Editorial | Eduardo Sá Ferreira
Assembleia da República | O impacto da pandemia na democracia
Pandemia nos Açores | A resposta da Região Autónoma dos Açores
Médicos Dentistas | Médicos dentistas com competências de gestão
Assistentes Sociais | A intervenção do serviço social em contexto hospitalar: visão e desafios no contexto atual
Técnicos auxiliares de saúde | Valorizar a formação e a progressão das categorias
Biólogos | Hora do reconhecimento de todos os profissionais de saúde
A realidade no Hospital de Ovar pós cerca sanitária ao concelho
Respostas sociais integradas em tempo de pandemia
Saúde Militar | O apoio militar de emergência Investigação e cooperação no espaço lusófono e a pandemia
Homenagem a Eduardo Sá Ferreira, um tímido atuante por António Correia de Campos
Homenagem a Eduardo Sá Ferreira, homem amável, perspicaz e resiliente por José Menezes Correia
Homenagem a Eduardo Sá Ferreira, uma vida plena
Homenagem a Eduardo Sá Ferreira, pessoa afável e gestor competente por António Marques de Lima
Homenagem a Eduardo Sá Ferreira: sabendo o que sei hoje, escolhia de novo ser Administrador Hospitalar
Saúde pública e conhecimento: um elenco fundamental no futuro da governação clínica
Risco de Covid-19 em profissionais de saúde Direito Biomédico Reflexões éticas e normativas a propósito do artigo “direitos humanos e mortes evitáveis”
Diplomacia da saúde na era Covid-19 Doenças crónicas e Covid-19 Covid-19 e doenças cérebro cardiovasculares
Prémio Healthcare Excelence Prémio vai reconhecer as melhores práticas no combate à Pandemia
Prémio Healthcare Excelence Huddle Meeting: a sustentabilidade da melhoria contínua
JULHO AGOSTO SETEMBRO 2020
Edição Trimestral
Nº 22
GESTÃO
HOSPITALAR
DISTRIBUIÇÃO GRATUITA aSSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE ADMINISTRADORES HOSPITALARES
Eduardo Sá Ferreira
1937-2020
GH OPhghgh
GESTÃO
HOSPITALAR
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GH SUMÁRIO
JULHO AGOSTO SETEMBRO 2020
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Editorial
Eduardo Sá Ferreira
Assembleia da República
O impacto da pandemia na democracia
Pandemia nos Açores
A resposta da Região Autónoma dos Açores
Visão I Médicos Dentistas
Médicos dentistas com competências de gestão
Visão I Assistentes Sociais
A intervenção do serviço social em contexto hospitalar:
visão e desafios no contexto atual
Visão I Técnicos auxiliares de saúde
Valorizar a formação e a progressão das categorias
Visão I Biólogos
Hora do reconhecimento de todos os profissionais de saúde
Opinião
A realidade no Hospital de Ovar pós cerca sanitária ao concelho
Respostas Integradas
Respostas sociais integradas em tempo de pandemia
Saúde Militar
O apoio militar de emergência
Investigação
Investigação e cooperação no espaço lusófono e a pandemia
Homenagem
Eduardo Sá Ferreira, um tímido atuante
António Correia de Campos
Homenagem
Eduardo Sá Ferreira, homem amável, perspicaz e resiliente
José Menezes Correia
Homenagem
Eduardo Sá Ferreira, uma vida plena
Homenagem
Eduardo Sá Ferreira, pessoa afável e gestor competente
António Marques de Lima
Homenagem
Eduardo Sá Ferreira: sabendo o que sei hoje, escolhia de novo
ser Administrador Hospitalar
Saúde pública
Saúde pública e conhecimento: um elenco fundamental no futuro
da governação clínica
Espaço ENSP
Risco de Covid-19 em profissionais de saúde
Direito Biomédico
Reflexões éticas e normativas a propósito do artigo “direitos
humanos e mortes evitáveis”
Diplomacia em saúde
Diplomacia da saúde na era Covid-19
Doenças crónicas e Covid-19
Covid-19 e doenças cérebro cardiovasculares
Iniciativa APAH I Prémio Healthcare Excelence
Prémio vai reconhecer as melhores práticas no combate à Pandemia
Iniciativa APAH I Prémio Healthcare Excelence
Huddle Meeting: a sustentabilidade da melhoria contínua
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GH editorial
Alexandre Lourenço
Presidente da APAH
Eduardo Sá Ferreira
Conheci o Dr. Eduardo Sá Ferreira numa
edição da Gestão Hospitalar da qual fazia
capa. Passei a conhecer a sua generosidade
durante este meu trajeto como
Presidente da Associação Portuguesa
de Administradores Hospitalares (APAH). Apesar
das suas limitações físicas, sempre demonstrou uma disponibilidade
ímpar para a sua Associação. Não podendo
deslocar-se a Lisboa, tive a honra de receber em
seu nome a Medalha de Mérito de Serviços de Saúde
Grau Ouro.
Foi mestre dos mestres dos meus mestres. Pouco
posso acrescentar a alguém que se formou em Rennes
com distinção, nos seus 30 anos assumiu a administração
do Hospital de São João, fundou a APAH
e foi membro da Direção da European Association
of Hospital Managers, organizou o quarto congresso
desta associação em Espinho, foi sub-Director Geral
do Departamento de Gestão Financeira do Ministério
da Saúde, etc, etc. Ainda teve disponibilidade para
dedicar mais de dez anos da sua vida profissional ao
desenvolvimento dos serviços de saúde em São Tomé
e Príncipe: no Hospital Escolar Dr. Agostinho Neto e,
posteriormente, no Centro Hospitalar de São Tomé
e Príncipe.
Faleceu no seu Hospital: O Hospital de São João. Em
sua homenagem dedicamos esta edição da GH, reproduzindo
a entrevista que deu à jornalista Carla Pedro
para o livro “50 Anos em 20 Olhares, O percurso
da Administração Hospitalar em Portugal”. A ler com
muita atenção. António Correia de Campos, José António
Menezes Correia e António Marques de Lima
complementam de forma valorosa esta homenagem
ao fundador e primeiro Presidente da APAH. Numa
próxima edição publicaremos vários pequenos episódios
que decidiu destacar nos últimos meses. “Sabendo
o que sei hoje, escolhia de novo ser administrador
hospitalar” disse. Da memória e ensinamentos de Sá
Ferreira, voltamos à tremenda realidade da Covid-19.
No passado mês, em parceria com a Ordem dos
Médicos e com o apoio da Roche, lançámos o Movimento
Saúde em Dia. Um movimento que pretende
alertar para a segurança no acesso a serviços de saúde
e para a necessidade de assegurar o acesso a cuidados
de saúde. Mais informação em www.saudeemdia.pt.
Sobre a pandemia, contamos com a participação da
Deputada Maria Antónia Almeida Santos (Presidente
da Comissão Parlamentar de Saúde) e Teresa Luciano
(Secretária Regional de Saúde dos Açores). Luís Miguel
Ferreira fala do Hospital de Ovar no Pós-pandemia.
O Tenente General Joaquim Formeiro Monteiro
fala-nos do papel das Forças Armadas no contexto
de emergência. Francisco Pavão aborda a diplomacia
da saúde em contexto de pandemia e Filomeno
Fortes fala-nos da relevância da investigação e cooperação
no espaço lusófono.
Problema presente, Lúcia Cardoso apela à intervenção
sobre as causas sociais da doença de forma a garantir
a continuidade de cuidados. Na mesma linha, Eugénio
Fonseca da Caritas fala-nos do imperativo em cuidar
através de respostas integradas.
Na sequência da edição anterior, damos espaço aos
representantes das várias profissões de saúde para exprimirem
a sua visão sobre a evolução dos últimos meses.
Desta feita contamos com os contributos das Ordens
dos Médicos Dentistas e Biólogos, Associação de
Profissionais de Serviço Social e Associação Portuguesa
de Técnicos Auxiliares de Saúde. Em complemento,
no espaço ENSP, António Sousa-Uva e colegas
dissertam sobre o risco de Covid-19 em profissionais
de saúde.
Esta é a sua Gestão Hospitalar de sempre. A acompanhar
os tempos, dedicada a Eduardo Sá Ferreira, um
administrador hospitalar maior. Ã
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GH Assembleia da República
O IMPACTO DA PANDEMIA
NA DEMOCRACIA
Maria Antónia de Almeida Santos
Presidente da CP Saúde
As pandemias, ao longo da história, têm
tido inegavelmente um denominador
comum: o facto de serem todas elas
algo que surge de uma forma abrupta,
pela perturbação inesperada que traz
à vida em si mesma e pelas alterações a que obriga a
nível dos comportamentos e das formas de estar quotidianas.
A atual pandemia radicalizou, porém, esta noção
de “abrupto”. A essa radicalização não pode ser alheia a
assimetria, na corrente pandemia, na reação (em todas
as valências da palavra) dos vários países, comunidades
e agregados políticos que constituem o conjunto das nações
do mundo.
Chega a ser até paradoxal. Dada a facilidade comunicacional
ao dispor de todos nós atualmente, como foi possível
que o vírus entrasse em modo pandémico de forma
tão rápida? Desde já, pela inabilidade e pela incapacidade
de articulação institucional à escala global. Habituado às
progressivas descobertas científicas e médicas e até a uma
confiança amplamente alicerçada na conquista tecnológica,
o mundo viu-se, de forma súbita, confrontado com
algo potencialmente letal, mesmo tendo tido, na maioria
dos casos (sobretudo no ocidente) antecipadamente notícia
do mesmo. Hoje, para perceber a noção de “abrupto”
aplicada à pandemia, é preciso acentuar-lhe não só a
dimensão do “desconhecido” do ponto de vista científico
e médico-terapêutico, mas também a de algo que foi desvalorizado
por incapacidade de coordenação global. A
facilidade da mobilidade global, a par da vulnerabilidade
social, acabou por revelar-se o maior móbil inicial da transmissão
do vírus.
A produção de conhecimento acerca da pandemia tem
sido abundante e transversal a todas as áreas. Esta é a
pandemia em que a humanidade se encontra num estádio,
mais do que nunca, propício à reflexão. Nessa
mesma reflexão, há dois conceitos que se destacam: o
de “crise” e o de “oportunidade”. Não como sinónimos
ou como antónimos, ou sequer polos, mas mais como
pontos sequenciais. O primeiro como ponto de partida,
pela descrição que faz da situação e daquilo que lhe deu
origem. O segundo, pelas propostas orientadas sobretudo
para a mudança e para um ponto de chegada em que
estaremos não só melhor, do ponto de vista da saúde
e da vida, mas melhores enquanto civilização, enquanto
seres humanos e enquanto sociedade democrática.
O primeiro passo da ciência em relação ao vírus que enfrentamos
foi a sua identificação e catalogação. Covid-19
foi o nome atribuído pela Organização Mundial da Saúde
à doença provocada pelo novo coronavírus SARS-
-CoV-2, passível de causar uma infeção respiratória grave,
como a pneumonia. Foi identificado pela primeira vez em
humanos, no final de 2019. Muito mais haverá para dizer,
do ponto de vista virológico, clínico, científico e não só.
Mas gostaria de realçar a expressão “catástrofe natural”,
que ouvi pela primeira vez aplicada à Covid-19, ao ex-
-presidente da Federal Reserve norte-americana que liderou
antes e depois da crise financeira de 2008, em declarações
à CNBC, em março do corrente ano. Mais recentemente,
também o virologista alemão Christian Drosten,
cientista de referência e assessor do governo alemão para
os temas da Covid-19, se socorreu da mesma expressão,
numa entrevista para a Cimeira Mundial da Saúde (CMS).
Considero a expressão particularmente bem-sucedida
por mais do que um motivo. Primeiro, porque ao referirse
a uma “catástrofe”, projeta a importância da resposta
sistémica e da responsabilidade conjunta que lhe é inerente.
Segundo, porque enfatiza o facto óbvio de os vírus
existirem, de facto, na natureza e de serem, também eles,
um circunstancialismo da própria vida. Em suma, anula a
vontade de culpar que tem sido manifestada por muitos
responsáveis políticos nesta questão.
Mas não só. Entender a Covid-19 como uma catástrofe
natural é também realçar o seu caráter de processo disruptivo
entre o ambiente natural e o sistema social. Obviamente,
não é o mesmo que as catástrofes naturais que
há séculos assolam o planeta, como os sismos, a erupção
de vulcões, furacões ou cheias. Um pouco à semelhança
das alterações climáticas, sendo distinta de todas as
primeiras, partilha com elas um denominador comum: o
facto de verem a sua intensidade e frequência ampliadas
pela intervenção humana. O conhecimento sobre o vírus
e a sua origem que a comunidade científica tem até
agora, corrobora este facto. No caso em concreto da Covid-19,
essa intervenção humana deu-se na cadeia ambiental,
com as decorrentes perturbações na cadeia alimentar
e na qualidade da mesma.
Há também outro facto pertinente (também ele com uma
particularidade) ao reconhecimento do caráter de catástrofe
natural da Covid-19. É certo que nesta pandemia
(tal como em outras), a vulnerabilidade das diferentes
sociedades depende do grau de desenvolvimento das
mesmas, sobretudo a nível das respostas estruturais profiláticas
e da terapêutica. Tivemos um ótimo exemplo
disso a propósito da aquisição de materiais de proteção
individual em contexto global. No entanto, a invulnerabilidade
já não é uma certeza nos países desenvolvidos e
caracterizados por elevada riqueza e elevada capacidade
tecnológica e financeira.
Não era possível tentar perceber os efeitos da pandemia
sem esta breve introdução. Importante, também, é delinear
minimamente o conceito de saúde a que se recorre
e qual a relação do mesmo com a democracia. Não
sendo a intenção deste artigo, de todo, uma definição
conceptual, opto por realçar aquilo que nesta matéria a
pandemia veio evidenciar. Logo à partida, enfatizou que o
universo da saúde é bem mais do que a mera inexistência
de uma doença. É o resultado de uma conjugação de
fatores que condiciona o nosso bem-estar, em toda a sua
integralidade. Tivemos uma perceção nítida disto mesmo,
no confinamento e a propósito das perturbações que
este trouxe a nível da economia e a nível familiar e psico-comportamental.
Se maiores índices de pobreza, desigualdade,
desemprego e desânimo geral vão originar estados
de saúde da população que se vão revelar a curto
ou médio prazo e que vão ser prejudiciais, as perspetivas
de saúde pública não podem permanecer alheias a esse
facto e têm de incorporar essa mesma realidade na delineação
do conceito de saúde.
Quando falamos da relação entre saúde e democracia,
é impossível desvalorizar o conceito de sustentabilidade
democrática. Quando falamos de sustentabilidade, pensamos
em sustentabilidade económica, social ou ambiental
e sempre do ponto de vista que implica a gestão de um
ou mais recursos que temos por finitos. No entanto, raramente
falamos na sustentabilidade democrática de uma
determinada sociedade. Talvez isso se deva à dificuldade
em mensurar aquilo que seria uma “sustentabilidade democrática”.
Como fazê-lo, então?
Uma das formas inequívocas de fazê-lo é observar a relação
entre a democracia e a saúde pública. A história ensina-nos
que é a democracia o regime que consagra o direito
à saúde numa Constituição, o único que verdadeiramente
a concretiza como fundamental, se pensarmos
que sem saúde não se vive ou, vive-se mal. Temos como
exemplo a criação do nosso Serviço Nacional de Saúde
(SNS) ou até o Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro,
criado na década de oitenta do século passado, em pleno
processo de redemocratização do Brasil. O nosso SNS
permitiu-nos que os resultados em saúde em Portugal se
comparem, em todos os índices, aos dos países mais desenvolvidos.
É inegável a conclusão de que as instituições
e as práticas democráticas influenciam o desenvolvimento
humano em várias valências, incluindo o bem-estar e }
6 7
GH Assembleia da República
“
É PRECISO NÃO ABDICAR
DA REFLEXÃO EM TORNO
DA QUESTÃO DO INVESTIMENTO
EM SAÚDE. É PRECISO,
MAIS DO QUE NUNCA,
DAR SAÚDE À DEMOCRACIA.
”
a saúde pública. O primeiro impacto da pandemia na democracia
deu-se no aspeto formal, desde logo nos parlamentos.
Aos parlamentos cabia (e coube), enquanto instituição
democrática, representar os cidadãos durante um
ciclo político. Essas funções são naturalmente mantidas durante
uma crise. No entanto, os parlamentos, em diálogo
com as instituições governativas e executivas, tiveram de
assegurar a harmonia entre as responsabilidades constitucionais
em que se insere a garantia da continuidade de uma
governação democrática e os poderes especiais conferidos
para o combate ao vírus. Esse equilíbrio conseguiu-se
pela monitorização e pela adequação de legislação.
Por exemplo: Portugal, em pleno combate à pandemia,
viu-se confrontado com a necessidade de adquirir equipamentos
(de proteção individual e não só) num mercado
global selvático, assoberbado pela emergência, pela
escassez e pela limitação dos fornecedores. Daí decorreu
a exigência de simplificação dos processos de aquisição e
de flexibilização da contratação pública. Desse circunstancialismo
(entre outros), decorreu também a necessidade
de harmonizar os pressupostos constitucionais que salvaguardam
a transparência, com o imperativo de salvar vidas
em tempo útil. Foi criado um regime excecional para
uma situação absolutamente excecional sem abdicar nunca
do escrutínio e da publicação da contratação.
Um segundo exemplo é a questão das liberdades e garantias
em contexto epidémico/pandémico. Nas questões
da saúde pública e no contexto desta crise, as nossas instituições
parlamentares optaram pelo princípio básico da
gradação e do equilíbrio entre a liberdade e a segurança,
como algo que deve ser observado sempre. Poderia alguma
vez, a título de exemplo, a georreferenciação ser
utilizada como forma de controlo dos infetados? E em
que moldes? E quanto ao tratamento de dados, quem
monitoriza a anonimização? São dois exemplos práticos,
pela positiva e circunscritos a Portugal. Em Portugal, as
instituições democráticas, onde se inclui a Comissão Parlamentar
de Saúde, não se demitiram da sua função durante
a pandemia, acreditando sempre que é a vida quem
tem de presidir às decisões políticas.
E o resto do mundo? A democracia tem enfrentado nos
últimos tempos algo que se assemelha a uma recessão, do
ponto de vista dos valores que a suportam. Trump e Bolsonaro
são a materialização (considerada em tempos apenas
um risco) do populismo. Será possível que esta recessão
seja potenciada pela corrente pandemia, com o risco de
que se torne uma grande “depressão democrática”, com o
autoritarismo a espalhar-se pelo mundo, por contaminação?
Para já, o autoritarismo tem sido menos efetivo no que
respeita à implementação de medidas profiláticas, nomeadamente
na redução da mobilidade. A transparência,
alicerçada na cooperação multigovernamental e na partilha
multilateral de dados tem sido mais eficaz na construção
de uma cadeia de confiança segura e mais capaz
de combater as cadeias de transmissão. Falta perceber o
impacto nas eleições, de uma forma geral. A instrumentalização
da pandemia, por parte de movimentos populistas,
terá custos para a democracia. Trump prepara-se já,
por exemplo, para usar a pandemia como desculpa para
contestar resultados eleitorais.
Para caracterizar o momento que estamos a atravessar,
temos de juntar ao “abrupto”, à “crise” e à “oportunidade”,
mais um conceito-chave - o do “imponderável”. Mas
nunca de uma forma derrotista e sempre com esperança.
Para tal, tenho de reforçar que é preciso não abdicar
da reflexão em torno da questão do investimento em
saúde. É preciso, mais do que nunca, dar saúde à democracia.
Do ponto de vista das políticas de saúde, a discussão
dicotómica entre custo ou investimento vinha paulatinamente
perdendo o seu espaço, reduzindo-se a um
mero confronto retórico. Entre os mais diversos agentes
do setor e não só, era já aceite de forma quase unânime
que o investimento em saúde se traduz em múltiplas dimensões
sociais, culturais, laborais e com isso igualmente
económicas e financeiras. De algum modo, o foco da preocupação
era mais o da sustentabilidade dos sistemas, debatendo
o impacto dos cuidados de saúde no absentismo
e na produtividade, por exemplo.
Neste aspeto, a pandemia (também aqui) tem servido como
wake up call. É que hoje é por de mais evidente que o
investimento nos sistemas de saúde delineado com base
científica e responsável não traz apenas sustentabilidade
aos sistemas - traz sustentabilidade também à vida humana
e à sua sobrevivência no planeta. E ao fazê-lo, traz também
mais sustentabilidade à democracia. Ã
8
GH Pandemia nos Açores
A RESPOSTA DA REGIÃO
AUTÓNOMA DOS AÇORES
Teresa Machado Luciano
Secretária Regional de Saúde
O
mundo mudou nos primeiros meses
de 2020. Governos, agentes económicos,
sistemas e profissionais de saúde e
de proteção civil e toda a população viram-se
confrontados com uma emergência
de saúde pública global que pôs à prova todas as
formas de organização e de vida em comunidade. A este
coronavírus chamaram SARS-CoV-2.
A ameaça de sobrecarga e potencial colapso dos sistemas
e serviços de saúde, resultante de um contágio generalizado,
adquire severos contornos num arquipélago composto
por nove ilhas, três delas com hospital. Por isso, o
Governo dos Açores manteve-se atento e, quando o
momento chegou, respondeu de forma assertiva.
O objetivo foi, desde o primeiro momento, atrasar a chegada
do surto à Região.
Considerando a data de eventos chave, é possível ter uma
visão mais alargada da posição da Região na comparação
com o plano internacional (Figura 1).
Potenciar fronteiras
A evolução da pandemia determinou a tomada de um
conjunto de medidas de carácter extraordinário em tempos
de paz, algumas com impacto nos direitos, liberdades
e garantias individuais. Durante dois meses, foram impostas
severas restrições à mobilidade dos cidadãos, como
forma de travar a propagação do vírus. A realidade arquipelágica
constituiu-se, assim, em oportunidade para conter
a pandemia.
O escalonamento dos estados de prontidão previstos no
Regime Jurídico do Sistema de Proteção Civil da Região
Autónoma dos Açores permitiu adequar a resposta em
função da severidade do quadro epidemiológico para cada
uma das nove ilhas, adotando medidas objetivas e
adaptadas a cada realidade. Foram determinados cordões
sanitários em todos os concelhos de São Miguel, ilha mais
afetada pela pandemia.
Dando nota da preocupação com a exposição ao exterior,
designadamente através do desembarque de passageiros
na Região, foi suspensa a autorização de atracagem de
navios de cruzeiro e iates nos portos e marinas dos Açores.
Houve também uma graduação crescente das medidas
que incidiram sobre a atividade da companhia SATA Air
Açores, numa primeira fase através da concentração da
sua capacidade operacional nos aeroportos de São Miguel
e Terceira, passando à suspensão parcial em função
da situação epidemiológica vivida em determinadas ilhas e
culminando com a suspensão integral da atividade.
No plano sanitário, foi determinado, primeiro, o confinamento
obrigatório de todos os passageiros desembarcados
nos Açores em unidade hoteleira, por 14 dias, medida
esta que vigorou até 17 de maio, dia em que foi anunciada
a decisão do Tribunal Judicial de Ponta Delgada relativamente
a uma providência de habeas corpus aí intentada.
A partir de 17 de maio, por forma a conter o surto pandémico
na Região, foi determinado que os passageiros teriam
de realizar teste de despiste ao SARS-CoV-2 e quarentena
durante 14 dias.
Posteriormente, em 28 de maio, determinou-se que os
passageiros que chegassem do exterior à Região deixariam
de estar sujeitos a isolamento profilático, mantendo-
-se a necessidade de teste negativo feito antes da viagem
ou à chegada aos Açores.
Num primeiro momento, todos os passageiros desembarcados
na Região estavam obrigados a realizar dois novos
testes, no 5.º e no 13.º dia a contar da data de realização
do primeiro teste de despiste ao SARS-CoV-2. Neste
Figura 1
momento, vigora a realização de um segundo teste.
Preparar para a pandemia
Os responsáveis políticos e as autoridades de saúde regionais
mantiveram-se atentos desde o surgimento dos primeiros
casos de pneumonia em Wuhan, no início de dezembro.
A 16 de janeiro, a Direção Regional da Saúde emitiu as primeiras
orientações para os viajantes que se dirigiam às regiões
da China afetadas. Essas orientações foram sendo
atualizadas, à medida que o surto foi evoluindo.
No dia 26 de janeiro de 2020, quando surgiu o primeiro
caso suspeito em Portugal, já o Serviço Regional de Saúde
e o Serviço Regional de Proteção Civil e Bombeiros dos
Açores estavam a preparar a sua resposta, em plena articulação,
beneficiando do facto de estarem sob tutela comum,
no âmbito da Secretaria Regional da Saúde.
A estratégia foi delineada, assentando em duas pedras basilares:
aproveitamento das fronteiras naturais da Região
e alargamento do rastreio e do diagnóstico de Covid-19.
A preparação da Região iniciou-se com a criação de um
Grupo Técnico de Coordenação, de natureza multidisciplinar,
e de uma Sala de Crise, vitais para a coordenação
de esforços e para o eficaz alinhamento das ações.
Atenta a importância da comunicação do risco em saúde
pública, foi delineado o plano de comunicação.
Foram emitidas orientações para as unidades de saúde e
para as respostas sociais, relativamente aos procedimentos
a adotar em caso suspeito de infeção e à atualização dos
planos de contingência, bem como para sectores estratégicos,
como o portuário, o aeroportuário e o hoteleiro,
e para a generalidade dos cidadãos.
A pandemia determinou a mobilização de um avultado, mas
necessário, investimento financeiro, tanto ao nível da infraestrutura
existente, como no reforço dos recursos humanos
e na aquisição de equipamentos e dispositivos clínicos com
vista a uma resposta adequada a esta crise sanitária.
O estado de relativa impreparação mundial para uma crise
de saúde pública global desta dimensão, designadamente
ao nível da disponibilidade de equipamentos de proteção
individual, ventiladores e outros consumíveis clínicos, associada
à inexistência de uma abordagem farmacológica eficaz,
exerceu uma profunda pressão sobre a gestão.
Num mercado global que registava intensa procura, o
Serviço Regional de Saúde organizou-se para o levantamento
centralizado de recursos e necessidades em matéria
de internamento, ventiladores, capacidade laboratorial,
recursos humanos e equipamentos de proteção individual,
respondendo com um trabalho cooperativo entre
todas as unidades de saúde para a sua aquisição e gestão. }
10 11
GH Pandemia nos Açores
“
PROCURANDO ADIAR A ENTRADA
DO CORONAVÍRUS NA REGIÃO,
ALARGOU-SE O CONCEITO
DE CASO SUSPEITO,
ABRANGENDO INDIVÍDUOS
ORIUNDOS DE TODAS AS ÁREAS
COM TRANSMISSÃO LOCAL.
Nas nove ilhas, desencadeou-se um intenso programa de
formação de profissionais de saúde e bombeiros, responsáveis
pelo transporte de doentes, para a correta utilização
dos equipamentos de proteção individual.
Procurando adiar a entrada do coronavírus na Região,
alargou-se o conceito de caso suspeito, abrangendo indivíduos
oriundos de todas as áreas com transmissão local.
Introduziu-se, no final de fevereiro, procedimentos para a
investigação epidemiológica dos viajantes que desembarcavam
nos portos e aeroportos da Região e, em colaboração
com a Universidade dos Açores, iniciou-se a vigilância
de alunos, investigadores e docentes em programas
de mobilidade.
Foram restringidas as visitas nas unidades de saúde e estruturas
residenciais para idosos.
Mais tarde, a rede de laboratórios da Região foi alargada,
através de convenção, incentivando os passageiros que
embarcam em território continental português e na Região
Autónoma da Madeira a chegar aos Açores com o seu
teste à infeção por SARS-CoV-2 já realizado e negativo.
Em meados de setembro, contando os mais de 125 mil
testes realizados nos Açores e as 33 mil análises efetuadas
ao abrigo da convenção estabelecida com laboratórios
no exterior, tínhamos um rácio de 645 testes por cada
mil residentes, quase o dobro da Região Autónoma da
Madeira e quase o triplo de Portugal Continental.
Através da convenção com laboratórios no exterior, foi
possível detetar, até 15 de setembro, mais de seis dezenas
de casos positivos antes do embarque, contribuindo
decisivamente para a proteção da saúde de residentes e
visitantes dos Açores.
Neste momento, os viajantes dispõem da aplicação web
My Safe Azores, disponível em https://mysafeazores.com/,
que permite concretizar, numa só interação e antecipadamente,
todos os passos antes da chegada à Região.
Também o esclarecimento e o apoio ao cidadão foram definidos
como eixos centrais na resposta, tendo sido criada,
no dia do surgimento do primeiro caso positivo na Região,
a Linha Açores de Esclarecimento Não Médico Covid-19
- 800 29 29 29, para esclarecimento de dúvidas relativas a
emprego, segurança social e apoios sociais e económicos.
Foi ainda criada uma equipa para esclarecimento de dúvidas
através de correio eletrónico (esclarecimentocovid19@azores.gov.pt),
bem como um portal para agregação
de toda a informação (https://destinoseguro.azores.gov.pt/).
Retomar e recuperar a atividade assistencial
A par da resposta à crise sanitária, foi necessário preparar
a retoma, de forma estruturada e em articulação com
todos os agentes e sectores da atividade.
A 22 de maio, o Governo dos Açores abriu a Agenda para
o Relançamento Social e Económico à participação dos
parceiros sociais, ação vital para um regresso ordenado à
nova realidade, mas também para salvaguardar uma retoma
económica consistente, procurando mitigar o risco do
surgimento de uma segunda vaga pandémica.
No âmbito do Serviço Regional de Saúde, foi solicitada às
Unidades de Saúde de Ilha e aos Hospitais a elaboração
de um plano de recuperação, integrando a atividade produzida,
estimativas da produção a realizar até ao final do
ano e o cronograma da retoma da atividade assistencial,
de acordo com as especificidades de cada unidade de
saúde e da comunidade que esta serve.
Foram determinados como eixos da recuperação da atividade
assistencial o reforço da capacidade administrativa
e organizacional, a identificação e a resposta às situações
prioritárias, a promoção do acesso aos cuidados de saúde,
a garantia da integralidade de cuidados e a coordenação
e integração de cuidados.
Para garantir uma resposta adequada às necessidades
emergentes, quer ao nível da infraestrutura de cuidados
à população infetada, quer ao nível da estrutura de saúde
pública, foi necessário alterar o padrão de resposta dos
serviços de saúde.
Obedecendo ao imperativo de garantir a segurança dos
utentes e adaptando-se às circunstâncias, mais de 40%
das consultas dos cuidados de saúde primários realizam-
-se agora por via indireta, isto é, seja por telefone, correio
eletrónico ou com recurso a outras tecnologias.
O Serviço Regional de Saúde garantiu, nos últimos meses,
todas as cirurgias urgentes e inadiáveis. E, desde maio, temos
assistido a um movimento seguro de retoma nos
blocos operatórios dos nossos hospitais.
O rastreio das doenças oncológicas, que esteve suspenso
durante três meses, já regressou à normalidade, ainda que
obrigando à mobilização de recursos adicionais.
A recuperação da atividade assistencial cumpre-se, deste
modo, de forma paulatina, mas segura, como exige a proteção
da saúde, em todas as suas vertentes.
Enfrentar a segunda vaga
O Serviço Regional de Saúde e os seus profissionais enfrentam
agora o desafio maior da recuperação da atividade
assistencial, num contexto que se adivinha particularmente
complexo, pela proximidade da época gripal e
pelos prenúncios e riscos de uma segunda vaga, a nível
global, de Covid-19.
Dentro em breve, teremos vários vírus respiratórios em
circulação, obrigando a maior controlo epidemiológico e
ao reforço das medidas de segurança preconizadas nos
planos de contingência das unidades de saúde.
Neste contexto, o objetivo será proteger, sobretudo, as
camadas mais vulneráveis da população e defender a capacidade
do Serviço Regional de Saúde.
Para fortalecer a resposta, foi aprovado um reforço financeiro
para as nossas unidades de saúde e hospitais, elevando
o orçamento da Saúde para 357 milhões de euros
e o plano de investimentos anual para 60 milhões de
euros, valores históricos.
O Governo dos Açores desenvolve agora esforços para antecipar
e alargar a vacinação contra a gripe nos grupos vulneráveis,
em particular os indivíduos com mais de 65 anos.
Aos nossos profissionais exigimos agora mais do que nunca.
Mas estamos mais preparados, em instalações, equipamentos
e, sobretudo, em conhecimento e competências.
Avaliar esforços
A luta à escala global contra um vírus desconhecido para
a humanidade obrigou à tomada de medidas de natureza
absolutamente excecional, com o intuito último de salvar vidas
e evitar o colapso dos sistemas e serviços de saúde. Os
custos humanos, sociais, de saúde e económicos que dessa
luta resultam só poderão ser estimados no longo prazo.
A Região Autónoma dos Açores implementou medidas
assertivas, mas eficazes, para prevenção e controlo da disseminação
da doença, tanto no que à Saúde Pública concerne,
como nos restantes sectores de atividade, tendo
em consideração a transversalidade da crise pandémica.
Os últimos meses foram árduos para as organizações públicas,
para as empresas, para quem teve de tomar decisões
em contexto de incerteza, para os profissionais da
saúde e da proteção civil e para as forças de segurança,
na linha da frente deste combate. E, sobretudo, para cada
um dos Açorianos, das nossas nove ilhas.
Mas o Serviço Regional de Saúde e os seus profissionais
responderam à chamada com escrupuloso sentido do dever,
plena dedicação ao serviço público e o conhecimento
e a competência que lhes são reconhecidos.
Fizemos o que dita a ciência, num contexto em que o conhecimento
se constrói dia a dia. E será a ciência que, a longo
prazo, avaliará as medidas implementadas nas nossas
nove ilhas, no país e no mundo. Ã
”
Perante as dificuldades de assegurar o transporte de equipamentos
encomendados a fornecedores chineses, foram
fretados dois aviões.
O orçamento das Unidades de Saúde de Ilha e dos Hospitais
sofreu um reforço de 15 milhões de euros, foram adquiridos
equipamentos de proteção individual no valor de
9,3 milhões de euros, aumentou-se a capacidade de testagem
dos dois laboratórios públicos regionais.
Foram criados dez quartos de pressão negativa no Hospital
do Divino Espírito Santo de Ponta Delgada e três quartos
de pressão negativa no Hospital da Horta, que se juntaram
assim aos 13 quartos existentes no Hospital do Santo
Espírito da Ilha Terceira.
A este esforço de investimento público, juntaram-se cidadãos
e entidades privadas, através de donativos de valor
“
superior a 620 mil euros.
Para agilizar a resposta às necessidades emergentes da crise
sanitária, foram suspensos os procedimentos relativos
às autorizações para contratação de pessoal e aquisição
A LUTA À ESCALA GLOBAL
de serviços.
A Linha de Saúde Açores - 808 24 60 24, para informação,
CONTRA UM VÍRUS DESCONHECIDO
aconselhamento e encaminhamento, foi reforçada, tanto
em instalações, como em recursos humanos, adivinhando-se
a forte procura que viria a registar. Foi introduzido
PARA A HUMANIDADE OBRIGOU
À TOMADA DE MEDIDAS
o algoritmo dedicado ao rastreio e encaminhamento de
casos suspeitos de Covid-19 e a utilização da Linha pas-
DE NATUREZA ABSOLUTAMENTE
sou a ser gratuita para os cidadãos.
Foi desenvolvida a maior campanha de comunicação de
EXCECIONAL, COM O INTUITO
que a Saúde tem memória na Região, envolvendo televisão,
rádio, imprensa e internet, procurando-se fomentar
ÚLTIMO DE SALVAR VIDAS.
a adoção de comportamentos preventivos, bem como o
”
conhecimento sobre o novo coronavírus e as suas formas
de transmissão.
12 13
GH VISÃO MÉDICOS DENTISTAS
MÉDICOS DENTISTAS COM
COMPETÊNCIAS DE GESTÃO
Miguel Pavão
Bastonário da Ordem dos Médicos Dentistas
Cumpriram-se os primeiros seis meses desde
que foi oficialmente anunciado pela
OMS que o mundo tinha uma nova pandemia,
causada pela Covid-19 e o nosso
País, não sendo exceção, vive períodos excecionais
e incomparáveis, mas sem nenhuma certeza e
qualquer garantia de serem tempos irrepetíveis.
Este longo semestre transformou as nossas vidas e rotinas
e deixou marcas indeléveis em diversas dimensões que se
acentuarão nos tempos vindouros, comprovando a saúde
como bem único para a sociedade e demonstrando
que os profissionais de saúde são agora os exércitos de
salvação de um inimigo invisível e que ameaça a humanidade,
colocando em causa a sua organização social.
O que tem sido difícil em tempos de intranquilidade, é
dominar o fator imprevisibilidade! O desconhecimento
da tipologia deste novo vírus faz com que os tempos de
espera por terapias ou soluções a esta nova ameaça nos
reduzam a uma dura perceção, acerca da incapacidade
humana e técnica perante um inimigo nanoscópico e desconhecido.
Em Portugal como no Mundo, esta pandemia veio apenas
reforçar o que já era uma evidência: a saúde é um assunto
sério e deve ser priorizado. Para tal, os países mais preparados,
com modelos de gestão e organização, são os que
mais beneficiam. E por muito que custe acreditar, nem
sempre são os mais ricos os que melhor ficam na fotografia
final, perante uma crise de saúde pública à escala global,
que não respeita fronteiras ou diferencia PIB’s estatais.
É certo que uma pandemia coloca à prova todo um sistema
de saúde, levando muitas vezes os profissionais de
saúde à exaustão e os políticos à exasperação. Não sei se
há possibilidade de ter uma visão positiva desta crise sa-
nitária, mas há uma circunstância que não devemos desaproveitar
em toda esta epidemia: devemos fazer uma reflexão
acerca da importância da saúde e da gestão na saúde.
Será que as prioridades em saúde estão corretas? Será que
o modelo de gestão na saúde é o adequado? E a formação
dos profissionais de saúde vai de encontro aos problemas
futuros? São os modelos de gestão utilizados devidamente
pelos serviços e entidades de saúde?
Em Portugal, contrariamente a outras especialidades médicas,
a medicina dentária é exercida maioritariamente em
consultórios privados - segundo dados do Observatório
da Saúde Oral, o que pressupõe que os médicos dentistas
que gerem esses consultórios possuam ou necessitem
de conhecimentos de gestão.
A medicina dentária é uma profissão baseada em competências
médicas e na ciência, onde a maior parte dos
novos conhecimentos adquiridos são baseados no método
científico. De forma contrária, os princípios subjacentes
à prática de gestão são uma fusão de conhecimentos
baseados na comunicação entre médicos dentistas, seus
empregados e outros profissionais com experiência na
área da gestão de consultórios dentários.
De facto a área da gestão é vasta e complexa, pois além
de possuir diferentes níveis, engloba muitas outras áreas
que estão interligadas entre si numa organização, numa
clínica. No entanto, esta área ainda não é muito dominada
pelos médicos dentistas cuja formação assenta sobretudo
nas ciências médicas e técnicas das ciências dentárias.
E a incontestável mais-valia que as competências na área da
gestão podem ser atualmente, e no futuro, para a sobrevivência
e sucesso dos consultórios dentários, num quadro
de plena mudança da sociedade e da forma como os
clínicos se expõem à sociedade que necessita dos seus
serviços. Os médicos dentistas são treinados para diagnosticar,
tratar, e prevenir as doenças e condições relacionadas
com os dentes e cavidade oral, pelo que a necessidade
de rapidamente ganhar competências clínicas e
científicas deixa pouco tempo para formação adicional.
Quando entram no mercado de trabalho, a maioria dos
médicos dentistas associam-se a outros profissionais ou
tornam-se proprietários de micro empresas, o que requer
um conjunto de aptidões, nomeadamente na área
da gestão.
Muitos médicos dentistas saem dos seus cursos com a
sensação que não estão preparados para começar e gerir
um consultório dentário. Devido às mudanças no mercado
serem rápidas e dinâmicas, nem sempre é possível validar
com estudos na literatura, as experiências efetuadas
na área da gestão em medicina dentária.
Profissionais de saúde, como os médicos dentistas, estão
sujeitos a serem gestores das suas próprias empresas. A
competitividade no mercado em que os profissionais da
medicina dentária atuam articula-se em duas dimensões:
a qualidade do ato profissional e todos os processos que
envolvem a dimensão da gestão do seu negócio.
O exercício da profissão liberal leva o profissional a deparar-se
com as dificuldades inerentes à organização do
negócio, desde aspetos legais da instalação, pagamentos
e recebimentos, contratação de funcionários e compra
de materiais.
Tais atividades envolvem as quatro áreas funcionais da administração
(gestão de pessoas, marketing, produção e finanças).
“O profissional liberal precisa diversificar as suas habilidades
para conseguir atuar nos vários aspetos inerentes ao
exercício da profissão.” (Ribas, Siqueira e Binotto, 2010).
Para os médicos dentistas jovens ou mais experientes, as
competências na área da gestão são uma forma de obterem
as habilidades e a confiança que precisam para a
prática da medicina dentária a um alto nível ético e clínico.
As rápidas mudanças no ambiente económico e os seus
impactos na prática da medicina dentária sugerem que os
médicos dentistas formados precisam, mais do que nunca,
de mais conhecimentos nas áreas da gestão, como em
marketing e contabilidade.
O futuro da medicina dentária será similar a muitos outros
negócios. Os que serão capazes de sobreviver e prosperar
serão aqueles que possuírem sistemas de gestão
e com excelente serviço ao cliente.
O médico dentista deve possuir três habilidades para gerir
o seu consultório: habilidades técnicas (conhecimento
científico e da especialidade que executa); habilidades humanas
(ser um líder, motivar a equipa e estar atento às
expetativas desta); e habilidades conceituais (entender o
mercado, auto-conhecimento, conhecer problemas internos
da sua atividade e perspicácia na sua resolução).
A gestão consiste no planeamento, organização, direção
e controlo de todas as atividades que ocorrem na empresa.
Cabe ao gestor, neste caso ao médico dentista, tomar
decisões e ter uma visão estratégica de forma a conseguir
realizar os objetivos da sua empresa.
A contabilidade é uma boa ferramenta para o processo
de tomada de decisões, pois sistematiza toda a informação
da atividade da empresa. Através da análise das demonstrações
financeiras é possível ao médico dentista saber
o estado de “saúde” do seu negócio.
O marketing é um valioso instrumento que permite captar
clientes para o consultório, nomeadamente através do
marketing interno e externo. O médico dentista precisa
ter uma visão do mercado, saber qual o público-alvo pretendido
e ainda saber criar valor no serviço prestado. Esta
criação de valor pode ser obtida através de um serviço
de excelência em que a experiência percecionada pelo
paciente excede as expetativas deste.
A equipa é de extrema importância para o sucesso do
consultório pois acaba por se traduzir na imagem que o
cliente tem sobre a clínica. A clínica, deve possuir pessoal
qualificado, motivado e que saiba trabalhar em equipa.
Assim, o médico dentista, como gestor de pessoas, deve
possuir capacidades de comunicação, motivação, liderança
e coordenação da equipa. Ã
14 15
GH VISÃO assistentes sociais
A INTERVENÇÃO DO SERVIÇO
SOCIAL EM CONTEXTO
HOSPITALAR: VISÃO E DESAFIOS
NO CONTEXTO ATUAL
Júlia Cardoso
Assistente social, Doutora em Serviço Social pelo ISCTE-IUL
e Presidente da Direção da APSS, Associação de Profissionais
de Serviço Social
A
luta contra pestes e doenças virais
que afetaram a sociedade ao longo
dos tempos foi alvo de novos olhares
a partir do séc. XIX, não só por influência
do desenvolvimento da medicina
como também pela emergência da ciência social
e do que representou enquanto método científico para
o estudo da sociedade e dos fenómenos que nela ocorrem.
Em consequência, é nesta época em que surge um
novo olhar sobre a saúde, relacionando-a com outras
dimensões, nomeadamente com as condições sociais
em que a maioria da população vivia. É na I Conferência
Internacional de Saúde, realizada em Paris em 1851,
que os países são desafiados a adotar medidas comuns
para combate às doenças de incidência e propagação
comunitária que, à época, vitimavam milhares de pessoas,
como a peste, febre amarela e cólera. Documentos
da época dão realce ao facto de as doenças mais se
propagarem em meios sociais onde a pobreza e as más
condições sanitárias existiam, podendo afirmar-se que é
no final do séc. XIX que começa a sentir-se a necessidade
da um ação articulada e coordenada entre a saúde
pública e a assistência social, sendo esta assegurada quer
por médicos, quer por elementos de organizações filantrópicas,
sobretudo elementos femininos.
A necessidade de se profissionalizarem as funções no
campo da assistência social leva não só à criação de
escolas para este fim como à produção de conteúdos
formativos que corporizem a orientação para uma intervenção
de natureza científica, baseada em métodos
de atuação próprios, racionais. É a premência em chamar
para o campo de ação outro tipo de atores, que
não apenas médicos e enfermeiros, para lidar com as
crises sanitárias que, se concluiu, encontravam na pobreza,
nas más condições de vida e de higiene o principal
meio de propagação.
A publicação, em 1917, do Diagnóstico Social, de Mary
Richmond, é a evidência da relação entre a Saúde e o
Serviço Social, especificamente, entre os cuidados médicos
e a intervenção no contexto de proximidade às
pessoas e comunidades. Curiosamente, não só a denominação
vai beber ao diagnóstico médico, como as
suas etapas apresentam semelhanças com o mesmo. Tal
como na vertente médica, também o diagnóstico social
constitui, desde então, o elemento base para a definição
do plano de intervenção a realizar pela assistente
social (aqui utilizada a forma feminina porque, à época,
o Serviço Social era uma profissão exercida exclusiva e
obrigatoriamente apenas por mulheres).
Em Portugal, é relevante o papel de Ricardo Jorge na
criação de uma estrutura destinada à defesa da saúde
da população, impelido, sobretudo, pela necessidade de
combater a peste bubónica que afetou o país no final do
séc. XIX e, de modo mais intenso, a cidade do Porto. O
Instituto Central de Higiene, fundado em 1899, tornouse
o embrião da formação de profissionais que viriam a
atuar junto das populações e nas suas condições reais
de vida, como é o caso dos profissionais que, anos mais
tarde e sob influência francesa, seriam denominados de
assistentes sociais.
Na mesma linha de Ricardo Jorge, também o médico
Pacheco de Miranda apontava o caráter limitado da intervenção
centrada na patologia clínica. Em 1925, em
sessão organizada pela Sociedade das Ciências Médicas
de Lisboa, o médico Pacheco de Miranda apontava
como limitada a intervenção hospitalar ao centrar-se na
patologia clínica da pessoa, ao considerar “os doentes de
forma isolada do seu meio, sem ter em conta as causas e
consequências sociais da doença” (Matias, 1999, p. 110).
Contudo, e apesar da evolução que se foi verificando 1 ,
só em 1946, através da Lei da Organização Hospitalar
(Lei 2011/46 de 2 abril) é feita referência ao caráter imprescindível
do diagnóstico social como complemento
do clínico e os serviços hospitalares passam a contar
com o Serviço Social na sua estrutura organizativa, tendo
os profissionais desta área como funções a intervenção
nos fatores, de natureza não clínica, influenciadores
da sua recuperação e integração, a mediação entre os
serviços de Saúde e o meio social, sendo esta intervenção
identificada como “função humanizadora, na relação
trifacetada doente-família-médico” (Teles, 1990; Portugal-MS,
1998, apud Guadalupe, 2011:109).
Até à criação do Serviço Nacional de Saúde, em 1979
(Lei n.º 56/79) o Serviço Social é exercido, principalmente,
em contexto hospitalar e as suas funções não
sofreram alterações substantivas, concentrando-se na
intervenção nos fatores psicossociais que podem interferir
na doença (Guadalupe, 2011: 112). O que vamos
percebendo, pelos dados da história, pelos documentos
produzidos mas também pela análise da realidade
da intervenção do Serviço Social na Saúde, é que a/o
assistente social intervém nos problemas da sociedade
não estando a sua solução na sua dependência ou responsabilidade
direta. Não deixa, porém, de ser responsabilidade
e dever do profissional atuar na promoção
do bem-estar individual e familiar, no fortalecimento do
tecido social e na garantia de uma sociedade mais justa.
Na atualidade, os desafios da profissão mantêm-se relacionados
com o campo de ação tradicional do Serviço
Social, como é o caso da pobreza e das condições de
precariedade das famílias ao nível da saúde, habitação e
educação, mas também com problemas sociais que têm
emergido na sociedade: uns relacionados com as alterações
demográficas e estrutura sociofamiliar (isolamento }
16 17
GH VISÃO assistentes sociais
“
NÃO FORAM POSTOS EM CAUSA
OS DIREITOS DOS DOENTES,
DESIGNADAMENTE O DIREITO
AOS CUIDADOS, À SEGURANÇA
E AO BEM ESTAR, O QUE EXIGIU
A INTENSIFICAÇÃO DA FUNÇÃO
DE MEDIAÇÃO NA RELAÇÃO
EQUIPAS DE SAÚDE.
”
social, institucionalização), outros com os as migrações
e refugiados, outros ainda com o ambiente, alterações
climáticas e desenvolvimento tecnológico, também eles
produtores de desigualdades sociais.
A situação de pandemia que vivemos, sendo um problema
de saúde pública, veio tornar ainda mais visíveis as
vulnerabilidades sociais já existentes e fez emergir outras
relacionadas com a diminuição da atividade económica
e com o confinamento obrigatório, com consequências
ao nível da saúde, sobretudo da saúde mental.
Neste contexto particular, continua a exigir-se da/o assistente
social um modo de agir que reflita a sua capacidade
de análise da realidade social e competência
técnica e ética para intervir nela. E, também importante,
a dimensão política da profissão, não só no que diz respeito
à operacionalização das medidas de política mas
também na capacidade de influenciar os diferentes poderes
para a sua adequação às necessidades.
As/os assistentes sociais que exercem funções em hospitais
foram, tal como os demais profissionais que nesse
espaço intervêm, confrontados com a necessidade de
adaptação rápida de métodos de trabalho, incluindo ao
nível das formas de comunicação com doentes e com
o seu meio. Tornou-se evidente, no meio hospitalar,
que o reforço dos cuidados sociais em contexto da Covid-19
era (é) condição essencial para responder a necessidades,
muitas delas já conhecidas, mas cujos efeitos
colaterais associados à pandemia poriam em risco quer
a resposta das unidades de saúde, quer a própria saúde
dos doentes.
Os hospitais puderam contar com a intervenção das/
os assistentes sociais que, cumprindo a sua missão e as
funções específicas da profissão no campo da mediação
entre as equipas de cuidados clínicos, doentes, famílias e
estruturas da comunidade, procuraram, também, apoiarse
mutuamente, através da produção de um conjunto
de guias orientadores para a intervenção de emergência.
No quadro das responsabilidades da Associação de
Profissionais de Serviço Social, enquanto estrutura representativa
da classe profissional, e com a participação
ativa de um conjunto de assistentes sociais, foram elaborados
e disponibilizados o Plano de Emergência do
Serviço Social da Saúde Covid-19, Diretivas de Teletrabalho
para Assistentes Sociais em Situações de Emergência
de Saúde Pública, Guias de Intervenção Covid-19
na área da Saúde Mental (Contexto Hospitalar, Equipas
Técnicas de IPSS, Equipas Técnicas Especializadas em
Comportamentos Aditivos e Dependências).
De uma forma geral, os guias forneceram orientação ao
nível da reorganização do Serviço Social na Unidade de
Saúde, na definição de procedimentos de intervenção
em situações de isolamento profilático e preventivo na
comunidade e no âmbito do trabalho em rede focado
na situação de emergência.
Como afirmado anteriormente, os tempos atuais têm
sido desafiantes para o Serviço Social, particularmente
para o Serviço Social hospitalar. Porém, e do contacto
que vamos tendo com os profissionais, pese embora as
adaptações que tiveram de ser introduzidas no que diz
respeito à realização dos atos próprios de assistente social,
não foram postos em causa os direitos dos doentes,
designadamente o direito aos cuidados, à segurança e
ao bem estar, o que exigiu a intensificação da função de
mediação na relação equipas de saúde, pessoa doente,
famílias/ rede informal, entidades da comunidade. Esta é
uma das funções mais importantes no quadro da intervenção
hospitalar e uma das dimensões da humanização
dos cuidados e em que o contributo e participação do
Serviço Social tem de ser reconhecido.
Não poderíamos deixar de referir o problema antigo e
complexo dos denominados internamentos sociais. A
incapacidade das famílias, por motivos diversos, e a falta
de respostas na comunidade têm sido apontadas como
as principais razões para o prolongamento da permanência
em hospital, com os riscos que tal permanência
comporta tanto do ponto de vista da saúde como do
bem-estar ao nível mental e social. Esta é uma das áreas
de intervenção do Serviço Social em que as dificuldades
mais se têm feito sentir e que exige políticas públicas
direcionadas a um problema que encerra em si outros
problemas; mais do que ficar sob a responsabilidade do
meio hospitalar ou alvo de afirmações que traduzem
uma leitura parcelar da realidade social contemporânea,
este é, de facto, um problema que merece atenção e
atuação dos poderes públicos.
Sabe-se que a maioria das altas hospitalares diz respeito
a pessoas com mais de 65 anos, que não requerem
atendimento como o previsto em situações agudas mas
sim de uma abordagem mais global, que integre os diversos
níveis de cuidados do sistema de saúde e respostas
sociais do sistema de segurança social. O momento
que vivemos tem sido também desafiante a este nível e
uma das aprendizagens é a de que também neste setor
são urgentes outras e melhores formas de resposta às
necessidades, com a participação das autarquias locais e
das organizações do setor solidário.
Não sendo uma ilha, o Serviço Social na instituição hospitalar
tem de continuar o percurso iniciado há mais de
cem anos, atualizando as suas práticas em função dos
contextos e das necessidades e com grau de exigência
elevado quer no exercício profissional, quer na relação
com os diferentes poderes, políticos e organizacionais.
Os utilizadores dos serviços de saúde têm o direito a
cuidados de qualidade, prestados com base na premissa
da interdependência biopsicossocial e assentes em procedimentos
que evitem a fragmentação e a descontinuidade
dos cuidados. É grande a responsabilidade das/os
assistentes sociais, neste âmbito.
A organização hospitalar tem de ser o espaço de concretização
do que, há cerca de um século, já se reivindicava
como base para a intervenção em saúde: as causas
e consequências sociais da doença, privilegiando-se a
visão holística do ser humano. Ã
1. Uma excelente cronologia sobre o Serviço Social na Saúde, até 2010, é feita
por Sónia Guadalupe (Guadalupe, S., Anotações cronológicas sobre a trajetória do
Serviço Social no Sistema de Saúde em Portugal. Revista Serviço Social & Saúde.
UNICAMP Campinas, v. X, n. 12, Dez. 2011).
• Alves, F. A., Ricardo Jorge e a Saúde Pública em Portugal - Um "Apostolado
Sanitário". Scielo, Portugal. Arq Med v.22 n.2-3 Porto. 2008.
• Associação de Profissionais de Serviço Social (2020) Plano de Emergência do
Serviço Social da Saúde COVID-19 (SS-Covid-19).
• Espírito Santo, I. A intervenção do assistente social na saúde: «um fator preponderante».
Just News, 16 abril 2019. https://justnews.pt/artigos/a-intervencao-do-assistente-social-na-saude-um-fator-preponderante#.X3BeaxSSnIW
• Holofote nos cuidados. Texto não publicado. 2020.
• Guadalupe, S., Anotações cronológicas sobre a trajetória do Serviço Social no Sistema
de Saúde em Portugal. Revista Serviço Social & Saúde. UNICAMP Campinas,
v. X, n. 12, Dez. 2011.
• Martinelli, M.L., Serviço Social na área da saúde: uma relação histórica. Intervenção
Social, 28, 2003. p. 9-18.
• Martins, A.M.C., Génese, Emergência e Institucionalização do Serviço Social Português.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e a Tecnologia,
1999.
• Matias, M.A., Génese e emergência do Serviço Social na Saúde. Intervenção Social,
20, 1999, p. 91-114.
18
GH VISÃO técnicos auxiliares de saúde
VALORIZAR A FORMAÇÃO E A
PROGRESSÃO DAS CATEGORIAS
QUERIA AINDA SALIENTAR QUE TEMOS AINDA MENOS AUXILIARES DE AÇÃO MÉDICA E QUE NÃO
TEMOS SEQUER UMA CARREIRA ESPECIFICA PARA OS AUXILIARES. TEMOS MUITO MEDO DAS
“CARREIRAS ESPECIAIS E DEPOIS ACABAMOS POR SER MAIS INEFICIENTES DO QUE GOSTARÍAMOS.
Marta Temido, In Público, 13 de julho de 2018
”
Adão Artur M. Rocha
Presidente da Direção da APTAS - Associação Portuguesa
dos Técnicos Auxiliares de Saúde
Muito aqui poderíamos escrever sobre
esta nobre profissão, e o que é ser
técnico auxiliar de saúde, por certo
não esgotaríamos o tema, nem nos
tornaríamos repetitivos no mesmo.
Contudo, o nosso trabalho desenvolvido nas instituições
onde é abrangente a nossa existência, profissão essa com
mais de 40 anos, com provas dadas da sua importância
para o bom funcionamento das mesmas, mas que desde
o fatídico ano de 2008, operou-se uma mudança na persecução
do cariz inserido no que a profissão representava
para os profissionais e para a sociedade no geral.
O reconhecimento da importância desta profissão, está
explícita na Diretiva de 2013/55/UE do Parlamento Europeu
e do Conselho, de 20 de novembro de 2013, que
altera a Diretiva 2005/36/CE, relativa ao reconhecimento
das qualificações profissionais e o Regulamento (UE)
1024/2012, relativo à cooperação administrativa através
do Sistema de Informação do Mercado Interno (Regulamento
IMI), continuando o Estado Português em falta
pelo não cumprimento dessa Diretiva.
Podemos afirmar que Portugal é o único estado membro
da EU que permite que entrem para estas instituições, de
suma importância no nosso Serviço Nacional de Saúde e
também o Social, pessoas sem qualificações ou certificação,
para prestar um serviço de extrema responsabilidade
para com seres humanos.
Algo incompreensível, irresponsável, e podemos afirmar
transgressora das diretrizes comunitárias, pois essa formação
é ministrada pelo próprio Estado, o mesmo que
defende a qualificação do capital humano, onde se gastam
milhões de euros, sejam eles provenientes dos nossos impostos,
ou dos fundos europeus, e acabam por não serem
aproveitados a 100%, pois contratam pessoas sem qualquer
qualificação para o exercício da profissão.
Na verdade, em nosso entendimento, o Estado querendo
retificar um pouco o erro cometido pelo anterior Governo,
e pelos que sucederam, em 2013 através da ACSS -
Administração Central do Sistema de Saúde IP, emanou
uma circular normativa, com as prioridades formativas e de
qualificação, que enviou para todos os Hospitais do SNS,
visando a formação específica para os assistentes operacionais
(ex. auxiliares de ação médica), numa perspetiva da
formação contínua, de acordo com o Referencial de Qualificação
dirigido ao Técnico Auxiliar de Saúde, publicado no
Catálogo Nacional de Qualificações da Agência Nacional
para a Qualificação, I.P.”. Normativa essa que nunca chegou
a ser cumprida na íntegra por nenhuma unidade hospitalar.
Em 2015, o Excelentíssimo Senhor Primeiro Ministro, António
Costa respondeu a uma pergunta feita pelo técnico
auxiliar de saúde (AO), João Fael, peticionário das duas petições
apresentadas à Assembleia da República, que o indagava
sobre se pretendia regulamentar a categoria de "técnico
auxiliar de saúde", e qual a intenção relativamente aos
ex. "auxiliares de ação médica". Obtendo como resposta a
que passamos a transcrever:
“Assim, consideramos necessária a regulamentação no sentido
de valorizar os contextos de formação e de progressão
das categorias em causa. A diferenciação, no contexto
do SNS, deverá ser garantida de modo a permitir a requalificação
técnica que permita potenciar o contributo específico
destes profissionais no contexto das equipas e das instituições
de saúde. Deverá igualmente ser promovida a diferenciação
por áreas e funções no sentido de melhorar a
eficiência global do sistema, bem como a melhoria das respetivas
condições de operacionalidade. Neste sentido, defendemos
a abertura aberto um processo de diálogo a fim
de iniciar a revisão deste processo.
Cordiais saudações. Um abraço. António Costa e Adalberto
Campos Fernandes.”
Perante esta resposta, entendemos lamentavelmente que
em Portugal as leis não são respeitadas, e que a democracia
vai sendo cada vez mais posta em causa, em especial por
aqueles que a deveriam defender, honrando abril de 1974,
pois como emana a nova lei de bases da Saúde, Artigo 3/
base 28/29 referindo que:
Base 28 - Profissionais de saúde
1. São profissionais de saúde os trabalhadores envolvidos
em ações cujo objetivo principal é a melhoria do estado de
saúde de indivíduos ou das populações, incluindo os prestadores
diretos de cuidados e os prestadores de atividades
de suporte.
2. Os profissionais de saúde, pela relevante função social
que desempenham ao serviço das pessoas e da comunidade,
estão sujeitos a deveres éticos e deontológicos acrescidos,
nomeadamente a guardar sigilo profissional sobre a
informação de que tomem conhecimento no exercício da
sua atividade. }
20 21
GH VISÃO técnicos auxiliares de saúde
“
TODOS OS PROFISSIONAIS
DE SAÚDE QUE TRABALHAM
NO SNS TÊM DIREITO A UMA
CARREIRA PROFISSIONAL
QUE RECONHEÇA A SUA
DIFERENCIAÇÃO.
3. O Estado deve promover uma política de recursos humanos
que valorize a dedicação plena como regime de
trabalho dos profissionais de saúde do SNS, podendo,
para isso, estabelecer incentivos.
Como reflexão, podemos afirmar que as mudanças operadas
pela Lei em 2008, remetendo 450 carreiras para a
categoria de assistente operacional, equiparando assim
profissões com níveis de exigência bem acima da média
e de máxima importância para estas instituições, a simples
indiferenciados.
Gerou esta Lei um grave problema, pois sendo esta uma
profissão de desgaste rápido, seja ele físico e acima de tudo
emocional, e com um grau de risco infeccioso acima da
média, obter profissionais qualificados e dedicados à missão
que as instituições necessitam, para que o seu objetivo
fulcral seja alcançado, que é a excelência do atendimento
aos seus utentes/doentes, é cada vez mais difícil, pois a informação
que passa é de uma desqualificação profissional
e pessoal cada vez mais aberrante no nosso panorama
nacional.
Na verdade, esta situação acaba por envergonhar o Estado
Português, pois apesar de várias iniciativas perpetradas por
alguns profissionais ex. auxiliares de saúde, que destaco,
João Fael e Jorge Leandro, sendo o primeiro, responsável
das duas petições entregues na Assembleia da República,
tendo a primeira sido objeto de dois Projetos-lei nº 1073/
XIII/4.ª (PAN) - Regulamenta a Profissão do Técnico Auxiliar
de Saúde, e o Projeto-lei nº 1088/XIII/4.ª (BE) - Cria
e regula a Carreira de Técnico Auxiliar de Saúde.
• Projeto-lei nº 1073/XIII/4.ª (PAN) - Regulamenta a Profissão
de Técnico Auxiliar de Saúde;
Favor: BE, PCP, PEV, PAN e Ninsc
Contra: PS
Abstenção: PSD, CDS-PP e 1 Deputado do PS
Rejeitado o Projeto-lei.
• Projeto-lei nº 1088/XIII/4.ª (BE) - Cria e Regula a Carreira
de Técnico Auxiliar de Saúde;
Favor: BE, PCP, PEV e PAN
Contra: PS
Abstenção: PSD, CDS-PP, Ninsc e 1 Deputado do PS
Rejeitado o Projeto-lei.
Obtendo como resultado esta vergonhosa votação, pelos
partidos com responsabilidade na situação em que
se encontra a nossa carreira profissional, esperando com
dignidade e perseverança, que o resultado favorável da
segunda petição, da reunião da 13ª comissão, no PP dia
2020-07-14, acerca da apreciação e votação do relatório
final da Petição n.º 1/XIV/1.ª - Criação da Carreira de Técnico
Auxiliar de Saúde, que foi aprovada por unanimidade
pelos grupos parlamentares presentes, seja essa também
objeto de um Projeto-lei.
É neste sentido que a APTAS foi formada, tendo na sua
génese a persecução de um objetivo primordial, que é
reposição de uma profissão, que é de suma importância
para a sociedade, dando aos profissionais, que todos os
dias dão de si em prol dos outros, o digno reconhecimento
da sua missão e serem inseridos como profissionais nas
equipas especiais da saúde, dando-lhe um bem-estar pessoal,
que vai muito além de qualquer questão monetária.
Dentro deste pressuposto, a APTAS detém na sua raiz de
existência, uma visão holística sobre o técnico auxiliar de
saúde, e o que ele representa dentro do Serviço Nacional
de Saúde, sabendo que será um trabalho árduo, pois
vencer dogmas dos vários quadrantes, e em especial no
seio dos profissionais inseridos nesta profissão, será uma
cruzada, entendimento esse que nos levou a elaborar o
nosso Código Deontológico.
Como disse Fernando Pessoa: “Matar o sonho é matarmo-nos.
É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos
de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente
nosso”.
Esta é sem sombra de dúvida a frase que nos define, a AP-
TAS nasceu de um sonho, sonho esse tornado realidade,
mas não se estingue o ónus do sonho após a realização do
mesmo, sonhamos elevar a nossa profissão a patamares de
excelência, onde os objetivos primordiais sejam, educar,
formar e qualificar todos aqueles que estejam abertos a
serem Técnicos Auxiliares de Saúde, na sua excelência da
profissão. Assim sendo, o que perspetivamos como base
fundamental para esta nobre profissão, numa visão presente/futura,
é qualificar todos os assistentes operacionais,
que se encontrem a prestar serviços dentro das funções
exigidas pelo referencial de técnico auxiliar de saúde, sendo
esse o documento usado e aprovado pela ANQEP
- Agência Nacional para a Qualificação e o Ensino Profissional,
e que dentro desta mesma profissão se enquadrem
as várias especificidades da mesma; auxiliares de enfermagem,
alimentação, limpezas, descontaminação e desinfeções,
estão descritas no referido referencial.
Contudo, queremos que essa formação seja ministrada por
profissionais do setor, sejam eles enfermeiros e ou técnicos
auxiliares de saúde, pois sabemos que em várias
entidades formativas e escolares temos pessoas a dar formação
em áreas tão sensíveis, que de nada entendem ou
percebem sobre o que é ser TAS (não se pode por um
professor de ciências, a explicar como se prestam cuidados
de higiene a um doente).
Sabemos que a internet é pródiga em informação sobre a
matéria, mas a experiência do que se faz na prática não é
ensinada pelos manuais, são sim um complemento, esta é
a fórmula de podermos ter profissionais qualificados, empenhados
e motivados, para dar ainda mais e melhores
cuidados aos que deles precisam.
Demograficamente, Portugal está a ficar cada vez mais envelhecido,
a família, que há umas décadas atrás era ainda
alargada, passou rapidamente para uma família nuclear, o
suporte familiar modificou-se completamente nos últimos
20 anos, os vários ganhos a nível socioeconómico, bem
como a evolução da ciência, resultou com o prolongamento
da esperança de vida, pelo que teremos cada vez mais
idosos, mas a precisar cada vez mais de cuidados.
Isso reflete-se em especial nos doentes de longa duração,
esgotando a capacidade das unidades de cuidados continuados
e ou mesmo os lares, mas também será uma população
muito mais esclarecida sobre os seus direitos, isso
traz um desafio acrescido para os profissionais de saúde, e
para o Serviço Nacional de Saúde.
Com este intuito a APTAS foca a sua visão de querer preparar
melhor os técnicos auxiliares de saúde, sejam os atuais
assistentes operacionais, bem como os que se estão a formar.
O saber-saber, o saber-fazer e em especial o saber-
-ser/estar, são fundamentais para a persecução de um Serviço
Nacional de Saúde de excelência.
As instituições devem em nosso entender adotar políticas
de contratação orientadas para profissionais que preencham
estes requisitos. Ter um SNS, que preconiza a humanização
como regra fundamental, não se pode dar ao desplante
de contratar qualquer um para esta nobre missão
que é cuidar dos outros.
A procura da excelência nos cuidados sejam eles quais forem,
tendo como pedra basilar a humanização, é sem
sombra de dúvida a nossa bússola, e um dos objetivos da
APTAS, contudo temos clareza de pensamento, sabemos
dos constrangimentos das instituições, por isso queremos
ser um parceiro ativo na resolução dos mesmos, mas nunca
descurando a nossa principal orientação e doutrina, que
é a defesa dos profissionais, técnicos auxiliares de saúde,
na verdade a respetiva humanização terá de existir em
primeiro para com os próprios profissionais de saúde, só
assim eles estarão em condições de a prestar a 100% aos
que dependem deles. Ã
”
3.Os profissionais de saúde têm direito a aceder à formação
e ao aperfeiçoamento profissionais, tendo em conta
a natureza da atividade prestada, com vista à permanente
atualização de conhecimentos.
4. Os profissionais de saúde têm o direito e o dever de,
inseridos em carreiras profissionais, exercer a sua atividade
de acordo com a legis artis e com as regras deontológicas,
devendo respeitar os direitos da pessoa a quem prestam
cuidados, mas podendo exercer a objeção de consciência,
nos termos da lei.
5. O membro do Governo responsável pela área da saúde
organiza um registo nacional de profissionais de saúde,
incluindo aqueles cuja inscrição seja obrigatória numa associação
pública profissional.
6. Os profissionais de saúde que exerçam funções no âmbito
de estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde
estão sujeitos a auditoria, inspeção e fiscalização do ministério
responsável pela área da saúde, sem prejuízo das
atribuições cometidas a associações públicas profissionais.
“
7. Os profissionais de saúde em regime de trabalho independente
devem ser titulares de seguro contra os riscos
decorrentes do exercício da sua atividade.
Base 29 - Profissionais do SNS
O SABER-FAZER E EM ESPECIAL
1. Todos os profissionais de saúde que trabalham no SNS
têm direito a uma carreira profissional que reconheça a
O SABER-SER/ESTAR,
sua diferenciação na área da saúde.
SÃO FUNDAMENTAIS PARA
2. O Estado deve promover uma política de recursos humanos
que garanta:
A PERSECUÇÃO DE UM SERVIÇO
a) A estabilidade do vínculo aos profissionais;
b) O combate à precariedade e à existência de trabalhadores
sem vínculo;
NACIONAL DE SAÚDE
c) O trabalho em equipa, multidisciplinar e de complementaridade
entre os diferentes profissionais de saúde;
DE EXCELÊNCIA.
”
d) A formação profissional contínua e permanente dos
seus profissionais.
22 23
GH VISÃO biólogos
HORA DO RECONHECIMENTO
DE TODOS OS PROFISSIONAIS
DE SAÚDE
José Pereira de Matos
Bastonário da Ordem dos Biólogos
A
Biologia é a ciência que estuda a vida,
desde o nível de organização molecular
até ao nível da interação dos seres
vivos entre si e destes com o ambiente:
a Ecologia.
Nesta abordagem muito holística e absolutamente transversal
a todos os setores da nossa sociedade, a Biologia
está a montante de grande parte das áreas da saúde. Se
por um lado, os ramos da Biologia, como a microbiologia,
micologia, bacteriologia, entomologia, parasitologia e
virologia, estudam os agentes patogénicos, causadores de
grande parte das doenças infecciosas humanas e animais,
bem como dos seus vetores; por outro lado, a fisiologia
e a citologia estudam as alterações que ocorrem desde o
nível celular até ao organismo no seu todo.
Adicionalmente, a genética permite cada vez mais desvendar
os mecanismos e a etiologia de patologias, síndromes
e anomalias de base genética, tais como o cancro e as doenças
raras; e a biologia ambiental permite a identificação
e a prevenção de um número cada vez mais alargado de
doenças provocadas pelos efeitos da poluição e pela transmissão
de agentes patogénicos entre humanos e outras
espécies animais.
De um modo muito simplificado, mas fundamentado, podemos
afirmar que a Biologia está na base do estudo de todos
os agentes patogénicos e dos seus hospedeiros, bem
como das interações entre todos os seres vivos e o ambiente,
com grande impacto no bem-estar e na saúde humana.
Não é por isso de estranhar que a Biologia esteja hoje presente
nas questões societais, na estratégia ambiental, eco-
nómica e social, e portanto na política, sendo o biólogo o
agente desta ciência vasta e abrangente.
A atividade profissional do biólogo em saúde tem duas
vertentes de enorme influência nas nossas vidas: o biólogo
que desenvolve a sua atividade em investigação científica,
com aplicação direta ou indireta na saúde humana; e
o biólogo que desenvolve a sua atividade literalmente em
saúde, seja no Serviço Nacional de Saúde, em entidades
do setor privado, cooperativo ou social.
Quando nos referimos em particular ao biólogo da área
da saúde, referimo-nos ao conceito anglo-saxónico dos
profissionais de life sciences, ou seja, abrangendo não apenas
aqueles que possuem formação específica em Biologia,
mas também os que possuem formação de base em
bioquímica e ciências afins. Esses profissionais têm desenvolvido
nas últimas décadas uma atividade qualificada e
diferenciadora em todas as vertentes do Sistema Nacional
de Saúde.
A imagem de marca do biólogo continua a ser a do ambiente,
estereotipada através de programas televisivos
sobre a vida na Terra, nos quais o biólogo, normalmente
retratado de chapéu, colete e binóculos ao peito, melhor
do que ninguém, desvenda as intrincadas relações entre
seres vivos, normalmente com a informação a ser servida
por imagens de fundo maravilhosas, em ambientes
paradisíacos, muitas vezes podendo até fazer esquecer a
mensagem mais importante subjacente a essas imagens:
a necessidade da conservação da biodiversidade, sem a
qual a “nossa vida” (a vida do ser humano, não a do planeta)
sofrerá, a curto prazo, danos irreversíveis.
Com menor visibilidade surge a imagem do biólogo investigador,
cientista. Raramente se associam as descobertas
mais revolucionárias da medicina e da saúde humana aos
biólogos, embora seja a eles atribuída uma percentagem
considerável dos Prémios Nobel da Medicina e Fisiologia
ou da Química, e sejam eles os coordenadores e colaboradores
de grande parte das equipas de investigação na
área da saúde em todo o mundo.
Embora seja esta a realidade há já muitos anos, é em relação
à atividade do biólogo em saúde que a sociedade
civil tem um maior desconhecimento. Poucos sabem que,
no nosso País, se os biólogos deixassem de trabalhar hoje,
amanhã seguramente que deixariam de ser aplicados
os programas de reprodução medicamente assistida (na
sua maior parte assegurada por biólogos que desempenham
funções nos laboratórios dos centro de medicina
reprodutiva), os testes genéticos seriam reduzidos a um
mínimo e as análises clínicas sofreriam enormes quebras
de disponibilidade e resposta de serviços.
É um facto que a atividade do biólogo em saúde teve nos
últimos anos um notável incremento nas áreas de diagnóstico,
investigação, ensino e assessoria técnico-científica, entre
outras, e está representada pela ação destes em laboratórios
de centros hospitalares, universidades ou na indústria,
de que são exemplo a indústria do medicamento
e a indústria biomédica.
Se considerarmos a atividade hospitalar, recai sobre os
biólogos muita da responsabilidade pela atividade laboratorial,
quer de diagnóstico quer de investigação científica,
em particular na área das análises clínicas, genética humana
e embriologia e reprodução humana, promovendo
maior conhecimento, maior capacidade de resposta e por
isso garantia de integridade e saúde dos indivíduos.
Neste momento que atravessamos, dado o seu domínio
científico, os biólogos especialistas em saúde lideram inúmeros
grupos de investigação e encontram-se integrados
em equipas multidisciplinares com papel determinante na
dinâmica da pandemia provocada pelo vírus SARS-CoV-2
que assola o mundo.
Desempenham o papel de investigadores, virologistas ou
epidemiologistas, presentes em várias frentes ao estudarem
a natureza e virulência do vírus, ao desenvolveram
testes de diagnóstico, genéticos ou serológicos, ou a realizarem
pesquisas para a produção urgente de uma vacina.
Ao mesmo tempo, têm tido também um papel determinante
na estratégia de controlo de vigilância sanitária e
na monitorização das alterações no meio ambiente. Para
toda a sociedade, mas para nós biólogos, em particular,
este é seguramente o maior desafio deste século.
Em Portugal são também muitos os desafios que se colocam
hoje a estes profissionais de saúde, uma vez que persistem
constrangimentos, não só no acesso à profissão na
área laboratorial (do setor público e do setor privado),
como também no reconhecimento da elevada diferenciação
e especialização que possuem.
Contrariamente a muitos países da União Europeia nos
quais os chamados science constituem a principal força
profissional nas áreas laboratoriais de análises clínicas e de
genética humana, esse caminho no nosso País só agora
está a ser consolidado, embora a uma velocidade lenta, o
que provoca constrangimentos na integração no mercado
de profissionais qualificados.
A visão do biólogo é vasta e abrangente e as suas valências
estão identificadas e não são sobreponíveis, mas sim complementares
às de outros profissionais. Esta é a hora do
reconhecimento de todos os profissionais de saúde, muito
em particular daqueles cuja profissão é autorregulada e
que por isso estão obrigados ao cumprimento do respetivo
código profissional e deontológico: biólogos, enfermei- }
24 25
GH VISÃO biólogos
ros, farmacêuticos, médicos, médicos dentistas, médicos
veterinários, nutricionistas e psicólogos.
Nos últimos seis meses, os laboratórios portugueses tiveram
a capacidade de rapidamente se adaptarem e passarem
do zero à realização de quase dois milhões de testes
moleculares ao SARS-CoV-2. Por trás da maioria destes
testes estão centenas de técnicos que têm dado o seu melhor
para que os cidadãos tenham ao seu dispor um serviço
de diagnóstico rápido e seguro, trabalhando em turnos
insanos, cancelando ou adiando férias e assegurando que
o nosso País possa ser uma referência em matéria de testagem.
No setor público e no setor privado, o trabalho destes profissionais,
quase sempre afastado do reconhecimento público
e raramente elogiado, tem sido de uma importância
fundamental. Grande parte desses profissionais são biólogos.
De igual forma, dentro das universidade, dos institutos públicos,
dos centros e laboratórios de investigação, o trabalho
dos biólogos foi absolutamente fundamental para o
estabelecimento de uma rede nacional de testagem eficaz,
quer para o aumento do conhecimento sobre a diversidade
genética do vírus (filogenia) nos infetados portugueses,
quer para um trabalho inovador e pioneiro em matéria do
estudo serológico.
Apesar do papel de enorme relevo dos biólogos enquanto
profissionais de saúde, a nossa formação não nos permite,
em qualquer área do conhecimento e profissional,
abandonar a nossa abordagem de ecossistema: ninguém
trabalha sozinho, a ciência é necessariamente um trabalho
de equipa. As condições que levaram a enormes avanços
oriundos do trabalho solitário dos sábios do século XIX
não são replicáveis atualmente.
A saúde precisa de todos os seus intervenientes em trabalho
colaborativo. O médico não salva uma vida se o bombeiro
não conseguir transportar o doente a tempo e o biólogo
não faz o diagnóstico rápido se o investigador/cientista
não tiver criado e validado o método de diagnóstico.
Mais do que a multidisciplinaridade, é a transdisciplinaridade
que deve nortear o trabalho de equipa, no qual seguramente
o resultado final é superior à soma das partes e
é através desse esforço conjunto que se atinge a inovação
e se amplia o conhecimento.
Os biólogos sabem que uma bactéria multirresistente pode
ser desastrosa para um hospital, que um fungo pode
parar uma sala de cirurgia durante dias e que um vírus pode
parar o mundo durante meses. A natureza arranja
sempre formas de se adaptar, de nos surpreender e de
nos criar novos desafios.
Os biólogos estão prontos para enfrentar os novos desafios.
Não isoladamente, mas em equipa, dando o seu
contributo para sermos mais resilientes, para compreendermos
melhor o que nos rodeia e para encontrarmos
sempre as melhores soluções, com sustentabilidade e
com espírito científico.
Acreditem: na saúde, como em toda a parte, os biólogos
criam bom ambiente! Ã
26
GH opinião
A REALIDADE NO HOSPITAL
DE OVAR PÓS CERCA
SANITÁRIA AO CONCELHO
Luís Miguel Ferreira
Presidente do Conselho Diretivo
do Hospital Dr. Francisco Zagalo, Ovar
Para concretizarmos uma reflexão sobre a
realidade no Hospital de Ovar pós cerca
sanitária ao concelho vareiro, é importante
passarmos em revista alguns aspetos
vividos nesse período de tempo em que
Ovar esteve esteve perante um autêntico furação. Será
também importante termos consciência (porque o País
não tem bem essa consciência) da dimensão do Hospital
de Ovar e da resposta que foi, localmente, possível dar
graças ao esforço e dedicação dos nossos profissionais
e da organização que foi montada com o envolvimento
das forças vivas da comunidade, em articulação permanente
com a autoridade local de Saúde Pública, com os
Cuidados de Saúde Primários, com a ARS do Centro e,
naturalmente, com a equipa ministerial da tutela.
Ora, o Hospital Dr. Francisco Zagalo - Ovar (HFZ-Ovar)
é um hospital pequeno, que mantém ainda o estatuto
de hospital do Setor Público Administrativo (SPA), um
dos cinco existentes no nosso País, vivendo assim com
todas as desvantagens e vantagens (porque também as
há) decorrentes desta característica jurídica. No entanto,
as questões da segurança e qualidade dos cuidados,
da eficiência e humanidade, do acesso e equidade, da
exigência e rigor, colocam-se neste como se colocam
no maior hospital do País. A universalidade do Serviço
Nacional de Saúde assim o exige.
Esta instituição de saúde serve uma população que ronda
as 60 mil pessoas, não possuindo serviço de urgência,
pelo que a atividade é, essencialmente, programada, as-
segurada por um quadro de profissionais, composto por
menos de 200 pessoas (de todas as carreiras), reforçado
por cerca de 50 prestadores de serviço. Conta com um
serviço de Medicina Interna, uma Unidade de Hospitalização
Domiciliária, uma Unidade de Convalescença
integrada na RNCCI, Serviços Cirúrgicos, Bloco Operatório
e Consulta Externa (em várias especialidades), valências
apoiadas por serviços que realizam um conjunto
também limitado de MCDT’s, radiologia, farmácia, laboratório,
esterilização, nutrição, psicologia, serviço social,
medicina física e de reabilitação (fisioterapia, terapia da
fala e terapia ocupacional).
Tudo isto, bem como o funcionamento dos vários serviços
de apoio (financeiros, aprovisionamento, jurídico,
recursos humanos, admissão e gestão de doentes, informática,
instalações e equipamentos, entre outros), é
assegurado por equipas muito reduzidas, mas com as
mesmas regras legais e os mesmos padrões de exigência
técnica e de segurança que se registam no maior hospital
do País. O desígnio do Serviço Nacional de Saúde
assim o determina.
Por todas estas características, sempre soubemos que o
impacto, na nossa organização, de uma pandemia como
a que estamos a viver seria severo e muito exigente. E
como todos somos conhecedores, em Ovar o assunto
assumiu particular gravidade, obrigando inclusivamente,
que se instituísse uma cerca sanitária entre 17 de março
de 2020 e 18 de abril de 2020, uma medida que nenhum
de nós havia vivido.
Perante tais dificuldades, o Hospital de Ovar assumiuse,
numa lógica de hospital de proximidade, como uma
importante plataforma de resposta às necessidades que
vinham surgindo no dia-a-dia até porque, olhando para
trás, ninguém sabia quais seriam as necessidades nas
instituições de saúde de referência ao nível de cuidados
intensivos e intermédios, não incluídos na nossa carteira
de cuidados de saúde.
Estávamos a atingir patamares de infeção preocupantes,
em que o número médio de casos secundários que
resultam de um caso infetado, medido em função do
tempo (o chamado Rt), assumia em Ovar um valor que
rondava os 4.5 (segundo os números da saúde pública).
Isto obrigou a que tivéssemos de reagir localmente, com
determinação e rapidez, mobilizando recursos e toda a
energia que fosse possível.
Face à declaração de situação de “Calamidade Pública
no Município de Ovar”, por despacho da Presidência do
Conselho de Ministros e da Administração Interna, foi
ativado o Plano Municipal de Emergência de Proteção
Civil de Ovar, sendo criado um Gabinete de Crise liderado
pelo Senhor Presidente da Câmara Municipal de
Ovar, Salvador Malheiro, e coordenado pelo Comandante
da Base Aérea de Maceda, José Nogueira, composto
por entidades das mais variadas áreas.
Para além das Juntas de Freguesia, integrou o Gabinete
de Crise também o Hospital de Ovar, a Autoridade Local
de Saúde Pública, a PSP, a GNR, os Bombeiros de
Ovar e de Esmoriz, sendo que, ao longo do seu funcionamento,
outras entidades como a ASAE, a Segurança
Social, a Cruz Vermelha, foram sempre acompanhando
e participando nos trabalhos.
Em boa verdade, a existência e o bom e eficiente funcionamento
deste Gabinete de Crise, que reunia diariamente,
foram determinantes para a eficácia do que
foi sendo necessário implementar no terreno, possibilitando
a articulação de entidades que, tradicionalmente,
revelam algumas dificuldades em conseguir fazê-lo.
As Juntas de Freguesia de diferentes forças partidárias
caminharam no mesmo sentido, os Bombeiros de duas
cidades diferentes do mesmo concelho convergiram no
objetivo, a PSP e a GNR alinharam na mesma estratégia,
o Hospital e os Cuidados de Saúde Primários articularam
os seus recursos. Foi extraordinária a experiência
de cooperação, de entrega e dedicação absoluta de todas
as entidades envolvidas.
Uma vez que a Autoridade de Saúde Pública reconheceu
que o município de Ovar vivia uma situação epidemiológica
compatível com transmissão comunitária
ativa, constituindo perigo para a saúde pública o que,
aliás, motivou a criação da cerca sanitária, o Hospital
de Ovar, teve a necessidade de responder “presente”
naquelas que iam sendo as enormes necessidades identificadas.
Assim:
• Encetámos uma estratégia agressiva de testagem, em
total articulação com a autoridade local de Saúde Pública
(entre 20 de março e 16 de junho foram efetuadas
5.000 colheitas em zaragatoa que, para a realização de }
28 29
GH opinião
“
TUDO ISTO FOI FEITO
COM DEDICAÇÃO PLENA
DOS PROFISSIONAIS
DO HOSPITAL DE OVAR QUE,
DESTA FORMA, HONRARAM
O SERVIÇO NACIONAL
DE SAÚDE.
”
testes ao Sars-coV-2, foram remetidas para onde encontrámos,
na altura, disponibilidade: INSA, ULS Guarda,
CHVNG/E, CHBV, CHSJ, bem como laboratórios
privados). Com os Bombeiros de Esmoriz e com a Cruz
Vermelha de Ovar foi montada uma estrutura de recolha
no exterior do Hospital, dinamizada por equipas
mistas de profissionais (compostas por elementos do
Hospital e dos CSP);
• Suspendemos toda a atividade programada ao nível
da consulta externa, cirurgia e MCDT’s, bem como as
visitas aos doentes internados no Hospital, medidas tomadas
antes do Ministério da Saúde ter determinado
isso mesmo para todo o contexto do SNS;
• Encontrámos alternativas às visitas presenciais (através
de sessões de videochamada) e para a realização
de teleconsultas e/ou de contactos telefónicos com os
doentes, sendo que ainda tivemos disponibilidade para
acolher a realização da primeira teleconsulta através da
RSE Live, entretanto disponibilizada pela SPMS e pelo
Ministério da Saúde para o contexto do SNS;
• Abrimos uma consulta hospitalar Covid, em complemento
à Área Dedicadas Covid-19 Comunidade
(ADC) do Aces Baixo Vouga, com quem era feita articulação
permanente;
• Transformámos a enfermaria dos serviços cirúrgicos do
Hospital numa enfermaria totalmente dedicada a receber
doentes Covid (sem necessidades de cuidados intensivos),
reforçada pela adaptação do ginásio da Medicina
Física e de Reabilitação numa nova enfermaria Covid;
• Deslocalizámos (mais tarde, com a retoma de alguma
atividade) o ginásio da Medicina Física e de Reabilitação
para um espaço cedido pelos Bombeiros de Ovar;
• Apoiámos tecnicamente a Câmara Municipal na operacionalização
de um espaço, na Pousada da Juventude,
dedicado a receber doentes infetados que, não precisando
de cuidados hospitalares, não tinham retaguarda
familiar para a sua convalescença e isolamento em condições
de segurança e dignidade;
• Garantimos também a operacionalização do Hospital
de Campanha montado pelo INEM e ARS-Centro
que, na prática, constituiu uma nova enfermaria Covid
do HFZ-Ovar, na verdadeira e plena aceção da palavra
(EPI’s, farmácia, rouparia, alimentação, recolha de resíduos,
camas articuladas, equipamento médico variado,
RX, rede de oxigénio, rede informática ligada, por VPN
à rede hospitalar nas componentes médica e de enfermagem,
médicos, enfermeiros, assistentes operacionais,
administrativos, TSDT’s, entre outros aspetos), uma estrutura
que esteve em funcionamento entre 13 de abril
e 5 de junho.
Para alguns, este intenso conjunto de ações pode parecer
pouco. Mas tudo isto foi feito com dedicação plena
dos profissionais do Hospital de Ovar que, desta forma,
honraram o Serviço Nacional de Saúde com uma resposta
às necessidades da população local, mergulhada
que estava num contexto dramático e de evolução, naquela
altura, totalmente imprevisível. E sempre vivido e
dinamizado em estreita cooperação entre as estruturas
locais liderada, superiormente, pela Câmara Municipal
que, também do ponto de vista financeiro, suportou
encargos bastante significativos.
Ainda assim, antes de refletirmos sobre o futuro pós
cerca, importa sublinhar alguns aspetos que se revelaram
cruciais para que a fase mais difícil fosse ultrapassada
e que nos permitiu chegar onde estamos hoje.
Em primeiro lugar, houve sempre uma enorme atenção
da tutela, em particular da equipa ministerial (da
Senhora Ministra, da Senhora e do Senhor Secretários
de Estado), para com o que se ia passando no concelho,
disponibilizando todos os meios e recursos que eram
necessários mobilizar, dentro das possibilidades do momento.
A título de exemplo, foram recrutadas mais de
50 pessoas das várias carreiras (para substituir profissionais
infetados e reforçar as equipas para o Hospital de
Campanha), fomos abastecidos de EPI’s à dimensão das
nossas necessidades e foram criadas condições para desenvolvermos
uma estratégia significativa de testagem.
Em segundo lugar, a grande maioria dos profissionais
do nosso Hospital deu tudo o que tinha, empenhando
o seu esforço e dedicação para conseguirmos ultrapassar
as dificuldades. Muitos dos nossos profissionais, para
protegerem as suas próprias famílias em nome da sua
missão nesta instituição hospitalar e no SNS, ficaram
alojados em quartos de hotel local (disponibilizados
pela Câmara Municipal de Ovar) e em bungalows pelo
Parque de Campismo do Furadouro que também se
prontificou a ajudar.
Em terceiro lugar, o envolvimento da comunidade foi
crucial. A experiência do Gabinete de Crise, a liderança
assumida pela Câmara Municipal e pelo seu Presidente,
o comovente empenhamento e compromisso de todas
as entidades, foram decisivos para que o espírito de
união imperasse e os desafios fossem sendo ultrapassados
com sucesso e cumplicidade. A onda de solidariedade
da comunidade, que passou também por alguns donativos
que nos chegaram, essencialmente, em espécie,
foram também muito importantes para irmos buscar a
força anímica que não podia, nunca, faltar.
Daí que possamos dizer que a cerca sanitária e a grande
exigência e responsabilidade que recaiu sobre o Hospital
de Ovar e os seus profissionais fizeram com que
sejamos, hoje, uma unidade de saúde bastante diferente.
Aliás, depois deste período complexo já muita coisa
ocorreu, obrigando a repensar espaços e circuitos, procedimentos
e práticas tal como, obviamente, sucedeu e
continua a suceder na generalidade das instituições de
saúde do País e do mundo.
Em boa verdade, quando a cerca sanitária terminou, ao
pensar na resposta que dava quando me perguntavam
se as coisas estavam mais calmas no hospital, chegava
sempre à conclusão que não. A vida num hospital nunca
é calma porque os desafios são permanentes e a superação
dos nossos profissionais é sempre uma realidade,
para além de uma necessidade. Passámos a pensar na
retoma e a transformar novamente o nosso dia-a-dia,
ajustando a estrutura à situação atual, hoje ainda em
contexto de pandemia, pensando também naquilo que
se espera para os próximos meses.
Os números que hoje colocam Ovar num dos concelhos
com maior número de casos por 10.000 habitantes
(143/10.000 habitantes para 62/10.000 registados em
Portugal como um todo) não nos permitem ousar sequer
baixar a guarda e pensar que tudo já passou e que pode
voltar tudo à normalidade como a conhecíamos. De facto,
não podemos fazer o que fazíamos antes da mesma maneira
e com os mesmos métodos. Ainda que o furacão
não esteja hoje em Ovar, mas antes noutros pontos do
País, que vivem situações preocupantes, o nosso nível de
alerta e de cuidado deve manter-se igualmente elevado.
Desde logo torna-se necessário contarmos com ferramentas
e implementarmos metodologias que nos permitam
antecipar cenários e atender a contextos mais ou
menos difíceis que venham a ocorrer. Daí que, na linha
da inovação que temos tentado imprimir no Hospital
de Ovar, foi desenvolvido um projeto financiado pela
Fundação para a Ciência e Tecnologia, por um consórcio
do qual fizemos parte com a Winning e o Centro
de Investigação em Saúde Cintesis (sediado na Universidade
do Porto) que, na prática, criou uma escala de
risco hospitalar e definiu planos de contingência a aplicar
consoante o comportamento evolutivo da epidemia de
Covid-19 para o HFZ-Ovar.
O objetivo foi, então, o de desenvolver uma ferramenta
preditiva que permita analisar o comportamento
da epidemia da Covid-19 em Ovar e determinar uma
escala de risco para áreas do hospital que pudessem
apresentar compromisso de capacidade (em termos
de número de camas, EPI’s, recursos humanos, entre
outras). O resultado deste trabalho é consubstanciado
numa ferramenta PRISA Covid que, julgo, constituir uma
ferramenta com enorme potencial de antecipação de
cenários de risco para o ecossistema da saúde, possibilitando
a adoção de decisões e medidas concretas com
vista a preparar o SNS e todo o sistema de saúde para
contextos de dificuldade a curto e médio prazos.
Por outro lado, todo o sistema precisará de ser capaz de
dar resposta para além da Covid o que, de certa forma
e pelos mais variados motivos, ficou bastante comprometido
na primeira parte deste problema surgido em
março de 2020, levando ao cancelamento de milhares
de cirurgias e consultas não urgentes. Neste momento,
o Ministério da Saúde já alinhou com os Hospitais a
estratégia de recuperação das consultas e cirurgias não
realizadas durante os meses em que tal atividade pro- }
30 31
GH opinião
“
UMA COISA É CERTA: AINDA
COM TEMPOS MAIS SEGUROS,
COM PROCESSOS MAIS EXIGENTES
E COM EQUIPAS MAIS BEM
PREPARADAS, TEREMOS
DE CONTINUAR A DAR
A RESPOSTA ABRANGENTE
QUE OS PORTUGUESES PRECISAM
E QUE O NOSSO SISTEMA
DE SAÚDE TEM CAPACIDADE
DE DAR, DE FORMA ARTICULADA,
COMPLEMENTAR, SEGMENTADA.
”
gramada havia sido suspensa, sendo que essa estratégia
deverá ser de forma sistemática monitorizada e reajustada.
Uma coisa é certa: ainda com tempos mais seguros,
com processos mais exigentes e com equipas mais
bem preparadas, teremos de continuar a dar a resposta
abrangente que os portugueses precisam e que o nosso
sistema de saúde tem capacidade de dar, de forma
articulada, complementar, segmentada, sendo certo que
todos não podemos fazer tudo ao mesmo tempo. Por
outro lado, devemos continuar a perseguir uma estratégia
de investimento no SNS e de aposta permanente
na inovação, de adoção de melhores práticas clínicas e
de tecnologias modernas, bem como de valorização e
reforço dos nossos recursos humanos.
Naturalmente que a capacidade instalada ao nível de
cuidados intensivos e intermédios deverá ser gradualmente
reforçada, na linha do que tem sido a estratégia
do Ministério da Saúde, tanto mais que um dos indicadores
mais relevantes a ter sempre presente tem a ver
com o volume dos internamentos hospitalares, principalmente
com aqueles níveis de cuidados, para que o
que aconteceu noutros países não venha a ocorrer em
Portugal. Nesta matéria é de sublinhar os passos que,
entretanto, foram dados na melhoria da nossa capacidade
instalada.
Também é muito importante mantermos os nossos stocks
(EPI’s, farmácia, reagentes, dispositivos médicos, entre
outros) a níveis superiores às necessidades atuais do
dia-a-dia. A decisão do Ministério da Saúde em determinar
isso mesmo desde já foi, de facto, bastante importante,
gerando nos hospitais, ainda assim, alguma pressão
financeira que importa ter em conta e problemas ao
nível dos espaços para armazenamento, principalmente
em hospitais com o nosso perfil. No hospital de Ovar,
já foi necessário recorrer ao aluguer e aquisição de contentores,
por exemplo.
A adaptação dos espaços deve ser, igualmente, uma
prioridade. Espaços de espera e circulação para os
doentes que nos procuram, distâncias entre as camas
nas enfermarias, tempos e acessos controlados aos espaços
hospitalares, reorganização das agendas dos vários
serviços, utilização de tecnologias para desincentivar
deslocações dispensáveis aos hospitais, adaptação de
portas e relocalização de mobiliário, reajustamento de
salas para tarefas mais administrativas que assegurem
o distanciamento entre as pessoas, aposta na hospitalização
domiciliária e na telemonitorização são medidas
necessárias e exigirão alguns investimentos, inevitavelmente.
Os tempos que correm são ainda de alguma incerteza,
principalmente agora que nos aproximamos do inverno,
uma época que, já por si, agudiza a pressão nas nossas
estruturas de saúde. O foco no essencial e a determinação
no combate aos problemas, o conhecimento
em tempo real da situação epidemiológica concreta e
a capacidade de antecipar cenários, a coordenação das
várias infraestruturas de saúde que consiga otimizar recursos
e permitir que a população consiga continuar a
aceder, em segurança e com confiança, a cuidados de
saúde diversificados, a articulação entre diferentes níveis
de cuidados (designadamente hospitalares e cuidados
de saúde primários), a manutenção de níveis elevados
de motivação e operacionalidade dos nossos profissionais,
a disponibilidade para reforço das equipas dos hospitais,
dos CSP e da Saúde Pública, a capacidade de investimento,
de inovação e investigação, o envolvimento
das comunidades locais na definição e implementação
das estratégias de saúde junto das populações, nomeadamente
ao nível da inibição de comportamentos de
risco e da promoção de boas práticas e da adoção das
recomendações das autoridades sanitárias, a capacidade
de resposta para apoiar estruturas locais dedicadas, em
particular, à terceira idade, são, sem qualquer dúvida, aspetos
a ter em conta nos próximos tempos.
De facto, não podemos, coletivamente, falhar para continuarmos
a acreditar que “vai correr tudo bem”! Ã
A Aurora Innovation foi fundada em 1996 na Suécia e é especializada
em comunicação entre utentes e profissionais da saúde. A
empresa desenvolveu a Aurora teleQ, uma plataforma digital que
ajuda o setor da saúde a obter o controlo de todas as chamadas e
garantir que cada uma delas é respondida, melhorando a experiência
e confiança do utente ao saber que será contactado dentro de
um prazo razoável.
A plataforma é adequada para qualquer tipo de unidade de saúde,
como centros de saúde, serviços de consulta externa ou departamento
hospitalar que precisa de comunicar com utentes. Trata-se de
um software cloud, desenvolvido após muitos anos de experiência
que fornece a estrutura completa que respeita todos os requisitos da
assistência médica. Com o “retorno de chamada” com hora determinada,
o utente saberá a hora exata em que será contactado pela
unidade de saúde, possibilitando ao utente prosseguir com o seu dia
a dia sem esperar ao telefone.
A Aurora teleQ possui outras funções como fila de espera, chat,
SMS, e-mail e videoconferência, o que torna a plataforma na ferramenta
única e necessária para organizar toda a comunicação entre a
unidade de saúde e os utentes.
O sistema é fácil e intuitivo, além de fornecer ao gerente vários relatórios
sobre o que está a acontecer na sua unidade de saúde. Todas
as chamadas entrantes são organizadas e monitoradas no computador
numa única tela, permitindo ao gerente e administrador acompanhar
a situação em tempo real.
Aurora teleQ
PUBLICIDADE
Com a plataforma Aurora teleQ, os colaboradores responsáveis pelo
atendimento das chamadas podem observar o alcance de resultados
através do aumento da satisfação dos utentes, o que contribui para
que eles sintam que o seu trabalho é realizado com mais eficiência.
Quais são os resultados imediatos ao usar Aurora teleQ? Os utentes
obtêm, antes de tudo, uma imagem melhor do hospital ou centro
de saúde, como sendo mais profissional, mais eficiente e no
qual podem confiar porque serão contactados. Por outro lado, os
colaboradores veem o seu trabalho facilitado, com mais qualidade
e menores níveis de stress.
32
GH respostas integradas
RESPOSTAS SOCIAIS
INTEGRADAS EM TEMPO
DE PANDEMIA
Eugénio Fonseca
Presidente da Caritas Portugal
Da pandemia sanitária à crise socioeconómica
O mundo está numa encruzilhada com
uma complexidade não vista há mais de
um século: o surgimento de uma crise
sanitária, ainda sem um fim previsível. Esta crise originou
outra que terá consequências, quiçá ainda mais gravosas,
numa dimensão muito mais vasta, podendo mesmo pôr
em causa, durante muito tempo, a subsistência de uma
miríade de pessoas, o empobrecimento de um número
incalculável de famílias e o enfraquecimento para níveis
ainda não previstos da economia mundial.
Portugal será um dos países mais atingidos, pelo menos
no espaço dos que se situam no designado primeiro
mundo. Se temos conseguido, apesar de muitas debilidades,
comparativamente com países vizinhos e até mesmo
com outros mais evoluídos nos domínios técnico-científicos
e económicos, enfrentar este surto pandémico, o
impacto na nossa economia está a ser devastador por ela
já ter pouca consistência e uma dependência dos mercados
externos que parece crónica e se situa, com poucas
variações, na ordem dos 60%.
Propositadamente, quis assumir esta preocupação dos
impactos que a Covid-19 está a ter na retração da economia
portuguesa, porque as múltiplas consequências
que ela tem na vida de qualquer pessoa, sobretudos nas
classes média e empobrecidas, terão reflexos negativos e
inevitáveis no equilíbrio da saúde e no acesso aos cuidados
para recuperar o que se perde ou agrava em termos
de sanidade.
Não sei se toda a população portuguesa, absorvida que
está pelo medo dos efeitos da atual pandemia, estará a
tomar consciência dos tempos ainda mais difíceis que já
estão a dar sinais e que, a curto e a médio prazos, serão
muito mais penosos. Disso, nos estão, continuamente, a
recordar entendidos em várias áreas científicas. Um deles
é Frederico de Carvalho que refere as suas preocupações,
ao afirmar:
“Persiste o receio de que à crise sanitária seguirá uma violenta
queda de rendimentos do ano e, depois, uma série
de encadeamentos aterrorizadores. Variados setores não
resistiriam e o desemprego atingiria níveis sem registo. (…)
Identifico aqui circunstâncias que irão denotar uma dinamização
a médio prazo, inesperada e até surpreendente.
Atribuo este facto, ironicamente, ao histórico medíocre
aproveitamento das nossas potencialidades e vantagens
competitivas, e ao nosso espírito de ordem e de abnegação,
e até de inventiva quando enfrentamos períodos
negros. Desde a (re)conquista do território que o nosso
caminho foi feito de enganos e mudanças de rumo, mas
também de redescoberta e redobrado enriquecimento.” 1
O receio deste engenheiro, bem como o reconhecimento
das capacidades de abnegação e de criatividade dos
portugueses, estão a concretizar-se. Desde já, nas muitas
ações em curso para prevenir a contaminação da Covid-19
e atenuar as suas consequências e suavizar os efeitos
da falta ou ausência de rendimentos. São pequenas
evidências de que não queremos cruzar os braços.
As respostas sociais no combate à pandemia
É verdade que se está a verificar uma falta de planeamento,
de segurança, de assertividade e de avaliação em algumas
das ações que se têm vindo a desenvolver, tanto no
plano da saúde como no da intervenção social. Há que
admitir que não estávamos preparados para responder a
tão grave situação generalizada por este novo coronavírus.
Sabemos da existência de constrangimentos estruturais
na aplicação de muitas das medidas encetadas no quadro
das políticas públicas e muito pouco temos feito para os
eliminar, como sejam a pouca importância dada ao planeamento
realista, a opção reiterada pela uniformização
das respostas sociais, o vício do individualismo institucional
(nos domínios públicos e particulares) e a relutância
em assumir procedimentos de avaliação, de próxima e de
regular dimensão.
A juntar a estas dificuldades, somos confrontados, inesperada
e repentinamente, com um gravíssimo problema à
escala global, totalmente desconhecido e com alterações
imprevisíveis. Assim, nenhuma organização, por mais perfeita
que fosse conseguiria estar à altura das exigências
criadas por tão gravosa pandemia. Mesmo assim, com as
práticas anómalas que foram acontecendo em países vizinhos,
temos caminhado no sentido de reduzir os efeitos
nefastos da Covid-19.
Reorganizaram-se equipamentos e valências sociais, concretamente
no que diz respeito ao apoio à infância; transformaram-se
as respostas dadas pelos Centros de Dia
em apoio domiciliário, sem deixar de fora os serviços que
não poderiam ser prestados em casa; intensificaram-se as
medidas de segurança alimentar para os já beneficiários
das IPSS e os que começaram a surgir logo que a debilidade
da economia começou a dar os primeiros sinais;
reforçou-se o apoio psicológico; apoiaram-se as múltiplas
iniciativas de prevenção; com a total abertura dos colaboradores
das instituições, sempre que necessário, praticouse
a polivalência na ação para que nenhuma necessidade
identificada ficasse sem as mais elementares respostas;
com criatividade, mesmo que artesanalmente, muitas instituições
produziram máscaras para aliviar a insuficiência
do mercado…
Importa não esquecer a importância dada ao trabalho insano
de muita gente que, individualmente ou enquadrado
por instituições de voluntários ou que os integram, auxiliaram
na distribuição de alimentos e no apoio à satisfação
de necessidades básicas de quem, obrigatoriamente, estava
sujeito ao confinamento.
É certo que houve problemas que se poderiam ter evitado,
como os que mais se evidenciaram no que à proteção
dos idosos diz respeito. Tudo teria sido diferente se já existisse
a imprescindível relação entre a saúde e a proteção
social e se estivessem sido acauteladas, em devido tempo,
a restruturação de muitos edificados que servem de lares,
a revisão do quadro do pessoal para esta e outras valências,
com as devidas contrapartidas financeiras, a formação
contínua dos colaboradores das valências destinadas aos
idosos, a intervenção atempada nos lares clandestinos.
As fiscalizações devem existir, mas num quadro de leal cooperação
e, antes de tudo, com uma perspetiva pedagógica,
sem deixar de se envolverem as entidades competentes
sempre que, comprovadamente, existir dolo. Porém, não
se pode ter uma atitude de criminalização generalizada dos
responsáveis atuais, já que muitas das situações existentes
resultam de problemas estruturais que não se conseguem
resolver no imediato ou que foram sendo criados ou não
resolvidos, em devido tempo, pelos sucessivos governos e
órgãos de gestão das instituições anteriores.
A responsabilidade já será bem diferente se não forem
geradas sinergias no sentido de alterar o que não está tão
bem. Olhemos para esta crise não só pelo lado negativo,
mas como uma oportunidade, porque, na opinião do
teólogo e sociólogo brasileiro Leonardo Boff, “as crises
pertencem à vida: não são algo que deva ser deplorado }
34 35
GH respostas integradas
“
PORTUGAL PRECISA DA DEFINIÇÃO
DE POLÍTICAS PÚBLICAS
QUE RESPONDAM ÀS
NECESSIDADES ESTRUTURAIS
QUE, INEXPLICAVELMENTE,
TARDAM EM SER RESOLVIDAS
POR ESBARRAREM COM
MEDIDAS DESAJUSTADAS
DAS REALIDADES CONCRETAS.
”
e evitado, mas explorado, assumido e exaurido em seu
valor enriquecedor para novas formas de vida.” 2
Respostas sociais integradas, a incontornável estratégia
“Vai ficar tudo bem!”. Esta é a palavra de ordem mais
difundida em todo o mundo. Também tenho a esperança
de que a vida irá regressar ao normal, mas não pode ficar
tudo bem, porque em centenas de pessoas e famílias a
Covid-19 está a deixar marcas para sempre.
Mesmo que viesse a ser verdade que tudo vai ficar mesmo
bem, o que eu, veementemente, não gostaria é que
ficasse tudo na mesma. Seria um clamoroso desperdício
das muitas e dolorosas energias despendidas, até agora, e
das que ainda terão de o ser com o devir da pandemia.
Será que alguém terá dúvidas de que, desde há muito,
diversos factos, a níveis mais globais, regionais e locais, têm
dado sinais de que o modelo civilizacional predominante já
não responde às necessidades hodiernas? Concretamente,
o sistema económico está a ser demolidor do equilíbrio
do cosmos nas suas diferentes componentes. Por várias
vezes, o Papa Francisco tem avisado que “esta economia
mata” 3 . Decerto, que umas pequenas minorias (os poderosos
deste mundo) não estão interessadas em transformações
muito profundas. Mas, enquanto elas não acontecerem
de forma convicta e determinada, andaremos de
crise em crise até a uma imposição mais radical por parte
da Natureza ou pela rebelião generalizadas dos excluídos.
Todavia, não podemos ficar passivamente a aguardar a
concretização de uma nova civilização. Entretanto, há que
assumir e avançar com as alterações possíveis e realistas
que apontem para a minimização dos problemas mais
agudos com que o mundo se está a confrontar. “Pensar
global e agir local” nem sempre serve como estratégia
para determinadas atuações.
Em muitas áreas, em particular nas ciências humanas, a
experiência tem-me demonstrado que, por vezes, é mais
eficaz “pensar com ousadia e agir com determinação”. A
falta destas duas atitudes, têm gerado vários constrangimentos
à construção de um desenvolvimento propiciador
de coesão social. Indico alguns.
Antes de tudo, Portugal precisa da definição de políticas
públicas que respondam às necessidades estruturais que,
inexplicavelmente, tardam em ser resolvidas por esbarrarem
com medidas desajustadas das realidades concretas
das pessoas e dos recursos endógenos do país; este desajustamento
resulta, muitas vezes, do desconhecimento
dos reais problemas e dos que são vítimas deles; das motivações
que levam à criação de determinadas políticas
para satisfação de interesses corporativos e nem tanto
para a resolução das necessidades das pessoas; de um tipo
de “esquizofrenia” que ataca a grande parte das organizações
públicas e particulares; da preocupação de protagonismos
institucionais que resultam numa afirmação
pública, facilitadora de obtenção de votos ou de acesso
mais simples a oportunidades disponibilizadas; de um tipo
de governação que alimenta a dependência dos cidadãos
e das instituições; de recursos que deveriam ser atribuídos
com base nos direitos de cidadania e não como subsídios
discricionários.
Acrescento ainda a inexistência dos planos de desenvolvimento
económico e social, previstos nos artigos 90º e
91º da Constituição da República Portuguesa, bem como
de políticas centradas no desenvolvimento do setor cooperativo
e social (artigo 82º da Constituição). Estas são
as causas que identifico como impeditivas pela opção de
medidas de política direcionada para a coesão social e a
pouca utilidade de algumas das existentes.
Admito existirem outras, mas estas são as mais predominantes
na minha experiência da ação que tenho desenvolvido
em várias instâncias de participação cívica e social.
Com base nesta mesma experiência, tendo em conta a
realidade do nosso País, no plano social e na relação com
o Serviço Nacional de Saúde (SNS), arrisco a avançar
com algumas sugestões que, pelo menos, tornem mais
eficazes as ações das respostas sociais em curso e das
que se vierem a considerar necessárias face às exigências
criadas pela pandemia e pela grave crise económica dela
decorrente. Sugestões que têm a preocupação de uma
maior eficiência, pois as necessidades são muitas e escassos
os recursos disponíveis. São as seguintes:
1. A compilação das informações sobre as necessidades existentes
e as causas que as originam. Estes dados estão na posse
de vários centros de atendimento social de proximidade.
Só este conhecimento permitirá as reais condições para se
definirem políticas mais consentâneas com a realidade;
2. O enquadramento das respostas sociais no plano do
desenvolvimento comunitário, local, sociolocal, solidário…,
como se queira designar, garantindo uma maior
envolvência de atores de diferentes áreas que permitiriam
uma consolidação maior da economia social e da
solidária, reconhecendo o papel destas no desenvolvimento,
no povoamento do interior do país, na aposta
por uma “ecologia integral” 4 , na reabilitação, renovação e
humanização das cidades;
3. Uma clara definição de estratégias para que o SNS
esteja, no tempo certo, ao serviço de todos e assegure
cuidados de saúde de qualidade a todos os cidadãos,
preferencialmente aos mais vulneráveis à doença que
são também os fragilizados no plano económico e social.
A fazer alterações, só para o melhorar, incluindo a integração
explícita do envolvimento das respostas sociais
mais adequadas. A este propósito, não sei se não seria
de se regressar ao Ministério dos Assuntos Sociais, onde
estivessem integradas a saúde, solidariedade e segurança
social. O trabalho tem também fortes implicações sociais,
mas face aos enormíssimos desafios que este setor tem
pela frente, talvez se justificasse uma autonomização desta
área ministerial;
4. Revisão das estruturas e funcionamentos da Rede Social
e das Comissões Socais de Freguesia. São instâncias
privilegiadas para se conseguirem respostas sociais integradas.
Mas há ainda um caminho longo a percorrer para
que exista de facto uma participação dos diferentes parceiros
em verdadeira paridade;
5. As respostas sociais de apoio a determinados grupos-
-alvo devem contemplar a integração de todas as instituições
que garantam uma intervenção em patamares como
a prevenção, a resolução e a garantia de sustentação das
soluções operacionalizadas. Não há problemática alguma
que apenas se resolva com ações unilaterais e meramente
assistenciais;
6. Incentivar os Centros de Responsabilidade Integrados
(CRI) no âmbito da saúde, valorizando o trabalho em
equipas multidisciplinares, com várias especialidades em
vários patamares do SNS: os cuidados primários, hospitalares
e continuados. Nestas equipas deveria estar, explicitamente,
presente a dimensão social;
7. Criar um rendimento de subsistência, substituindo ou
reformulando, o atual Rendimento Social de Inserção
(RSI) para que tivesse uma garantia de subsistência e reintegração
social, quem viesse, inesperadamente, a ficar em
situação de privação de recursos financeiros.
Estas são apenas algumas propostas, dado o espaço que
disponho, para a criação de políticas públicas que na execução
terão de, incontornavelmente, se apoiarem no princípio
da subsidiariedade. Não defendo a pura estatização das
respostas sociais nem de quaisquer outras, mas ao Estado
compete assegurar que nenhum justo anseio dos cidadãos
fique a descoberto. Quem faz, deve ser quem garanta
maior eficácia e eficiência na execução das medidas.
Em jeito de conclusão
São recorrentes os pronunciamentos sobre o que irá
acontecer a diferentes áreas da vida comum na era pós-
Covid-19. As implicações de tão grave crise sanitária e
as suas laterais consequências vão originar o que já se
designa por uma “nova normalidade”. O que vier a surgir
de novo seja no sentido de uma maior consciencialização
de que somos seres-em-relação com todas as criaturas e
demais elementos que constituem o cosmos. Tem de ser
um imperativo a integração ordenada de todos estes elementos,
através das organizações específicas de cada um
deles em ordem a uma organização mais atenta e assumida
a que o Papa Francisco chama de “Casa Comum”.
Só verdadeiras e eficazes respostas sociais integradas conseguirão
assegurar o cumprimento de um dos maiores
desígnios que a todos deve galvanizar, orientadas por
uma palavra de ordem, sejam quais forem os desafios.
Cuidar é essa palavra que tem, decididamente, de fazer
parte do léxico das respostas sociais integradas ou de
outras áreas de intervenção em ordem ao desejável desenvolvimento
integral e sustentado. “O cuidado é «uma
constituição ontológica» sempre subjacente a tudo o que
o ser humano empreende, projeta e faz…” 5
Todavia, não nos limitemos a prestar cuidados. Sejamos
“cuidado”, pois sendo assim seremos humanos. Ã
1. Cf. Brotas, de Carvalho Frederico, “Ressurgimento económico”, Ressurgir:
40 Perguntas sobre a Pandemia, Paulinas Editora, Prior Velho, 2020, 17.
2. cf. Boff Leonardo, “Crise-Oportunidades de Crescimento”, Editora Vozes, Petrópolis,
2010, 30.
3. cf. Francisco, “Exortação Apostólica Evangelii Gaudium”, (24 de novembro de
2013), Lisboa, Secretariado-Geral do Episcopado, 2013, 53.
4. Cf. Carta Encíclica “Laudato Si” - sobre o cuidado da Casa Comum, (24 de maio
de 2015), Lisboa: Secretariado-Geral do Episcopado, 2015, 137-138.
5. cf. Boff Leonardo, “Saber cuidar: Ética do humano- compaixão pela terra”, Editora
Vozes, Petrópolis, 1999, 89.
• AAVV, “Ressurgir: 40 Perguntas sobre a Pandemia”, Paulinas Editora, Prior Velho,
2020.
• Boff Leonardo, “Crise - Oportunidades de Crescimento”, Editora Vozes, Petrópolis,
2010.
• Boff Leonardo, “Saber cuidar: Ética do humano - compaixão pela terra”, Editora
Vozes, Petrópolis, 1999.
• Carta Encíclica “Laudato Si” - sobre o cuidado da Casa Comum, (24 de maio de
2015), Lisboa: Secretariado-Geral do Episcopado, 2015.
• Francisco, “Exortação Apostólica Evangelii Gaudium”, (24 de novembro de
2013), Lisboa, Secretariado-Geral do Episcopado, 2013.
36 37
GH saúde militar
O APOIO MILITAR
DE EMERGÊNCIA
Joaquim Formeiro Monteiro
Tenente General (ex-Comandante da Logística do Exército)
Do Conceito Estratégico de Defesa Nacional
(CEDN), aprovado em 2013,
retira-se do seu articulado a intenção
de levantar uma unidade militar de ajuda
de emergência, com a ressalva cautelar
de não poder haver lugar ao aumento de efectivos
das Forças Armadas (FA).
Necessariamente, tratava-se de um desígnio perfeitamente
adequado às missões das FA, no sentido do
apoio às populações, em situações de calamidade e catástrofe,
através de um levantamento de capacidades,
e que de forma autónoma, pudessem utilizar os seus
meios orgânicos passíveis de utilização dual.
Embora podendo questionar-se o timing desta intenção,
uma vez que, eventualmente, por desconhecimento ou
distracção do legislador, as capacidades inerentes aquele
desígnio já estavam levantadas, organizadas e testadas
pelo Exército, desde 2011, releva-se o facto da matéria
ter sido inscrita no diploma em questão.
O Levantamento de Capacidades
Na realidade, em 2011, perante um quadro de graves calamidades
naturais que assolaram várias regiões do globo,
impunha-se uma reflexão atempada sobre a optimização
dos recursos disponíveis para fazer face, no país, a situações
daquela natureza, por parte das entidades responsáveis.
Não estando Portugal, de forma alguma, isento da ocorrência
de catástrofes e calamidades naturais que representassem
graves riscos para a sobrevivência e qualidade
de vida da sua população, o Exército português, tendo
em consideração as suas capacidades, entendeu que a
sua acção, neste domínio, poderia ir mais além do que a
colaboração pontual com o Serviço Nacional de Protecção
Civil (SNPC), como vinha acontecendo.
Acentuava-se, assim, o reconhecimento de que alguns
meios do Exército reuniam condições para poderem
ser mais rentabilizados no âmbito do chamado duplo
uso, com a particularidade de alguns deles apresentarem
capacidades únicas, no panorama nacional, que importaria
valorizar.
Nesse sentido, de acordo com orientações do Comando
do Exército, teve lugar um conjunto de estudos e
trabalhos, no Comando da Logística, com o objectivo de
levantar, organizar e implementar uma nova capacidade,
que, agregando pessoal, meios e equipamentos, pudesse
garantir uma resposta autónoma e credível, por parte do
Ramo, face a cenários de emergência e catástrofe, que
pudessem ocorrer no território nacional (TN).
Tendo já em consideração, na altura, as limitações existentes
ao nível dos efectivos, a par das pesadas restrições
de ordem orçamental que se faziam sentir nas FA,
foi levantado um modelo organizacional que pudesse
responder aquele desafio, sem comprometimento da
missão principal das Unidades e Órgãos a empenhar.
A Unidade Logística de Emergência (ULE)
Neste âmbito, foi desenhada e projectada a estrutura
da denominada Unidade Logística de Emergência (ULE),
tendo por base os meios disponíveis, com características
de utilização dual, na premissa da impossibilidade de aumento
de efectivos, e na indisponibilidade de dispor de
outros meios e equipamentos, que não fossem aqueles,
que, à época, eram os orgânicos do Exército.
O desafio centrava-se, assim, na organização e preparação
de pessoal e meios com vista à estruturação e empenhamento
de uma nova capacidade do Exército, com
base nas Unidades e Órgãos do Comando da Logística,
onde residia a quase totalidade dos equipamentos e
meios a utilizar, bem como dos efectivos indispensáveis
à respectiva operação e emprego.
Deste modo, e de acordo com o despacho do General
Chefe do Estado Maior do Exército (GEN CEME) de
03 de Junho de 2011, a ULE foi projectada, tendo em
consideração os seguintes pressupostos:
• O Exército não dispunha, à data, de nenhuma capacidade
desta natureza;
• Tratava-se de uma Unidade de escalão companhia,
com um grau de prontidão de 4 a 6 horas, e que deveria
estar à ordem do GEN CEME;
• Considerava-se que seria uma Unidade que resultaria
da agregação de capacidades existentes, guarnecida exclusivamente
por pessoal em acumulação de funções, e
em ordem de batalha (OB);
• Os meios e equipamentos necessários ao preenchimento
do respectivo quadro orgânico de material encontravam-se
ao serviço, nomeadamente nas Unidades
e Órgãos do Comando da Logística;
• Após solicitação ao Exército para colaborar nas acções
de protecção civil, esta Unidade poderia conduzir a
sua acção, caso necessário, sob o comando operacional
do Comando das Forças Terrestres (CFT).
Como possibilidades, a ULE, através dos seus meios, podia
garantir a montagem de um campo de desalojados
com uma capacidade base de alojamento, alimentação,
serviços e apoio sanitário para 500 pessoas, nas primeiras
24 horas, após activação, e com possibilidades de
expansão até 1000 pessoas a instalar de forma faseada,
após aquele período de tempo, em qualquer ponto do
TN, da seguinte forma:
Numa primeira fase, 24 horas após activação, garante:
• Capacidade inicial de alojamento, alimentação (ração
de reserva) e serviços para 500 desalojados, bem como
o respectivo transporte;
• Avaliação de infra estruturas e apoio geográfico na
área sinistrada;
• Triagem, reanimação, retenção limitada e evacuação
de indisponíveis e doentes críticos.
Numa segunda fase, decorridas as primeiras 24 horas, e
até 48 horas após a activação, assegura:
• Capacidade intermédia de alojamento, confecção e distribuição
de alimentação quente, bem como serviços de
lavandaria e banhos para 500 desalojados;
• Fornecimento de energia e iluminação no campo de
desalojados;
• Triagem, reanimação, retenção acrescida e evacuação
de doentes críticos.
Após as primeiras 72 horas, depois da activação, e numa
terceira fase, garante a totalidade das suas restantes capacidades
na zona sinistrada, e o reforço do apoio em alojamento,
alimentação e serviços até 1000 desalojados.
Com um total de 189 militares (20 Oficiais, 45 Sargentos
e 115 praças), a estrutura da ULE foi desenhada de
forma a garantir as funções logísticas de reabastecimento
e transportes, manutenção, evacuação-hospitalização,
e serviços.
Sendo constituída à custa dos meios e equipamentos
das Unidades e Órgãos, na dependência do Comando
da Logística, e ainda, pelos módulos de comunicações e
de segurança do CFT, a ULE assumia, desta forma, características
modulares, com um grau de prontidão adequado
à exigência da sua missão.
Neste sentido, a organização modular da ULE apresentava-se
da seguinte forma: }
38 39
GH saúde militar
Módulo de comando
Garantido pela Unidade de Apoio da Área Militar Amadora
Sintra (UnApAMAS), no que diz respeito ao respectivo
comando e controlo.
Módulo de reabastecimento
O Depósito Geral de Material do Exército (DGME) e a
Manutenção Militar (MM) proporcionavam o reabastecimento
de artigos das classes I, II, III, VII e IX, bem como
o transporte dos artigos das classes I e III.
Módulo de manutenção
Assegurado pelo Regimento de Manutenção (RMan), no
domínio da manutenção de material e viaturas da ULE.
Módulo de energia
Com o fornecimento de energia, instalação e manutenção
da rede eléctrica no campo de desalojados a ser
garantido pelo Centro Militar de Electrónica (CME).
Módulo de serviços
A UnApAMAS detinha, ainda, como responsabilidade
acrescida o fornecimento de alojamento, alimentação
confeccionada e serviços de banhos, latrinas e lavandaria.
Módulo de apoio sanitário
Ao Hospital de Campanha, Laboratório de Bromatologia,
Laboratório de Defesa Biológica e Laboratório Militar
de Produtos Químicos e Farmacêuticos competiam
a triagem e reanimação, evacuação sanitária, retenção
limitada para doentes críticos, consultas médicas, apoio
psicológico, farmácia, segurança alimentar e epidemiológica,
e, ainda, o reabastecimento de artigos classe VIII.
Módulo de avaliação de infra estruturas e apoio geográfico
Este módulo era garantido pela Direcção de Infra-estruturas
do Exército (DIE) e pelo Instituto geográfico do
Exército (IGEOE), executando o reconhecimento e selecção
das áreas para instalação do campo de desalojados,
bem como o reconhecimento e avaliação da estabilidade
do edificado na área sinistrada, a par de uma
actualização da informação geográfica da zona sinistrada.
Módulo de transportes
Assentava na participação do Regimento de Transportes
(Rtransp) com a afectação dos meios indispensáveis
ao transporte de desalojados para o respectivo campo,
bem como ao transporte de bens e equipamentos de
natureza vária.
Deste modo, o modelo da ULE estruturava-se na agregação
funcional dos materiais e equipamentos das várias
Unidades e Órgãos referenciados, bem como na concentração,
à ordem, dos respectivos módulos e parte
significativa dos seus meios, numa unidade pré definida,
situação que facilitaria a formação e treino dos efectivos
envolvidos. Atendendo à rapidez e ao elevado grau de
preparação exigido, o material e equipamento a utilizar
deveriam encontrar-se preparados, contentorizados
ou rapidamente contentorizáveis, ou, ainda, palatizados,
devendo a capacidade de transporte, em segurança e
rapidez, constituir-se como atributo fundamental para o
sucesso da manobra.
A ULE foi formalmente apresentada no Depósito Geral
de Material do Exército (DGME), em Benavente, em
19 de Maio de 2011, apresentando a sua organização e
capacidades na presença de várias entidades, destacando-se
o Ministro da Defesa Nacional e o General Chefe
do Estado Maior do Exército, à época.
Para enquadrar esta demonstração, foi levantado um
cenário de ocorrência de um abalo sísmico na região
do Vale do Tejo, afectando a Área Metropolitana de
Lisboa, de que teriam resultado centenas de mortos e
feridos, bem como milhares de desalojados, para além
de extensos danos no edificado e nas infra estruturas da
zona afectada.
Foi, então, solicitado ao Exército o apoio em assistência
médica e sanitária, evacuação e hospitalização de feridos,
reconhecimento e alojamento, alimentação e serviços
para os desalojados, vítimas da catástrofe.
A demonstração dinâmica visou demonstrar as actividades
que se desenrolariam no âmbito de uma situação
daquela natureza, fazendo uso das capacidades, meios e
equipamentos duais do Exército, disponíveis para o efeito,
envolvendo 92 efectivos, 32 viaturas, empilhadores,
grupos geradores, atrelados de cozinha, de banhos e de
lavandaria, tendas de alojamento, contentores hospitalares
e demais material complementar, num somatório
de várias toneladas.
Conjugando os diversos módulos constituintes da ULE,
foi, então, levantado um campo de desalojados, com
capacidade para alojar e prestar os respectivos serviços
de apoio a 500 pessoas, com as seguintes áreas:
Área de apoio sanitário
Local onde se instalaram as componentes do hospital
de campanha, farmácia e equipa de emergência biológica,
preparados para prestar cuidados de saúde de emergência,
cirurgia de estabilização, cuidados continuados,
tratamentos comuns, prevenção e controlo de doenças
infecciosas, epidemias e outras doenças.
Área de alojamento e serviços, com a seguinte constituição:
• Comando e administração, tendo como objectivo o
registo de desalojados e a administração e controlo de
todas as actividades logísticas a desenvolver; a avaliação
de danos em infra estruturas, e o levantamento e a produção
de informação geográfica conveniente;
• Zonas comunitárias de alojamento e serviços, agrupadas
em três blocos (128 pessoas, cada) constituídos,
cada um, por 16 tendas de campanha climatizadas, duas
áreas de instalações sanitárias e duches, bem como
lavandaria e depósitos de água, com capacidade para
apoiar até 384 pessoas, com capacidade de expansão;
• Área de apoio, guarnecida com tendas de campanha
de 5 arcos para serviços de refeitório, bem como cozinhas
de campanha, contentores frigoríficos de conservação
de víveres, depósito de água e estação de tratamento
e purificação de águas para armazenagem, confecção
e distribuição de alimentação;
• Serviços de apoio, responsáveis pela recolha, transporte,
armazenagem de géneros e combustíveis; reabastecimento
de materiais e equipamentos, com vista }
40
GH saúde militar
“
O EXÉRCITO, PELA SUA
ORGANIZAÇÃO, CONHECIMENTO
E EXPERIÊNCIA,E PELOS MEIOS
E EQUIPAMENTOS DE QUE
DISPUNHA, DEMOSTRAVA, ASSIM,
QUE SE ENCONTRAVA
ESPECIALMENTE CAPACITADO
PARA PRESTAR APOIO MILITAR
DE EMERGÊNCIA, TANTO NA FASE
DE RESPOSTA, COMO NA FASE
INICIAL DA RECUPERAÇÃO
DE UM DESASTRE OU CATÁSTROFE,
COM ESPECIAL DESTAQUE
PARA O APOIO HUMANITÁRIO,
DESENHANDO E PROJECTANDO,
PARA O EFEITO.
”
à distribuição de utensílios e artigos de higiene pessoal,
vestuário e agasalhos; evacuação e transporte de indisponíveis
e material diverso; fornecimento de energia
eléctrica, e manutenção e reparação de material e equipamento
orgânico.
A ULE materializava, desta forma, publicamente, uma
resposta autónoma do Exército para intervir em situações
de emergência e catástrofe, traduzida num modelo
integrador das capacidades duais do Ramo, em apoio às
populações sinistradas, em qualquer ponto do TN.
Neste sentido, devem ser interpretadas as palavras do
MDN, na altura, ao sublinhar a importância do Exército
ter ficado melhor preparado para intervir mais activamente
na “sustentação da protecção civil e na promoção
do desenvolvimento e bem-estar das populações.”
O Exército, pela sua organização, conhecimento e experiência,
e pelos meios e equipamentos de que dispunha,
demostrava, assim, que se encontrava especialmente capacitado
para prestar apoio militar de emergência, tanto
na fase de resposta, como na fase inicial da recuperação
de um desastre ou catástrofe, com especial destaque
para o apoio humanitário, desenhando e projectando,
para o efeito, uma capacidade integradora dos meios
orgânicos existentes nas suas Unidades Estabelecimentos
e Órgãos.
A ULE assumia-se como uma unidade de composição
modular, com organização variável, dependendo da
situação e das condições de emprego, em que a respectiva
estrutura orgânica de pessoal se encontrava em
ordem de batalha, e em que os materiais e equipamentos
necessários à sua acção eram orgânicos do Exército,
com possibilidades de garantir apoio logístico humanitário
até 1000 pessoas, em qualquer ponto do TN, e com
um grau de prontidão de 4 a 6 horas, naturalmente sem
contar com o deslocamento para a zona de operações.
As possibilidades da ULE, publicamente apresentadas,
ficavam reconhecidas pelo MDN, que destacaria a importância
e a oportunidade desta nova capacidade do
Exército, no quadro do reforço da protecção das populações,
em ambiente de emergência e catástrofe.
A Unidade de Apoio Militar de Emergência (UAME)
Terá sido com base neste modelo organizacional e na
nova capacidade, entretanto, antecipada, que, em 2016,
o Exército procedeu ao levantamento do Regimento
de Apoio Militar de Emergência (RAME), localizado em
Abrantes, nas instalações da ex-Escola Prática de Cavalaria,
entretanto extinta.
Do “produto operacional” desta nova Unidade do
Exército, resultava a UAME, que passava a ficar com
a responsabilidade de comando, controlo e emprego
operacional dos meios do Exército vocacionados para
as operações de socorro às populações, nas áreas
afectadas por situações de acidentes graves e catástrofe,
através do apoio às entidades responsáveis pela Protecção
Civil.
Com uma organização conceptualmente semelhante
à ULE, embora dotada de alguns elementos adicionais,
continuava a deter, como principais possibilidades de
emprego, as capacidades dos módulos de engenharia,
do apoio sanitário e psicológico, do reabastecimento e
serviços, da manutenção e transportes, e da defesa biológica,
química e radiológica.
De considerar, que não sendo possível a localização
concentrada na UAME dos respectivos módulos integradores,
pela carência dos meios disponíveis, aqueles
são aprontados e cedidos por diferentes Unidades e
Órgãos do Exército, realidade que, por via da sua dispersão
territorial, acaba por induzir reconhecidas restri-
ções na capacidade de apoio, em cada momento.
Considerações finais
As severas restrições orçamentais que, entretanto, se
vêm abatendo sobre o edifício da Defesa Nacional, não
permitindo a aquisição suficiente de meios e equipamentos
indispensáveis àquela capacidade, a par da drástica
diminuição dos efectivos nas Forças Armadas, vêm
acrescer seriamente as limitações da Unidade, impondo
que as entidades políticas competentes devessem encarar,
com realismo e responsabilidade, as medidas indispensáveis
a uma ajustada alocação de recursos e meios,
da qual pudesse resultar o indispensável acréscimo de
eficácia de uma capacidade única das Forças Armadas,
tão necessária ao País.
Num quadro transnacional de progressivas situações
de emergência e crise, como aquela que o País, actualmente,
atravessa, os Portugueses esperam, justamente,
que as FA possam contribuir, efectivamente, para o seu
combate e mitigação, e dificilmente compreenderiam
outras opções políticas, que não fossem aquelas que
contribuíssem para o reforço e credibilização das suas
capacidades mais intrínsecas, em tempo de paz. Ã
Obs: Este trabalho resulta da adaptação de um artigo publicado, pelo autor,
na Revista Militar de Dezembro de 2013.
42 43
GH Investigação e cooperação
INVESTIGAÇÃO
E COOPERAÇÃO NO ESPAÇO
LUSÓFONO E A PANDEMIA
Filomeno Fortes
Diretor do Instituto de Higiene e Medicina Tropical
da Universidade NOVA de Lisboa
Em 30 de janeiro de 2020 seguindo as
recomendações do Comité de Emergência,
o Diretor Geral da OMS (Organização
Mundial da Saúde) declarou
a epidemia provocada pelo vírus SARS-
-CoV-2 como emergência de saúde pública. O primeiro
caso foi reportado em 31 de dezembro de 2019 com
origem em Wuhan, República Popular da China com a
pandemia declarada em 11 de Março do ano seguinte.
O espaço lusófono (Comunidade dos Países de Língua
Portuguesa - CPLP), é um agregado geomorfológico intercontinental
com grande polimorfismo político, social,
científico e organizacional incluindo Portugal (Europa),
Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa - PALOP
(Africa), Brasil (América Latina) e Timor Leste (Ásia). O
comportamento da pandemia afetou de forma diferente
os países da CPLP. Portugal não fugiu ao padrão de
transmissão Europeu com os idosos e os portadores de
doenças crónicas como principal grupo de risco e com
uma capacidade de resposta diferente em relação aos
demais países da CPLP. O Brasil apresenta-se como o
país mais afetado da CPLP tendo ultrapassado os 4,7
milhões de casos e 140 mil mortes. Globalmente, antes
da transmissão comunitária, os primeiros casos de
Covid-19 nos PALOP foram importados de pessoas
oriundas do continente Europeu, afetando maioritariamente
a população mais jovem (20 e 39 anos de idade).
Estes países (incluindo o Brasil) apresentam grandes fragilidades
dos sistemas de saúde, agravado pela carên-
cia de recursos financeiros, técnicos e humanos para a
prevenção, diagnóstico da doença e gestão de casos,
apesar da tradicional experiência do Brasil, de Angola
e de Moçambique no combate a epidemias de dengue,
febre amarela, cólera, Marburg (Angola) e resposta a
catástrofes naturais (Brasil e Moçambique). Os últimos
relatórios sobre a situação epidemiológica nos países da
CPLP (mês de Setembro) mostram aumento da incidência
da doença em Portugal, Moçambique e Angola,
com o Brasil, S. Tomé e Príncipe e Cabo Verde a notificarem
menos casos. Neste contexto, a investigação e a
cooperação no espaço lusófono constituem elementos
importantes na gestão da pandemia. Este trabalho faz
uma abordagem generalista sobre a importância destas
duas componentes estratégicas no reforço da solidariedade
institucional e na identificação de pontes de execução
de projetos que contribuam para a melhoria do
conhecimento científico da Covid-19 nos países CPLP e
consequentemente na resposta a questões específicas.
Covid-19/Investigação
A investigação é uma ferramenta fundamental na estratégia
de controlo de qualquer epidemia, com valor
acrescentado em situação de pandemia. Os pilares básicos
são a disponibilidade financeira, recursos técnicos
materiais e humanos competentes e regulamentação
ética. Os resultados devem ser robustos e com forte
evidência em relação à sua eficácia. A investigação suporta
as várias componentes estratégicas como a prevenção,
deteção, rastreamento e tratamento.
Em fevereiro de 2020, a OMS realizou um encontro
científico para recolha de informação sobre o “novo”
vírus, concluindo que dadas as incertezas sobre o conhecimento
deste agente patológico se deveria acelerar
urgentemente a pesquisa na busca de respostas rápidas.
Esta pesquisa deveria basear-se num objetivo de curto
prazo para contenção da disseminação da doença e num
segundo objetivo de melhoria de resposta a um próximo
imprevisível surto pandémico. Para implementação
foi reativado um mecanismo designado R&D Blueprint
que no passado estivera na base de uma resposta global
e integrada para a aceleração da resposta a epidemias
de vírus de Ébola, SARS-CoV e MERS-CoV, incluindo o
desenvolvimento de vacinas, tratamentos farmacêuticos
e reforço dos sistemas de comunicação entre os países,
devendo agora incluir a componente diagnóstica. Embora
a Covid-19 seja uma doença infeciosa, o seu impacto
psico-social (incluindo doenças como a depressão e o
burnout dos profissionais de saúde), e o económico exigem
igualmente investigação sociológica e antropológica.
A investigação a nível da CPLP deve incluir estudo do
SARS-CoV-2 (infetividade, patogenicidade, virulência,
dose infetante, poder invasivo, imunogenicidade), do
hospedeiro (assintomáticos, sintomáticos, imunocompetentes
e população de risco) e do sistema de saúde
(cobertura sanitária, qualidade da atenção, avanço tecnológico,
dependência científica e tecnológica, recursos
humanos e financeiros). No geral, a pandemia em curso
ainda tem lacunas de conhecimento que carecem de
investigação adequada, nomeadamente a dinâmica da
resposta imunológica, a severidade da doença em populações
com características variadas, a relação entre a
concentração viral e a severidade da doença, a relação
entre o estado de melhoria com o desaparecimento do
vírus, validação dos testes serológicos, possibilidade de
mutações na estrutura genética do vírus que possam
interferir na eficácia dos testes moleculares, vacinas e
medidas terapêuticas. A prevalência de doenças genéticas
como a drepanocitose (anemia de células falciformes),
as doenças tropicais negligenciadas (uso da ivermectina
nas filarioses), a malária, a tuberculose e VIH/
SIDA (co-infeção, uso de anti-retrovirais) são de particular
interesse científico a nível dos PALOP e do Brasil.
Neste domínio, a metodologia científica conhecida
por Genome-Wide Association Studies (GWAS) procura
quantificar o nível de associação entre a presença da
doença e as variações genéticas de segmentos específicos
do genoma humano. Esta análise, de acordo com o
The Severe Covid-19 GWAS, permite a estratificação de
risco de doentes com Covid-19. Do ponto de vista de
vigilância epidemiológica sublinha-se a identificação do R
(replicação do vírus), R2 (replicação para terceiros sem
imunidade) e do Tc (taxa global de ataque clínico). O
domínio destes dados permite uma melhor monitorização
da situação e tomada de decisões mais adequadas.
O envolvimento da bioestatística é importante a partir
de protocolos que possam dar suporte científico. Igualmente
importante o estudo das cadeias de transmissão
principalmente em países de grande extensão geográfica
como Brasil, Moçambique e Angola. A eficácia das
medidas de distanciamento social, o uso de máscaras e
proteções oculares apesar de grande consenso continuam
a merecer alguma interrogação, talvez devido à
ausência de estudos específicos em países com caraterísticas
culturais e comportamentais complexas.
O aumento da infeção em trabalhadores da saúde em
Portugal, Brasil, Moçambique, Guiné-Bissau e mais recentemente
em Angola, confirma o resultado do trabalho
de investigação desenvolvido por Roger Chou et al em
relação à frequência das infeções por SARS-CoV-2 }
44 45
GH Investigação e cooperação
“ “
OUTRO PONTO DE INTERROGAÇÃO
DE INTERESSE NA CPLP É A
EVENTUALIDADE DA INTERAÇÃO
IMUNOLÓGICA FAVORÁVEL
COM A VACINA BCG.
UM ESTUDO DE SOLIMAN ET AL
NÃO CONFIRMA ESTA HIPÓTESE
CONSIDERANDO QUE CARECE
DE MAIS INVESTIGAÇÃO.
nos profissionais da saúde e a necessidade de implementação
de medidas anti contágio eficazes incluindo métodos
gerais de controlo de infeções. A fraca cobertura
dos cuidados primários de saúde agravada pelo receio
das populações ocorrerem às unidades para tratamento
de doenças correntes, exige a necessidade de estudos
para a criação de novos paradigmas de atendimento
médico. O papel dos laboratórios na investigação é relevante,
desde a monitorização virológica (sintomáticos,
assintomáticos), evolução genética (sequenciação do
vírus para estudo de eventuais mutações), vacinas, imunidade
de grupo, eficácia terapêutica, monitorização de
doentes etc. A deteção do vírus através da utilização da
técnica designada por RT-qPCR (Reverse Transcriptasequantitative
Polymerase Chain Reaction) em tempo real,
que pressupõe a replicação do DNA de forma a obtenção
de um número de moléculas detetáveis a partir
de um fragmento complementar designado por primer,
com uma sensibilidade que pode chegar aos 95% é facto
consumado. No entanto, por ter a capacidade de detetar
RNA degradado, esta técnica pode dar positiva em
indivíduos não infeciosos, havendo necessidade de se
investigar a combinação de formas de confirmação diagnóstico
complementar em assintomáticos ou doentes
que evoluíram favoravelmente do ponto de vista clínico.
Nos países com fraca cobertura sanitária como os
PALOP, a introdução de tecnologia de point of care é
um elemento importante para facilitar o diagnóstico e
suporte à investigação. Dinnes et al apresentaram recentemente
dados importantes sobre a utilização de
testes rápidos, nomeadamente de testes de antigénios
com 56% de sensibilidade (IC 95% = 29,5% - 79,8%) e
testes moleculares rápidos com 95,2% de sensibilidade
(IC 95% = 867% - 98,3%).
A investigação deve apoiar o diagnóstico clínico e laboratorial
nos PALOP e no Brasil devido à possibilidade de
intercorrência de síndromes febris frequentes de malária,
Chikungunya ou Dengue. Esta nota estende-se ao tratamento
já que qualquer destes síndromes, à semelhança
do SARS-CoV-2 pode cursar com trombocitopenia e
alteração dos factores de coagulação por mecanismos diferentes
com orientação terapêutica oposta (na Dengue
está contra-indicado o uso de anti-coagulantes exatamente
o inverso do que se preconiza para o tratamento da
Covid-19). Ainda em relação ao tratamento questiona-se
a utilização adequada da oxigenoterapia, sobretudo nos
PALOP tendo em conta as carências em cuidados intensivos
e as reticências apresentadas por Cumpstey AF et al
no estudo sobre o nível de intensidade de oxigenoterapia
em doentes com Covid-19 e ARDS.
Em 4 de julho de 2020, a OMS aceitou a recomendação
do Solidarity Trial’s International Steering Committee para
se interromper os estudos sobre o uso da hidroxicloroquina
devido sobretudo aos efeitos secundários encontrados
em doentes hospitalizados. Contudo, a OMS não
invalida a possibilidade de se manter a investigação para
o uso desta droga em doentes não hospitalizados e/ou
como potencial profilático. Países lusófonos há que continuam
a utilizar este fármaco por carência de remdesivir
ou porque a prática médica corrente não é concludente
com a recomendação da OMS, mantendo-se aqui mais
uma vez a possibilidade de se compreender melhor o
efeito desta droga em contextos específicos e com informação
mais robusta. Outro ponto de interrogação
de interesse na CPLP é a eventualidade da interação
imunológica favorável com a vacina BCG. Um estudo de
Soliman et al não confirma esta hipótese considerando
que carece de mais investigação. A transmissão oro-fecal
continua a ser uma hipótese de trabalho crucial em
países com dificuldades de saneamento do meio como
Angola, Brasil e Moçambique. Jefferson T et al, demonstraram
que 12% dos doentes com Covid-19 apresentam
sintomas gastrintestinais com deteção de partículas
virais completas do SARS-CoV-2 nas fezes e deteção
do vírus em instalações sanitárias e esgotos hospitalares.
Este tipo transmissão nos PALOP, pode constituir um
elemento de alto risco de contágio a nível das escolas.
Covid19/Cooperação no Espaço Lusófono
No início de Abril, cientistas de todo o mundo lançaram
a Coligação de Pesquisa Clínica da Covid-19, com mais
de 70 Instituições e fundações de cerca de 30 países.
Algumas Organizações como a Academia Africana de
Ciências (AAS), a União Europeia (Programa de Resposta
Global), juntaram-se a este movimento tendo
sido angariados valores insuficientes tendo em conta
as especificidades e gravidade da pandemia. Em África
o Programa de Desenvolvimento da União Africana
designado por NEPAD (sigla em inglês) considera que
embora o continente tenha cientistas renomáveis, a falta
de recursos financeiros e tecnológicos limita o conhecimento.
A pandemia pode ser uma oportunidade para
desenvolver a pesquisa na CPLP, sendo claro que as
prioridades em termos de investigação e de cooperação
devem incluir a prevenção da doença (prioridade), diagnóstico
precoce, tratamento adequado, e a recuperação
dos doentes.
Maria de Belém, presidente do Conselho Consultivo
do IHMT-NOVA no Webinar Covid-19 promovido
por aquela instituição dedicado à diplomacia em saúde
afirmou que “a língua surge como um instrumento de
combate às desigualdades” no âmbito da cooperação
da investigação em saúde. Esta afirmação foi precedida
no mesmo evento pelo Embaixador de Portugal
na República da Guiné-Bissau, António de Carvalho,
sublinhando que “a saúde neste momento é um sector
estratégico para a diplomacia dos países”. Em 2021
Portugal assumirá a Presidência da União Europeia e
Angola a Presidência da CPLP. A investigação deverá
constituir um ponto estratégico fundamental na visão e
gestão dessas organizações, considerando que o regresso
à “normalidade” dependerá do desenvolvimento da
ciência nos próximos tempos. Seria desejável e oportuno,
que os Ministérios da Cooperação/Negócios Estrangeiros,
Saúde, Ensino Superior, Ciência e Tecnologia e
Inovação dos países da CPLP, colocassem na sua agenda
mecanismos específicos de cooperação interinstitucional
direcionados à Cooperação/Investigação Covid-19.
Recomendação
A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP)
é o foro multilateral privilegiado para o aprofundamento
da amizade mútua e da cooperação entre os seus
membros incluindo os domínios da saúde, da ciência e
tecnologia. Neste período especial de pandemia sem um
horizonte temporal previsível para o seu controlo, recomendar-se-ia
que a CPLP assuma um papel de liderança,
propondo aos seus membros a adequação do Plano Estratégico
de Cooperação em Saúde (PECS) à situação
da Pandemia Covid-19. Nesta base, a investigação faria
parte do plano como uma componente prioritária, recorrendo
estrategicamente aos seus Observadores Consultivos
e Assessores Técnicos, nomeadamente o Instituto
de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova
de Lisboa e à FIOCRUZ-Brasil, e envolvendo de forma
prática as redes institucionais, com destaque para a Rede
dos Institutos Nacionais de Saúde (RINSP). Ã
EM 2021 PORTUGAL ASSUMIRÁ
A PRESIDÊNCIA DA UNIÃO
EUROPEIA E ANGOLA
A PRESIDÊNCIA DA CPLP.
A INVESTIGAÇÃO DEVERÁ
CONSTITUIR UM PONTO
ESTRATÉGICO FUNDAMENTAL
NA VISÃO E GESTÃO DESSAS
ORGANIZAÇÕES.
” ”
• Cumpstey, AF et al. “Oxygen targets in the intensive care unit during mechanical
ventilation for acute respiratory distress syndrome: a rapid review”. Cochrane
Database of Systematic Reviews 2020, Issu 9. Art. No: CD013708. DOI
10.1002/14651858.CD013708.
• Derek, K Chu et al. “Physical distancing, face masks, and eye protection to prevent
person-to person transmission of SARS-CoV-2 and Covid-19; a systematic
review and meta-analysis”. Lancet June 1, https://doi.org/10.1016/50140-6736
(20)31142-9.
• Rosenberg Eli S. et al: “Association of treatment with hydroxychloroquine or
azithromycin with in hospital mortality in patients with Covid-19 in New York
State”. JAMA May 11, 2020. Doi:10.1001/jama.2020.8630.
• https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/global-research-on-novel-coronavirus-2019-ncov
• https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/global-research-on-novel-coronavirus-2019-ncov/solidarity-clinical-trial-for-covid-19-treatments
• https://www.who.int/teams/blueprint/covid-19
• IHMT-NOVA E-book Webinars sobre Covid-19.
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http://www.cebm.net/evidence-synthesis//transmission-dynamics-of-covid-19/.
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• “WHO Africa Situation Report_Covid-19” WHOAFRO-2020-09-23-eng.pdf.
• www.gov.br
46 47
GH homenagem
EDUARDO SÁ FERREIRA,
então consideravam manifestação essencial da sua força
sindical. O IV Governo, nas vascas da agonia, contra
a vontade do responsável pela Saúde o Doutor Mário
UM TÍMIDO ATUANTE
Marques, homem íntegro e corajoso, tinha aceite uma
versão do estatuto que, entre outras enormidades, considerava
que doravante nenhuma decisão política sobre
saúde poderia sem tomada sem o consentimento e não
apenas o conhecimento, da Ordem dos Médicos. Por
outras palavras, a Ordem pretendia não apenas ser sindicato,
mas Governo.
O V Governo Constitucional, presidido por Maria de
Lourdes Pintasilgo, tendo como Ministro dos Assuntos
Sociais Alfredo Bruto da Costa e este vosso amigo como
Secretário de Estado da Saúde, jamais poderia aceitar o
Estatuto Médico que o Governo anterior tinha admitido
António Correia de Campos
sob forte pressão. Os governos então duravam pouco
Sócio Honorário da APAH
e o V Governo tinha data de termo para as eleições de
Dezembro. A OM tinha pressa em aproveitar a ocasião.
Em plena posse governativa, num dos quentes meses da
pós-revolução, manteve uma greve médica, extraordinariamente
bem-sucedida em Agosto, mês de férias. Apro-
O
tímido Eduardo Sá Ferreira era afinal para mais tarde ser o administrador do Serviço de Luta
um lutador. Venceu a adversidade da Anti Tuberculosa e depois o respeitado administrador
ximava-se Setembro e do novo governo nem novas nem
doença até ao fim. De poucas falas, do Hospital Maria Pia, optando por uma aposentação
mandados. O governo recusava receber a OM enquanto
reflexivo, astuto, direto, quando se precoce para, em retiro socrático, ser um patriarca da
a greve se mantivesse e a OM entendia que a greve não
decidia era um trator. Não hesitava. mais qualificada teoria de administração. Pela minha parte
poderia terminar enquanto o novo governo não aceitasse
Sá Ferreira era originário de Esmoriz. Estudou e trabalhou
fui sempre ensinando sem saber fazer administração,
o tal estatuto que havia negociado com o governo ante-
sempre no Porto. Formou-se com esforço, estudante
pois meu mestre Coriolano a tal me havia obrigado parior.
Bruto da Costa tinha a paciência dos orientais e decicário
trabalhador, adquiriu experiência de balcão banra
o ajudar, com Caldeira da Silva, a lançar o primeiro
diu "gerir o silêncio”, isto é, nada dizia quanto ao assunto.
que muito útil lhe foi mais tarde no trato da sua curso para administradores, no longínquo ano de 1970.
Todos os dias a OM incitava o ministério a pronunciar-se
vida profissional.
Eduardo Sá Ferreira foi durante décadas um sólido administrador
e este permanecia cada vez mais silencioso.
Entrámos no Ministério da Saúde no mesmo ano, ele no
do segundo maior hospital do País e o pri-
Como acontece em qualquer pequeno país, havia men-
Porto, eu em Coimbra. Estivemos juntos em todas as meiro do Norte. Conhecendo muito bem a mentalidade
sageiros secretos que tentavam a aproximação, mas sem
ações de formação que a Direção-Geral dos Hospitais
das gentes que servia, reservado mas não timorato,
resultado. A dada altura a OM divide-se e comete o ersageiros
promoveu em 1967 e 1968, uma prática pouco seguida Sá Ferreira fez obra. Quando achou chegada a altura de
ro fatal. O seu ramo do Norte, menos diplomático, resolve
depois e hoje quase ignorada. Fomos selecionados para outros voos, teve a humildade de escolher um exílio
convocar greve total, inclusivamente às urgências.
estudar direção dos hospitais, como os franceses designavam
tropical em São Tomé, onde brilhantemente serviu a
Foi isso o que o ministério queria ouvir e aí foi essen-
a administração hospitalar, em Rennes, França. cooperação portuguesa e ajudou aquele pequeno país
cial o papel de Sá Ferreira. Convocado a prestar declatropical
“
Formámos com Moreno Rodrigues, Meneses Correia, a desembaraçar-se dos seus múltiplos problemas sanitários.
Jamais se ouviu falar de qualquer sombra de colo-
no primeiro dia da greve às urgências um doente mor-
rações sobre o que poderia suceder no seu hospital se
Meneses Duarte e Cristiano de Freitas o grupo dos
meninos de Rennes que Coriolano Ferreira, com rasgada
visão estratégica mandara preparar para refrescar a ção. Sá Ferreira procurava passar despercebido e fazer
acabou por declarar, num rompante que inundou o pe-
SÁ FERREIRA PROCURAVA
nialismo ou de fácil crítica dos beneficiários da cooperaresse
por falta de assistência, depois de muito se torcer,
administração dos grandes hospitais nacionais. Cristiano honradamente o seu trabalho. No fim de vários anos
queno écran: se amanhã morrer um doente nessas circunstâncias,
o médico e a equipa que estavam escalados
PASSAR DESPERCEBIDO E FAZER
passou depois à direção do Hospital de Santa Maria, regressou, passando a prestar colaboração pública e privada.
A sua luta contra a doença marcou a década final
para aquele dia e hora serão responsáveis disciplinar,
Meneses Duarte especializou-se em aprovisionamento
e terminou a sua carreira a administrar com superior de vida, lutando sempre até ao limite da sua vontade.
civil e criminalmente por recusa de assistência a pessoa
HONRADAMENTE O SEU
qualidade o Hospital de Pulido Valente, depois de ter Não posso terminar sem a evocação de um episódio
em perigo! Uma bomba!
TRABALHO. NO FIM DE VÁRIOS
dirigido os serviços centrais de aprovisionamento e ter pessoal de interesse público. No segundo semestre de
Chamado a comentar a situação no segundo canal, meia
ensinado na ENSP, Moreno Rodrigues foi de imediato 1979, a Ordem dos Médicos (OM) desencadeou uma
hora depois, a meio da emissão, sou informado que a ANOS REGRESSOU, PASSANDO
colocado no Hospital Geral da Santo António onde fez greve insólita, demonstrando a sua força social e então
sobretudo sindical, perante sucessivos governos de
mais ouviu falar do Estatuto Médico, embora ele sur-
OM havia levantado a greve em todo o país. Ninguém
toda a sua carreira com respeito unânime, Meneses Correia
A PRESTAR COLABORAÇÃO
foi logo destacado para Beja, administrando o mais curta duração, sobretudo os IV e V, de iniciativa pregisse,
já inofensivo, nas páginas do Diário da República.
PÚBLICA E PRIVADA.
recente dos hospitais distritais de então e depois para o sidencial. O pretexto era a aprovação de um famoso
Devo a Sá Ferreira esse ato de enorme coragem.
São João onde ajudava Sá Ferreira em inúmeras tarefas, Estatuto do Médico que os dirigentes profissionais de
O País deve-lhe muito mais.
”
Ã
48 49
GH homenagem
EDUARDO SÁ FERREIRA,
HOMEM AMÁVEL,
PERSPICAZ E RESILIENTE
Menezes Correia
Sócio de Mérito da APAH
Conhecemo-nos nas vésperas de ir para
Rennes frequentar o Curso de Administração
Hospitalar. Em Rennes tornámonos
amigos, uma amizade para a vida.
No regresso de Rennes o Dr. Augusto
Mantas incumbiu o Sá Ferreira de elaborar o Plano
de Contas, tarefa para a qual ele era, indiscutivelmente,
a pessoa melhor preparada no Ministério da Saúde. O
Plano de Contas dos Serviços de Saúde (POCS) era um
instrumento indispensável à concretização do conceito
de Hospital, explicitado no Estatuto Hospitalar e no
Regulamento Geral dos Hospitais, publicados em 1968.
Para o Ministério das Finanças, no entanto, interessado
tão só no controlo orçamental, apenas importava a Contabilidade
Pública!
Para se compreender quanto a elaboração do POCS foi
inovadora, basta dizer que só em 1997, quase vinte anos
depois, o Plano Oficial de Contas da Administração Pública
foi oficialmente adotado!
O Dr. Mantas sabia bem que não bastava existir um
POCS. Era necessária muita formação, para explicar e
praticar a sua implementação. Tornaram-se célebres os
Cursos da Figueira da Foz onde durante muitos anos o
Sá Ferreira pontificou, acompanhado de Colegas da Administração
Hospitalar, primeiro o Dr. Costa Almeida e
depois também a Dr.ª Margarida Trindade. Uma palavra
de saudade para o Costa Almeida, um ótimo profissional
e um grande amigo que partiu há poucos anos.
Mais tarde o Sá Ferreira colaboraria estreitamente com o
Dr. Mantas ao aceitar o seu convite para, em acumulação
com a Administração do São João, exercer as funções de
Subdiretor Geral do Departamento de Gestão Financeira
do Ministério da Saúde.
Não era com certeza sem razão que era tão solicitado por
diferentes entidades para prestar a sua colaboração. A sua
experiência, aliada a um grande bom senso e uma saudável
relação com a tutela, estavam na base desses convites.
Enquanto o Sá Ferreira era incumbido de elaborar o PO-
CS, fui destacado para Beja para exercer as funções de
Administrador do Hospital junto da Comissão Instaladora,
que havia sido nomeada no ano anterior.
Em 71 foi aberto concurso para Diretor de Serviços de
Aprovisionamento do Hospital de São João. Por múltiplas
razões concorri a esse lugar. Soube, entretanto, que o Sá
Ferreira tinha concorrido ao lugar de Administrador. Telefonei-lhe
a exprimir a minha satisfação por vir a trabalhar
com ele, o que naturalmente foi do seu agrado. Resolvidos
os concursos, quis que começássemos a trabalhar
no mesmo dia e por isso antecipei a minha vinda de
Beja uma semana, dado que minha mulher só terminava
os seus trabalhos docentes na semana seguinte. Insistiu
em que, durante essa semana, ficasse em sua casa em
Espinho onde fui magnificamente acolhido pela família,
esposa e duas meninas, que eram os seus amores.
Claro que o autor do POCS não podia deixar de definir
como objetivo operacional a instalação da contabilidade
analítica no seu Hospital. A mim, no que se refere a esse
objetivo, competia-me reorganizar os Armazéns, criar
uma boa relação fornecedor/cliente com os serviços e
automatizar os stocks. Terminada a sua automatização, o
Serviço de Contabilidade perdeu o alibi para não instalar
a contabilidade analítica. Sabendo que o Centro Mecanográfico
do SUCH, instalado nos HUC e dirigido pelo
Santos Cardoso tinha operacionalizado o POCS em
Hospitais Distritais, sugeri ao Sá Ferreira que o consultasse.
Aceitou a sugestão e o Santos Cardoso com uma
equipa do Centro Mecanográfico da Zona Centro veio
ao São João para reuniões de trabalho com os responsáveis
da Contabilidade. O Sá Ferreira não ignorava que
o benchmarking não é o forte da administração pública,
principalmente quando a comparação se faz com serviços
similares. Mas geriu o “conflito” com mestria e o São João
passou a ter contabilidade analítica.
Ao fim de dois anos e meio fui convidado para integrar a
Comissão Instaladora do Instituto de Assistência Nacional
aos Tuberculosos, com a missão de reestruturar o IANT,
assumindo, cumulativamente, o lugar de Administrador
do Sanatório D. Manuel II. A reestruturação do IANT
previa a reconversão do Sanatório D. Manuel II em Hospital
Geral e, naturalmente, aí permaneci, integrando a
Comissão Instaladora do Hospital Geral Eduardo Santos
Silva, como passou a ser designado oficialmente.
Em 1976 o Sá Ferreira convidou-me para regressar ao
São João como Diretor de Serviço, mas com funções
de seu adjunto. O sentimento da fraca probabilidade de
aprovação de um Plano Diretor para o Hospital Eduardo
Santos Silva e o aliciante convite do meu colega motivaram-me
a pedir a exoneração do lugar que ocupava e a
concorrer para Diretor de Serviço do HSJ.
Foi, principalmente, durante essa fase que tive oportunidade
de apreciar a sua capacidade negocial, prudência,
perspicácia, capacidade de envolver os colaboradores e
muita, muita resiliência.
Entre os dois, estabeleceu-se uma relação win-win: eu beneficiava
porque, mais afastado da pesada rotina hospitalar,
tinha tempo para estudar e preparar propostas de
decisão, ele porque podia decidir melhor informado e levar
ao Conselho de Gerência propostas mais fundamentadas.
Tendo sido convidado para integrar a Comissão Instaladora
do Serviço de Informática da Saúde, analisamos ambos
a hipótese de voltar a deixar temporariamente o Hospital
e concluímos que era importante colaborar no desenvolvimento
do PDIS (Plano Diretor de Informática da Saúde).
No Serviço de Informática da Saúde demorei mais tempo
do que ambos desejávamos, porque, entretanto, o Serviço
integrou a Direção Geral dos Serviços Financeiros e
pedir a exoneração ao Dr. Mantas não era tarefa fácil.
Mas finalmente arranjei coragem e regressei ao S. João.
Quando, para responder às diversas solicitações, o Sá Ferreira,
era obrigado a deixar o Hospital, por alguns dias ou
semanas, obviamente assegurava-lhe a substituição.
Nunca estas situações causaram qualquer problema entre
nós, dada a confiança que tínhamos um no outro. Por
“
CONSIDERAVA QUE A PASSAGEM
EM SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE
TINHA CONSTITUÍDO
UMA DAS EXPERIÊNCIAS
MAIS ENRIQUECEDORAS
DA SUA CARREIRA.
”
outro lado, tenho a agradecer-lhe não me ter recusado
nenhum pedido de formação. Pelo contrário, era o primeiro
a estimular-me para adquirir novas competências,
porque, inteligentemente, esperava que daí adviesse algum
retorno para o Hospital.
Em 1987 fomos dispensados do HSJ. Um Sá Ferreira naturalmente
amargurado recebeu de bom grado o convite
para cooperar com São Tomé e Príncipe. Durante a sua
estadia em São Tomé - que era para ser de 15 dias e,
afinal, foi de 15 anos, como gostava de dizer - convidoume
para ser monitor de um módulo de um programa
de formação de pessoal em técnicas hospitalares. Tive
oportunidade de constatar a sua capacidade de superar
as situações adversas, resultantes da escassez de meios
de toda a ordem, e o otimismo com que encarava a sua
estadia, só possível pelo apoio da Dª Maria de Fátima,
sua segunda esposa, que desempenhou um papel fundamental
na sua estadia em São Tomé. Ao casal Sá Ferreira
ficámos a dever, eu minha mulher que me acompanhou,
inexcedíveis atenções.
Na altura dava apoio a um pequeno hospital, o Hospital
Dr. Agostinho Neto. Mas acabou por fazer parte
do Conselho de Administração do Centro Hospitalar
de São Tomé que teve a missão de integrar o Hospital
Ayres de Menezes, o Hospital Agostinho Neto e o Hospital
do Príncipe.
Considerava que a passagem em São Tomé e Príncipe
tinha constituído uma das experiências mais enriquecedoras
da sua carreira. Em São Tomé gozava de muito
prestígio, tendo estabelecido frutuosos contactos com as
autoridades daquele país, com o Embaixador Português
com quem mantinha relações muito próximas e com o
Bispo da Diocese de quem se tornou amigo.
Para o fundador da nossa Associação, fica o meu obrigado
e um adeus muito sentido. Ã
50 51
GH homenagem
EDUARDO SÁ FERREIRA,
UMA VIDA PLENA
2 3
4 5
1
8
9
10
1. José Menezes Correia e Eduardo Sá Ferreira
em Rennes, 1969
2. Vista aérea do Hospital de São João à data
da tomada de posse
3. Tomada de posse como Administrador Delegado
do Hospital São João, Porto
4. Jantar de homenagem dos funcionários
administrativos do Hospital de São João
em 1988
5. Reunião, na mesma época, entre a Sr.ª Ministra
da Saúde e a equipa de cooperação
6. Foto alusiva à formação levada a cabo nas diversas
categorias (médicos, enfermeiros, administrativos).
Na foto acompanhado pelo Dr. Magão
7. Dr. Eduardo Sá Ferreira, coordenador do projeto,
e esposa Mª de Fátima Sá Ferreira, secretariado
do projeto. Este evento, do qual se seguem algumas
fotos (8 e 9), decorria sempre no final do ano
e juntava os melhores artistas santomenses
8. Marcavam presença neste evento anualmente
o Bispo de São Tomé e Príncipe e Angola, Abílio Ribas;
esposa do Presidente da República de São Tomé;
Diretora de Enfermagem; Diretora do Centro Hospital
de São Tomé e Presidente da Cruz Vermelha
9. Ministro da Saúde de São Tomé
10. Visita do então Primeiro Ministro, António
Guterres, e Ministra da Saúde, Maria de Belém,
a São Tomé aquando da inauguração do equipamento
oferecido pela cooperação portuguesa. Na foto
acompanhado pelo Primeiro Ministro, Ministro
da Saúde de São Tomé e Diretora do Hospital
11. Durante a visita referida a verificar o equipamento
6
7
11
Fotos gentilmente cedidas por Deolinda Rugeiro Cruz e Menezes Correia
52
53
GH homenagem
GH homenagem
12
13
EDUARDO SÁ FERREIRA,
PESSOA AFÁVEL
E GESTOR COMPETENTE
14 15
António Soares Marques de Lima
Cirurgião ortopedista
12. Na foto acompanhado pelo Ministro da Saúde de São
Tomé, Embaixador português, Professor Torgal e Dr. José
Carlos Lopes Martins
13. Vários encontros com membros das comitivas do Projeto
de Cooperação, tanto a nível do Ministério da Saúde como
dos Negócios Estrangeiros. Na foto acompanhado pelo Ministro
da Saúde de São Tomé, Deolinda Rogeiro, Presidente da O.M.S.
e Embaixador português
14. Visita de S. S. o Papa João Paulo II a São Tomé
15. Confraternização no Dia do Hospital, em São Tomé e Príncipe
16. Curso de formação em Gestão de Saúde para profissionais
de Saúde realizado em São Vicente
17. Curso de Formação em Gestão de Saúde em Maputo
54
18. Curso de Formação na cidade de São Vicente
16 17
18
Nos finais da década de 80, mais precisamente
em fevereiro de 1989, o Dr.
Eduardo Sá Ferreira pisou as terras de
São Tomé. Trazia na bagagem a incumbência
de proceder ao diagnóstico da
situação de saúde no país, como um primeiro passo para
a implementação de um projeto no domínio hospitalar
com financiamento da cooperação portuguesa.
Na empresa Agostinho Neto, antiga Roça Rio do Ouro,
uma das roças mais emblemáticas de São Tomé e Príncipe
existia um imponente hospital, o Hospital Agostinho
Neto. São Tomé e Príncipe e Portugal acordaram em
transformar este hospital num hospital de referência nacional
e também de referência para os países da região
do Golfo da Guiné.
Nomeado administrador do referido hospital, o Dr. Eduardo
Sá Ferreira desempenhou esta função com uma dedicação
e competência notáveis levando o mesmo a ser
uma das instituições sanitárias de preferência dos residentes,
quer nacionais quer estrangeiros, mas também de
pessoas que visitavam o país.
Perante a excelente qualidade de cuidados prestados ao
nível do Hospital Agostinho Neto as autoridades sanitárias
nacionais em parceria com as autoridades portuguesas
decidiram estender este modelo de gestão ao
Hospital Dr. Ayres de Menezes, o maior hospital do pais.
Surge assim a ideia da criação do Centro Hospitalar de
São Tomé e Príncipe, Centro este que passaria a integrar
os dois Hospitais. Nos trabalhos conducentes à criação
deste Centro estavam envolvidos a equipa portuguesa,
chefiada pelo Dr. Eduardo Sá Ferreira, e a equipa santomense
que era chefiada por mim.
Foram semanas de trabalho intenso em que pude observar
e admirar a competência profissional do Dr. Eduardo
Sá Ferreira bem como as suas excelentes qualidades de
relacionamento humano, o que permitiu concluir os trabalhos
com sucesso.
Finalizado e aprovado o projeto do Centro Hospitalar de
São Tomé e Príncipe foi dado início à sua implementação
tendo sido o Dr. Eduardo Sá Ferreira indigitado em 1996
seu Administrador Delegado, incutindo nesta função a
mesma dinâmica que vinha aplicando no Hospital Agostinho
Neto. O paradigma de funcionamento do Hospital
Dr. Ayres de Menezes mudou consideravelmente observando-se
uma melhoria visível na qualidade dos cuidados
prestados.
Enquanto administrador do Centro Hospitalar de São
Tomé e Príncipe, o Dr. Eduardo Sá Ferreira não se esqueceu
da população da Ilha irmã do Príncipe deslocando-se
pessoalmente e proporcionando a ida regular de missões
médicas a esta parcela do território nacional bem como o
abastecimento em medicamentos e outros consumíveis.
Por mais de uma década de uma contribuição inestimável
para o fortalecimento do sistema nacional de saúde e
melhoria da saúde da população de São Tomé e Príncipe,
estou convicto que os santomenses jamais esquecerão
o Dr. Eduardo Sá Ferreira enquanto gestor competente,
pessoa afável e amigo dos seus amigos.
Foi com muita mágoa que te vimos partir caro administrador
hospitalar, companheiro de trabalho, amigo e
compadre Dr. Eduardo Sá Ferreira
Um bem-haja por tudo o que fizeste por São Tomé e
Príncipe e por cada um de nós.
Que Deus tenha em paz a sua alma. Ã
55
GH homenagem
EDUARDO SÁ FERREIRA
1937 2020
SABENDO O QUE SEI HOJE,
ESCOLHIA DE NOVO SER
ADMINISTRADOR HOSPITALAR
Nascido em Esmoriz, foi fundador e sócio nº. 1 da APAH, tendo sido o primeiro presidente
da sua direção até 1984. Licenciado em Economia, foi nos serviços da Zona Hospitalar
do Norte que começou a apaixonar-se pela área da saúde. Teve uma longa carreira
no setor, revelando que foi uma aposta ganha e, em jeito de balanço, afirma que “voltaria
a fazer tudo igual”. A 7 de abril de 2018 foi galardoado com a Medalha de Ouro
de Serviços Distintos do Ministério da Saúde. Em sua homenagem reproduzimos a entrevista
que deu à jornalista Carla Pedro para o livro “50 Anos em 29 Olhares, O percurso
da Administração Hospitalar em Portugal”, uma iniciativa da APAH, publicada pela Almedina.
A
afirmação da profissão
Nestes 50 anos da carreira de administrador
hospitalar destaco a afirmação
da profissão, quer ao nível dos serviços,
quer ao nível do poder.
Hoje são os próprios diretores de serviço que solicitam
o apoio de administradores hospitalares para os seus
serviços, muito embora reconheça que por vezes é mais
como alguém para lhes fazer as contas, as compras e
as estatísticas - mas esse aspeto depende dos próprios
administradores hospitalares, que quando aceitam o
lugar deveriam colocar logo a questão das suas competências
e não aceitar se for só para exercer funções
de “tesoureiro encartado”. No poder também cada vez
se nota mais a sua chamada para ocuparem lugares de
governação. Atualmente, são vários os administradores
hospitalares que fazem parte do Ministério da Saúde.
Trabalhar para estudar
Vou recuar um pouco na minha vida. Como os meus pais
não tinham posses para eu ir para a universidade, resolvi ir
trabalhar para pagar os estudos, tendo arranjado emprego
no Banco Português do Atlântico (BPA), atual Millennium.
O curso era no Porto e dava-me a possibilidade de só frequentar
as aulas práticas que terminavam às 10h. Saía um
pouco mais cedo para chegar a tempo de marcar o ponto
no BPA. Éramos vários nessas circunstâncias e até havia
quem nos chamasse os corredores dos bancos.
Naquele tempo, a progressão na carreira bancária era feita
anualmente, mas dependia muito das informações do
Chefe da Secção e se um funcionário não caísse nas boas
graças do chefe dificilmente saía da “cepa torta”. Ora, eu
nunca fui muito dado a bajulações e portanto, não tive
nem nunca teria grande futuro como bancário. Portanto,
quando acabei o curso, não fui minimamente reconhecido
e, como é lógico, decidi procurar outras profissões.
Paixão pela vida hospitalar
Felizmente, quase a seguir a terminar o curso, abriu um concurso
para Técnico de Organização e Administração (TOA)
da Direção da Zona Hospitalar do Norte, que era a extensão
da extinta Direção Geral dos Hospitais (DGH) - e cujo
diretor era o saudoso professor Coriolano Ferreira, a
maior das referências da nossa Administração Hospitalar.
Como TOA, as minhas funções consistiam em dar apoio
aos serviços administrativos dos hospitais a norte de Avei- }
56
57
GH homenagem
ro, quase todos explorados por Misericórdias. Esse apoio
era sobretudo ao nível do planeamento dos quadros de
pessoal, estudos financeiros e pareceres sobre pedidos
de apoios financeiros. Comecei aí a apaixonar-me pela
vida hospitalar, até porque sabia que não tinha que bajular
ninguém para progredir na carreira.
Um menino de Rennes
A DGH iniciou um ciclo de ações de formação sobre
financiamento, aprovisionamento, técnicas de gestão de
pessoal, e estatísticas direcionadas para os hospitais. Essas
ações eram realizadas no Hospital de Santa Maria.
Eu, mesmo estando colocado no Porto, penso que frequentei
todas as ações, as quais me deram uma grande
bagagem de conhecimentos e uma grande ajuda para o
curso de Diretores de Hospitais que vim a frequentar
em Rennes, uma vez que todos os monitores das ações
eram franceses. Já estava apaixonado pela profissão, mas
o curso de Rennes na Escola Nacional de Saúde Pública
de França, e sobretudo o estágio que fiz no hospital de
Reims (integrado no curso) - onde tive a oportunidade
de acompanhar de perto o trabalho do diretor-geral -
foram a cereja em cima do bolo. Aí decidi que queria ser
administrador hospitalar.
O Parque Jurássico da Administração Hospitalar
Na minha opinião, a minha geração de administradores é
uma espécie de Parque Jurássico da administração hospitalar,
porque no tempo em que iniciei funções de administrador
do Hospital de São João, o grande objetivo era
o apuramento dos custos dos serviços - o que obrigava
a ter uma gestão de stocks que possibilitasse saber os
consumos de cada serviço; uma gestão de pessoal que
permitisse o saber quanto se gastava em pessoal em cada
serviço; e estatísticas fiáveis.
Nestas vertentes, tive a sorte de ter excelentes colaboradores.
Nos stocks, o Meneses Correia; no pessoal, o Dr.
Joaquim Carneiro, infelizmente já falecido; nas estatísticas,
o Dr. Carlos Magalhães, também infelizmente já falecido;
e nos serviços financeiros era bem apoiado pela Dra.
Margarida Trindade e pelos seus colaboradores, alguns
com muita competência.
Com a evolução tecnológica, admito que todos estes
objetivos sejam passado. Hoje o administrador hospitalar,
quando inicia funções, nem lhe passará pela cabeça
não ter esses instrumentos de gestão, ou seja, os custos
dos serviços e a sua discriminação por tipo de despesa,
estatísticas fiáveis e gestão de stocks, para saber onde se
gasta e como se gasta. Além disso, o sistema informático
é completamente diferente, para melhor, do meu tempo.
No meu tempo, os computadores ocupavam uma parede
e funcionavam com cartões perfurados. Lembro-me
que a informática só se utilizava na emissão dos recibos
dos vencimentos, para o que era necessário um batalhão
de pessoal em horas extra para perfurar os cartões. Ora,
hoje qualquer pessoa pode ter um computador no bolso,
desde que tenha um smartphone.
Isto para justificar, por um lado, o epíteto que coloquei
nos administradores da minha geração, e, por outro, para
dizer que a administração hospitalar terá de se adaptar rapidamente
à evolução tecnológica. Mas julgo que a Associação
Europeia de Diretores de Hospitais (AEDH) está
atenta e já formou um grupo de trabalho para o efeito,
onde está representada a APAH. Faço mais um parênteses
para referir o excelente trabalho que o presidente
Dr. Alexandre Lourenço tem vindo a fazer em prol da
afirmação da profissão.
Portanto, em resumo, há necessidade de os administradores
hospitalares que acabam o curso e iniciam as funções
terem realizado o estágio em hospitais devidamente
credenciados para o efeito, credenciais que devem ter o
aval da APAH e que devem ter em conta a análise dos
instrumentos de gestão existentes para o bom desempenho
do administrador.
E já agora, que se inicie a avaliação dos conselhos de administração
dos hospitais há muito prometida, mas que
“não ata nem desata”, se calhar por razões mais obscuras.
Mas, como agora temos uma ministra administradora
hospitalar, talvez seja desta.
A experiência em São Tomé e Príncipe
Recuando um pouco na minha vida, recordo-me que a
passagem por São Tomé e Príncipe foi das experiências
mais enriquecedoras da minha carreira, a par do período
do PREC - este foi dose, mas com os dois aprendi muito.
Em 1989 fui a São Tomé e Príncipe a pedido do diretor
do Instituto Amaro da Costa, o Dr. Anacoreta Correia,
que mais tarde viria a ser embaixador de Portugal naquele
país. Fui lá por 15 dias para fazer uma análise aos serviços
de saúde e propor possíveis área de cooperação - e
esses 15 dias transformaram-se em 15 anos.
É um país maravilhoso, com um povo maravilhoso, onde
qualquer coisa que se faça é sempre objeto de agradecimento.
E então na área da saúde…
Comecei a trabalhar no Hospital Dr. Agostinho Neto,
que tinha sido objeto de obras de beneficiação por parte
da cooperação portuguesa. Ali fizemos um excelente
trabalho, com a responsabilidade do apoio à cooperação
a ser assumida pelo Departamento de Relações Internacionais
da Direção-Geral de Saúde, em conjunto com os
Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC).
O hospital era fácil de gerir porque era muito pequeno,
com 45 camas repartidas por Pediatria e Medicina Interna.
O problema que se me punha eram as mudanças das
equipas de seis em seis meses e nunca se saber o que dali
viria. Cheguei a desconfiar que os serviços em Portugal,
quando se queriam ver livres de alguém, mandavam a
pessoa para uma missão de cooperação em São Tomé
e Príncipe. Tive problemas gravíssimos com alguns deles.
Aproveitando a ida a São Tomé e Príncipe do então ministro
da Saúde, Dr. Paulo Mendo, as autoridades sanitárias
santomenses pediram para que a cooperação se estendesse
ao principal hospital de S. Tomé, o Hospital Dr.
Ayres de Menezes, situado na cidade capital. O Ministério
da Saúde de São Tomé e Príncipe entendeu acrescentar
a esse pedido o hospital da Ilha do Príncipe, criando assim
o Centro Hospitalar de São Tomé (CHST - composto
pelo Hospital Agostinho Neto (HAN), pelo Hospital Dr.
Ayres de Menezes (HAM) e pelo Hospital do Príncipe).
Com a tomada de posse do conselho de administração
do CHST deu-se início ao trabalho do Centro Hospitalar.
Mas muitos foram os condicionalismos e entraves que tiveram
de ser vencidos e ultrapassados.
Entre esses entraves estava, desde logo, o facto de se estar
a instalar uma coisa nova em cima de uma outra já
existente e com rotinas adquiridas ao longo de anos. Foi
preciso vencê-las - e para as vencer foi necessário procurar
a colaboração do pessoal, o que muitas vezes se tornou
difícil porque o pessoal se mostrava avesso a alterar
as rotinas.
Os cerca de 6.000 km que separam São Tomé e Príncipe
de Portugal muitas vezes provocaram, como é óbvio,
dificuldades acrescidas no funcionamento do CHST. Foi
necessário criar ligações corretas com os órgãos portugueses
que coordenavam e orientavam o projeto em
Portugal. Foi preciso reorganizar serviços, incluindo novas
estruturas orgânicas, o que muitas vezes implicou recuos
do processo - já que se verificava que, na prática, a mudança
não resultava da forma pretendida.
Houve também necessidade de criar meios de controlo
de gestão para que os muitos recursos postos à disposição
do projeto não fossem desbaratados. E foi necessário
prover os lugares dos quadros santomenses e portugueses:
quanto à parte santomense, foi necessário pôr em
marcha a máquina pesada dos concursos; quanto ao quadro
português, no início a dificuldade na oferta de pessoal
médico das especialidades requeridas no projeto obrigou
a recorrer a missões encurtadas na sua duração, o que, no
meu entender, não era vantajoso para o projeto.
Tivemos ainda dificuldades iniciais com a disponibilização
atempada dos financiamentos - quer português, quer santomense.
Mas, acertadas de parte a parte as regras de
funcionamento, o trabalho desenvolvido começou a dar
resultados bem evidenciados nas realizações efetuadas. E
dou alguns exemplos.
“
RECUANDO UM POUCO
NA MINHA VIDA, RECORDO-ME
QUE A PASSAGEM POR SÃO TOMÉ
E PRÍNCIPE FOI DAS EXPERIÊNCIAS
MAIS ENRIQUECEDORAS DA MINHA
CARREIRA, A PAR DO PERÍODO
DO PREC - ESTE FOI DOSE, MAS
COM OS DOIS APRENDI MUITO.
Regulamentação e organização do CHST
No campo da regulamentação e organização, o conselho
de administração publicou regulamentos, despachos, cir-
”
culares e ordens de serviço que abrangiam ações, atividades
e serviços visando a melhoria das prestações do Centro
Hospitalar; organizaram-se serviços numa perspetiva
de máxima rentabilização dos recursos disponíveis; abriram-se
pavilhões que estavam encerrados, apresentou-
-se o projeto de obras e de reequipamento da cozinha;
centralizaram-se os serviços de Pediatria, do Laboratório
de Análises Clínicas e de Imagiologia - e com esta centralização
pouparam-se recursos, sobretudo os humanos.
Mas houve mais. Implementou-se, em área improvisada,
uma consulta externa no Hospital Dr. Ayres de Menezes,
que não existia. Tanto a organização funcional como a higiene
e limpeza deram a todos os utentes uma imagem
acolhedora. Implementou-se também, nesse mesmo hospital,
um sector de arquivo clínico que até então não existia.
Além disso, organizou-se o secretariado da direção, administração
e conselho de administração; informatizaram-
-se os sectores de secretariado, secretaria, arquivo clínico,
laboratório, farmácia e administração; organizaram-se os
armazéns de medicamentos, o dos materiais e produtos
de consumo de enfermagem, hoteleiros e gerais, e o de
materiais administrativos - implementando-se uma disciplina
de recepção e entrega de produtos aos serviços.
Reorganizaram-se ainda os serviços de Urgência, Medicina,
Pediatria e Tisiologia, com uma reestruturação hierárquica
e de atribuição de responsabilidades de chefia.
Por outro lado, estabeleceram-se com os HUC protocolos
de funcionamento financeiro e de aprovisionamento;
regulamentaram-se muitos serviços e sectores através de
ordens de serviços, despachos ou regulamentos; e o conselho
de administração passou a reunir-se semanalmente. }
58 59
GH homenagem
Dotação de recursos humanos suficientes
No campo dos recursos humanos, materiais e financeiros,
também houve grandes desenvolvimentos. Procurou
dotar-se o CHST com recursos humanos suficientes em
qualidade e quantidade para a assistência praticada; realizaram-se
concursos de provimento do quadro de pessoal
santomense; procurou manter-se os stocks de consumíveis
a níveis corretos e, salvo um caso ou outro caso,
sempre foi conseguido este objetivo.
Ainda neste domínio, conseguiu-se também manter a
gestão dentro dos envelopes financeiros atribuídos e lançou-se
o sistema de recuperação de custo.
Investimentos relevantes para São Tomé
Realizaram-se também importantes investimentos, nomeadamente
na nova cozinha - tendo havido aqui um
grande apoio do Ministério da Saúde de Portugal e da
Fundação Calouste Gulbenkian, na iluminação do terreno
hospitalar, na canalização de água para o Hospital Dr.
Ayres de Menezes, no fornecimento de energia, na rede
para a cablagem dos telefones, na pavimentação de parte
do terreno, na capacidade de frio para armazenagem de
produtos alimentares, e no equipamento informático.
Também se beneficiaram os serviços de Pediatria 2, com
pinturas e arranjos interiores e exteriores; e recuperou-se
o Armazém Geral, que estava destelhado e sem segurança.
Solucionou-se ainda o problema do fornecimento de
água aos serviços de Radiologia, Maternidade, Pediatria
1 e 2, Laboratório de Análises Clínicas, Armazém Geral,
Edifício da Administração, Refeitório do Pessoal e Cozinha.
Com isto, foi praticamente resolvido um problema
que existia há muitos anos no Hospital Dr. Ayres de Menezes:
o da falta de água em quase todo o hospital.
Mas não só. Avançou-se com a recuperação das câmaras
frigoríficas da Casa Mortuária, há muitos anos sem
funcionar; fez-se uma obra de beneficiação do Serviço
de Urgência, cujas instalações estavam muito degradadas;
instalou-se um novo equipamento de Oftalmologia; fizeram-se
obras e instalaram-se novos equipamentos na Lavandaria,
tornando-a mais moderna, higiénica e funcional;
e procedeu-se à iluminação de todo o terreno do hospital,
o que aumentou consideravelmente a segurança.
Melhores prestações de serviço
Melhorou-se também substancialmente a qualidade e
quantidade da assistência praticada; melhorou-se inegavelmente
a qualidade e a quantidade das dietas servidas
a doentes e pessoal em serviço; melhorou-se de forma
considerável a qualidade do alojamento; e investiu-se na
segurança do hospital. Abriram-se igualmente os Pavilhões
de Medicina e de Pediatria, que há muito se encontravam
encerrados, dando aos doentes condições de alojamento
muito boas. Tornou-se mais humano o atendimento nestes
serviços. Além disso, conseguiu-se resolver o problema,
que se arrastava há muitos meses, do fornecimento
de energia ao HAM; redistribuíram-se os doentes entre o
HAM e o HAN; e melhorou-se nitidamente a qualidade
e a quantidade das refeições servidas a doentes e pessoal.
Mais formação e maior aposta no domínio social
No campo da formação, investiu-se na formação de pessoal
- quer com ações no exterior, quer, e sobretudo,
com a formação em serviço e interna.
Praticaram-se ações de formação a médicos, através de
sessões e visitas clínicas, bem como um programa de formação
para pessoal de enfermagem em sistema modular.
Já no domínio social, houve uma preocupação evidente
de beneficiar socialmente os trabalhadores do CHST,
atribuindo várias regalias, as quais foram extensivas aos
trabalhadores do Hospital do Príncipe; e realizaram-se
também convívios e festejaram-se datas e ações consideradas
relevantes. Por outro lado, e numa perspetiva de
disciplinar o funcionamento do CHST em todos os seus
aspetos, pôs-se a funcionar um refeitório para todas as
categorias de pessoal - um refeitório decente com condições
de atendimento.
Especificidades locais levaram ao encerramento do HAN
e, por outro lado, a redesenhar o Centro Hospitalar de
São Tomé e Príncipe (CHSTP), já que se decidiu estender
o apoio de Portugal ao Hospital Manuel Quaresma
Dias da Graça, no Príncipe - houve apoio das refeições a
doentes e pessoal; houve também algum investimento,
sobretudo para beneficiação das estruturas físicas do internamento
e consultas; fornecimento de medicamentos,
produtos de laboratório, produtos de radiologia, produtos
hoteleiros e de limpeza e material administrativo; e,
não menos importante, apoio nas viagens disponibilizadas
pela Embaixada de Portugal pelos seus créditos mensais
do AVIOCAR. E foi assim a minha experiência em São
Tomé e Príncipe, que tanto me enriqueceu e da qual tanto
me orgulho.
O declínio do SNS
Hoje, pelo que me apercebo, o Serviço Nacional de Saúde
(SNS) está em declínio. Pelo que ouvimos e lemos na
imprensa, torna-se difícil ao utente obter consultas, fazer
exames de diagnóstico, ser internado, ser operado quando
necessitado de intervenção cirúrgica.
Com a greve cirúrgica dos enfermeiros, as coisas parecem
ter piorado. Há que tomar decisões para que tal situação
não se arraste por muito mais tempo. Parece que esse
também é o entendimento do Ministério da Saúde. Falta
saber se o problema é mesmo resolvido. Digo isto porque
enquanto o Ministério da Saúde estiver refém do Ministério
das Finanças, parece-me difícil, muito embora entenda
também a posição do Ministério das Finanças - que não
pretende “mandar pelo cano” tudo o que se conseguiu.
Serão precisos muitos milhões de euros para fazer com
que o SNS possa de novo responder às necessidades dos
utentes. Mas os contribuintes estão cada vez mais informados
dos seus direitos e o desenvolvimento tecnológico
não pára. Basta ver o que se passa nos WebSummit.
Eu, por experiência própria, já pude constatar essa evolução
com o tratamento de radioterapia: comecei com
um aparelho muito diferente do último, em que o equipamento
era muito diferente do equipamento das sessões
anteriores (Cyberknife), mas cujo preço deve ser
muito elevado e quase incomportável para os hospitais
portugueses, cujo financiamento não está conforme as
necessidades. Só mesmo um sistema de financiamento
renovado é que permitirá aos hospitais portugueses
acompanhar a evolução tecnológica em que “o que vale
hoje, amanhã está desatualizado”.
Quatro desafios na Saúde
Na minha perspetiva, há que repensar:
• O sistema de financiamento;
• A organização dos hospitais e dos demais serviços de
saúde públicos;
• O grau de autonomia das direções dos serviços de saúde,
para que uma simples decisão não tenha de passar
por vários serviços em que todos querem apor uma assinatura,
muitas vezes só para justificar o seu lugar;
• A possibilidade de cruzar dados clínicos entre hospitais
privados e públicos.
Lembro-me que quando estava no Hospital de São João,
um dia pedi autorização para fazer uma admissão de um
enfermeiro - muito necessário para apoiar o serviço de
Cirurgia Cardíaca. Quando o ofício me foi devolvido (passados
três ou quatro meses), trazia 30 assinaturas de concordância!
Só que, entretanto, o diretor de Serviço, e com
muita razão, já me tinha massacrado a cabeça porque não
compreendia como um lugar que estava previsto no quadro,
tendo portanto cabimento, demorava tanto tempo
a decidir - ao ponto de o enfermeiro que ele queria já ter
arranjado outro local. Não sei se as coisas ainda funcionam
assim - porque se funcionam assim, então não funcionam.
Nos últimos anos, o SNS tem sido vítima de um arrastado
processo de degradação no funcionamento e na resposta
às necessidades dos seus utentes, e de degenerescência
dos seus princípios fundadores.
A proposta da Nova Lei de Bases pretende reforçar os
direitos dos refugiados e imigrantes ilegais em matéria de
saúde, incluindo de forma explícita os requerentes de asilo
e os migrantes sem a situação legalizada na lista de beneficiários
do Serviço Nacional de Saúde, a prevenção da
doença e a presença da saúde em todas as políticas. Mas
também versa sobre a garantia do acesso aos serviços
públicos de saúde, as profissões, os aspetos organizativos
“
SOBRE A CARREIRA, SÓ A DIREÇÃO
ATUAL DA APAH E OS ATUAIS
COLEGAS PODERÃO DIZER
O QUE ESPERAM, MAS ESPERO
QUE EVOLUA NO BOM SENTIDO.
MAS ISSO DEPENDE DE COMO
OS NOVOS ADMINISTRADORES H
OSPITALARES ENCAREM ESTA
EXIGENTE PROFISSÃO.
”
do SNS, o financiamento e a regulação do sector privado.
Acrescento que seria um avanço muito grande se todos
os hospitais públicos e privados pudessem ter acesso total
ao processo clínico dos utentes. Por experiência própria,
já fui obrigado a realizar exames que tinha feito noutro
estabelecimento. Poupava-se em consumo de materiais
e sobretudo em desgaste para o utente, sobretudo se
forem exames que recorram ao raio X.
Hoje faria tudo igual
Sobre a carreira, só a direção atual da APAH e os atuais
colegas poderão dizer o que esperam, mas espero que
evolua no bom sentido. Mas isso depende muito de como
os novos administradores hospitalares encarem esta
exigente profissão que, tanto quanto sei, ainda não é remunerada
como devia ser. Mas também não pode ser
só o dinheiro a orientar as escolhas. Terá de ser o gosto
por esta linda profissão. Se fosse hoje que estivesse a começar
a trabalhar, e sabendo o que sei hoje, escolhia de
novo ser administrador hospitalar. Ã
Vila Nova de Gaia, 11 de janeiro de 2019.
60 61
GH saúde pública
SAÚDE PÚBLICA
E CONHECIMENTO: UM ELENCO
FUNDAMENTAL NO FUTURO
DA GOVERNAÇÃO CLÍNICA
“
Dr.
PARA QUEM NÃO SABE O QUE DESEJA ALCANÇAR, QUALQUER AÇÃO É IGUALMENTE VÁLIDA...
”
Ricardo Eufrásio
Médico Assistente de Saúde Pública, ACES Baixo
Vouga - Administração Regional de Saúde do Centro
A
consciência de que há a possibilidade de
melhorar a utilização dos recursos disponíveis,
tem conduzido à implementação
de reformas no setor da saúde.
O debate sobre a arquitetura da prestação
e distribuição dos recursos, é fundamental para garantir
a sustentabilidade financeira e a otimização da qualidade
da resposta às necessidades e expectativas dos utentes.
Ambiciona-se uma cultura organizacional suportada por
um conjunto de atividades agrupadas em análise, planeamento,
execução e avaliação. Pretende-se que seja indutora
de maior responsabilização e exigência, para alcançar
melhores resultados em saúde, aumentando o envolvimento
e a eficiência dos prestadores.
Tal implica um sentido de exigência e responsabilização dos
prestadores, o conhecimento das necessidades da população,
a existência de uma política de saúde com prioridades
bem definidas, especificando-se os cuidados a serem
E IGUALMENTE INÚTIL.
Pedro Beja Afonso, Seminário Faculdade Economia, Universidade de Coimbra, 2016
prestados, avaliação e responsabilização, salvaguardando
elevados padrões de qualidade. Deverá ser um processo
blindado da volatilidade do sistema ou opções políticas.
Eis então que nos surge o conceito da mudança paradigmática:
governação clínica. Nos finais da década de 1990,
o conceito de governação clínica, apesar de impreciso,
e com diferentes interpretações, considerado central na
reforma dos serviços de saúde, tornou-se reconhecido internacionalmente.
Tentava lidar de forma inovadora com
a necessidade de maior eficiência, sendo largamente reconhecida
a importância e inovação da mudança de cultura
organizacional introduzida; uma de serviço, qualidade
e responsabilidade social. 1,5
Em 1998, definia-se governação clínica como “...uma rede
através da qual as organizações do Serviço Nacional de
Saúde são responsabilizadas pela contínua melhoria da
qualidade dos seus serviços, salvaguardando elevados padrões
de cuidados, criando um ambiente no qual a excelência
nos cuidados de saúde desenvolver-se-á.” 2,5,6
A governação clínica integra princípios e processos orientados
na gestão da mudança e inovação nos serviços de
saúde, assumindo e promovendo um compromisso e uma
responsabilidade na definição de padrões de qualidade assistencial,
numa abordagem sistemática para assegurar
melhoria de qualidade nos referidos serviços, introduzindo-a
nas agendas institucionais, anteriormente dominadas
por questões económicas de natureza não assistencial, reconhecendo
a satisfação dos utentes e profissionais de
saúde, como um dos principais motores para a eficiência
financeira e económica nos serviços de saúde. 1,3,5
A Organização Mundial de Saúde sistematiza a qualidade
em quatro princípios: desempenho profissional, eficiência,
gestão de risco (risco de lesão ou doença relacionado
com a prestação de cuidados) e satisfação dos utentes. 5
Na governação clínica, o desenvolvimento de valores, objetivos,
planos e ações, que traduzam os princípios supracitados
na gestão dos serviços, considera: 2,3,5,6,8-12
• Transparência, responsabilização (“prestação de contas”),
orientação para os resultados em equilíbrio com a
satisfação das necessidades;
• Qualidade centrada e orientada nos utentes;
• Liderança dos profissionais nos processos de tomada
de decisão vinculados ao processo assistencial;
• Gestão de risco, monitorização de resultados, processos
de auditoria clínica, sistema de gestão de reclamações e
queixas, e prática médica baseada e informada na evidência;
• Envolvimento dos profissionais, trabalho em equipa multidisciplinar
(confiança, cooperação e responsabilização);
• Participação e integração dos próprios utentes na definição
de padrões de qualidade, expectativas de serviço e
processos de avaliação;
• Responsabilidade social;
• Investigação e conhecimento;
• Formação contínua dos profissionais, permitindo gerir e
partilhar o seu conhecimento.
É fácil identificarem-se três constrangimentos que dificultam
a implementação da mudança preconizada pela governação
clínica: 3
• Escassez de recursos afetos;
• Dificuldade de criar ambiente aberto e participativo entre
os profissionais;
• Dificuldade de desenvolver uma dimensão multidisciplinar
de trabalho.
Apesar dos constrangimentos, sistematizam-se três abordagens
diferentes, complementares e indissociáveis, focadas:
13
• Na doença (modelo biomédico);
• No doente (modelo humanista);
• Na população (modelo de saúde pública).
É evidente que muitos dos desafios que afetam a saúde
das populações, envolvem a abordagem de problemas
complexos. As doenças crónicas não transmissíveis (DC
NT) (ex.: diabetes, doença pulmonar obstrutiva crónica) e
respetivos fatores de risco representam, em despesas de
saúde, até 6,7% do PIB em alguns países europeus. 14 Os
determinantes comportamentais, tais como hábitos tabágicos,
alcoólicos, alimentares, de atividade física/sedentarismo,
têm impacto significativo na saúde, particularmente
no aumento de prevalência das DCNT. Curiosamente,
passíveis de prevenção.
A necessidade de alerta e resposta para fenómenos inesperados,
diferentes estirpes de influenza, epidemias “ocul-
tas” (ex.: doença Lyme, febre Q), emergência de microrganismos
resistentes aos antibióticos (assumindo contornos
“pandémicos” em algumas regiões do globo), a transição
epidemiológica da tuberculose, ou até a incidência de
traumatismos cranioencefálicos nas crianças em acidentes
de bicicleta, são apenas alguns exemplos de como a vigilância
epidemiológica e intervenção comunitária são (ou
deveriam ser) elementos chave no contexto dos serviços
de saúde pública (SP).
Saúde pública e governação clínica
Os serviços de SP são confrontados com limitações na
sua área de intervenção. Atualmente renovam-se prioridades,
compromissos e intenções repetidas, com particular
ênfase na prevenção, defendendo sistemas de saúde
reforçados, e desenvolvimento de estratégias e políticas
nacionais de saúde.
Os serviços de SP oferecem mecanismos essenciais no
planeamento em saúde, para uma perspetiva compre- }
62 63
GH saúde pública
“
O PROBLEMA DA GESTÃO
DE QUALIDADE NÃO É
O QUE AS PESSOAS
DESCONHECEM SOBRE ISSO.
É O DE QUE JULGAM SEREM
SABEDORAS".
(PHILIP CROSBY
IN "QUALITY IS FREE"
”
ensiva e horizontal das necessidades em saúde da população,
analisando estratégias mais abrangentes, criando redes
inovadoras para ação, envolvendo diferentes intervenientes,
de que é exemplo, a elaboração dos Planos Locais
de Saúde.
O planeamento em saúde é um processo permanente,
contínuo e dinâmico. Contribui para a racionalidade da tomada
de decisões, selecionando, entre várias alternativas,
um percurso de ação, implicando uma causalidade entre
a ação tomada e os resultados determinados, permitindo
a racionalização dos recursos de saúde, necessários para
atingir determinados objetivos, segundo uma ordem de
prioridade estabelecida. 15,16
Para a SP assumir a liderança na melhoria dos serviços de
saúde, deveremos reforçar as respetivas intervenções, capacidades
e serviços. Tal requer uma definição clara do seu
papel. Considerando as competências e operações técnicas
essenciais na área, estas tornam-na um colaborador
ideal na implementação e dinamização da governação clínica
nos serviços de saúde.
Os componentes técnicos da “reforma” da SP incluem
uma cultura positiva de melhoria, que deverá ser suportada
por várias estratégias: trabalho em equipa; liderança;
qualidade e efetividade dos serviços; sistemas de informação;
investigação e conhecimento.
Trabalho em equipa
Ninguém faz nada sozinho. A governação clínica sugere
uma mudança cultural, para uma de aprendizagem e participação,
recetiva à análise e reflexão dos cuidados prestados,
criando um ambiente de trabalho, aberto e participativo,
onde as ideias e boa prática são partilhados, onde
a formação e a investigação são valorizadas, e onde a “culpa”
raramente é usada. 2,7
Para que as transformações sejam sustentáveis, as soluções
deverão ser contextualizadas com envolvimento
alargado, permitindo superar conflitos entre gestores e
médicos. O paradigma baseia-se na busca da eficiência,
propondo a participação dos médicos na gestão para assegurar
o controlo dos gastos através do seu controlo
direto ou indireto. 3,4,6
O diálogo é mais fácil onde as relações de trabalho se
baseiam num significado e propósito partilhado. 2,7 O futuro
passa por uma cultura em que médicos, gestores e
demais profissionais trabalham com o mínimo de hierarquias
e fronteiras entre si. 5
Liderança
Os líderes participativos poderão ter uma contribuição
determinante no desígnio de alcançar melhores resultados
em saúde. 6,7 As lideranças exigem grande capacidade
de diálogo e preparação técnica robusta, entre as quais
se destacam a capacidade de interpretar criticamente os
resultados de investigação clínica. 2,6
É fundamental que a liderança esteja confortável na inovação
e gestão da mudança. Estas, podem ser encaradas
como ameaças, mas na realidade são oportunidades de
desenvolvimento e evolução. É inegável o seu papel na
sustentação, apoio e promoção da cultura de gestão pela
qualidade. É fundamental encarar os profissionais como
elementos chave na mudança, considerando o equilíbrio
entre a respetiva autonomia e independência profissional,
integradas num sentido de responsabilidade coletiva. 5,7
Qualidade e efetividade dos serviços
Entre os principais objetivos da governação clínica, está
a promoção de responsabilização dos profissionais pelos
respetivos desempenhos. A necessidade de “prestar
contas” alarga a noção de responsabilidade profissional,
implementando processos que visam aumentar a transparência,
entre os quais: reclamações, auditorias, ou vigilância
de rotina. 5,6,17
As auditorias clínicas estão entre os principais elementos
para controlar a qualidade. 3,17 Apenas são possíveis
se existirem os recursos necessários para implementar
as alterações necessárias, que se demonstrem necessárias,
face a limitações ou constrangimentos identificados.
É determinante promover melhores cuidados de saúde,
aprender com as falhas identificadas e procurar oportunidades
constantes de melhoria e aprendizagem.
São necessários sistemas de informação em saúde (SIS),
que demonstrem como estão a ser prestados os cuidados,
sendo dos elementos que mais discussões têm criado,
nesta reforma cultural. 6,20
Sistemas de informação
Nada se move tão depressa como a informação. Esta
realidade torna a sua partilha, um dos elementos fundamentais
em SP, evidenciando o “tempo” como um dos
seus recursos mais valiosos. Neste contexto, os sistemas
de informação facilitam o acesso rápido a múltiplas fontes
de informação numa variedade de formatos, e aplicações,
oferecendo uma ambicionada e coerente eficiência, sem
prejudicar as interações entre doente e médico. 13
A recolha e análise de informação estão a tornar-se uma
competência “nevrálgica” central no planeamento e administração
nas organizações de saúde, 3,5,7 no qual os sistemas
de informação serão um instrumento fundamental,
mas nunca um fim em si mesmo. Em vez de se considerarem
apenas os problemas que os sistemas de informação
podem resolver, tais como uma caligrafia ilegível,
a investigação deve ser dirigida aos novos problemas e
oportunidades que podem aparecer com a utilização das
tecnologias de informação.
A informação e investigação em saúde são os princípios
fundamentais para o reforço dos serviços e políticas de
saúde, sendo os sistemas de informação um instrumento
integrante e estrutural na governação clínica, e crítico na
transformação dos serviços de saúde. No passado recente
têm servido sobretudo necessidades de monitorização
de níveis superiores, ao invés de facilitarem, uma das suas
essências, a tomada de decisão clínica.
Uma limitação substancial e transversal aos referidos sistemas
está na qualidade da informação registada. É necessário
maior compromisso na precisão, adequação e análise
para avaliar a respetiva qualidade, e impacto no processo
de governação clínica. 5,20
Os SIS são um instrumento essencial para o conhecimento,
mas infelizmente subaproveitados. Há uma necessidade
crescente para uma maior e melhor compreensão
de como a investigação e conhecimento são produzidos
e aplicados.
Investigação e conhecimento
No dicionário de Língua Portuguesa “investigação” significa
“seguir os vestígios de; indagar; pesquisar; esquadrinhar;
inquirir”. Neste contexto, investigar é um estado de espírito
que tem como objetivo colher informações, as quais
constituem a base de qualquer ação ou intervenção.
O incentivo à investigação, à elaboração de normas de
orientação clínica e implementação de protocolos baseados
na evidência de efetividade, é estrutural na ambição
pela qualidade nos cuidados de saúde.
Entre 2% e 53% (média 19%) dos tratamentos oferecidos
aos utentes não têm investigação substancial que os
suporte. 19 Um estudo de 16 normas de orientação do
Colégio Americano de Cardiologia e da Sociedade Americana
de Cardiologia, concluiu que apenas 314 (11%) de
2711 recomendações eram suportadas por elevado grau
de evidência. 19
A partilha e competências de gestão de conhecimento
têm de ser priorizadas, desenvolvidas e implementadas
na agenda dos programas de saúde.
Saúde pública e conhecimento
A saúde pública é uma especialidade médica na qual me
identifico com uma palavra-chave: o conhecimento; cuja
produção é sem dúvida uma das suas atribuições.
É fundamental pensá-lo estrategicamente, e comunicá-lo
eficazmente. Esta comunicação é vital e estrutural em
qualquer organização, instituição ou serviço, sob pena de
comprometer a eficácia de uma decisão tecnicamente
sustentada. O conhecimento é essencial à tomada de decisões.
Esta, combina arte e ciência, informação e execução,
procurando factos ou elementos relevantes, em vez }
64 65
GH saúde pública
de medidas emocionais, identificando necessidades, limitações,
constrangimentos, fundamentando a decisão informada.
Jamais, a tomada de decisões poderá continuar
a ser confortavelmente baseada apenas, em “achismos”.
Considerando o conhecimento, um recurso estratégico
na governação clínica, é fundamental compreender-se
como é produzido e usado (ou não) na prática. Quando
se discute atualmente a “Reforma da SP”, são necessárias
novas abordagens no reforço da evidência, para orientar
os decisores em intervenções eficazes e custo-efetivas a
longo prazo.
O planeamento e desenvolvimento de investigação em
saúde, requer uma relação negociada entre o investigador
e os utilizadores do conhecimento. Nestas circunstâncias,
a troca, partilha de conhecimento ocorre através
da construção de redes de comunicação nos contextos
locais, interinstitucionais.
A gestão do conhecimento é uma competência e capacidade
cada vez mais valorizada. Exige um planeamento
cuidadoso, e uma dinâmica e comunicação competentes.
A revolução da informação e o seu potencial sucesso têm
sido, de forma inquestionável, absorvidos pelos sistemas
de saúde, se bem que a velocidades diferentes.
A arquitetura da governação clínica aspira ambiciosamente
que todas as organizações de saúde tenham um compromisso
regulamentado na procura da melhoria da qualidade.
1,5 É necessário que todos os serviços desenvolvam
sistemas de responsabilização para a qualidade dos cuidados
que disponibilizam aos utentes. 2 É necessário identificar
limitações, que importem resolver, nomeadamente
as que resultam da escolha de prioridades, da distribuição
de recursos e da definição de objetivos de ação, entre os
profissionais, a administração e a comunidade. 5
A inovação que a governação clínica aporta está na sua
dimensão organizativa. Apenas uma visão estratégica global
pode garantir um processo efetivo de melhoria contínua
da qualidade, contribuindo para que a governação
clínica seja um recurso em si mesmo.
A prevenção de doença e promoção de saúde são elementos
particularmente importantes da SP, infelizmente
pouco desenvolvidos, resultado de opções do passado
recente, bem como reformas e alterações estruturais,
que priorizaram outros domínios, sem o adequado planeamento
e investimento em serviços de prevenção.
Aprendi que o conhecimento, recurso estratégico na
governação clínica, é determinante no planeamento em
saúde. O “espírito” da governação clínica é o de se autocorrigir,
com novos resultados, novas conclusões, e novas
ideias. É a liberdade da investigação que gera o conhecimento.
É à liberdade da investigação que o conhecimento
se consagra.
O futuro da especialidade médica de saúde pública, exigirá
uma articulação multidisciplinar e complementar com
os demais serviços de saúde, no processamento da informação
e produção de conhecimento.
Acredito que o meu futuro na especialidade médica de
saúde pública me exigirá uma capacidade constante de
inovação, imaginação e decisão. Constituirá sem dúvida,
um desafio. Vejo-o como uma oportunidade para o desenvolvimento
e evolução na prestação de serviços, numa
visão comunitária de saúde. Ã
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trust”. Clinician in Management 1999; 8: 81-88.
C
M
Y
CM
MY
CY
CMY
K
NÃO MASCARE
A SUA SAÚDE
Neste contexto de pandemia, tão importante
como estar protegido por fora, é manter-se
protegido por dentro. Descurar a saúde pode
ser grave. Dê atenção a sintomas, continue os
seus tratamentos e lembre-se que ir ao médico,
continua a ser essencial e seguro.
#saudeemdia
www.saudeemdia.pt
APOIO
66
GH espaço ensp
RISCO DE COVID 19
EM PROFISSIONAIS DE SAÚDE
António Sousa-Uva
Médico do Trabalho, Imunoalergologista
e Professor Catedrático da ENSP da UNL
Mafalda Sousa-Uva
Doutorada em Epidemiologia pela ENSP-
-NOVA, Investigadora em Epidemiologia
das Doenças Crónicas
Os profissionais de saúde (PS) são, no
contexto da atual pandemia de Covid-19,
e entre outros, um dos grupos
que apresenta maior risco de contágio,
já que o exercício da sua atividade
profissional determina tal realidade. Trata-se de um
grupo de pessoas com contacto direto com casos suspeitos
e doentes infetados pelo SARS-CoV-2 que tem,
portanto, necessariamente de ser protegido pela sua (e
a nossa) saúde. Uma vez que os PS se encontram em
contacto próximo com os casos suspeitos e doentes
infetados pelo SARS-CoV-2, devem ser asseguradas as
melhores condições de trabalho que lhes permitam, por
um lado, estar e sentirem-se protegidos e, por outro
lado, protegerem os seus doentes. Se não cuidarmos da
sua saúde e segurança, e não exclusivamente com recurso
a equipamentos de proteção individual, a qualidade
da prestação de cuidados será afetada já que a saúde
dos cidadãos também depende da saúde e segurança
dos prestadores de cuidados.
O grupo de investigação em Saúde Ocupacional do Barómetro
Covid-19 da Escola Nacional de Saúde Pública
da Universidade Nova de Lisboa realizou um estudo
transversal, constituído por três questionários consecutivamente
aplicados online e de preenchimento individual,
com o objetivo de caracterizar alguns fatores de risco
profissionais a que estão expostos os profissionais de saúde
portugueses no decorrer da pandemia por Covid-19.
A participação (em abril e maio) foi voluntária e anónima
e traduz a perceção individual de cada profissional de saúde
sobre a forma como decorreu a sua atividade no local
de trabalho nos quinze dias anteriores à sua participação.
Florentino Serranheira
Ergonomista, Coordenador do Mestrado em Saúde
Ocupacional Escola Nacional de Saúde Pública
- Universidade NOVA de Lisboa
Responderam pela primeira vez, a qualquer um dos três
questionários aplicados, um total de 5.365 profissionais
de saúde. Note-se, porém, que globalmente foram obtidas
6.803 respostas, uma vez que alguns participantes
responderam a mais do que um dos três questionários.
Os profissionais de saúde respondentes são maioritariamente
(76,7%) do sexo feminino (n=4.032) e predominantemente
com idades compreendidas entre os
30 e os 39 anos (n=1.670). Participaram 1.592 médicos,
1.641 enfermeiros, 983 técnicos de diagnóstico e
terapêutica, 141 assistentes operacionais e outros, designadamente
farmacêuticos, nutricionistas, psicólogos e
profissionais das carreiras laboratoriais.
A maioria desempenha funções no setor social (n=
3.239), seguido do setor público (n=2.241) e do privado
(n=865). A localização geográfica dominante dos respondentes
situa-se na Região de Lisboa e Vale do Tejo (n=
2.421), seguido da Região Norte (n=1.814), Centro (n=
741) e Ilhas (n=71). 36,7% dos respondentes (n=1.937)
trabalha em áreas dedicadas ao tratamento de doentes ou
suspeitos Covid-19, nomeadamente, em Cuidados Primários
(39,3%), Urgências (40,7%), Enfermarias (6,4%) e em
Unidades de Cuidados Intensivos (13,4%).
Foram casos suspeitos de estar infetados 13% (n=661)
dos respondentes. Destes, mais de metade (60%) foram
submetidos a vigilância passiva e a larga maioria
(77,5%) foi testada para a Covid-19, maioritariamente realizada
72 horas após serem casos suspeitos. Entre os que
trabalhavam em área dedicada à Covid-19, apenas 15,1%
foram casos suspeitos e 42,7% foram sujeitos a vigilância
ativa, o que indicia uma efetiva gestão do risco.
Os testes à Covid-19 (n=533) foram na sua maioria
(58,7%) realizados em hospitais, apesar de um grande
número de profissionais de saúde os ter efetuado em
locais privados ou de iniciativa municipal (33,3%).
Dos profissionais de saúde que responderam aos questionários,
mais de um terço (36,7%) trabalha em área
dedicada aos doentes Covid-19, representando quase
2.000 profissionais de saúde (n=1.937) e mais de metade
(51,1%) trabalhou na última semana, oito ou mais
horas diárias (dos quais, 13,7% mais de 12 horas diárias).
Mais de um terço (35,4%) dos profissionais de saúde
refere que no seu trabalho não existe Serviço de Saúde
Ocupacional (ou de Saúde e Segurança do Trabalho)
que realize a gestão dos riscos profissionais, designadamente,
do risco de infeção por Covid-19.
O contacto dos profissionais de saúde com doentes (ou
casos suspeitos) de Covid-19 pode também ter impacto
na sua saúde mental, tendo-se constatado que quase
três quartos dos respondentes apresentavam níveis de
ansiedade elevados ou muito elevados, como resposta
às situações de stress que vivenciam e que quase 15%
tinham mesmo níveis de depressão moderados ou
elevados. De igual forma, quase três em cada quatro
(78,3%) dos respondentes apresentava níveis elevados
de burnout, revelando um agravamento dos já elevados
níveis reportados nestes grupos profissionais.
Metade dos profissionais de saúde (42,7%) refere que
dorme menos de seis horas diárias o que, associado à
sensação de fadiga que é reportada como intensa ou
muito intensa por quase três em cada cinco profissionais
de saúde (53,8%), testemunha uma situação próxima
da exaustão ou, se preferirmos um termo mais
popular, de “esgotamento”.
Em relação aos aspetos de risco microbiológico, de forma
mantida, um terço (33,3%) dos respondentes não
realiza individualmente a sua monitorização diária, que
seria expectável que fosse a regra na perspetiva quer
da proteção da saúde do profissional de saúde, quer
da redução da probabilidade do risco de contágio. Adicionalmente,
cerca de 13% dos profissionais de saúde
inquiridos foram casos suspeitos e 80 dos trabalhadores
testados (15,3%) tiveram um teste positivo, testes esses
em que 30,1% foram realizados mais de 3 dias após a
suspeita. São resultados reveladores da morbilidade aumentada
nestes grupos profissionais em relação à população
geral, mesmo com o recurso a Equipamentos
de Proteção Individual (EPI) e, aparentemente, a uma
insuficiente rapidez no esclarecimento das situações
suspeitas.
A disponibilidade de EPI no último questionário, em relação
aos anteriores, é considerada por mais de metade
dos profissionais de saúde melhor ou mesmo muito
melhor (72,9%), o que consolida a melhoria da situação
ao longo do desenvolvimento da onda pandémica. Na
“
O CONTACTO DOS PROFISSIONAIS
DE SAÚDE COM DOENTES
(OU CASOS SUSPEITOS)
DE COVID-19 PODE TAMBÉM
TER IMPACTO PARA A SUA
SAÚDE MENTAL.
”
opinião da grande maioria dos respondentes (79,9%), os
EPI são adequados ou muito adequados.
Um dos aspetos fundamentais na prevenção dos riscos
profissionais é a organização de serviços competentes
nessa matéria, Serviços de Saúde Ocupacional ou de
Saúde e Segurança do Trabalho, habitualmente insuficientemente
valorizados pelas organizações de saúde
e, muitas vezes até, reduzidos apenas à expressão do
“cumprimento administrativo” por imposição legal, designadamente
com as fichas de aptidão para o trabalho,
da responsabilidade da Medicina do Trabalho. Os
resultados agora obtidos apontam exatamente nesse
sentido, nomeadamente, os níveis de stress e de burnout.
Tal devia constituir motivo de reflexão profunda entre
as organizações de saúde, em particular, nos Cuidados
de Saúde Primários, pois a Saúde Ocupacional deveria
estar presente, não numa perspetiva dominante de
cumprimento das disposições normativas, mas na componente
substantiva da prevenção dos riscos profissionais
entre outros aspetos, tais como a promoção da
saúde e a manutenção da capacidade de trabalho dos
profissionais de saúde.
O trabalho com doentes Covid-19 (ou com casos suspeitos)
exige, como se sabe, a utilização permanente de
EPI o que determina, reconhecidamente, uma sobrecarga
de trabalho, aliada ao extremo desconforto que também
acarretam. Tal situação entre os profissionais de saúde
é, de resto, muito semelhante ao que acontece noutros
grupos profissionais do setor secundário de atividade,
como é o exemplo dos EPI de prevenção de acidentes
de trabalho e de doenças profissionais a que, aparentemente,
nunca se deu suficiente importância. Ã
68 69
GH direito biomédico
REFLEXÕES ÉTICAS E NORMATIVAS
A PROPÓSITO DO ARTIGO
"DIREITOS HUMANOS E MORTES
EVITÁVEIS"
Dos turnos rotativos dos trabalhadores em estruturas residenciais ao direito
de visita familiar a lares e hospitais
André Dias Pereira
Diretor do Centro de Direito Biomédico, Professor da Faculdade
de Direito da Universidade de Coimbra, Conselho Nacional
de Ética para as Ciências da Vida
Heloísa Santos
Presidente da Comissão de Bioética da Sociedade Portuguesa
de Genética Humana (SPGH), Membro (2002-2005) do International
Committee of Bioethics (UNESCO)
Embora seja apenas divulgada pela DGS
a mortalidade por Covid-19 distribuída
por idades e, nos briefings governamentais,
só enfatizada a preocupante letalidade
em maiores de setenta anos, informações
complementares, incluindo o conhecimento de
que cerca de 40% dos doentes falecidos residiam em
lares e, ainda, que há nestas instituições extensos surtos
quase diários, leva-nos a concluir que, hoje em Portugal,
a população residente nos lares contribui substancialmente
para a maioria ou totalidade das mortes diárias
e também para o atual crescente aumento de internamentos
hospitalares, incluindo em cuidados intensivos.
Sabemos também que muitos residentes, além de avançada
idade, têm várias morbilidades e pertencem a grupos
de risco considerados responsáveis pelo aumento
da mortalidade geral, em Portugal, em períodos de clássica
gripe sazonal. A permanência destas pessoas em espaços
fechados e pouco ventilados, tal como nos cruzeiros,
aumenta igualmente o risco de transmissão pelo novo
vírus, bem assim como o facto de serem reféns de jovens
cuidadores assintomáticos que lhes transmitem infeções
contraídas no exterior.
Se nos lembrarmos das assustadoras imagens televisi-
vas dos últimos invernos com os serviços de urgência
hospitalares apinhados de doentes e jazendo em macas,
coladas umas às outras, um ambiente apetitoso para a
infeção pelo novo vírus, podemos concluir que teremos
de usar toda a nossa determinação - e imaginação! - para
que uma tragédia “à italiana” não caia, ainda este ano,
no colo dos profissionais do SNS, incluindo administradores
hospitalares.
E, para o evitarmos, além da vacina da gripe rapidamente
disponível e administrada a estes grupos de risco, incluindo
cuidadores, e uma mais adequada vigilância às
condições sanitárias e de saúde de todos e, ainda, duma
atempada mudança quando adversas as condições institucionais,
teremos de criar estratégias que diminuam
drasticamente a entrada de infeções nestes locais.
Foi neste sentido que um dos autores, Heloísa Santos,
defendeu em “Direitos Humanos e morte evitáveis”,
texto publicado, em agosto, pelo jornal Público online 1 ,
a existência, em lares para idosos cujas condições o
permitam, dum regime de exclusividade dos cuidadores
com internamento rotativo por equipas.
“(...) Começo pela estratégia proposta para os lares. Sabemos
que aí se encontra a população mais frágil porque,
além da idade avançada e de morbilidades, está
confinada em espaços fechados. Contudo, algumas mortes
poderão ser evitadas se mudarem a estratégia adotada
antes do inverno. Em vez da cruel proibição das visitas,
deveria já ter sido considerada a exigência de, sempre
que possível, os funcionários, habitual fonte de contágio,
passarem, após testagem, a regime de exclusividade
com internamento rotativo por equipas. Estes profissionais,
acumulando atividades em locais infetados, inclusive
em hospitais, contagiando-se lá fora, mas também
adoecendo por contágio de outros colegas e residentes,
ao manterem-se dentro das residências ficariam também
eles próprios e os seus familiares mais protegidos.
Poderá afirmar-se que hoje não será legalmente possível
manter estes trabalhadores confinados periodicamente,
contudo, quando se exigiu que médicos e enfermeiros se
mantivessem no local de trabalho, esta decisão não teria
sido difícil de impor e teria salvo muitas vidas. E, se esta
estratégia passar a ser estimulada, em regime de voluntariado,
o apoio financeiro da Comissão Europeia poderá
contribuir para o novo regime de pagamento e eventual
apoio social às famílias destes funcionários até ao fim da
epidemia. O JAMA 2 acaba de publicar os resultados da
experiência francesa comparando os lares em regime de
internamento dos funcionários com aqueles em que es-
te não existiu e confirmou a sua grande eficácia. A redução
em França do número de infeções e mortes foi
significativa.” 3
Nesta “opinião” foi igualmente criticada a tirânica proibição
a la carte de visitas no âmbito das estruturas residenciais
e que também se verifica nos hospitais com doentes
não infetados:
“Para além da falta de eficácia, também a ausência imposta
da presença de familiares, deprime e abrevia a morte
por outras causas. E, contudo, sabe-se que não é através
dos parentes, que as infeções surgem. E, atualmente,
com testes disponíveis, continuam os residentes a ser
privados dos seus plenos direitos de ver a família como
se a ida para um lar, mesmo quando não estão infetados,
conduzisse a uma automática perda do respeito pelos
direitos que lhes são devidos como seres humanos.
E também se ignora o direito das famílias a estarem com
eles. Quer haja, ou não, surtos nas residências. Também
os infetados e as suas famílias devem manter sem interrupção
o apoio humano não presencial que lhes é muitas
vezes sonegado. Se não houver sensibilidade para se
mudar totalmente a conduta nos lares, devemos preparar-nos
para uma tragédia nos próximos meses potenciada
pela habitual invernosa epidemia de gripe. (...)” }
70 71
GH direito biomédico
“
ESTÁ DEMONSTRADO
HOJE QUE, AO CONTRÁRIO
DOS VISITANTES FAMILIARES,
OS CUIDADORES, INCLUINDO
OS PRÓPRIOS PROFISSIONAIS
DE SAÚDE, SÃO UMA
POPULAÇÃO QUE APRESENTA
ELEVADO RISCO DE INFEÇÃO
POR SARS-COV-2.
”
Analisemos estes dois aspetos aparentemente contraditórios:
1. Turnos (semanais) rotativos dos profissionais das
estruturas residenciais?
Está demonstrado hoje que, ao contrário dos visitantes familiares,
os cuidadores, incluindo os próprios profissionais
de saúde, são uma população que apresenta elevado risco
de infeção por SARS-CoV-2 e os residentes têm-se revelado,
pela facilidade de contágio, um “alvo” indefeso com
consequente elevadíssima mortalidade.
Segundo a DGS, “O impacto de Covid-19 (morbilidade
e letalidade) é maior em pessoas com mais de 65 anos
e com várias morbilidades, nomeadamente doenças cardiovasculares,
patologia respiratória crónica, ou diabetes.
Os utentes das Estruturas Residenciais para Idosos (ERPI),
Estruturas Residências para a área da Saúde Mental ou das
Unidades de Cuidados Continuados Integrados (UCCI) da
Rede Nacional de Cuidados Continuados (RNCCI), independentemente
da tipologia, encontram-se numa situação
de risco acrescido de maior disseminação da infeção.” 4 A
Orientação DGS 009/2020 coloca ênfase nas seguintes estratégias:
a) higiene, limpeza, desinfeção e gestão dos resíduos;
b) distanciamento social, concentração de pessoas e
ventilação dos espaços; e c) limitação de visitas.
Relativamente aos profissionais, este documento prevê
apenas normas de conduta dentro da instituição: “usar
máscara cirúrgica”, “observar medidas estritas de higiene
das mãos e etiqueta respiratória, assim como o distanciamento
entre pessoas (1 a 2 metros)”, “separação por
grupos”, “em caso de suspeitas, separação de grupos
de cuidadores para os doentes respiratórios e grupos
de cuidadores para os outros utentes/residentes”, monitorização
da “temperatura corporal e sintomas como
a tosse e falta de ar, no início e fim da jornada de trabalho”,
“profissionais que apresentem sintomas não devem
apresentar-se ao serviço”, “se já estão a trabalhar
devem dirigir-se para a área de isolamento designada...”
e a imposição à instituição de um plano de contingência,
com vista a “proceder à substituição dos trabalhadores
que forem casos suspeitos/confirmados, de forma
a continuar a satisfazer as necessidades dos utilizadores,
sem interrupção.”
Por seu turno, o movimento sindical revela desconforto
relativamente às experiências de turnos semanais rotativos,
entendendo poder estar em causa uma violação
dos direitos fundamentais dos trabalhadores. Assim, o
CESP - Sindicato dos Trabalhadores do Comércio e Serviços,
numa nota à comunicação social, acerca das condições
de trabalho a que estão a ser sujeitos, desde março,
os trabalhadores das IPSS e Misericórdias denunciou,
em termos críticos, esta prática. 5 Destaca este sindicato
que o risco de acidente laboral aumenta. 6 De salientar,
todavia, que, reconhecendo o período excecional que
estamos a viver e a premência em se pouparem vidas,
se desconhece qual a posição deste, perante a existência
de prévio consentimento do trabalhador.
Considerando o habitual pluriemprego por parte dos
profissionais desta área, uma vez que, por via de regra,
acumulam horários, em diferentes instituições, verificamos
que são eles próprios a contribuir voluntariamente
para a ultrapassagem do período normal de trabalho
diário. Esse o que se sugere é que cumpram as mesmas
horas num único local e desincentivado o pluriemprego,
dada a potenciação da transmissão do vírus entre
instituições. O regime de internato rotativo de curta duração,
de forma alguma, significa ausência de descanso.
No plano do direito em vigor, devemos tecer as seguintes
considerações e apresentar argumentos de cautela
e ponderação.
O consentimento do trabalhador está sujeito a limitações.
A liberdade não é plena no Direito do Trabalho, para
proteção do próprio trabalhador. Pode haver fundadas
dúvidas de que, em geral, o trabalhador possa consentir
em trabalhar por turnos de 7 dias, sem se ausentar
da instituição, ainda que por razões de saúde pública
muito importantes, como as apresentadas.
As dúvidas em subscrever esta proposta, no plano do di-
reito em vigor, resultam da consideração das normas do
Código do Trabalho, que preveem que o regime de turnos
está sujeito a regras rigorosas. Por um lado, em regra,
“o período normal de trabalho não pode exceder
oito horas por dia e quarenta horas por semana” (n.º 1
do artigo 203.º), podendo (com certos pressupostos)
ser aumentado até quatro horas diárias e, em casos delimitados,
a “duração do trabalho semanal pode atingir
sessenta horas” (artigo 204.º).
O artigo 210.º prevê exceções aos limites máximos do
período normal de trabalho que poderão ser consideradas
para o problema em análise: “1 - Os limites do
período normal de trabalho (...) só podem ser ultrapassados
nos casos expressamente previstos neste Código,
ou quando instrumento de regulamentação coletiva de
trabalho o permita nas seguintes situações: a) Em relação
a trabalhador de entidade sem fim lucrativo ou estreitamente
ligada ao interesse público, desde que a sujeição
do período normal de trabalho a esses limites seja incomportável;
b) Em relação a trabalhador cujo trabalho seja
acentuadamente intermitente ou de simples presença.”
Mas estes são tempos extraordinários. O quadro jurídico-laboral
em vigor não foi feito a pensar em pandemias
desta gravidade e dimensão, pelo que o debate é pertinente!
Assim, será necessária uma alteração expressa
do Código do Trabalho admitindo esta solução que tão
boas provas deu em França? Ao menos para vigorar durante
o período de estado de contingência?
Recorde-se que há profissões que, pela sua própria
natureza, acarretam uma vinculação do trabalhador ao
“local de trabalho” durante largos períodos de tempo,
como, por exemplo, os trabalhadores do transporte
rodoviário ou os trabalhadores da marinha mercante,
transitários, viagem e pesca.
No mundo da saúde é também amplamente conhecido
o regime, aceite e praticado nos Estados Unidos da
América, dos médicos internos, trabalhando 80 horas
por semana. Na Europa, vigora a Diretiva 2003/88/CE
do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de novembro
de 2003, relativa a determinados aspetos da organização
do tempo de trabalho que prevê as 48 horas
como tempo máximo de trabalho, embora o Código do
Trabalho (artigo 204.º) permita, em casos devidamente
delimitados, que a duração do trabalho semanal atinja
sessenta horas. 7 O artigo 207.º refere que o período de
referência pode ser aumentado de quatro para seis meses,
no âmbito do regime da adaptabilidade, podendo
valer para “i) Receção, tratamento ou cuidados providenciados
por hospital ou estabelecimento semelhante,
incluindo a atividade de médico em formação, ou por
instituição residencial ou prisão.”
Sem entrarmos em aspetos de técnica e pormenor jurídico,
podemos afirmar que há abertura no âmbito do
Código do Trabalho para que, no setor da saúde e das
estruturas residenciais, se pratiquem períodos de trabalho
semanal até 60 horas, em períodos de maior exigência.
Ora, o tempo com a pandemia Covid-19, ou pelo
menos os períodos do estado de contingência por esta
provocados, poderão ser precisamente justificativos de
maior exigência face ao trabalhador nesta matéria. Não
se podendo olvidar os benefícios que este regime pode
ter para a sua saúde (menor exposição ao risco de
Covid-19), apesar dos extraordinários incómodos que
pode causar na vida familiar destes trabalhadores.
A Resolução do Conselho de Ministros n.º 70-A/2020 8
prevê normas sobre o Teletrabalho e organização de trabalho
(artigo 4.º), impondo a obrigatoriedade, nas áreas
metropolitanas de Lisboa e do Porto, do regime de “rotatividade”,
designadamente: “podem ser implementadas,
dentro dos limites máximos do período normal de
trabalho e com respeito pelo direito ao descanso diário
e semanal previstos na lei ou em instrumento de regulamentação
coletiva de trabalho aplicável, medidas de
prevenção e mitigação dos riscos decorrentes da pandemia
da doença Covid-19, nomeadamente a adoção de
escalas de rotatividade de trabalhadores entre o regime
de teletrabalho e o trabalho prestado no local de traba- }
72 73
GH direito biomédico
“
DEVENDO O LEGISLADOR
SEGUIR AS MELHORES PRÁTICAS,
À LUZ DA PROVA CIENTÍFICA,
ESTA É UMA DIMENSÃO
IMPORTANTE DA LUTA
CONTRA A COVID-19 QUE
DEVEMOS APROFUNDAR.
”
lho habitual, diárias ou semanais, de horários diferenciados
de entrada e saída ou de horários diferenciados de
pausas e de refeições.”
Trata-se de uma alteração ao regime geral do trabalho
com vista a evitar a propagação do vírus. Seria de equacionar
também para o setor específico das estruturas
residenciais, mormente das instituições que trabalham
com doentes e idosos, a hipótese de uma lei específica
que estabelecesse a possibilidade de turnos semanais
(com respeito pelo direito ao descanso diário e semanal),
com as devidas compensações financeiras e devido
descanso após o turno e sempre com o consentimento
dos trabalhadores. É essa a pista que o estudo científico
francês supracitado nos aponta.
Devendo o legislador seguir as melhores práticas, à luz
da prova científica, esta é uma dimensão importante da
luta contra a Covid-19 que devemos aprofundar.
Um outro problema é o das condições dos tempos de
lazer e descanso fora do horário de trabalho. Têm as instituições
condições de alojamento e recreio para os trabalhadores
que fiquem 7 dias “retidos” dentro da instituição? 9
É uma questão que merece o melhor estudo jurídico, mas
sobretudo uma profunda reflexão da gestão da saúde. Por
outro lado, deveria haver maior abertura a admitir o acordo
em áreas geográficas com maior risco de contágio.
Convém voltar a salientar que existem igualmente para
os trabalhadores (e seus familiares) claras vantagens. São
muitas vezes infetados por colegas menos zelosos do
afastamento social ou que exercem igualmente funções
em hospitais e centros de saúde. Com esta medida, as infeções,
sempre com origem no exterior, iriam diminuir. E
ainda a frequente transmissão às famílias e à comunidade.
Porque já é hoje conhecido que a circulação de profissionais
entre instituições é "um dos principais fatores de
risco para uma propagação descontrolada do contágio".
Alguns hospitais, incluindo do SNS, exigem atualmente
exclusividade aos seus profissionais de saúde, mormente
enfermeiros, designadamente para evitarem o risco
de infeções hospitalares cruzadas. 10 Trata-se de uma política
com demonstrados efeitos positivos.
2. Direito de visita a utentes em estruturas residenciais
A já referida Resolução do Conselho de Ministros n.º 70-
-A/2020 prevê a possibilidade de visitas a estruturas residenciais.
É um bom princípio! Assim afirma a al. d) do
artigo 23.º: “Permissão da realização de visitas a utentes,
com observação das regras definidas pela DGS, e
avaliação da necessidade de suspensão das mesmas por
tempo limitado e de acordo com a situação epidemiológica
específica, em articulação com a autoridade de
saúde local.”
As regras definidas pela DGS constam da Informação
n.º 011/2020, de 11/05/2020, atualizada a 18/05/2020 11 ,
das quais destacamos as seguintes:
“3. A instituição deve garantir o agendamento prévio das
visitas, de forma a garantir a utilização adequada do espaço
que lhe está alocado, a respetiva higienização entre visitas
e a manutenção do distanciamento físico apropriado.
4. A instituição deve ter organizado um registo de visitantes,
por data, hora, nome, contacto e residente visitado.
5. As pessoas que participam na visita devem manter o
cumprimento de todas as medidas de distanciamento
físico, etiqueta respiratória e higienização das mãos (desinfeção
com solução à base de álcool ou lavagem com
água e sabão).
6. As pessoas com sinais ou sintomas sugestivos de Covid-19
ou com contacto com um caso suspeito ou confirmado
de Covid-19 nos últimos 14 dias, não devem realizar
ou receber visitas.”
Por seu turno, a instituição “deve garantir que a visita decorre
em espaço próprio, amplo e com condições de arejamento
(idealmente, espaço exterior), não devendo ser
realizadas visitas na sala de convívio dos utentes ou no
próprio quarto, exceto nos casos em que o utente se
encontra acamado (nos casos de quartos partilhados terão
de ser criadas condições de separação física).”
Aplaudimos esta solução, que deverá ser adaptada e
expandida, genericamente, aos hospitais 12 , pois a saúde
mental das pessoas vulneráveis é um fator fundamental
para a qualidade de vida e para a própria sobrevivência,
sendo de notar que o extraordinário aumento da
taxa de mortalidade das pessoas idosas, em Portugal,
ultrapassa em muito as mortes causadas diretamente
pela Covid-19 (até hoje, 16 de setembro, no número
de 1.875 óbitos), numa dimensão que importa estudar
cientificamente. As causas desse aumento da mortalidade
geral podem ficar a dever-se:
• Ao ambiente depressivo e de isolamento em que as
pessoas (idosas) vivem, quer em lares, quer mesmo fechadas
nas suas próprias casas;
• À dificuldade de acesso a cuidados de saúde, sobretudo
os cuidados de saúde primários que se apresentam
como uma parede opaca, com telefones a funcionar
mal, ou a exigir marcações por email (que muitos utentes
idosos usam com dificuldade ou não usam), quantas
vezes fechando a porta também a solicitações urgentes;
• Ao medo que muitas pessoas têm de recorrer a um
serviço (de urgência) hospitalar ou realizar uma cirurgia
porque deixam de receber visitas e correm o risco de
vir a falecer sozinhas e sem voltarem a estar com os
seus entes queridos.
Estas normas violam todos os princípios já estabelecidos
de humanização em saúde, no nosso País, porque não
respeitam os direitos humanos e já deveriam há muito
ter sido interrompidas.
E é curioso verificar que nas cadeias o regime proposto
foi o oposto e com bons resultados. Para reduzirem a
lotação dos estabelecimentos fechados e diminuírem o
risco para a população prisional, medida fundamental de
saúde pública, muitos presos foram libertados. Pertenciam
a grupos de risco ou estavam próximo do termo
da sua pena.
Racionalmente, não foi privilegiado um maior isolamento
destes “residentes”, já anteriormente a este regime
condenados. Ou seja, apenas o Ministério da Justiça criou
medidas preventivas eficazes mantendo o respeito pelos
referidos direitos humanos também presentes na nossa
Constituição. A ênfase não foi colocada no aumento do
isolamento e proibição de visitas, mas sim na vantajosa
saída de alguma população prisional para o exterior.
É, pois, de lamentar a posição oposta de administrações
de lares à saída provisória de residentes, nomeadamente
para a casa de familiares, e à aceitação imediata de novos
residentes nos lares cuja lotação ficou reduzida por mortes
ou saídas definitivas de anteriores residentes.
Também é de lamentar que muitos hospitais, sem criarem
áreas de total separação para doentes Covid e não }
74
GH direito biomédico
“
APRENDAMOS A VIVER SOB
A AMEAÇA DA COVID-19 S
EM PERDERMOS AS CONQUISTAS
CIVILIZACIONAIS DOS DIREITOS
HUMANOSE OS PRINCÍPIOS
ANTROPOLÓGICOS BÁSICOS
DA COMPAIXÃO E DA
SOLICITUDE, ESPECIALMENTE
FACE ÀS PESSOAS VULNERÁVEIS.
”
Covid, continuem a interromper as visitas a doentes com
outras patologias e testes negativos, de familiares saudáveis
(com testes negativos), assim que surgem surtos
noutros locais da instituição. É sempre tentador tomar
este tipo de medidas de estratégia “militar”, porém, sendo
estas compreensíveis no início de uma pandemia com
um vírus desconhecido, por contrariarem grosseiramente
os direitos humanos e a dignidade de doentes e famílias,
e conduzirem a traumas psicológicos que, inclusive,
prejudicam a evolução de qualquer doença, já deveriam
ter sido abandonadas.
Aprendamos a viver sob a ameaça da Covid-19 sem perdermos
as conquistas civilizacionais dos direitos humanos
e os princípios antropológicos básicos da compaixão
e da solicitude, especialmente face às pessoas vulneráveis.
Se não o conseguirmos, poderemos ter aplanado a
curva, descoberto uma vacina e, até, conseguido que o
novo coronavírus, como acontece, por vezes, tenha desistido
de nós, mas a humanidade ficará para sempre negativamente
marcada, porque, por medo, termos promovido
ou aceitado sem luta, rígidos exageros autoritários
ainda mais cruéis para as pessoas e para a sociedade
do que as restantes medidas diretas, preventivas ou terapêuticas,
que são indispensáveis ao combate ao SAR-
S-CoV-2. Estes exageros e esta falta de sensibilidade, a
manterem-se, serão uma triste demonstração de que
foi suficiente um simples vírus para sermos derrotados
como seres humanos. Ã
1. Cf. https://www.publico.pt/2020/08/26/ciencia/opiniao/direitos-humanos-mortesevitaveis-1929249
2. Joël Belmin/ Nathavy Um-Din/ Cristiano Donadio, “Coronavirus Disease 2019
Outcomes in French Nursing Homes That Implemented Staff Confinement with
Residents”, JAMA New Open. 2020;3(8): e2017533. doi:10.1001/jamanetworkopen.2020.17533.
August 13, 2020. https://jamanetwork.com/journals/jamanetwork
open/fullarticle/2769241
3. “This cohort study including 17 nursing homes with staff self-confinement and
9513 nursing homes in a national survey found that nursing homes with staff self-confinement
experienced lower mortality related to Covid-19 among residents and lower
incidence of Covid-19 among residents and staff members than rates recorded
in a national survey.”
4. https://covid19.min-saude.pt/dgs-atualiza-orientacao-para-lares-de-idosos/
5. http://www.cgtp.pt/accao-e-luta-geral/13788-cesp-denuncia-tentativa-de-regimesde-internato-nas-ipss-s-e-misericordias
6. “Esta exaustão dos trabalhadores aumenta significativamente o risco de acidentes
nos cuidados aos utentes, pelo que convém desde já salvaguardar que aos trabalhadores
não serão atribuídas quaisquer responsabilidades, da mesma forma que
em caso de acidente de trabalho do trabalhador exausto a instituição terá de ser
responsabilizada a todos os níveis pela reparação do mesmo.”
7. Segundo esta Diretiva, os países da UEdevem tomar as medidas necessárias para
que todos os trabalhadores beneficiem de: um período mínimo de descanso
diário de 11 horas consecutivas por cada período de 24 horas; um período de pausa
no caso de o período de trabalho diário ser superior a seis horas; um período
de descanso ininterrupto de 24 horas, às quais se adicionam as 11 horas de descanso
diário, por cada período de sete dias; férias anuais remuneradas de, pelo menos,
quatro semanas; uma duração máxima de trabalho de 48 horas em média por
semana, incluindo as horas extraordinárias, em cada período de sete dias.
8. Esta Resolução pouca novidade traz relativamente a medidas no âmbito das estruturas
residenciais (artigo 23.º).
9. Os turnos no regime de laboração contínua e dos trabalhadores que assegurem
serviços que não possam ser interrompidos, nomeadamente pessoal operacional
de vigilância, transporte e tratamento de sistemas eletrónicos de segurança, devem
ser organizados de modo a que aos trabalhadores de cada turno seja concedido,
pelo menos, um dia de descanso em cada período de 7 dias, sem prejuízo do período
excedente de descanso a que o trabalhador tenha direito.
10. https://www.jn.pt/nacional/braga-e-pedro-hispano-exigem-exclusividade-aos-seusprofissionais-11939743.html
11. https://www.dgs.pt/normas-orientacoes-e-informacoes/informacoes/informacaon-0112020-de-11052020-pdf.aspx
12. Registamos com agrado que alguns hospitais estão a retomar gradualmente o
regime de visitas hospitalares, desde finais de julho. O Centro Hospitalar e Universitário
de Coimbra (CHUC) anunciou a retoma de visitas a doentes internados
nas suas unidades de saúde, após terem sido suspensas, a 12 de março, face à pandemia
de Covid-19, embora sujeitas a autorização prévia e com caráter excecional:
“todos os serviços podem autorizar as visitas de caráter excecional, a qual deve
ser solicitada pela família ao diretor do serviço/médico assistente (especialista
responsável) ou enfermeiro gestor.” https://observador.pt/2020/07/24/hospitaisde-coimbra-retomam-visitas-a-doentes-internados-com-autorizacao-previa/
No Centro Hospitalar do Médio Tejo: “As visitas a doentes internados no Centro
Hospitalar do Médio Tejo (CHMT), suspensas desde 13 de março, serão retomadas
amanhã, dia 15 de agosto, anunciou a instituição, com exceção das áreas de
prestação de cuidados dedicadas à Covid-19.” https://www.jornalmedico.pt/atualidade/39475-visitas-a-doentes-internados-no-centro-hospitalar-do-medio-tejo-retomadas-amanha.html
76
GH diplomacia em saúde
DIPLOMACIA DA SAÚDE
NA ERA COVID 19
Francisco Pavão
Médico, especialista em saúde pública,
Gabinete Diplomacia da Saúde da Ordem dos Médicos
Decorridos seis meses após ser declarada
pela Organização Mundial da Saúde
(OMS) a pandemia por SARS-CoV-2,
continuamos a viver tempos de enorme
incerteza, preocupação, constante
adaptação e suspensos de garantias até que seja encontrado
um tratamento seguro e eficaz, uma vacina ou
atingida a imunidade de grupo, estratégia fortemente
desencorajada pela OMS.
O mundo moderno e globalizado do Séc. XXI enfrenta
uma crise sanitária sem precedentes e de enormes implicações
económicas e sociais. Os sistemas de saúde,
para além do amplo esforço de preparação e resposta à
epidemia, enfrentam consequências paralelas fraturantes
que terão impacto na saúde das populações. Contudo é
este o tempo de reinventar e reestruturar respostas, não
temer políticas de saúde concretas - transversais a todos
os setores - e garantir o esforço de financiamento do sistema
de saúde, como há muito é anunciado e desejado.
São múltiplos e constantes os desafios que a Covid-19
trouxe à sociedade, às regiões, países, comunidades e
ao mundo no seu todo. Vimos o impensável a ter lugar:
estradas e espaços aéreos desertos, indústria parada e
empresas em risco, fronteiras do mundo livre e democrático
encerradas, lutas nos corredores internacionais
na busca e garantia de material médico e de proteção
individual, rápidos acordos bilaterais de cooperação e
ajuda internacional entre regimes opostos, grandes crises,
temas e prioridades internacionais a esfumarem-se
para dar lugar a um único agente que desde há meses
ocupa lugar cimeiro nos noticiários.
Porém, devemos recuar até meados do século XIX pa-
ra perceber que a história da saúde pública é feita dos
processos de relações entre sociedades, de tal forma
que os eventos em saúde das populações numa parte
do mundo têm efeitos sobre a saúde das pessoas e em
países distantes. 1
Foi em Paris, no ano de 1851, que teve lugar a primeira
reunião entre nações para decidir que medidas conjuntas
deviam adotar para conter a transmissão de doenças
infecciosas, não obstante neste tempo ainda não serem
conhecidos os mecanismos de transmissão das doenças.
Portugal fez parte deste pequeno grupo, sendo representado
por um médico, Dr. José Maria Grande, e um
diplomata, João Mouzinho da Silveira, tal como constava
dos estatutos da conferência. À época “as políticas nacionais
falharam em prevenir a propagação da doença,
mas também criaram descontentamento entre os comerciantes,
que suportaram o impacto das medidas de
quarentena e exortaram os seus governos a tomar medidas
internacionais”. 1,2,3
É por esta razão, consequência da globalização e dos problemas
de saúde nacionais não poderem ser tratados
de forma isolada, exigindo, pelo contrário, esforços coordenados
e conjuntos pela saúde global que surge a Diplomacia
da Saúde. Sendo uma área de evolução académica
e profissional, reclamando para a sua prática a
multissetorialidade e multidisciplinaridade, encerra em si
resultados essenciais na melhoria da saúde global e sustentabilidade
pública das populações, bem como a manutenção
e fortalecimento das relações internacionais. 4,5
O decorrer dos anos, e na sequência destas conferências
sanitárias que levaram a acordos de cooperação internacional,
foi fundada em 1969 a OMS, tendo poste-
riormente sido criado o Regulamento Sanitário Internacional
(RSI), um acordo que regula como é que países
se devem relacionar para vigiar doenças que podem
causar epidemias e a forma de atuar perante uma
ameaça em saúde pública. Este regulamento foi revisto
pela última vez em 2005 e a OMS estuda agora a sua
eventual revisão, através de uma comissão internacional
independente, motivado pelo vírus SARS-CoV-2. 6
No panorama mundial a Covid-19 permitiu-nos observar
inúmeros exemplos da íntima relação entre a saúde, a
economia e as relações internacionais. A pandemia exigiu
um enorme esforço e desafio à diplomacia tradicional,
que se nos últimos anos percebia a importância da extensão
da sua prática para os temas da saúde e a viabilidade
dos seus negócios, atualmente torna-se imperativo o seu
desenvolvimento, formação e partilha do conhecimento.
A Ordem dos Médicos (OM) e Associação Portuguesa
de Administradores Hospitalares (APAH), atentas a
novas dinâmicas e promissoras áreas de trabalho, desde
o passado que vêm a apoiar e participar em fóruns de
debate e discussão no âmbito da Saúde Global e Diplomacia
da Saúde - seja no domínio da cooperação
entre os países lusófonos ou as estreitas relações com
parceiros europeus.
Por este motivo não é de estranhar que no dia 12 de março
(um dia após a OMS ter feito a declaração de pandemia),
estas duas organizações tenham promovido com a
Câmara de Indústria e Comércio Portugal-Hong Kong a
Conferência “O impacto económico, diplomático e na
saúde da Covid-19”. 7
Posteriormente no mês de abril foi publicado no Jornal
Público um artigo conjunto, “Diálogo em tempo de incertezas”,
8 onde se incluem todos os dirigentes e representantes
dos médicos da lusofonia, e nos subsequentes
meses integrando um ciclo de webinars, com o apoio
do Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT),
tiveram lugar duas importantes, quanto inéditas, conferências
dedicadas à Diplomacia da Saúde na Era Covid-19:
“Impactos e desafios às dinâmicas na Diplomacia
Global” 9 e “A pandemia e os desafios à investigação
e cooperação na África Lusófona”, 10 respetivamente.
Registe-se, como nota, que participaram nestes eventos
distintos embaixadores, prestigiados profissionais de
saúde e professores universitários.
Uma vez que Portugal assumirá em breve a presidência
da União Europeia, em tempos de excecional exigência
e nunca antes vividos pela comunidade, o nosso País poderá
ter uma oportunidade única de colocar a saúde como
ponto central da agenda internacional. Neste contexto,
não posso deixar de registar que urge reativar a
boa iniciativa do Alto-Comissariado para a Saúde Global
em Portugal. 11 A nossa posição estratégica na geografia
mundial, com os eixos Norte e Sul Atlântico, Mediterrânico
e o Norte de África, a par da língua comum que
partilhamos com cerca de 500 milhões de pessoas em
todo o mudo, criam oportunidades únicas para as quais
devemos ser arrojados e criativos.
Sobre o mote “Inovar e Liderar na Incerteza” será realizada
no mês de outubro a 8ª conferência de valor da APAH
e para este evento estamos já a preparar um workshop de
continuidade ao debate da Diplomacia da Saúde, onde
iremos ouvir opiniões e perspetivas de experimentados
profissionais e feitas análises que nos ajudam a perceber
melhor os meandros das relações internacionais.
As decisões da Comunidade Europeia ou as imposições
independentes de cada país que a constituí; os avanços e
recuos da Comissão; as exigências da indústria farmacêutica
na vacina contra a Covid-19; as barreiras ao digital;
as reformas do setor da saúde; o diálogo entre Estados;
os objetivos das manifestações públicas; a necessidade de
revisão de regulamentos internacionais e a comunicação
das instituições que lideram os caminhos na luta contra a
pandemia são alguns dos temas que queremos sejam de
partilha, reflexão, estudo e motivo de atração dos participantes.
É nossa convicção que será um êxito. Ã
1. Fidler D., The globalization of public health: the first 100 years of international
health diplomacy. Bulletin of the World Health Organization, 2001, 79 (9).
2. Howard-Jones N., The Scientific Backgroug of the International Sanitary Conferences
1851-1938. History of international public health, No. 1. World Health
Organization 2007.
3. Garnel MRL., Portugal e as Conferências Sanitárias Internacionais (Em torno das
epidemias oitocentistas de cholera-morbus). Revista de História da Sociedade e
da Cultura - Centro de História da Sociedade e da Cultura da Universidade de
Coimbra, 2009.
4. Kickbusch I, Silberschmidt G, Buss P. Global health diplomacy: the need foe new
perspectives, strategic approaches and skills in global health. Bulletin of the World
Health Organization 2007, 85 (3).
5. Kickbusch I, Berger C. Diplomacia da Saúde. RECIIS - Rio de Janeiro, v.4, n.1,
p.19-24, mar., 2010.
6. https://sicnoticias.pt/especiais/coronavirus/2020-08-27-OMS-diz-que-vai-estudareventual-revisao-de-Regulamento-Sanitario-Internacional
7. Revista da Ordem dos Médicos, Jan. - Mai. 2020, pag. 65,66 e 67.
8. https://www.publico.pt/2020/04/20/sociedade/opiniao/dialogo-tempo-incertezas-
1912979
9. https://www.ihmt.unl.pt/webinar-covid-19-e-o-momento-dos-politicos-comecarema-acreditar-mais-nos-cientistas-diz-filomeno-fortes/
10. https://www.ihmt.unl.pt/webinar-covid-19-falar-da-diplomacia-em-saude-e-de-inegavel-importancia-para-todos-e-em-particular-para-o-mundo-lusofono/
11. Resolução do Conselho de Ministros n.º 53/2018. Em: Diário da República
n.º 86/2018, Série I de 2018-05-04.
78 79
GH Doenças crónicas e Covid 19
COVID 19 E DOENÇAS
CÉREBRO CARDIOVASCULARES
“
QUEM SUPERA A CRISE SUPERA-SE A SI MESMO.
Einstein
”
Filipe Macedo
Diretor do PNDCCV, Diretor do Serviço de Cardiologia,
Centro Hospitalar Universitário de São João, Porto,
Professor de Cardiologia, Faculdade de Medicina
da Universidade do Porto
Elsa Azevedo
Coordenadora Adjunta do PNDCCV para a área cerebrovascular,
Diretora do Serviço de Neurologia, Centro Hospitalar Universitário
de São João, Porto, Professora de Neurologia, Faculdade de Medicina
da Universidade do Porto
A
pandemia causada pela Doença do
Coronavírus, designação atribuída pela
OMS à doença provocada pelo novo
coronavírus, é um grande encargo
para os sistemas de saúde e está a
impor mudanças na prática de muitas áreas da medicina.
A Covid-19 é uma infeção viral que pode resultar numa
inflamação sistémica grave e também numa síndroma
respiratória aguda grave, sendo que ambas as condições
condicionam grandes efeitos no coração e no cérebro.
A SARS-CoV-2 “severe acute respiratory syndrome coronavirus
2” provoca efetivamente em certas situações
doença pulmonar grave, com necessidade de internamento
hospitalar; nos casos mais graves obriga mesmo a
cuidados mais diferenciados de medicina intensiva. Contudo,
na grande maioria dos casos, a doença apresenta
um quadro clínico leve a moderado, cujo tratamento é
meramente sintomático e pode ser realizado em casa.
Esta patologia tem grandes implicações no funcionamento
do sistema cardiovascular. Pacientes que apresentam
fatores de risco cardiovascular como tabagismo, diabetes,
hipertensão arterial, obesidade e idade avançada, indivíduos
do sexo masculino, para além dos pacientes com
doença cardiovascular e cerebrovascular conhecida, foram
identificados como sendo grupos particularmente
vulneráveis, com taxas crescentes de morbilidade e mortalidade
quando infetados por este vírus.
O risco de infeção por SARS-CoV-2 pode ser maior
em pacientes com insuficiência cardíaca crónica devido
à idade avançada e à presença de várias comorbilidades.
Pacientes com doença cardiovascular ou doença cardíaca
valvular (particularmente aqueles que apresentam disfunção
do ventrículo direito ou esquerdo ou hipertensão
pulmonar) poderão estar particularmente em risco durante
a pandemia por Covid-19.
Desde a emergência da Covid-19, tem vindo a acumularse
a evidência da associação desta doença ao risco de
acidente vascular cerebral (AVC). O doente com AVC
agudo tem um maior risco de contrair a Covid-19, particularmente
as formas mais graves. Por outro lado, entre
os doentes hospitalizados por infeção respiratória pelo
SARS-CoV-2 cerca de 5% podem sofrer um AVC.
Um tema de constante polémica tem sido a hipertensão
arterial e qual a melhor atitude perante os doentes com
hipertensão arterial. Não existe atualmente nenhuma evidência
que sugira que a hipertensão arterial por si só seja
um fator de risco independente e consequentemente
conduza a complicações graves ou morte por infeção por
Covid-19. O tratamento da hipertensão arterial (HTA)
poderá ser temporariamente suspenso nos doentes internados
com quadros clínicos agudos. Estes doentes têm
geralmente hipotensão arterial e lesão renal aguda secundária
a infeção grave por Covid-19.
Têm surgido inúmeros artigos que questionam este tema
da HTA. As recomendações da Sociedade Europeia de
Cardiologia e da Sociedade Europeia de Hipertensão “recomendam
veemente que médicos e pacientes devem
manter o seu tratamento habitual da hipertensão, pois
não existe nenhuma evidência científica ou clínica que indique
que o tratamento com Inibidores da ECA (enzima
de conversão da angiotensina) e ARBs (bloqueadores do
recetor da angiotensina II) devam ser suspensos devido à
infeção por Covid-19”.
A doença cardiovascular pode ser um fenómeno primário,
se tivermos em consideração o papel da SRA (Sistema
Renina Angiotensina)/ECE2 (Enzima conversora Angiotensina
2) no sistema cardiovascular, bem como a sua
presença no coração humano e células vasculares. As complicações
cardíacas comuns devido à SARS são fundamentalmente
a hipotensão arterial, miocardite, arritmia e morte
súbita cardíaca.
A investigação diagnóstica durante a infeção por SARS revelou
alterações eletrocardiográficas, disfunção diastólica
subclínica do ventrículo esquerdo e subida de marcadores
de necrose miocárdica como as troponinas. A lesão do miocárdio
e os níveis aumentados dos biomarcadores cardíacos
estão provavelmente associados à miocardite e isquemia
condicionando diferentes graus de insuficiência cardíaca.
Deve ser salientado que concentrações aumentadas de
troponina I/T cardíaca num paciente com Covid-19 devem
ser vistas como a combinação da presença ou extensão da
doença cardíaca pré-existente e a lesão aguda relacionada
a Covid-19, sendo um marcador quantitativo de lesão dos
cardiomiócitos. As infeções graves por Covid-19 também
estão potencialmente associadas a arritmias cardíacas, em
parte devido à miocardite no contexto da infeção.
A miocardite surge em pacientes com Covid-19 vários
dias após o início da febre. Isto indica a presença de lesão
do miocárdio provocada pela infeção viral. Os mecanismos
de lesão do miocárdio induzidos por SARS-CoV-2
podem estar relacionados com a suprarregulação de
ECA2 no coração e nos vasos coronários. A insuficiência
respiratória e a hipóxia em doentes com Covid-19 também
podem causar danos ao miocárdio devendo dar-se
especial importância aos mecanismos imunológicos de
inflamação miocárdica.
Relativamente ao AVC, há estudos a relacionar a Covid-
-19 com AVC isquémico, hemorrágico e trombose venosa
cerebral, embora a maioria se reporte ao AVC isquémico.
O aumento do risco de AVC em doentes mais }
80 81
GH Doenças crónicas e Covid 19
“
A PANDEMIA DA DOENÇA
CORONAVÍRUS (COVID-19) CRIOU
NOVOS E IMPREVISÍVEIS DESAFIOS
PARA A MEDICINA MODERNA.
”
idosos e com maior número de comorbilidades tem
sido uma realidade, como também se tem associado a
Covid-19 a AVC em doentes mais novos e previamente
saudáveis, com predomínio nos homens.
Muitos estudos propõem a coagulopatia como um mecanismo
fisiopatológico relevante subjacente a estes
eventos cerebrovasculares. Adicionalmente, estes doentes
com AVC e infeção pelo SARS-CoV-2 apresentam
mais vezes enfartes cerebrais múltiplos, coagulopatias sistémicas
em vários órgãos, trombose em locais menos comuns
e mesmo evidência de trombos arteriais e venosos
simultâneos. De uma forma geral, parece haver maior gravidade
e mortalidade no doente com AVC associado à
infeção por SARS-CoV-2.
Pacientes que estejam infetados com Covid-19 provavelmente
apresentam maior risco de tromboembolismo venoso
e os dados recentes de Klok et al. publicados na revista
Thombosis Research sugerem que as taxas de complicações
trombóticas podem chegar a 31% em pacientes
graves infetados com Covid-19. Os diferentes trabalhos
sugerem parâmetros de coagulação anormais em pacientes
hospitalizados com doença Covid-19 grave. Está comprovado
que em doentes com pneumonia, estados de hipercoagulabilidade
e atividade inflamatória sistémica, estes
transtornos podem persistir por um longo período.
Relativamente à abordagem médica e diagnóstica destes
doentes deve sempre ter em linha de conta a opção
criteriosa dos diferentes meios complementares de
diagnóstico. A utilização de medicamentos como hidroxicloroquina
ou azitromicina, muito prescritos a pacientes
com Covid-19, são conhecidos por prolongar o intervalo
QT. Cerca de 6% dos pacientes com Covid-19 têm um
QT (corrigido)> 500 ms. Portanto, o uso indiscriminado
dessa medicação pode levar a arritmias potencialmente
fatais, principalmente na presença de importantes variações
eletrolíticas e disfunção renal.
O estudo imagiológico cardíaco e vascular cerebral não
urgente ou eletivo deve ser realizado de forma criteriosa
em doentes com suspeita ou confirmação de infeção
por Covid-19. Em pacientes infetados com Covid-19, recomenda-se
o recurso a POCUS (point of care ultrsasound),
com ecocardiografia focada (FoCUS) e eco-Doppler
cervicocefálico focado (neuroPOCUS), centrados exclusivamente
na aquisição de imagens necessárias para responder
à questão clínica, a fim de reduzir o contacto do paciente
com o equipamento e com o profissional de saúde.
A deteção de ventrículo direito dilatado e hipertensão
pulmonar pode levar à necessidade de realização de TAC
com contraste para descartar a ocorrência de embolia
pulmonar. Em doentes com dor torácica aguda e suspeita
de doença obstrutiva das artérias coronárias, a AngioTac
cardíaca é a modalidade de imagem não invasiva de eleição,
pois é precisa e rápida.
Também no doente com suspeita de AVC agudo a TAC
cerebral com angio é o exame emergente a fazer. Em
doentes com dificuldade respiratória, a TAC pulmonar é
recomendada para avaliar características de imagem típicas
de Covid-19 e diferenciá-las de outras causas (insuficiência
cardíaca e embolismo pulmonar).
Desde o início da pandemia Covid-19 reforçou-se a proteção
da via verde do AVC e da via verde coronária, com
circuitos próprios, de forma a não colocar em perigo de
infeção o doente com AVC ou enfarte de miocárdio
(EAM), mantendo, no entanto, a celeridade do processo
necessária à otimização dos resultados do tratamento de
fase aguda, sobretudo a revascularização. É importante
que a população não tenha receio de ligar para o 112 em
caso de sinais de alerta de AVC ou EAM. A fase provavelmente
mais prejudicada da cadeia de cuidados do doente
vascular foi a da reabilitação, que urge não parar novamente
neste novo aumento da incidência de Covid-19,
pois o preço em termos de sequelas permanentes é muito
elevado.
É essencial também manter o acompanhamento dos doentes
em prevenção primária ou secundária de eventos
vasculares, recorrendo sempre que oportuno à telemedicina
para não o descontinuar, pois a doença cérebro-
-cardiovascular continua a ser uma pandemia muito mais
letal do que a da Covid-19, sendo crucial combatê-la com
a mesma tenacidade.
A pandemia da doença provocada pelo novo coronavírus
criou novos e imprevisíveis desafios para a medicina
moderna e para os sistemas de saúde. Para além dos
profissionais de medicina intensiva, também os cardiologistas,
neurologistas e internistas estão a ser fortemente
afetados por essa rápida mudança. Temos de pensar que
depois desta crise sanitária estar ultrapassada, vamos ter
de fazer esforços redobrados para voltarmos a acordar
num Portugal moderno e próspero. Ã
82
GH Iniciativa APAH | Prémio Healthcare excellence
PRÉMIO
VAI RECONHECER
AS MELHORES PRÁTICAS
NA RESPOSTA
À PANDEMIA COVID 19
Com o objetivo de reconhecer e incentivar
projetos nacionais desenvolvidos e implementados
por organizações públicas,
sociais e privadas, direcionados para a melhoria
da qualidade na prestação de cuidados
de saúde, a Associação Portuguesa de Administradores
Hospitalares (APAH) com o apoio da biofarmacêutica
AbbVie atribui anualmente o Prémio Healthcare
Excellence.
A 7.ª edição desta iniciativa é dedicada em especial a
projetos desenvolvidos no âmbito da resposta à pandemia
da Covid-19 e visa premiar e distinguir a excelência,
reconhecendo as boas práticas no domínio da melhoria
do serviço aos utentes, promovendo a sua partilha como
ponto de partida para a criação de um verdadeiro
network colaborativo entre as várias Instituições de
Saúde e incentivar a sua consolidação e implementação
pelo Sistema de Saúde Português.
São, muitas vezes, ideias aparentemente simples para a
resolução de problemas muitas vezes comuns às várias
Instituições de Saúde, fáceis de adaptar, que exigem
pouco ou nenhum investimento financeiro, mas que
permitem simultaneamente contribuir para a sustentabilidade
da Saúde em Portugal e assegurar ganhos com
grande impacto e valor para a qualidade de vida dos
doentes e das suas famílias.
Em 2020, foram recebidas um total de 70 candidaturas
representativas de todo o território português desenvolvidos
e implementados por organizações públicas,
sociais e privadas e que contribuíram para a melhoria da
qualidade de cuidados de saúde em tempo de pandemia.
Destas 8 foram selecionadas pelo júri para a reunião
final que decorre a 21 de outubro no auditório do Hospital
Júlio de Matos - Parque da Saúde de Lisboa. Entre
os finalistas estão projetos do Agrupamento de Centro
Saúde Douro Sul, do Centro Hospitalar e Psiquiátrico
de Lisboa, do Centro Hospitalar e Universitário de São
João, do Health Cluster Portugal, do Hospital Garcia de
Orta, do Hospital Senhora da Oliveira - Guimarães, dos
Serviços Partilhados do Ministério da Saúde e da Sociedade
Portuguesa de Esclerose Múltipla.
Na reunião final do Prémio serão apresentados os projetos
finalistas e será distinguido o Vencedor da edição
2020. Para além da qualidade da apresentação final dos
Prémio Healthcare Excellence
6 Edições | 6 Vencedores
2014
Inteligência Clínica
Centro Hospitalar de São João
2015
Implementação da metodologia KAIZEN
DIÁRIO, com as equipas naturais envolvidas
na atividade do Bloco Operatório
no Hospital de Santo António
Centro Hospitalar do Porto
2016
Capacitar para Melhor Cuidar - O cuidador
no Projeto Vida Ativa
Hospital Vila Franca de Xira
2017
Portal do Utente de Matosinhos
Unidade Local de Saúde de Matosinhos
2018
Via Verde Reanimação
Instituto Nacional de Emergência Médica
2019
Intervenção humanitária de saúde
e amparo social
Associação Aldeias Humanitar
projetos candidatos, a inovação e a replicabilidade em
outras instituições de saúde são também critérios de
avaliação. A decisão ficará a cargo do júri constituído
por Delfim Rodrigues, Presidente do Júri e Vice-Presidente
da APAH; Dulce Salzedas, Jornalista da SIC; Ricardo
Mexia, Presidente da Associação Nacional de Médicos
de Saúde Pública e Ricardo Mestre, Vogal Executivo
da Administração Central do Sistema de Saúde. Ã
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GH Prémio Healthcare excellence | HUDDLE MEETING
HUDDLE MEETING:
A SUSTENTABILIDADE
DA MELHORIA CONTÍNUA
Ana Lúcia Ferreira, Elsa Silva, Mercedes Ganito, Mercedes Bilbao, Filomena Postiço,
José Luis Ferreira, Hugo Trindade, Teresa Cenicante, Paula Duarte, Cátia Neves,
Ana Leal, Fátima Alves, Joana Ximenes, Joana Ovidio, Sofia Morão, Joana Seringa 1 ,
Rui Cortes e Sara Moreira 2
1. Ferreira A., Silva E., Ganito M., Bilbao M., Postiço F., Ferreira J., Trindade H., Cenicante T.,
Duarte P., Neves C., Leal A., Alves F., Ximenes J., Ovidio J., Morão S. e Seringa J.,
como colaboradores do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central, Hospital Dona Estefânia.
2. Cortes R., Moreira S., como colaboradores da LeanHealth Portugal.
O
Hospital de Dona Estefânia (HDE),
localizado em Lisboa, é uma unidade
de referência em pediatria da zona sul
do País, encontrando-se integrado no
Centro Hospitalar Universitário de Lisboa
Central EPE (CHULC). No Bloco Operatório Central
Pediátrico desta instituição desenvolveu-se um projeto
de melhoria contínua com metodologia Lean, direcionado
ao percurso do doente cirúrgico.
A metodologia Lean pode ser descrita como uma filosofia,
um conjunto de ferramentas ou até mesmo
um sistema de gestão de melhoria de desempenho, ao
eliminar obstáculos e assegurar uma utilização eficiente
dos recursos disponíveis. Este processo organizado,
permite que os profissionais se concentrem no foco da
sua atividade, aumentando a produção e qualidade dos
cuidados, diminuindo os erros e melhorando os resultados.
Inicialmente, otimizou-se o percurso do doente
cirúrgico desde a primeira consulta pré-cirúrgica até à
consulta de pós-operatório. Mais tarde, através da ferramenta
do Huddle Meeting implementou-se a reunião
semanal dos “irritantes”.
Esta reunião de profissionais que intervêm no processo
cirúrgico tem como objetivo identificar, em equipa,
problemas (irritantes) e soluções, de forma a criar um
ambiente de melhoria contínua através de consenso
de ideias e fluxo de informação (Institute for Healthcare
Improvement, 2016). Realizada em ambiente clínico,
perto do local ou no local de ação (bloco operatório),
esta reunião não dura mais do que uma hora, sendo
este tempo variável de acordo com a quantidade de assuntos
levantados. Os intervenientes participantes são:
enfermeiros, administrativos, assistentes operacionais,
cirurgiões das várias especialidades e anestesiologistas.
Enquadramento e objetivos
Em 2017, o Bloco Operatório Central Pediátrico do
Hospital da Dona Estefânia realizou um projeto de melhoria
contínua, focado no percurso do doente cirúrgico,
reconhecido com o prémio da Associação Portuguesa
de Qualidade, com o 1º prémio de Qualidade/Inovação
- APQ 2017, na rubrica projetos de equipa de melhoria.
Este projeto permitiu melhorar vários pontos do processo,
bem como a experiência do doente. Não obstante,
essas melhorias, houve áreas que continuavam
aquém da qualidade pretendida, pelo que a equipa de
enfermagem do BO, decidiu iniciar um novo projeto de
melhoria contínua, em dezembro de 2018, utilizando o
modelo de Huddle Meeting.
Com o Huddle Meeting pretende-se criar um ambiente
de melhoria contínua que proporciona a oportunidade
de melhorar a gestão de qualidade, gestão de segurança,
rever recomendações de boas práticas, monitorizar
a melhoria, permitindo a identificação de outras áreas
passíveis de intervenção e rever os desvios perante os
processos esperados (Institute for Healthcare Improvement,
2016).
Esta segunda fase do projeto de melhoria contínua foi
também reconhecida com a 2ª Menção Honrosa - Healthcare
Excellence, 2019 da APAH.
Metodologia de implementação
Numa fase inicial, e tendo por base o ciclo PDCA
(Fig.1), o enfermeiro chefe da equipa de gestão do bloco
operatório identificou os participantes dinamizadores
do projeto, divulgou o projeto à equipa multidisciplinar
e convidou todos a registar num quadro os problemas
ou situações irritantes que afetam o fluxo do trabalho e
a qualidade dos cuidados ao doente cirúrgico.
Com esta base de trabalho deu-se início ao Huddle
Meeting. O grupo inicial foi constituído pela equipa de
gestão do bloco operatório (enfermeiro chefe e anestesiologista),
dois enfermeiros perioperatórios, um cirurgião
representante da cirurgia pediátrica, dois assistentes
operacionais e um administrativo. Ao longo das semanas
seguintes o número de pessoas foi aumentando passando
para cerca de 17 participantes e que representam
todas as equipas e especialidades cirúrgicas (Fig. 2).
O Huddle Meeting realiza-se em dia e hora fixa (sextasfeiras
às 10h), no bloco operatório, onde os profissionais
discutem, em pé, os vários problemas levantados.
Esta reunião tem como apoio um quadro designado
por “quadro dos irritantes”, onde são colocados post-its
com o registo das ineficiências, problemas e “irritantes”,
sentidos pela equipa e que carecem de uma melhoria.
No quadro são separados os problemas (post-it) cuja
resolução depende da equipa do bloco operatório,
daqueles cuja resolução depende de outros serviços e
intervenientes. Os primeiros são depois separados em
quatro quadrantes de acordo com a classificação de
maior/menor benefício e de maior/menor facilidade de
resolução (análise SWOT), para a sistematização dos
processos (Fig. 3).
São selecionados três problemas que tenham um alto
benefício e baixa dificuldade de resolução e são definidas
medidas de melhoria, responsabilidades, metodologia
de monitorização e indicadores de resultados e de
processos.
A monitorização é realizada pela equipa em tempo real
e de forma transparente (Fig. 4) e o plano de acompanhamento
é do conhecimento de todos os intervenientes
(Fig. 5).
Os resultados são expostos em gráficos e tabelas (Fig.
6) e utilizam-se avatares/figuras para distinguir os profissionais
mais ou menos cumpridores de forma a incentivar
a competitividade positiva, sem expor e sem
culpabilizar (Fig 7).
O recurso a tabelas, quadros e cronogramas são essenciais
para motivação dos profissionais, ao fornecerem
feedback à equipa acerca das melhorias que estão a ser
implementadas, processos que estão a ser monitorizados
e resultados alcançados.
São assim utilizadas várias estratégias de forma a manter
o foco na resolução dos problemas e melhoria contínua,
garantindo o nível de adesão de toda a equipa.
1. Melhorias alcançadas e em curso
Foram identificados vários “irritantes” que espelhavam
ineficiências e cuja melhoria estava ao alcance da inter- }
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GH Prémio Healthcare excellence | HUDDLE MEETING
“
FOI ATINGIDA UMA MELHORIA
EXTRAORDINÁRIA DE 97%
DOS DOENTES NA MARCAÇÃO
DO LOCAL CIRÚRGICO (FIG. 10).
PARA ASSEGURAR A CONSISTÊNCIA
DESTAS MEDIDAS MANTÉM-SE
O ACOMPANHAMENTO PERIÓDICO
Figura 1: Ciclo PDCA: Plan-Do-Study-Act.
POR ESPECIALIDADE E A DISTINÇÃO
DOS PROFISSIONAIS CUMPRIDORES
NO QUADRO DE AVATARES.
”
Figura 2: O Huddle Meeting.
venção da equipa, sendo que neste artigo destacamos
apenas seis:
• Padrão de higienização da sala de operações;
• Prescrição de anestesia;
• Consentimento informado assinado no dia da cirurgia;
• Marcação da lateralidade no doente;
• Registo do procedimento cirúrgico e codificação
(ICD9) nos doentes urgentes;
• Informação presente no plano operatório.
Padrão de higienização da sala de operações
Verificaram-se algumas falhas no padrão de limpeza das
salas que se atribuiu à pressão sentida pelos profissionais
de limpeza, à necessidade de formação e elevada rotatividade
dos mesmos. Formaram-se equipas fixas de limpeza,
estabeleceram-se tarefas e distribuição de postos
de trabalho por tempo mais alargado, fez-se formação e
criaram-se listas de tarefas para orientação e registo. O
processo foi monitorizado tendo-se verificado a eficácia
das medidas.
Prescrição de anestesia
A falta de prescrição escrita da anestesia, a prescrição
oral, ou a prescrição realizada fora da sala de operações,
com impacto no início dos programas e na segurança da
administração terapêutica, foi um dos “irritantes” considerados
prioritários pela equipa.
Criou-se um impresso de prescrição escrita (o sistema
informático foi considerado pouco adequado), que foi
apresentado à equipa e colocado em local acessível
aos prescritores.
Monitorizou-se a implementação tendo em conta 3 parâmetros:
prescrição escrita; prescrição antes das 8h15; e
prescrição em presença física na sala junto da equipa.
Observaram-se melhorias significativas nos 3 parâmetros
com evidente melhoria na comunicação e na hora
de início das salas operatórias, como se encontra expresso
na figura 8.
Consentimento informado assinado no dia da cirurgia
O elevado número de doentes que chegavam ao bloco
operatório no dia da cirurgia sem o consentimento
informado assinado tornou-se um problema que urgia
melhorar. Era sobretudo necessário aumentar o número
de consentimentos informados assinados na consulta
e estes fossem digitalizados antes da chegada ao
bloco operatório.
Houve intervenção junto dos cirurgiões, dos secretariados
e das equipas de enfermagem dos serviços cirúrgicos
e do bloco operatório, tendo sido possível obter
uma melhoria de 42% neste ponto.
As melhorias estão ainda em progressão, existindo, pontualmente,
algumas situações em que se verifica a inexistência
do consentimento informado ou de atrasos na
digitalização do mesmo.
Marcação de lateralidade no doente
A falta de marcação do local cirúrgico, sobretudo nos
doentes com necessidade de identificação da lateralidade,
acontecia em cerca de 45% das situações.
Como estratégia, foi aplicada de forma rigorosa a circular
normativa, que indicava a retenção do doente na
unidade até à marcação da lateralidade. O impacto desta
medida foi monitorizado durante 6 semanas, verificando-se
o cumprimento por especialidade cirúrgica e
por unidade clínica.
Foi atingida uma melhoria extraordinária de 97% dos
doentes na marcação do local cirúrgico (Fig. 10). Para
assegurar a consistência destas medidas mantém-se o
acompanhamento periódico por especialidade e a distinção
dos profissionais cumpridores no quadro de avatares.
Registo do procedimento cirúrgico e codificação
(ICD9) nos doentes urgentes
A falha sistemática da codificação e registo do procedimento
cirúrgico (ICD9) no SClínico, em cirurgias urgentes,
tem impacto na qualidade dos registos, finan- }
Figura 3: Quadro dos “irritantes”.
Figura 4: Quadro de monitorização.
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GH Prémio Healthcare excellence | HUDDLE MEETING
Figura 5: Plano de acompanhamento.
Figura 6: Medidas em curso com codificação por cor.
“
OS HUDDLE MEETINGS SÃO
ACIMA DE TUDO UMA FORMA
DE MELHORAR A COMUNICAÇÃO
ENTRE OS PROFISSIONAIS.
Figura 7: Quadro dos avatares.
ciamento da atividade e desperdício de tempo dos assistentes
técnicos.
Através da monitorização dos registos foram identificados
os cirurgiões que não cumpriam, foi feita formação
personalizada e foram informados os responsáveis das
especialidades. Foi, também, divulgado o impresso que
pode ser utilizado em caso de falha do sistema informático.
Com estas medidas verificou-se uma melhoria
ligeira passando a percentagem de procedimentos sem
registo de 29% para 21%,
Informação presente no plano operatório
A omissão frequente de informação imprescindível nos
planos operatórios causava problemas de comunicação
e falhas na articulação entre os profissionais, levando a
atrasos ou conflitos que poderiam pôr em causa a segurança
dos cuidados.
A monitorização permitiu identificar as necessidades de
melhoria de informação nos planos operatórios, com intervenção
específica por especialidade. Numa primeira
fase interveio-se em três especialidades: urologia, cirurgia
geral e otorrinolaringologia.
Verificaram-se melhorias na preparação pré-operatória,
na garantia da disponibilidade de recursos para a cirurgia
e no planeamento dos cuidados perioperatórios (Fig. 12).
Discussão
Os Huddle Meetings são acima de tudo uma forma de melhorar
a comunicação entre os profissionais, contribuindo
para uma cultura de transparência e de não culpabilidade.
Este é um modelo passível de ser replicado noutros blocos
operatórios, onde numa fase inicial serão encontradas
certamente resistências, naturais, como em qualquer
processo de mudança. Contudo, os resultados positivos
observados, tornam evidente de que o Huddle Meeting,
melhora o fluxo de informação e possibilita que vários
intervenientes comuniquem na perspetiva de melhorar
o ambiente de trabalho e a experiência do doente.
A cultura de melhoria contínua tem como um dos maiores
desafios a sua sustentabilidade, e o Huddle Meeting,
revelou-se uma forma de os profissionais manterem um
olhar atento e crítico sobre os processos.
Apesar dos importantes benefícios conseguidos tanto a
nível organizacional como a nível da qualidade do serviço
para com os utentes e famílias, é importante ter em
conta os constrangimentos e obstáculos que são necessários
ultrapassar para garantir o sucesso desta metodologia,
dos quais destacamos:
• A disponibilidade dos profissionais para as reuniões
semanais;
”
• A manutenção dos níveis de adesão da equipa ao processo;
• A consistência, ao longo do tempo, das melhorias conseguidas.
Estes constrangimentos têm sido mitigados através da
divulgação de atas e resumos, que são partilhados com
os profissionais que não puderam estar presentes na
reunião, e com a divulgação dos resultados, que contribuem
para que a equipa se mantenha motivada.
De realçar que, os registos e monitorizações em tempo
real, que são parte do ciclo de PDCA, são também, por
vezes, um desafio, por serem realizados em simultâneo
com os cuidados. No entanto, apresentam-se essenciais
na medida em que contribuem para a avaliação do impacto
imediato das melhorias introduzidas e para ajustar
as perceções individuais e da equipa à realidade.
Conclusões
Neste projeto foram utilizadas ferramentas simples, inovadoras
e sem custos associados. A aplicação persistente
e sustentada no tempo, permitiram criar uma cultura
no serviço, focada na resolução de problemas que dependem
da equipa, sempre com o intuito de melhorar o
ambiente de trabalho e a experiência do doente.
Os resultados desta iniciativa tornam explícita a melho- }
Figura 8: Prescrição do primeiro tempo de anestesia.
Figura 9: Consentimento informado.
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GH Prémio Healthcare excellence | HUDDLE MEETING
Figura 10: Marcação das lateralidades.
“
COM O LEAN E O HUDDLE MEETING,
CRIARAM-SE OPORTUNIDADES
DE MELHORIA DOS PROCESSOS
DE TRABALHO, OBSERVA-SE
MAIOR SATISFAÇÃO.
”
Figura 11: Sem registo dos códigos dos procedimentos.
ria dos processos, associada a um fluxo de informação
mais eficaz e a um incentivo à competitividade positiva.
As frustrações diárias e irritações são transformadas em
atitudes criativas e construtivas. O olhar entre pares é
diferente. A equipa multiprofissional comunica e procura
soluções em vez de culpados. Há um maior conhecimento
do contributo de cada um para o resultado final
e das dificuldades que por vezes se impõem.
Com o Lean e o Huddle Meeting, criaram-se oportunidades
de melhoria dos processos de trabalho, observase
maior satisfação, cooperação, melhores relações interpessoais,
mas sobretudo criou-se um ambiente mais
seguro e melhores cuidados para o doente pediátrico
e família. Ã
Figura 12: Informação presente no plano operatório.
• Batalden PB, Davidoff F. What is “quality improvement” and how can it transform
healthcare? Qual Saf Health Care 2007; 16:2–3.
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routines. Ind Corp Change 2003; 12:727–752.
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