30.08.2021 Views

Revista LesB Out! - Ed. 01

Bem-vindas à Revista LesB Out! Assim como o site, ela é feita por mulheres LGBTQIA+ para mulheres LGBTQIA+. Aproveitem!

Bem-vindas à Revista LesB Out!

Assim como o site, ela é feita por mulheres LGBTQIA+ para mulheres LGBTQIA+.

Aproveitem!

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

20

O patrimônio imaterial do Recife: a gaia

No Centro do Recife, contei uma história incomum

sobre traição e justiça

Numa segunda-feira, um sol estonteante cegava o Recife e a bolsa desta estudante de Psicologia,

feita de couro falsiê — daquele bastante borrachudo — não aguentou e começou a se desfigurar.

Foi pelas ruas paralelas à Conde da Boa Vista, numa barraca onde sempre ajeitam

minhas descosturas, que conheci a justiceira social do amor. Baixinha, branca e com a testa

vermelha queimada de sol, com uma pochete rosa e um boné da Cyclone na cabeça, Maria

falava com as duas costureiras. A mais nova estava sentada num balde virado, fechando um

buraco numa chuteira verde neon. A outra, que entendi ser a sua mãe, era uma idosa negra e

com um longo cabelo grisalho. De camiseta rosa, começou a ajeitar minha bolsa deitada num

papelão estirado na rua suja.

“A minha vizinha só vai sentir a besteira que fez quando levar bala”, resmungou a velha. Me

abaixei para escutar melhor e ela repetiu o resmungo. A mais nova riu. Eu olhei — mal dava

pra ver seus olhos escondidos pelo boné e pelo fundo de garrafa — e ela apontou para Maria.

Aguardando sua sandália ficar pronta, Maria olha para mim e dispara à amiga: “Que nada,

eu gosto dela, ela gosta de mim e é essa safadeza mermo. Eu gosto de ficar com ela e ela gosta

de mim”. A costureira mais nova, com agulha entre os dentes, alerta: “Toda vez é isso, mas

agora tu vais se lascar. Tanta mulé no mundo e tu vai ficar logo com uma que some do nada?

Tá pedindo pra sofrer, mulé”.

Com as sobrancelhas franzidas, Maria levanta e tenta parecer maior: “Que nada! Tenho

medo de sofrer, não. E tu sabe que eu só gosto assim!”. A sapateira mais nova provoca: “A bicha

volta daqui num sei quantos dias, num dá noticia e não deixa nem um número de celular pra

ligar. Tu aguenta esse rojão?”. A mais velha, apontando a agulha para Maria, disparou rindo,

com ares de profeta: “Tu vai é levar uma gaia do tamanho do mundo, safada! Todo mundo lá

perto de casa sabe que ela some assim pra botar ponta em tu.”

Ainda perplexa com a situação, pela coisificação de

uma mulher que não conheço, perguntei quem seria

essa. A sapateira mais nova me disse que se trata da

mulher mais safada do Coque.

“Oxe, deixa ela! E escuta essa, visse? Ontem

eu fui subir a favela e a ex tava lá, no bar de

Toninho. Ficou me olhando, e eu ainda

subi pra ficar com a ex mulé dela”, contou

Maria, quase dando pulos e se projetando

para frente. Nesse momento, questionei o

porquê de ela se envolver logo com uma

mulher que vive traindo-a e sumindo. Até

uma estudante de classe média sabe que “talarica

morre cedo”.

“Eu num gosto de sair com muita mulé, não sou

raparigueira, meu negócio é mulé safada. E outra: eu

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!