Revista Elas por elas maio 2022 web
A revista sobre gênero Elas por Elas foi criada, em 2007, com o objetivo de dar voz às mulheres e incentivar a luta pela emancipação feminina. A revista enfatiza as questões de gênero e todos os temas que perpassam por esse viés. Elas por Elas traz reportagens sobre mulheres que vivenciam histórias de superação e incentivam outras a serem protagonistas das mudanças, num processo de transformação da sociedade. A revista aborda temas políticos, comportamentais, históricos, culturais, ambientais, literatura, educação, entre outros, para reflexão sobre a história de luta de mulheres que vivem realidades diversas.
A revista sobre gênero Elas por Elas foi criada, em 2007, com o objetivo de dar voz às mulheres e incentivar a luta pela emancipação feminina. A revista enfatiza as questões de gênero e todos os temas que perpassam por esse viés. Elas por Elas traz reportagens sobre mulheres que vivenciam histórias de superação e incentivam outras a serem protagonistas das mudanças, num processo de transformação da sociedade. A revista aborda temas políticos, comportamentais, históricos, culturais, ambientais, literatura, educação, entre outros, para reflexão sobre a história de luta de mulheres que vivem realidades diversas.
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Arte,
semente
em defesa
da vida
As ruas do Brasil
têm muito o que contar
Luz, câmera, educação!
Professoras reinventam a sala de aula e
mantêm o ensino durante a pandemia
Entre quatro paredes
Isolamento social força mulheres a
suportarem violência caladas
2 Revista Elas por Elas - maio 2022
n Carina Aparecida
Esta edição da revista Elas por
Elas chega em momento emblemático
para o planeta e, em especial,
para o Brasil. Em 2022, vivemos sob
a expectativa de que a crise sanitária
provocada pelo coronavírus –
que mudou nossas vidas radicalmente
nos últimos dois anos – arrefeça.
Acalentamos a esperança de retornar
ao “novo normal”, conceito
cujo significado varia de acordo
com a realidade das nações. Por aqui,
a nova normalidade traz consigo a
urgência de reconstrução do país
na sua base econômica e em sua dimensão
social, com foco na retomada
dos empregos, na reindustrialização
e na proteção social.
Elas por Elas discorre sobre as
consequências das crises econômica
e sanitária na vida das mulheres
(cis/trans) . Nosso preço varia de
acordo com a gradação socioeconômica
da paleta da exclusão: quanto
mais negras e mais pobres, mais
submetidas à superexploração ou
ao desalento.
A pandemia tirou da invisibilidade
a feminização da pobreza,
que tem como pano de fundo
a histórica inserção desigual das
mulheres no mercado de trabalho,
a remuneração menor do que a
dos homens e a cultura patriarcal.
O fenômeno também é consequência
direta das políticas de precarização
das relações trabalhistas,
da expansão do trabalho domiciliar
informal e da explosão da
vulnerabilidade social.
O novo normal e o novo futuro
Trabalhadoras em educação do setor
privado, conhecemos bem como
a superexploração atingiu nossos lares
nos últimos dois anos. Nos “viramos
nos 30”, reinventamos a pedagogia,
as relações com estudantes e
transformamos nossas casas em estúdios
– muitas vezes arcando com
todos os investimentos didáticos e
tecnológicos. A exaustão do trabalho
remoto suscitou novas bandeiras
de luta, como o direito à desconexão
e o direito de imagem.
Parte significativa da feminização
da pobreza está ligada à ausência
de políticas públicas que nos desonerem
das tarefas de casa e dos
cuidados de crianças e idosos. Em
2020, segundo pesquisa da ong Oxfam,
o trabalho do cuidado, não remunerado
e mal pago, realizado quase
sempre por mulheres/meninas pobres,
agrega US$10,8 trilhões à economia
mundial, valor que vai para
o bolso de homens ricos. Parte deste
dinheiro deveria ser investido em escolas
públicas com horários estendidos
para crianças, espaços de lazer e
saúde para idosos, e para outras políticas
públicas que interrompam a
reprodução da desigualdade de gênero
e da pobreza.
Tais ações permitirão, inclusive,
que as mulheres participem em
maior número e com mais qualidade
não só do mercado de trabalho,
mas em todos os espaços e esferas
de decisão, públicos e privados. Um
dos temas desta edição da revista é
justamente a nossa participação na
Editorial
cena pública. Em Minas Gerais, somos
13% das prefeitas, 16% das vereadoras
e 11,6% das deputadas estaduais.
A igualdade de gênero passa,
necessariamente, pela ampliação da
nossa representação nessas instâncias
- com a presença de mulheres
que defendam a nossa emancipação,
a educação e a classe trabalhadora.
Elas por Elas mostra como mulheres
de diferentes origens e trajetórias
de vida enfrentaram graves
dificuldades econômicas e sociais.
Os dramas das prostitutas, das presidiárias,
das mulheres em situação
de rua, das artistas, das indígenas e
das meninas submetidas à pobreza
menstrual denunciam que suas lutas
pela sobrevivência contam com pouco
ou nenhum apoio dos poderes públicos
responsáveis por protegê-las.
Embora duríssimas, são jornadas
entremeadas de solidariedade. Vimos,
formamos e participamos de redes
que organizaram inúmeras campanhas
de doação de alimentos, roupas,
produtos e equipamentos de proteção
contra o coronavírus, além de
acolhida terapêutica.
A resiliência do nosso povo está
bordada nos nossos corações e nos
enchem de esperança e energia para
construir não apenas um novo normal,
mas um novo futuro. Sigamos
juntas, mulheres, na luta cotidiana
pela valorização e respeito que
merecemos!
Valéria Morato
Presidenta do Sinpro Minas
Revista Elas por Elas - maio 2022
3
Ensaio
Cansadas
Larissa Isis
7
Política
Eleitas, mas pouco
valorizadas
Devagar, ainda muito devagarinho. E assim
vai crescendo, aos poucos, a participação
das mulheres na política e no Parlamento
no Brasil, 88 anos depois de conquistarem o
direito de votar e serem votadas.
11
Capa
Arte, semente
em defesa
da vida
Em tempos difíceis, a arte mostra
suas múltiplas funções e se fortalece
31
Artigo
Cavalo arreado nunca passa
diante das mulheres
Jô Moraes
17
Realidade
Prostitutas lutam
pela sobrevivência
O preconceito e a falta de políticas públicas
agravados com o desemprego e o medo da
contaminação pelo coronavírus
21
Realidade
As ruas do Brasil
têm muito o que contar
Mais de 160 mil pessoas estão em situação de
rua em nosso país. Um número assustador
que vem crescendo com o desemprego,
desigualdade social, violência doméstica e
outras causas que se reforçam com a falta de
políticas públicas.
41 51
Saúde
A pandemia que
contamina emoções
Os impactos e transformações do mundo
pela Covid-19 chegaram às subjetividades
com consequências para a saúde mental.
Reproduzindo a histórica desigualdade
de gênero, são pesos e dores que recaem
principalmente sobre as mulheres.
4 Revista Elas por Elas - maio 2022
Artigo
Pobreza menstrual exige
política pública urgente
Brena Melo
59
Educação
Luz, câmera, educação!
Professoras reinventam a sala de aula e
mantêm o ensino durante a pandemia
79
Violência
Entre quatro paredes
Isolamento social força mulheres a
suportarem violência caladas
109
Artigo
A irracional, anacrônica
e inconstitucional
criminalização do
aborto no Brasil
Dra. Cláudia Maria Dadico
65
Trabalho
Invisível e estrutural:
a histórica desvalorização
das trabalhadoras
domésticas
71
Artigo
Que país seremos daqui
a 40 anos?
Valéria Morato
87
Resistência
Linhas de combate
Mulheres utilizam o bordado como forma de
expressar diferentes lutas na sociedade
93
Indígenas
Guerreiras da Terra
Mulheres indígenas protagonizam a luta pela
demarcação e preservação de seus territórios,
diante dos ataques do governo Bolsonaro
103
Artigo
Este beco tem saída!
Uma conversa ficcional inspirada em situações
reais de violência doméstica na pandemia
117
Artigo
As várias formas de tortura
no sistema prisional mineiro
121
Perfil
A diáspora dos degredados
Cida Pedrosa
125
Poucas e boas
Podcasts
Internet
Livros
Audiovisual
Retrato
Revista Elas por Elas - maio 2022
128
129
130
5
Departamento de Comunicação do Sinpro Minas: comunicacao@sinprominas.org.br
Diretores responsáveis: Aerton Silva, Clarice Barreto e Gilson Reis
Editora de texto: Nanci Alves (MG3152JP)
Editora de fotografia: Carina Aparecida (MG13115JP)
Redação: Aloísio Morais (MG2447JP), Carina Aparecida (MG13115JP),
Denilson Cajazeiro (MG9943JP) e Nanci Alves (MG3152JP)
Projeto gráfico e Diagramação: Mark Florest
Revisão: Aerton Silva
Foto capa: Cristina Granato (Cyda Moreno e Taís Alves, cena do espetáculo Luiza Mahin)
Conselho Editorial: Antonieta Mateus, Clarice Barreto, Lavínia Rodrigues, Maria Izabel Bebela Ramos,
Marilda Silva, Liliani Salum Moreira, Luliana Linhares, Soraya Abuid, Terezinha Avelar e Valéria Morato.
Impressão: EGL-Editores Gráficos Ltda - Tiragem: 2.000:
Distribuição gratuita: Circulação dirigida
REVISTA ELAS POR ELAS
PUBLICAÇÃO DO DEPARTAMENTO DE
COMUNICAÇÃO DO SINPRO MINAS
ANO XIII - Nº 13 - MAIO DE 2022
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Elas por elas nº 12
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6 Revista Elas por Elas - maio 2022
Cansadas
O cansaço histórico sobre as costas, a
cabeça, todo o corpo. Cansaço que se
arrasta há séculos em uma sociedade
em que são quebrados espelhos, escutas,
memórias. Um cansaço ainda mais pesado,
angustiante e opressor quando recaído
sobre as mulheres negras.
Os meios de comunicação até noticiam
os dados: a violência, a desigualdade, as
barreiras, o sofrimento cotidiano vivido. De
acordo com o relatório do Fórum Brasileiro
de Segurança Pública, “Atlas da Violência”,
divulgado em agosto do último ano, a cada
10 mulheres assassinadas, 6 são negras. Se
em 2009 a taxa de mortalidade de mulheres
negras era 48,5% maior do que brancas,
em 2019, esse indicador passa a ser 65%.
Os números escancaram o genocídio,
mas só através deles não acessamos as
dores dessas mulheres arrancadas do seu
próprio existir. Elas, que nem tiveram a
chance de seguirem cansadas, se tivessem
tido a chance de gritar, o que gritariam?
Nesta edição da Revista Elas por
Elas, dedicamos algumas páginas às
vozes que em resistência e em vida ecoam
seus gritos. São fotos que fazem parte do
projeto fotográfico “Cansei”, da fotógrafa
Larissa Isis. Larissa, como mulher negra,
tece este trabalho com o olhar de quem vai
reconstruindo os espelhos que a história
racista e colonizadora insiste em quebrar.
Te convidamos a escutar cada um
desses gritos. A observar cada um desses
olhares. São gritos e olhares que certamente
te cercam: na rua, em casa, no trabalho,
nos seus espaços de diversão. Que eles não
sejam mais invisibilizados ou negados. Que
possam seguir em re(existência).
“Cansei” é um projeto fotográfico que
visa trazer à tona parte da experiência de
ser negro em uma sociedade pautada pela
democracia branca através de registros de
depoimentos protagonizados por pessoas
negras que, apesar de terem diferentes
origens, características e histórias, passam
por experiências similares.
O projeto Cansei teve sua primeira fase
voltada a mulheres negras, pois numa
escala de preferências de oportunidades,
de padrão de beleza e tantos outros, a
mulher negra sempre está em último lugar,
desta forma decidi dar voz a elas, decidi
dar voz a nós.”
Larissa Isis
[ Para conferir o ensaio completo com os depoimentos das mulheres fotografadas, acesse: larissaisis.com.br ]
Revista Elas por Elas - março 2022
7
Cansei
Adriana Vasconcellos
8 Revista Elas por Elas - maio 2022
Cansei
Beatriz Oliveira
Revista Elas por Elas - maio 2022
9
n Soraya Santos
10
Revista Elas por Elas - maio 2022
Política
por Aloísio Morais
Eleitas,
mas pouco valorizadas
Devagar, ainda muito devagarinho. E assim vai crescendo, aos poucos, a
participação das mulheres na política e no Parlamento no Brasil, 88 anos
depois de conquistarem o direito de votar e serem votadas.
Nos últimos 100 anos presenciamos,
felizmente, verdadeira reviravolta
na situação das mulheres em diferentes
campos da vida humana, em
especial sua integração no mercado
de trabalho, nas organizações sociais,
nos espaços de produção científica e
no reconhecimento de direitos por
parte de organismos internacionais
e de inúmeros governos. São lentos
os avanços institucionais, mas, após
as eleições de 2020, cresceram também
os casos de violência, assédio,
ameaças e perseguições às mulheres
que abraçaram a vida política. Certamente,
uma reação do machismo
que impera no setor, principalmente
nestes tempos de governo Bolsonaro,
um fascista indisfarçável – e que,
aliás, enquanto deputado federal foi
o autor da frase absurda proferida
contra a deputada federal Maria do
Rosário (PT/RS), em 2014 em uma
sessão da Câmara dos Deputados:
“Não te estupro porque você não
merece”. Atitudes como esta são o
retrato de uma sociedade machista,
sexista e misógena.
Ultimamente, temos visto seguidos
casos de denúncias contra
as mulheres envolvidas no ambiente
político. Um dos mais graves e marcantes,
sem dúvida, foi registrado
contra Manuela D’Ávila (PCdoB) em
Porto Alegre. Em 2021, a ex-vereadora,
ex-deputada federal e candidata
a vice-presenta da República
foi alvo de verdadeiro bombardeio
bolsonarista em suas redes sociais.
No dia 1º de junho, Manuela usou
as redes sociais para denunciar ameaças
de estupro contra sua filha de
cinco anos. O pai de uma aluna da
mesma escola onde sua filha estuda
tirou uma foto da criança e entregou
para grupos que distribuem
ódio nas redes sociais. A partir disso,
a ex-deputada começou a receber as
ameaças de estupro e de morte. “São
muitos anos de violência. Como vocês
sabem, quando Laura ainda era
Revista Elas por Elas - maio 2022
11
n Mídia Ninja
processo em que a deputada Isa
um bebê de colo foi agredida fisicamente
de desistir, todos os dias me lembro
12 Revista Elas por Elas - maio 2022
em função de uma mentira
distribuída amplamente na internet.
De lá pra cá, muitas coisas aconteceram”,
lembra Manuela (foto).
“Mas nenhuma jamais havia
envolvido sua escola e algum pai
de colega. Foi devastador lidar
com isso. Ver a imagem sendo usada
das imensas razões que temos
para continuar”, diz Manuela .
Em São Paulo, a Assembleia Legislativa
suspendeu por 180 dias
o mandato do deputado Fernando
Cury (Cidadania) ao concluir o
Penna (PSOL) o acusou de importunação
sexual, uma decisão inédita.
Em dezembro de 2020, uma câmera
de segurança flagrou o deputado
passando a mão no seio da colega
no plenário ao abraçá-la por trás,
durante a votação do orçamento do
Estado. Isa Penna comemorou a de-
por toda essa gentalha que vive
cisão como um “momento histórico
às nossas custas foi uma violência
imensa”, escreveu. “São anos
dentro da história do Parlamento
“São anos vivendo assim. paulista. Deixamos um recado para
vivendo assim. A gente mal toma A gente mal toma ar de a sociedade: a Alesp não aceitará
ar de uma agressão e vem a próxima.
Mas quando a gente respira, próxima. Mas quando aceitar assédio, seja ele moral, sexu-
uma agressão e vem a assédio. Nós, mulheres, não iremos
a gente lembra que tem um mundo
pra mudar. Que tem um genocida
no governo. Que tem mãe enterrando
filho e filho enterrando
mãe. Que tem criança trabalhando.
Se todos os dias tenho vontade
a gente respira, a gente
lembra que tem um
mundo pra mudar.
al ou psicológico.”
Já a eleição da primeira vereadora
negra da história de Curitiba, Carol
Dartora (PT), vem incomodando
a branquitude da capital paranaense.
Algumas propostas apresentadas
pela parlamentar petista com pautas
do movimento negro tem sido
barradas sistematicamente nas comissões
da Câmara Municipal. Após
denunciar as reações como racismo
estrutural, alguns vereadores passaram
a atacar Dartora (foto) nas
redes sociais e na tribuna, chegando
ao cúmulo de acusá-la de racista.
Em setembro, a visita de mulheres
negras representantes do movimento
negro aos gabinetes dos
parlamentares para pedir apoio a
projetos de interesse do movimento,
protocolados por Dartora, também
causou polêmica. Um vereador
bolsonarista chegou a usar a
tribuna para fazer falsas afirmações,
dizendo que a visita teria
sido uma invasão e realizada, não
pelas ativistas, mas pelos assessores
da vereadora, isso porque a
equipe de Carol Dartora é composta
por pessoas negras.
“Esdrúxulo é quando eu trato de
um problema social, que se chama
racismo, eu ser criminalizada e essa
tentativa de ser silenciada por vários
vereadores que estão tentando
inverter a lógica e me acusar por denunciar
um problema social, que eu
vou continuar denunciando”, disse
Dartora. Durante sua fala, ela foi interrompida
várias vezes.
O episódio mostra a dificuldade
e a resistência de alguns parlamentares
curitibanos em admitir a
existência do racismo estrutural na
terceira cidade com maior número
de células neonazistas no Brasil, segundo
a pesquisadora da Unicamp,
Adriana Dias. Curitiba também demorou
328 anos para eleger uma
mulher negra e dos seus 38 vereadores,
apenas três são negros.
Assédio na Assembleia
Eleita para o primeiro mandato em
2018, a deputada estadual Beatriz
Cerqueira (PT), ex-presidente do
SindUTE, diz com tristeza que já
sentiu na própria pele o assédio e
“Esdrúxulo é quando eu
trato de um problema
social, que se chama racismo,
eu ser criminalizada
e essa tentativa de ser silenciada
por vários vereadores
que estão tentando
inverter a lógica...
o preconceito por ser uma mulher
no parlamento, assim como já testemunhou
casos ocorridos com colegas
na Assembleia Legislativa de
Minas, onde há apenas nove mulheres
entre os 77 parlamentares.
“Os espaços de poder, incluindo
aí os espaços políticos institucionais,
são organizados para a presença dos
homens. Então, a presença das mulheres
é tratada como algo ora exótico,
ora inconveniente, mas sempre
com a ideia de que não deveríamos
permanecer ali. Então, a violência
política de gênero é cotidiana. Nossa
competência é constantemente
testada e questionada, nosso ritmo
de trabalho precisa ser maior, além
de todas as tarefas da vida privada
já assumidas em nossas famílias”,
observa Beatriz.
n Câmara Municipal de Curitiba
Revista Elas por Elas - maio 2022
13
é a deputada federal por Minas, Áurea
Beatriz ressalta que já foi questionada
públicas proferidas por deputado
14 Revista Elas por Elas - maio 2022
publicamente, o que jamais
aconteceu com um deputado. “São
tantas violências experienciadas que
aprendi a fazer um exercício com as
situações. Me pergunto, se fosse o
deputado 'fulano' o comportamento
desta pessoa seria o mesmo? Se a
resposta é não, já consigo identificar
a violência”, conclui a parlamentar.
Para a deputada, o machismo se
expressa na ideia de que mulher não
discute política, se está conversando
“é fofoca”. “Se expressa pela constante
ideia de que é preciso 'completar'
nossa fala como se ela não fosse
completa. E, nas atividades, ocorre
o enaltecimento de um modelo de
mulher, casada e com filhos, como
atestado de competência e moralidade”,
observa.
“Há, também, uma mania de nos
dar ordens, como se não fôssemos
capazes de ter nossas próprias iniciativas.
Isso vem de todos os lados,
incluindo da esquerda. O apagamento
é outra questão que infelizmente
tenho vivido. Um exemplo: sou a
única mulher a compor CPI nesta Legislativa.
Recentemente, uma entidade
fez referência à CPI da Cemig
dentro da Assembleia Legislativa”,
destaca a deputada.
Beatriz acredita que as relações
no parlamento e nos partidos reproduzem
a sociedade que vivemos, que
é patriarcal. “Não teremos mudança
nos parlamentos sem mudanças na
sociedade. Hoje, mulheres morrem
por serem mulheres, são odiadas por
serem mulheres, nossos corpos são
tratados como propriedade do Estado
ou de Igrejas fundamentalistas.
Então, a superação disso passa por
mudanças estruturais na sociedade.
Enquanto não temos a correlação
de forças para isso, no âmbito dos
parlamentos devemos ocupar os espaços,
disputar orçamento e proposições
que fortaleçam políticas públicas
que combatam a discriminação,
o feminicídio, a misoginia e a violência
política de gênero”, conclui.
Machismo federal
Outra parlamentar que também já
foi vítima de assédios e constrangimentos
provocados por seus colegas
Carolina, do Psol, após passar
pela Câmara dos Vereadores de Belo
Horizonte. “Em vários momentos da
minha trajetória como parlamentar
já sofri com comentários preconceituosos
de colegas. Com piadinhas
sexistas e machistas, comentários
sobre meu cabelo, as roupas que
eu uso, meu temperamento”, disse.
”Recentemente, durante a reunião
de uma das comissões que participo
na Câmara dos Deputados, um
colega sentou ao meu lado para falar
sobre o assunto que estávamos
discutindo e colocou a mão na minha
coxa. Imediatamente o repreendi.
Disse que ele não podia fazer
aquilo. Todas essas situações não
são comuns de acontecerem com
os homens”, disse.
“O racismo e o machismo estruturam
as relações na nossa sociedade,
impondo muitas barreiras para
a participação das mulheres na política.
Durante a campanha à Prefeitura
de Belo Horizonte, em 2020, fui
questionada se conseguiria conciliar
a maternidade com minha atuação
política. É comum que as pessoas estranhem
que mães estejam neste espaço,
principalmente quando rom-
simplesmente me excluindo, como
se eu não existisse. Isso vindo da esquerda
é ainda mais vergonhoso”, “
pemos o padrão masculino, hétero
Todas as vezes que uma e branco daqueles que sempre ocuparam
os espaços de poder”, conta.
critica Beatriz.
parlamentar sofre um
“Fui a mulher mais votada para
“Temos acompanhado com bastante
frequência, infelizmente, ca-
ataque machista, mais
deputada estadual, o que não é pouca
coisa se lembrarmos que as eleisos
de violência política e assédio
longe ficamos da possibiliade
de que mais de
ções de 2018 aconteceram após um
contra parlamentares no país, que
nós alcance a política
golpe parlamentar contra a primeira
mulher eleita presidenta do país.
te, tanto por meio das redes sociais
têm aumentado assustadoramen-
institucional e possa realizar
seus mandatos de
Você não vai encontrar nenhum registro
partidário que sequer tenha forma segura”
te do espectro político. Defendo o en-
como fora delas, independentemen-
noticiado isso! Já me mandaram calar
a boca, além de outras ofensas
frentamento da violência como urgente,
para aumentar a participação
política das mulheres. Esta é uma
causa suprapartidária, importante
para o fortalecimento da democracia
brasileira. Todas as vezes que uma
parlamentar sofre um ataque machista,
mais longe ficamos da possibilidade
de que mais de nós alcance
a política institucional e possa realizar
seus mandatos de forma segura”,
observa Áurea Carolina (foto).
Então, o que faltaria para ampliar
a participação e presença das mulheres
nas atividades parlamentar
e partidária? “Na Câmara Federal,
somos 14% do total de parlamentares,
as mulheres negras são raríssimas.
Para garantir a paridade entre
homens e mulheres nos parlamentos
pelo Brasil são fundamentais políticas
públicas que garantam mais
recursos para financiar suas campanhas,
bem como o enfrentamento
ao racismo e ao machismo que
são estruturais e também se manifestam
nos casos de violência política
contra nós, afirma.”
Para as eleições 2022, Áurea Carolina
não irá se candidatar. Segundo
ela, passar pelo puerpério em plena
pandemia, ser deputada federal, se
candidatar à prefeitura de BH e sobreviver
à Covid exigiu demais da
sua saúde emocional e ela considera
que é tempo de dar uma parada
para cuidar de si própria também.
“Desde que me disponibilizei a ser
candidata pelas Muitas, minha intenção
sempre foi dar uma contribuição
como cidadã, sem fazer disso
carreira ou um fim em si mesmo”,
escreveu em suas redes sociais. Ela
reforça que quer retomar a sua atuação
na sociedade civil brasileira.
“Por isso, decidi não me candidatar
a nenhum cargo em 2022. Cumprirei
o mandato até o fim, com alegria política
e a certeza de que mais de nós
ocuparemos cada vez mais os espaços
de poder”, afirma.
Todas estas mulheres mostram as
dificuldades e, ao mesmo tempo, a
importância de votarmos e apoiarmos
o trabalho que desenvolvem enquanto
nossas representantes nos
espaços de poder. A presidenta do
Sinpro Minas, Valéria Morato, ressalta
que “a nossa participação na
vida pública e política do país vem
crescendo gradativamente, mas enfrentamos
algumas barreiras que limitam
nossa atuação nessas esferas.
Por exemplo, a sobrecarga doméstica,
que nos exaure, é um problema
estrutural da nossa sociedade patriarcal.
Também faltam políticas
públicas que permitam às mulheres
disporem de tempo para pensar
e atuar na política, como creches
e escolas em tempo integral e
em horários alternativos para nossos
filhos e filhas. Além disso, não
há nada que justifique que a gente
receba salários menores pelas mesmas
funções. É importante lembrar
que os países que garantiram a igualdade
de oportunidades e direitos entre
mulheres e homens conseguiram
ampliar nossa atuação na vida pública
de forma significativa”, destaca
Valéria que é pré-candidata à deputada
estadual em Minas Gerais.
n Cleia Viana - Câmara dos Deputados
Revista Elas por Elas - maio 2022
15
n Mídia Ninja
16
Revista Elas por Elas - maio 2022
Artigo
Jô Moraes
Cavalo arreado nunca passa
diante das mulheres
Difícil de entender por que existem
tantos obstáculos e tão poucas
soluções para incorporar as mulheres
numa área tão importante da sociedade
humana, que é a dimensão
da política. Deveria se entender a
sociedade política como o reino do
‘universal’ onde os interesses gerais
se fariam representar. Mas nas sociedades
divididas em classe, o cotidiano
é muito diferente.
Os últimos 100 anos presenciaram
uma verdadeira reviravolta na
situação das mulheres, em diferentes
campos da vida humana: sua integração
no mercado de trabalho,
seu papel nas organizações sociais,
nos espaços de produção científica,
com a ampliação das mulheres doutoras,
no reconhecimento de direitos
por parte de organismos internacionais
e de governos.
Lamentavelmente, para a ocupação
das mulheres nos espaços de
poder a história vem mostrando o
quanto o caminho é difícil. A começar
pelas mulheres que integram a
militância dos partidos políticos. Na
última atualização feita pelo Tribunal
Superior Eleitoral, em abril de
2021, existiam 16.200.892 pessoas registradas
em partidos políticos, sendo
que a população brasileira é de
210 milhões. Destes filiados, 45,72%
são mulheres, embora elas representem
52,6% do eleitorado.
Mas o problema não está aí. O
mais grave é que, no levantamento
de 2020, as mulheres ocupavam
apenas 21% dos cargos nas executivas
partidárias nacionais. A filiação
cresceu neste período mais recente,
provavelmente como consequência
da eleição da presidenta Dilma
Rousseff. O símbolo de uma figura
feminina no principal espaço de poder
do país estimulou a participação
política das mulheres.
Depois de tantos anos de redemocratização,
quando as mulheres
tiveram um papel decisivo com o
Movimento Feminino pela Anistia,
chegamos a uma precária representação
institucional, com a eleição de
15% apenas da Câmara Federal, nas
últimas eleições.
Da conquista do voto feminino,
em 1932, para o próximo passo, que
foi a primeira lei de cotas, tornando
obrigatório um percentual de candidaturas
de mulheres, passaram-
-se 63 anos! A Lei nº 9.100, de 29 de
setembro de 1995, estabeleceu normas
para as eleições municipais do
ano seguinte, incluindo o estabelecimento
de 20%, no mínimo, das vagas
Revista Elas por Elas - maio 2022
17
de cada partido para candidaturas
de cada gênero. A ampliação para
30% veio em 1997 com a Lei nº 9.504.
Mas os partidos políticos não eram
punidos se não cumprissem a regra.
A obrigatoriedade do preenchimento
somente passou a existir com a reforma
eleitoral de 2009, que substituiu
a expressão “deverá reservar”
por “preencherá”, na Lei nº12.034.
n Mídia Ninja
Financiamento
de candidaturas
das mulheres
Chega-se ao fim de mais uma jornada
De passo em passo chegamos à regra
de reserva de, no mínimo 5%
e no máximo 15% do montante do
Fundo Partidário destinado ao financiamento
das campanhas eleitorais
para aplicação nas candidaturas
femininas, estabelecido na Lei
nº13.165 de 2015.
espaços de conquistas legais, apesar
18 Revista Elas por Elas - maio 2022 Mas a vitória só foi significativa
com a decisão do Supremo Tribunal
Federal sobre a Ação Direta de Inconstitucionalidade
– ADI 5617, questionando
as regras anteriores. A decisão
aumentou o percentual de recursos
gastos com as candidatas para, no
mínimo, 30% do total colocado à disposição
pelos partidos, variável de
acordo com a quantidade de postulantes
que disputará o pleito.
Apesar dessas conquistas legais,
poucos partidos aplicam os recursos
tendo como base um planejamento
feito pelas suas militantes, e inúmeras
são as denúncias de manobras
para usar os recursos das candidaturas
femininas com candidaturas
masculinas.
Com a presença de um governo
de intensa mobilização das mulheres,
incluindo aí a resistência das
parlamentares progressistas que
atuam no Congresso Nacional.
Na votação das mudanças eleitorais
ocorridas em 2021 houve intensa
mobilização para que fosse garantido
um percentual fixo para mulheres
nos parlamentos. Não mais cotas
de candidatas, mas, sim, cotas
de vagas reservadas para mulheres
que tivessem um percentual mínimo
de votos. A proposta já tinha
sido votada em 2015 e foi derrotada
por apenas 15 votos.
Apesar de toda mobilização, a
maioria conservadora do Congresso,
em relação às demandas das mulheres,
só cedeu em contar em dobro
os votos recebidos pelas candidatas
de luta pela incorporação de
mais mulheres na política com uma
significativa conquista: a aprovação
e sanção da Lei 14.192/21, que estabelece
normas para prevenir, reprimir
e combater a violência política
contra a mulher durante as eleições
e no exercício de direitos políticos
e de funções públicas.
para fins de cálculo para o fun-
Q
de orientação conservadora, o período
recente viu restringirem-se os do partidário.
ex-deputada federal do PcdoB/MG,
Jô Moraes
feminista
Cansei
Camila Fonseca
Revista Elas por Elas - maio 2022
19
n Cícero Pedrosa Neto
20
Revista Elas por Elas - dezembro 2021
Realidade
por Nanci Alves
Profissionais do sexo
lutam pela sobrevivência
O preconceito e a falta de políticas públicas agravados com o
desemprego e o medo da contaminação pelo coronavírus
Fal Medeiros está escrevendo
um livro sobre sua vida e a prostituição.
Ainda não sabe como e
quando irá publicá-lo, mas já dá pra
saber que este não será um desafio
muito complicado para ela que está
acostumada, desde cedo, a lutar
pela vida e pelos direitos - seus e
de outras mulheres. Fal é coordenadora
geral da APROSBA, Associação
de Profissionais do Sexo da Bahia
(@aprosba), que ajudou a fundar
na década de 1990 e também uma
das fundadoras, em 2016, da Articulação
Nacional de Profissionais
do Sexo, ANPROSEX.
Esta parte da sua história começou
em meados de 1990, quando foi
feita a revitalização do centro histórico
de Salvador. Segundo Fal, tentaram,
de todas as formas, expulsar
da rua as trabalhadoras do sexo. “Os
políticos queriam higienização, limpeza
moral para a sociedade, falando
que iam reformar o Pelourinho.
Foi muita luta nossa contra as arbitrariedades,
assédio moral, violência
física, prisões. Eu batalhava no centro
e outras mulheres na Praça da Sé
- que faz parte do Pelourinho. Várias
mulheres acima de 60 anos, sem saber
o que fazer da vida - para onde
elas iam? Vi que elas iriam morrer.
Qual boate iria aceitar essas mulheres?
O centro histórico de Salvador
é o primeiro centro de prostituição
do Brasil. Como queriam agora tirar
as trabalhadoras do sexo de lá? A polícia
mandava as mulheres circularem
para não irem presas. Eu batalhava
num barzinho, para onde algumas
foram, outras disseram que
não iam sair da rua e foram presas.
Isso foi acontecendo e me incomodando
muito”, conta.
Com 26 anos de idade e se vendo
numa situação assustadora, Fal resolveu
unir as mulheres para a luta.
Revista Elas por Elas - maio 2022
21
Quando a mediadora da mesa leu,
foi uma surpresa e uma comoção.
Todas olharam para trás querendo
saber quem tinha escrito aquilo. Nós
também nos viramos, fingindo não
sermos nós, pois o estigma era enorme
por sermos vistas como vadias. Mas,
de repente, uma juíza disse que
iria nos ajudar. Então, eu criei uma
coragem tão grande e falei que era a
gente. Eu me tremi toda, segurando
no microfone, porque lá só tinham
doutoras, estudantes. Falei tudo que
estávamos sofrendo. A gente se sentiu
segura naquele momento. E tive a
certeza que a partir dali, ninguém
mais me segurava. Se sofrendo eu
lutei, imagine apoiada! Voltei radiante
deste encontro. Fomos atrás da juíza,
depois fomos atrás de outros grupos,
instituições, ONGs e, daí por diante,
a gente nunca mais parou. Isso em
1996 e, em 98, a gente registrou a
associação”, explica.
Na época, ela chegou a ser presa 10 que era inacreditável que numa vasta
vezes por vadiagem - crime que só programação pela passagem do Dia
Os reflexos da
pandemia
saiu do código civil em 2002. “Sabendo
que já existiam associações em alguns
estados do Brasil, começamos a nos
organizar, porque a luta sozinha não
dá, não temos ninguém que fale por
nós’. Começamos com um grupo, mesmo
sem nome, e fomos participando
de eventos, para interagir com outras
Internacional da Mulher se falavam
de todas as mulheres, menos de nós,
de nossas questões. Também somos
consumidoras, eleitoras, como todas.
Desde o início, as dificuldades e a
luta nunca cessaram. Porém, Fal
destaca que os tempos de pandemia
da Covid-19 são os piores vividos
em sua vida. “Já enfrentamos
a violência policial, de segmentos
da sociedade que tentam nos destruir,
inclusive religiosos nos con-
pessoas, feministas, gays, ONGs como
o GAPA etc”, conta. E foi num evento
denando, mas nunca pensei em passar
um momento tão pesado como
“Se sofrendo
do dia 8 de março que Fal Medeiros
(foto) ajudou a mudar esta história.
eu lutei,
o da pandemia”, revela.
Estavam em três profissionais do
imagine
Com o isolamento social e com
sexo e, com vergonha de dizer o que
apoiada!"
o desemprego, a situação das trabalhadoras
eram, ficaram caladas assistindo tudo
durante 3 dias. No final, indignadas,
escreveram uma carta para a mesa
organizadora do evento. “Falamos
do sexo se agravou ra-
pidamente. “Mulheres que nunca
imaginei que fossem parar na rua,
hoje estão lá, pois o aluguel, as contas
n Daniele Rodrigues
de água e luz já estavam pendentes
há meses. Muitos bordéis fecharam,
clientes sumiram, porque ficaram
desempregados, muitas casas de
prostituição vazias. Faço reuniões
com algumas mulheres para entrega
de cesta básica e a realidade, durante
o isolamento social, é a mesma para
todas – antes da pandemia, faziam
5 programas por dia, agora levam 5
dias para conseguir um programa”,
diz. A APROSBA atende mais de duas
mil trabalhadoras do sexo de Salvador,
região metropolitana e algumas
cidades do interior. A Associação conseguiu
cadastrar poucas mulheres
em algum auxílio emergencial: “Está
muito difícil. As autoridades, inclusive
de Salvador, não fizeram nada,
nenhuma política pública, como já
aconteceu no passado”.
As associações de trabalhadoras
do sexo em todo país têm se apoiado
na Articulação Nacional de Profissionais
do Sexo (ANPROSEX), na
Rede Brasileira de Prostitutas (RBP)
e na Central Única das Trabalhadoras
e Trabalhadores Sexuais (Cuts).
“Estas 3 redes, unidas, pediram ao
Ministério da Saúde para que fôssemos
incluídas na prioridade para
a vacinação contra a Covid-19, já
que trabalhamos com o corpo. Nunca
houve resposta e nem nenhum
tipo de ajuda. Só não ficamos totalmente
a mercê, porque temos parcerias
com instituições, coletivos,
universidades e ONGs e, assim, temos
conseguido material de higiene
e cestas básicas para muitas dessas
mulheres em situação de sofrimento”,
conta. Segundo ela, durante a
pandemia, as mulheres têm usado o
serviço do Pop Rua, instituição que
cuida da população em situação de
{ Trabalhadoras sexuais e militantes Izete, Fal e Lúcia
rua, porque muitas trabalhadoras
sexuais passaram a viver esta realidade.
Lá, elas têm acesso a banheiro,
roupa e algumas passam a noite
nos albergues.
Como coordenadora da APROS-
BA, Fal vai a campo todos os dias
pedir apoio a parceiros da Associação,
socorrer as mulheres e participar
de reunião presencial na sede
da APROSBA (prédio cedido, parceria
com Movimento Libertação
da Mulher da Igreja Católica). Com
esta rotina, se contaminou duas vezes
pelo coronavírus. “Da primeira,
no início da pandemia, fiquei muito
ruim, mas em casa. A vizinha deixava
remédio no quintal pra mim.
Em outubro, me contaminei novamente.
Lutamos muito pela vacina,
mas só consegui quando chegou a
vez da minha idade. Minha grande
preocupação é com estas novas variantes
da Covid-19. Eu me cuido,
uso máscara, álcool, distanciamento,
mas preciso sair para ajudar essas
mulheres. Umas precisam fazer
cirurgia, outras com problemas
psicológicos. Formamos um grupo
de psicólogos voluntários que nos
atendem virtualmente. Eu também
faço, porque fiquei muito deprimida.
Minha preocupação é com o
futuro, mas o presente já está impossível:
sem clientes, sem dinheiro
e os boletos continuam chegando.
Este país precisa mudar, voltar
a ter trabalho para todo mundo e
acabar com a hipocrisia do conservadorismo,
com o discurso de ódio
n Daniele Rodrigues
Revista Elas por Elas - maio 2022
23
e de morte, gente de igrejas fazendo
arminha. Nós, trabalhadoras do
sexo, sofremos violência frequentemente,
inclusive destes fundamentalistas.
Alguns vão para a porta dos
hotéis gritar que estamos vivendo
a pandemia por causa do pecado.
Hipócritas, leem a Bíblia, mas não
seguem os ensinamentos de Jesus.”
Em defesa dos direitos
Em Belo Horizonte (MG), a rotina
dos hotéis era de 300 clientes por
dia, até início de 2020. Mesmo depois
das ondas roxa e vermelha,
este número não alcança 50. “Muitas
empresas fecharam, aumentando
o desemprego que, por um lado,
reduziu o número de clientes e, por
outro, aumentou o de mulheres na
prostituição”, afirma Cida Vieira
(foto), diretora geral da Associação
das Prostitutas de Minas Gerais,
APROSMIG (@aprosmig). Com a redução
da flexibilização, muitos hotéis
tiveram que parar suas atividades
por muito tempo. “As mulheres
tiveram que batalhar nas ruas e, assim,
isoladas, ficaram mais vulneráveis,
não só em relação à pandemia,
mas também à violência. Especialmente
para a mulher trans, o estigma
e preconceito são ainda piores. Estamos
todas com a saúde mental abalada
pelo isolamento, perda de entes
queridos em função da covid-19,
falta de dinheiro, de perspectiva. A
n Mídia Ninja
fome não espera. Faltam políticas
públicas e que contemplem a diversidade.
Estamos sempre às margens.
Até para nos manter vivas, temos
que brigar muito”, desabafa.
Em Minas, pelos dados estatísticos
antigos que a APROSMIG levantou,
são 80 mil mulheres (cis e trans)
na prostituição. Mas, atualmente,
e principalmente depois da pandemia,
a Associação acredita que este
número seja bem maior. “Sabemos
que muitas morreram ao longo dos
anos, mas surgiram novas mulheres
no ramo. Porém, muitas não se
identificam como tal, outras fazem
ponto em ruas, bares que não temos
conhecimento. Precisamos saber como
estão essas mulheres, inclusive as
novatas, para ajudá-las. Em Minas,
contamos com algumas instituições
apoiadoras. Em BH, temos a ajuda
da Casa de Passagem, parceria com
o Clã das Lobas, que é muito importante,
principalmente nestes tempos
de pandemia. Quando os hotéis
fecharam, por causa da onda roxa,
as mulheres que não têm família
ou são do interior foram acolhidas
neste espaço. A nossa maior luta hoje
é pelo direito à aposentadoria com
um tempo específico de trabalho.
Precisamos de uma legislação que leve
em consideração o tipo de atividade
que fazemos, as especificidades da
profissão, a insalubridade dos locais
de trabalho, os riscos que corremos”,
explica Cida. Apesar da atividade
profissional ser oficializada desde
2002 pelo Ministério do Trabalho, em
sua Classificação Brasileira de Ocupações
(item 5198), ela ainda não foi
regulamentada. “Precisamos resgatar
os antigos projetos dos ex-deputados
federais Fernando Gabeira (PV-RJ),
24
Revista Elas por Elas - maio 2022
de 2003, e de Jean Wyllys (PSOL-RJ),
em 2012, que foram arquivados na
Câmara - ambos visavam regularizar
a profissão das prostitutas”, ressalta.
O projeto do Jean foi batizado de Lei
Grabriela Leite, uma das primeiras
mulheres na luta pelos direitos das
profissionais do sexo no Brasil.
n Cícero Pedrosa Neto
A sororidade essencial
A realidade da mulher trabalhadora
do sexo é a mesma em todo o país.
De acordo Diana Soares, presidenta
da Associação das Profissionais
do Sexo do Rio Grande do Norte, AS-
PRORN (facebook.com/geni.asprorn),
a pandemia tem sido pior do que o
vírus HIV, pois a forma de contágio
do coronavírus é bem mais complicada
de se combater, por estar no ar.
Ela conta que no início do isolamento
social, a qualquer espirro, os
donos de hotéis, onde as meninas
moravam, as mandavam embora
pra suas casas. “Assim, eu tive que
abrigar em minha própria casa,
duas mulheres que não tinham para
onde ir. Não podia deixá-las na rua.
Isolei cada uma delas e pedi ajuda
para a rede nacional. Todo mundo
com muito medo, mas eu fui cuidando
com todos os protocolos de
segurança e minha filha me ajudando.
Depois, com apoio, conseguimos
alugar alguns espaços para as que
estavam bem e não tinham onde ficar
neste período”, diz.
Sororidade não faltou entre as
trabalhadoras do sexo no Rio Grande
do Norte. Segundo Diana, quando
uma mulher faz um programa, ajuda a
colega que não conseguiu. No Estado,
são mais de mil trabalhadoras do sexo
associadas, sendo 500 só em Natal.
Revista Elas por Elas - maio 2022
25
tudo fechado: secretarias, câmara,
Mas a Associação também não consegue
fazer contato com todas, porque
sem trabalho, ficaram sem internet e
sem telefone. Para aquelas que ainda
podem contar com esta ferramenta,
a ASPRORN conseguiu fazer um
grupo no WhatsApp. São 60 mulheres,
umas têm comorbidades, mas todas
precisam de ajuda financeira e tem
mulher que precisa até de cadeira
de rodas.
Diane Soares (foto) lembra que
quando as casas reabriram, o movimento
caiu muito. “Muitos clientes
idosos não voltaram – uns com medo e
outros que já deviam ter morrido mesmo.
A gente toma todos os cuidados,
mas claro que é sempre um risco, pois
ficamos muito vulneráveis. A gente
não pode adoecer, pois a maioria das
mulheres têm filhos, família para sustentar.
Tem cliente que não acredita
que pode ficar doente e não usa máscara
e ainda diz: ‘Não tô doente. Se
tivesse, não tinha tesão’. Mas não pensa
que ele ou a gente mesmo, pode
ter pego o vírus naquele dia”.
Fazer trabalho de campo, visitando
as mulheres, em plena pandemia
é como estar numa guerra.
“Muito sofrido tudo. Não temos a
quem recorrer. Nos períodos piores,
nem carro para fazer as visitas
a gente consegue, porque fica
ONGs etc. Algumas mulheres ficaram
grávidas por falta de preservativos,
pois bordéis fechados e a
gente não tinha como ir até elas. Outras
sofrendo a violência do tráfico
- usam a droga como suporte para
trabalhar. Uma situação dramática
e num momento em que eu estava já
sofrendo muito, pois tinha perdido
meu irmão mais velho pouco antes
da pandemia. Ele era meu apoio em
tudo, inclusive financeiro. Tive que
levantar a cabeça e ver que a dor
ao meu redor era maior do que a
minha e que poderia ser pior se a
gente não segurasse na mão uma
da outra. Busquei ajuda para elas e
pra mim. Adoeci de tanto segurar a
onda. Mas, depois, as universidades
foram abrindo para nos ajudar, com
apoio psicológico e isso tem sido
fundamental”, diz.
Diana conta que seu sonho é se
aposentar – o que também está difícil.
“A gente tem orientado as meninas
para contribuírem para o INSS
como microempreendedoras para
não passarem pelo que nós, mais velhas,
estamos passando. Não tenho
direito nem ao Benefício de Prestação
Continuada (BPC). Antes era
aos 60 anos, mas este atual governo
passou para 65 anos. Acabou com a
gente. Na verdade, nós não somos
amparadas por lei trabalhista e nem
a própria Lei Maria da Penha no
trabalho. Ela só vale se o homem
for companheiro ou familiar, se for
cliente o problema é na delegacia
comum e a gente ainda sofre mais
humilhação: ‘você apanhou porque
é puta’. Também pagamos impostos,
mas não temos segurança e nem
direitos. Até quando?”, pergunta.
n Mídia Ninja
Valorizando a terceira idade
Aos 80 anos de idade, a paraibana
Lourdes Barreto (foto), prostituta
desde os 16 anos, segue na
luta pelos direitos, pelo respeito e
pelo fim do preconceito da sociedade
sobre a sua profissão. Ela, ao
lado da já falecida Gabriela Leite,
fundou a Rede Brasileira de Prostitutas
– a primeira da América
Latina. “O lançamento foi no Rio
de Janeiro, em 1987. Eu conheci a
Gabriela, em 1981, por meio dos
encontros nacionais da Pastoral
da Mulher Marginalizada e fomos
nos fortalecendo e nos organizando
até que nasceu a Rede. O
trabalho das religiosas foi fundamental,
pois elas nos alertavam
sobre a importância da nossa autonomia
e organização”, lembra
Lourdes Barreto que vive desde
1957 no Estado do Pará.
Mãe de 4 filhos, com 10 netos
e 8 bisnetos, Lourdes Barreto,
uma das vozes mais potentes do
movimento de prostitutas brasileiro,
tem muita história de vida
e muitas conquistas para contar.
“Fui uma das primeiras pessoas
a lutar contra a Aids no Brasil,
já fui conselheira nacional
e estadual dos Direitos da Mulher,
hoje sou conselheira municipal
do Conselho da Saúde e
muitas outras ações dentro e fora
do movimento. A gente tem que
conquistar nossos espaços e reafirmar
sempre nossa profissão,
porque a sociedade é preconceituosa.
Sempre somos lembradas
pelos pesquisadores/as em suas teses
de doutorado, mas a realidade
ainda não mudou em nada”, afirma
Lourdes.
Hoje, uma das preocupações de
Lourdes Barreto, que é uma das coordenadoras
do Grupo de Mulheres
Prostitutas do Estado do Pará, GEM-
PAC (facebook.com/gempacpa/), é a
sexualidade na terceira idade. “Eu
sou bem resolvida com a minha sexualidade
e tenho minha vida também
organizada, mas temos muitas
mulheres na prostituição que passam
por sérias dificuldades, agravadas
com a crise sanitária. As mulheres
com mais de 60 anos foram as mais
prejudicadas com o isolamento social
e o risco de contaminação”, afirma.
Com o olhar atencioso para a
terceira idade, começou um projeto
cultural com o apoio de uma
pesquisadora e professora de dança.
Trata-se do Grupo Saindo das
Brenhas para Cantar e Dançar. “Somos
12 mulheres e a mais jovem
tem 60 anos. A professora Carol nos
deu apoio técnico por meio do seu
projeto de doutorado e a gente realmente
sai para as ruas, inclusive
na pandemia, seguindo os protocolos
e distanciamento, para expressar
com arte tudo que sempre esteve
preso com a gente. Temos figurino,
putas que cantam bem e muita alegria
em fazer as apresentações. Uma
coisa que tem dado certo dentro do
movimento e tem gerado um pouco
de grana para as mulheres, com as
contribuições voluntárias do povo
na rua. Nossa ideia é valorizar esta
mulher e dizer que a terceira idade
não pode ficar excluída. Eu sei que a
luta é para o movimento. Eu não verei
nossa profissão regulamentada e
nem uma sociedade menos preconceituosa,
com relações mais humanitárias
e um país onde todos e todas
tenham direito de ir e vir e de trabalhar
como quiserem. Mas a luta
segue todo dia”, finaliza.
Serviço:
Rede Brasileira de Prostitutas:
@redebrasileiradeprostitutas
Central Única das Trabalhadoras
e Trabalhadores Sexuais (Cuts).
facebook.com/CUTSBR/
Associação Nacional de Profissionais
do Sexo: @anprosex
Revista Elas por Elas - maio 2022
27
Cansei
Christiane Silva Pinto
28
Revista Elas por Elas - maio 2022
Cansei
Elaine Justino (in memoriam)
e Ana Lívia Justino
Revista Elas por Elas - maio 2022
29
n Cristina Granato
30
Revista Elas por Elas - maio 2022
Cultura
por Nanci Alves
Arte, semente
em defesa
da vida
Em tempos difíceis, a arte mostra suas múltiplas funções e se fortalece
A vida precisa e muito de arte!
Essa é uma das verdades que a pandemia
do coronavírus escancarou
para o mundo, além da importância
da Ciência e do crescimento das
desigualdades e injustiças sociais. Se
no momento de alegria, a arte é uma
presença certeira seja pela música,
dança, fotografia etc, nos momentos
difíceis, como estamos todos vivendo
desde março de 2020, a arte se faz
ainda mais necessária, inclusive
para manter nossa sanidade mental.
E o/a artista, um dos/as primeiros/
as trabalhadores/as a ser atingido/a
pelas medidas do isolamento social,
conseguiu ultrapassar barreiras e
levar, mesmo que de forma virtual,
aconchego, alegria, esperança e um
pouco de ar para todos/as nós que,
dentro de nossas grades e máscaras,
ansiávamos por este respiro.
Incontáveis artistas realizaram
lives, em suas redes sociais, também
para arrecadar recursos em
prol dos/as mais necessitados/as.
Eles/as colocaram sua arte em defesa
da vida e nos possibilitaram conhecer
os bastidores: a luta para
continuar o trabalho, a falta de políticas
públicas e a criatividade pulsando,
mesmo em situação de vulnerabilidade.
A arte foi fundamental
para denunciar atitudes de governantes
e pessoas negacionistas que
atrapalham o processo de controle
da pandemia, além de ter atuado
seriamente no combate a fakenews
ao mesmo tempo que nos mostra a
Revista Elas por Elas - março 2022
31
do Fundo Setorial do Audiovisual
importância de defendermos o nosso
Sistema Único de Saúde, tão precarizado
por este governo, assim como
valorizarmos a vacina e a vida.
Mas mesmo com toda atuação
e importância da arte, o/a artista
foi drasticamente afetado/a no
contexto da crise sanitária. Com
o fechamento dos espaços culturais,
ficou sem recursos para
sua sobrevivência e a situação só
melhorou um pouco quando veio
a Lei Aldir Blanc, cujo projeto foi
iniciativa da deputada Benidita da
Silva (PT). A lei homenageia o músico
Aldir Blanc, um dos primeiros
artistas mortos pela covid-19 (maio
de 2020). De caráter emergencial,
ela destinou, por poucos meses,
o dinheiro retido no FNC (Fundo
Nacional de Cultura) para o auxílio
artistas que não tinham vínculo
empregatício. A LAB, por meio de
editais, possibilitou também a todos/as
nós acessarmos uma diversidade
de trabalhos artísticos em
todas as áreas, por todo o país.
A luta atual da categoria é pela
derrubada do veto presidencial,
pelo Congresso, à Lei Paulo Gustavo
(nome em homenagem ao
ator que faleceu vítima de Covid
19, em maio de 2021). Esta prevê o
repasse de R$3,8 bilhões do FNC e
(FSA) para o setor cultural.
Na avaliação de Ione Amaral,
membro do Conselho Estadual da
Cultura de Minas Gerais, a Lei Paulo
Gustavo é importante porque vai garantir
que o superávit financeiro do
FNC seja usado em ações emergenciais
para a cultura, e não para amortização
da dívida pública como autoriza
a PEC emergencial 109/2021.
“O recurso precisa ser investido na
própria cultura, no apoio aos artistas
e na produção cultural. Esta lei traz
avanços em relação à LAB como, por
exemplo, previsão de ações que estimulem
a participação e o protagonismo
das minorias com promoção
da igualdade de gênero, raça e classe
de acordo com a realidade local
de cada território”, afirma. Mais informações
sobre a Lei PG no https://
linktr.ee/leipaulogustavo
Lei Aldir Blanc
A demora em surgir uma política
pública em benefício dos/as artistas
mostrou a fragilidade econômica
que o setor cultural enfrenta. “A
Lei Aldir Blanc (LAB) só veio no segundo
semestre de 2020, mas, felizmente
alcançou muitos artistas”,
avalia a poetisa e cordelista de Alagoinha
do Piauí (PI), Regivalda de
Souza (foto). “O recurso que recebi
da LAB me permitiu publicar, em setembro
passado, o livro “O Vale das
Flores”, conto autoral que aborda a
pluralidade feminina e temas sociais
que fazem parte deste universo. Eu
me sinto feliz pela possibilidade de
publicar um novo livro, mas a realidade
continua sendo um espectro
que assusta”, afirma.
n Rocílio Ribeiro Rocha
n Enzo Macieira
Trabalhando com literatura desde
2014, Regivalda diz que escrever
é uma forma de resistência diante
da carência de políticas públicas
que deixa os/as artistas, principalmente
aqueles/as que, como ela,
atuam no interior do país, sozinhos/
as no desenvolvimento de práticas
que são relevantes para a sociedade”,
desabafa.
Em 2020, com a pandemia, Regivalda
teve que adiar vários projetos.
E como saraus e demais eventos
culturais já não podiam acontecer,
dificultou a comercialização do
produto final do seu trabalho: os
livros. Porém, a crise sanitária
trouxe também coisas novas. “As
redes sociais atuaram com uma
luz no fim do túnel e permitiram
a aproximação de diálogos com
outros escritores e artistas plásticos
da região: o que originou a ALVAR,
Academia de Letras do Vale do
Riachão, formada por seis cidades
do Piauí (São Julião, Alagoinha do
Piauí, Monsenhor Hipólito, Francisco
Santos, Santo Antônio de Lisboa
e Bocaina). Nascida como um grupo
de WhatsApp, acabou sendo regulamentada
como uma Academia de
Letras e visa fomentar a produção
cultural e artística da região. Com
este projeto, nos fortalecemos
enquanto artistas e vamos buscar
a união com poder público destas
cidades”, conta ao destacar a
importância da escola nos tempos
de pandemia. “A escola sempre foi
espaço de acolhimento da cultura
local e de debate. E com a aula
remota, os/as professores/as, que
também tiveram que se reinventar,
ampliaram este laço com a arte e
pudemos participar de muitas lives
com alunos/as. Queremos, cada vez
mais, fortalecer este vínculo entre
escola e arte”, diz.
A união de artistas, a partir do
isolamento social, também foi um
fato inédito na cidade mineira de
Revista Elas por Elas - maio 2022
33
n Dany Dhen
e a produção de um material com
as demandas dos/as artistas enviado
para a prefeitura. “Estou na cidade
há 40 anos e foi o primeiro movimento
forte de união dos artistas.
O Fórum hoje tem mais de 120 artistas
de todas as áreas. Passamos a
conhecer mais um ao outro e a pensar
juntos/as para a luta em defesa
da arte e da cultura. Sozinho/a ninguém
faz nada. Este foi pra todos/as
nós o grande aprendizado da Lei Aldir
Blanc”, afirma.
Lagoa Santa. A partir da iniciativa
do então vereador Artileu Bonfim,
um grupo de artistas se uniu, em julho
de 2020, para entender a lei Aldir
Blanc e cobrar agilidade da prefeitura
em colocá-la na prática. “A
lei precisava ser aplicada urgentemente,
pois os artistas estavam passando
grande aperto financeiro. Fizemos
uma mobilização rápida e o
Artileu criou o Fórum da Cultura de
Lagoa Santa, de forma virtual. Assim,
foi feita a capacitação sobre a
lei e a ajuda aos/às artistas para o
cadastro no município para receberem
o auxílio emergencial e entrar
nos editais lançado pela LAB”, conta
a professora universitária e artista
multimídia, Cássia Macieira. Ela revela
que o grupo foi se fortalecendo
e, mesmo que ainda esteja existindo
de forma virtual (WhatsApp e @forumdaculturals),
muita coisa já foi
feita como eleger um membro para
o Conselho Municipal de Cultura
representando os artistas da cidade,
“Muitos/as são casados/
as com artistas também
e isso tornou a situação
mais preocupante. A lei
Aldir Blanc demorou e
quando saiu, muitos já
estavam endividados”
Busca de alternativas
A cantora, violonista, compositora e
professora particular de música Ana
Carla Almeida faz parte do Fórum
dos Artistas de Lagoa Santa e diz que
foi um alívio poder contar com este
apoio. Em março de 2020, sua vida
estava toda organizada como ela e
o marido, Lucas Silva, planejaram
com muito carinho e cuidado. Com
um filho de 3 anos, o Luan, o casal se
preparava para receber Luara Elis,
em abril de 2020. Assim, Ana Carla
deixaria a profissão, por 4 meses,
para cuidar do bebê e, a partir de
setembro, poderia retornar com sua
música aos bares, casamentos, festas
e demais eventos já agendados. Mas,
a realidade da pandemia mudou sua
vida de cabeça pra baixo. Além de
não poder retornar ao trabalho no
tempo imaginado, seu marido teve
redução de salário. “Consegui o auxílio
emergencial da LAB que ajudou
um pouco, mas era bem menos do
que recebia trabalhando com minha
arte. Depois, sem o auxílio, a situação
complicou e eu resolvi trabalhar com
algo que nunca tinha feito - produzir
e vender doces. Tive que aprender a
34
Revista Elas por Elas - maio 2022
fazer um bom produto, planilha de
compras, conquistar clientela, me
preocupar com a entrega etc. Foi
muita embolação e eu ia gastando
na medida que recebia e, às vezes,
não sobrava para comprar mais
materiais”, afirma. Assim, o novo
empreendimento durou apenas seis
meses. Ana Carla (foto) conta ainda
que fez poucas participações em lives
e não entrou em edital da LAB por
não ter espaço físico e condições
apropriadas já que era tudo dentro
de casa, com duas crianças pequenas
que também não podiam ir para a
creche. “Música demanda espaço
para compor, ambiente tranquilo
para estudar, criar, gravar e não
tive isso. As coisas começaram a
mudar só no final de agosto de 2021,
quando fiz o primeiro trabalho em
bar desde o início da pandemia. Esta
área foi muito afetada e eu imagino
a dificuldade das mães solteiras que
também vivem da arte”, afirma.
n Josiane Soares
A força do sindicato
Assim que começou a quarentena, o
Sated (Sindicato dos Artistas e Técnicos
em Espetáculos de Diversões
de Minas Gerais) lançou campanha
para arrecadar recursos em benefício
dos/as artistas, técnicos e produtores/as
culturais. “Muitos/as são casados/as
com artistas também e isso
tornou a situação mais preocupante.
A lei Aldir Blanc demorou e quando
saiu, muitos já estavam endividados”,
afirma a presidenta do Sated,
Magdalena Rodrigues.
Uma das grandes preocupações
do sindicato foi com o artista circense.
Em Minas Gerais, foram 70 circos
parados em várias cidades. “Um
Revista Elas por Elas - maio 2022
35
a covid-19. Em termos de casas de
espetáculos, as apresentações estão
voltando aos poucos. “Acredito que
o período de pandemia conseguiu
sensibilizar a sociedade sobre o que
são as profissões de artistas e técnicos,
que sempre padeceram de certa
incompreensão sobre a sua natureza.
A atividade artística gera emprego,
renda e impostos, estimula o turismo.
Porém, carece de políticas
de apoio e desenvolvimento como
qualquer atividade econômica. Somos
trabalhadores/as! Os governos
devem promover políticas de Estado
reais e efetivas para a área artística
e cultural como propõem as
recomendações da UNESCO acerca
da arte, da cultura e dos artistas”.
O palco virtual
{ O Tempo e os Conways, de J. Priestley. Direção Wilson de Oliveira. (2005)
Wolney Oliveira, Magdalena Rodrigues e Juliana Ramos
No Rio de Janeiro, a atriz e professora
caos, pois sabemos que, no circo, o
ingresso de hoje é para comprar o
almoço de amanhã. E, em geral, as
famílias são grandes, gente de todas
as idades, enfermos etc. Com o circo
fechado, muitos precisaram vender
material de trabalho para poder sobreviver,
pois o/a circense não tem
comprovação de endereço - exigida
pelas prefeituras para cadastramento
para destinação de doação
de cestas básicas. Muitos destes circos,
mesmo parados tiveram que seguir
pagando aluguel do lote/espaço,
luz, água. A diretoria de Circo do
Sated articulou com várias prefeituras
conseguindo solução para alguns
dos casos. Com campanhas e
apoio de pessoas e instituições, levamos
cestas básicas, medicamentos,
material de higiene etc”, conta.
Não podemos sobreviver se o
próprio poder público não reconhecer
que somos trabalhadores/
as. Sou atriz há 43 anos e nunca vi
um governo que realmente fizesse
uma política efetiva de Estado para
a área artística e cultural. Precisamos
mudar essa visão. Todo mundo
se sente usuários do transporte,
da educação, da saúde, segurança,
de tudo, mas não se sente usuário
das políticas públicas de arte e cultura.
O mundo não existe sem arte -
nossa forma de nascer, crescer, namorar,
festejar, casar etc. Faz parte
da vida de todo mundo”, destaca.
Em setembro de 2021, alguns
destes circos começaram a retomar
as atividades, mesmo que com público
menor, respeitando também
os protocolos de segurança contra
de arte Cyda Moreno estava
estreando uma peça em 13/03/ 2020,
quando saiu o decreto fechando casas
de espetáculo, bares etc. Assim, foi
apenas uma única apresentação de
“Eu Amarelo”, no qual interpreta a
escritora Carolina Maria de Jesus.
“Tínhamos estreado em 2018, no Rio,
e, em 2019, em São Paulo. Mas o meu
sonho era fazer para a comunidade
negra do Rio, num espaço que é
sede dos coletivos pretos - o Terreiro
Contemporâneo. Passamos mais de
um mês trabalhando na preparação
com ensaios, divulgação, mas, infelizmente,
só fizemos um espetáculo
e empacotamos tudo,” conta.
Cyda Moreno considera que todo
artista teve que se reinventar nestes
tempos de pandemia. “Saímos dos
palcos e fomos para vídeos e o espaço
virtual, experimentando várias
n Guto Muniz
linguagens e formatos. O primeiro
vídeo que gravei foi para o canal
CULTNE, um canal de acervo das
produções da comunidade negra.
Gravei um poema de Carolina de
Jesus e, na sequência, dava dicas de
programas culturais que eu estava
desenvolvendo para ocupar o tempo
e abstrair aquela situação. Dirigi
uma performance teatral sobre a
morte do menino Miguel, em Recife,
fiz inúmeras lives, fizemos uma
versão de Carolina para a internet
e apresentamos pelo projeto Sesc
em casa. Gravei também um vídeo
cantando uma música de Carolina e
ele foi parar no jornal da Globo de
Nova York. Além disso, aproveitei
também o meu tempo para entrar
no doutorado, na UNI Rio”, diz.
E foi com a chegada da Lei Aldir
Blanc que Cyda Moreno conseguiu
voltar aos palcos, após o início da
vacinação. “O Aldir se foi e recebemos
esta dádiva em sua memória.
Entrei no edital e recebemos R$50
mil para produzir a peça teatral
Luiza Mahin. Fiz milagre com o
dinheiro. Reuni uma equipe de 12
pessoas, de amigos dos sonhos, e
ficamos 3 meses em cartaz até 31
de julho passado, presencialmente
(apenas 40 lugares) e on-line. Não foi
fácil, mas foi maravilhoso, porque
o que queremos mesmo é estar no
palco. O espetáculo pra mim é como
uma missão. Trazer a história desta
mulher invisibilizada pelo racismo
e falar da dor das mães negras, que
continuam perdendo seus filhos,
foi muita emoção”, afirma Cyda
ao ressaltar que nada poderá calar
o/a artista. Na avaliação da atriz,
o teatro pós-pandemia será um
recomeçar das cinzas, “pois não
{ Taís Alves, Márcia do Valle, Cyda Moreno, Regina Café, Márcia Santos, e Jonathan Fontella.
será fácil tirar as pessoas de casa.
Mas, por outro lado, não acredito
que o modelo virtual terá vida muito
longa, porque nada substitui o ator,
a atriz no palco, a energia da plateia.
A arte salva, é cura!”, finaliza.
“a arte tem o poder de
ajudar o ser humano a
encontrar-se a si mesmo,
superar e conseguir
conviver com problemas
emocionais que vão
surgindo em virtude da
realidade.
A arte como cura
Em tempos de guerra, catástrofes
e pandemias, além de diversão,
denúncia e alento, a arte se
apresenta também como a possibilidade
de ser um ponto de
equilíbrio e força para continuar.
Nestes últimos tempos, foi comum
vermos entre amigos, familiares
e até nas redes sociais, pessoas
não artistas partilharem seus primeiros
desenhos, cantos, pinturas,
fotografias etc. Para a cordelista
Regivalda de Souza, com a
pandemia, ficou ainda mais claro
que “a arte tem o poder de ajudar
o ser humano a encontrar-se a si
mesmo, superar e conseguir conviver
com problemas emocionais
que vão surgindo em virtude da
n Cláudia Ribeiro
Revista Elas por Elas - maio 2022
37
realidade. Ela é o caminho onde a
gente consegue também se reconhecer
e se fortalecer”.
Para a jornalista, fotógrafa e
realizadora audiovisual, Carina
Aparecida dos Santos, se permitir
viver a arte foi essencial no período
de isolamento. Ela trabalhou na
realização de três projetos de artistas
aprovados na Lei Aldir Blanc, mas
também pode realizar sua própria
obra. “Tive uma relação com a
criação artística mais livre. Era uma
espécie de alimento para sustentar
tanto vazio e desespero que estes
tempos trouxeram. Li uma vez um
depoimento de uma fotógrafa que
dizia que a arte é a única ocupação
que permite aos adultos continuarem
brincando. Isso me tocou muito. Percebi
o quanto é importante manter
vivo este espírito da descoberta, de
brincar por brincar, do experimento.
Passei os quatro primeiros meses
de quarentena na casa da minha
mãe, em Juatuba /MG e ali levei isso
ao pé da letra. Com tanto tempo vago,
fui propondo algumas “brincadeiras”.
Fizemos juntas o ensaio fotográfico
“Perto do Útero”, em que tentava
traduzir justamente o sentimento
que eu tinha naquele momento. Não
tinha pretensão com esse trabalho,
só queria mesmo registrar esse tempo
ali com minha mãe. Mas fiquei muito
feliz quando o ensaio começou a ser essência do que somos, sem manuais, Desde a luta por políticas públicas
divulgado, o texto foi traduzido para sem regras. Vivida organicamente”, que valorizem o trabalho cultural,
inglês, espanhol, recebi mensagens afirma. Na avaliação de Carina, a inclusive com a perspectiva de gênero,
até essa construção subjetiva
de muitas mulheres agradecendo e criação é semente em todos/as nós
dizendo o quanto foram tocadas por e, especialmente para as mulheres, mesmo, do que somos com o tempo
isso. Recentemente, uma das fotos foi também uma possibilidade de que é nosso, único. Não é à toa que
selecionada para a exposição “Mulher romper com padrões, transmutar a arte tem a capacidade crítica de
no Plural: Múltiplas Perspectivas”, nossas feridas históricas, nos colocar questionar este sistema. Eles querem
realizada pela ALMG. Fui sentindo no mundo como queremos estar. consumir todo nosso tempo. E sem
a importância da arte conectada à “É resistência, em todos os níveis. tempo, não há arte”, afirma.
38 Revista Elas por Elas - maio 2022
n Patrick Alves
Revista Elas por Elas - maio 2022
39
n Mark Florest
40
Revista Elas por Elas - maio 2022
Realidade
por Nanci Alves
As ruas do Brasil
têm muito o que contar
Mais de 160 mil pessoas estão em situação de rua em nosso país. Um número assustador
que vem crescendo com o desemprego, desigualdade social, violência doméstica e
outras causas que se reforçam com a falta de políticas públicas.
Um viaduto movimentado, perto
da região central de Belo Horizonte/MG,
tem sido a moradia de Maria
Aparecida de Souza nos últimos
anos. Ao lado de seu companheiro,
José Luiz, e de inúmeros cachorros,
ela vive na esperança de um dia ter
sua casinha, “onde possa tomar um
banho direito, descansar tranquila
sem os sustos diários que a rua nos
dá”. Aos 37 anos, Maria Aparecida
cuida como pode do espaço, mantém
as panelas brilhando e trata os
bichos com carinho e alimentação
- “a gente compra e também ganha
ração para eles”.
Ela conta que perdeu sua mãe
aos 22 anos na cidade de Caeté/MG
e, como o pai vendeu o terreno da
família, veio tentar a vida em Belo
Horizonte. Depois de um tempo, Maria
Aparecida se uniu a José Luiz e
juntos vivem do recurso que recebem
tomando conta dos carros estacionados
debaixo de uma parte do
viaduto onde moram. “Estou acostumada
aqui e me sinto segura, porque
tenho meu marido e meus cachorros.
Não é fácil para a mulher
viver na rua por causa das questões
femininas e da violência também. O
mais seguro é ter um companheiro
e o meu é muito especial, ele cuida
de mim. Inclusive me tirou duas
vezes da cadeia, onde fui parar injustamente.
Ele conseguiu advogado
com os donos dos carros que a
gente toma conta”, explica. Maria
Aparecida diz que conseguem água
numa bica que tem perto e que contam
também com doações. “Com a
pandemia, não senti muita diferença,
porque normalmente não saio
daqui, vivemos sozinhos mesmo e
com o pouco que temos”, afirma.
Como Maria Aparecida, quantas
pessoas vivem em situação de
rua no Brasil? Esta continua sendo
Revista Elas por Elas - maio 2022
41
n Mark Florest
{ Maria Aparecida: o sonho de ter uma casinha e viver em paz
a pergunta sem resposta oficial do
governo, porque até hoje o IBGE não
faz esta contagem, mesmo com todos
os apelos dos movimentos em
defesa dos direitos humanos desta
parcela, nada pequena, da população.
A antiga reivindicação é também
um dos 14 objetivos propostos
para a Política Nacional para a População
em Situação de Rua, conforme
o decreto n.º 7.053, de 23 de
dezembro de 2009, do governo Luís
Inácio Lula da Silva. Porém, mesmo
ainda não tendo pesquisa oficial, dados
de um levantamento realizado
pela UFMG (veja no final desta
matéria) apontam para mais de
160 mil pessoas nas ruas em todo o
Brasil, sendo mais de 40% no Estado
de São Paulo. Este número absurdo
também revela quem são estas pessoas
– em sua maioria negras (70%),
sem acesso a direitos básicos como
saúde, alimentação, educação e trabalho
e empurradas para as ruas
“Difícil falar da realidade
de uma população
que não foi contabilizada,
que apenas uma
parte conseguiu se cadastrar
em programas
sociais, projetos etc.
também por outras questões como
rompimento com vínculos familiares,
violência doméstica, doenças,
desastres ambientais como inundações
e secas etc. Além das várias
perdas, estas pessoas sofrem todo
tipo de preconceito, discriminação e
diversas outras formas de violências
diárias, especialmente as mulheres.
De acordo com Samuel Rodrigues,
membro do Movimento Nacional
da População de Rua, mesmo
alguns estados ou municípios realizando
senso em suas regiões, é fundamental
que o IBGE incorpore em
suas pesquisas as pessoas em situação
de rua porque é com base nestes
resultados que o governo constrói
políticas públicas.
42
Revista Elas por Elas - maio 2022
A rua e a pandemia
Samuel Rodrigues, que já viveu a
experiência de situação de rua em
tempos remotos, salienta que a falta
de dados concretos e de políticas
públicas foram entraves ainda maiores
durante o período de isolamento
social provocado pela pandemia
da Covid-19.
“Difícil falar da realidade de uma
população que não foi contabilizada,
que apenas uma parte conseguiu se
cadastrar em programas sociais, projetos
etc. É inegável que é um povo
que sofre muito. Trata-se de um fenômeno
urbano - um povo de pobreza
extrema, grande vulnerabilidade
e que está sendo violentado
antes, durante e seguirá, no pós-pandemia,
se não lutarmos por políticas
realmente estruturantes, capazes de
contribuir para o fim ou a redução
deste fenômeno. Estas pessoas sobrevivem
com apoio dos parcos serviços
da assistência social dos municípios
e da atuação das ONGs, igrejas
de credos diferentes e grupos organizados
da sociedade que oferecem
alimentação e outros itens necessários
para a vida. Foi positivo perceber
que teve uma maior aproximação
da sociedade nestes tempos
de pandemia. Mas em termos políticos,
está muito aquém, esquecida
pelo poder público”, conta.
Durante a pandemia, quando
a cidade foi fechada, a Pastoral de
Rua da Arquidiocese de Belo Horizonte
(MG), preocupada em se manter
presente junto dessa população
que não tem condições de se proteger
contra o coranavírus, criou em
conjunto com a Pastoral Nacional do
Povo da Rua e uma rede de parceiros
(sociedade civil, ONGs, universidades,
justiça e poder público) o projeto
Canto da Rua Emergencial (@
cantodaruaemergencial). Trata-se de
uma Frente Humanitária que atuou
de março de 2020 a agosto de 2021,
n Divulgação Redes Sociais
conseguindo atender a 10 mil pessoas
com o básico para a sobrevivência
como o acesso à água. O Canto
da Rua funcionou no espaço cultural
Serraria Souza Pinto (cedido pelo
governo do Estado) com ações voltadas
para lanche, higiene pessoal,
espaço para cuidar dos pets, atendimento,
oficinas, atividades culturais,
orientação e encaminhamento
social. De acordo com a coordenadora
da Pastoral de Rua da Arquidiocese,
Claudenice Rodrigues Lopes,
houve também uma articulação
com a rede pública de saúde para
os casos sintomáticos da Covid-19 e
para outras queixas - “porque essa é
uma população que apresenta, historicamente,
um quadro de adoecimento
muito grave e crônico e que
muitas vezes não é percebido ou cuidado.
E além disso, tiveram as hospedagens
para cerca de 170 pessoas
com a garantia de uma moradia
provisória”, conta.
O Canto da Rua conheceu e
acolheu milhares de histórias como
a de Eliane, que quer escrever um
livro sobre sua vida; Bete (1ª foto)
que enfrenta muita solidão nas ruas
e, mesmo mais velha, tem muitas
saudades do colo da mãe; Tereza,
que quer ser cabeleireira; Maria, que
conseguiu fazer seus documentos
com apoio do Canto Emergencial,
Jullyanah (2ª foto), que sofreu toda
sua vida por ser trans e que, com a
pandemia, perdeu seu emprego de
cabeleireira indo parar nas ruas. E,
Cyntia, que como Jullyanah, é mulher
trans e veio para BH em busca
de trabalho e casa. Estas e todas as
mulheres em situação de rua têm
muitas histórias para contar sobre
seus sonhos e, infelizmente, sobre
Revista Elas por Elas - maio 2022
43
suas dores. Com muita força de resistência,
P. conta que foi estuprada
8 vezes “porque o machismo na rua
é forte e a mulher está sempre em
desvantagem”.
O sonho da casa própria
“Sou Alessandra Martins (foto),
mulher negra, venho de uma família
pobre e desestruturada. Tenho
40 anos, sou mãe de 5 filhos e avó
da Melyssa. Vivi uma trajetória de
20 anos nas ruas, que começou com
uma gravidez precoce e a desestruturação
familiar. Na rua, me envolvi
com drogas e outras coisas ruins que
essa situação nos oferece. Fui usuária
de crak por 12 anos. A rua tem
um grande poder de afetar a saúde
mental de quem nela vive, por isso
o maior desafio de estar nas ruas é
se manter vivo e saudável!”
Com esta apresentação de si mesma
e das ruas, Alessandra nos mostra
uma realidade que passa invisibilizada
pela sociedade e principalmente
pelas políticas públicas. Ela também
nos ensina que um novo caminho é
possível quando as portas se abrem.
“Só consegui reaver o sentindo da
vida a partir de oportunidades e da
confiança de outras pessoas em mim.
Hoje eu agradeço à minha mãe e aos
meus filhos pelo apoio, por acreditarem
que seria possível através do
amor, da presença e da união. Agradeço
também às pessoas da Pastoral
do Povo da Rua e da Asmare (Associação
dos Catadores de Papel, Papelão
e Materiais Reaproveitáveis de
Belo Horizonte). Elas me mostraram
o quanto sou fundamental na vida
dos meus. Estou “limpa” há nove
anos e quatro deles luto por moradia.
44 Revista Elas por Elas - maio 2022
n Carina Aparecida
Divido um espaço com mais 14 famílias
que têm o mesmo propósito
que é morar e morar com dignidade”,
conta Alessandra, que vive na
Ocupação Anita Santos, na região noroeste
de Belo Horizonte/MG - nome
em homenagem à Anita Gomes dos
Santos, mulher negra, militante, ex
moradora de rua e uma das fundadoras
do Movimento Nacional da
População de Rua, que faleceu em
2017. O terreno faz parte da CBTU
(Companhia Brasileira de Trens Urbanos),
hoje privatizada. “Teremos
audiência em breve até hoje sem nenhuma
proposta do poder público
sobre moradia. Estamos ansiosas
e inseguras, porque corremos riscos
de ter que voltar para as ruas.
Este retrocesso traz de volta tudo
que deixamos para trás, pois a rua
não te capacita para nada de bom.
Ela te impossibilita de ser enxergada
como gente, de ter uma vida normal.
Somos seres humanos e tudo
que queremos é uma casa e um trabalho
para vivermos com dignidade
com nossas famílias. Não existe
bem maior do que este”, desabafa.
Alessandra lembra que, especialmente
para a mulher, a situação de
rua é ainda mais perversa. “Além
da violência, a mulher também enfrenta
dificuldades com a higienização,
principalmente no período
menstrual, pois são praticamente
inexistentes os equipamentos voltados
só pra mulheres. Precisamos
fortalecer as políticas voltadas para
a mulher, inclusive a trans, seja ela
mãe, avó ou adolescente. É urgente
um olhar sensível para os vulneráveis,
precisamos criar a garantia
dos direitos básicos da vida. A nossa
Constituição nos diz que somos
iguais. Ela nos garante moradia, segurança,
direitos e dignidade. Mas
onde está esta verdade? Especialmente
neste governo o que vemos
é uma caça aos pobres. Somos nós
que sempre temos um pouco mais
a pagar. Buscamos apoio de pessoas
que se sensibilizam com a nossa
luta por moradia e trabalho”, conta.
Crime humanitário
Conforme pesquisa da UFMG (veja
no final da matéria), em São Paulo
se concentra o maior número de
pessoas em situação de rua do país
(65.728). Na capital paulista está mais
da metade deste percentual (36.367).
Lá, entre outras ações, a gente sempre
vê, pelas rede sociais, o incansável
trabalho social/espiritual do
padre Júlio Lancelotti (foto) e dos
agentes pastorais da sua paróquia
(São Miguel Arcanjo), no bairro da
Mooca. Nas celebrações e nas redes
sociais, ele sempre convoca a toda a
sociedade a ser solidária e acolher
os/as que estão em situação de risco
social. Pe. Júlio, ao lembrar que
as praças da cidade de São Paulo parecem
um acampamento, por tantas
barracas de pessoas em situação de
rua, pede sempre para as autoridades,
políticas públicas e um olhar humano
para os vulneráveis, pois “não
adianta falar ‘Deus acima de tudo’ e
colocar as pessoas abaixo do nada”.
Carla de Souza, que foi vítima
de violência doméstica com o então
marido, e que hoje vive na ocupação
Viaduto Alcântara (SP), faz parte desta
estatística. “Eu morei só um ano
n Daniel Kfouri
Revista Elas por Elas - maio 2022
45
de aluguel, foi no ano que trabalhei.
Era auxiliar de cozinha, depois passei
para cozinheira, mas com a pandemia,
a dona fechou o restaurante e
até hoje não reabriu”. Carla explica
que pra saber o que vivem as pessoas
nas ruas é preciso passar pelo que
passam, vestir uma roupa suja por
3 dias, sentir fome. “Já comi comida
estragada, porque não tinha o que
comer. Já fui em restaurante pedir e
recebi um não na cara”, conta ao ressaltar
que morar na rua é dormir no
meio de baratas, ratos, ser mordida.
Ao afirmar que cozinha com
amor, Carla conta que seu sonho
é ter um restaurante onde possa
cozinhar e os fregueses ficarem
tão felizes com a comida a ponto de
quererem conhecer a cozinheira.
“Também é meu sonho criar meus
filhos, saindo da rua, ter um canto
para morar com dignidade, pra mim
e para todos nós. Não penso só em
mim, mas no próximo também. Não
é só a minha barriga que dói e todo
mundo tem sonho.”
Carla faz seu depoimento, em
vídeo nas redes sociais (@daniel_
Kfouri) a Paulo Escobar, do projeto
Vozes da Rua de autoria de Daniel
Kfouri e Paulo Escobar.
Com a pandemia, era urgente
incluir as pessoas em situação
de rua entre os grupos de
prioridade para a imunização
contra a Covid-19, pela precariedade
das condições de
vida que se encontram, a exposição
a diversos riscos e às
dificuldades de higienização,
como a falta de acesso à água
potável. Porém, no plano de
vacinação do Governo Federal,
apresentado no início de
2021, os números referentes
à população em situação de
rua no país eram de somente
66 mil pessoas, conforme dados
do Ministério da Saúde,
muito aquém da realidade e
dos dados estimados pelo Instituto
de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA), em março de
2020, de, aproximadamente,
221 mil pessoas. Diante deste
desacordo de números, a Defensoria
Pública da União solicitou
ao Programa Polos de
Cidadania da Faculdade de Direito
da UFMG, Universidade
Federal de Minas Gerais
que fizesse um levantamento
com informações detalhadas
sobre a população em situação
de rua em todo o território
nacional.
O Polos, em diálogo com o
Movimento Nacional da População
em Situação de Rua
e a Pastoral do Povo da Rua,
46 Revista Elas por Elas - maio 2022 Os Incontáveis
n Daniel Kfouri
criou o Projeto Incontáveis para
fazer o levantamento necessário.
Como resultado final, em abril de
2021, a pesquisa, realizada a partir
da consulta sistematizada ao Cadastro
Único para Programas Sociais do
Governo Federal (CadÚnico), apontou
um número de 160.097 pessoas
em situação de rua cadastradas nessa
base de dados em março de 2021,
sendo 155.085 em faixas etárias vacináveis.
Assim, o número indicado
e inicialmente previsto no Plano de
Vacinação do Ministério da Saúde
(66 mil) atingiria somente 43% das
pessoas em situação de rua com faixas
etárias vacináveis no país.
De acordo com o coordenador
do Polos, o professor Dr. André Luiz
Freitas Dias, o documento reforça
que o fenômeno da população em
situação de rua no Brasil apresenta
uma relação intrínseca com o Racismo
Estrutural, historicamente
presente em nosso país - 70% das
pessoas em situação de rua se declaram
negras. Assim, a partir destes
dados e da realidade das violências
secularmente praticadas contra as
vidas negras no Brasil, o documento
afirma, nas considerações finais,
que “é imperativo e urgente que as
suas existências sejam não somente
contabilidades, reconhecidas e respeitadas,
mas parem de ser violadas,
estigmatizadas, patologizadas, criminalizadas,
encarceradas e eliminadas.
Recolhimentos constantes de
pertences, como colchões, cobertores,
documentos e alimentos; colocação
de pedras e objetos pontiagudos
população em situação de rua no Brasil
Relatório técnico-científico do Polos
Centro-Oeste
7%
Sul
14,30%
Norte
3,38%
pelas cidades (especialmente debaixo
dos viadutos); retiradas sistemáticas
de crianças dos convívios
de mães e famílias historicamente
Nordeste
12,70%
Sudeste
62,62%
Minas Gerais: 11,84%,
São Paulo: 41,05%
Rio de Janeiro: 8,04%
Espírito Santo: 1,69%
vulnerabilizadas são algumas das
inúmeras violências cotidianamente
enfrentadas por essa população nas
cidades brasileiras”.
Revista Elas por Elas - maio 2022
47
Cansei
Eloisa Helena
48
Revista Elas por Elas - maio 2022
Cansei
Érika Gonçalves
Revista Elas por Elas - maio 2022
49
n Luiz Cláudio
50
Revista Elas por Elas - maio 2022
Saúde
por Carina Aparecida
A pandemia que
contamina emoções
Os impactos e transformações do mundo pela Covid-19 chegaram às subjetividades
com consequências para a saúde mental. Reproduzindo a histórica desigualdade de
gênero, são pesos e dores que recaem principalmente sobre as mulheres.
é um processo lento
desembrutecer
exige que você abra as
portas
e deixe escorrer o gosto
denso do passado
seu trauma não diz mais
seu nome
mas você segue abraçando
a escuridão
porque acredita que só ali
pode caber
deixe escorrer, agora e
novamente
repita:
o afeto também
me pertence
(...)
Ao lado, alguns versos do poema
escrito por Ryane Leão e compartilhados
nas redes sociais de Stephanie
Nazaré de Oliveira (foto). Depois
de escutar sobre seu processo
subjetivo desde o início da pandemia,
dá pra sentir a motivação em
se sentir nesses versos.
Antes mesmo de começar a pandemia,
Stephanie, 33 anos, já enfrentava
a saga de conseguir um emprego
fixo, em uma realidade econômica
que já apresentava sinais de crise.
No início do ano de 2020, conseguiu
uma proposta de trabalho,
se via cheia de planos e expectativas,
mas com a chegada da pandemia,
tudo se transformou. "Me afetou
muito emocionalmente. Passei
a fazer bicos, freelas, mas com o
lockdown não deu para continuar.
Eu fiquei muito triste, não tinha renda,
tranquei meus estudos e passei
a depender da ajuda dos meus pais.
Para mim, independente financeiramente
desde os meus 17 anos, foi
uma facada", relata.
Esse foi o pontapé para uma
instabilidade emocional que foi
se agravando com o tempo. A estudante
de gastronomia percebeu
que não estava tudo bem quando
começou a ter crises de ansiedade.
"Rangia os dentes, me sentia ansiosa
quando colocava máscara. Tive
problemas de estômago, refluxo e
coisas que pareciam sintomas da
Covid, como perda do apetite e do
paladar. Ficava irritada, muito nervosa.
Não estava bem. Afetada com
a dependência e todo o contexto da
pandemia", descreve.
Revista Elas por Elas - maio 2022
51
Talvez, até aqui, muitas mulheres
já se identificaram com a montanha
russa emocional vivida por Stephanie.
E é normal que se identifiquem.
Um estudo realizado em 2020 pelo
Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital
das Clínicas (HC) e Faculdade
de Medicina da USP (FMUSP) analisou
o perfil do grande número de
pessoas que apresentou, durante a
pandemia, problemas emocionais
sérios. As mais afetadas foram as
mulheres, respondendo por 40,5%
de sintomas de depressão, 34,9% de
ansiedade e 37,3% de estresse.
No caso de Stephanie, como a ansiedade
foi tomando conta do seu
cotidiano, foi orientada a fazer uso
de medicamentos para combater os
refluxos, diretamente ligados ao fator
emocional, além de um ansiolítico.
"Eu cheguei a tomar quatro remédios
diferentes. De manhã, não
conseguia fazer nada e senti que
estava criando uma dependência
da medicação", explica. Muitas angústias
atravessaram o cotidiano de
Stephanie até que outra possibilidade
de tratamento começou a se desenhar
à sua frente. "Para mim, a
ajuda chegou quando uma amiga
me mandou um folder com informações
de um coletivo de mulheres
negras (Mulheres da Quebrada),
que oferecia ajuda psicológica. Já
sabia que tinha algumas iniciativas
assim, mas eu não tinha grana para
pagar. Eu me inscrevi, mas sem
achar que ia ser chamada", conta.
Mas Stephanie conseguiu o acompanhamento
psicológico gratuito com
o Coletivo e, desde então, segue com
o acompanhamento. A iniciativa
de um coletivo de mulheres negras
acolher a outras mulheres negras
52 Revista Elas por Elas - maio 2022
n Luiz Cláudio
nos traz a reflexão sobre o desigual
acesso aos cuidados em saúde mental
e os reflexos disso na vida dessas
mulheres.
"Todo/a psicológo/a tem
que ser antirracista"
Essa foi uma das últimas afirmações
que a psicóloga Beatriz Dagma
(foto) fez na entrevista para esta
reportagem e traz uma provocação
necessária sobre o entendimento de
saúde mental em uma sociedade extremamente
marcada pelo racismo
estrutural.
Beatriz é uma profissional parceira
do coletivo Mulheres da Quebrada.
Para ela, essa iniciativa, especialmente
em um momento como o
que vivemos, é de extrema importância.
"Com certeza, a pandemia foi e
tem sido uma marca na subjetividade
dos sujeitos. Angústia, ansiedade,
episódios depressivos, sintomas obsessivos,
crises de pânico aumentaram
muito. Creio que ainda há muito
para descobrir sobre o impacto subjetivo
da pandemia, principalmente
agora com a abertura da cidade e
a volta do convívio social", explica.
A psicóloga ressalta que a pandemia
trouxe a morte para muito
perto, além de muitas incertezas,
desemprego, desmonte de políticas
públicas. "Alguns desses fatores impactaram
diretamente a vida de muitas
mulheres negras e suas famílias.
Durante a pandemia também vimos
casos terríveis de racismo no Brasil
e em todo o mundo, como por
exemplo, o assassinato do norteamericano
George Floyd (05/2020)
pela polícia, que reforçou a campanha
“Vidas Negras Importam”. Ver
a morte cercando, por todos os lados,
tem sido outro ponto de muita
angústia no consultório", afirma.
“Cada dia mais entendendo
que quem cuida
da mulher negra é só
outra mulher negra".
Se o racismo é estrutural, é urgente
que o cuidado com a saúde mental
passe por todas as camadas de vivências
tão desiguais e diversas. "Cada
dia mais entendendo que quem cuida
da mulher negra é só outra mulher
negra". Esse é um tweet de @
nahrivelli que visualizei justo nos
dias em que escrevia esta matéria.
Me lembrei do relato de Stephanie,
quando contava sobre a importância
de ter sido acolhida por uma psicóloga
também negra, assumindo que
as primeiras sessões foram bem difíceis,
mas que aos poucos a terapia
n Carina Aparecida
Revista Elas por Elas - maio 2022
53
ainda mais quando se trata de mulheres
foi ajudando a descortinar a fumaça
que a impedia de enxergar algumas
questões profundas. "É muito
importante tratar a saúde mental. Tô
aprendendo que preciso me assumir,
que posso ter meus limites, colocar o
que eu quero, me posicionar afetivamente.
Como mulher negra, a gente é
muito estereotipada e quis saber filtrar
melhor as pessoas com quem eu
me relaciono, as pessoas com quem
escolho dividir os meus momentos.
A questão emocional da mulher negra
fica muito afetada, porque a gente
tem que ser forte o tempo todo, a
gente tem que dar conta de tudo e
não precisa disso. A gente tem que
ficar bem. Inclusive com amizades,
entendendo se o ‘tamo junto’ é ‘tamo
junto’ mesmo", reflete.
Questões subjetivas que também
se relacionam com marcadores
econômicos e sociais. A psicóloga
e professora de Psicologia da
UFRGS e UFES, Simone Mainieri
Paulon, também tem construído reflexões
sobre os distintos impactos
da pandemia na vida da população
brasileira. Explica que somado
à "desastrosa" gestão do combate à
pandemia no Brasil, temos ainda os
efeitos devastadores que o desmonte
das políticas sociais em curso
desde o "golpe midiático-jurídico-
-parlamentar" de 2016 representou
aos segmentos mais vulneráveis da
população brasileira. Dentro dele,
os marcadores de raça, gênero e
classe apontam a extrema fragilização
das mulheres, que se agrava
negras. "Neste sentido, são
cruéis, mas não surpreendentes,
os dados que começam a ser divulgados
quanto aos impactos diferenciados
da pandemia de Covid-19. A
cultura colonial escravocrata brasileira
mantém, por exemplo, quase
6 milhões de domésticas em
condições de trabalho, na maioria
das vezes, precarizadas e informais.
As diaristas foram altamente
atingidas tanto pelo desemprego
como pela contaminação por famílias
de contratantes que ou as dispensaram
ou não tomaram medidas
adequadas, de transporte, por
exemplo, que as protegessem para
continuarem frequentando as casas
que limpam", relata a psicóloga.
Ser mãe é padecer no
paraíso… e na pandemia
"Quem pariu Mateus que o embale".
O ditado popular tão propagado
reflete uma visão perigosa que a
sociedade patriarcal tem lançado à
maternidade. Com a pandemia, isso
tem se agravado. Tempos em que
tudo se aflora ainda mais e parece
se propagar, como o vírus.
É o caso de Ana Cristina Silva
de Lima, 32 anos, que também
teve que enfrentar os desafios
de uma saúde mental abalada
em um contexto assustador. Como
mãe solo, ela já enfrentava a realidade
de estar sem trabalho para
cuidar do filho Ravi Silva, que no
início da pandemia tinha apenas
sete meses. "O seguro desemprego
acabando, eu procurando emprego
e já vendo que tava muito difícil.
As escolas e creches estavam
n Adobe Istock
fechadas e isso me desesperava
porque, quando eu precisei voltar
para o mercado de trabalho, as dificuldades
aumentaram", conta.
Ana (foto) relata que foi natural
até ter que se abster, desistir de
algo para não surtar psicologicamente
e, ao mesmo tempo, sentindo que
isso não seria possível. "Maternidade,
desemprego, pandemia, a qualidade
do emprego, mão de obra barata,
um filho, escola fechada, preciso
pagar particular, mas não tenho condições",
desabafa, recordando suas
angústias, além da preocupação com
o desenvolvimento de Ravi. "Até hoje
reflito sobre o impacto disso tudo
para ele. Observava as fases em que
ficou mais agitado, sentindo falta de
interação. Sempre me questionando
se o que eu estava fazendo era o certo.
Questionamentos comuns na maternidade",
conta Ana ao desabafar
também sobre outros sentimentos:
"fui percebendo que depois que você
se torna mãe, o mundo tenta te anular
como mulher. Parece que tudo
que eu sou, que fazia antes é apagado.
Eu escutei em um dos meus últimos
trabalhos que eles tinham contratado
duas mulheres sem filhos. E
na época meu filho tinha adoecido
assim que eu entrei no trabalho, e
eu cheguei a ouvir que eu tinha que
me virar. Então foi bem difícil saber
disso, que eles preferem mulheres
que não são mães", relata.
A psicóloga Simone Paulon explica
que nossa cultura patriarcal e colonial
naturalizou as funções de cuidado
como femininas e, como funções
desvalorizadas socialmente, são mal
ou sequer são remuneradas. "As tarefas
de cuidado, incluindo dos filhos, as
atividades domésticas, as profissões
n Camila Paiva
Revista Elas por Elas - maio 2022
55
da saúde e de limpeza, ficam muito
ao encargo das mulheres. Isto tem
determinado, por exemplo, um quadro
de adoecimento específico entre
as mulheres que tem sido denominado
de burnout materno", comenta.
Simone relembra uma reportagem
veiculada no último ano na BBC
intitulada “As mães demitidas durante
a pandemia: Tentei conciliar
trabalho com meu bebê, mas perdi
o emprego", descrevendo a realidade
de muitas mulheres que viveram
no limite do stress emocional para
se manterem trabalhando e muitas
delas não conseguiram manter suas
rendas - ou pelo trabalho informal
que deixou de ser realizado, ou pela
diminuição de demanda daquelas
que prestavam serviços externos,
ou mesmo pela impossibilidade de
conciliar a sobrecarga de trabalho
doméstico com home office.
Saúde!
de acolher e aprofundar nas questões
Simone Paulon afirma que podemos caminhos para driblar as doenças
56 Revista Elas por Elas - maio 2022
considerar a pandemia da Covid-19
como um marco de saúde mental
para todo o planeta, sobretudo para
as mulheres. "Uma crise de proporções
planetárias como esta abala e
desorganiza a todas nós, provocando
medos, inseguranças e demandando
intervenções governamentais
firmes e coletivas de proteção e cuidados
com toda população. E quando
se trata de países empobrecidos,
governos autoritários e populações
vulneráveis, os abalos tendem a ser
inevitavelmente maiores", explica.
De fato, o contexto político em que
vivemos parece afetar diretamente
o psicológico de muitas pessoas,
mesmo quando existe tratamento e
mentais. Stephanie de Oliveira relata
que já conseguiu deixar os remédios.
Arrumou emprego fixo como
auxiliar administrativa e foi encontrando
também a cura através da
dança afro e na corrida de atletismo.
Mesmo assim, questiona a ideia
de poder estar totalmente bem nos
dias atuais. "No Brasil de Bolsonaro,
não dá pra falar que a gente tá bem.
Mas a gente tem conseguido se abraçar,
se acolher, se aquilombar. Eu estou
me aquilombando com os meus,
sendo seletiva", afirma. O aquilombamento
lembrado por Stephanie
está presente, inclusive, no consultório
psicológico, espaço que ela continua
ocupando. Esse espaço, capaz
humanas, tecendo as subjetivi-
dades com o contexto social, é para
a psicóloga Beatriz Dagma um lugar
de muita relevância. "É um espaço
potente e principalmente de transformação,
tanto para mim que nunca
nem imaginei ocupar um espaço
assim, quanto para as mulheres negras
que passaram tanto tempo caladas
e não escutadas. Falar e ser escutada
é libertador", relata. Beatriz
ainda ressalta: "Minha trajetória profissional
tem a contribuição de muitas
pessoas. Cada pessoa que atendi e
escutei, enquanto estudante e agora
como profissional, me ensina sobre a
luta antirracista - além de uma luta
minha, enquanto sujeito, é também
uma ética e isso se estende à minha
prática. No código de ética do psicólogo
diz que todo/a psicólogo/a precisa
trabalhar em prol da liberdade,
dignidade e igualdade, ou seja, todo/a
psicólogo/a precisa ser antirracista".
Realmente, o acesso ao tratamento
terapêutico tem ajudado muitas mulheres.
Ana Cristina fala da sua experiência:
"São vários tipos de violência
que a gente vive, não só física.
Relacionamentos abusivos, violência
psicológica, no trabalho. Aí, junta
todo peso, o pensamento de que
é preciso dar conta de tudo - eu tenho
um filho para criar, totalmente
dependente de mim, preciso cobrir
a ausência da paternidade biológica,
cobrir a parte financeira, dar conta
da casa. Tem que ter um psicológico
muito forte, mas o que é ter um psicológico
forte? É um processo que tem
que ser trabalhado todo dia. Muitas
mulheres que não têm acesso, instrução
e também rede de apoio, que
para mim tem sido essencial: desde
a pessoa que me ajudou a pagar
o teste de gravidez até a minha tia,
que atualmente me ajuda a cuidar
do meu filho", enfatiza. Ana Cristina,
que através do ProUNI (Programa
Universidade para Todos) conseguiu
se formar em Serviço Social, reflete
também o quanto o acesso à Universidade
foi importante e que a saúde
da mulher, em todas as dimensões,
está ligada a uma estrutura mais ampla
da sociedade. "Há uma falta de
n Adobe Istock
efetivação das políticas para as mulheres.
Lutamos historicamente para
que eu, hoje, por exemplo, possa ter
direitos. Porém, ainda temos muita
luta. Temos que falar todo dia sobre
nossos direitos e nem todo mundo
quer escutar", desabafa.
E se a escuta é elemento fundamental
para o cuidado coletivo,
parece que somos convidadas(os) a
aprofundar sobre o debate da saúde
mental, que para a psicóloga Beatriz
Dagma, não deve ser banalizado.
"Ainda temos muito o que avançar
no debate sobre saúde mental, para
que esse termo também não acabe
sendo mais um padrão normatizador
que vai encaixar o ser humano e
sua diversidade em uma caixa cheia
de normas. No entanto, pensar saúde
mental é pensar em cada sujeito
com toda sua diversidade, perguntando-se
sobre si, pensar saúde
mental também é um ato político.
Sabemos que um povo doente e segregado
é muito mais fácil de ser
controlado", alerta.
Em um contexto de tantos adoecimentos,
olhar para si e enxergar
essa diversidade subjetiva que todas/os
nós carregamos é urgente.
Outros versos da mesma poesia com
que começamos esta reportagem fortalecem,
então, a reflexão da psicóloga
Beatriz.
(...) esse fogo que sobe as
entranhas
não se chama desespero
se chama vida
ela ainda está aí
e está devolvendo
tudo aquilo que é teu.
Revista Elas por Elas - maio 2022
57
n Adobe Istock
58
Revista Elas por Elas - maio 2022
Artigo
Brena Melo
Pobreza menstrual exige
política pública urgente
A pobreza menstrual é uma questão
complexa, de múltiplas dimensões,
com potencial de grandes danos
invisíveis a meninas, mulheres
e pessoas que menstruam. Em maio
de 2021, o relatório publicado pelo
Fundo das Nações Unidas para a Infância
(UNICEF) sob o título “Pobreza
Menstrual no Brasil: desigualdades
e violações de direitos” trouxe o
tema, tradicionalmente invisibilizado,
aos holofotes da mídia nacional.
A pobreza menstrual é definida
como falta de acesso a recursos, infraestrutura
e conhecimento para
cuidar da menstruação e está intrinsecamente
ligada a um conceito ainda
mais amplo: saúde menstrual, ou
melhor dizendo, a falta dela. Saúde
menstrual consiste no completo bem-
-estar físico, mental e social em relação
aos ciclos menstruais. Depende,
assim, do acesso a direitos humanos
básicos. Entre os objetivos de desenvolvimento
sustentável da Organização
das Nações Unidas (ONU), a garantia
de acesso a alguns deles está
no cerne dessa questão: água potável
e saneamento, igualdade de gênero,
educação de qualidade, saúde
e bem-estar.
O recente debate midiático sobre
o tema, incluindo a disseminação de
projetos de lei para distribuição gratuita
de absorventes, ajudou a minimizar
a invisibilidade da questão.
Entretanto, e a repercussão positiva
dessa exposição precisa ir muito além
da simples distribuição gratuita de
absorventes. Para isso, é importante
contextualizar as várias dimensões
relacionadas ao comprometimento
dos direitos humanos básicos associados
à pobreza menstrual.
Um dos pontos elementares da pobreza
menstrual é a constatação da
falta de acesso à água potável e ao
saneamento. Para uma saúde menstrual
adequada é preciso, primeiro,
garantir o acesso aos três elementos
básicos conhecidos na discussão sobre
o tema, como WASH (water, sanitation
and hygiene), ou água potável,
saneamento e higiene (como
sabão ou papel higiênico), conforme
listado nos objetivos de desenvolvimento
sustentável. De acordo com
o relatório da UNICEF, uma a cada
três meninas não tem sabão na escola.
Considerando a faixa etária das
meninas durante a vida escolar, vale
destacar que quase 90% delas passam
três a sete anos menstruando na escola.
O risco relativo de uma menina
negra estudar em uma escola que
não tenha acesso a papel higiênico
Revista Elas por Elas - maio 2022
59
Além do impacto mais imediato
nos banheiros é 51% maior do que
60 Revista Elas por Elas - maio 2022
para meninas brancas, trazendo o
racismo estrutural como mais uma
dimensão do problema.
Além disso, há um impacto mais
imediato na vida escolar das pessoas
que menstruam: o absenteísmo.
Dados de países como Inglaterra
e Nova Zelândia apontam que, em
média, meninas faltam de um a três
dias por mês por não terem absorventes.
Nesses locais, em que a garantia
de acesso à educação pública
de qualidade para todos é prioridade,
os impactos no rendimento escolar
das pessoas que menstruam foram
mitigados. Após a identificação
da pobreza menstrual como causa do
absenteísmo escolar crônico, foram
implementadas políticas públicas de
distribuição gratuita de absorventes,
principalmente nas escolas.
Como mais uma dimensão do problema,
há, ainda, a falta de garantia
do acesso à água potável e ao saneamento,
comprometendo a disseminação
de alternativas efetivas, seguras,
ecológica e economicamente sustentáveis
como os coletores menstruais.
A importância da inclusão de informações
sobre os coletores em materiais
educacionais já é mais do que
reconhecida. A falta dessas informações
e de materiais educativos sobre
saúde menstrual, assim como saúde
reprodutiva, representa mais um importante
dano invisível relacionado
à pobreza menstrual. A educação sobre
saúde reprodutiva é um dos fatores
de maior impacto para evitar
gestações indesejadas, muitas vezes
o potencial de contribuição dessas(es)
cidadãs(ãos) no futuro tanto a si mesmas(os)
quanto à sociedade.
No Brasil, dados detalhados sobre
o tema ainda são escassos. Grande
parte do conteúdo apresentado pelo
relatório da UNICEF é proveniente da
Pesquisa Nacional de Saúde Escolar
(PeNSE), conduzida pelo IBGE, em
2015. A apresentação de dados proxy
reforça a necessidade de se ampliar
o debate, promover e financiar
estudos mais detalhados sobre a temática.
Entre os pontos passíveis de
maior investigação há a necessidade
de se mensurar o impacto à saúde
reprodutiva do uso de miolo de
pão, jornais e panos como alternativas
pouco saudáveis à falta de absorventes.
à saúde reprodutiva, os desdobramentos
relacionados à dimensão da
igualdade de gênero, como acesso à
educação, merecem ser destacados.
Entre as consequências previsíveis
do absenteísmo escolar sistemático
há o prejuízo para o potencial de empregabilidade
num futuro. Esse prejuízo
ao acesso a empregos mais bem
remunerados representa um impacto
transgeracional de saúde, com perpetuação,
por exemplo, de um ciclo
de pobreza entre mulheres. Dados
cada vez mais sólidos apontam para
o impacto positivo de um bom nível
educacional das mães para a saúde
e bem-estar de sua prole.
Para minimizar as consequências
de um problema com tantas dimensões
é preciso mantê-lo visível.
A escola é um ambiente fundamental
para a promoção de discussões e
leituras sobre a importância de assegurar
a saúde menstrual de meninas,
mulheres e pessoas que menstruam.
Pobreza menstrual, portanto, é consequência
da falta de acesso a direitos
humanos básicos. Tomar consciência
disso é o primeiro passo para
combater essa tragédia silenciosa.
As consequências negativas
Q
presentes ainda durante a vida escolar.
Minimizar as consequências podem ser estimadas, mas precisam
Médica tocoginecologista
Brena Melo
PhD Maastricht University, Holanda
de uma gestação indesejada, nessa ser quantificadas, assim como suas
Inst. de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira (IMIP)
fase, pode influenciar sobremaneira repercussões a longo prazo.
Faculdade Pernambucana de Saúde (FPS)
n Adobe Istock
Revista Elas por Elas - maio 2022
61
Cansei
Fernanda Leôncio
62
Revista Elas por Elas - maio 2022
Cansei
Gisele Fernanda
Revista Elas por Elas - maio 2022
63
n Mídia Ninja
64
Revista Elas por Elas - maio 2022
Artigo
Dra Claudia Maria Dadico
A irracional, anacrônica
e inconstitucional criminalização
do aborto no Brasil
A forma mais comum de desvirtuar
um debate é iniciá-lo a partir
da pergunta errada. Assim ocorre
quando o tema é o aborto.
Se o ponto de partida for a pergunta:
“– Você é a favor ou contra o
aborto?”, a imensa maioria das pessoas
se dirá contrária e a discussão
não evoluirá. Numa sociedade patriarcal,
como a brasileira, em que
a maternidade ainda é apregoada,
não como uma opção, mas como
o destino necessário de toda mulher,
ninguém, em sã consciência,
pode se dizer a favor do aborto. Em
maior ou menor grau, a decisão pelo
aborto sempre representará um
sofrimento para todas as pessoas
envolvidas na decisão.
O correto equacionamento do
debate deve partir de outra pergunta,
cuja resposta é bem mais
complexa: “– Deve a prática do
aborto ser criminalizada?” Em outras
palavras: “– Você é a favor ou
contra o uso do aparato repressivo
do Estado, em sua potência máxima,
com a possibilidade, inclusive
de prisão, das mulheres que o fazem
e das equipes médicas responsáveis
pelo procedimento, como medida
de enfrentamento à questão do
aborto?” Ou ainda: “– É aceitável
que no atual estágio de desenvolvimento
do Estado Democrático de
Direito moderno, necessariamente
laico, o aborto ainda siga sendo
criminalizado?”
Estes questionamentos desafiam
reflexões que não se satisfazem com
raciocínios simplórios ou argumentações
mistificadoras.
Em resumo: o aborto deve ser
uma questão criminal ou uma
questão de saúde pública? Eis a
pergunta correta.
Como se sabe, no direito brasileiro
a prática do aborto ainda é descrita
como crime nos artigos 124 e 126 do
Código Penal, sujeitando seus agentes
a penas privativas de liberdade, de
1 a 4 anos; ou seja, ficam sujeitos
à pena: (1) a mulher, nos casos de
auto abortamento 1 ; (2) a mulher e o
terceiro que realiza o procedimento,
nos casos de aborto realizado por
terceiro, com o consentimento da
mulher; (3) o terceiro que realiza o
procedimento, nos casos de aborto
sem consentimento.
Se a pessoa não registra antecedentes
criminais, terá direito à
substituição das penas de prisão
por penas restritivas de direitos
(prestação de serviços à comunidade
ou prestações pecuniárias). No
entanto, uma condenação criminal
gera uma variedade de efeitos
prejudiciais à pessoa. Além da
1) Embora de aplicação muito remota, não é possível excluir uma interpretação literal do Código Penal e do Estatuto da Criança e do Adolescente que sujeite adolescentes
de idade superior a 12 anos envolvidas em casos de auto abortamento ou abortamento consentido realizado por terceiros, a responder por ato infracional no campo
socioeducativo, o que reforça o absurdo da lógica punitiva aplicada ao campo do aborto.
Revista Elas por Elas - maio 2022
65
públicas realizadas no Supremo
perda de primariedade e do acesso
a benefícios da lei penal em outros
casos que eventualmente venha a
responder, a condenação criminal
gera toda sorte de estigmatizações
sociais e profissionais, dificultando
o acesso ao mercado de trabalho,
além da impossibilidade de votar
e ser votado, enquanto durem os
efeitos da pena.
Para o terceiro que realiza o procedimento
de aborto nos casos em
que a gestante é menor de 14 anos,
as penas previstas podem chegar
a 10 anos de reclusão. Se, no caso
concreto, houver condenação a
pena superior a 4 anos, a lei veda a das hipóteses autorizadoras, no caso
66 Revista Elas por Elas - maio 2022
substituição da pena de prisão por
penas alternativas. Somente em casos
excepcionais, quando a gravidez
expõe a vida da gestante a risco de
morte, é resultado de estupro ou em
casos de fetos anencefálicos, a lei
penal autoriza a prática do aborto.
Ao preconizar penas nestes altos
patamares, justamente nos casos
em que a vítima é criança ou
adolescente, a lei penal intimida sobremaneira
os profissionais de saúde,
dificultando, ainda mais, o acesso
aos serviços mesmo nos casos
em que o aborto é permitido. Para
aqueles profissionais que já, de antemão,
possuem pré-compreensões
contrárias ao abortamento, a mera
existência destas altas penas fornece
o pretexto perfeito para recusas
ou obstáculos ao atendimento, mesmo
nos casos de aborto legal. Basta
manifestar dúvidas na configuração
concreto, ou invocar a discutível
“objeção de consciência 2 ”.
A partir do panorama normativo
acima traçado, passa-se a demonstrar
a total ineficácia da opção
legislativa atual, de manter como
regra a criminalização do aborto e
sua autorização em algumas poucas
exceções apenas.
Dados empíricos demonstram
que a manutenção da criminalização
não apresenta nenhum impacto na
diminuição dos casos.
A Pesquisa Nacional do Aborto 3
2016, feita pela Anis, demonstrou
que, somente em 2015, 417 mil
mulheres realizaram aborto no
Brasil urbano e, em extrapolação
para todo o país, 503 mil mulheres,
incluindo as mulheres que vivem
fora dos centros urbanos. De acordo
com dados do Ministério da Saúde,
fornecidos durante as audiências
Tribunal Federal, no bojo da ADPF
442, os procedimentos inseguros de
interrupção voluntária da gravidez
levam à hospitalização de mais de
250 mil mulheres por ano, cerca de
15 mil complicações e 5 mil internações
de muita gravidade 4 .
O aborto inseguro causou a morte
de 203 mulheres em 2016, o que representa
uma morte a cada 2 dias.”
Entre 2008 e 2018, foram duas mil
mortes maternas por esse motivo 5 .
Quanto a crianças e adolescentes,
dados oficiais 6 revelam que ocorrem
no Brasil, em média, seis internações
diárias por aborto envolvendo meninas
de 10 a 14 anos que engravidaram
após serem estupradas.
O Anuário Brasileiro de Segurança
Pública 2021 7 demonstra que
no ano de 2020, já sob o impacto da
pandemia da Covid-19 e das medidas
de isolamento social, 73,7%
2) Cabe lembrar que os serviços de saúde habilitados à realização do aborto legal são obrigados a manter o atendimento, ainda que os profissionais invoquem a duvidosa objeção. A inexistência de
profissionais habilitados a prestar o serviço pode expor a instituição a consequências administrativas e, a depender do caso concreto, a recusa do profissional pode vir a configurar outro crime que é
a omissão de socorro (art. 135 do CP), cujas penas, entretanto, são muito mais leves. Nesse sentido: https://rb.gy/eesnr2, Acesso em 13/09/2021, acesso em 13/09/2021; https://rb.gy/oodfqa, Acesso em
13/09/2021. 3) Disponível em https://rb.gy/xj01rk, Acesso em 10/09/2021. 4) Juntas Pela Vida das Mulheres https://rb.gy/s78xp7, Acesso em 10/09/2021. 5) Uma mulher morre a cada 2 dias por aborto
inseguro - Ministério da Saúde Conselho Federal de Enfermagem https://rb.gy/7zoi4q, Acesso em 10/09/2021. 6) Brasil registra 6 abortos por dia em meninas entre 10 e 14 anos estupradas - BBC News
Brasil, Acesso em 10/09/2021. 7) Anuário Brasileiro de Segurança Pública - Fórum Brasileiro de Segurança Pública (forumseguranca.org.br), Acesso em 10/09/2021.
n Mídia Ninja
dos estupros registrados no ano
enquadram-se como “estupro de
vulnerável” que têm como vítimas
crianças e adolescentes. A maioria
das vítimas estão na faixa entre 10
a 13 anos (28,9%).
Dito isso, é possível perceber que
o aborto é um fato da vida reprodutiva
das meninas, adolescentes
e mulheres.
O que a criminalização do aborto
faz é lançá-lo na marginalidade, na
clandestinidade, deixando crianças,
adolescentes e mulheres que realizam
o procedimento, sobretudo as
mais pobres, privadas de fiscalização
sanitária e inibindo a busca por
atendimento médico adequado em
caso de complicações ou sequelas.
Também é preciso destacar que a
criminalização da prática do aborto
expõe mulheres a abordagens violentas
e constrangedoras por partes
dos agentes da segurança pública,
como a que ocorreu com a jovem de
Apucarana, presa quando recebia
em sua casa uma encomenda de
comprimidos de misoprostol 8 .
De forma diversa, nos países em
que o aborto não é criminalizado,
como por exemplo, nos Estados Unidos,
Canadá, Alemanha, Espanha,
Itália, África do Sul e Uruguai, são
disponibilizadas redes de apoio integradas
por equipes multidisciplinares
que incluem serviços de assistência
psicológica, médica e de assistência
social para verificar a real situação
da gestante, o que implica em diminuição
significativa no número
de procedimentos e, sobretudo, no
número de mortes maternas e outras
complicações e sequelas que afetam
a saúde daquelas que recorrem a
procedimentos clandestinos.
Ou seja, a criminalização não previne
o aborto. Apenas impede que
as mulheres sejam adequadamente
atendidas nas redes pública e privadas
de saúde e fornece elementos
para que protocolos médicos sejam
construídos a partir da proibição
penal, com o intuito de dificultar o
acesso ao aborto, mesmo nos casos
em que a norma penal não o proíbe,
como vimos recentemente no
emblemático caso da menina de 10
anos no interior do Espírito Santo 9 .
Dessa forma, se a norma penal
não cumpre sua função de evitar ou
diminuir as ocorrências de abortos,
pode-se afirmar que sua permanência
constitui uma aberração, ou, no
mínimo, um desvio de finalidade.
Ao deixar de cumprir sua função,
a norma penal passa a funcionar
como “instrumento de controle da
sexualidade feminina e da autonomia
das mulheres, que são aprisionadas
na concepção ideológica patriarcal
da maternagem 10 ”.
Não é demais recordar que a
“maternidade compulsória” já foi
equiparada a tortura pelo Supremo
Tribunal Federal 11 , uma violência
de gênero cujos efeitos são ainda
mais devastadores nos casos que
envolvem meninas e adolescentes 12 .
O Supremo Tribunal Federal já
declarou a inconstitucionalidade da
criminalização do aborto nos casos
de fetos anencefálicos 13 e, mais recentemente,
por intermédio de sua
Segunda Turma, proclamou a inconstitucionalidade
da criminalização
do aborto no primeiro trimestre da
gestação 14 . Aguarda-se o julgamento
da ADPF 442, em que o tema será
examinado pelo Plenário da Corte 15 .
Recentemente, a América Latina
registrou notáveis progressos rumo
à descriminalização do aborto: a
Argentina teve o direito ao aborto
seguro e gratuito reconhecido por
lei 16 e o Tribunal Constitucional do
México, em julgamento histórico,
pronunciou-se pela descriminalização
do aborto por unanimidade
de seus integrantes 17 .
É urgente alinhar o Brasil aos
países de maior desenvolvimento
no tema do aborto, tratando-o não
como questão criminal, mas como
política pública de saúde.
Castanheira Neves afirma que “as
sobrevivências são um fenômeno
conhecido e há mortos que morrem
devagar”. Já passa da hora de
sepultar, de uma vez por todas, essa
norma penal anacrônica, irracional
e inconstitucional.
n Jorge Roberto L. G. Soza
8) https://rb.gy/xisjsg/, Acesso em 13/09/2021. 9) Menina de 10 anos estuprada pelo tio no Espírito Santo tem gravidez interrompida
| Pernambuco | G1 (globo.com), Acesso em 10/09/2021. 10) TORRES, José Henrique Rodrigues. Aborto e Constituição. São
Paulo: Ed. Estúdio Editores.com, 2015, p. 25. 11) STF: ADPF, 54. 12) Assim já decidiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos,
no caso Gusmáz Albarracín e outros vc. Equador, sentença de 24 de junho de 2020. 13) ADPF 54, https://rb.gy/zverpg, Acesso
em 10/09/2021. 14) HC 124306/RJ, https://rb.gy/atcb7o, Acesso em 10/09/2021. 15) https://rb.gy/wtlvor, Acesso em 10/09/2021.
16) https://rb.gy/n3n8cy, Acesso em 10/09/2021. 17) https://rb.gy/vdw7nc, Acesso em 10/09/2021.
Q
Dra Claudia Maria Dadico
Doutora em Ciências Criminais pela PUC/RS
Juiza Federal, Conselho da AJD
Revista Elas por Elas - maio 2022
67
Cansei
Janaína Melo
68
Revista Elas por Elas - maio 2022
Cansei
Juliana Rosa
Revista Elas por Elas - maio 2022
69
n Carina Aparecida
Invisível e estrutural:
{ Maria Catarina de Lima lembra do seu trabalho doméstico, desde os 11 anos de idade.
70
Revista Elas por Elas - maio 2022
Trabalho
por Carina Aparecida
a histórica desvalorização
das trabalhadoras domésticas
Segundo dados de 2020
do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada
(Ipea), as trabalhadoras
domésticas representam
cerca de 6 milhões de mulheres
no Brasil e mais de
70% trabalham sem carteira
assinada. Estatística
acompanhada por memórias
e vivências que carregam
muitas opressões.
Diversas vezes, com um copo
de café na mão, em momentos
livres para acessar a memória,
ela relembra o que foi vivido nas
inúmeras casas onde era trabalhadora
doméstica. Conta que, aos 11
anos, ainda vivendo no interior,
foi que começou essa jornada. As
recordações que ela tem desse tempo
fogem do que se espera na infância.
“Minha patroa saiu para trabalhar e
disse que, quando chegasse, queria
a comida pronta. Eu ainda não sabia
cozinhar e ela não me ensinou. E
o mais difícil para mim foi que ela
ainda me mandou matar o frango
para cozinhar naquele dia. Eu fiquei
em pânico, eu era uma criança. Mas
eu fiz, tinha que fazer”, recorda.
Já com 12 anos, em outra casa,
coincidiu da filha da patroa ter a
mesma idade dela. Igualdade só mesmo
na idade. A filha da patroa estudava
de dia e ela, à noite, sem poder
abrir o livro e o caderno naquela
casa. “Um dia, a gente fez a mesma
prova. Eu de noite, ela de dia. Eu tirei
nota 9 e a menina, 5. Eu escutei
a patroa xingando a menina, dizendo:
“Como assim, uma empregada
tirar mais do que você em uma prova,
é um absurdo”, relembra.
Da infância à vida adulta, são necessários
muitos cafés para abarcar
as lembranças que marcaram essa
mulher. Já habitou muitos quartos
de empregada e já sentiu na pele
o que hoje consegue compreender
Revista Elas por Elas - maio 2022
71
como preconceito e humilhação. “Tinha
casa que, quando chegava visita,
eu sabia que não podia ficar ali
compartilhando o mesmo espaço, tinha
que ir para fora, enquanto eles
comiam na mesa. Também era comum
eu não poder comer de tudo,
tinha patroa que fazia meu prato
pra eu não servir carne ou outras
coisas que eram só para eles”, relata.
As memórias de Maria Catarina
de Lima, 71 anos, hoje aposentada,
eu não escutei só no contexto desta
reportagem. Eu escuto há anos.
Mesclado aos relatos, sempre uma
afirmação que também me acompanha
há tempos: “Minha filha, tomara
que você nunca precise trabalhar
na casa dos outros, eu não
desejo isso a você”.
O desejo de minha mãe, uma
ex-trabalhadora doméstica, revela
o quanto estamos distantes da valorização
dessa profissão. Uma valorização
ausente na vida de muitas
mulheres, como também de Kelly
Cristina da Silva (foto), 35 anos.
Aos nove anos de idade, começou
a trabalhar em uma feira no Aglomerado
da Serra, local onde vive até
hoje, para ajudar a mãe, que tinha
mais dez filhos/as. Aos 21 anos, foi
chamada por uma das clientes para
trabalhar como doméstica. A partir
daí, passou por diversas casas e considera
difícil relatar algumas situações
que viveu. “Uma vez, trabalhei
em uma mansão em que fui contratada
para manter a casa limpa e
cozinhar, mas acabava fazendo de
tudo: faxina, limpar calha, piscina,
lavar roupa. Um dia, a patroa chegou
irritada dizendo que meu serviço
não tava rendendo e eu disse
que era porque eu estava fazendo
72 Revista Elas por Elas - maio 2022
n Carina Aparecida
a mais do que tinha que fazer. Ela
ficou nervosa, disse que empregada
doméstica tinha obrigação de fazer
tudo dentro da casa e que a patroa
dava fim de semana e feriado de
folga para a empregada só se quisesse,
que a gente tinha mesmo que
trabalhar”, relembra. Kelly ainda
recorda que a filha da patroa chegou
mandando ela calar a boca e,
depois, foi demitida.
Esse não foi um caso isolado. Infelizmente,
Kelly guarda na memória
muitas outras situações de desprezo
e exploração. Trabalhou em uma
outra casa em que foi contratada para
cuidar de uma senhora, mas tinha
que fazer também serviços domésticos.
“Limpava a casa, fazia compra,
cozinhava, tinha que sair para
comprar cigarro para a filha dela e
lavava roupa. Mas não podia nem
encostar na máquina de lavar, não
deixavam. Eu acabava lavando na
mão mesmo”, recorda.
Além de tantas situações de humilhação,
Kelly relembra também o
racismo presente nas relações de
trabalho doméstico em uma situação
em que, mais uma vez, tentou
defender seus direitos, dizendo que
precisava ganhar mais para fazer
tantas coisas. “Minha patroa disse
que vivia no tempo da senzala, que
se ela quisesse me colocar no tronco,
me colocaria. Eu fiquei sem chão,
sem rumo. Eu falei que sabia que
sou preta, mas tenho muito orgulho
da minha cor, da minha raça,
que não é porque eu sou preta que
devo ser escrava. Ela me mandou
embora na hora. Depois, disse que
me mandou embora porque roubei
uma tesoura de cortar cabelo e dois
rolos de papel higiênico. Eu fiquei
passada! Na época, como eu não
sabia ler direito só fui saber bem
depois que minha carteira foi assinada
com menos tempo e não pagaram
meu INSS”, relata.
Todo trabalho doméstico
tem um pouco de navio
negreiro?
De acordo com a Pesquisa Nacional
por Amostra Domiciliar (PNAD) de
2018, do IBGE, no Brasil são cerca
de 6,2 milhões de trabalhadores/as
domésticas, sendo que 92% são mulheres
e, entre elas, 68% são negras.
Andréia de Jesus, deputada estadual
(PT), é uma mulher que já
fez parte dessa estatística. Eleita em
2018, sua vitória representa um marco
histórico para a política institucional
do estado: foi a primeira mulher
negra eleita para legislar na ALMG
(Assembleia Legislativa de Minas Gerais).
Sua trajetória militante e parlamentar
não apaga as memórias
que traz como trabalhadora doméstica.
Pelo contrário, relembra com
riqueza de detalhes essa caminhada,
também marcada por tantas situações
de opressão.
“Herança de família, né? Minha
mãe começou a trabalhar como empregada
aos 11 anos. Eu também comecei
aos 11 anos, na casa de pessoas
brancas, que não eram ricas,
mas esse padrão classe média”, relembra
Andréia ao refletir sobre a
desigualdade que já começava a perceber
neste momento. “Foi um universo
que se abriu quando eu passei
a trabalhar na casa dos outros.
Banheiro com azulejos, tipos de talheres,
copos, taças, produtos de limpeza,
vaso com tampa, porque na
minha casa não tinha nada disso.
n Carina Aparecida
Revista Elas por Elas - maio 2022
73
Para ela, falar dessa violência é
denunciar o quanto, nesta relação de
trabalho, está muito presente a herança
escravocrata e também problematizar
uma visão frequente de
que há empregadas “que são como
da família”. “Esse lugar do “animal
de estimação”, que é uma expressão
muito doída, mas que eu vi durante
os debates feitos a partir da Lei
que igualava o trabalho doméstico
a outras profissões. Uma visão de
que a empregada doméstica é quase
da família, igual um bicho de estimação.
Só que não. Um bicho de
estimação não é da família. E aí você
não tem feriado, Natal, ano novo
e você se submete a isso, porque você
precisa do salário. Muitas vezes,
se submeter a trabalhos exaustivos
que você não pode dizer não, porque
a única fonte de renda é a experiência
mais próxima da escravidão”,
ressalta.
Eu descobri nessas casas que cada
membro da família tinha uma toalha
de banho - lá em casa minha
mãe dava banho e secava todo mundo
com a mesma toalha e que era
feita de saco. Não tinha essa dimensão,
esse acúmulo de coisas que as
pessoas brancas, ricas têm”, conta.
Andréia de Jesus (foto) diz que
começou a perceber o que é ser “o
tivesse uma doença que pudesse passar
para o resto da família, ser esse
objeto, ser tratado como ferramenta,
como enxada, como foice e não
como ser humano. E é opressor demais
o que recai majoritariamente
sobre as mulheres”, afirma.
Para Andréia, falar do papel das
mulheres neste mercado de trabalho,
e no caso de mulheres negras, é
pensar em uma inserção a partir do
cuidado da casa e da família do outro,
que é um lugar extremamente
precarizado. “O trabalho na infância
e o trabalho doméstico retiram muito
de nós mesmos. O seu tempo para
questionar, para analisar, para se
mordomo da casa grande”: descobrir
que as relações, a organização
histórias. E quanto isso se repete de
“Recebe muito pouco, de-
conhecer, conhecer seu corpo, suas
da vida de quem é rico, de quem tem
geração em geração, vai sendo naturalizado.
Ter uma ajudante em casa,
pende da boa vontade da
acesso é muito diferente de quem é
patroa, do patrão e você
pobre e que vive com o mínimo. “Recebe
muito pouco, depende da boa nunca é pessoa: é a últi-
é quase uma relação de troca, prin-
uma diarista, a relação de trabalho
vontade da patroa, do patrão e você ma a comer, tem copo e cipalmente quando debatemos a noção
classista, descobrimos aí a ‘mais
nunca é pessoa: é a última a comer, prato separado.
tem copo e prato separado. Experiências
que eu vivi e que achava extremamente
natural. É como se você
valia’ para entender essa trabalhadora
como operária, que contribui
para o sistema capitalista”, reflete.
n Nádia Nicolau
Trabalho estrutural
e desvalorização
Um trabalho indispensável para
fazer girar a roda do capital, que
carrega as marcas da relação escravista,
segue enfrentando diversos
desafios para a devida valorização
e reconhecimento. Nesta jornada
de lutas por direitos, é importante
lembrar da Emenda Constitucional
n° 72/2013, conhecida como PEC
(Proposta de Emenda Constitucional)
das Domésticas, que foi regulamentada
pela Lei Complementar
n° 150/2015. Com a Lei, há sete anos,
as/os trabalhadoras/es domésticas/
os têm o direito à carteira assinada,
e como isso, acesso a direitos trabalhistas,
como Fundo de Garantia
por Tempo de Serviço (FGTS), jornada
de trabalho fixada em oito
horas diárias e 44 horas semanais,
pagamento de horas extras, recebimento
de multa por demissão sem
justa causa, intervalo durante o expediente
entre outros benefícios garantidos
pela CTPS.
Para Lucileide Mafra Reis (foto),
presidenta da Federação das Trabalhadoras
e Trabalhadores domésticas/os
da região Amazônica, uma
conquista fruto da luta de classes,
em defesa dos direitos da maior categoria
do país. “A profissão de trabalhadora
doméstica em nosso país
é tão antiga quanto o mundo é mundo,
porém ainda hoje é tratada de
forma desigual pela sociedade capitalista
e opressora, que não valoriza
essas profissionais, tratando como
refugo da sociedade”, afirma.
De fato, a desigualdade parece
ser uma marca deixada para esta
profissão. Mesmo com o direito
assegurado à CTPS, muitas trabalhadoras
seguem na informalidade.
Inclusive, com casos análogos à
escravidão, como o que veio à tona
no de 2021, da Madalena Gordiano,
mulher negra, de 46 anos, escravizada
por uma família em Patos de
Minas (MG), durante 38 anos.
Em tempos de pandemia, o acesso
aos direitos parece ter ficado ainda
mais inalcançável. “Infelizmente,
o primeiro caso de Covid-19 no
Brasil teve como vítima uma trabalhadora
doméstica. Essa foi a ponta
do iceberg para a categoria, que
foi extremamente penalizada pela
pandemia, principalmente as trabalhadoras
diaristas”, afirma Lucileide
Mafra, recordando o simbolismo
da morte de Cleonice Gonçalves, infectada
pelos patrões que haviam
viajado ao exterior. Os números
confirmam também a precarização
crescente nestes tempos: segundo a
PNAD Contínua, divulgada em janeiro
de 2021, 1,5 milhão de postos de
trabalho doméstico foram perdidos
de setembro a novembro de 2020.
Também durante a pandemia,
vimos a trágica morte do menino
Miguel Otávio Santana da Silva, no
dia 2 de julho de 2020, após cair do
nono andar de um prédio do centro
de Recife/PE. Com a quarentena,
Miguel, sem poder ir à escola, estava
naquele dia acompahando sua mãe
que, na época, trabalhava como
empregada doméstica na casa de
Sarí Corte Real, primeira-dama do
município de Tamandaré. No momento
da queda, a criança estava
sob os cuidados da patroa, porque
n Arquivo CTB
Revista Elas por Elas - maio 2022
75
Ela pontua que “direitos não se retiram,
sua mãe, Mirtes Renata S. de Souza, trabalho doméstico for compartilhado,
76 Revista Elas por Elas - maio 2022
tinha saído para levar o cachorro da
patroa para da uma volta no bairro.
A morte de Miguel indignou o país
inteiro e fez crescer movimentos
de protesto exigindo justiça. O caso
ainda continua na Justiça.
a gente evita ter uma “pequena
escrava” dentro de casa. Cozinhar,
faxinar, lavar roupa, se vai terceirizando
tudo e as mulheres brancas
fazem muito isso: para elas se libertarem,
jogam para o corpo das mulheres
direitos se ampliam”.
Maria Catarina já não sente na pele
as opressões cotidianas dessa relação
trabalhista, mas ainda se sente
tocada quando vê as notícias que
abordam a humilhação vivida por
negras os afazeres que aca-
essas trabalhadoras. “Eu queria mui-
Um horizonte de
bam nos dificultando a entrar no tas mudanças para as empregadas
visibilidade e respeito mercado de trabalho, de estar na domésticas, que fossem valorizadas,
Kelly Cristina da Silva enfrentou
muitas dificuldades na pandemia,
mas em maio do ano passado foi contratada
com carteira assinada. “Hoje,
me sinto mais segura por saber
que tenho meus direitos respeitados
e que posso dar segurança aos meus
filhos Iago e Lavínia”, relembrando
também que em algumas casas
não deixavam ela levar as crianças,
mesmo ela não tendo onde deixá-las.
Enquanto Kelly comemora o trabalho
formal após tantas experiências
de precarização, Andréia de Jesus
ocupa um cargo parlamentar,
trazendo para o mandato a reflexão
sobre o racismo estrutural, com as
inquietudes de toda a sua trajetória.
Explica que há uma agenda feminista,
que traz a importância do
compartilhamento das tarefas domésticas.
Para ela, a manutenção da
vida tem que superar esse tabu que
só as mulheres têm a habilidade para
o cuidado. “Isso precisa necessariamente
passar pela educação, o
papel que a escola tem na formação
do sujeito, isso deve ser discutido,
a distribuição desse tipo de trabalho,
algo essencial para tirar do
corpo das mulheres essa obrigação”,
ressalta. E mesmo entre as mulheres,
Andréia reflete sobre uma desigualdade
histórica. “Quanto mais o
pesquisa, na academia. Desafios no
campo dos costumes e também em
políticas do Estado”, explica. Para a
parlamentar, a legislação só pode
acompanhar a complexidade desse
trabalho se as mulheres perceberem
a violência presente na própria relação
com o mundo.
Para Lucileide Mafra, uma das
soluções seria a sincronização dos
órgãos fiscalizadores, para garantir
o cumprimento da lei trabalhista,
inclusive aplicando punições para
coibir a infringência desses direitos.
enxergadas como ser humano, pois
muitas não são. Há até casos de trabalhadoras
apanhando. Elas merecem
respeito, é um serviço digno e
necessário”, afirma.
Em caminhos diferentes, mas simbolicamente
lado a lado, Maria Catarina,
Kelly Cristina, Andréia de Jesus
e Lucileide Mafra compartilham
a escuta de memórias que se cruzam
e a esperança de uma sociedade
que valorize a reprodução da vida,
não como dom ou caridade, mas sim,
como força: força de trabalho.
n Carina Aparecida
Revista Elas por Elas - maio 2022
77
n Adobe Istock
78
Revista Elas por Elas - maio 2022
Educação
por Denilson Cajazeiro
Luz, câmera, educação!
Professoras reinventam a sala de aula e mantêm o ensino durante a pandemia
Logo que a pandemia do novo
coronavírus se instalou no Brasil e
as aulas presenciais foram suspensas,
entre março e abril de 2020, a
professora Beatriz Silva, de 38 anos,
precisou transformar o quarto do
bebê em seu set de filmagem. Foi
nesse cômodo, o mais silencioso da
casa, que ela passou a gravar as aulas,
editar os vídeos, filmar os conteúdos
e dar conta de todos os recursos
multimídias necessários para
que o ensino virtual fosse mantido,
em uma escola particular da
região metropolitana de Belo Horizonte
(a pedido da entrevistada,
a reportagem alterou o seu nome,
pois ela teme que sua história possa
lhe render críticas no ambiente
profissional).
À época, ela estava grávida de cinco
meses. Tudo foi muito rápido, e a
pouca experiência que tinha com o
audiovisual não foi suficiente para
lhe trazer tranquilidade no uso das
novas tecnologias. “Foi bem tenso
no início. Eu me lembro que gastava
muito tempo para fazer as aulas, porque
tinha essa questão de os equipamentos
não estarem preparados para
essa finalidade. Foi um momento de
muito desafio, e tivemos de aprender
muita coisa em pouquíssimo tempo”,
conta Silva, que leciona português
para estudantes do quarto e quinto
anos do ensino fundamental e teve
de redesenhar a maneira de ensinar,
para reter a atenção dos/as alunos/
as e evitar a dispersão.
No início, as videoaulas eram gravadas,
muitas vezes de madrugada,
quando a casa estava silenciosa,
mas depois elas passaram a ser
realizadas pelo formato de lives, ao
vivo com os/as estudantes – o que
demandou dela a aquisição de um
novo computador, com uma configuração
mais avançada.
“Até precisei no começo, mas não
comprei, por causa do cenário de insegurança
que estávamos vivendo,
Revista Elas por Elas - maio 2022
79
com algumas escolas reduzindo salários.
Aí peguei um emprestado do
meu cunhado, por quatro meses, e
só depois comprei um novo”, revela
a educadora, que diz ter perdido
a conta dos momentos que precisou
amamentar seu bebê, no intervalo de
20 minutos entre uma aula e outra,
e de quantas vezes teve de ir para a
casa da sogra, por conta de problemas
com a internet.
Aliás, foi esse o motivo que levou
a professora Sabrina Alves (nome fictício),
de 46 anos, a ministrar uma
aula no quintal de sua casa, encostada
no muro que faz divisa com a residência
ao lado. Sem qualquer aviso
prévio, sua internet simplesmente
parou de funcionar, e foi essa a solução
que ela encontrou, para pegar
o sinal emprestado pela vizinha.
“Tentei ficar virada para uma parede
lisa, sem muita informação, para
que os alunos não percebessem. Fiquei
umas duas horas e meia assim.
A gente fica muito nervosa, parece
que a culpa é nossa, mas não é,
né?”, relata a professora, que trabalha
com o ensino fundamental nos
setores público e privado.
Depois do episódio, ela decidiu
aumentar o plano de internet
e comprar um celular melhor, com
mais capacidade para armazenar
e processar dados. “Para trocar a
internet, tinha de ser em um dia
n Carina Aparecida
específico, que não íamos usar. Ficamos
muito pressionados. Tive amigas
que estavam quase surtando”.
Para Sabrina, o cenário foi o mesmo
que se viu em milhares de residências
de docentes em todo o país.
De repente, o escritório de sua casa
se transformou em sala de aula, a
parede virou uma lousa improvisada
e o computador de uso familiar
foi o equipamento mais demandado
por toda a família, em uma conexão
quase que permanente com
o mundo virtual. Entre uma aula e
outra, elas tiveram de se preocupar
com a luz, o áudio, o enquadramento,
como se fossem, além de professoras,
profissionais de audiovisual
ou videomakers.
“Foi muito assustador. Não dominava
muito a tecnologia e, do nada,
tive que saber um monte de coisa.
Fui à casa de colegas para aprender
como usá-la. Nas aulas, a família toda
ficava travada. O menino não podia
fazer barulho, o cachorro não podia
latir, não podia ter um carro passando.
Era muita coisa para prestar atenção.
Todas nós sofremos com isso,
de regravar várias vezes, por conta
da luz, de um barulho. Além disso, a
gente tinha de ficar ligada no whatsapp
o tempo todo, porque sempre
tinha um recado da escola ou de aluno”,
conta a professora.
Falta de reconhecimento
patronal
Para a educadora Valéria Morato,
presidenta do Sinpro Minas, sindicato
que representa os docentes
do setor privado no estado,
todo esse esforço das professoras
não resultou em valorização da
80
Revista Elas por Elas - maio 2022
carreira profissional. Ao contrário
disso, afirma Valéria, muitas escolas
se aproveitaram da pandemia
para retirar direitos da categoria e
reduzir salários.
“Desde março de 2020, as professoras
se reinventaram e mantiveram
a educação. Isso foi notório.
Desconheço alguma docente que
não tenha investido boa parte do
seu tempo e recursos financeiros
para dar conta do ensino. Elas refizeram
a didática cotidianamente
e conseguiram, apesar das diversas
pressões e adversidades, repassar o
conhecimento. Infelizmente, muitos
donos/as de escolas não reconheceram
todo esse trabalho e, ao invés
disso, até propuseram retirar direitos
e reduzir salários nesse período
de crise sanitária, para a surpresa
de todos/as nós”, afirma Valéria
Morato (foto).
Ela destaca que, nesta pandemia,
o Sinpro Minas entrou com diversas
ações na Justiça, para preservar
a saúde dos/as professores/
as e garantir cumprimento dos direitos
trabalhistas da categoria. Foram
assinados acordos e convenções
emergenciais, que permitiram
preservar empregos e conquistas
dos professores/as, e várias escolas
foram denunciadas à vigilância sanitária,
por descumprir protocolos
sanitários. O sindicato também notificou
prefeituras, para que cumprissem
decisões judiciais e medidas
de distanciamento.
“Encaminhamos uma série de
ações durante a pandemia, e uma
das nossas principais preocupações
foi garantir o direito à vida. Tivemos
uma conquista importante nesse
sentido, que foi a inclusão dos/as
trabalhadores/as em educação na escala
prioritária de imunização contra
a Covid-19. Trabalhamos bastante
para isso, em diálogo tanto com
prefeituras quanto com os órgãos
estaduais, e a categoria pressionou
“Encaminhamos uma
série de ações durante
a pandemia, e uma das
nossas principais preocupações
foi garantir o
direito à vida
muito para que a vacina se tornasse
realidade. Sempre defendemos
a volta às salas de aula, mas de forma
segura, para garantir a saúde física
e mental de toda a comunidade
escolar”, afirma Valéria Morato.
Segundo ela, o esforço do sindicato
neste momento tem sido para retomar,
com os/as donos/as de escolas, o
diálogo sobre a necessária valorização
da carreira docente, além de discutir
ações para os desafios impostos
pela pandemia na educação, que
devem perdurar por algum tempo.
“A pandemia mostrou que a educação
é fundamental”, resume Beatriz
Silva. Para a professora Sabrina
Alves, um aspecto negativo que se
n Mark Florest
Revista Elas por Elas - maio 2022
81
razões econômicas ou falta do serviço
tornou evidente nesse período foi a
distância entre os setores público e
privado de ensino. Em todo o país, a
retomada das aulas nas escolas públicas
foi mais lenta, e os alunos tiveram
menos contato com as instituições
de ensino durante a pandemia.
De acordo com o Instituto Nacional
de Estudos e Pesquisas Educacionais
Anísio Teixeira (Inep),
órgão vinculado ao Ministério da
Educação, 64% das escolas públicas
brasileiras disponibilizaram aulas
ao vivo ou gravadas para seus alunos/as
em 2020, seja pela internet,
rádio ou televisão. Visto de outro
modo, significa que cerca de um
terço das escolas públicas não ofertou
aulas remotas naquele ano.
Para especialistas em educação,
os números podem ser explicados
pela dificuldade de acesso à tecnologia,
a equipamentos ou à internet
na rede pública, tanto por parte das
instituições de ensino quanto pelos/
as estudantes. Segundo dados da Pesquisa
Nacional por Amostras de Domicílios
(Pnad), do IBGE, cerca de 4,3
milhões de alunos/as no país não tinham
acesso à internet, em 2019, por
no local onde vivem. Desse total,
4,1 milhões eram da rede pública.
Vale lembrar que, em julho de
2021, o governo Bolsonaro recorreu
ao Supremo Tribunal Federal
(STF) para suspender a lei que prevê
o repasse aos estados de R$ 3,5 bilhões
de recursos da União para serem
investidos em ações de conexão
à internet, destinadas a alunos/as e
professores/as de escolas públicas.
“A pandemia ressaltou muitas
desigualdades e mostrou que ambas
as redes precisam se preparar
muito para enfrentar esse desafio.
Demonstrou também que teremos
agora um desafio enorme para frente,
nos próximos anos, pois precisamos
resolver as lacunas de conhecimento.
E sobre o ensino remoto,
revelou que as crianças têm muito
mais capacidade de se adaptar do
que a gente imaginava. E os educadores/as
também”, opina a professora
Beatriz Silva.
Os professores atuam
como resistência
Arte-educadora, com trabalhos
em escolas infantis e em projetos sociais,
Sara Brito também se desdobrou
para garantir a continuidade
do ensino durante a pandemia. “No
meu caso, o meu quarto virou espaço
de brincar. Precisei pintar a parede
e reorganizar a mobília. Arrastei
minha escrivaninha para o outro
lado, porque preciso de muito espaço
para as aulas de dança e as brincadeiras.
Pesquisei um tutorial de
iluminação para fazer um softbox,
comprei um ring light e tive que fazer
um upgrade no meu notebook”.
n Arquivo Sinpro Minas
n Adobe Instock
Sara Brito
n Ana Luísa Cosse
O empenho para transferir o conhecimento
pelas redes trouxe bons
resultados e, até hoje, muitos pais a
procuram para falar da repercussão
das aulas gravadas e de como elas
foram importantes para as crianças.
“Isso me faz pensar na importância
da relação família-escola”, diz.
Mas, com tantas tarefas novas,
a rotina dela ficou tumultuada.
“Precisei de muitas tabelas, papeizinhos
na parede e chá de camomila!
Precisei conciliar trabalho
na escola, aulas particulares, graduação,
estágio, filha de 6 anos e
suas aulas online, tarefas domésticas
e cuidados redobrados
de higiene. O pouco tempo
que sobrava ficava para o lazer,
que também teve que caber
dentro de casa”, relata.
Bailarina e pesquisadora do
grupo Folclórico Aruanda, em
Belo Horizonte, Sara é também
graduanda no curso de licenciatura
em Dança pela Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG),
com formação livre em danças
populares brasileiras.
Confira a seguir o relato dela.
Na escola onde trabalho, tivemos um
primeiro momento de pausa, tentando
entender melhor a situação. Como
sou oficineira e atuo com projetos
nas turmas, optamos pelo envio
de vídeos semanais, com histórias e
brincadeiras para as crianças. Enviei
os vídeos até dezembro de 2020.
Em 2021, começamos uma tentativa
de retorno presencial, a partir de
março. Sempre em espaços abertos,
mantendo o distanciamento, com o
uso de máscara e álcool 70%.
Em maio, iniciei o projeto “Cara
de que”, que buscava ressignificar o
uso das máscaras, trazendo máscaras
utilizadas nas festas das culturas
populares brasileiras. Foi muito lindo
e emocionante. Sinto que foi uma
ação de resistência realizar um projeto
diante de tantas restrições, medos
e dificuldades. A “festa”, na verdade,
foi uma filmagem das brincadeiras
inspiradas nas máscaras brasileiras.
O resultado foi um vídeo. Seguimos
Revista Elas por Elas - maio 2022
83
com as aulas presenciais, observando o Sinto que passei por fases muito
diferentes. Inicialmente, o não sa-
protocolo sanitário estipulado.
A chegada do ensino remoto emergencial
foi um grande desafio. Primei-
ficar em casa sem uma perspectiva
ber o que fazer quando tivemos que
ro porque atuo na educação infantil e do amanhã. Em seguida, a tentativa
sempre foi impensável aula online para
crianças pequenas. Segundo porque familiares me fez buscar o ensino re-
de manter vínculos com as crianças e
seria necessário um investimento em moto como possibilidade (mesmo para
a educação infantil). Essa fase foi
equipamentos e estratégias de audiovisual
para produção de boas aulas. Por marcada por muitas dúvidas sobre o
fim, o fato de invadir e perder a privacidade,
abrindo uma janela de casa quanle
momento, se as crianças deveriam
que seria o melhor a ser feito naquedo
iniciava uma aula online.
ficar diante das telas.
Nós, professoras, tivemos que utilizar Depois de perceber que o processo
de isolamento ainda seria longo,
o que havia em casa, fazendo as gambiarras
necessárias com o espaço, iluminação,
figurino, roteiro e edição. Com recursos e propostas que fossem in-
chegou o momento de experimentar
relação ao trabalho com a primeira infância,
muito me surpreendi quando as uma fase de muita experimentação
teressantes para as turmas. Essa foi
crianças e familiares reagiram muito com as aulas gravadas. Tentei ver como
um espaço de criação artística.
bem às aulas virtuais e vídeos gravados,
demonstrando grande flexibilidade
e disponibilidade de ação.
cial. As aulas virtuais traziam a difi-
Depois foi a vez do retorno presen-
Durante o período de isolamento, culdade do cansaço visual e mental,
fiz uma canção com um amigo, professor
de música, que traduzia um pouco po em que ficava sentada. Já as aulas
além das dores na coluna pelo tem-
da vontade de sair de casa, pegar carona
num raio de sol e chegar à janela fios. Tinha o medo, a tristeza por não
presenciais trouxeram outros desa-
de uma pessoa querida. Uma expansão poder abraçar as crianças, o cansaço
do corpo-casa para além do espaço de vocal por ter que falar, cantar e dançar
usando máscara N95, a não reali-
casa. A inspiração veio de uma aula de
outra amiga, professora de ioga, quando
ela disse para uma criança: “Henri-
A pandemia me mostrou como a
zação da aula caso estivesse chovendo.
que, que bom que você veio!” E ele respondeu:
“Eu sempre estou aqui”.
tanto como espaço de convivência,
educação é primordial para todos,
A fala dele nos fez pensar sobre a relação
de presença, mesmo com a distân-
e física. Também me mostrou como
como de cuidado com a saúde mental
cia do isolamento. Ele fala de um vínculo
que foi construído no contato real e cia, tendo que se reinventar de muitas
os professores atuam como resistên-
que seguiu com ele. São esses atravessamentos
que alimentam cotidianos prefeitura, tudo mudava de novo. A
formas – e a cada determinação da
cercados de notícias assustadoras, encontros
mascarados e distâncias nos sigualdade social no nosso país. Eu fa-
pandemia também escancarou a de-
corações. Fazer essa música foi um grito
e um respiro. Além disso, minha filha veram escolha, tiveram acesso. Muilo
de um lugar onde meus alunos ti-
também participou.
tos não tiveram, e isso é muito triste.
84 Revista Elas por Elas - maio 2022
Andréa Pinheiro
professora na Universidade
Federal do Ceará
Com a pandemia e as aulas remotas,
tive que fazer adaptações
em casa para trabalhar, de forma
mais confortável, já que usaria todos
os dias o que utilizava apenas
no final de semana. Porém, a mudança
mais radical foi a sensação
de que o trabalho nunca acaba. Antes
da pandemia, saía do trabalho e
estava disponível para outras atividades,
em outro ambiente.
Nas atividades remotas, a sensação
é de profundo cansaço, porque
você passa o dia todo diante da
tela do computador com as aulas
e, depois, várias outras atividades
que também passaram a ser virtuais,
como corrigir provas, trabalhos,
acompanhar alunos/as e muitas
reuniões, em geral longas.
O fato de a gente não se encontrar,
ver e olhar faz diferença. Tem
sido muito difícil para todo mundo,
pela doença em si, pelo medo, pelo
isolamento social. Por isso as estratégias
para falarem de si, das angústias,
do que está maltratando, dos
medos, têm ajudado a provocar um
distensionamento nessas questões.
n Flávio Paiva
n Arquivo pessoal
n Tony Luiz Araújo
n Carina Aparecida
Flávia Pereira Dias Viegas
Professora do ensino
básico
Como professora, os desafios impostos
pela pandemia foram muitos.
No início, ter que sair da sala de aula
física, cheia de alunos, e dar aula
para a tela do computador, sem ver
as carinhas deles, sem ter o contato
olho a olho, sem perceber se entenderam
ou não a matéria só com
um olhar, foi bem frustrante. Com o
passar do tempo, fui me acostumando
com o “novo normal”, e daí surgiu
uma nova condição: o ensino híbrido.
Voltar para a sala de aula física,
mas de olho na tela do computador,
também trouxe desafios. Porém,
já fortalecida e alegre por estar
na escola e tomando os devidos
cuidados necessários, foi relativamente
tranquilo.
A rotina da minha casa teve
que ser adaptada para as aulas
on-line, e os meus filhos aprenderam
a ficar quietinhos durante o
meu horário de trabalho. Acredito
que os alunos que conseguiram
ter foco e disciplina durante as aulas
remotas foram pouco prejudicados,
mas, infelizmente, essa não
foi a realidade da maioria.
Lourdes Silva
professora na Universidade
Santo Amaro (SP)
Em março em 2020, quando iniciou
a pandemia e começamos as
aulas on-line, entre as disciplinas
que ministrava na graduação em
Comunicação estava a de “Ética e
Legislação Publicitária”. Apesar de
ministrá-la há algum tempo, percebi
a necessidade de repensar e diversificar
a metodologia, considerando
o contexto das aulas on-line,
visto que as interações, o face a face,
eram de outra natureza. Entre
os achados, uma das técnicas que
utilizei e que funcionou de modo
bem eficaz foi a elaboração de mapas
mentais. Acredito que planejar
a metodologia da aula não se limita
a eleger o uso de recursos digitais
na aula on-line, mas eleger a técnica
mais eficaz para aquele conteúdo.
Uma técnica metodológica bem
planejada possibilita que o professor
motive e mobilize seus alunos ao
aprendizado. O contexto desafiou a
todos nós, no universo educacional.
Os professores precisaram se reinventar
mais que o usual para tornar
a aprendizagem mais encantadora
e assim encantar também os alunos.
Liliani Salum
professora de Química no Centro
Universitário Uni-BH
Início de semestre tranquilo, como
nos últimos 40 anos, e de repente
a pandemia! Tudo virou um pandemônio!
Os alunos sumiram, eu sumi,
todos sumiram. Professor sem aluno
é como mãe sem filho! A transição
da sala de aula para as aulas on-line
não foi fácil sob vários aspectos, entre
eles o tecnológico, o financeiro e
o emocional. Dominar as novas tecnologias,
por mais que já se saiba, foi
um grande desafio. Tive que aumentar
a velocidade da minha internet,
minha conta de luz também aumentou,
mas minha carga horária permaneceu
a mesma e, consequentemente,
o meu salário.
Sou professora de Química, teórica
e prática. Usar programas de laboratórios
virtuais só minimizou a minha
preocupação com o manuseio do bico
de gás e do ácido sulfúrico, mas não
substituiu a maravilhosa vivência dos
alunos nos procedimentos experimentais.
O mais difícil dessa nova jornada
acadêmica foram as aulas. Falar para
vários quadradinhos com o nome dos
alunos, sem nenhum questionamento,
nenhuma reação.
Revista Elas por Elas - maio 2022
85
n Mark Florest
86
Revista Elas por Elas - maio 2022
Artigo
Valéria Morato
Que país seremos daqui a 40 anos?
Educação, ciência e tecnologia
andam de mãos dadas em qualquer
nação desenvolvida economicamente
ou que deseje trilhar este caminho.
Compreendo por desenvolvimento
econômico a capacidade de
um país intensificar sua industrialização
com bens e serviços sofisticados,
que demandem cada vez mais
tecnologia e conhecimento.
Economias sofisticadas precisam
de cientistas, pesquisadores/as e profissionais
de ponta em todas as áreas,
centros de pesquisa, escolas equipadas
e conectadas, professoras/es
bem remunerados/as, estudantes
motivadas/os (e bem alimentadas/
os) e grade curricular maior e mais
diversificada.
Quanto mais um país se industrializa,
maior será sua condição de
gerar riquezas, distribuir renda e
aumentar o padrão de vida da sociedade,
em especial dos mais excluídos,
em especial as mulheres pobres
e negras. Para essa roda girar,
são necessários constantes e volumosos
investimentos na economia
e, em especial, em todos os níveis do
sistema educacional e em pesquisa
e desenvolvimento.
Cabe ao Estado liderar este projeto
e articulá-lo aos demais interesses
(do mercado financeiro, do
capital produtivo e da sociedade).
Nos últimos 40 anos, países com economias
menores apostaram no conhecimento
e na industrialização
como base de suas estratégias nacionais
de desenvolvimento e obtiveram
crescimento econômico e
aumento da qualidade de vida acima
da média mundial e avançaram
em políticas de igualdade de gêneros.
Alguns destes países já figuram
como potências econômicas e protagonistas
na geopolítica mundial.
O exemplo da Coreia do Sul é emblemático.
Até a década de 1980, o
país exportava produtos de baixíssimo
valor agregado, como perucas
e bicicletas. O Estado coreano criou
uma política industrial de “incubação”
de indústrias nacionais, garantindo
proteções tarifárias, reservas
de mercado e créditos de bancos públicos.
Exigiu como contrapartida
Revista Elas por Elas - maio 2022
87
que as empresas tivessem eficiência
competitiva e conquistassem mercados,
o que resultou no desenvolvimento
de uma indústria de alta
tecnologia, como a Hyundai e a Samsung,
e a maior empresa de siderurgia
do mundo, a estatal POSCO.
A China também tem apresentado
resultados exuberantes após
40 anos de ininterrupto desenvolvimento.
Seu PIB é de US$ 20 trilhões
(2º do mundo) e a produção industrial
movimenta US$ 4 trilhões. Entre
2008 e 2017, os salários cresceram
200% como parte da estratégia
para o crescimento do mercado interno.
Não por acaso, o país incluiu
400 milhões de cidadãs e cidadãos
na classe média entre 2008 e 2017.
Esta revolução dentro da revolução
se iniciou no final da década
de 1970, quando os chineses assumiram
suas limitações econômicas
e, literalmente, criaram uma economia
de mercado para alavancar o desenvolvimento
socialista, e mecanismos
para entender quais seriam os
pontos de inflexão da economia e se
antecipar para continuar crescendo.
No início dos anos 2000, o país
construiu seu sistema nacional de
inovação que o colocou na fronteira
tecnológica de setores como eletroeletrônicos,
automobilístico e o da energia
limpa. Os chineses construíram 96
conglomerados para atuar nos diversos
setores da economia. Cada conglomerado
é do porte da Petrobras.
Para sustentar seus ciclos de desenvolvimento,
Coreia e China investiram
fortemente na educação em todos
os níveis, a partir da educação
de base. A consequência foi a formação
contínua de professoras/es, pesquisadoras/es
e cientistas altamente
n Adobe Istock
88
Revista Elas por Elas - maio 2022
capacitados pelas universidades. Na
Coreia, todo o ensino básico e 80% do
ensino público são financiados pelo
Estado. Na China, o ensino é gratuito
e obrigatório dos seis aos 15 anos,
e as/os alunas/os passam no mínimo
sete horas diárias na escola. No
ensino médio, jovens e adolescentes
estudam de oito a 13 horas por dia.
Investimentos estatais para alavancar
as economias e impulsionar
(ou manter) seus sistemas de educação
e pesquisa também são a regra
na América do Norte e na Europa.
A União Europeia anunciou plano
de recuperação econômica de € 750
bilhões, e os EUA vão investir US$ 5
trilhões em rodovias, ferrovias e aeroportos,
na indústria de semicondutores,
na saúde e educação públicas.
Lembrando que o festejado sistema
privado do ensino superior norte-
-americano é financiado por vultosos
fundos públicos, e 73% das/os
estudantes de nível superior norte-
-americanos estão matriculadas/os
em universidades públicas.
E o Brasil?
Nação que mais se desenvolveu entre
1930 e 1980, o Brasil parou no tempo
e enfrentou, nos últimos 40 anos,
processo contínuo de desindustrialização
de sua economia, cuja participação
no PIB caiu de 25% para
10% entre 1980 e 2018. Lembram da
China? Pois é, eles nos visitaram em
1978, época em que nosso PIB era
três vezes maior do que o deles, para
entender nosso processo de crescimento
e aplicá-lo por lá.
Nos anos 1990, a abertura desenfreada
da economia sem a existência
de um regime cambial e de
incentivos favoráveis às exportações,
e as privatizações de empresas
estatais que poderiam obter ganhos
tecnológicos para o país (como
a Telebrás), aceleraram o desmonte
de parte do nosso parque industrial.
Durante os governos Lula e Dilma,
a retomada de investimentos no
setor produtivo, na educação, ciência
e na tecnologia iniciou um novo
ciclo de desenvolvimento, ainda limitado
pelo tripé macroeconômico
liberal, no qual especular é mais lucrativo
que produzir.
Na contramão do mundo, os governos
Temer-Bolsonaro, iniciaram
o maior projeto de desnacionalização
de nossa história, através de políticas
de aniquilamento do Estado
brasileiro, notadamente na prestação
de serviços essenciais à população
como educação e saúde. A constitucionalização
do congelamento
do orçamento destinado à população
é uma aberração fiscal que nenhuma
nação do mundo adota. Condena
o país ao atraso e amplia as já
profundas desigualdades sociais. Inviabiliza,
por exemplo, o Plano Nacional
de Educação, que previa dobrar
o investimento na área de 5%
para 10% do PIB até 2024.
O impacto na Ciência e na Tecnologia
é igualmente desastroso. Também
não precisamos explicar aqui
a imensa desvalorização que as/os
docentes sofreram com o desmonte
da Consolidação das Leis do Trabalho
(CLT) e com a impiedosa reforma
da Previdência. Para o sucessor
de Temer, “há professores em excesso
no Brasil”. Caso a PEC 32 venha a
ser aprovada, Bolsonaro terá carta
branca para expulsar docentes do
serviço público.
E se toda a política de desregulamentação
do ensino privado em
curso for levada a cabo, corremos o
risco de nos transformarmos rapidamente
em tutores de aplicativos
educacionais, quebrando-se de vez
a relação ensino-aprendizagem, a
compreensão do processo educacional,
o vínculo trabalhista da/o profissional,
a capacidade de diálogo e
do contraditório.
Eu me pergunto que nação
seremos em 40 anos, caso continuemos
a ser arrastados pelo ciclo
de autodestruição a que fomos
submetidas/os. De consumidoras/
es de aplicativos e softwares produzidos
em países ricos? De trabalhadoras
e trabalhadores precarizados
4.0? Eu escolhi lutar por
um modelo de desenvolvimento
que combine crescimento econômico
com igualdade, garantia de
direitos, distribuição de renda e
da riqueza e preservação ambiental,
e que promova, através deste
ciclo virtuoso, uma vida melhor
para mulheres e homens. Temos
capacidade econômica, território,
diversidade cultural e um povo
trabalhador. O que precisamos é
mudar de rumo agora.
Q
Valéria Peres Morato
Presidenta do Sinpro Minas e da CTB Minas
Revista Elas por Elas - maio 2022
89
Cansei
Larissa Isis
90
Revista Elas por Elas - maio 2022
Cansei
Marina Morena
Revista Elas por Elas - maio 2022
91
n Carina Aparecida
92
Revista Elas por Elas - maio 2022
Resistência
por Denilson Cajazeiro
Linhas de combate
Mulheres utilizam o bordado como forma de expressar
diferentes lutas na sociedade
A Praça da Estação é um local
em Belo Horizonte que tradicionalmente
acolhe manifestações populares.
Atravessada por uma avenida,
a dos Andradas, está localizada
bem no baixo centro da capital mineira,
ao lado do alternativo espaço
104 – uma antiga fábrica têxtil
transformada em centro cultural,
com café, cinema de rua e local de
shows e exposições artísticas.
Em um dos lados da praça, há
muitas árvores, uma boa área verde
e bancos disponíveis para aqueles
que planejam descansar um pouco
na região. A parte onde os manifestantes
se reúnem, do lado direito
de quem segue do centro para
os bairros, não se assemelha exatamente
a uma praça. Sem nenhuma
área verde, um dos poucos atributos
desse lado parece ser as fontes
artificiais espalhadas pelo extenso
piso cimentício. Quando estão ligadas,
servem para refrescar quem se
dispõe a entrar debaixo dos jatos
d’água, como muitas pessoas que
estão em situação de rua.
Mas é uma parte interessante,
principalmente por estar localizada
em frente à estação central do
metrô e ao prédio da antiga estação
ferroviária, onde hoje funciona
o Museu de Artes e Ofícios – o primeiro
no Brasil a se dedicar integralmente
ao tema do trabalho. Por ali
também transita diariamente uma
multidão apressada, o que permite
divisar uma infinidade de rostos e
imaginar suas preocupações.
Na manhã do dia 10 de julho do
ano passado, a praça foi palco de um
ato inter-religioso. Marcado por movimentos
e organizações sociais, coletivos
e sindicatos, a intenção era
protestar contra a gestão do governo
Bolsonaro diante da pandemia
do novo coronavírus.
Junto a outras integrantes do coletivo
de bordadeiras Pontos de Luta,
dona Seuza Marques (foto), de
83 anos, ajudou a confeccionar um
painel de quase 7 metros, que ficou
exposto durante a manifestação na
Revista Elas por Elas - março 2022
93
n Carina Aparecida
Pampulha, em Belo Horizonte, onde
praça. No tecido foram bordados 690 nossa tristeza. Teve gente que bordou
94 Revista Elas por Elas - maio 2022
corações com nomes de vítimas da
Covid-19 – entre elas alguns profissionais
da educação –, além de um
trecho do poema “Inumeráveis”, do
cordelista Bráulio Bessa. A ação fez
parte do projeto “Memória não morrerá”,
criado pelo coletivo Linhas do
Rio, e percorreu outras cidades brasileiras,
em exposições e protestos
itinerantes. Uma iniciativa que se
junta ao trabalho de inúmeros outros
coletivos existentes em todo o
país, em uma espécie de rede de bordado
e luta por mudanças sociais.
“Realmente, quando as pessoas
morrem, elas ficam gravadas no coração.
É uma forma de a gente expressar
chorando, porque perdeu pesso-
as muito próximas, outras nem conseguiram
bordar. A gente transfere,
no momento que estamos fazendo,
a revolta pelo descaso deste governo”,
protesta dona Seuza, professora
aposentada de Biologia.
Nascida na pequena Colônia Leopoldina,
em Alagoas, dona Seuza
viveu em Pernambuco, na Bahia
e no Rio de Janeiro antes de se fixar
em terras mineiras, em 1977.
No estado, trabalhou em três escolas
da rede pública de ensino – uma
em Santa Luzia e duas na capital –,
e atualmente mora em um apartamento
no bairro Castelo, região da
costura seus protestos. A militância
política começou em 1981, junto com
as greves e manifestações de professores
por melhores condições de trabalho,
mas a relação com o bordado
é bem mais antiga.
“Eu bordei muito quando era jovem,
em casa, para ajudar minha
irmã, que era bordadeira. Depois
que cresci, só pegava em uma linha
para pregar um botão, porque não
tinha tempo. Certo dia, mais recentemente,
fui ajudar uma vizinha a dar
uns pontos e depois disso retomei
o bordado. Não é uma obrigação, é
algo que você preenche o tempo. Na
verdade, é prazeroso. De qualquer
forma, qualquer bordado tem um
trabalho de criação. São frases de
protesto, e eu digo que são panfletinhos”,
diz dona Seuza.
Constituído majoritariamente
por mulheres, o coletivo Pontos de
Luta mantém o hábito de participar
de manifestações desde que foi
criado, em março de 2019. Já fizeram
protestos em defesa da ciência
e dos povos indígenas, a favor do
parto humanizado e do SUS, contra
o crime da Vale em Brumadinho e
as privatizações dos Correios e da
Petrobras, entre outros. O fato é
que, nos últimos anos, motivos para
bordar não faltaram. “A gente
trabalha com as coisas que acontecem,
com as reivindicações, com os
movimentos políticos todos. Sempre
participamos das manifestações.
Sempre na luta, porque decidimos
por meio do bordado expressar
nossa denúncia para a sociedade
de uma forma diferente”,
resume dona Seuza.
Uma das fundadoras do coletivo,
a assistente social Lúcia Pinheiro
(foto) sabe que a situação atual não
está nada fácil, e que muitas linhas
ainda terão de ser costuradas para
denunciar a realidade brasileira. A
economia do país não deslancha, o
desemprego está elevado, a inflação
disparou, a fome aumentou e
os salários cada vez mais acabam
bem antes do fim do mês.
Enquanto isso, em Brasília, a maior
preocupação do presidente Bolsonaro
parece ser suspeitar das urnas eletrônicas
e defender o voto impresso nas
eleições de 2022. Uma crise econômica,
política, social e sanitária sem precedentes
na história recente do país.
“A gente queria homenagear e dar o
nosso grito de indignação, em relação
a esse número enorme de gente
que partiu em função das ações desastrosas
deste governo”, afirma Lúcia
Pinheiro, sobre o painel de corações
confeccionado por elas.
“Estamos dentro de
casa, mas não em silêncio.
Agora mesmo,
bordamos as comemorações
do centenário
de Paulo Freire.
Isoladas, mas unidas
Com a pandemia, a rotina do grupo
foi alterada, e os trabalhos passaram
a ser feitos individualmente
e depois reunidos. Antes, os encontros
em ruas, praças e locais públicos
para bordar eram comuns no grupo,
e oficinas sobre a prática, frequentes.
“Estamos dentro de casa, mas
não em silêncio. Agora mesmo, bordamos
as comemorações do centenário
de Paulo Freire. Fizemos várias
bordações, e isso contribui para
a socialização e de certa forma traz
um fortalecimento para as pessoas
que estavam em casa sozinhas”, diz
a assistente social.
n Carina Aparecida
Revista Elas por Elas - maio 2022
95
n Carina Aparecida
do presidente Bolsonaro, que, no dia
27 de agosto, chamou de idiota quem
diz que precisa comprar feijão. Para
ele, “todo mundo tem que comprar
fuzil”. Isso foi dito em meio à elevada
alta no preço dos alimentos. Segundo
o Dieese (Departamento Intersindical
de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos),
em julho de 2021 o trabalhador
brasileiro precisou gastar, em média,
55,68% do salário mínimo para comprar
a cesta básica. “Ah, meu filho, tenho
muita esperança de dias melhores,
mas que a gente tem de batalhar,
isso tem”, diz dona Seuza.
Mais recentemente, o coletivo iniciou
o projeto Verdear, que consiste
em bordar espécies de árvores de
Belo Horizonte, em apoio aos movimentos
da cidade de proteção às áreas
verdes. Nas redes sociais, o grupo
também posta imagens de trabalhos
feitos individualmente por suas integrantes.
“Não tire a máscara, tire
o Bolsonaro!”, pede um bordado.
“Nossos trabalhos simbolizam a resistência
e a luta contra toda forma
de opressão. É uma linguagem política.
A gente transborda um sentimento.
Há toda uma carga ali, se alegria,
se tristeza, se revolta, se repúdio a
uma ação opressora. É isso”, define
Lúcia Pinheiro.
Entre uma linha e outra, dona Seuza
permanece, em casa, atenta ao noticiário,
em busca daquilo que pode
servir de motivo para tecer seus “panfletinhos”.
Na última conversa com
a reportagem, ela havia acabado de
bordar a seguinte mensagem: “Queremos
feijão no prato, nada de fuzil!”.
Era uma resposta à declaração
“Nossos trabalhos simbolizam
a resistência e
a luta contra toda forma
de opressão. É uma
linguagem política. A
gente transborda um
sentimento.
Bordando histórias
Marcado por diferentes técnicas, o
bordado é uma prática social cuja
origem é incerta. O que se sabe é que
o trabalho sobre o tecido atravessou
séculos e está presente em diferentes
culturas, com variados usos
e simbologias ao longo da história –
da demonstração de poder e status
social à expressão artística, pessoal,
de protesto ou da identidade de um
povo. Ou, simplesmente, como forma
de reparar roupas danificadas.
Com sentido político, uma das experiências
que se tornou bastante conhecida
foi a das arpilleras, técnica
que surgiu em Isla Negra, no Chile,
por meio da qual as bordadeiras denunciavam
as violações da ditadura
de Pinochet, a partir da década 70.
Recentemente, o bordado voltou
a ganhar projeção, sobretudo o de
protesto. Em uma época efêmera,
industrializada e acelerada, fixar
uma frase ou desenho em um pano,
por meio de um trabalho manual,
detalhado, que leva tempo, tornou-se
por si só uma espécie de resistência.
96
Revista Elas por Elas - maio 2022
No ano passado, por exemplo, o Sesc
Pinheiros, em São Paulo, recebeu a
exposição Transbordar: transgressões
do bordado na arte, que reuniu 39
artistas de diferentes gerações.
A mostra apresentou dois núcleos:
um histórico, em que um dos destaques
foram obras de protesto a regimes
ditatoriais latino-americanos,
e outro com artistas que, desde os
anos 1980, usam o bordado de forma
subversiva, para expressar uma
crítica política. Um dos trabalhos
apresentados foi o da artista visual,
educadora e pesquisadora Rosa
Paulino, que se destaca por sua produção
ligada a questões sociais, étnicas
e de gênero – sobretudo aos
diferentes tipos de violência sofrida
pela mulher negra.
“Eu acredito que o bordado está
na vida das pessoas, na vida das mulheres
desde que as vestimentas foram
iniciadas. O entrelaçar fibras,
lãs, fios, linhas foi simplesmente surgindo,
sendo aprimorado e modificado
no decorrer da vida, a cada
situação social. As tramas, de maneira
geral, não só formam o tecido
como também comunicam histórias
e trajetórias sociais”, aponta
Ralyanara Freire, doutora em antropologia
social pela Universidade
Estadual de Campinas.
Em sua tese, concluída em junho
do ano passado, ela testemunhou o
cotidiano de mulheres impactadas
pela usina de Belo Monte, em Altamira,
no Pará. Por meio de linhas,
agulhas e tecidos, as atingidas relevaram
experiências de deslocamento
forçado, perdas, novas condições
precárias de vida, violências, entre
outros graves problemas decorrentes
da construção da hidrelétrica.
n Carina Aparecida
Revista Elas por Elas - maio 2022
97
Tecendo
resistências
Pesquisadora faz estudo
antropológico sobre
arpilleras de Altamira,
no Pará
n Portal Medium
Durante cinco anos, a pesquisadora
Ralyanara Freire conduziu
um estudo antropológico sobre
mulheres que foram expulsas de
suas casas para a construção da
usina hidrelétrica de Belo Monte,
no rio Xingu, próximo ao município
de Altamira, no Pará. Como
forma de denunciar os impactos
do empreendimento em suas vidas,
as atingidas começaram a tecer
bordados arpilleras, técnica
de origem chilena.
O estudo foi feito para a sua
tese de doutorado, defendida
em junho do ano passado, na
mediada pela câmera, com o ‘pluriverso’
das linhas, agulhas, tesouras
maiores, a exemplo dos que buscam por
Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp). Para realizá-lo,
moradia nas grandes cidades e os que
e tecidos”, afirma a pesquisadora.
reivindicam reforma agrária.
Ralyanara esteve em Altamira,
Confira a seguir o relato dela.
Nesse sentido, as coisas foram simplesmente
acontecendo. Na realização
entrevistou mulheres atingidas
98 Revista Elas por Elas - maio 2022 e chegou a morar na casa de uma
delas, de quem se tornou uma
grande amiga.
“O trabalho com agulhas, no
que diz respeito a tecelagem, bordados,
costuras, é hoje uma fonte
de estudos, tanto teóricos quanto
artísticos. Mas, muito além disso,
eu os considero uma maneira
de expressar meus conhecimentos
e inquietações. Eu realizo
costuras em jornais, papéis, fotografias,
buscando tensionar o
mundo da escrita e da imagem
Eu sempre trabalhei com costura.
Minha mãe ensinou minha irmã e eu a
costurar. Só que nosso trabalho era realizado
na costura industrial. Fazíamos
calças jeans em larga escala. Em Goiânia,
cidade onde eu resido, esse tipo de
profissão e comércio é facilmente encontrado.
Por toda a cidade há pequenas
facções domésticas – nos quintais, nos
fundos de barracões, nos cômodos da
casa. Então, a costura me constitui. Eu
também sempre me interessei por movimentos
sociais, tanto pelas organizações
de bairro, quanto por movimentos
da minha pesquisa de mestrado, eu estudei
a fiação e a tecelagem de algodão
em Goiás, em uma região que foi modificada
pela implementação da estrada de
ferro, por volta de 1910. Eu percorri essa
região, fui de porta em porta e conversei
demoradamente com muitas fiandeiras
e tecedeiras. As mulheres, com faixa etária
que variava entre 40, 60, 80 e até 100
anos, ensinaram-me os processos manuais
de transformar o algodão em tecido.
Foi aí que elas me falaram dos trabalhos
com arpilharia e então eu cheguei até o
tema de pesquisa do meu doutoramento.
Durante o meu doutorado, em antropologia
social pela Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp), desenvolvi
extensa pesquisa com mulheres
atingidas pela construção da usina hidrelétrica
Belo Monte. Essa hidrelétrica,
em plena Amazônia brasileira, devastou
a floresta, secou o rio e impactou
muitas famílias. Manifestando-se de
forma contrária à construção da usina,
as mulheres começaram a criar bordados
arpilleras. Esses bordados surgiram
no Chile e foram uma importante manifestação
feminina de enfrentamento à
ditadura imposta por Pinochet.
Então, por intermédio do Movimento
dos Atingidos por Barragens (MAB),
as mulheres começaram a criar bordados
políticos, as arpilleras, e passaram
a denunciar os danos causados pela usina.
Belo Monstro, forma como a hidrelétrica
é chamada na região, destruiu casas,
o rio, a floresta e a vida de muita
gente. Os bordados arpillera mostram
tudo isso, e foi bordando que aprendi
sobre a arpillera e sobre os impactos de
Belo Monstro. Nós fazíamos os bordados
nos reassentamentos coletivos urbanos,
que são moradias de baixo padrão
instaladas na periferia da cidade,
bem longe do rio Xingu, para abrigar
as famílias expulsas das faixas urbanas
do rio. Ali o calor era intenso, devido às
péssimas condições de construção dos
imóveis. As temperaturas ultrapassam,
facilmente, a marca de 40º.
Para piorar, a desigualdade social
aumentou, bem como o acesso à cultura
e ao lazer. Então, os índices de violência
eram grandes, o que tornou a cidade
uma das mais violentas do país.
Por isso, apesar do calor, as famílias
ficavam em casa, de portas e janelas
trancadas, com grades e cadeados. Ao
caminhar pelos reassentamentos, tem-
-se a impressão de que não há ninguém
em casa, porque tudo está fechado e as
ruas estão sem movimentação. Todavia,
as pessoas estão em casa, resistindo
à Belo Monte como é possível resistir.
Os bordados mostram as más condições
de vida após a construção de Belo
Monstro e da barragem no rio Xingu.
Sobretudo as péssimas condições de moradia,
a longa distância dos reassentamentos
até o rio – o que modificou o modo
de vida das famílias. Também mostra
a violência sexual, acentuada no período
alto de construção da Hidrelétrica.
Chegar até as mulheres, de maneira
respeitosa, e falar com elas sobre as dores
que as afligiam foi um grande desafio.
Em 2020, as mulheres estavam adaptadas
às suas novas rotinas de vida. Todavia,
elas não estavam conformadas
ou menos indignadas. Mas elas precisavam
seguir com suas vidas. Ao falar dos
impactos de Belo Monstro, a dor voltava
à superfície de suas vidas. Era preferível,
“
Os bordados mostram
as más condições
de vida após a
construção de Belo
Monstro e da barragem
no rio Xingu."
em muitas situações, que o sofrimento
fosse arrefecido pelos fazeres do
dia a dia e, em muitas ocasiões, pela
realização da arpillera. Então, ao
invés de falar, de entrevistá-las, eu
preferi bordar com elas ou conversar
sobre as arpilleras.
A história é feita no agora, no
dia a dia. Nesse aspecto, eu vejo
que os bordados brasileiros se destacam
fortemente, tanto os bordados
do tipo arpillera, criados no Brasil,
quanto os bordados políticos feitos
por grupos femininos e feministas
nas grandes cidades. Eu penso
que todo bordado pode ser político,
a depender do modo como observamos,
como o acionamos para nos expressar.
Há tecidos de algodão, por
exemplo, que mostram lavouras de
café e laranja. Ao conversar com as
tecedeiras, elas me explicaram que
essa foi uma maneira de dizer que
já não se via mais as flores do cerrado
– uma vez que para se plantar
café e laranja era necessário devastar
grandes áreas.
Em termos de maiores repercussões,
as chamadas Mães de Maio,
na Argentina, utilizaram os lenços
de seus filhos e filhas desaparecidos
pela ditadura daquele país. Nesse
exemplo, um pedaço de tecido se tornou
símbolo político que ainda hoje
é repercutido. Outra coleção muito
importante são os bordados ou tapeçarias
de quilts feitas por Harriet
Powers – criados muito antes das
arpilleras chilenas. Trata-se de criações
políticas sobre a indescritível
violência que pessoas brancas fizeram
contra pessoas negras através
da escravização e sequestro.
Revista Elas por Elas - maio 2022
99
Cansei
Nubiha Modesto
100 Revista Elas por Elas - maio 2022
Cansei
Valentina Fornerolli
Revista Elas por Elas - maio 2022
101
102 Revista Elas por Elas - maio 2022
n Ana Pessoa - Mídia Ninja
Indígenas
por Denilson Cajazeiro
Guerreiras da Terra
Mulheres indígenas protagonizam a luta pela demarcação e preservação de
seus territórios, diante dos ataques do governo Bolsonaro
Assim que retornou de Glasgow,
na Escócia, em novembro do ano passado,
Alessandra Korape foi surpreendida
ao chegar em casa, em Santarém,
no Pará. Sua residência estava
revirada, e os criminosos que
a invadiram levaram documentos
e o aparelho onde ficavam armazenadas
as imagens do circuito interno
de câmeras. A indígena esteve
no país europeu para participar
da COP26, a Conferência das Nações
Unidas sobre Mudanças Climáticas,
e denunciar ao mundo os ataques
aos povos indígenas no Brasil e as
invasões de suas terras.
Dois anos antes, a líder indígena
passou pela mesma situação. Em
novembro de 2019, entraram em
sua casa e roubaram, além de uma
televisão, o cartão de memória de
sua máquina fotográfica, com fotos
e vídeos da atuação do garimpo na
região e registros de assembleias
e reuniões de povos indígenas. A
câmera foi deixada para trás, em
cima da cama.
“Foram tentativas de nos intimidar,
porque hoje a principal luta das
mulheres indígenas é pelo território,
pela água. A terra representa a vida,
e a gente vê muitos casos de povos
indígenas expulsos de suas terras
por fazendeiros e mineradoras. Não
é à toa que sofremos ataques. É porque
não desistimos. A gente não pode
se calar, estamos defendendo a nossa
casa”, denuncia a líder Alessandra
Korape, cuja região onde mora
é marcada por conflitos territoriais.
De acordo com as lideranças indígenas,
desde o início do atual governo,
em 2019, cresceram as pressões
sobre seus territórios, com o aumento
das queimadas e do desmatamento
e a expansão do agronegócio, da
mineração e do garimpo ilegal, além
de outras graves ações de violência.
Em março do ano passado, por exemplo,
a sede da Associação de Mulheres
Indígenas Munduruku, em Jacareacanga,
no Sudoeste do Pará, foi
depredada, queimada e saqueada
por garimpeiros da região.
As lideranças avaliam que os
ataques têm sido estimulados pela
agenda anti-indígena no Congresso
e pelas declarações do presidente,
que sempre se manifestou favoravelmente
à exploração das reservas
Revista Elas por Elas - maio 2022 103
Eleniza Tupari, vice-coordenadora
tradicionais. Basta lembrar que,
quando ainda estava em campanha,
o então deputado federal Jair
Bolsonaro disse que se eleito não
concederia “nem um centímetro a
mais para a demarcação de terras
indígenas” – discurso que não cansou
de repetir.
“O sonho do governo Bolsonaro
é, na verdade, a vontade de atender
os interesses econômicos que impulsionaram
a sua candidatura e sustentam
o seu governo, mesmo que
isso implique em total desrespeito
à legislação nacional e internacional,
que assegura os nossos direitos
fundamentais”, repudiou, em nota,
a Articulação dos Povos Indígenas
do Brasil (Apib).
Na Câmara dos Deputados, em
Brasília, há várias propostas que vão
impactar diretamente a vida dos povos
indígenas em todo o país, caso
sejam aprovadas. Uma delas é o projeto
de lei 191/20, que libera mineração,
empreendimentos de petróleo e
gás e construção de hidrelétricas em
terras indígenas. Em tramitação na
Câmara dos Deputados, foi apresentado
em fevereiro do ano passado
pelo governo Bolsonaro, que cumpriu
uma promessa de campanha.
“Não está sendo fácil. Eles estão
batendo muito em cima de realmente
liberar, de querer desmontar
as leis que amparam e
defendem a causa indígena, para
diminuir nossas terras”, afirma
da Associação das Guerreiras Indígenas
de Rondônia (Agir).
Aumento da violência
Enquanto os parlamentares querem
definir o destino das terras indígenas,
os povos originários enfrentam a escalada
da violência, conforme aponta
o mais recente relatório produzido
pelo Conselho Indigenista Missionário
(Cimi) sobre o assunto. De
acordo com o documento, referente
a 2019, o primeiro ano do governo
Bolsonaro registrou uma expansão
de 134,9% nos casos relacionados
a invasões de terras indígenas, em
comparação com o ano anterior. A
publicação elenca 19 categorias de
violência – entre elas a omissão do
poder público –, das quais 16 registraram
crescimento naquele ano.
“Infelizmente, as violências praticadas
contra os povos indígenas fundamentam-se
em um projeto de governo
que pretende disponibilizar
suas terras e os bens comuns nelas
contidos aos empresários do agronegócio,
da mineração e das madeireiras,
entre outros”, diz a publicação
do Conselho Indigenista.
O relatório cita, por exemplo, os
incêndios que consumiram a Amazônia
e o cerrado em 2019, cujas
imagens impactantes percorreram
o mundo. A publicação ressalta que
as queimadas devem ser compreendidas
como parte da estratégia de
grilagem das terras indígenas, com
a finalidade de destiná-las a empreendimentos
econômicos. “De modo
resumido, assim funciona essa cadeia:
os invasores desmatam, vendem
as madeiras, tocam fogo na
n Cleia Viana - Câmara dos Deputados
mata, iniciam as pastagens, cercam
a área e, finalmente, com a área ‘limpa’,
colocam gado e, posteriormente,
plantam soja ou milho”.
E um levantamento da Agência
Pública, com base em dados da Funai
e da Agência Nacional de Mineração
(ANM), revelou que os processos
de pesquisa minerária em terras
indígenas na Amazônia cresceram
91% no primeiro ano do governo
Bolsonaro. Foi a primeira vez, desde
2013, que os pedidos registraram
aumento. “Mineração em terras indígenas
é ilegal e inconstitucional.
O Brasil tem dois exemplos de tragédia
com a mineração [Mariana e
Brumadinho]. Exemplos de destruição,
impunidade e falta de fiscalização.
Mineração só traz poluição e
morte. Não queremos a morte dos
rios, da floresta e dos povos indígenas”,
protestou a única parlamentar
indígena no Congresso Nacional, a
deputada federal Joênia Wapichana
(foto), em sua conta no Twitter.
Julgamento histórico
No Supremo Tribunal Federal
(STF), o debate que mais preocupa
os indígenas neste momento é
o da tese jurídica do marco temporal
para a demarcação de terras.
Os ministros vão decidir se,
para reconhecer uma área como
território indígena, é necessária
ou não a comprovação de que eles
a ocupavam antes ou na data da
promulgação da Constituição Federal,
em 5 de outubro de 1988.
O julgamento no plenário começou
no final agosto de 2020, mas foi
suspenso, por tempo indeterminado,
no dia 15 de setembro de 2021,
após o ministro Alexandre de Moraes
pedir vistas do processo – um
mecanismo pelo qual o magistrado
demanda mais tempo para estudar
o caso e dar o seu voto.
“...os processos de
pesquisa minerária
em terras indígenas
na Amazônia cresceram
91% no primeiro
ano do governo
Bolsonaro."
Em seu voto, o ministro Edson Fachin,
relator da matéria, rechaçou a
tese do marco temporal e considerou
que reivindicar a terra se trata
de um direito fundamental dos povos
indígenas. “Autorizar, à revelia
da Constituição, a perda da posse das
terras tradicionais por comunidade
indígena significa o progressivo etnocídio
de sua cultura, pela dispersão
dos índios integrantes daquele
grupo, além de lançar essas pessoas
em situação de miserabilidade e
aculturação. Como se depreende do
próprio texto constitucional, os direitos
territoriais originários dos índios
são reconhecidos pela Constituição,
mas preexistem à promulgação da
Constituição", afirmou o ministro.
n Vinícius Loures - Câmara dos Deputados
Revista Elas por Elas - maio 2022 105
Na avaliação de ambientalistas e
pesquisadores, se aprovado, o marco
vai legalizar as violações ocorridas
no passado, além de incentivar
novas invasões de terras indígenas,
aumentando os casos de violência e
os conflitos fundiários. “A violência
deste governo acelera a destruição
de nossas terras. É como se a gente
não vivesse aqui há milênios. Ele
abriu a caixa de pandora e liberou
todo o mal das pessoas. Tudo que estava
sumido apareceu. Essa política
é algo que nos deixa com muita preocupação
e está prejudicando todo
mundo”, denuncia Shirley Krenak.
n Ana Pessoa - Mídia Ninja
Marcha nacional
Somos muitas transitando do chão
Para dar visibilidade ao tema, cerca
de cinco mil mulheres de mais
de 170 etnias fizeram uma marcha
histórica, em Brasília, entre os dias
7 e 11 de setembro do ano passado.
A manifestação foi organizada pela
Articulação das Mulheres Indígenas
Guerreiras da Ancestralidade (AN-
MIGA), junto com a Apib, e representou
um passo decisivo na luta contra
o marco temporal e em defesa
da vida e dos territórios indígenas.
“As guerreiras da ancestralidade
“Nós, mulheres indígenas, lutamos
106 Revista Elas por Elas - maio 2022
assumem a linha de frente para
enterrar de vez o marco temporal.
A tese defendida por ruralistas restringe
os direitos indígenas. Estamos
em busca da garantia de nossos
territórios, pelas que nos antecederam,
para as presentes e futuras gerações,
defendendo o meio ambiente,
este bem comum que garante nossos
modos de vida enquanto humanidade”,
afirmou, em nota, a coordenação
da 2ª Marcha Nacional das
Mulheres Indígenas.
pela demarcação das terras in-
dígenas, contra a liberação da mineração
e do arrendamento dos nossos
territórios, contra a tentativa de flexibilizar
o licenciamento ambiental,
contra o financiamento do armamento
no campo. Enfrentamos
o desmonte das políticas indigenista
e ambiental. Nossas lideranças
estão em permanente processo de
luta em defesa de direitos para a garantia
da nossa existência, que são
nossos corpos, espíritos e territórios.
da aldeia para o chão do mundo”,
ressalta o manifesto da ANMIGA, publicado
em sua página na internet.
Para Shirley Krenak, independentemente
de o marco temporal
ser aprovado ou não, a luta das mulheres
indígenas será permanente.
“Nossas terras não serão entregues
para o agronegócio, os corruptos,
os latifundiários, que poluem nossos
rios. Enquanto existir um indígena
pisando sobre essa terra, vai
ter luta, vai ter resistência”.
Governo denunciado por políticas anti-indígenas
Uma vez por mês, a técnica
de enfermegam Elenisa Tupari
embarca em uma lancha voadeira
e percorre o rio Guaporé, até
chegar às aldeias Santo André e
Bom Futuro, localizadas ao sul
da cidade de Guajará-Mirim, em
Rondônia, na divisa com a Bolívia.
Quando o volume do rio está
bom, a viagem dura cerca de 2 horas.
Em meses de seca, a navegação
se torna um desafio, e o trajeto
pode levar mais de um dia.
Nas aldeias, Eleniza e uma
equipe de profissionais de saúde
permanecem por quase três
semanas, para atender aos mais
de 600 indígenas – entre crianças,
jovens, adultos e idosos, em
um trabalho que se acumulou
muito em função da Covid-19.
Na pandemia, o presidente Jair
Bolsonaro foi denunciado a organismos
internacionais pela
falta de políticas públicas destinadas
aos povos indígenas. Em
julho de 2020, o senador Fabiano
Contarato (PT), que à época
presidia a Comissão de Meio
Ambiente da Casa, encaminhou
uma denúncia à ONU pelo descaso
do governo com a proteção
de populações indígenas
e povos tradicionais diante da
Covid-19.
Em agosto passado, a Articulação
dos Povos Indígenas do Brasil
(Apib) protocolou um comunicado
no Tribunal Penal Internacional,
órgão de Justiça das Nações
Unidas (ONU), para denunciar o governo
por genocídio. “As ameaças
e ataques sofridos pelos povos indígenas
têm sido perpetrados, em
sua grande maioria, pelo governo
Bolsonaro, seja pela manifestação
pública de discurso de ódio e mensagens
racistas contra os povos originários,
seja no apressado processo
de destruição das políticas e dos
órgãos públicos que deveriam cuidar
dos direitos indígenas e socioambientais”,
denuncia a entidade.
Em abril de 2021, a Apib e a Indigenous
Peoples Rights International
(IPRI) lançaram o relatório “Uma anatomia
das práticas de silenciamento
indígena”, que trata da perseguição
e criminalização de lideranças
indígenas no Brasil. São relatados
casos envolvendo 10 lideranças,
entre elas quatro mulheres: Sônia
Guajajara, Alessandra Munduruku,
Maria Leusa Kaba e Kerexu
Yxapyry.
“Mesmo com todos esses ataques
e enfrentando a atual crise
sanitária, sem precedentes, os povos
indígenas do Brasil resistem
e seguem lutando pela defesa do
que lhes é mais sagrado: suas terras
e seus territórios. Garantir o
bem viver para as nossas atuais
e futuras gerações contribui, ainda,
na preservação dos biomas, da
biodiversidade, no equilíbrio climático,
não somente para os indígenas,
mas para todo o planeta
e para o futuro da humanidade”,
afirma, em nota, a Apib.
n Eduardo Milano
Revista Elas por Elas - maio 2022
107
108 Revista Elas por Elas - maio 2022
n AdobeIstock
Violência
por Nanci Alves
Entre quatro paredes
Isolamento social força mulheres a suportarem violência caladas
Falar sobre feminicídio é sempre
muito difícil, mas cada vez mais necessário.
O Brasil continua entre os
países que mais matam mulheres,
ocupando hoje o 5º lugar no hanking
mundial de feminicídio (Alto Comissariado
das Nações Unidas para os
Direitos Humanos). Nosso país fica
atrás apenas de El Salvador, Colômbia,
Guatemala e Rússia. Com esta
triste realidade, o primeiro pensamento
que nos vem é: imagina como
seria se ainda não existisse a Lei
Maria da Penha (Lei 11.340/2006)?
Criada a partir da luta da ativista
Maria da Penha Maia Fernandes e
sancionada pelo então presidente
Luiz Inácio Lula da Silva, a lei conta
com mecanismos de prevenção e
coibição de violências domésticas e
familiares contra a mulher. Mas estes
quase 16 anos ainda não foram
suficientes para que ela fosse totalmente
implementada e muito menos
para mudar essa história de horror.
De acordo com um levantamento
divulgado em março de 2021 e
feito pela Hibou, empresa especializada
em pesquisa e monitoramento
de mercado e consumo, 81%
das brasileiras ouviram relatos de
agressão doméstica na pandemia,
até esta data.
Outra pesquisa (Percepções da
População Brasileira sobre Feminicídio),
realizada pelos Instituto
Patrícia Galvão e Instituto Locomotiva
em novembro de 2021, mostra
como o risco de feminicídio está
presente na vida das mulheres:
30% já sofreram ameaças de morte
por um parceiro ou ex, sendo que
7% contaram já terem sido ameaçadas
por mais de um parceiro. A
pesquisa revela ainda que seis em
cada dez brasileiros conhecem alguma
mulher que foi ameaçada de
morte pelo parceiro atual ou ex. E
41% afirmam conhecer um homem
que ameaçou matar a atual ou ex-
-companheira. Esta realidade pode
ser agravada como nos alerta a
educadora Analba Brazão Teixeira,
do SOS Corpo – Instituto Feminista
para Democracia. Em vídeo produzido
pela Agência Patrícia Galvão, a
partir desta pesquisa, a educadora
Revista Elas por Elas - maio 2022 109
sistematize, produza e publique
afirma que “o feminicídio no Brasil
já tem um número imenso e, com a
Vítimas de feminicídios, por trimestre (Brasil - 2019-2021)
liberação das armas, temos certeza
2019 2020 2021
de que a tendência é aumentar”.
400
Sabemos que uma violência física,
na maioria das vezes, começa 320 292
348
364 363
342
318
338
321 332 323
com xingamentos e humilhações.
Por isso, um/a vizinho/a ao ouvir
agressões, mesmo que verbais, precisa
240
160
tentar falar com esta mulher,
em particular, ou, se for recorrente,
até mesmo fazer uma denúncia
80
0
anônima, antes que seja tarde. Não
1º trimestre 2º trimestre 3º trimestre 4º trimestre
podemos reforçar pensamentos
Fonte: Fórum Brasileiro de Segurança Pública
machistas como o antigo ditado “Em
briga de marido e mulher, não se
mete a colher”. Se muitas mulheres O Fórum Brasileiro de Segurança
110 Revista Elas por Elas - maio 2022
tivessem tido a chance da intromissão
da colher de um amigo, vizinho
ou parente, provavelmente não teriam
morrido.
Políticas públicas
demandam mais dados
O isolamento social mascarou um
pouco a realidade, porque com o
agressor dentro de casa muitas
mulheres não conseguiram denunciar
a violência que estavam sofrendo.
Mesmo assim, de acordo com o
Anuário Brasileiro de Segurança Pública,
diariamente, ao menos 630
mulheres procuraram uma autoridade
policial para denunciar um
episódio de violência doméstica, no
ano de 2020.
Pública, embora com todas as dificuldades
de acesso a informações,
fez um levantamento, a partir dos
boletins de ocorrências, registrados
pelas polícias civis sobre o índice de
violência contra a mulher nos anos
de 2019, 2020 e 2021 (veja o gráfico).
Apesar de serem dados até metade
do ano passado, são os mais
recentes em termos nacionais. Na
avaliação da diretora executiva do
Fórum Brasileiro de Segurança Pública,
Samira Bueno (foto), a pandemia
tornou este problema ainda
mais desafiador, mas “a dificuldade
de acessar os dados e sistematizá-los
sempre existiu no Brasil e
ainda não conseguimos equacionar
este problema”. Ela explica que não
tem uma esfera nacional, hoje, que
informações sobre crime e violência,
periodicamente. Temos, por
parte do governo federal, o Sinesp
(Sistema Nacional de Informações
de Segurança Pública), que é historicamente
algo recente, de 2012.
“Mas ele não é alimentado ou sistematizado
e publicado de forma periódica
pelo governo federal. Não
existe um grande rigor do ponto
de vista metodológico por parte do
Ministério da Justiça para cobrar
estas informações, os dados de cada
estado e de fazer publicações com
análises destes indicadores. A verdade
é que as estatísticas criminais
nunca foram uma prioridade para
o Ministério da Justiça. Então, a
sociedade civil organizada acabou
assumindo esta função. O Fórum coleta
estes dados via lives. O tempo
de produção de indicadores é mais
demorado mesmo. Temos algumas
Se vc não ficar comigo, vai perder a polícias que conseguem produzir e
divulgar quase que mensalmente
sua casa, os filhos e seu emprego
(SP, MG, CE, RS, RJ), mas não é a regra.
Um levantamento nacional de
27 Secretarias de Segurança leva
tempo e é super desafiador. Porém,
é importante dizer que a gente não
planeja política pública de enfrentamento
à violência se a gente não
tiver bons indicadores que nos
deem conta deste cenário, que nos
apontem os desafios impostos. É
preciso que se invista urgente neste
ponto”, afirma.
n José Antônio Teixeira - Alesp
A ajuda necessária
Em entrevistas, depoimentos ou
pesquisas, que podem ser encontrados
pela internet, muitas vítimas
de agressão relatam que se
sentiram sozinhas, durante isolamento
social, porque não tinham
com quem desabafar e muito menos
podiam ir a uma delegacia ou
outro lugar onde pudessem pedir
ajuda (Algumas destas frases estão
ilustradas na matéria).
Esta nova realidade fez também
surgirem caminhos urgentes para
socorrer as mulheres em sofrimento.
Em meados de 2020, o Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) e a Associação
dos Magistrados Brasileiros
(AMB) lançaram a campanha Sinal
Vermelho para a Violência Doméstica,
que cadastrou mais de 10 mil
farmácias em todo o país para receberem
este tipo de denúncia. Para
isso, bastava a mulher chegar na
farmácia com um sinal vermelho
nas mãos e a polícia era acionada,
silenciosamente, em seu favor. Antes
disso, ainda no início da pandemia,
vimos várias iniciativas nas
redes sociais, de grupos feministas
ou até órgãos ligados às polícias ou
justiça, ensinando, por meio de vídeos
sem áudios, a mulher vítima
de violência doméstica a denunciar
Vc é uma analfabeta, cala a
boca, não te perguntei nada
Revista Elas por Elas - maio 2022
111
seu agressor. O primeiro vídeo foi
produzido pela Movielas, um coletivo
de mulheres profissionais das
áreas do som e da imagem do audiovisual
de Brasília (DF), e divulgado
pelo WhatsApp de mulheres de todo
o país. O vídeo, sem som, continha
apenas imagens que eram fotografias
de várias mulheres segurando
cartazes com orientações, números
de telefones e também emails
para os quais a vítima de violência
doméstica podia denunciar o que
estava vivendo. A ideia se espalhou
mostrando o que a Movielas quis
falar para cada mulher: ‘você está
isolada, mas não está sozinha’. Em
Curitiba, surgiu a segunda experiência
deste material, o “Tamo Juntas’
(TMJ). “No início da pandemia,
como não sabíamos o que viria pela
frente, criamos um grupo de amigas
para ajudar outras pessoas que
viviam sozinhas e que precisariam
de algum tipo de apoio. Quando vimos
este vídeo da Movielas, imediatamente
produzimos o nosso com
os contatos da rede de apoio às
mulheres vítimas de violência em
nosso estado. O resultado foi muito
bom. O vídeo viralizou e acreditamos
que tenha cumprido seu papel,
ajudando muitas mulheres a se protegerem”,
conta a jornalista Thea
Tavares (foto) ao reforçar a importância
da denúncia. “A única forma
é denunciar para que a mulher
seja acolhida e encaminhada para
os setores e serviços que podem oferecer
ajuda necessária como medi-
Meu marido começou a me
machucar e a dizer coisas
da protetiva, médicos, abrigo para
ela e filhos/as, trabalho etc. Faltam
realmente horríveis para mim.
políticas públicas e, enquanto cidadãs/cidadãos,
precisamos sempre
cobrar”, ressalta.
112 Revista Elas por Elas - maio 2022
n Arquivo pessoal
Chame a Frida
Outra iniciativa fundamental surgiu
em abril de 2020, na cidade de Manhuaçu
(MG), e comprovadamente
vem dando muito resultado no
combate ao feminicídio. Trata-se do
projeto Chame a Frida, criado pela
escrivã da Polícia Civil daquele município,
Ana Rosa Campos. A ideia
é simples, barata e com grande retorno.
“É um serviço de WhatsApp
por chatbot que oferece à mulher a
oportunidade de denunciar, acionar
a polícia ou esclarecer dúvidas. Frida
tem sempre, durante às 24 horas
em todos os dias da semana, um/a
policial civil monitorando casos que
necessitem de intervenção humana
com socorro imediato para ajudar a
mulher que está em situação de risco”,
explica. O resultado tem sido tão
significativo que o projeto já foi implantado
também nas cidades de Caratinga,
Ipatinga, Coronel Fabriciano,
Betim, Barbacena, Lagoa Santa
e, recentemente, em Ponte Nova e
Ouro Preto. “Para o município implantar
o projeto, basta um celular
e um número coorporativo. A gente
programa e Frida começa a funcionar.
Precisamos fomentar a denúncia,
pois é através dela que podemos
ajudar mais mulheres, explica Ana
Rosa ao frisar que seu sonho é ver
Frida atuando em todas as delegacias
de polícia de Minas Gerais.” E
isso não está longe de acontecer,
pois Chame a Frida já virou projeto
de lei ( PL 2.149/2020), de autoria
do deputado Marquinho Lemos
(PT), sendo aprovado em primeiro
turno na Assembleia Legislativa de
Minas Gerais, em outubro passado.
O PL aguarda, agora, a votação em
segundo turno para facilitar e desburocratizar
o ato da denúncia de
violência contra a mulher em todo
o estado. Chame a Frida já recebeu
5 indicações a prêmios no Brasil,
ganhando 3 deles (confira em
@chameafrida). “O reconhecimento
vem do próprio retorno. As mulheres
acham Frida de fácil acesso,
linguagem simples, não demanda
fazer cadastro e nem fornecer documentos
e endereços. Quem está
em situação de violência já está muito
frágil para ficar ali respondendo
perguntas e preenchendo formulários.
Temos que ser ágeis para salvar
vidas”, afirma.
No dia desta entrevista com Ana
Rosa, ela estava aliviada porque, naquela
manhã, Frida tinha salvado
mais uma vida em Manhuaçu. “Prendemos,
em flagrante, um homem
que estava agredindo sua esposa. Ela
acionou Frida e enviou o endereço
Se vc não ficar comigo,
vai perder a sua casa, os filhos
e seu emprego
n Mariza Tuelher
Revista Elas por Elas - maio 2022
113
que estão dependendo financeiramente
por GPS. Em poucos minutos a Polícia
Militar já estava em sua casa”, celebra
Ana Rosa (foto) que considera
fundamental a construção de novas
políticas públicas para combater a
violência contra a mulher. “Além
da denúncia, precisamos de outros
projetos, inclusive para os homens
autores de violência doméstica. Aqui
temos o ‘Diálogos sobre Masculinidades’,
em funcionamento há pouco
tempo, mas já conseguimos dar formação
para 50 homens. Em dois meses
de trabalho, o foco é no diálogo
com eles sobre violência de gênero
- como podemos entender este fenômeno,
reeducar e conscientizar
estes homens. Também oferecemos
suporte psicológico para as mulheres
por meio do Projeto Elzas. Então,
acreditamos em políticas públicas.
Temos que pensar nestas mulheres
dos homens, estudando for-
mas de ajuda financeira para que
elas possam romper com o relacionamento
abusivo”, ressalta.
Masculinidades em pauta
A reeducação do autor de violência
doméstica é realmente imprescindível
para a prevenção e proteção
exigidas pela Lei Maria da Penha.
Assim como em Manhuaçu, em todo
o Brasil existem vários projetos,
de ONGs em parceria com a Justiça,
ou dela própria, que buscam ajudar
homens que cometeram infração a
deixarem este caminho. Um deles
é o Projeto Borboleta, no Rio Grande
do Sul, desenvolvido no 1º Juizado
de Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher da Comarca de
Porto Alegre. A psicóloga Ivete Vargas
conta que apostam “no trabalho
em grupo que, na sua essência,
tem um papel educativo, reflexivo
e preventivo, à medida que se constitui
em espaço de escuta e, em consequência,
de troca de experiências,
que contribuem positivamente para
a redefinição de conceitos e de atitudes.
O machismo na sociedade se
constrói nos grupos (familiares, de
pares, instituições etc) e é neles que
deve ser questionado. Para isso, contamos
com voluntários de diversas
áreas capacitados pelo TJRS ”, conta.
A psicóloga diz que os grupos
reflexivos de gênero acontecem no
âmbito do judiciário desde 2011,
Tinha eu que dar conta da casa,
tendo recebido mais de mil homens
dos filhos e do trabalho virtual
até janeiro de 2022, sendo que 611
com ele violento dentro de casa.
concluíram a participação (12 encontros
presenciais) até 2019. Com
a pandemia, passou-se a oferecer
n Mariza Tuelher
também os grupos na modalidade
on-line, numa parceria com a UF-
CSPA (Universidade Federal de Ciências
da Saúde de Porto Alegre).
“Sendo bem conduzidos, os grupos
permitem o desenvolvimento
de novos olhares, mais criativos,
para comportamentos que foram
aprendidos numa cultura arraigada
de dominação dos homens sobre
as mulheres que não serve mais à
nossa sociedade. Não é uma tarefa
fácil, que exige muito estudo e
envolvimento dos facilitadores,
pois também tem que questionar
crenças arraigadas de si mesmos,
através de exemplos sociais e familiares,
num esforço de reconhecer
as violências e discriminações praticadas
em todos os ambientes, para
que possam ajudar os homens a reconhecerem
estas mesmas violências
e discriminações e buscarem
a autorresponsabilização pela mudança”,
acrescenta ao reforçar que
a participação deles também propicia
a identificação de necessidades
específicas de cada um, como por
exemplo, de encaminhamento para
tratamento terapêutico.
Esta participação dos homens
no grupo pode ser determinada pelo(a)
juiz(a) em diversos momentos
processuais: como medida protetiva
de urgência (art. 22, VI, da Lei
Maria da Penha), como condição
para a concessão da liberdade (em
caso de prisão em flagrante ou
preventiva), ou em virtude de uma
condenação criminal.
Ivete Vargas (foto) ressalta que,
em todo este trabalho, o principal
é a não tolerância a qualquer tipo
de discriminação baseada no gênero
por qualquer meio (instituições,
midiática, jurídica, educacional,
etc). “Temos apostado também no
trabalho com as mulheres através
do Grupo de Acolhimento, com
encontros semanais e grupo no
WhatsApp, onde elas trocam informações,
recebem orientação jurídica,
psicológica, psicossocial, com a
presença de voluntárias de diversas
áreas, principalmente feministas e
de atuação engajada. Contamos com
várias e importantes parcerias para
desenvolver estes projetos”, afirma.
Paulo (nome fictício) é um dos
atendidos pelo Projeto Borboletas
e conta que tem sido importante
para ele: “o grupo me ajudou ver
os erros que eu cometia e não via.
Hoje, graças a ele, vivo muito bem
com minha esposa, com toda harmonia!Tanto
eu quanto ela tivemos
muitas melhoras!
Com ele dentro de casa,
não conseguia pedir ajuda
para ninguém.
n Estúdio Scalco
Revista Elas por Elas - maio 2022
115
n Adobe Istock
116
Revista Elas por Elas - maio 2022
Artigo
Luana Oliveira
Mariana Pimenta
Este beco tem saída!
Uma conversa ficcional inspirada em situações reais de
violência doméstica na pandemia
Oi, Marcela, como você está?
Sei que pode parecer estranho
que eu te escreva assim, de repente.
Mas é que não sei para quem mais
pedir ajuda e vejo que você sempre
fala, pelas redes sociais, sobre a Lei
Maria da Penha.
Como sabe, sou casada há quase
15 anos com o Rogério, que também
estudou com a gente. Namoramos
por muitos anos e sempre achei
atencioso da parte dele se preocupar
com a minha roupa, se iria
chamar a atenção de ‘tarados que
sempre estão por aí’. Ele sempre
disse que confia em mim, mas não
nos outros. Para mim, isso era um
sinal de amor e proteção.
A gente não era de briga, mas o
tempo de convívio diário sempre
foi pequeno por causa do trabalho
e das crianças. Mas, agora, com a
pandemia, as coisas mudaram. Os
dois em home office, começaram as
discussões sobre quem tinha prioridade
de usar o computador da casa,
quem ia fazer o dever com as crianças,
preparar as refeições etc.
Prefiro ir pra cozinha e lidar com
as crianças, porque Rogério faz tanta
bagunça que me dá mais trabalho
para limpar. Também comprei um
tablet para eu e as crianças usarmos
nas nossas atividades e deixamos
o computador da casa só para ele.
Fui me organizando para dar conta
de tudo - trabalho, crianças em
aulas remotas, casa, cozinha. Mas
com o tempo e o cansaço, comecei
a cobrar dele mais apoio e vieram
novas brigas.
Pra piorar, Rogério ficou desempregado
e me culpou por não ter
oferecido a ele o ambiente ideal
para que pudesse trabalhar. Neste
dia, quebrou o tablet. Foi horrível,
as crianças ficaram assustadas.
Depois, se arrependeu, mandou
consertar e trouxe pizza para o
jantar. Sei que meu marido é boa
pessoa, está apenas passando por
uma fase ruim. Mas percebo que
estou em um estado constante de
medo e que prendo a respiração
Revista Elas por Elas - maio 2022
117
Olá, Victória.
perto dele. Esta semana, teve outro
ataque de raiva porque não foi
aprovado em uma entrevista e quebrou
um prato. Até nossos filhos
estão com medo do pai e perceber
isso, nos olhares e atitudes deles,
me angustia.
Só eu sei o quanto amo esse
homem e tudo de bom que vivemos
juntos! Declarações de amor,
viagens, filhos amados, construímos
juntos nossa casa. Como
posso agora viver com medo desta
mesma pessoa? Outro dia, uma
vizinha me entregou um bilhete
no elevador dizendo que ela sabia
o que eu estava passando e estava
disposta a chamar a polícia.
Será que não tem outra solução?
Às vezes alguém que venha aqui
conversar com ele. Meu casamento
pode estar por um fio e me sinto
fracassada por isso. É como se eu
não tivesse cuidado o suficiente da
minha família. E ao mesmo tempo,
hoje ele depende de mim financeiramente
e sou eu que compro
e cuido dos horários dos remédios
que ele precisa tomar. Se eu for embora,
quem vai cuidar dele? Não
consigo imaginar minha vida sem
Rogério ou a dele sem mim.
Desculpe procurá-la com meus
problemas, mas preciso conversar
com alguém que entenda o
que estou vivendo. Este zap é da
minha irmã, para ter certeza de
que ele não verá. Estarei com ela
novamente no fim de semana.
Agradeço muito se puder me responder
ou me ligar!
Admiro muito sua coragem e
sua força! Obrigada por lutar por
todas nós!
Como é bom ter a sua confiança
para falarmos de um assunto tão
íntimo e delicado. Gostaria que essa
conversa fosse pessoalmente, de
um jeito que eu pudesse te abraçar.
Mas, por ora, já é muito bom que
esta carta nos ajude a fazer uma
ponte entre nós.
Há séculos vivemos dentro de
uma estrutura social que distribui
os papéis de homens e mulheres,
desde que somos bebês, de uma maneira
desigual, excludente e que
pré-determina alguns enredos escolhidos
como certos e outros errados.
O resultado é que nós, mulheres,
temos enraizado em nosso subconsciente
a imagem de uma princesa
que precisa de um príncipe para ser
realizada, completa e feliz. Agora,
no mundo pós contemporâneo, essa
princesa é a “mulher maravilha”,
famosa “guerreira” – que trabalha,
cuida da família, das tarefas
da casa, gerencia a vida dos filhos
e ainda é amável o tempo todo. A
gente dá a nossa vida para sustentar
e fazer essa heroína “vencer”
uma batalha que é diária e que, na
verdade, não é uma vitória pra nós.
Quando chegamos nesse lugar, já
esquecemos quem um dia fomos e
desejamos ser. Guardamos na gaveta
todas as vontades com pensamentos
de “não ia dar certo”, “eu não
ia conseguir”, “não era para mim”,
“preciso cuidar da minha família”,
“o que seria dos meus filhos?” etc.
E assim, deixamos de nos olhar.
Precisamos fazer o caminho contrário:
Sim, ouvir o nosso corpo,
perceber os sentidos, sentimentos
e avisos. Por exemplo, o seu estado
de alerta constante - mesmo sem
n Adobe Istock
entender e até questionando se as
atitudes do Rogério são tão ruins
assim, você sente muito medo.
Seu corpo fala: cuidado, algo ruim
pode acontecer. Amiga, escute!
Este é um dos sinais mais importantes
a serem percebidos neste
momento que você está. A gente
desaprendeu a se ouvir e considerar
importante o que sentimos ou
intuímos. Mas, é importante!
A sociedade, pautada no machismo,
também foi nos tirando,
aos poucos, a valorização do grupo,
da aldeia, das outras mulheres
que fazem parte das nossas vidas e
fortalecem a nossa trajetória. Agora,
a gente chama isso de rede de
apoio. É por meio dessa rede que
conhecemos histórias semelhantes,
entendemos melhor como os
dispositivos da violência doméstica
funcionam – seja ela física, psicológica,
emocional ou material. É no
meio dessa rede que entendemos
que nossas histórias se parecem,
as agressões se repetem, e muitas
vezes começam disfarçadas de cuidado,
atenção ou carinho. É neste
espaço que começamos a enxergar
outras possibilidades, as saídas desse
beco, que sim, tem saída!
Entenda: não foi você que fez
ele perder o emprego. Falar isso é
uma forma de manipulação - quer
controlar você a partir do seu sentimento
de culpa. Outra coisa, limitar
suas roupas, seus amigos ou espaços
que frequenta não é atenção.
Tudo isso é controle sobre as suas
decisões e a sua vida. Quebrar seu
tablet, ou outro objeto seu, é violência
patrimonial e até física, quando
isso machuca alguém. Você e seus filhos
precisam de ajuda. E procurar
recursos jurídicos, como temos hoje
com a Lei Maria da Penha, é uma
possibilidade real de solução.
Não estou falando de prisão. Falo
desta rede de apoio, orientação
e ajuda. Existem grupos na assistência
social para trabalhar com
homens que cometem agressão. Assim
como você poderá acionar a sua
rede, ele também terá o tratamento
adequado. Isso será bom para todos,
Q
Luana Oliveira
Jornalista, escritora e especialista em
marketing digital. Apaixonada por causas sociais e
dedicada aos estudos sobre yoga, meditação e o
sagrado feminino.
pois seus filhos também precisam
de paz e segurança.
Eu sei que palavras são fáceis e
tomar atitudes é outro assunto. Mas
tudo começa a partir da coragem de
ter esse pensamento. Da sua coragem
em mandar essa mensagem,
da minha, em ser franca, e da nossa
coragem, em seguir em frente.
Estou com você. Pode me ligar
na hora melhor pra você. Abs!
Q
Mariana Pimenta
Jornalista e proprietária da Nenhum Destes,
empresa de comunicação social para o Terceiro
Setor. Coordenadora da coletiva feminista
As Luzias - UBM Lagoa Santa.
n Adobe Istock
Revista Elas por Elas - maio 2022
119
120 Revista Elas por Elas - maio 2022
n Charles Souza
Artigo
Maria Teresa dos Santos
Nana Oliveira
Isabela de Andrade P. M. Corby
As várias formas de tortura no
sistema prisional mineiro
É de conhecimento da grande
maioria da sociedade brasileira que
as condições do encarceramento
são, no mínimo, insalubres. Com a
pandemia isso se agravou em várias
dimensões. E quando se toca na situação
de mulheres e mães presas,
precisamos de uma atenção ainda
mais cautelosa e crítica.
De forma generalizada, os problemas
que surgiram com a pandemia
do Covid-19 no sistema prisional em
Minas Gerais foram:
1) aumento dos gastos para
os familiares - a impossibilidade
de realizar as visitas implicou na
necessidade de enviar os kits 1 de
higiene pessoal e alimentação por
meio do sedex, obrigatoriamente.
Ou seja, além do gasto com o kit
somou-se o gasto com o sedex. Nos
casos em que o/a preso/a está em
uma unidade distante da moradia
dos familiares, contrariando a Lei
de Execução Penal, o sedex chega
ao valor de R$ 350,00 (trezentos e
cinquenta reais);
2) durante meses, os familiares
ficaram sem notícias de seus entes
encarcerados/as com a proibição
das visitas, configurando, assim,
uma tortura psicológica para todos/
as os/as envolvidos/as, haja vista a
incomunicabilidade.
No retorno das visitas em Minas
Gerais, a primeira etapa foi por video
conferência por cerca de 10 minutos,
mas infelizmente não abarcou
nem a metade dos/as encarcerados/
as que já recebiam visitas antes da
pandemia. Inclusive a visita virtual
era feita com a presença de um/a
técnico/a do sistema prisional (assistente
social ou psicólogo/a) e dois
agentes prisionais. Tal configuração
gerou constrangimento e violou a
liberdade de expressão de cada um/a
dos/as presos/as, sendo que a simples
presença destes profissionais caracteriza-se
uma ameaça, mesmo que não
fosse a intenção. A próxima etapa foi
a retomada das visitas presenciais
com protocolos que limitaram a 20
minutos em algumas localidades,
em decorrência da classificação da
administração do Estado quanto a
transmissão do covid-19 - enquanto
em outros estados a visita poderia
ser de até 3 horas. Lembramos que
antes da pandemia era o dia inteiro
de visitas, uma vez por semana ou
de 15 em 15 dias. Assim, convidamos
os/as leitores(as) a um simples
exercício de imaginação e empatia:
imagine você no lugar de uma mãe,
uma filha, uma esposa que ficou em
torno de 6 meses sem nenhum tipo
de notícias do seu ente. E, finalmente,
na volta das visitas, envolta
de expectativas, você só pode ficar
20 minutos com seu familiar na
presença de dois agentes prisionais
1) Sobre os Kits enviados pelos familiares ver em: https://rb.gy/efa1sx
Revista Elas por Elas - maio 2022
121
deste grupo para unidades prisionais
para tratar de assuntos familiares Mesmo com toda esta estrutura
122 Revista Elas por Elas - maio 2022
e de cunho privado acumulados há
meses. Imaginou? Atentamos que,
atualmente, setembro de 2021, as
visitas permanecem nesta estrutura.
Nas especificidades das mulheres
grávidas e mães presas em Minas
Gerais temos a conquista de uma
unidade prisional exclusiva para
este grupo, o Centro de Referência
da Gestante Privada de Liberdade,
localizada em Vespasiano. Muito
embora, sejamos abolicionistas penais
- contra a existência do cárcere
- compreendemos que esta unidade
é o ambiente mais favorável para as
grávidas, mães e bebês em face das
condições desumanas das demais
unidades, tendo em vista que é exceção
momentos de superlotação
nesta unidade que foi construída
em atenção ao melhor interesse da
criança. Somado a isto, há agentes
prisionais experientes e sensíveis
para lidar com a especial condição
das mulheres grávidas e puérperas.
Como também há a garantia de
assistência médica por meio das
articulações realizadas pela diretoria
da unidade.
Q
Maria Teresa dos Santos
Presidenta da Associação de Amigos e Familiares de
Pessoas em Privação de Liberdade de Minas Gerais.
Fundadora e Articuladora da Agenda Nacional pelo
Desencarceramento e da Frente Estadual pelo Desencarceramento
de Minas Gerais.
que a unidade possui e os benefícios
gerados, antes da pandemia, e no
decorrer da mesma, ocorreram e
ocorrem várias tentativas de sucateamento
e fechamento pelo governo
do Estado, sendo que o principal
argumento é o gasto mensal oneroso
em face da “pouca demanda por vagas
e alto número de agentes prisionais
alocados”. Tal argumento demonstra
total desconhecimento do Estado
quanto à dinâmica diária de uma
unidade com mulheres grávidas,
mães e bebês. Cada vez que uma
mulher vai ao hospital, seja para
consulta médica do pré-natal, para
parir ou para atendimento pediátrico
é necessário a presença de duas
agentes prisionais e o motorista. E
não é possível programar algumas
destas possibilidades, há imprevistos
da própria natureza de uma gestação
ou da saúde de uma criança. Nos
causa profunda angústia vislumbrar
a possibilidade de fechamento desta
unidade em meio a uma pandemia,
ou futuramente no cessar desta tragédia
sem precedentes, e sabendo
que isto implicará no remanejamento
Q
Nana Oliveira
Presidente da Assessoria Popular Maria Felipa de
Minas Gerais. Advogada Voluntária da Associação
de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de
Liberdade de Minas Gerais.
comuns. A pandemia também
ocasionou a inviabilidade de pontos
de coleta fixos presenciais dos itens
arrecadados para as gestantes, mães
e bebês, tais como: enxovais de
bebês, fraldas (observamos que as
fraldas ofertadas pelo Estado causam
muita irritação na pele dos bebês)
e absorventes.
Nós, da Associação de Amigos
e Familiares de Pessoas em Privação
de Liberdade de Minas Gerais,
constatamos que, historicamente,
há um descumprimento das previsões
constantes na Lei de Execução
Penal e estas violações de direitos
humanos foram intensificadas com
a pandemia. E também chamamos
a atenção para a inércia dos agentes
públicos responsáveis por efetivar
a referida lei e principalmente
nossa Constituição da República de
1988, uma vez que a pena é restrita
à suspensão da liberdade. Logo,
em tese, não deveria violar o direito
à saúde física e mental tanto dos
familiares como dos/as encarcerados/as,
bem como impedir o acesso
à educação e ao trabalho.
Q
Isabela de Andrade Pena Miranda Corby
Advogada na Assessoria Popular Maria Felipa de
Minas Gerais. Mestre e Doutoranda em Direito pela
Faculdade de Direito da UFMG. Professora.
Cansei
Viviane Mendes
Revista Elas por Elas - maio 2022
123
n Andrea Rego Barros
124
Revista Elas por Elas - maio 2022
Perfil
por Denilson Cajazeiro
A diáspora
dos degredados
Em Solo para vialejo, a poeta Cida Pedrosa mergulha na memória e
empreende uma jornada lírica do mar para o sertão; a obra ganhou o
principal prêmio literário do país
Enquanto respondia à reportagem,
Cida Pedrosa se apressava para
chegar ao pavilhão de feiras do Centro
de Convenções de Pernambuco,
em Olinda. Em pouco tempo, cerca de
15 minutos, ela participaria de uma
mesa, em formato híbrido, sobre a
literatura de letra pernambucana,
na 13ª Bienal Internacional do Livro,
no ano passado.
“Pode ir que eu termino a entrevista
e entro em seguida”, disse a
um interlocutor, com o mesmo tom
simpático que conduziu a nossa
conversa. Naquela edição da bienal
no estado (o maior evendo literário
do Nordeste), ela e o patrono da educação
brasileira, o educador Paulo
Freire, foram os homenageados.
Em 2020, a poeta ganhou duas
premiações de destaque. Sua obra
Solo para vialejo foi escolhida nas
categorias de melhor livro do ano
e de melhor livro de poesia pelos
jurados do Prêmio Jabuti, a mais
importante distinção literária do
país. Quando o anúncio foi feito, ela
estava no sofá de sua casa, assistindo
à cerimônia pela internet.
“Este é um livro da volta. Eu migrei
do sertão para o mar, e neste livro
faço o oposto, migro do mar para o
sertão e vou contando dos sons, dos
negros e negras, das índias e índios,
de mim mesma, de onde me encontro
com minha ancestralidade. É minha
entrega à literatura, é porque as
palavras e os sons da minha memória
não cabiam mais na minha cabeça
e tinham de se espraiar nas páginas
de um livro”, afirmou a poeta, na
cerimônia de premiação.
Lançado em 2019, o livro é um
longo poema, mas também pode ser
lido em partes. É uma “diáspora dos
degredados”, segundo a própria autora.
Inicialmente, a obra tinha 10
páginas escritas e, em uma conversa
com o filho, ele disse que havia
ali um poema longo. Depois disso,
Cida começou a escrevê-lo, tarefa
que durou dois anos – a criação foi
lenta, em função do excesso de outros
trabalhos.
“Estou na luta da literatura desde
os 14 anos de idade, e esse é talvez
o meu lado mais importante para
Revista Elas por Elas - maio 2022
125
– E o que a palavra significa para
mim. Eu digo sempre que, quando
eu acordo de manhã e me olho no
espelho, sou poeta. O resto é uma
construção posterior. Então, receber
o prêmio é como se fosse para mim
coroar esses 40 anos de luta, coroar
dez livros publicados”, diz.
Nascida em 1963, em Bodocó, no
sertão do Araripe pernambucano,
Cida Pedrosa foi uma das militantes,
na década de 80, do Movimento de
Escritores Independentes de Pernambuco,
por meio do qual ela e
outros escritores saíam pelas ruas de
Recife recitando poemas e vendendo
seus livros de mão em mão.
“Foi a minha cidadania literária,
essa mobilização entre 1980 e 1986.
Recitávamos poesia e acolhíamos as
pessoas que saíam do cárcere, que
faziam a denúncia da ditadura. A de casa, onde escutava histórias
126 Revista Elas por Elas - maio 2022
gente lutava pela redemocratização.
O movimento tinha uma pegada
underground, alternativa, uma
coisa mais libertária”, relembra Cida
Pedrosa, que em 1987 formou-se em
Direito, pela Faculdade de Direito do
Recife, e nos anos seguintes advogou
para entidades de trabalhadores
rurais e de direitos humanos.
Antes de Solo para vialejo, ela
publicou outros dez livros de poemas
da literatura oral. Seu pai estudou
pouco, só cursou até o primeiro ano
primário, mas era um bom contador
de histórias. A mãe, que aprendeu
a ler com uma tia, também contava
histórias e lia cordéis. “Ela escrevia
cartas incríveis. Então a palavra
sempre esteve presente, seja ela oral,
seja escrita. Isso foi muito forte na
minha casa”.
você?, pergunta a reportagem.
– Eu não sei bem como responder,
mas, para mim, eu não consigo
viver sem a palavra, sabe? É isso.
Não consigo viver sem. Por mais
difícil às vezes que chega a ser essa
relação, às vezes seria muito melhor
ter nascido sem ser poeta, mas ela
está embrenhada em você e ela é
você própria. Então é impossível se
desgarrar disso.
e participou de antologias no Brasil
Além dos troféus da premiação
e no exterior. Os primeiros poemas :a mulher virou homem o
nacional, duas estatuetas de um
foram escritos bem cedo, ainda na trabalho
pequeno jabuti, Cida ganhou 105
adolescência, e sua primeira obra foi e a desigualdade por baixo da
mil reais, e uma parte desse valor
lançada quando tinha 18 anos. “Mas saia: trouxa na cabeça camisa
ela doou ao PCdoB, partido ao qual
eu publiquei no fanzine da escola cáqui de mangas compridas
está filiada há cerca de 20 anos e pelo
com 14 anos. E já neste momento chapéu de palha quartinha de
qual se elegeu vereadora em Recife,
eu estava me juntando a outros cabaça e só
na eleição de 2020, com 3.697 votos.
colegas que escreviam e que depois
“Estou ansiosa, mas não assustada
com o desafio. Como Rosa de
se tornariam poetas importantes calça comprida por baixo da saia
na cidade”, lembra Cida Pedrosa, calça comprida por baixo da saia
Luxemburgo, mais uma mulher
cuja relação com a palavra poética calça comprida por baixo da saia
socialista que tenho como referência,
começou desde a infância, dentro
acredito que só se aprende a nadar
n Henrique de Eça
na água. E nadaremos. Nadaremos
de braçadas largas, para alcançarmos
mais dignidade para a classe trabalhadora”,
discursou a comunista, em
seu primeiro pronunciamento como
vereadora eleita.
Em seu mandato, tem defendido
pautas como a luta pela inclusão
de estudantes com transtornos de
aprendizagem, em defesa da agroecologia
e contra a gordofobia, a fome
e as mudanças climáticas. Além,
é claro, das reivindicações feministas,
movimento do qual sempre fez
parte. Um dos projetos de lei que
apresentou, por exemplo, institui a
obrigatoriedade de contratação paritária
de gênero para artistas individuais
nos ciclos festivos de Recife.
“Apesar de serem maioria da
população, as mulheres ainda são minoria
nos espaços de representação,
antes de os homens brancos
chegarem com suas
naus nauseabundas e nulas a
terra era vasta e nós
vivíamos livres
livres e vastos
livres e vastos
livres e vastos
não éramos vestais
éramos a vida o verbo a vastidão
o verbo a voz e a vastidão
o verbo
o verbo
o verbo
sem necessidade de deus
como na política e em cargos de
chefia nas empresas. A cultura é o
retrato de uma sociedade, dos seus
comportamentos, práticas e conhecimentos.
Assim, a cena cultural
também é um importante espaço
de representação”, argumentou
a vereadora, na justificativa que
acompanha o projeto de lei.
Por questões de gênero, a
reportagem a pergunta se prefere
ser chamada de poeta ou poetisa.
Ambas as palavras são admitidas
pela língua e estão registradas no
dicionário, mas ao segundo termo foi
atribuída uma carga semântica pejorativa,
como se estivesse vinculado
a uma criação literária de menor
valor estético, e algumas escritoras
passaram a preteri-lo.
Mas, para Cida Pedrosa, não há
problema algum em ser poetisa. “Eu
acho as duas coisas bacanas. Por
muito tempo eu disse que era só
poeta. Aí depois eu compreendi que
quando as mulheres se chamavam
de poetisa e todo mundo colocava
isso como uma coisa menor, essas
eram as mulheres que tiveram as
primeiras falas. E do mesmo jeito que
a gente tenta reorganizar a palavra
presidenta, eu acho que a gente tem
de reestruturar a palavra poetisa
também. Então eu me sinto à vontade
com as duas”, afirma.
No meio político, o mais complicado
tem sido lidar com os conservadores
como se tudo estivesse
bem. Uma convivência cotidiana
que requer aprendizado, em seu
trabalho na Câmara Municipal
de Recife. “Aguentar os conservadores
darem tapinha nas minhas
costas e fazer de conta que está
tudo bem, isso é o mais difícil
para mim, que sou poeta. Mas estou
aprendendo”, revelou a escritora.
Neste momento, sua maior
expectativa é conseguir afastar
do poder o presidente Bolsonaro.
“Esse governo é, na verdade, algo
que retira qualquer possibilidade
de projeto de felicidade. É você
trabalhar o dia inteiro sabendo
que cada noite um direito seu vai
ser cortado”. Na literatura, o que
ela quer mesmo é poder se dedicar
à criação. “Essa falta de tempo
para escrever está me matando”,
disse Cida Pedrosa, antes de encerrarmos
nossa conversa e ela
seguir para a sua mesa literária.
fugidos ou não de casa grande
carregando no coração um tambor
na boca o sopro de ventanias
nas mãos a virtuose escondida
em dias e dias de trabalho nas
pernas as cordas tesas e tensas
de mil léguas andadas longe da
pátria os negros se espalharam nas
paragens sertanejas fazendo parte
da paisagem incrustados nas serras
e serrotes mesmo que as fotografias
não registrem e as línguas brancas
esqueçam seus nomes
mesmo que os brancos não queiram
mesmo que os brancos não queiram
mesmo que os brancos não queiram
vivem
vivem
vivem
e fazem
e fazem
e fazem
Revista Elas por Elas - maio 2022
127
Poucas e boas
Podcasts
Internet
Lugar de mulher é
Praia dos Ossos
Uma produção da jornalista Branca
também na Ciência!
Viana (Rádio Novelo) ganhou notoriedade
pelo cuidadoso trabalho de
Nilma Lino Gomes é vencedora do 3ª Prêmio
“Carolina Bori Ciência & Mulher”
narrar vida e morte de Âgela Diniz,
brutalmente assassinada pelo então
A professora Nilma Lino Gomes, da Faculdade de
namorado, Doca Street, em dezembro
de 1976, na Praia dos Ossos,
Educação (FaE) da UFMG, foi a vencedora na área de
Humanidades do 3º Prêmio Carolina Bori Ciência
em Búzios (RJ). Doca, um notório
& Mulher, iniciativa da Sociedade Brasileira para o
homem branco e rico que, apesar de
Progresso da Ciência (SBPC). O prêmio foi entregue
réu confesso, foi considerado vítima
no dia 11 de fevereiro, data escolhida por ser o Dia
pelo judiciário à época, porque sua
Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência,
masculinidade teria sido ferida. O
instituído pela Organização das Nações Unidas para
podcast é composto por 8 episódios,
a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
com duração média de uma hora cada.
Nilma Lino Gomes, que também foi ministra das
A primeira minissérie original da
Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos
Rádio Novelo.
no governo da ex-presidente Dilma Rousseff, tem
www.radionovelo.com.br/
sua trajetória marcada pelas lutas emancipatórias.
praiadosossos/
Em 2019, recebeu o título de professora emérita da
UFMG, ou seja, se aposentou em posição honrosa,
mantendo seu título de professora. Na ocasião, ela
Mamilos - Diálogos de
disse que sua trajetória foi construída com a ajuda
peito aberto
de muitas pessoas e de muitas vozes anteriormente
Podcast semanal que busca nas redes
sociais os temas mais debati-
silenciadas. “Trago no sangue e na memória a dor do
açoite e da chibata. Reconheço a presença do racismo,
dos (polêmicos) e traz para mesa
por mais disfarçado e ambíguo que ele possa ser.
um aprofundamento do assunto
Trago a indignação contra a injustiça, a raiva contra
com empatia, respeito, bom humor
a opressão, o desejo de mudança e uma corporeidade
e tolerância. Apresentado por Juliana
Wallauer e Cris Bartis, a pro-
negra insubmissa.” mercado e comunidade.
Com informações do portal da UFMG
dução do B9 Company traz diversos
argumentos e visões para que os
ouvintes formem opinião com mais
Paulina Chiziane ganha
embasamento.
o Prêmio Camões
www.mamilos.b9.com.br
O Prêmio Camões, considerado o mais importante
da língua portuguesa, teve a escritora moçambicana Calma, gente horrível!
Paulina Chiziane como vencedora na 33ª edição, Como descrevem as próprias idealizadoras,
o podcast é de reclamações
realizada no ano passado (2021). Aos 66 anos, ela
é a primeira mulher africana a vencer o prêmio e semanais. Quatro mulheres, quatro
personalidades diferentes. Ana
também foi a primeira mulher a publicar um livro
em Moçambique, a obra “Balada de Amor”, em 1990. Roxo, Rita Alves, Tati Fadel e Malu
Para quem quiser saber mais sobre a trajetória de Rodrigues debatem com bom humor
Paulina, é só conferir a edição do Programa Extra-Classe, e muito deboche temas como política,
comportamento, sociedade, ciên-
produzido pelo Sinpro Minas, em que a escritora
compartilhou histórias, contos, reflexões e poemas! cia, cultura e outros assuntos.
Disponível no canal do Sinpro Minas no YouTube.
www.instagram.com/
www.youtube.com/Sinprominas
calmagentehorrivel
128 Revista Elas por Elas - maio 2022
https://votelgbt.org/flix
Desenvolvido pelo coletivo #VoteLGBT,
o LGBTFlix é um streaming
com um catálogo de filmes
com temática LGBT+. Com 250
produções no acervo, o serviço
gratuito é focado em curta-metragens,
mas possui algumas séries
e outras produções do gênero
disponíveis. Também é possível
filtrar o conteúdo por assunto,
como religião, sexo, família,
entre outros.
@planetaella
Perfil do Instagram do projeto
Ella - Rede Internacional de Feminismos.
Iniciado em 2014 como
um encontro de mulheres de
11 países, hoje o ELLA conecta a
mais de 30 países. No perfil, publicações
diversos tipos de conteúdo
sobre as temáticas em
torno dos feminismos.
@listapreta
Perfil do Instagram da plataforma
que celebra cultura,
identidade negra, estima e
representatividade.
Livros
Audiovisual
Confinada
Autoria: Triscila Oliveira e Leandro Assis
Editora: Todavia
A obra, produzida pela roteirista Triscila Oliveira e o ilustrador
Leandro Assis, foi lançada ano passado pela editora Todavia.
A criação nasceu como história em quadrinhos online,
que começou a ser divulgada após o início da pandemia da
Covid-19. Racismo, desigualdades e privilégio branco marcam
a narrativa.
Torrente ancestral, vidas negras importam?
Autoria: Juliana Souza
Editora: Matrioska Editora
“A obra Torrente ancestral, vidas negras importam?, de Juliana
Souza, é um convite à reflexão e uma crítica social às condições
de vida e existência da população negra. Mesclando relatos
de sua própria biografia a fatos históricos e cotidianos,
a autora provoca os leitores a novas práticas e questionamentos
ao longo de quatro capítulos escritos com uma linguagem
leve, fluida e muito peculiar.”
Uma história possível
Autoria: María Baranda
Editora: Olho de Vidro
“Publicado na Espanha em 2010 e agora traduzido para o português,
a escritora desenvolve uma narrativa em que o real e
o imaginário se entrelaçam de maneira poética e instigante,
levando o leitor para dentro do universo que foi ou poderia
ter sido o de Frida Kahlo. Na interseção entre realidade e
ficção, a autora explora o mundo que a pintora mexicana,
desde a infância e adolescência, buscou representar de modo
muito particular em sua arte.”
A Guerra não tem rosto de mulher
Autoria: Svetlana Aleksiévitch
Editora: Companhia das Letras
“A história das guerras costuma ser contada sob o ponto de
vista masculino. Trata-se, porém, de um equívoco e de uma
injustiça. Se em muitos conflitos as mulheres ficaram na
retaguarda, em outros estiveram na linha de frente. Quase
um milhão de mulheres lutaram no Exército Vermelho durante
a Segunda Guerra Mundial, mas essa história nunca
foi contada. Svetlana Aleksiévitch deixa que as vozes dessas
mulheres ressoem de forma angustiante e arrebatadora,
em memórias que evocam frio, fome, violência sexual e a
sombra onipresente da morte.”
Curta Travessia - 2018
Safira Moreira
“Travessia’’ é o curta que realizei a partir
da memória estilhaçada, fruto do apagamento
histórico da população negra
no Brasil. Por eu ser agora uma mulher
negra com uma câmera na mão e muitos
sonhos no peito, que o curta se fez.
Foi no gesto de garimpar fotografias de
mulheres negras nas feiras de antiguidade
do Rio de Janeiro que encontrei a
fotografia que abre o filme, todas as fotos
que encontrei nesse espaço provinham
de álbuns de famílias brancas, logo, elas
refletiam esse apagamento.”
Premiado em diversos festivais nacionais
e internacionais.
www.vimeo.com/moreirasafira
Série Incontáveis
Dividida em seis episódios, a série tematiza
a violência da ditadura contra
as mulheres, a população LGBTQIA+, a
população negra e moradora de favelas,
os povos indígenas, os estudantes e educadores
e os trabalhadores do campo e da
cidade. Cada episódio é narrado por uma
pessoa que viveu os impactos da ditadura,
representando os incontáveis sujeitos
coletivos atingidos e nem sempre
lembrados nas narrativas tradicionais.
Produzida pela Comissão da Memória
e Verdade da URFJ (@cmv.ufrj) tem direção
de José Sérgio Leite Lopes, edição de
Rubens Takamine e roteiro de cada episódio
feito pelos pesquisadores Felipe Magaldi,
Lucas Pedretti, Luciana Lombardo
e Virna Plastino.
Canal do Youtube/Fórum de Ciência e
Cultura da UFRJ.
Revista Elas por Elas - maio 2022
129
Retrato
O retrato desta edição é uma
homenagem à força, canto e legado
da grande rainha da música
popular brasileira: Elza Soares.
Foram 91 anos de uma história que
seguirá inspirando gerações e um
canto eterno que nos dá fôlego para
seguir cultivando esperanças.
*23/06/1930
+20/01/2022
130 Revista Elas por Elas - maio 2022
n ATEBEMG
Somos Todos Iguais
Elza Soares
Ouça Somos Todos Iguais
Eu era tão pequenina
Já me dizia papai
Filha não fique triste
Aqui somos todos iguais
Na guerra do dia a dia
O homem é bicho feroz
Mas sempre acaba vencendo
Aquele que é mais veloz
Nos campos de batalha
Morre o homem, morre a flor
Misturam todos os sangues
Mas o pranto não tem cor!!!
Revista Elas por Elas - maio 2022
131
f y t i sinprominas
Filiado à Fitee, Contee e CTB
www.sinprominas.org.br
132 Revista Elas por Elas - maio 2022 MAIO 2022
NÚMERO 13