dilatado e hipertensão<br />
pulmonar pode levar à necessidade de realização de TAC<br />
com contraste para descartar a ocorrência de embolia<br />
pulmonar. Em doentes com dor torácica aguda e suspeita<br />
de doença obstrutiva das artérias coronárias, a AngioTac<br />
cardíaca é a modalidade de imagem não invasiva de eleição,<br />
pois é precisa e rápida.<br />
Também no doente com suspeita de AVC agudo a TAC<br />
cerebral com angio é o exame emergente a fazer. Em<br />
doentes com dificuldade respiratória, a TAC pulmonar é<br />
recomendada para avaliar características de imagem típicas<br />
de Covid-19 e diferenciá-las de outras causas (insuficiência<br />
cardíaca e embolismo pulmonar).<br />
Desde o início da pandemia Covid-19 reforçou-se a proteção<br />
da via verde do AVC e da via verde coronária, com<br />
circuitos próprios, de forma a não colocar em perigo de<br />
infeção o doente com AVC ou enfarte de miocárdio<br />
(EAM), mantendo, no entanto, a celeridade do processo<br />
necessária à otimização dos resultados do tratamento de<br />
fase aguda, sobretudo a revascularização. É importante<br />
que a população não tenha receio de ligar para o 112 em<br />
caso de sinais de alerta de AVC ou EAM. A fase provavelmente<br />
mais prejudicada da cadeia de cuidados do doente<br />
vascular foi a da reabilitação, que urge não parar novamente<br />
neste novo aumento da incidência de Covid-19,<br />
pois o preço em termos de sequelas permanentes é muito<br />
elevado.<br />
É essencial também manter o acompanhamento dos doentes<br />
em prevenção primária ou secundária de eventos<br />
vasculares, recorrendo sempre que oportuno à telemedicina<br />
para não o descontinuar, pois a doença cérebro-<br />
-cardiovascular continua a ser uma pandemia muito mais<br />
letal do que a da Covid-19, sendo crucial combatê-la com<br />
a mesma tenacidade.<br />
A pandemia da doença provocada pelo novo coronavírus<br />
criou novos e imprevisíveis desafios para a medicina<br />
moderna e para os sistemas de saúde. Para além dos<br />
profissionais de medicina intensiva, também os cardiologistas,<br />
neurologistas e internistas estão a ser fortemente<br />
afetados por essa rápida mudança. Temos de pensar que<br />
depois desta crise sanitária estar ultrapassada, vamos ter<br />
de fazer esforços redobrados para voltarmos a acordar<br />
num Portugal moderno e próspero. Ã<br />
82
GH Iniciativa APAH | Prémio Healthcare excellence<br />
PRÉMIO<br />
VAI RECONHECER<br />
AS MELHORES PRÁTICAS<br />
NA RESPOSTA<br />
À PANDEMIA COVID 19<br />
Com o objetivo de reconhecer e incentivar<br />
projetos nacionais desenvolvidos e implementados<br />
por organizações públicas,<br />
sociais e privadas, direcionados para a melhoria<br />
da qualidade na prestação de cuidados<br />
de saúde, a Associação Portuguesa de Administradores<br />
<strong>Hospitalar</strong>es (APAH) com o apoio da biofarmacêutica<br />
AbbVie atribui anualmente o Prémio Healthcare<br />
Excellence.<br />
A 7.ª edição desta iniciativa é dedicada em especial a<br />
projetos desenvolvidos no âmbito da resposta à pandemia<br />
da Covid-19 e visa premiar e distinguir a excelência,<br />
reconhecendo as boas práticas no domínio da melhoria<br />
do serviço aos utentes, promovendo a sua partilha como<br />
ponto de partida para a criação de um verdadeiro<br />
network colaborativo entre as várias Instituições de<br />
Saúde e incentivar a sua consolidação e implementação<br />
pelo Sistema de Saúde Português.<br />
São, muitas vezes, ideias aparentemente simples para a<br />
resolução de problemas muitas vezes comuns às várias<br />
Instituições de Saúde, fáceis de adaptar, que exigem<br />
pouco ou nenhum investimento financeiro, mas que<br />
permitem simultaneamente contribuir para a sustentabilidade<br />
da Saúde em Portugal e assegurar ganhos com<br />
grande impacto e valor para a qualidade de vida dos<br />
doentes e das suas famílias.<br />
Em <strong>2020</strong>, foram recebidas um total de 70 candidaturas<br />
representativas de todo o território português desenvolvidos<br />
e implementados por organizações públicas,<br />
sociais e privadas e que contribuíram para a melhoria da<br />
qualidade de cuidados de saúde em tempo de pandemia.<br />
Destas 8 foram selecionadas pelo júri para a reunião<br />
final que decorre a 21 de outubro no auditório do Hospital<br />
Júlio de Matos - Parque da Saúde de Lisboa. Entre<br />
os finalistas estão projetos do Agrupamento de Centro<br />
Saúde Douro Sul, do Centro <strong>Hospitalar</strong> e Psiquiátrico<br />
de Lisboa, do Centro <strong>Hospitalar</strong> e Universitário de São<br />
João, do Health Cluster Portugal, do Hospital Garcia de<br />
Orta, do Hospital Senhora da Oliveira - Guimarães, dos<br />
Serviços Partilhados do Ministério da Saúde e da Sociedade<br />
Portuguesa de Esclerose Múltipla.<br />
Na reunião final do Prémio serão apresentados os projetos<br />
finalistas e será distinguido o Vencedor da edição<br />
<strong>2020</strong>. Para além da qualidade da apresentação final dos<br />
Prémio Healthcare Excellence<br />
6 Edições | 6 Vencedores<br />
2014<br />
Inteligência Clínica<br />
Centro <strong>Hospitalar</strong> de São João<br />
2015<br />
Implementação da metodologia KAIZEN<br />
DIÁRIO, com as equipas naturais envolvidas<br />
na atividade do Bloco Operatório<br />
no Hospital de Santo António<br />
Centro <strong>Hospitalar</strong> do Porto<br />
2016<br />
Capacitar para Melhor Cuidar - O cuidador<br />
no Projeto Vida Ativa<br />
Hospital Vila Franca de Xira<br />
2017<br />
Portal do Utente de Matosinhos<br />
Unidade Local de Saúde de Matosinhos<br />
2018<br />
Via Verde Reanimação<br />
Instituto Nacional de Emergência Médica<br />
2019<br />
Intervenção humanitária de saúde<br />
e amparo social<br />
Associação Aldeias Humanitar<br />
projetos candidatos, a inovação e a replicabilidade em<br />
outras instituições de saúde são também critérios de<br />
avaliação. A decisão ficará a cargo do júri constituído<br />
por Delfim Rodrigues, Presidente do Júri e Vice-Presidente<br />
da APAH; Dulce Salzedas, Jornalista da SIC; Ricardo<br />
Mexia, Presidente da Associação Nacional de Médicos<br />
de Saúde Pública e Ricardo Mestre, Vogal Executivo<br />
da Administração Central do Sistema de Saúde. Ã<br />
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GH Prémio Healthcare excellence | HUDDLE MEETING<br />
HUDDLE MEETING:<br />
A SUSTENTABILIDADE<br />
DA MELHORIA CONTÍNUA<br />
Ana Lúcia Ferreira, Elsa Silva, Mercedes Ganito, Mercedes Bilbao, Filomena Postiço,<br />
José Luis Ferreira, Hugo Trindade, Teresa Cenicante, Paula Duarte, Cátia Neves,<br />
Ana Leal, Fátima Alves, Joana Ximenes, Joana Ovidio, Sofia Morão, Joana Seringa 1 ,<br />
Rui Cortes e Sara Moreira 2<br />
1. Ferreira A., Silva E., Ganito M., Bilbao M., Postiço F., Ferreira J., Trindade H., Cenicante T.,<br />
Duarte P., Neves C., Leal A., Alves F., Ximenes J., Ovidio J., Morão S. e Seringa J.,<br />
como colaboradores do Centro <strong>Hospitalar</strong> Universitário de Lisboa Central, Hospital Dona Estefânia.<br />
2. Cortes R., Moreira S., como colaboradores da LeanHealth Portugal.<br />
O<br />
Hospital de Dona Estefânia (HDE),<br />
localizado em Lisboa, é uma unidade<br />
de referência em pediatria da zona sul<br />
do País, encontrando-se integrado no<br />
Centro <strong>Hospitalar</strong> Universitário de Lisboa<br />
Central EPE (CHULC). No Bloco Operatório Central<br />
Pediátrico desta instituição desenvolveu-se um projeto<br />
de melhoria contínua com metodologia Lean, direcionado<br />
ao percurso do doente cirúrgico.<br />
A metodologia Lean pode ser descrita como uma filosofia,<br />
um conjunto de ferramentas ou até mesmo<br />
um sistema de gestão de melhoria de desempenho, ao<br />
eliminar obstáculos e assegurar uma utilização eficiente<br />
dos recursos disponíveis. Este processo organizado,<br />
permite que os profissionais se concentrem no foco da<br />
sua atividade, aumentando a produção e qualidade dos<br />
cuidados, diminuindo os erros e melhorando os resultados.<br />
Inicialmente, otimizou-se o percurso do doente<br />
cirúrgico desde a primeira consulta pré-cirúrgica até à<br />
consulta de pós-operatório. Mais tarde, através da ferramenta<br />
do Huddle Meeting implementou-se a reunião<br />
semanal dos “irritantes”.<br />
Esta reunião de profissionais que intervêm no processo<br />
cirúrgico tem como objetivo identificar, em equipa,<br />
problemas (irritantes) e soluções, de forma a criar um<br />
ambiente de melhoria contínua através de consenso<br />
de ideias e fluxo de informação (Institute for Healthcare<br />
Improvement, 2016). Realizada em ambiente clínico,<br />
perto do local ou no local de ação (bloco operatório),<br />
esta reunião não dura mais do que uma hora, sendo<br />
este tempo variável de acordo com a quantidade de assuntos<br />
levantados. Os intervenientes participantes são:<br />
enfermeiros, administrativos, assistentes operacionais,<br />
cirurgiões das várias especialidades e anestesiologistas.<br />
Enquadramento e objetivos<br />
Em 2017, o Bloco Operatório Central Pediátrico do<br />
Hospital da Dona Estefânia realizou um projeto de melhoria<br />
contínua, focado no percurso do doente cirúrgico,<br />
reconhecido com o prémio da Associação Portuguesa<br />
de Qualidade, com o 1<strong>º</strong> prémio de Qualidade/Inovação<br />
- APQ 2017, na rubrica projetos de equipa de melhoria.<br />
Este projeto permitiu melhorar vários pontos do processo,<br />
bem como a experiência do doente. Não obstante,<br />
essas melhorias, houve áreas que continuavam<br />
aquém da qualidade pretendida, pelo que a equipa de<br />
enfermagem do BO, decidiu iniciar um novo projeto de<br />
melhoria contínua, em dezembro de 2018, utilizando o<br />
modelo de Huddle Meeting.<br />
Com o Huddle Meeting pretende-se criar um ambiente<br />
de melhoria contínua que proporciona a oportunidade<br />
de melhorar a gestão de qualidade, gestão de segurança,<br />
rever recomendações de boas práticas, monitorizar<br />
a melhoria, permitindo a identificação de outras áreas<br />
passíveis de intervenção e rever os desvios perante os<br />
processos esperados (Institute for Healthcare Improvement,<br />
2016).<br />
Esta segunda fase do projeto de melhoria contínua foi<br />
também reconhecida com a 2ª Menção Honrosa - Healthcare<br />
Excellence, 2019 da APAH.<br />
Metodologia de implementação<br />
Numa fase inicial, e tendo por base o ciclo PDCA<br />
(Fig.1), o enfermeiro chefe da equipa de gestão do bloco<br />
operatório identificou os participantes dinamizadores<br />
do projeto, divulgou o projeto à equipa multidisciplinar<br />
e convidou todos a registar num quadro os problemas<br />
ou situações irritantes que afetam o fluxo do trabalho e<br />
a qualidade dos cuidados ao doente cirúrgico.<br />
Com esta base de trabalho deu-se início ao Huddle<br />
Meeting. O grupo inicial foi constituído pela equipa de<br />
gestão do bloco operatório (enfermeiro chefe e anestesiologista),<br />
dois enfermeiros perioperatórios, um cirurgião<br />
representante da cirurgia pediátrica, dois assistentes<br />
operacionais e um administrativo. Ao longo das semanas<br />
seguintes o número de pessoas foi aumentando passando<br />
para cerca de 17 participantes e que representam<br />
todas as equipas e especialidades cirúrgicas (Fig. 2).<br />
O Huddle Meeting realiza-se em dia e hora fixa (sextasfeiras<br />
às 10h), no bloco operatório, onde os profissionais<br />
discutem, em pé, os vários problemas levantados.<br />
Esta reunião tem como apoio um quadro designado<br />
por “quadro dos irritantes”, onde são colocados post-its<br />
com o registo das ineficiências, problemas e “irritantes”,<br />
sentidos pela equipa e que carecem de uma melhoria.<br />
No quadro são separados os problemas (post-it) cuja<br />
resolução depende da equipa do bloco operatório,<br />
daqueles cuja resolução depende de outros serviços e<br />
intervenientes. Os primeiros são depois separados em<br />
quatro quadrantes de acordo com a classificação de<br />
maior/menor benefício e de maior/menor facilidade de<br />
resolução (análise SWOT), para a sistematização dos<br />
processos (Fig. 3).<br />
São selecionados três problemas que tenham um alto<br />
benefício e baixa dificuldade de resolução e são definidas<br />
medidas de melhoria, responsabilidades, metodologia<br />
de monitorização e indicadores de resultados e de<br />
processos.<br />
A monitorização é realizada pela equipa em tempo real<br />
e de forma transparente (Fig. 4) e o plano de acompanhamento<br />
é do conhecimento de todos os intervenientes<br />
(Fig. 5).<br />
Os resultados são expostos em gráficos e tabelas (Fig.<br />
6) e utilizam-se avatares/figuras para distinguir os profissionais<br />
mais ou menos cumpridores de forma a incentivar<br />
a competitividade positiva, sem expor e sem<br />
culpabilizar (Fig 7).<br />
O recurso a tabelas, quadros e cronogramas são essenciais<br />
para motivação dos profissionais, ao fornecerem<br />
feedback à equipa acerca das melhorias que estão a ser<br />
implementadas, processos que estão a ser monitorizados<br />
e resultados alcançados.<br />
São assim utilizadas várias estratégias de forma a manter<br />
o foco na resolução dos problemas e melhoria contínua,<br />
garantindo o nível de adesão de toda a equipa.<br />
1. Melhorias alcançadas e em curso<br />
Foram identificados vários “irritantes” que espelhavam<br />
ineficiências e cuja melhoria estava ao alcance da inter- }<br />
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“<br />
FOI ATINGIDA UMA MELHORIA<br />
EXTRAORDINÁRIA DE 97%<br />
DOS DOENTES NA MARCAÇÃO<br />
DO LOCAL CIRÚRGICO (FIG. 10).<br />
PARA ASSEGURAR A CONSISTÊNCIA<br />
DESTAS MEDIDAS MANTÉM-SE<br />
O ACOMPANHAMENTO PERIÓDICO<br />
Figura 1: Ciclo PDCA: Plan-Do-Study-Act.<br />
POR ESPECIALIDADE E A DISTINÇÃO<br />
DOS PROFISSIONAIS CUMPRIDORES<br />
NO QUADRO DE AVATARES.<br />
”<br />
Figura 2: O Huddle Meeting.<br />
venção da equipa, sendo que neste artigo destacamos<br />
apenas seis:<br />
• Padrão de higienização da sala de operações;<br />
• Prescrição de anestesia;<br />
• Consentimento informado assinado no dia da cirurgia;<br />
• Marcação da lateralidade no doente;<br />
• Registo do procedimento cirúrgico e codificação<br />
(ICD9) nos doentes urgentes;<br />
• Informação presente no plano operatório.<br />
Padrão de higienização da sala de operações<br />
Verificaram-se algumas falhas no padrão de limpeza das<br />
salas que se atribuiu à pressão sentida pelos profissionais<br />
de limpeza, à necessidade de formação e elevada rotatividade<br />
dos mesmos. Formaram-se equipas fixas de limpeza,<br />
estabeleceram-se tarefas e distribuição de postos<br />
de trabalho por tempo mais alargado, fez-se formação e<br />
criaram-se listas de tarefas para orientação e registo. O<br />
processo foi monitorizado tendo-se verificado a eficácia<br />
das medidas.<br />
Prescrição de anestesia<br />
A falta de prescrição escrita da anestesia, a prescrição<br />
oral, ou a prescrição realizada fora da sala de operações,<br />
com impacto no início dos programas e na segurança da<br />
administração terapêutica, foi um dos “irritantes” considerados<br />
prioritários pela equipa.<br />
Criou-se um impresso de prescrição escrita (o sistema<br />
informático foi considerado pouco adequado), que foi<br />
apresentado à equipa e colocado em local acessível<br />
aos prescritores.<br />
Monitorizou-se a implementação tendo em conta 3 parâmetros:<br />
prescrição escrita; prescrição antes das 8h15; e<br />
prescrição em presença física na sala junto da equipa.<br />
Observaram-se melhorias significativas nos 3 parâmetros<br />
com evidente melhoria na comunicação e na hora<br />
de início das salas operatórias, como se encontra expresso<br />
na figura 8.<br />
Consentimento informado assinado no dia da cirurgia<br />
O elevado número de doentes que chegavam ao bloco<br />
operatório no dia da cirurgia sem o consentimento<br />
informado assinado tornou-se um problema que urgia<br />
melhorar. Era sobretudo necessário aumentar o número<br />
de consentimentos informados assinados na consulta<br />
e estes fossem digitalizados antes da chegada ao<br />
bloco operatório.<br />
Houve intervenção junto dos cirurgiões, dos secretariados<br />
e das equipas de enfermagem dos serviços cirúrgicos<br />
e do bloco operatório, tendo sido possível obter<br />
uma melhoria de 42% neste ponto.<br />
As melhorias estão ainda em progressão, existindo, pontualmente,<br />
algumas situações em que se verifica a inexistência<br />
do consentimento informado ou de atrasos na<br />
digitalização do mesmo.<br />
Marcação de lateralidade no doente<br />
A falta de marcação do local cirúrgico, sobretudo nos<br />
doentes com necessidade de identificação da lateralidade,<br />
acontecia em cerca de 45% das situações.<br />
Como estratégia, foi aplicada de forma rigorosa a circular<br />
normativa, que indicava a retenção do doente na<br />
unidade até à marcação da lateralidade. O impacto desta<br />
medida foi monitorizado durante 6 semanas, verificando-se<br />
o cumprimento por especialidade cirúrgica e<br />
por unidade clínica.<br />
Foi atingida uma melhoria extraordinária de 97% dos<br />
doentes na marcação do local cirúrgico (Fig. 10). Para<br />
assegurar a consistência destas medidas mantém-se o<br />
acompanhamento periódico por especialidade e a distinção<br />
dos profissionais cumpridores no quadro de avatares.<br />
Registo do procedimento cirúrgico e codificação<br />
(ICD9) nos doentes urgentes<br />
A falha sistemática da codificação e registo do procedimento<br />
cirúrgico (ICD9) no SClínico, em cirurgias urgentes,<br />
tem impacto na qualidade dos registos, finan- }<br />
Figura 3: Quadro dos “irritantes”.<br />
Figura 4: Quadro de monitorização.<br />
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Figura 5: Plano de acompanhamento.<br />
Figura 6: Medidas em curso com codificação por cor.<br />
“<br />
OS HUDDLE MEETINGS SÃO<br />
ACIMA DE TUDO UMA FORMA<br />
DE MELHORAR A COMUNICAÇÃO<br />
ENTRE OS PROFISSIONAIS.<br />
Figura 7: Quadro dos avatares.<br />
ciamento da atividade e desperdício de tempo dos assistentes<br />
técnicos.<br />
Através da monitorização dos registos foram identificados<br />
os cirurgiões que não cumpriam, foi feita formação<br />
personalizada e foram informados os responsáveis das<br />
especialidades. Foi, também, divulgado o impresso que<br />
pode ser utilizado em caso de falha do sistema informático.<br />
Com estas medidas verificou-se uma melhoria<br />
ligeira passando a percentagem de procedimentos sem<br />
registo de 29% para 21%,<br />
Informação presente no plano operatório<br />
A omissão frequente de informação imprescindível nos<br />
planos operatórios causava problemas de comunicação<br />
e falhas na articulação entre os profissionais, levando a<br />
atrasos ou conflitos que poderiam pôr em causa a segurança<br />
dos cuidados.<br />
A monitorização permitiu identificar as necessidades de<br />
melhoria de informação nos planos operatórios, com intervenção<br />
específica por especialidade. Numa primeira<br />
fase interveio-se em três especialidades: urologia, cirurgia<br />
geral e otorrinolaringologia.<br />
Verificaram-se melhorias na preparação pré-operatória,<br />
na garantia da disponibilidade de recursos para a cirurgia<br />
e no planeamento dos cuidados perioperatórios (Fig. 12).<br />
Discussão<br />
Os Huddle Meetings são acima de tudo uma forma de melhorar<br />
a comunicação entre os profissionais, contribuindo<br />
para uma cultura de transparência e de não culpabilidade.<br />
Este é um modelo passível de ser replicado noutros blocos<br />
operatórios, onde numa fase inicial serão encontradas<br />
certamente resistências, naturais, como em qualquer<br />
processo de mudança. Contudo, os resultados positivos<br />
observados, tornam evidente de que o Huddle Meeting,<br />
melhora o fluxo de informação e possibilita que vários<br />
intervenientes comuniquem na perspetiva de melhorar<br />
o ambiente de trabalho e a experiência do doente.<br />
A cultura de melhoria contínua tem como um dos maiores<br />
desafios a sua sustentabilidade, e o Huddle Meeting,<br />
revelou-se uma forma de os profissionais manterem um<br />
olhar atento e crítico sobre os processos.<br />
Apesar dos importantes benefícios conseguidos tanto a<br />
nível organizacional como a nível da qualidade do serviço<br />
para com os utentes e famílias, é importante ter em<br />
conta os constrangimentos e obstáculos que são necessários<br />
ultrapassar para garantir o sucesso desta metodologia,<br />
dos quais destacamos:<br />
• A disponibilidade dos profissionais para as reuniões<br />
semanais;<br />
”<br />
• A manutenção dos níveis de adesão da equipa ao processo;<br />
• A consistência, ao longo do tempo, das melhorias conseguidas.<br />
Estes constrangimentos têm sido mitigados através da<br />
divulgação de atas e resumos, que são partilhados com<br />
os profissionais que não puderam estar presentes na<br />
reunião, e com a divulgação dos resultados, que contribuem<br />
para que a equipa se mantenha motivada.<br />
De realçar que, os registos e monitorizações em tempo<br />
real, que são parte do ciclo de PDCA, são também, por<br />
vezes, um desafio, por serem realizados em simultâneo<br />
com os cuidados. No entanto, apresentam-se essenciais<br />
na medida em que contribuem para a avaliação do impacto<br />
imediato das melhorias introduzidas e para ajustar<br />
as perceções individuais e da equipa à realidade.<br />
Conclusões<br />
Neste projeto foram utilizadas ferramentas simples, inovadoras<br />
e sem custos associados. A aplicação persistente<br />
e sustentada no tempo, permitiram criar uma cultura<br />
no serviço, focada na resolução de problemas que dependem<br />
da equipa, sempre com o intuito de melhorar o<br />
ambiente de trabalho e a experiência do doente.<br />
Os resultados desta iniciativa tornam explícita a melho- }<br />
Figura 8: Prescrição do primeiro tempo de anestesia.<br />
Figura 9: Consentimento informado.<br />
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Figura 10: Marcação das lateralidades.<br />
“<br />
COM O LEAN E O HUDDLE MEETING,<br />
CRIARAM-SE OPORTUNIDADES<br />
DE MELHORIA DOS PROCESSOS<br />
DE TRABALHO, OBSERVA-SE<br />
MAIOR SATISFAÇÃO.<br />
”<br />
Figura 11: Sem registo dos códigos dos procedimentos.<br />
ria dos processos, associada a um fluxo de informação<br />
mais eficaz e a um incentivo à competitividade positiva.<br />
As frustrações diárias e irritações são transformadas em<br />
atitudes criativas e construtivas. O olhar entre pares é<br />
diferente. A equipa multiprofissional comunica e procura<br />
soluções em vez de culpados. Há um maior conhecimento<br />
do contributo de cada um para o resultado final<br />
e das dificuldades que por vezes se impõem.<br />
Com o Lean e o Huddle Meeting, criaram-se oportunidades<br />
de melhoria dos processos de trabalho, observase<br />
maior satisfação, cooperação, melhores relações interpessoais,<br />
mas sobretudo criou-se um ambiente mais<br />
seguro e melhores cuidados para o doente pediátrico<br />
e família. Ã<br />
Figura 12: Informação presente no plano operatório.<br />
• Batalden PB, Davidoff F. What is “quality improvement” and how can it transform<br />
healthcare? Qual Saf Health Care 2007; 16:2–3.<br />
• Feldman MS. A performance perspective on stability and change in organizational<br />
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