12.09.2016 Views

Revista Elas por elas 2016

A revista sobre gênero Elas por Elas foi criada, em 2007, com o objetivo de dar voz às mulheres e incentivar a luta pela emancipação feminina. A revista enfatiza as questões de gênero e todos os temas que perpassam por esse viés. Elas por Elas traz reportagens sobre mulheres que vivenciam histórias de superação e incentivam outras a serem protagonistas das mudanças, num processo de transformação da sociedade. A revista aborda temas políticos, comportamentais, históricos, culturais, ambientais, literatura, educação, entre outros, para reflexão sobre a história de luta de mulheres que vivem realidades diversas.

A revista sobre gênero Elas por Elas foi criada, em 2007, com o objetivo de dar voz às mulheres e incentivar a luta pela emancipação feminina. A revista enfatiza as questões de gênero e todos os temas que perpassam por esse viés. Elas por Elas traz reportagens sobre mulheres que vivenciam histórias de superação e incentivam outras a serem protagonistas das mudanças, num processo de transformação da sociedade. A revista aborda temas políticos, comportamentais, históricos, culturais, ambientais, literatura, educação, entre outros, para reflexão sobre a história de luta de mulheres que vivem realidades diversas.

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

COMPORTAMENTO<br />

Pelo direito de<br />

ser quem sou<br />

pág<br />

30<br />

SUPERAÇÃO<br />

Protagonistas de<br />

uma outra história<br />

pág<br />

60<br />

RACISMO<br />

Violência simbólica<br />

e negligência<br />

pág<br />

72<br />

SAÚDE<br />

Intimidade<br />

ameaçada<br />

pág<br />

80


Como te dizer<br />

homem<br />

que não te necessito?<br />

Não posso cantar a liberação feminina<br />

se não te canto<br />

e te convido a descobrir liberações comigo.<br />

Não me agrada a gente que se engana<br />

dizendo que o amor não é necessário<br />

-"tenha medo, eu tremo"<br />

Há tanto novo que aprender,<br />

formosos homens da caverna a resgatar,<br />

novas maneiras de amar que ainda não inventamos.<br />

Em nome próprio declaro<br />

que gosto de me saber mulher<br />

frente a um homem que se sabe homem,<br />

que sei de ciência certa<br />

que o amor<br />

é melhor que as multi-vitaminas,<br />

que o casal humano<br />

é o princípio inevitável da vida,<br />

que <strong>por</strong> isso não quero jamais liberar-me do homem;<br />

o amo<br />

com todas suas debilidades<br />

e gosto de compartilhar sua teimosia<br />

todo este amplo mundo<br />

onde ambos somos imprescindíveis.<br />

Não quero que me acusem de mulher tradicional<br />

mas podem me acusar<br />

tantas como quantas vezes queiram<br />

de mulher.<br />

NOVA TESE FEMINISTA<br />

(Gioconda Belli, tradução de Jeff Vasques)


Queridas mulheres de luta<br />

É lamentável que a primeira mulher<br />

eleita para a Presidência do Brasil tenha<br />

sido afastada injustamente <strong>por</strong> homens<br />

corruptos e ligados a forças que atuam<br />

contra os avanços democráticos em<br />

toda a América Latina. Conforme descrevem<br />

feministas em manifesto contra<br />

o golpe em curso no país, a solidez de<br />

uma democracia é também medida pela<br />

igualdade de gênero.<br />

O aprofundamento da disputa política<br />

no Brasil, desde o desfecho das<br />

eleições presidenciais, desencadeou<br />

uma forte onda conservadora e retrógrada<br />

no país. Se na democracia é<br />

preciso lutar para que as mulheres<br />

sejam tratadas de forma igualitária em<br />

todas as dimensões do cotidiano, imaginem<br />

num contexto em que o Estado<br />

de Direito está sob ameaça. É nessa<br />

conjuntura política que o Sindicato dos<br />

Professores edita a nona edição da revista<br />

<strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong>.<br />

O Sinpro Minas, considerando a<br />

composição majoritariamente feminina<br />

da categoria, tem im<strong>por</strong>tante papel na<br />

defesa dos direitos das mulheres, não<br />

só no âmbito do trabalho, mas em<br />

todas as questões que envolvem as<br />

pautas de lutas e empoderamento da<br />

mulher. Nesse sentido, a revista <strong>Elas</strong><br />

<strong>por</strong> <strong>Elas</strong> é um im<strong>por</strong>tante contribuição<br />

na luta pela emancipação feminina.<br />

Avançar no sentido de maior igualdade<br />

de gênero em nossa sociedade<br />

requer mudanças profundas. A começar<br />

pela mídia tradicional que reproduz estereótipos<br />

machistas. Em estudo sobre<br />

como os discursos midiáticos têm representado<br />

a presidenta eleita Dilma<br />

Rousseff pode-se reconhecer atitudes<br />

que ferem o princípio de igualdade de<br />

gênero, que atingem não só as mulheres<br />

na política, mas em todas as esferas.<br />

Nesse cenário de retrocessos, o debate<br />

sobre as questões de gênero é um<br />

tema de grande relevância na luta em<br />

defesa da democracia brasileira. E a<br />

educação não pode se furtar a esse<br />

debate. Mesmo com todos os desafios<br />

e a pressão de grupos conservadores,<br />

a discussão em torno do assunto, dentro<br />

ou fora dos muros da escola, é inevitável.<br />

Criar no ambiente escolar um espaço<br />

mais acolhedor, que respeite as<br />

diferenças, é um dos caminho para o<br />

combate à violência de gênero.<br />

Nesse contexto, a <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> traz<br />

na capa a foto de uma mulher trans. Libernina<br />

tem uma história de vida que se<br />

repete todos os dias com crianças e<br />

adolescentes que não se identificam<br />

com o sexo que nasceu. Essa edição<br />

também destaca outras histórias de superação<br />

de mulheres que enfrentam<br />

grandes barreiras na luta <strong>por</strong> direitos.<br />

A desigualdade de gênero vem conjugada<br />

à desigualdade de raça/cor,<br />

classe, geração e orientação sexual e se<br />

expressa no cotidiano das mulheres.<br />

Atuar na melhoria das condições de<br />

vida das mulheres na sociedade significa<br />

incor<strong>por</strong>ar medidas que impulsionem e<br />

contribuam para a construção de novas<br />

relações sociais de equidade de gênero.<br />

Acreditamos que só o debate e a organização<br />

da sociedade será capaz de impulsionar<br />

a nossa luta, e de garantir a<br />

presença das mulheres nos espaços de<br />

poder e de decisão.<br />

Boa leitura!<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

3


POLÍTICA<br />

Agressões de gênero<br />

CAPA<br />

Pelo direito de<br />

ser quem sou<br />

Pessoas trans lutam<br />

contra a falta de<br />

políticas públicas<br />

Pág 12<br />

Pág 30<br />

EDUCAÇÃO<br />

Gênero na escola<br />

VIOLÊNCIA<br />

10 anos da Lei Maria<br />

da Penha<br />

ARTIGO<br />

Violência contra a mulher<br />

na internet<br />

Pág 16<br />

Pág 44<br />

Pág 54<br />

TRABALHO<br />

Mulheres na tecnologia<br />

SUPERAÇÃO<br />

Protagonistas<br />

de uma outra<br />

história<br />

Pág 24<br />

Pág 60<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong>


RACISMO<br />

Violência simbólica e negligência<br />

HISTÓRIA<br />

Lélia Gonzalez: mulher<br />

negra na história do Brasil<br />

Pág 72<br />

Pág 102<br />

COMPORTAMENTO<br />

Intimidade ameaçada<br />

BELEZA<br />

Depilação feminina<br />

PERFIL<br />

Conceição Rosière<br />

A mulher que dá vida<br />

aos bonecos<br />

Pág 80<br />

Pág 88<br />

CULTURA<br />

Um novo olhar sobre o cinema<br />

Pág 108<br />

POUCAS E BOAS<br />

Pág 111<br />

POUCAS E BOAS<br />

INTERNET<br />

LIVROS<br />

FILMES Pág 112<br />

Pág 96<br />

RETRATO<br />

Pág 114<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong>


Departamento de Comunicação do Sinpro Minas: comunicacao@sinprominas.org.br<br />

Diretores responsáveis: Aerton Silva, Clarice Barreto e Gilson Reis;<br />

Editora/Jornalista responsável: Débora Junqueira (MG05150JP);<br />

Redação: Cecília Alvim (MG09287JP), Denilson Cajazeiro (MG09943JP),<br />

Nanci Alves (MG003152JP e Saulo Martins (MG15509JP);<br />

Programação visual e Diagramação: Mark Florest;<br />

Design Gráfico: Fernanda Lourenço;<br />

Revisão: Aerton Silva<br />

Foto capa: Libernina Andrade - Foto: Mark Florest<br />

Conselho Editorial: Antonieta Mateus, Clarice Barreto, Lavínia Rodrigues, Maria Izabel Bebela Ramos,<br />

Marilda Silva, Liliani Salum Moreira, Luliane Linhares, Soraya Abuid, Terezinha Avelar e Valéria Morato.<br />

Impressão: EGL-Editores Gráficos Ltda - Tiragem: 2.000:<br />

Distribuição gratuita: Circulação dirigida<br />

REVISTA ELAS POR ELAS<br />

PUBLICAÇÃO DO DEPARTAMENTO DE<br />

COMUNICAÇÃO DO SINPRO MINAS<br />

ANO X - Nº 9 - JUNHO DE <strong>2016</strong><br />

ACESSE AS EDIÇÕES ANTERIORES EM<br />

www.sinprominas.org.br<br />

<strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>elas</strong> - nº 8<br />

Diretoria Gestão <strong>2016</strong>/2020<br />

Adelmo Rodrigues de Oliveira, Aerton de Paulo Silva, Albanito Vaz Júnior, Alessandra Cristina Rosa, Alexandre Durann Matos,<br />

Alina Machado Moreira, Altamir Fernandes de Sousa, Ângela Maria da Silva Gomes, Ângelo Filomeno Palhares Leite, Antonieta<br />

Shirlene Mateus, Antônio Marcos das Chagas, Aparecida Gregório Evangelista da Paixão, Arnaldo Oliveira Júnior, Beatriz Claret<br />

Torres, Braulio Pereira dos Santos, Bruno Burgarelli Albergaria Kneipp, Camillo Rodrigues Júnior, Carla Fenícia de Oliveira, Carlos<br />

Afonso de Faria Lopes, Carlos Magno Machado, Carlos Roberto Schutte Junior, Carolina Azevedo Moreira, Cecilia Maria<br />

Vieira Abrahão, Celina Alves Padilha Arêas, Cid Indalécio Moreira Alves, Clarice Barreto Linhares, Claudia Nunes dos Santos<br />

Silva, Clédio Matos de Carvalho, Clovis Alves Caldas Filho, Décio Braga de Souza, Diogo Oliveira, Edson de Oliveira Lima, Edson<br />

de Paula Lima, Eduardo Arreguy Campos, Eliana Assunção Franco Codignole, Fábio dos Santos Pereira, Fabio Marinho dos<br />

Santos, Fátima Amaral Ramalho, Fernando Dias da Silva, Fernando Lucio Correia, Filipe Luis dos Santos, Francine Fernandes<br />

Cruz, Franz Lima Petrucelli, Geraldo Fabio Alves de Souza, Gilson Luiz Reis, Gisele Andrea Satrapa Oliveira, Grace Marisa Miranda<br />

de Paula, Guilherme Caixeta Borges, Haida Viviane Palhano Arantes, Handerson Correa Gomes, Heber Paulino Pena,<br />

Hélcia Amélia de Menezes Quintão Simplício, Helena Vicentina Flores, Heleno Célio Soares, Henrique Moreira de Toledo Salles,<br />

Hermes Honório da Costa, Hugo Gonçalves Soares, Humberto de Castro Passarelli, Idelmino Ronivon da Silva, Inez Grigolo<br />

Silva, Isabela Maria Oliveira Catrinck, Jaderson Teixeira, Jaqueline Rodrigues Gouveia Gomes, Jefferson Costa Guimarães,<br />

João Francisco dos Santos, Jones Righi de Campos, José Carlos Padilha Arêas, Josiana Pacheco da Silva Martins, Josiane<br />

Soares Amaral Garcia, Juvenal Lima Gomes, Kelly Angelina dos Reis Oliveira, Kenya de Jesus Sodre, Leila Lucia Gusmão de<br />

Abreu, Leonardo Alves Rocha, Lilian Aparecida Ferreira de Melo, Liliani Salum Alves Moreira, Luiz Antonio da Silva, Luiz Carlos<br />

da Silva, Luiz Claudio Martins Silva, Luliana de Castro Linhares, Marco Antonio Ramos, Marcos Antonio de Oliveira, Marcos<br />

Gennari Mariano, Marcos Paulo da Silva, Marcos Vinícius Araújo, Maria Célia Silva Gonçalves, Maria Cristina Teixeira do Vale,<br />

Maria da Conceição Miranda, Maria da Glória Moyle Dias, Maria Elisa Magalhães Barbosa, Maria Luiza de Castro, Mariana<br />

Helena Moreira Nascimento, Marilda Silva, Marilia Ferreira Lopes, Mario Roberto Martins de Souza Silva Braga, Marta Betânia<br />

Pereira Pimenta, Mateus Júlio de Freitas, Messias Simão Telecesqui, Miguel Jose de Souza, Miriam Fátima dos Santos, Moises<br />

Arimateia Matos, Mônica Junqueira Cardoso Lacerda, Nalbar Alves Rocha, Nelson Luiz Ribeiro Da Silva, Newton Pereira de<br />

Souza, Orlando Pereira Coelho Filho, Paola Notari Pasqualini, Patricia de Oliveira Costa, Petrus Ferreira Ricetto, Pitágoras<br />

Santana Fernandes, Ricardo de Albuquerque Guimarães, Robson Jorge de Araújo, Rockefeller Clementino da Silva, Rodrigo<br />

Rodrigues Ferreira, Rodrigo Souza de Brito, Rogerio Helvídio Lopes Rosa, Rossana Abbiati Spacek, Rozana Maris Silva Faro,<br />

Sandra Lúcia Magri, Sandra Maria Nogueira Vieira, Sebastião Geraldo de Araújo, Silvio Rodrigo de Moura Rocha, Simone Esterlina<br />

de Almeida Miranda, Siomara Barbosa Candian Iatarola, Sirlane Zebral Oliveira, Sirley Trindade Vilela Lewis, Tarcisio<br />

Fonseca da Silva, Telma Patrícia de Moraes Santos, Teodoro José Eustáquio de Oliveira, Terezinha Lúcia de Avelar, Thais Claudia<br />

D’Afonseca da Silva, Uldelton Paixão Espírito Santo, Umbelina Angélica Fernandes, Valéria Peres Morato Gonçalves, Vera Cruz<br />

Spyer Rabelo, Vera Lucia Alfredo, Virgínia Ferreira Ramos e Wellington Teixeira Gomes,<br />

SINDICATO DOS PROFESSORES DO ESTADO DE MINAS GERAIS<br />

SEDE: Rua Jaime Gomes, 198 - Floresta - CEP: 31015.240<br />

Fone: (31) 3115 3000 - Belo Horizonte - www.sinprominas.org.br<br />

SINPRO CERP - Centro de Referência dos Professores da Rede Privada<br />

Rua Tupinambás, 179 - Centro - CEP: 30.120-070 - BH - Fone: (31) 3274 5091<br />

sinprocerp@sinprominas.org.br<br />

REGIONAIS:<br />

Barbacena: Rua Silva Jardim, 425 - Bairro Boa Morte - CEP:36.201-004 - Fone: (32) 3331-0635; Cataguases:<br />

Rua Major Vieira, 300 - sala 04 - Centro - CEP: 36.770-060 - Fone: (32) 3422-1485; Coronel Fabriciano: Rua<br />

Moacir D'Ávila, 45 - Bairro dos Professores - CEP: 35.170-014 - Fone: (31) 3841-2098; Di vinópolis: Av. Minas<br />

Gerais, 1.141 - Centro - CEP: 35.500-010 - Fone: (37) 3221-8488; Governador Valadares: Rua Benjamin Constant,<br />

653 - Térreo - Centro - CEP: 35.010-060 - Fone: (33) 3271-2458; Montes Claros: Rua Januária, 672 -<br />

Centro - CEP: 39.400-077 - Fone: (38) 3221-3973; Paracatu: Rua Olhos D’água, 92 - Centro - CEP: 38.600-<br />

000 - Fone: (38) 3672-1830; Patos de Minas: Rua Tenente Bino, 32 - Sala 408 - Centro - Condomínio Cristina<br />

- CEP: 38.700-108; Ponte Nova: Av. Dr. Otávio Soares, 41 - salas 326 e 328 - Palmeiras - CEP: 35.430-229 -<br />

Fone: (31) 3817-2721; Pouso Alegre: Rua Dom Assis, 241 - Centro - CEP: 37.550-000 - Fone: (35) 3423-3289;<br />

Sete Lagoas: Rua Vereador Pedro Maciel, 165 (A) - Bairro Nossa Senhora das Graças - CEP: 35.700-477 -<br />

Fone: (31) 3776-5864; Teófilo Otoni: Rua Pastor Hollerbarch, 187 - sala 201 - Grão Pará - CEP: 39.800-148 -<br />

Fone: (33) 3523-6913; Uberaba: Rua Alfen Paixão, 105 - Mercês - CEP: 38.060-230 - Fone: (34) 3332-7494;<br />

Uberlândia: Rua Olegário Maciel, 1212 - Centro - CEP: 38.400-086 - Fone: (34) 3214-3566; Varginha: Av. Doutor<br />

Módena, 261 - Vila Adelaide - CEP: 37.010-190 - Fone: (35) 3221-1831.<br />

6 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong>


Tantas mulheres, tantas histórias...<br />

Mulheres anônimas e guerreiras...<br />

Outras reconhecidas somente após<br />

sua morte... Assim se fez e se faz a história<br />

humana, com diferentes almas femininas<br />

que não desistiram da luta da vida, apesar<br />

das adversidades, que encontraram caminhos<br />

revolucionários e linguagens de<br />

esperança para fazer a diferença no tempo<br />

e lugar em que viveram e vivem e que nos<br />

inspiram até hoje a seguir acreditando.<br />

No ensaio fotográfico “Mulheres cabulosas<br />

da história”, lançado em março, <strong>por</strong><br />

ocasião do Dia Internacional da Mulher,<br />

43 mulheres de diferentes nacionalidades<br />

e realidades foram representadas<br />

<strong>por</strong> jovens do Levante Popular da Juventude<br />

de Belo Horizonte. O projeto propõe<br />

uma releitura fotográfica de personalidades<br />

femininas da história mundial<br />

comprometidas com a construção de<br />

uma nova sociedade. "Queremos que as<br />

mulheres de hoje se inspirem e se sintam<br />

encorajadas a provocar novas transformações<br />

na sociedade atual", disse a<br />

fotógrafa Isis Medeiros.<br />

A escolha das mulheres que seriam<br />

representadas e a produção do ensaio foi<br />

feita de forma colaborativa. As jovens se<br />

identificaram fisicamente com as personalidades<br />

e ajudaram na pesquisa de<br />

informações sobre cada uma d<strong>elas</strong>. As<br />

fotos pretendem reproduzir a mesma<br />

postura, olhar e direção das personalidades<br />

em fotos originais. Foram dois dias<br />

para fotografar todas <strong>elas</strong>. “As mulheres<br />

envolvidas no projeto participaram de<br />

forma efetiva, arrumando o cabelo e<br />

retocando a maquiagem uma da outra,<br />

ajudando na direção das imagens e na<br />

iluminação. O processo foi empoderador<br />

para todas nós!”, completou Isis. Das 43<br />

mulheres fotografadas, oito são negras e<br />

duas são indígenas. “Infelizmente, a<br />

maioria dessas mulheres tiveram seus<br />

nomes ignorados ao longo da história,<br />

em função do machismo e especialmente<br />

do racismo”, alertou a fotógrafa.<br />

Para Paula Silva, uma das organizadoras<br />

do projeto, as mulheres im<strong>por</strong>tantes e<br />

protagonistas na luta do povo não são<br />

devidamente retratadas na escola, nos<br />

livros de história e na mídia. “Suas histórias<br />

são apagadas pelo patriarcado para<br />

que as pessoas não tomem conhecimento<br />

do potencial revolucionário das mulheres<br />

na busca de uma sociedade livre de<br />

todas as opressões", afirmou Paula Silva,<br />

uma das organizadoras do projeto.<br />

Ao longo desta edição,<br />

você poderá se inspirar<br />

em algumas dessas<br />

mulheres que<br />

fizeram a história!<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

7


Luiza Mahim foi trazida<br />

como escrava ao Brasil,<br />

era quituteira e foi uma<br />

das lideranças na Revolta<br />

dos Malês (1835). Caso os<br />

malês tivessem sido vitoriosos,<br />

Luísa seria reconhecida<br />

como Rainha da<br />

Bahia.<br />

Na verdade, essa é Ana Carolina<br />

Vasconcelos, estudante<br />

que luta pela liberdade<br />

e reconhecimento das<br />

mulheres e <strong>por</strong> um feminismo<br />

cada vez mais representativo.


Vilma Espim foi a segunda<br />

mulher a se formar engenheira química<br />

em Cuba. Era do movimento<br />

estudantil e foi uma das líderes da<br />

tomada de poder pelo socialismo,<br />

em 1960. Fundou a Federação de<br />

Mulheres Cubanas, que oferecia<br />

formação para mulheres, inclusive<br />

política, o que fez com que Cuba<br />

fosse o segundo país no mundo com<br />

maior representação de mulheres<br />

em cargos eletivos.<br />

Mas, na verdade, essa é Nathália<br />

Ferreira, que luta <strong>por</strong> uma América<br />

Latina livre de injustiça e discriminação.


POLÍTICA<br />

POR DÉBORA JUNQUEIRA<br />

CADU GOMES<br />

Agressões de gênero<br />

Críticas à presidenta Dilma trazem à tona a misoginia da mídia


Estereótipos de gêneros sempre foram<br />

usados para tentar atingir a dignidade<br />

e a im<strong>por</strong>tância das mulheres,<br />

mas as agressões à presidenta Dilma<br />

Rousseff, principalmente na mídia, extrapolam<br />

todos os limites éticos. Desde<br />

o período de campanha até o seu afastamento<br />

da Presidência, Dilma tem<br />

sido vítima do machismo socialmente<br />

arraigado no Brasil.<br />

No artigo Governo Dilma e representações<br />

da mulher: uma análise<br />

das relações entre gênero, política e<br />

mídia no Brasil, a jornalista Piedra<br />

Magnani da Cunha, mestre em Comunicação<br />

e professora da UNA, analisa<br />

as formas de discursos midiáticos que<br />

têm representado a presidenta da República,<br />

Dilma Rousseff, em diversas<br />

passagens polêmicas de seu governo,<br />

nas quais pode-se reconhecer atitudes<br />

de defesa e rejeição ao princípio de<br />

igualdade de gênero dentro do quadro<br />

político. O artigo está disponível no<br />

livro Mulheres comunicam – Mediações,<br />

sociedade e feminismos (Editora<br />

Letramento).<br />

A autora cita que, antes mesmo que<br />

Dilma se tornasse a primeira mulher a<br />

ocupar o mais alto posto político do<br />

Brasil, em 2011, a imprensa já iniciava<br />

seus discursos tangenciando questões<br />

de gênero quanto as três prováveis candidatas<br />

à presidência: Dilma Rousseff,<br />

Marina Silva e Heloísa Helena, elencando<br />

preconceitos como autoritarismo, ausência<br />

de charme e falta de feminilidade.<br />

O jornalista Jorge Pontual, à época<br />

correspondente da Rede Globo em<br />

Nova York, publicou em sua página no<br />

twitter (em 24/08/2009) comentários<br />

machistas e desqualificadores da candidata<br />

Dilma que geraram enorme repercussão<br />

na rede: “Se você receber um e-<br />

mail intitulado ‘Fotos nuas de Dilma<br />

Rousseff nua’, não abra! Pode realmente<br />

conter fotos de Dilma Rousseff nua”.<br />

Outra violência, exemplificada no<br />

artigo, foi a vaia com palavrões recebida<br />

pela presidenta durante a Copa<br />

do Mundo de futebol, realizada no Brasil,<br />

nos meses de junho e julho de<br />

2014. Dilma se pronunciou após o<br />

ocorrido, ressaltando que não iria se<br />

deixar perturbar com as agressões verbais,<br />

afinal “nem mesmo a tortura a<br />

tirou do seu rumo”.<br />

A autora também cita a posse da<br />

presidenta da República para seu segundo<br />

mandato, no dia 1º de janeiro<br />

de 2015, quando a imprensa dedicouse<br />

a analisar se o “look” escolhido <strong>por</strong><br />

Dilma era apropriado para seu cargo<br />

e ocasião. “José Simão, em suas crônicas<br />

sobre a repercussão da posse da<br />

presidenta, destilou sua ironia ao comparar<br />

a roupa rendada usada <strong>por</strong> Dilma<br />

na cerimônia com uma capa de botijão<br />

de gás – montagem e comentário que<br />

rapidamente se tornaram virais nas redes<br />

sociais e sites noticiosos na web”,<br />

descreve a professora Piedra. O post<br />

com imagens lado a lado de Dilma e<br />

um botijão de gás com capa em tom e<br />

“<br />

Na posse, a imprensa<br />

dedicou-se<br />

a analisar se o<br />

“look”escolhido<br />

<strong>por</strong> Dilma era<br />

apropriado<br />

tecido similares teve 40 mil curtidas e<br />

20 mil compartilhamentos e centenas<br />

de comentários machistas.<br />

Uma das mais graves situações de<br />

desrespeito à presidenta Dilma aconteceu<br />

em julho de 2015, quando começaram<br />

a circular em várias cidades<br />

carros com adesivos, que apresentavam<br />

montagens gráficas nas quais o rosto<br />

da presidenta Dilma está inserido em<br />

um corpo feminino de pernas abertas,<br />

para serem colados em torno das bombas<br />

de combústivel de automóveis, de<br />

modo que, no ato de abastecimento<br />

desses veículos, houvesse clara alusão<br />

a uma penetração sexual.<br />

As imagens causaram um verdadeiro<br />

frisson nas redes sociais e foram exaustivamente<br />

compartilhadas e comentadas.<br />

“Os discursos contrapunham-se claramente:<br />

os que defendiam seu direito de<br />

protestar contra o governo e aqueles<br />

que denunciavam preconceito e abuso<br />

contra os direitos das mulheres. Na imprensa<br />

tradicional, o tema tornou-se<br />

pauta quando a secretária de Políticas<br />

para as Mulheres (SPM-PR), Eleonora<br />

Menicucci, abriu pedido de investigação<br />

ao Ministério Público Federal (MPF), à<br />

Advocacia-Geral da União (AGU) e ao<br />

Ministério da Justiça sobre sua produção,<br />

utilização e também comercialização<br />

pelo site Mercado Livre”, diz a autora.<br />

Banalização da violência<br />

A ONU Mulheres Brasil também<br />

divulgou uma nota afirmando ser “ultrajante<br />

e extremamente agressiva a<br />

apologia de violência sexual contra a<br />

presidenta da República, Dilma Rousseff,<br />

retratada em adesivos para automóveis,<br />

como expressão de misoginia<br />

e interpelação dos direitos humanos<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

11


de mulheres e meninas. Tal episódio<br />

se configura como violência política<br />

sem precedentes. Nenhuma discordância<br />

política ou protesto pode abrir margem<br />

e/ou justificar a banalização da<br />

violência contra as mulheres – prática<br />

patriarcal e sexista que lhes invalida a<br />

dignidade humana”, diz a nota.<br />

A professora Piedra Magnani ressalta<br />

que nos discursos destacados a<br />

respeito de Dilma não está em questão<br />

apenas a emergência de uma mulher<br />

que alcançou o cargo de presidente do<br />

país, mas de uma mulher aparentemente<br />

fora dos padrões de<br />

fe mi nilidade (constituídos <strong>por</strong> visões<br />

machistas e finalidades mercadológicas).<br />

“Nesses discursos, ela aparece<br />

como figura destoante, distinta do<br />

modelo ‘esperado’ de mulher, e parece<br />

não ser aceita pelo fato de encarnar<br />

uma dureza que não condiz com sua<br />

condição de mulher”, avalia.<br />

Outra agressão à presidenta Dilma<br />

na mídia foi o texto “Dilma e o sexo”,<br />

assinado pelo jornalista e editor da revista<br />

Época, João Luiz Vieira, em<br />

agosto de 2015. O autor atribui os<br />

problemas da presidenta Dilma Rousseff<br />

à “falta de erotismo”. Diante da repercussão<br />

negativa, o artigo foi retirado<br />

do ar no mesmo dia. No artigo O Machismo<br />

e a presidenta, publicado no<br />

site Blogueiras Feministas (27/08/15),<br />

a autora Máira Nunes comenta o texto<br />

da revista Época e avalia que a argumentação<br />

central do jornalista João<br />

Luiz Vieira é a de que para fazer o<br />

jogo político Dilma precisa se erotizar.<br />

Segundo Máira, na nossa sociedade<br />

machista e patriarcal, a política é considerada<br />

um jogo masculino e a<br />

maioria das estadistas passaram <strong>por</strong><br />

um processo de “masculinização” e<br />

“dessexualização”. “Dilma, que já era<br />

uma mulher considerada dura, fez um<br />

caminho inverso, abrandou-se ainda<br />

na campanha para tornar-se mais amigável<br />

ao eleitorado. Mas, pelo visto,<br />

não foi o suficiente. É preciso mais.<br />

Segundo a autora, é preciso não só<br />

expressar sua sexualidade, mas também<br />

ser desejável”, cita.<br />

Em abril de <strong>2016</strong>, a revista IstoÉ<br />

protagonizou mais um episódio da mídia<br />

golpista, estampou em sua capa uma<br />

foto da presidenta de costas com as<br />

Desrespeito: presidenta recebeu xingamentos na Copa do Mundo.<br />

12 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong>


mãos pra cima ao lado do título “Fora<br />

de controle”. No texto, Dilma é comparada<br />

à personagem da história conhecida<br />

como “Maria I, a louca”. A assessoria<br />

da presidenta, na época, disse que a re<strong>por</strong>tagem<br />

é “escandalosa, leviana, sexista,<br />

INTERNET<br />

covarde e risível” e afirmou que a Justiça<br />

seria acionada no caso.<br />

A re<strong>por</strong>tagem causou grande repercussão<br />

e protestos. O coletivo feminista<br />

ThinkOlga publicou um texto<br />

de repúdio e acusou a revista de estar<br />

praticando “GashLighting” que é uma<br />

violência emocional baseada na manipulação<br />

psicológica que leva a mulher<br />

e todos a seu redor acharem que ela<br />

enlouqueceu ou é incapaz.<br />

“Um acinte, um desrespeito e uma<br />

violência contra todas as mulheres a<br />

capa da revista IstoÉ, com um texto<br />

vexaminoso, utilizando todos os estereótipos<br />

e adjetivos machistas e misóginos,<br />

para desqualificar uma mulher<br />

na Presidência do Brasil!”, descreve a<br />

jornalista Ivana Bentes, no artigo Re<strong>por</strong>tagem<br />

da IstoÉ é um ataque às<br />

mulheres, divulgado na Internet<br />

(02/04/<strong>2016</strong>). Para Ivânia Pereira, secretária<br />

da Mulher Trabalhadora da<br />

Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras<br />

do Brasil (CTB) a pressão contra<br />

as mulheres no poder é muito mais intensa<br />

em relação aos homens. “Isso<br />

ocorre <strong>por</strong>que a luta <strong>por</strong> igualdade de<br />

gênero, assusta a elite. Então atacam<br />

as mulheres como se fossem responsáveis<br />

pelos erros dos homens”, explica.<br />

Bela, recatada e do lar<br />

“Depois da matéria execrável da IstoÉ,<br />

surgiu a re<strong>por</strong>tagem da revista<br />

Veja, Bela, recatada e do lar, como<br />

mais um exemplo de violência simbólica,<br />

com o recado de que o papel da mulher<br />

na política deve ser de apêndice ou<br />

enfeite”, opina Marlise Matos, professora<br />

da UFMG e coordenadora do Núcleo<br />

de Estudos e Pesquisa sobre a<br />

Mulher (Nepem). A re<strong>por</strong>tagem retrata<br />

Marcela Temer, esposa do presidente<br />

provisório da República, como o tipo<br />

de mulher que todas deveriam ser, ou<br />

seja, à sombra, nunca à frente, com<br />

papel reduzido na sociedade. A re<strong>por</strong>tagem<br />

também provocou manifestações<br />

contrárias calorosas nas redes sociais.<br />

Segundo Marlise, a presidenta Dilma<br />

é vítima de violência política sexista de<br />

uma sociedade preconceituosa e discriminatória.<br />

“O fato de ela ser mulher<br />

não foi determinante para tudo que<br />

ela passou, mas, com, certeza há um<br />

componente machista”, afirma. Marlise<br />

explica que, na política, se a mulher<br />

age com firmeza é considerada masculinizada,<br />

sendo chamada de general.<br />

Do contrário, carrega o estereótipo<br />

de conciliadora e dizem que vai ser<br />

atropelada pelo jogo político. “Estamos<br />

para construir esse lugar para a mulher<br />

na política que desliza entre esses dois<br />

estereótipos”, afirma.<br />

A professora vê um cenário sombrio<br />

na política, em que as conquistas feministas<br />

correm riscos. “A ruptura da democracia<br />

afeta todas as mulheres e em<br />

um ano eleitoral, o desafio é gigantesco.<br />

Estamos vendo a primeira mulher que<br />

chegou à Presidência perdendo seu<br />

cargo e isso vai ser um desestímulo para<br />

outras mulheres. O recado é de repúdio<br />

social às mulheres na política”, afirma<br />

“Um estupro político da democracia<br />

e do voto popular”, conceitua Marlise<br />

ao falar da condução do processo de<br />

impeachment da presidenta Dilma Rousseff<br />

sem um debate transparente e justo.<br />

Para ela, o bater pan<strong>elas</strong> nos protestos<br />

evidencia o simbolismo de quase um dizer:<br />

“volte para a cozinha, dona Maria.<br />

Parece” que tudo é um exercício de vingança<br />

e ódio, vindo do imaginário de<br />

que a mulher está usurpando um lugar<br />

que não é dela”, conclui.ø<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

13


Juana Azurduy de Padilla<br />

(General) representa as milhares<br />

de mulheres heroínas nas guerras<br />

de emancipação da colônia sul<br />

americana que pertencia à Espanha.<br />

Cristina Kirchner, expresidenta<br />

da Argentina, substituiu<br />

uma estátua de Cristovám<br />

Colombo, que ficava dentro da<br />

residência oficial do governo,<br />

<strong>por</strong> uma de Juana Azurduy, de<br />

nove metros de altura.<br />

Mas, na verdade, essa é Giovanna<br />

Abreu, estudante de Direito, que<br />

luta pelo fim do feminicídio.


Nísia Floresta foi escritora<br />

e educadora no século XIX. Escreveu<br />

vários livros, como: Direitos<br />

das mulheres e injustiças<br />

dos homens e Opúsculo Humanitário,<br />

esse último criticou o<br />

ensino nas escolas da Corte, onde<br />

meninas aprendiam regras de<br />

etiqueta e “bons” costumes. Ela<br />

fundou uma escola para ensinar<br />

línguas, ciências naturais e sociais,<br />

matemática e artes.<br />

Mas, na verdade, essa na foto é<br />

Aline Bentes, pediatra, que luta<br />

para que o trabalho das mulheres<br />

seja valorizado.


ISTOCK


EDUCAÇÃO<br />

POR DENILSON CAJAZEIRO<br />

Gênero na escola<br />

Assunto tem despertado resistência de conservadores, mas<br />

abordá-lo pode diminuir desigualdades e situações de violência<br />

As mulheres ainda realizam seis<br />

vezes mais os afazeres domésticos que<br />

os homens e, no mercado de trabalho,<br />

o salário d<strong>elas</strong> é 30% menor. Em uma<br />

lista com 83 países, o Brasil ocupa o<br />

triste quinto lugar com maior taxa de<br />

violência contra as mulheres, segundo<br />

levantamento feito pela Faculdade<br />

Latino-Americana de Ciências Sociais<br />

(Flacso), e em Minas Gerais, um caso<br />

de agressão é registrado a cada quatro<br />

minutos.<br />

Os dados, <strong>por</strong> si sós, seriam suficientes<br />

para que as questões de gênero<br />

fossem discutidas em todos os locais,<br />

sobretudo na sala de aula, um dos<br />

principais espaços formativos da sociedade.<br />

No entanto, há uma parcela<br />

da população que quer ver o assunto<br />

distante dos bancos escolares e não<br />

mede esforços para isso. O medo, segundo<br />

alegam, é de que os professores<br />

promovam uma “ideologia de gênero”<br />

que defenderia a liberdade sexual dos<br />

estudantes e deturpariam o conceito<br />

“<br />

A menção ao<br />

termo gênero<br />

chegou a ser excluída<br />

do PNE<br />

(Plano Nacional<br />

de Educação).<br />

de homem e mulher e o modelo tradicional<br />

de família.<br />

O assunto tem gerado há algum<br />

tempo bastante polêmica, e a menção<br />

ao termo chegou a ser excluída do<br />

Plano Nacional de Educação (PNE),<br />

aprovado há dois anos, <strong>por</strong> força do<br />

lobby da bancada religiosa no Congresso.<br />

O PNE é o documento que estabelece<br />

as diretrizes do setor para os<br />

próximos dez anos. Durante a tramitação<br />

da proposta, os parlamentares da<br />

Bíblia, como são conhecidos na Casa,<br />

pressionaram e o texto final do projeto<br />

excluiu qualquer menção à igualdade e<br />

identidade de gênero, orientação sexual<br />

e sexualidade nas escolas.<br />

No ano passado, o assunto ocupou<br />

o noticiário quando os planos estaduais<br />

e municipais tramitaram nas câmaras<br />

e assembleias legislativas país afora.<br />

Em Belo Horizonte, <strong>por</strong> exemplo,<br />

numa das audiências públicas, realizada<br />

a pedido do vereador Gilson Reis<br />

(PCdoB), manifestantes chegaram a<br />

espalhar os seguintes cartazes: “não<br />

mexam com nossas crianças!”, manifestação<br />

contra o direito de a escola<br />

atuar na promoção de condições iguais<br />

entre homens e mulheres. Em muitas<br />

cidades e estados, o cenário foi o mesmo,<br />

e a palavra gênero ficou de fora<br />

dos planos aprovados.<br />

Em outubro passado, a onda conservadora<br />

voltou sua artilharia para o<br />

Exame Nacional do Ensino Médio<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

17


(Enem). O teste, aplicado em todo o<br />

país, foi acusado de fazer doutrinação<br />

ideológica e de tratar de assunto “ultrapassado”<br />

<strong>por</strong> trazer, em uma de suas<br />

questões, uma frase da feminista Simone<br />

de Beauvoir, além de o tema da redação<br />

ter sido a persistência da violência contra<br />

a mulher. Tramitam, também, país afora,<br />

projetos de lei que querem proibir que<br />

o assunto seja tratado pelos professores.<br />

No Congresso Nacional, um dos projetos,<br />

de autoria do deputado federal Eros<br />

Biondini (PTB/MG), chega a prever<br />

prisão de até dois anos para o docente<br />

que falar sobre “ideologia de gênero”.<br />

Todos eles são tributários do chamado<br />

movimento “Escola sem partido”, criado<br />

em 2004 com o objetivo de combater<br />

o que considera um processo de contaminação<br />

político-ideológica das escolas<br />

brasileiras.<br />

Para Adla Betsaida, professora e<br />

pesquisadora da Faculdade de Educação<br />

da Universidade Federal de Minas Gerais<br />

(UFMG), as questões de gênero precisam<br />

ser abordadas em sala de aula como<br />

forma de garantir os direitos humanos.<br />

“Essa discussão sobre ideologia de gênero<br />

é manipulação da bancada religiosa.<br />

Basta olhar os dados de mulheres vítimas<br />

de violência, a discriminação salarial,<br />

entre outras desigualdades. Isso é um<br />

dado, um fato, que gera impactos para<br />

toda a sociedade, para o orçamento<br />

público. Todo mundo paga <strong>por</strong> isso”,<br />

critica a pesquisadora. Segundo ela, há<br />

certa confusão na sociedade ao achar<br />

que gênero diz respeito somente às<br />

mulheres. “Trata-se de meninos e meninas,<br />

homens e mulheres, de como<br />

somos fixados em modelos de masculinidade<br />

e feminilidades e como isso nos<br />

afeta”, pondera a educadora, para quem<br />

tais modelos são limitadores e geram<br />

perdas para toda a sociedade. “Existe<br />

uma socialização que joga meninos e<br />

meninas para áreas específicas. É visto<br />

como algo da natureza do homem e da<br />

mulher. Não existe isso, e todos somos<br />

fruto dessa discriminação. Há várias<br />

perdas para a sociedade, desde perdas<br />

físicas até de cérebros brilhantes. Há<br />

um impacto social enorme”.<br />

Um experimento feito <strong>por</strong> pesquisadores<br />

da Universidade de Tel Aviv<br />

confirma essa diferente socialização<br />

no ambiente escolar, em que os meninos<br />

estariam mais aptos para as Ciências<br />

Exatas, enquantos as meninas, para a<br />

área de Humanas. Alunos foram selecionados<br />

para fazer provas idênticas<br />

sobre uma série de matérias, e os exames<br />

foram corrigidos <strong>por</strong> dois grupos<br />

de professores: um que sabia o nome<br />

dos estudantes, e <strong>por</strong>tanto era capaz<br />

de deduzir o sexo deles, e outro que<br />

corrigiu as provas sem a identificação.<br />

O resultado mostrou que as correções<br />

foram desiguais, mesmo com respostas<br />

idênticas. Nas provas de Matemática e<br />

Ciências, os professores que conheciam<br />

os nomes deram notas maiores para<br />

os meninos, enquanto os da correção<br />

ISTOCK<br />

18 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong>


anônima deram notas maiores para as<br />

meninas. Os pesquisadores concluíram<br />

que, nos exames dessas áreas, os professores<br />

superestimaram a capacidade<br />

dos alunos, e subestimaram a das<br />

alunas, e que essa prática produziu um<br />

efeito duradouro, já que poucas meninas<br />

que participaram da pesquisa demonstraram<br />

interesse p<strong>elas</strong> Ciêncas Exatas<br />

quando estavam perto de se formar.<br />

ISTOCK<br />

Cultura do silêncio<br />

Na avaliação do professor Teodoro<br />

Zanardi, do programa de pós-graduação<br />

em Educação da Universidade<br />

PUC Minas, o atual modelo educacional<br />

privilegia a pessoa branca, heterossexual<br />

e cristã. “Esse é um padrão que<br />

tem sido trabalhado. Só que temos<br />

hoje na escola, abandonando a cultura<br />

do silêncio, aquele que não é branco,<br />

não é heterossexual e não é cristão.<br />

Essas pessoas devem ser ouvidas e respeitadas<br />

para transformar a realidade<br />

tanto escolar quanto social. A escola<br />

não tem o direito de silenciar a diferença,<br />

deve ser um espaço de cidadania”,<br />

aponta Zanardi.<br />

“<br />

O atual modelo<br />

educacional privilegia<br />

a pessoa branca,<br />

heterossexual<br />

e cristã.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

19


Muitas pesquisas também revelam<br />

que silenciar as diferenças pode resultar<br />

em abandono dos estudos ou em<br />

baixo desempenho escolar. Thiago<br />

Costa, do Centro de Luta pela Livre<br />

Orientação Sexual de Minas Gerais,<br />

sabe bem disso. Quando jovem, evitou<br />

<strong>por</strong> vezes ir à escola com medo de sofrer<br />

algum tipo de violência. “Várias<br />

vezes, fingi para minha mãe que estava<br />

doente para não ir à escola, para não<br />

ser ridicularizado ou apanhar na saída,<br />

<strong>por</strong>que era isso que eu vivia. Então,<br />

não é só dizer que a escola não está<br />

preparada e não acolhe. Ela faz pior<br />

do que isso e chega a expulsar, em função<br />

do ambiente de imposição de com<strong>por</strong>tamentos”,<br />

relata.<br />

Situação semelhante vivenciou Maria<br />

Catarina, quando estava no ensino médio.<br />

Na época, ela passou a se identificar<br />

como mulher trans e, a partir de então,<br />

começaram as situações de violência<br />

no ambiente escolar. “Eu nunca tinha<br />

tirado uma nota vermelha, mas aí minhas<br />

notas começaram a cair <strong>por</strong>que<br />

os professores e colegas me maltratavam.<br />

Meus colegas começaram a me<br />

maltratar principalmente quando os<br />

professores não respeitaram o meu<br />

nome social, faziam chacota de mim<br />

na frente de todos, e isso deu amparo<br />

para que os alunos fizessem violência<br />

sem qualquer proibição. Então teve<br />

um momento que não aguentei mais e<br />

evadi, no último ano”, conta Catarina.<br />

Segundo a travesti Sayonara Nogueira,<br />

professora da rede estadual de<br />

ensino de Minas Gerais, a escola ainda<br />

hoje funciona como um motor de exclusão,<br />

com muita dificuldade de aceitar<br />

padrões diferentes de com<strong>por</strong>tamento.<br />

“A im<strong>por</strong>tância dessa questão de gênero<br />

hoje, que vem levantando tanta polêmica,<br />

é diminuir a violência que existe.<br />

É criar uma escola que trate realmente<br />

da diversidade, não só das travestis e<br />

transsexuais, mas também das lésbicas,<br />

gays e bissexuais. É tratar também da<br />

violência contra a mulher. Quando<br />

você retira a discussão sobre gênero<br />

na escola, você está reafirmando essa<br />

cultura patriarcal que a sociedade impõe<br />

pra gente”, defende.<br />

Para pesquisadores da educação,<br />

mesmo que os planos estaduais ou<br />

municipais não mencionem a palavra<br />

gênero, a Constituição Federal e tratados<br />

internacionais, dos quais o Brasil<br />

é signatário, permitem que o assunto<br />

esteja presente nas políticas educacionais<br />

e no cotidiano das escolas. “As<br />

crianças precisam tomar conhecimento<br />

de suas diferenças, sejam <strong>elas</strong> de gênero,<br />

religiosa, raça ou etnia”, afirma João<br />

Batista Rocha, professor de Direitos<br />

Humanos, ao comentar que situações<br />

de homofobia, lesbofobia e outros preconceitos<br />

e violências de gênero podem<br />

ser evitados na vida adulta, caso o<br />

tema seja trabalhado desde cedo.<br />

Ideologia de gênero<br />

Várias entidades, entre <strong>elas</strong> o próprio<br />

Ministério da Educação (MEC), já<br />

emitiram notas públicas nas quais<br />

apoiam a abordagem em sala de aula<br />

Reunião da Comissão Especial do PNE é marcada <strong>por</strong> protestos<br />

contra a “ideologia de gênero”.<br />

20 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong>


e desmistificam a tese da suposta “ideologia<br />

de gênero”. “A escola, historicamente,<br />

vem ensinando o que se instituiu<br />

como com<strong>por</strong>tamento de meninos<br />

e meninas e organiza um conteúdo curricular<br />

com base em conceitos heteronormativos<br />

que grande parte das vezes<br />

não reconhecem a diversidade de desejos<br />

e de relações sexuais e afetivas.<br />

Há modelos de com<strong>por</strong>tamentos atribuídos<br />

a homens e mulheres que, embora<br />

não instituídos <strong>por</strong> nenhuma diretriz<br />

pedagógica, são recorrentemente<br />

reforçados, produzindo a reiteração de<br />

desigualdades e, em casos mais extremos,<br />

de discriminações e violências”,<br />

diz a nota elaborada <strong>por</strong> técnicos do<br />

www.cartaeducacao.com.br<br />

ministério no ano passado, quando a<br />

pasta estava sob o comando do ministro<br />

Aloizio Mercadante.<br />

Na mesma linha, a Associação Brasileira<br />

de Antropologia (ABA) publicou<br />

um manifesto, assinado <strong>por</strong> 113 pesquisadores<br />

e grupos de estudos, no<br />

qual aponta que o conceito de gênero<br />

está baseado em parâmetros científicos<br />

de produção de saberes sobre o mundo.<br />

“Uma identidade masculina baseada<br />

na agressividade e na indisciplina tem<br />

cada vez mais afastado os meninos<br />

dos bancos escolares, negando-lhes<br />

seu direito à educação e reproduzindo<br />

uma cultura da violência. Professoras<br />

são vítimas de agressões em sala de<br />

aula, meninas são estupradas <strong>por</strong> seus<br />

colegas de turma e meninos são afastados<br />

das escolas neste ciclo de desigualdade<br />

perpetuado <strong>por</strong> noções hierarquizadas<br />

do que é ser homem ou<br />

mulher. Também são notáveis, <strong>por</strong><br />

outro lado, as pesquisas que mostram<br />

o quanto a discriminação de gênero<br />

contra as pessoas que fogem dos padrões<br />

socialmente estabelecidos de<br />

identidade ou sexualidade tem desencadeado<br />

processos institucionalizados<br />

de discriminação, agressões e exclusão<br />

escolar”, afirma o manifesto.<br />

“<br />

Boa parte da resistência<br />

ao tema poderia<br />

ser superada<br />

com mais investimento<br />

na formação<br />

dos docentes<br />

Para Adla Betsaida, o assunto deve<br />

ser trabalhado nas diversas disciplinas,<br />

e boa parte da resistência ao tema poderia<br />

ser superada com mais investimento<br />

na formação dos docentes, para<br />

que eles pudessem explicar à comunidade<br />

escolar como a questão seria<br />

abordada na escola e qual a im<strong>por</strong>tância<br />

dela. “O problema é que muitos professores<br />

não têm tempo de se preparar.<br />

É injusto exigir isso. Eles estão exaustos<br />

com o excesso de atividades, de provas<br />

e avaliações. Há um grau de exigência<br />

enorme. Mas muitos docentes também<br />

têm de aceitar que existe discriminação.<br />

Na escola da minha filha, um professor<br />

disse que mulher que pinta as unhas<br />

de vermelho está pedindo para ser assediada”,<br />

afirma Betsaida, chamando<br />

a atenção para que o assunto não<br />

fique sob responsabilidade apenas da<br />

escola, mas de toda a sociedade. “Há<br />

certo receio dos pais, sobretudo em<br />

relação às filhas, em discutir o tema<br />

em outros espaços”.<br />

Mesmo com todos os desafios e a<br />

pressão de grupos conservadores, a<br />

discussão em torno do assunto, dentro<br />

ou fora dos muros da escola, é inevitável.<br />

O caminho, apontam os pesquisadores<br />

da área, é de fato criar, no ambiente<br />

escolar, um espaço mais acolhedor,<br />

que respeite as diferenças.<br />

“Acho que se tem uma palavra que vai<br />

se aproximar da nossa noção de democracia<br />

é respeito. A escola precisa<br />

criar esse ambiente de convivência,<br />

harmonioso, desde a mais tenra idade.<br />

Acho que se desde criança você ensinar<br />

que o coleguinha pode ser diferente,<br />

que isso não é errado, que ele não<br />

precisa ser atacado, perseguido <strong>por</strong><br />

isso, você colabora para criar um ambiente<br />

de mais respeito na sociedade”,<br />

destaca Thiago Costa.ø<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

21


Dandara foi liderança<br />

junto ao seu companheiro,<br />

Zumbi, no maior quilombo<br />

das Américas: o Quilombo<br />

dos Palmares. Ela plantava,<br />

trabalhava na produção da<br />

farinha de mandioca, caçava<br />

e lutava capoeira, usava armas<br />

para liderar homens e<br />

mulheres de resistência do<br />

quilombo.<br />

Mas, na verdade, essa é Lorena<br />

Lemos, que luta <strong>por</strong><br />

uma educação de qualidade<br />

e pela emancipação das mulheres<br />

negras.


Sophie Scholl foi integrante<br />

do movimento “A Rosa<br />

Branca” de resistência contra<br />

o nazismo na Alemanha. Ela<br />

espalhava panfletos que denunciavam<br />

os crimes do regime<br />

nazista nas caixas de<br />

correio, colava em cabines telefônicas<br />

e em carros estacionados.<br />

Quando capturada, ela<br />

foi decapitada pela SS, a polícia<br />

do Estado.<br />

Mas, na verdade, essa é Bruna<br />

Gavino, estudante que luta<br />

contra os estereótipos de gênero<br />

até hoje.


EDUARDO FANTINI<br />

TRABALHO<br />

POR NANCI ALVES E CECÍLIA ALVIM<br />

Mulheres na tecnologia<br />

Empoderamento feminino ainda é desafio nesta área


Metade da população brasileira<br />

(50,1%) já está conectada à rede mundial<br />

de computadores, de acordo com<br />

dados da pesquisa de 2014, do Instituto<br />

Brasileiro de Geografia e Estatística<br />

(IBGE). O acesso ao mundo virtual,<br />

<strong>por</strong>tanto, faz parte da vida de milhões<br />

de pessoas, do norte ao sul do país,<br />

incluindo muitas comunidades tradicionais<br />

como indígenas e quilombolas.<br />

Porém, do ponto de vista do trabalho,<br />

as vagas em empresas de desenvolvimento<br />

de software, cursos superiores<br />

de Tecnologia da Informação, projetos<br />

tecnológicos sempre foram, em sua<br />

maioria, ocupadas <strong>por</strong> homens.<br />

O contrassenso desse universo machista<br />

é que foram duas mulheres, no<br />

século passado, que criaram o sistema<br />

do primeiro computador eletrônico digital:<br />

a britânica Ada Augusta Byron<br />

King, conhecida como a Condessa de<br />

Lovelac (1815/1852), e a americana<br />

Grace Murray Hopper (1906/1992).<br />

(Veja o box na página 27).<br />

Culturalmente, criou-se a ideia<br />

preconceituosa de que as ciências<br />

exatas são uma área masculina. Muitos<br />

educadores e psicólogos sempre<br />

apontam o machismo como causa<br />

deste preconceito, pois a influência<br />

que crianças recebem desde bebês, <strong>por</strong><br />

meio das relações (e não só familiares),<br />

dos brinquedos e das brincadeiras,<br />

certamente ajudam a reforçar essa<br />

cultura. Meninas, costumeiramente<br />

chamadas de princesas e bonecas,<br />

ganham brinquedos que estimulam a<br />

delicadeza, a maternidade (panelinhas,<br />

bonecas que falam apenas mamãe e<br />

nunca papai, fogão, ferro de passar<br />

roupa, etc) e meninos, brinquedos que<br />

estimulam o raciocínio como legos,<br />

quebra cabeças, jogos como xadrez,<br />

dominó, etc.<br />

Quebrar esta cultura machista e<br />

abrir espaço para que as mulheres se<br />

interessem mais pela área das ciências<br />

exatas, pela informática e pela tecnologia<br />

digital tem sido o esforço de<br />

muitas ONGs e associações em todo o<br />

mundo. No Brasil, há 7 anos, em<br />

Goiás, foi criado o Grupo Mulheres na<br />

Tecnologia (MNT), <strong>por</strong> quatro amigas<br />

que queriam lutar pela equidade de gênero<br />

na Tecnologia da Informação, visando<br />

contribuir para o empoderamento<br />

das mulheres. A organização sem fins<br />

lucrativos atua <strong>por</strong> meio de palestras,<br />

projetos, eventos, além de realizar um<br />

encontro nacional de mulheres na tecnologia,<br />

que reúne pessoas de todo o<br />

país que se destacam na atuação ou<br />

na defesa de mulheres na tecnologia.<br />

Em <strong>2016</strong>, o 4º Encontro Nacional de<br />

Mulheres na Tecnologia foi realizado<br />

nos dias 17 e 18 de junho, em Goiás.<br />

(https://doity.com.br/mnt<strong>2016</strong>).<br />

De acordo com Márcia Almeida,<br />

membro do conselho gestor do MNT,<br />

o objetivo do encontro nacional é disseminar<br />

novas tecnologias entre as participantes,<br />

destacar conquistas das mulheres<br />

na área, promover a troca de<br />

experiências entre as profissionais, discutir<br />

políticas de gênero e TI, apresentar<br />

“<br />

O ato de ver mulheres<br />

palestrando, e algumas<br />

pela primeira vez, sobre<br />

seus sucessos e dificuldades,<br />

incentiva outras<br />

mulheres e meninas a<br />

se engajarem na área<br />

resultados de pesquisas e incentivar o<br />

empreendedorismo das mulheres na<br />

TI. “O ato de ver mulheres palestrando,<br />

e algumas pela primeira vez, sobre seus<br />

sucessos e dificuldades, incentiva outras<br />

mulheres e meninas a se engajarem na<br />

área”, afirma. Márcia enfatiza que querem<br />

prosseguir com esta discussão,<br />

“sabemos que muito já se tem falado a<br />

respeito da presença feminina na área,<br />

mas há muito mais a se fazer para<br />

mudar os cenários, na maioria das<br />

vezes hostis, para nos acolher”.<br />

Para ampliar seu campo de ação, o<br />

MNT criou o site e uma lista de discussão,<br />

com representantes ativas da maioria<br />

das unidades federativas do país. O<br />

Grupo possui quase 400 membros,<br />

com uma participação ainda maior nas<br />

redes sociais. Em setembro de 2015<br />

foi feita uma enquete informal no grupo<br />

do facebook do MNT sobre a área de<br />

atuação de cada uma. Segundo Danielle<br />

Gomes, engenheira de computação e<br />

membro da MNT, das 80 pessoas que<br />

responderam a pesquisa, a grande<br />

maioria trabalhava com programação<br />

(20), análise de requisitos/negócio (18),<br />

gestão de projetos (13) e Administrador<br />

de Banco de Dados (10).<br />

Menos mulheres nos<br />

cursos de TI<br />

“Estatisticamente o percentual de<br />

mulheres em relação aos homens que<br />

ingressam nos cursos de tecnologia,<br />

pesquisa e inovação vem reduzindo,<br />

conforme pesquisa apresentada<br />

(http://mulheresnatecnologia.org/noticias-mnt/638-estatisticas-da-educacao-superior-em-computacao-2014).<br />

Este é um fator preocupante mas também<br />

incentivador de uma resposta da<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

25


MATRICULADOS POR GÊNERO<br />

ARQUIVO PESSOAL<br />

2004<br />

2005<br />

2006<br />

2007<br />

2008<br />

2009<br />

38.061<br />

41.230<br />

42.151<br />

44.613<br />

54.662<br />

54.000<br />

147.846<br />

168.450<br />

182.456<br />

210.156<br />

241.683<br />

246.743<br />

2010 52.643 261.793<br />

2011 49.958 257.434<br />

2012 47.777 255.297<br />

2013 47.154 259.737<br />

2014 49.042 272.078<br />

TOTAL: 2004 A 2014<br />

FEMININO<br />

541.291<br />

MASCULINO<br />

2.503.673<br />

MATRICULADO POR GÊNERO<br />

CURSO DE TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO NO BRASIL<br />

A terapeuta Rocio venceu as dificuldades com a tecnologia.<br />

sociedade. Novos grupos, blogs e organizações<br />

sem fins lucrativos surgem<br />

focados na discussão desta temática.<br />

Grandes empresas de tecnologia começaram<br />

a se preocupar em ter mulheres<br />

no seu quadro de funcionários e<br />

já possuem alguns programas específicos<br />

de retenção de talentos femininos<br />

e incentivo à entrada de novas mulheres”,<br />

afirma Danielle.<br />

Além dos cursos superiores da área<br />

da tecnologia terem um público predominantemente<br />

masculino, as poucas<br />

alunas enfrentam machismo dentro da<br />

instituição, podendo levar algumas a<br />

desistir do curso. Christiane Borges,<br />

mestre em Engenharia da Computação,<br />

professora no Instituto Federal de Goiás<br />

e membro do Comitê Gestor do Mulheres<br />

na Tecnologia (MNT) conta no<br />

site da revista Forum: “Fiz curso e a<br />

maioria da minha sala era masculina.<br />

Na época, sofri preconceito até de<br />

professor: Mas você é tão pequenininha”,<br />

conta.<br />

Mesmo não tão rápido como deveria,<br />

felizmente esta história do preconceito<br />

dentro da sala de aula está mudando.<br />

É o que acredita Paloma Fantini<br />

(1ª foto), que cursa, em Belo Horizonte,<br />

o 3º período do curso Tecnologia em<br />

Jogos Digitais. “Eu já esperava ter<br />

uma turma com minoria composta <strong>por</strong><br />

mulheres. Então, quando vi que éramos<br />

apenas quatro em uma turma de quase<br />

80 alunos, não me surpreendi. Atualmente,<br />

sou a única mulher na sala, de<br />

um total de 20 alunos. Assim, acredito<br />

que a desistência e a dificuldade ocorre<br />

para todos, seja homem ou mulher,<br />

<strong>por</strong> vários motivos em qualquer curso.<br />

Mas posso afirmar, pois também sou<br />

26 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong>


graduada em Odontologia, que o curso<br />

de jogos digitais é difícil,” conta Paloma.<br />

Quanto à discriminação <strong>por</strong> ser mulher,<br />

ela afirma nunca ter vivido isso em<br />

sala de aula, nem <strong>por</strong> colegas e nem<br />

<strong>por</strong> professores. “Pelo contrário, vejo<br />

que eles buscam estimular a presença<br />

de mulheres no curso. Os professores<br />

são receptivos com a participação das<br />

mulheres, comentam que determinadas<br />

tarefas geralmente são melhor executadas<br />

<strong>por</strong> nós, que nossa sensibilidade<br />

costuma agregar muito aos projetos e<br />

jogos. Nos dois últimos períodos, os<br />

destaques acadêmicos do curso foram<br />

mulheres”, conta Paloma ao acrescentar<br />

que neste semestre tem uma professora<br />

na disciplina de programação e “vejo<br />

o carinho e respeito que todos têm<br />

<strong>por</strong> ela. Acredito que, se um dia houve<br />

machismo na área de tecnologia, ele<br />

não existe mais. E se a pessoa é boa<br />

no que faz, o mercado está aberto. Na<br />

área de TI eu acho que ser mulher é<br />

um fator que só tem a somar”, finaliza.<br />

Vida transformada<br />

com o uso da tecnologia<br />

O maior acesso à tecnologia mudou<br />

a vida da terapeuta ayurvédica, Rocio<br />

Mouzo, que criou o projeto Escolhas<br />

Saudáveis (www.escolhassaudaveis.com)<br />

para levar o conhecimento do ayurveda,<br />

uma medicina milenar da Índia, a um<br />

público cada vez maior e não só no<br />

Brasil. Essa ideia surgiu, segundo ela,<br />

durante uma aula de ayurveda em um<br />

curso de formação. “A professora<br />

Laura Pires comentou que agora que<br />

a sementinha do ayurveda havia sido<br />

plantada em nós, deveríamos divulgar<br />

esta ciência milenar. Fiquei pensando<br />

naquilo, pois já estava fazendo um<br />

curso on line sobre tecnologia para<br />

aprender a divulgar o meu trabalho”,<br />

conta. Porém, com os novos e eficientes<br />

conhecimentos na área técnica, Rocio<br />

teve o desejo de realizar o primeiro<br />

Congresso Brasileiro de Ayurveda<br />

(CONBRA), utilizando uma plataforma<br />

on line. Em parceria com um colega<br />

do curso técnico, Cristiano Maciel, realizou<br />

o I CONBRA, chegando em brasileiros<br />

de 52 países, e já estão produzindo<br />

o II. Após o sucesso do Congresso,<br />

criaram um espaço onde os terapeutas<br />

de ayurveda podem levar e<br />

trocar conhecimentos com o público,<br />

todas as quartas feiras à noite, on line,<br />

e é de forma gratuita para o público.<br />

“Depois estas palestras são colocadas<br />

em uma plataforma que criamos chamada<br />

“Ayurveda Club”, onde, <strong>por</strong> meio<br />

de uma pequena contribuição mensal,<br />

o internauta pode ter acesso quando<br />

e onde quiser.<br />

Rocio tem 56 anos e a primeira vez<br />

que viu um computador foi em 1979<br />

em uma aula do curso profissionalizante<br />

de Administração. “Esse<br />

computador era o único da cidade de<br />

La Coruña (na Espanha) e ocupava<br />

uma sala inteira. A informação era<br />

colocada com cartões furadinhos <strong>por</strong><br />

meio do sistema binário. Depois disso,<br />

só fui ver outro computador nos anos<br />

90. No começo, qualquer botão que<br />

eu apertava achava que tinha quebrado<br />

o computador e chamava meu filho.<br />

Com toda paciência me ajudava, até<br />

que um dia me disse: ‘mãe, quando é<br />

que você vai fazer as pazes com o<br />

computador?’ Foi uma frase que teve<br />

um grande efeito em mim. Não foi um<br />

caminho fácil, mas consegui e hoje<br />

estou feliz. A tecnologia me ajudou a<br />

realizar o meu projeto e mudou muito<br />

a minha vida”.ø<br />

Mulheres na história<br />

da tecnologia<br />

A matemática Ada Lovelace é<br />

reconhecida internacionalmente<br />

como a primeira programadora da<br />

história, pois criou o algoritmo para<br />

ser lido <strong>por</strong> uma máquina. Em 1833,<br />

Ada interessou-se pela ideia de seu<br />

amigo matemático Charles Babbage,<br />

a chamada “Máquina Analítica”, que<br />

faria cálculos mecânicos, projetada<br />

cerca de um século antes do computador<br />

digital. Enquanto Babbage<br />

foi o primeiro a idealizar um computador,<br />

Ada é responsável pelo primeiro<br />

programa – as instruções que,<br />

ao serem processadas, geravam os<br />

resultados. Nenhum dos dois viu o<br />

projeto se tornar real, <strong>por</strong> falta de<br />

dinheiro para a sua conclusão. Ada<br />

faleceu aos 36 anos <strong>por</strong> conta de<br />

um câncer no útero. Já a almirante<br />

e doutora em matemática Grace<br />

Hopper foi uma analista de sistemas<br />

da Marinha dos Estados Unidos, conhecida<br />

<strong>por</strong> ser a inventora da linguagem<br />

de programação COBOL<br />

(acrônimo de Common Business<br />

Oriented Language).<br />

Posteriormente, outra grande<br />

inspiração para a tecnologia foi<br />

Lois Haibt, uma americana que nasceu<br />

em 1934 e ficou famosa <strong>por</strong><br />

ter sido uma das 10 pessoas que<br />

desenvolveu a linguagem de programação<br />

FORTRAN (FORmula<br />

TRANslation) na década de 1950,<br />

a primeira linguagem de alto nível<br />

de sucesso.<br />

Fontes: techcity.org.br e<br />

http://www.dsc.ufcg.edu.br<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

27


Frida Kahlo é uma das mais famosas artistas<br />

latino-americanas do século XX. Comunista,<br />

afirmava que nasceu exatamente na data<br />

da revolução mexicana. Defendia o resgate à<br />

cultura indígena e latino-americana como forma<br />

de oposição ao sistema imperialista. Como a<br />

mesma disse, suas pinturas retratavam o assunto<br />

que mais conhecia, ela mesma. Quebrando parâmetros<br />

de seus tempos e desses também,<br />

Frida, mostra uma arte marcada profundamente<br />

pela dor, pela paixão, pela luta, pela deficiência<br />

física, pelos seus abortos, pela bissexualidade.<br />

Mas, na verdade, essa é Rafaella Dotta, jornalista,<br />

que luta para que o povo diga sua realidade e<br />

seja mais escutado.


Rosa Luxemburgo foi<br />

uma filósofa e economista marxista.<br />

Participou da fundação<br />

do grupo de tendência marxista<br />

do SPD, que viria a se tornar<br />

mais tarde o Partido Comunista<br />

da Alemanha (KPD). Ela foi símbolo<br />

do anticapitalismo e da luta<br />

<strong>por</strong> uma esquerda democrática<br />

e altamente conectada com as<br />

revoltas cotidianas da massa de<br />

trabalhadores e excluídos.<br />

Mas, na verdade, essa é Andressa<br />

Pestilli, que luta pela libertação<br />

de todos os povos.


MARK FLOREST


CAPA<br />

POR NANCI ALVES<br />

Pelo direito de ser<br />

quem sou<br />

Pessoas trans lutam contra a falta de políticas públicas<br />

Entrar em uma universidade e cursar<br />

engenharia ambiental. Esse é o sonho<br />

de Libernina Andrade (foto), 21 anos,<br />

que se prepara <strong>por</strong> meio de um cursinho<br />

pré-Enem, especial para pessoas trans<br />

e travestis em Belo Horizonte. “Este<br />

ano não pude fazer o Enem, <strong>por</strong>que<br />

não consegui pedir a a isenção da taxa<br />

de inscrição e não tinha como pagar.<br />

Mas no próximo, tentarei a vaga e,<br />

pelo Sisu ou pelo ProUni, vou entrar<br />

na faculdade finalmente”, conta Libernina,<br />

ao afirmar que chegar até aqui<br />

não foi fácil. Ela viveu, desde a infância,<br />

um grande sofrimento, abandonando<br />

inclusive os estudos, <strong>por</strong> ser rejeitada<br />

<strong>por</strong> todos, pois não se enquadrava no<br />

que as pessoas, em geral, consideram<br />

“normal”. “Meu corpo e meu nome<br />

não correspondiam ao que eu sentia e<br />

como me via no mundo. Eu ainda não<br />

entendia o que eu era, as pessoas<br />

achavam que eu era homossexual e tinha<br />

sempre as piadinhas: olha a bichinha,<br />

o viadinho. Era muito sofrido e<br />

constrangedor ter que ouvir aquilo todo<br />

dia. Não tinha ânimo nenhum para<br />

continuar vivendo. Sentia muita angústia,<br />

pois me reprimia o tempo todo.<br />

Meus pais me obrigavam a ir para<br />

aula, mas eu não me sentia bem naquele<br />

ambiente”.<br />

Só na adolescência, ao assistir a<br />

uma entrevista com uma modelo transexual,<br />

falando de sua vivência, que<br />

“<br />

Ainda bem que fiz<br />

amigos que me<br />

acolhem – é a<br />

família que a gente<br />

ganha da vida.<br />

Libernina se identificou. “Então, comecei<br />

a pesquisar sobre o assunto. Me<br />

mudei para Belo Horizonte, <strong>por</strong>que<br />

achei que teria mais recursos para isso<br />

e <strong>por</strong>que a minha cidade era pequena<br />

e eu sei que iria sofrer mais preconceito.<br />

Aqui, com a ajuda de uns amigos, pesquisei<br />

sobre hormônios, tratamentos<br />

cirúrgicos e comecei o processo de<br />

transição para ser o que realmente<br />

sou, uma mulher. Decidi que queria<br />

ser chamada de Libernina, ser tratada<br />

como mulher, comprei roupas femininas<br />

e comecei a viver o que eu queria. Mas<br />

quando contei para os meus pais no<br />

interior, eles não me aceitaram mais.<br />

Ainda bem que fiz amigos que me<br />

acolhem – é a família que a gente<br />

ganha da vida”, conta.<br />

A história de Libernina se repete<br />

todos os dias. Crianças e adolescentes<br />

que não se identificam com o sexo<br />

que nasceu sofrem com a falta de informação<br />

e de apoio das famílias, da<br />

escola, da sociedade em geral e também<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

31


com as críticas de colegas. Portanto,<br />

falar da realidade da vida das pessoas<br />

trans é falar de falta de respeito com o<br />

ser humano, a começar pelo direito a<br />

ter um nome que o represente. Para<br />

conquistarem o direito de mudar seu<br />

documento de identidade, mulheres e<br />

homens trans precisam estar dispostos<br />

a enfrentar uma luta nada fácil. E a negação<br />

deste direito leva à negação de<br />

muitos outros, promovendo uma verdadeira<br />

segregação das pessoas trans<br />

na sociedade. “Se alguém se apresenta<br />

como mulher, mas nos seus documentos<br />

tem nome de homem, ou vice-versa,<br />

sofre demais. Muitas vezes não é aceita<br />

naquele ambiente ou tem que se sujeitar<br />

a piadinhas, o que a leva a abandonar<br />

escola e trabalho, ficando ainda mais<br />

vulnerável”, afirma Libernina.<br />

MARK FLOREST<br />

Falta de políticas públicas<br />

Com certeza, todos estes problemas<br />

existem <strong>por</strong> falta de políticas públicas<br />

que atendam às pessoas trans.<br />

Aliás, oficialmente, nem <strong>elas</strong> mesmas<br />

existem para o país, <strong>por</strong>que não aparecem<br />

sequer no levantamento do<br />

IBGE, já que não existe um item em<br />

que a pessoa possa dizer, ela própria,<br />

com qual gênero se identifica (homem<br />

ou mulher), independentemente do<br />

sexo (órgão genital – masculino ou feminino)<br />

com o qual nasceu.<br />

De acordo com Carlos Magno Fonseca,<br />

presidente da Associação Brasileira<br />

de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis<br />

e Transexuais (ABGLT), nenhum país<br />

no mundo quantifica sua população<br />

<strong>por</strong> gênero e sim <strong>por</strong> sexo e “esta debilidade<br />

faz com que o estado desconheça<br />

e invisibilize pessoas trans. Igualmente<br />

ocorre quanto à orientação se-<br />

“<br />

Se alguém se<br />

apresenta como<br />

mulher, mas nos<br />

seus documentos<br />

tem nome de homem,<br />

ou vice-versa,<br />

sofre demais.<br />

32 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong>


xual, não sabemos quantos gays, lésbicas<br />

e bissexuais existem. A falta deste indicador<br />

é crucial para a ausência de<br />

políticas públicas”.<br />

Na avaliação de Carlos Magno<br />

(foto), a política de promoção ainda<br />

acontece de forma pontual em algumas<br />

áreas como da saúde e da educação,<br />

mas de forma desconectada. “Nossa<br />

intenção é delinear uma política nacional<br />

de promoção da cidadania de LGBT<br />

(Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e<br />

Transexuais) que oriente estados e municípios<br />

como atender nossas demandas:<br />

nome social, enfrentamento à violência,<br />

investimento em centros de referência<br />

LGBT, debate de gênero e sexualidade<br />

nas escolas e, principalmente, a inclusão<br />

de orientação sexual e identidade de<br />

gênero nos cadastros públicos para que<br />

possamos gerar indicadores da política.<br />

Institucionalizar a política nas unidades<br />

da federação com a implementação de<br />

um sistema LGBT com conferências,<br />

conselhos, coordenações, políticas e orçamento”,<br />

afirma.<br />

Porém, o caminho não está sendo<br />

fácil diante do ultraconservadorismo<br />

demonstrado pelos parlamentares brasileiros.<br />

O que vimos nos últimos anos<br />

é que não foi aprovado, <strong>por</strong> exemplo,<br />

o Projeto de Lei que criminaliza a homofobia<br />

(PLC 122), os parlamentares<br />

retiraram a palavra Gênero do Plano<br />

Nacional de Educação (PNE) e estão<br />

estudando a aprovação do Estatuto da<br />

Família que quer reconhecer como família<br />

apenas aquela formada <strong>por</strong> homem,<br />

mulher e filhos, ignorando assim<br />

as pessoas LGBT como chefes de família.<br />

Posturas que demonstram um<br />

enorme retrocesso. Na opinião de Carlos<br />

Magno, o caminho é o diálogo<br />

com parlamentares e com toda a sociedade.<br />

“Precisamos urgentemente de<br />

legislação que criminalize a LGBTfobia<br />

e que faça o reconhecimento à identidade<br />

de gênero de pessoas trans. Para<br />

conseguirmos que esse reconhecimento<br />

torne-se princípio básico do Estado de<br />

Direito é necessária a aprovação do<br />

Projeto de Lei (PL 5002/13) dos deputados<br />

Jean Wyllys (PSOL-RJ) e Erika<br />

Kokay (PT-DF), acompanhada de ações<br />

e políticas públicas condizentes no âmbito<br />

estadual e municipal”, finaliza.<br />

Libernina Andrade concorda que o<br />

caminho é lutar pela aprovação desse<br />

PL (mais conhecido como lei João<br />

Nery), que foi rejeitado na Câmara dos<br />

Deputados. “A conquista do nome social<br />

é im<strong>por</strong>tante, mas precisamos ter o direito<br />

de mudar nosso registro de nascimento,<br />

pois têm pessoas que falam que<br />

nome social é nome falso. Na verdade,<br />

o erro está no meu registro e todos sofremos<br />

para mudar isso. A Defensoria<br />

Pública nos ajuda, mas o processo pede<br />

laudos psicológicos para atestar que o<br />

nome de registro te gera sofrimento,<br />

depois tem que esperar pela aprovação<br />

de um juiz. Minha vida fica nas mãos<br />

de outras pessoas. Você não pode simplesmente<br />

se declarar. Psicólogos e<br />

juízes é que precisam dizer quem realmente<br />

sou. Uma lei federal nos daria a<br />

garantia de irmos ao cartório fazer a alteração<br />

necessária”, desabafa.<br />

Lei João Nery<br />

Segundo o deputado Jean Wyllys,<br />

o Projeto de Lei (PL 5002/13) tem<br />

como objetivo trazer a noção de identidade<br />

de gênero como conceito, garantindo<br />

o direito das pessoas trans à<br />

ROJÚ SOARES<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

33


GABRIELA KAROSSY - CÂMARA DOS DEPUTADOS<br />

troca de prenome e do marcador de<br />

gênero no registro civil, além do direito<br />

de realizarem modificações cor<strong>por</strong>ais<br />

através do Sistema Único de Saúde.<br />

“Hoje, o Brasil tem essa política estabelecida<br />

através de <strong>por</strong>tarias, ou seja,<br />

através de políticas criadas administrativamente<br />

pelo poder executivo, e<br />

como o tema é delicado, existem poucos<br />

setores realmente comprometidos<br />

com a aplicação da política. Na teoria,<br />

o SUS deveria oferecer não somente<br />

terapia de reposição hormonal e cirurgias<br />

de transgenitalização (redesignação<br />

genital) quanto outros serviços<br />

cirúrgicos, como a colocação de próteses<br />

mamárias, retirada de pomo-deadão<br />

(cartilagem tireoide), entre outros<br />

tipos de procedimentos e terapias oferecidas<br />

<strong>por</strong> equipe multidisciplinar. Na<br />

prática, os serviços são quase inexistentes<br />

ou se limitam a fazer o tratamento<br />

terapêutico, sem medicamentos,<br />

pois os hospitais não fornecem os<br />

remédios, somente as receitas. E a situação<br />

das cirurgias é de estagnação<br />

total nos poucos hospitais credenciados<br />

no país”, denuncia.<br />

O deputado explica que o PL é conhecido<br />

como “Lei João Nery” em homenagem<br />

ao primeiro homem trans<br />

brasileiro e autor do livro autobiográfico<br />

“Viagem Solitária” - um teste -<br />

munho imprescindível para entender a<br />

realidade da pessoa trans. “Para driblar<br />

uma lei que lhe negava o direito<br />

de ser ele mesmo, João teve que renunciar<br />

a tudo: sua história, seus estudos,<br />

seus diplomas, seu currículo. O<br />

PL tem <strong>por</strong> finalidade garantir que<br />

nunca mais aconteça esta violação dos<br />

direitos humanos”, afirma.<br />

Em fevereiro passado, vimos pela<br />

mídia que, em decisão inédita, a Justiça<br />

de Mato Grosso autorizou o pedido da<br />

família de alteração de nome e gênero<br />

no registro de nascimento de uma criança<br />

de 9 anos que nasceu menino, mas<br />

se sentia menina desde bem pequena.<br />

O defensor público que atuou em defesa<br />

da família argumentou, no processo,<br />

que a criança nasceu com anatomia<br />

física contrária à identidade sexual psíquica.<br />

Para o deputado Jean Wyllys<br />

(foto), este caso que sensibilizou a todos,<br />

principalmente pelo apoio e compreensão<br />

dos pais, reacende a necessidade<br />

da discussão deste tema com a sociedade.<br />

“Existem parlamentares que querem<br />

fazer as pessoas acreditarem que debater<br />

gênero, como no caso do Plano Nacional<br />

de Educação, é uma suposta tentativa<br />

de “implantar a homossexualidade nas<br />

escolas”. Um absurdo, fruto de grande<br />

conservadorismo. O sofrimento daquela<br />

criança é real e foi experimentado em<br />

diversas situações, das brincadeiras às<br />

idas ao banheiro na escola”, destaca.<br />

O parlamentar enfatiza ainda o grave<br />

problema da LGBTfobia no Brasil. “Devemos<br />

reforçar os mecanismos legislativos<br />

nos estados e criar protocolos<br />

para que os crimes de motivação dessa<br />

natureza sejam melhor apurados, além<br />

de promover campanhas de conscientização<br />

para que essa realidade mude. É<br />

uma realidade cultural, que tem a ver<br />

com o machismo e a LGBTfobia plantada<br />

na sociedade. Claro que a resposta<br />

também tem que ver com as ações legislativas<br />

e do executivo, mas precisa<br />

haver uma mudança social para que<br />

esses números se revertam”, afirma.<br />

34 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong>


Atuação da<br />

Defensoria Pública<br />

Sem essa mudança cultural e uma<br />

lei federal que garanta políticas públicas,<br />

pessoas LGBT com seus direitos violados<br />

o tempo todo, precisam de ajuda. Muitas<br />

recorrem à Defensoria Pública em seus<br />

estados. Assim, o primeiro passo tem<br />

sido mudar o nome de registro. Além<br />

da lei brasileira que permite esta alteração<br />

quando o nome provoca sofrimento<br />

para a pessoa, independentemente da<br />

questão trans, existe também os Princípios<br />

de Yogyakarta (2007), uma legislação<br />

internacional de direitos humanos<br />

em relação à orientação sexual e identidade<br />

de gênero da qual o Brasil é signatário.<br />

De acordo com a promotora<br />

Júnia Roman Carvalho (foto), em<br />

atuação na Defensoria Especializada de<br />

Direitos Humanos, Coletivos e Socioambientais<br />

(DPDH), quando o país assina<br />

um tratado internacional, este entra no<br />

país como força de lei hierarquicamente<br />

superior à lei ordinária.<br />

Em Minas Gerais, segundo a promotora,<br />

a Justiça tem sido ágil com relação<br />

à retificação do nome (menos de<br />

um ano), pois o processo passa pela<br />

“<br />

Minas Gerais<br />

deveria ter um<br />

atendimento<br />

próprio, pois a<br />

população trans é<br />

significativa.<br />

Vara de Registros. Mas o problema está<br />

no pedido de retificação de gênero na<br />

documentação. Um contrassenso a pessoa<br />

ter um nome de mulher e no seu<br />

registro estar escrito “masculino” e vice<br />

versa. A dificuldade, segundo Júnia Carvalho,<br />

está na Vara de Família, “que é<br />

mais conservadora, onde o processo<br />

caminha com lentidão e pode ser negado<br />

sob a alegação de que a pessoa não fez<br />

cirurgia de redesignação genital. Isso é<br />

entender o gênero como o biotipo, o<br />

órgão sexual com o qual ela nasceu.<br />

Um absurdo <strong>por</strong> dois motivos. Primeiro<br />

<strong>por</strong>que o gênero é auto-percebido, sou<br />

mulher ou homem <strong>por</strong>que me identifico<br />

assim. Não é o órgão externo que determina<br />

quem eu sou. E depois, <strong>por</strong>que<br />

o sistema público não oferece cirurgia<br />

facilmente. Tenho três pessoas há mais<br />

de quatro anos na fila esperando. Todos<br />

encaminhados para o Rio de Janeiro.<br />

Minas Gerais deveria ter um atendimento<br />

próprio, pois a população trans é significativa”,<br />

afirma.<br />

Além de ser difícil conseguir pela<br />

lei, como apenas quatro capitais brasileiras<br />

têm médicos e hospitais creden-<br />

MARK FLOREST<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

35


ciados pelo SUS para a realização do<br />

processo transexualizador, a espera é<br />

absurda, podendo chegar até a 15<br />

anos. Esse processo é mais que cirurgia<br />

– passa <strong>por</strong> hormonização, fonoaudiologia<br />

para o apoio na voz, psicoterapia<br />

para a pessoa se sentir mais feliz<br />

no meio da sociedade, etc.<br />

Para a defensora Júnia Carvalho, o<br />

problema é que, com a falta do atendimento<br />

público especializado, muitas<br />

pessoas fazem a hormonização sozinhas,<br />

sem qualquer tipo de atendimento<br />

médico, correndo risco inclusive de<br />

morrer. A mulher trans precisa do anticoncepcional,<br />

que consegue na farmácia,<br />

facilmente, sem orientação e<br />

sem acompanhamento médico, o que<br />

gera consequências para a saúde. No<br />

caso do homem trans, ainda é mais<br />

grave: com a adolescência, vem o crescimento<br />

dos seios e a menstruação, o<br />

que traz grande sofrimento. Como o<br />

hormônio que precisa não é vendido<br />

em farmácia, “compra ou falsifica receita<br />

e adquire o produto no mercado<br />

clandestino, sem saber que tipo de remédio<br />

está tomando. Algumas pessoas<br />

não querem a cirurgia. As travestis<br />

querem se identificar com o gênero feminino,<br />

mas nem sempre têm interesse.<br />

A cirurgia não deve ser um remédio<br />

para consertar a pessoa para a sociedade.<br />

Todo mundo tem que ter o direito<br />

de ser como quer ser. Todos temos<br />

que estar felizes”, acrescenta.<br />

Segundo Júnia Carvalho, na falta<br />

de avanços <strong>por</strong> iniciativa dos próprios<br />

órgãos públicos, o caminho são as<br />

ações judiciais em busca do acesso ao<br />

tratamento transexualizador. “A dificuldade<br />

maior é para os homens trans,<br />

pois a cirurgia é considerada pelo Conselho<br />

Nacional de Medicina como experimental.<br />

Assim, não temos como<br />

obrigar o Estado a proceder esta cirurgia.<br />

As consequências disso são que<br />

muitas pessoas juntam dinheiro durante<br />

anos e fazem a cirurgia fora do país,<br />

como na Tailândia. Coisa insana, pois<br />

o pós-operatório é muito pesado e a<br />

pessoa sozinha, sem acompanhante,<br />

e ainda em outro idioma que não domina,<br />

corre muitos riscos”, explica.<br />

A promotora, ao falar que a sociedade<br />

deve atuar sempre cobrando as<br />

autoridades uma mudança, conta que<br />

já existe um enunciado do Conselho<br />

Nacional de Justiça (CNJ), órgão fiscalizador<br />

do judiciário, que diz que a retificação<br />

do gênero e a retificação do<br />

nome independem de cirurgia de redesignação<br />

genital. “Quando o CNJ<br />

faz enunciado é <strong>por</strong>que a matéria é<br />

im<strong>por</strong>tante e recorrente. Um magistrado<br />

pode se apoiar nesse enunciado do<br />

CNJ para dar decisão de retificação,<br />

independente de cirurgia. Se isso for<br />

condição, estaremos sempre excluindo<br />

aquela travesti que não quer fazer a cirurgia<br />

e o homem trans para a qual o<br />

Estado não oferece”, explica.<br />

Um ciclo de violências<br />

Para a defensora pública Júnia Carvalho,<br />

na medida em que não se possibilita<br />

condições para que a pessoa<br />

trans viva sua identidade com plenitude,<br />

“são gerados outros custos para a<br />

saúde, pois isso traz doenças físicas e<br />

psicológicas e a infelicidade volta para<br />

o sistema de saúde. Só pela economia<br />

se deveria investir nisso”, explica.<br />

Quando a pessoa trans está em situação<br />

de privação de liberdade, o problema<br />

é ainda mais grave. Em alguns<br />

poucos presídios têm c<strong>elas</strong> especiais,<br />

ajudando a evitar que tanto a mulher<br />

como o homem trans sofram violência<br />

em c<strong>elas</strong> masculinas. “Mas em geral a<br />

gente vê um monte de discriminação e<br />

um total despreparo das polícias para<br />

lidar com a situação”, afirma. Também<br />

quando o assunto é mercado de trabalho<br />

a realidade não muda. Segundo Júnia<br />

Carvalho, há muito desrespeito, mas o<br />

mais grave é que poucas pessoas trans<br />

conseguem ser contratadas. Para isso,<br />

é preciso mudar a documentação. Um<br />

homem trans, <strong>por</strong> exemplo, se não<br />

mudar o gênero na documentação, não<br />

pode pedir ao Exército o certificado de<br />

dispensa do serviço militar sem o qual<br />

não consegue emprego. Mas para a<br />

Justiça, não pode mudar o gênero no<br />

documento se não fez cirurgia, a qual o<br />

Estado não é obrigado a oferecer, <strong>por</strong>que<br />

ainda é considerada experimental no<br />

Brasil. Uma negação de direito que<br />

leva a muitas outras”, explica.<br />

Para a promotora, a invisibilidade<br />

da pessoa trans nos traz um desafio.<br />

“Já ouvi algumas pessoas trans falarem:<br />

‘eu sou passável’, o que quer dizer que<br />

ninguém percebe que é trans, que passa<br />

“<br />

A cirurgia não deve<br />

ser um remédio para<br />

consertar a pessoa<br />

para a sociedade.<br />

Todo mundo tem<br />

que ter o direito de<br />

ser como quer ser.<br />

Todos temos que<br />

estar felizes.<br />

36 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong>


MARK FLOREST<br />

batido. <strong>Elas</strong> querem ser invisíveis neste<br />

sentido, ou seja, serem respeitadas<br />

como qualquer mulher e qualquer homem.<br />

Mas não podem continuar na invisibilidade<br />

das políticas públicas que é<br />

a garantia de acessos a direitos que vão<br />

possibilitar uma vida digna”, afirma.<br />

O lugar onde quero estar<br />

Raul Capistrano (foto), representante<br />

do Centro de Luta Livre Orientação<br />

Sexual (CELLOS/MG) e do Instituto<br />

Brasileiro de Transmasculinidade<br />

(IBRAT), iniciou sua transição em 2010,<br />

aos 28 anos, quando escolheu seu<br />

nome. Passou a infância e a adolescência<br />

se habituando a entender que o lugar<br />

correto para ele era aquele que não causava<br />

nenhum desconforto para a sua família<br />

e nem para ninguém: “esse lugar<br />

era sempre onde estavam as meninas,<br />

mas não era onde eu queria estar. Angustiante,<br />

vivia sem perspectiva de vida,<br />

pois todos vislumbram um futuro onde<br />

é possível estar, uma profissão, um emprego.<br />

Geralmente, a pessoa trans não<br />

se vê em algum lugar, pois ela não quer<br />

estar onde dizem que ela tem que estar<br />

e não pode estar onde ela quer. Vive infeliz.<br />

A maior parte das famílias não entende<br />

isso, quer te bater, expulsar; na<br />

escola, sua professora não quer entender<br />

e é mais aliviador para ela que você<br />

não estude lá, mais para não ter que<br />

lidar com você todos os dias. Então,<br />

quando a pessoa trans abandona a escola<br />

e a família é um alívio para todos<br />

eles”, desabafa.<br />

No caso de Raul, como sua transição<br />

foi tardia, não teve que largar escola<br />

<strong>por</strong> discriminação, mas não concluiu o<br />

segundo grau <strong>por</strong> falta de perspectiva.<br />

“Por ser pobre, a alternativa era o en-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

37


sino público e quando vislumbrei a<br />

Universidade Federal de Ouro Preto<br />

(UFOP), vi que era impossível. Teria<br />

que morar em uma república, sendo<br />

que nem a masculina nem a feminina<br />

me caberiam. Preferi, então, desistir<br />

de estudar”, conta.<br />

Raul achava que estava sozinho no<br />

mundo e fadado a sofrer para sempre.<br />

“Não podia nem optar <strong>por</strong> morrer, pois<br />

minha avó dizia que quem tira sua própria<br />

vida vai para o inferno. Preferi<br />

viver sofrendo minha vida. Foi assim<br />

até quando vi em um programa de TV<br />

um homem trans. Me identifiquei e vi<br />

que tinha uma saída, que não estava<br />

condenado a ter que viver naquele corpo<br />

que não me representava. Eu me entristecia<br />

desde a hora que eu acordava<br />

até a hora que dormia todos os dias,<br />

não conseguia nem me olhar no espelho.<br />

Descobrir que podia deixar de viver<br />

assim foi um dos melhores momentos<br />

da minha vida”, conta Raul ao lamentar<br />

ter compreendido isso depois de adulto.<br />

Uma das suas primeiras e tristes<br />

descobertas, durante sua transição, foi<br />

que pessoas trans são classificadas como<br />

uma patologia, e na área de doenças<br />

mentais. “Estranho, mas usei isso como<br />

arma. Se o SUS considera isso como<br />

patologia precisa ter tratamento e eu<br />

tenho o direito. Mas descubro, então,<br />

que o SUS só tem isso no papel, um<br />

absurdo. Tenho seis anos de transição<br />

e não tive nenhum acompanhamento<br />

psicológico, o que é im<strong>por</strong>tantíssimo,<br />

pois de repente passei a ser homem<br />

para a sociedade, uma coisa forte. Hoje<br />

não preciso mais de um acompanhamento<br />

básico de questão da minha transexualidade,<br />

mas tudo isso afetou minha<br />

vida. Fiz um curso de informática e trabalhei<br />

durante 15 anos em uma empresa.<br />

Depois de 13 anos lá, comecei a<br />

“<br />

“Não podia nem<br />

optar <strong>por</strong> morrer,<br />

pois minha avó<br />

dizia que quem<br />

tira sua própria<br />

vida vai para o<br />

inferno.<br />

MARK FLOREST<br />

38 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong>


fazer intervenções cirúrgicas e hormonais.<br />

Ao iniciar minha transformação<br />

física, a empresa não quis reconhecer<br />

meu nome social. Muito difícil tudo e<br />

as pessoas não te entendem, não te<br />

acolhem. Até usar um banheiro ficou<br />

difícil, pois nenhum dos dois me cabiam<br />

mais. Antes, era visto como um ser humano<br />

igual a todos. De repente, passei<br />

a ser encarado com um olhar que não<br />

achei que veria nesta vida, é assustador!<br />

Eu quis me proteger e isso significou<br />

pedir demissão”, conta.<br />

Com a transição, Raul passou a ser<br />

feliz pessoalmente, se sentindo bem<br />

diante do espelho, mas socialmente<br />

ainda considera muito complicado: “Se<br />

digo que sou pessoa trans, não sou respeitado,<br />

não tenho tratamento médico<br />

para as minhas necessidades, não tenho<br />

possibilidade de emprego, não tenho<br />

registro com meu nome retificado, não<br />

tenho nada. São constantes as violências<br />

veladas em qualquer canto que eu vá”.<br />

Assim, se antes tinha autoestima<br />

baixa <strong>por</strong>que tinha conflito consigo<br />

mesmo, agora é baixa <strong>por</strong>que não tem<br />

acesso a nada. “Até há um ano estava<br />

com depressão. Só no ano passado<br />

que consegui focar, estudar. Voltei aos<br />

estudos, tirei o diploma do ensino médio<br />

e, este ano, passei em segundo lugar<br />

em Filosofia na UFMG. Estou feliz, mas<br />

só fiz minha inscrição do Enem <strong>por</strong>que<br />

foi anunciado que seria respeitado o<br />

nome social. Caso contrário, não teria<br />

feito e não teria passado. Não foi da<br />

melhor forma, pois o nome só foi respeitado<br />

na hora da prova e a abertura<br />

para o solicitação do nome social não<br />

foi no ato da inscrição e sim meses depois.<br />

Então, muita gente perdeu, pois<br />

não sabia que podia fazer esta solicitação.<br />

Além disso, tinha que imprimir ficha,<br />

mandar foto. Então, quem não tinha<br />

scanner, computador, internet, não fez.<br />

Foi uma conquista, mas tem que aprimorar,<br />

pois muitas pessoas fizeram sem<br />

ter nome social reconhecido”, afirma.<br />

Raul fez o cursinho TransEnem e<br />

afirma que entre seus colegas quem<br />

teve o nome social respeitado teve<br />

notas melhores nas provas. “Será coincidência?<br />

Porque é um constrangimento<br />

chegar em uma sala e as pessoas<br />

te chamarem <strong>por</strong> um nome que não é<br />

seu mais, você se desconcentra, se<br />

sente desconfortável, constrangido e<br />

não consegue fazer uma boa prova.<br />

Agora esperamos que as universidades<br />

tenham sua resoluções próprias e respeitem<br />

isso também, para garantir os<br />

direitos. Tem que ter respeito dentro da<br />

faculdade, não basta apenas entrarmos,<br />

temos que permanecer”, acrescenta.<br />

“<br />

O sucesso desta<br />

pessoa como ser<br />

humano está em<br />

parte nas mãos<br />

do professor.<br />

Papel da escola<br />

Raul destaca a im<strong>por</strong>tância da escola<br />

e do professor se informarem sobre o<br />

tema, pois quando alguém ou alguma<br />

instituição ignora a pessoa LGBT ou<br />

faz críticas a partir de uma opinião pessoal,<br />

isso é uma violência. “O/a professor/a<br />

é referência im<strong>por</strong>tante e quando<br />

ele/a fala de um assunto que domina,<br />

todos gostam. Mas não precisa fazer<br />

nenhum curso sobre pessoas LGBT;<br />

basta pesquisar e dialogar com estas<br />

pessoas. Geralmente, o/a professor/a<br />

conversa com seus alunos/as sobre<br />

mitos e fantasias como Curupira, Saci,<br />

Coelho da Páscoa, mas não conversa<br />

sobre pessoas que existem em nossas<br />

famílias – gays, travestis, trans, etc. Se<br />

ignoramos essas pessoas, estamos di-<br />

ISTOCK<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

39


zendo que não existem. Isso é a <strong>por</strong>ta<br />

de entrada para a violência”, afirma.<br />

No Brasil, a violência contra pessoas<br />

LGBT é assustadora. “É o país<br />

que mais mata gays no mundo e também<br />

onde a expectativa de vida de pessoas<br />

trans é a menor. Um absurdo”,<br />

protesta. De acordo com a organização<br />

não governamental (ONG) Transgender<br />

Europe (TGEU), rede europeia<br />

de organizações que apoiam os direitos<br />

da população transgênero, foram registradas<br />

604 mortes no Brasil entre<br />

janeiro de 2008 e março de 2014:<br />

mais de 100 mortes <strong>por</strong> ano.<br />

Ao defender que a escola precisa<br />

fazer esse debate, Raul afirma que os<br />

alunos estão abertos para isso. “Ministro<br />

palestras em escolas e é a coisa que<br />

mais gosto de fazer. Fico impressionado<br />

como eles/as têm mais facilidade para<br />

entender estas questões do que os/as<br />

adultos/as. A família, principalmente<br />

mais humilde, busca estes conhecimentos<br />

no posto de saúde ou na escola.<br />

Se o professor ignora, não te respeita,<br />

a família também vai fazer o mesmo.<br />

O sucesso desta pessoa como ser humano<br />

está em parte nas mãos do professor”,<br />

finaliza.ø<br />

SERVIÇO<br />

ABGLT - www.abglt.org.br<br />

Ê (31) 9333-7812<br />

Cellos - Ê (31) 3075-5724<br />

cellosmg@yahoo.com.br<br />

Ministério Público do<br />

Estado de Minas Gerais<br />

Avenida Álvares Cabral, 1690 - Lourdes<br />

BH/MG - Ê (31) 3330-8100<br />

Dicas para não ser transfóbico:<br />

https://goo.gl/JmItn3<br />

Acesso à universidade<br />

Em 2015, com a autorização do<br />

uso do nome social para a realização<br />

da inscrição no Enem, 278 travestis<br />

e pessoas trans, em todo o Brasil,<br />

puderam fazer a seleção e concorrer<br />

a uma vaga na universidade.<br />

Em Belo Horizonte (MG), 3 alunos<br />

do TransEnem, de uma turma<br />

de 12, conseguiram uma vaga em<br />

universidades públicas. O TransEnem<br />

é um cursinho popular para ajudar<br />

a população trans e travesti a se<br />

preparar para o Exame Nacional do<br />

Ensino Médio (Enem) e outros vestibulares.<br />

Foi criado há menos de um<br />

ano (agosto de 2015) pela advogada<br />

Adriana Valle e pela assistente social<br />

Ana Isabel Lemos (foto), que querem<br />

ajudar a combater a exclusão<br />

das pessoas trans na universidade e<br />

no mercado de trabalho.<br />

Segundo Ana Isabel, a estimativa<br />

é que mais de 30 pessoas trans tenham<br />

entrado na faculdade em Minas<br />

Gerais neste ano, mas é um<br />

dado difícil de apurar. “Fizemos um<br />

levantamento superficial e acreditamos<br />

que pode ser um número<br />

maior”, afirma. No TransEnem BH,<br />

todos os professores e administradores<br />

são voluntários. “Este ano<br />

conseguimos apoio do governo do<br />

Estado que garantiu o acesso a uma<br />

sala de aula na Escola Estadual Pedro<br />

II (Centro) e a merenda escolar.<br />

Mas precisamos de recursos financeiros,<br />

pois além de material escolar,<br />

precisamos garantir a passagem de<br />

ônibus e visitas a museus e cidades<br />

históricas, lugares onde nossos/as<br />

alunos/as nunca puderam ir. Além<br />

disso, temos o projeto de oferecer<br />

aulas à distância, favorecendo mais<br />

pessoas trans e travestis em todo o<br />

país. Porém, para criar e manter esta<br />

plataforma, precisamos do apoio de<br />

mais pessoas”, afirma a psicóloga<br />

ao contar que existe uma vaquinha<br />

on line (https://goo.gl/O5ronQ) <strong>por</strong><br />

meio da qual os interessados podem<br />

contribuir.<br />

Outras informações no<br />

facebook.com/transenembh<br />

MARK FLOREST<br />

40 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong>


OUTUBRO ROSA AINDA ESTÁ LONGE,<br />

MAS NUNCA É CEDO<br />

Essa luta é de todas e todos<br />

CUIDE-SE, AME-SE!<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

41


Angela Davis foi filósofa<br />

marxista e militante<br />

dos Panteras Negras, nos<br />

EUA. Depois de deixar o movimento,<br />

ela atuou no Partido<br />

Comunista dos Estados<br />

Unidos, em 1968. Angela sofreu<br />

intensa perseguição e<br />

foi posta na lista dos 10 mais<br />

procurados pelo FBI.<br />

Mas, na verdade, essa é Stefanny<br />

Elias, que luta <strong>por</strong> ser<br />

mulher negra e <strong>por</strong> reconhecer<br />

que é preciso lutar<br />

para ter seus direitos cumpridos.<br />

A luta é reflexo de<br />

toda sua ancestralidade.


Olga Benário foi membro do<br />

Partido Comunista alemão desde<br />

1926, participou do V Congresso da<br />

Juventude Comunista e foi presa <strong>por</strong><br />

três meses, acusada de atividades<br />

subversivas. Veio ao Brasil, com o<br />

objetivo de liderar uma insurreição<br />

armada que instalasse um governo<br />

revolucionário, mas foram capturados<br />

pela polícia e mesmo estando grávida,<br />

Olga foi de<strong>por</strong>tada para a Alemanha<br />

para ser executada pelos nazistas,<br />

em 1942.<br />

Mas, na verdade, essa é Marcela Nicolas,<br />

que luta <strong>por</strong> uma sociedade<br />

mais justa, na qual as pessoas sejam<br />

de fato iguais nas o<strong>por</strong>tunidades e<br />

liberdades.


VIOLÊNCIA<br />

POR SAULO ESLLEN MARTINS<br />

10 anos da Lei<br />

Maria da Penha<br />

Escassez de recursos ainda é entrave para sua efetivação


“Não, não te quero mais. Agora eu<br />

que decido aonde vou. Não, não, não<br />

su<strong>por</strong>to mais. Prefiro andar sozinha<br />

como sou”. O trecho do samba de<br />

Martinália versa sobre a realidade de<br />

muitas mulheres brasileiras. Na companhia<br />

de seus namorados, maridos<br />

ou ex-companheiros, <strong>elas</strong> tiveram sua<br />

liberdade limitada e passaram <strong>por</strong> inúmeras<br />

situações de violência. Se viram<br />

em um caminho no qual manter uma<br />

distância segura dos agressores passou<br />

a ser uma questão de vida ou morte.<br />

Os depoimentos são chocantes e<br />

os dados comprovam os fatos. No entanto,<br />

o perigo pode ser ainda maior,<br />

pois muitas d<strong>elas</strong> não sobreviveram<br />

para contar sua versão da história. Foram<br />

mortas p<strong>elas</strong> mãos de quem um<br />

dia fez parte de um conto de fadas,<br />

um sonho, uma história de amor.<br />

A violência contra a mulher ocorre<br />

de diversas formas. Danos psicológicos<br />

e emocionais, físicos e ao patrimônio<br />

estão no topo da lista. Os dados são<br />

alarmantes. A cada minuto quatro<br />

mulheres são agredidas no Brasil.<br />

Estima-se que entre os anos de 2001<br />

e 2011 ocorreram mais de 50 mil crimes<br />

de feminicídio.<br />

Hoje, em Belo Horizonte, de acordo<br />

com o Tribunal de Justiça de Minas<br />

Gerais (TJMG), existem 45 mil processos<br />

de violência doméstica contra<br />

mulheres. Essa quantidade está distribuída<br />

em ações penais, medidas protetivas<br />

e inquéritos que aguardam denúncia<br />

ou serão arquivados. Nessa matemática,<br />

restam 24 mil processos criminais<br />

para serem julgados na cidade.<br />

“Ele me segurava pelo cabelo... Eu<br />

me lembro que foi uma cena horrível e<br />

tudo aconteceu na frente dos meus filhos...<br />

Desculpe eu me emocionar, mas,<br />

tem horas que ainda dói... Eu gritava<br />

<strong>por</strong> socorro! Ninguém me ajudava. As<br />

pessoas fechavam <strong>por</strong>tas e jan<strong>elas</strong>. Para<br />

defender o meu filho, com medo dos<br />

socos e chutes, deixei ele deslizar pelo<br />

meu corpo até chegar ao chão”. O<br />

relato de Alda Ribeiro de Lima, vítima<br />

de violência doméstica, parece cena de<br />

filme, mas compõe um roteiro trágico<br />

que assusta a população brasileira.<br />

“<br />

A cada minuto<br />

quatro mulheres<br />

são agredidas<br />

no Brasil.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

45


A presidenta do Movimento Popular<br />

da Mulher de Belo Horizonte, Terezinha<br />

Avelar (foto), destaca que nem sempre<br />

os órgãos de proteção e apoio conseguem<br />

evitar o pior. “Você acompanha<br />

o caso, conduz a mulher a todos os<br />

equipamentos, contudo, no meio do<br />

caminho, ela pode desistir ou o agressor<br />

consegue matá-la. Quando isso ocorre<br />

acaba o nosso trabalho com ela e começa<br />

uma outra luta <strong>por</strong> justiça, pela<br />

punição dos culpados”.<br />

Joseílda Santos da Silva sofreu duas<br />

tentativas de homicídio. Ela conta que<br />

se sentia vulnerável, sem condição nenhuma<br />

para reagir, foi aí que buscou<br />

ajuda. “Nessa hora a gente entende<br />

que sozinha não dá”...<br />

Daniele Caldas é gerente do Centro<br />

de Apoio à Mulher – Benvinda/BH,<br />

ela destaca que as mulheres precisam<br />

adquirir condições para sair de uma situação<br />

de violência. “Existem questões<br />

subjetivas em relação ao fortalecimento<br />

dessa mulher, <strong>por</strong>que nós estamos falando<br />

de relações de afeto e intimidade.<br />

<strong>Elas</strong> precisam conseguir perceber em<br />

que contexto enfrentam a violência,<br />

<strong>por</strong>que, muitas vezes, nem compreendem<br />

que são vítimas”.<br />

Ao considerar dados de violência<br />

em 85 países, a Organização Mundial<br />

da Saúde (OMS) aponta que o Brasil<br />

tem uma taxa de 4,8 homicídios para<br />

cada 100 mil mulheres. Isso faz com<br />

que o país atinja o 5º lugar e tenha,<br />

pro<strong>por</strong>cionalmente, 48 vezes mais homicídios<br />

de mulheres do que Reino<br />

Unido, Dinamarca, Espanha, etc. A<br />

cada mulher que morre nesses países<br />

aqui morrem 48”.<br />

Evangelina Castilho Duarte é desembargadora<br />

do TJMG e também é<br />

uma militante feminista. Segundo a jurista,<br />

a violência contra a mulher é um<br />

problema principalmente do homem,<br />

<strong>por</strong>que ele é o ator, o agente da violência,<br />

a mulher é a vítima. “É preciso<br />

trabalhar muito com os meninos para<br />

que eles não se tornem futuros agressores.<br />

Eles devem ser os agentes transformadores<br />

que vão levar a ideia de<br />

não agressão para a comunidade. É<br />

uma questão de segurança pública e<br />

de educação”.<br />

Para a educadora Euzelina Dóris,<br />

quando se fala de violência, nós temos<br />

que pensar de uma forma mais ampla,<br />

não podemos mencionar só as agressões<br />

físicas, é preciso tratar também das feridas<br />

emocionais e afetivas. “Eu percebo<br />

uma certa banalização, até mesmo em<br />

uma simples conversa na rua. Existe<br />

um silenciamento, pois as pessoas não<br />

sabem ao certo onde vão fazer essas<br />

denúncias. Com isso, a gente consegue<br />

perceber o aumento da violência a cada<br />

dia que passa, mesmo diante de progressos<br />

relativos à Lei. É um paradoxo<br />

que precisa ser solucionado com mais<br />

ações educativas.”<br />

“<br />

É preciso trabalhar<br />

muito com os meninos<br />

para que eles<br />

não se tornem futuros<br />

agressores<br />

MARK FLOREST<br />

46 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong>


Um balanço sobre<br />

os mecanismos<br />

de combate à<br />

violência<br />

No dia 7 de agosto de 2006, o presidente<br />

Lula sancionou a Lei 11.340.<br />

Chamada popularmente de Lei Maria<br />

da Penha, a legislação criou mecanismos<br />

para coibir a violência doméstica e familiar<br />

contra a mulher. Em 10 anos de<br />

vigência, muitas vidas já foram salvas,<br />

contudo, especialistas e movimentos<br />

sociais acreditam que é preciso melhorar<br />

os equipamentos que atendem às vítimas.<br />

Jô Moraes é deputada Federal pelo<br />

PCdoB/MG e presidiu a CPMI da Violência<br />

contra a Mulher no Congresso.<br />

A parlamentar ressalta que, nesse momento<br />

em que são comemorados 10<br />

anos da Lei Maria da Penha, é preciso<br />

destacar que a tipificação do assassinato<br />

de mulheres como feminicídio foi<br />

uma conquista muito im<strong>por</strong>tante, <strong>por</strong>que<br />

deu mais visibilidade a esses crimes.<br />

Agora, estamos com outro<br />

desafio que é aprovar o Fundo Nacional<br />

de Enfrentamento à Violência. Enquanto<br />

estávamos com a CPMI em<br />

andamento, visitamos o conjunto dos<br />

serviços de atendimento e percebemos<br />

que são necessários mais recursos financeiros<br />

para a criação de delegacias,<br />

institutos médicos legais, varas especializadas,<br />

este é o nosso foco na Câmara<br />

dos Deputados.<br />

Joseilda Santos esclarece que,<br />

antes de tudo, as mulheres devem ser<br />

informadas sobre os seus direitos. Durante<br />

a sua rotina como agente comunitária<br />

de saúde, ela orienta a<br />

comunidade. “Busquei informações<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

47


sobre a Lei Maria da Penha e, hoje,<br />

guardo na ponta da língua muitos artigos.<br />

Não quero que ninguém sofra as<br />

mesmas coisas que eu passei”.<br />

Hoje, sei que ele sabe onde estou,<br />

não tenho medo <strong>por</strong>que aqui me sinto<br />

mais segura, tenho pessoas que me<br />

ajudam e apoiam, pessoas que não<br />

têm medo de falar que estão do meu<br />

lado para o que der e vier. O auxílio<br />

que recebi depois que a Lei foi estabelecida<br />

me fez confiar na Justiça”,<br />

salienta Alda Ribeiro.<br />

A defensora pública Samantha Vilarinho<br />

Mello afirma que a Lei Maria da<br />

Penha é conhecida <strong>por</strong> 98% da população<br />

e as pessoas fazem até piada<br />

com situações do cotidiano. “Você pode<br />

até não conhecer o detalhamento da<br />

legislação, mas sabe que existe. Se<br />

bater em mulher vai ter consequência,<br />

pode até ser preso. Isso gerou um processo<br />

de consciência da mulher. Além<br />

disso, todos que estão ao redor pressionam<br />

para que ela não desista da denúncia.<br />

Recentemente, atendi uma mulher<br />

que não queria procurar ajuda,<br />

mas as vizinhas, parentes diziam – é<br />

uma ameaça, vai que ele concretiza,<br />

você está correndo um risco muito grande,<br />

procure ajuda, vá à polícia. Isso é<br />

um bom motivo para comemorar!”<br />

Para o coordenador do Mapa da<br />

Violência no Brasil, Júlio Jacobo, o<br />

problema é que se fala muito da Lei,<br />

mas os recursos financeiros são escassos.<br />

“A área de segurança pública é<br />

muito contingenciada, <strong>por</strong>ém, investese<br />

naquilo que não vai trazer os resultados<br />

esperados. Um exemplo ocorre<br />

na guerra contra as drogas, compramse<br />

submarinos, armamentos e aviões,<br />

entretanto os altos índices de violência<br />

no Brasil só serão reduzidos com a reformulação<br />

educativa da cultura.”<br />

A farmacêutica Maria da Penha é uma das defensoras<br />

da efetivação da Lei que leva seu nome.<br />

O desabafo de Alda Ribeiro é<br />

tocante, de todo modo, pode parecer<br />

um pouco sensacionalista, mas, pode<br />

ajudar a mudar um pouco desse quadro.<br />

– “Ele me perguntava se eu o<br />

amava e eu dizia que sim para não<br />

apanhar mais. Eu sentei na cama e ele<br />

me fez levantar e sentar no chão. Ele<br />

puxava meu cabelo, cuspia no meu<br />

rosto. Só depois de muita confusão,<br />

ele dormiu. Peguei meus filhos e fui<br />

procurar ajuda, só que na época não<br />

tinha a Lei Maria da Penha, dessa<br />

forma, eu tive que escolher viver ao<br />

lado dos meus filhos e me sujeitar à<br />

violência, torcendo para que um dia<br />

isso acabasse, nem que fosse com a<br />

minha morte”.<br />

FÁBIO POZEBOM/AGÊNCIA BRASIL<br />

48 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong>


Rede de Enfrentamento<br />

à Violência contra a Mulher<br />

Em Minas Gerais, órgãos do judiciário,<br />

executivo e entidades da sociedade<br />

civil fazem parte da rede de<br />

enfrentamento à violência contra a mulher.<br />

A articulação tem o objetivo de facilitar<br />

o acesso aos serviços previstos<br />

na Lei Maria da Penha. Entre as reivindicações<br />

das entidades que compõem<br />

a Rede estão a criação de varas especializadas<br />

no interior do Estado e de<br />

um juizado que reúna diversos órgãos<br />

de apoio à mulher.<br />

No momento, são apenas quatro<br />

varas que funcionam na Capital. “Com<br />

o juizado, eu entendo que haveria uma<br />

proteção maior à mulher, <strong>por</strong>que essa<br />

vítima da violência contaria a sua<br />

história apenas uma vez para um único<br />

juiz, teria um magistrado que tem conhecimento<br />

especializado na proteção<br />

contra a violência doméstica. A parte<br />

cível: divórcio, pensão alimentícia, guarda<br />

de filhos, seriam decididos dentro<br />

da ótica da Lei”, explica a desembargadora<br />

Evangelina Castilho (foto).<br />

A representante do Centro de Apoio<br />

à Mulher esclarece que dentro dessa<br />

Rede existe uma ideia de conexão<br />

entre os serviços. No caso do Benvinda,<br />

a ideia é prestar atendimento psicológico,<br />

psicosocial, social e jurídico. “O<br />

nosso trabalho é integrado aos outros<br />

serviços, com a proposta de ouvir e<br />

discutir com <strong>elas</strong> quais serão as saídas<br />

para essa situação de violência, através<br />

do tratamento individual da questão<br />

como também de encaminhamentos<br />

sociais”, frisa Daniele Caldas.<br />

Já a Defensoria Pública promove o<br />

atendimento específico e especializado,<br />

conforme explica Samatha<br />

Vilarinho. “Nós fazemos uma orientação<br />

plena em direitos. Se percebermos<br />

que a mulher ainda não tem certeza de<br />

que quer fazer a denúncia encaminhamos<br />

para o atendimento psicossocial<br />

e, se <strong>por</strong> acaso ela já estiver certa de<br />

si, vamos dar andamento à questão<br />

jurídica”.<br />

“Hoje, acredito que 90% do problema<br />

eu já superei. Ainda não gosto<br />

muito de falar sobre os momentos que<br />

vivi. Eu quero mandar um recado para<br />

as mulheres que estão passando <strong>por</strong><br />

esse momento: – busquem ajuda e<br />

orientação, você não pode permanecer<br />

nessa situação de violência, <strong>por</strong>que<br />

a sua sobrevivência está em jogo. Não<br />

se cale!”, manifesta Joseilda Santos.<br />

“A agressividade e opressão contra<br />

as mulheres vem da sociedade machista<br />

que não avançou muito nesse sentido,<br />

<strong>por</strong> mais que a gente caminhe na discussão.<br />

A mídia coloca a mulher em um<br />

lugar que não permite o empoderamento<br />

feminino, haja vista que as nossas leis<br />

são construídas <strong>por</strong> homens; quem discute<br />

a ampliação dos direitos das mulheres,<br />

em todos os setores, em maioria<br />

são homens. Dessa maneira, nós não<br />

estamos sendo as protagonistas da história.<br />

Somos a maioria mas não estamos<br />

em um lugar de decisão para que possamos<br />

influir na construção das leis”,<br />

declara Terezinha Avelar, presidenta do<br />

Movimento Popular da Mulher.<br />

MARK FLOREST<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

49


Medidas protetivas<br />

Existem várias medidas protetivas<br />

previstas na Lei Maria da Penha. O<br />

objetivo é proteger as mulheres que<br />

sofreram agressões e ameaças. <strong>Elas</strong><br />

são consideradas exemplificativas, <strong>por</strong>tanto,<br />

na prática os juízes podem adicionar<br />

novos elementos, de acordo<br />

com o caso.<br />

Medidas mais comuns:<br />

➊ Afastamento do agressor da casa<br />

onde o casal mora, quando a mulher<br />

sofrer violência, independentemente<br />

de quem a casa pertença;<br />

➋ Permitir que a mulher se afaste da<br />

casa sem que ela perca os direitos relativos<br />

aos bens;<br />

➌ Quando a vítima é obrigada a fugir,<br />

é determinado o afastamento do agressor<br />

e recondução da mulher para a casa;<br />

➍ Proibição de aproximação do agressor<br />

a uma determinada distância. Cada<br />

juiz dá a distância que entender adequada.<br />

Proibição de se aproximar da<br />

mulher, familiares e testemunhas do<br />

caso;<br />

➎ Proibição de se fazer qualquer contato,<br />

seja <strong>por</strong> telefone, e-mail, redes<br />

sociais, etc;<br />

➏ Proibição de frequentar lugares onde<br />

a mulher transita com mais frequência,<br />

como casa e trabalho.<br />

Obs: A mulher deve tirar cópias da<br />

medida protetiva e carregar para<br />

onde ela for. Caso ocorra alguma<br />

violação, deve apresentar à policia.<br />

SERVIÇO<br />

Delegacia Especializada<br />

de Atendimento à<br />

Mulher - DEAM<br />

Funcionamento: 24 horas<br />

Rua São Paulo, 679, Centro<br />

Belo Horizonte/MG<br />

Ê 3270-3242 e 3270-3245<br />

Núcleo de Defesa<br />

da Mulher – NUDEM<br />

Funcionamento:<br />

das 8h às 17h<br />

Av. Amazona, 560,<br />

2º andar - Centro<br />

Belo Horizonte/MG<br />

Ê 3270-3202<br />

Centro Risoleta Neves de<br />

Atendimento de Minas<br />

Gerais - CERNA<br />

Funcionamento:<br />

das 8h às 17h<br />

Av. Amazonas, 558,<br />

1º andar - Centro<br />

Belo Horizonte<br />

Ê 3270-3235<br />

Benvinda - Centro de<br />

Apoio à Mulher<br />

Funcionamento:<br />

das 8h às 18h<br />

Rua Hermílio Alves, 34<br />

Santa Tereza<br />

Belo Horizonte/MG<br />

Ê 3277-4379 e 3277-4380<br />

ENTREVISTA<br />

ERMELINDA IRENO<br />

Qual é o balanço dos 10 anos da<br />

Lei Maria da Penha?<br />

Sem sombra de dúvida, é uma Lei<br />

muito robusta, uma das legislações<br />

mais qualificadas, se levarmos em consideração<br />

os países que decidiram enfrentar<br />

a violência contra a mulher. Os<br />

mecanismos previstos na Lei pensam<br />

desde a perspectiva de urgência ao<br />

atendimento continuado em diversas<br />

esferas, criminalização dos atos de violência<br />

e também o acompanhamento<br />

psicológico dos homens que praticaram<br />

atos de violência. No entanto, é<br />

necessário destacar que para a Lei ter<br />

efetividade é preciso o auxílio de alguns<br />

elementos, entre eles alguns serviços<br />

que já estavam constiuídos<br />

mesmo antes da Lei Maria da Penha.<br />

De toda forma, a Lei depende do funcionamento<br />

de todos os seus mecanimos<br />

para que seja efetivo o combate à<br />

violência. Sendo assim, o grande desafio<br />

que enfrentamos hoje, do ponto de<br />

vista aqui de Minas Gerais, <strong>por</strong> exemplo,<br />

é a aplicação, justamente pela falta<br />

de mecanismos que condicionem isso.<br />

Se formos analisar, temos em Minas<br />

853 municípios, mas não temos nenhum<br />

juizado previsto na Lei. O que<br />

temos são quatro varas especializadas<br />

que funcionam em Belo Horizonte, nenhuma<br />

também no interior do Estado,<br />

onde a Lei é aplicada nas varas criminais<br />

comuns.<br />

A situação é mais grave do que<br />

muita gente imagina?<br />

O nosso sinal estava alaranjado até<br />

pouco tempo atrás. Agora, já está co-<br />

50 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong>


meçando a ficar vermelho <strong>por</strong>que o<br />

número de feminicídios está assustador.<br />

É uma grande contradição, temos uma<br />

lei completa e as mulheres continuam<br />

morrendo. No nosso caso, isso ocorre<br />

<strong>por</strong>que temos uma sociedade extremamente<br />

machista e as mulheres passaram<br />

a reagir a essa condição de violência.<br />

A Lei Maria da Penha vem suscitando<br />

como a nossa sociedade é patriarcal.<br />

Esse é o primeiro fato. O segundo<br />

fato que o Mapa da Violência<br />

no Brasil comprova é que a violência<br />

contra a mulher diminui nas capitais e<br />

aumenta nas pequenas cidades, <strong>por</strong>que<br />

a Lei não é aplicada, principalmente,<br />

no interior do país. As mulheres denunciam,<br />

mas não possuem um aparato<br />

para protegê-las, assim a violência vai<br />

aumentar mesmo.<br />

No caso das delegacias, existe número<br />

suficiente? <strong>Elas</strong> funcionam bem?<br />

Essa é umas das políticas públicas de<br />

enfrentamento à violência contra as<br />

mulheres mais antigas no Brasil. Desde<br />

1985 já existem as Delegacias de Mulheres<br />

(Deams). Eu acredito que as delegadas<br />

tentam realizar um bom trabalho,<br />

mas o número ainda é bem tímido<br />

diante do tamanho do nosso Estado.<br />

Hoje, temos cerca de 87 delegacias,<br />

só que é preciso ressaltar o teor patriarcal<br />

desses órgãos. Ainda temos que lidar<br />

com delegadas e demais profissionais<br />

que na hora de fazer o registro perguntam<br />

à mulher: “– o quê você fez para<br />

apanhar?” Aí é bom frisar que se o escrivão<br />

age dessa maneira, isso legitima<br />

que algumas mulheres podem apanhar,<br />

que existem situações em que os maridos<br />

podem bater.<br />

DÉBORA JUNQUEIRA<br />

Até que ponto as medidas protetivas<br />

funcionam?<br />

Esse é outro mecanismo previsto na<br />

Lei, as Medidas Protetivas de Urgência,<br />

o juiz precisa deferir em até 48 horas.<br />

Só que essa não é a realidade, nós temos<br />

municípios da Região Metropolitana<br />

onde a medida leva até três meses<br />

para ser concedida. Isso pode acontecer<br />

pelo excesso de processos ou do não<br />

reconhecimento da im<strong>por</strong>tância da violência<br />

contra a mulher, a falta das<br />

varas e/ou juizados especiais, enfim<br />

são inúmeros fatores. Muitas vezes escutamos<br />

dos juízes que: “– são muitos<br />

os crimes que aguardam julgamento,<br />

existem casos mais urgentes e mais<br />

graves, eu não posso perder tempo<br />

pensando em medidas protetivas..”<br />

Agora, precisamos considerar que essa<br />

demora pode refletir na sentença de<br />

morte para uma mulher, <strong>por</strong>que a medida<br />

protetiva vai afastar o autor de<br />

agressão de casa.<br />

Qual é o papel que a educação<br />

pode desempenhar nesse debate?<br />

A educação, em muitos casos, exerce<br />

um papel tradicional que efetiva os<br />

modelos de com<strong>por</strong>tamento para homens<br />

e mulheres. Contudo, pensar a<br />

educação para a efetividade dessas mudanças<br />

é entender que professoras,<br />

professores e todos os profissionais do<br />

ensino podem alterar a dinâmica social<br />

na construção de papéis mais equânimes<br />

e não esse papel binário que determina<br />

que isso ou aquilo é de menino ou menina.<br />

Eu sou professora e lecionei na<br />

educação infantil e a gente via as filas<br />

que separam meninos e meninas, na<br />

educação física os meninos vão jogar<br />

bola e as meninas ficam ali brincando<br />

de alguma coisa. Ali, você já está dizendo<br />

o que cada um pode ou não<br />

fazer. No entanto, não podemos jogar<br />

essa responsabilidade só para a escola,<br />

mas ela tem um lugar de formação<br />

para alterar esse processo cultural.ø<br />

Ermelinda Ireno - Superintendente do Consórcio<br />

Mulheres das Gerais e coordenadora da Rede Estadual<br />

de Enfrentamento à Violência contra a Mulher<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

51


Tereza de Benguela<br />

ou“Rainha Tereza”, liderou<br />

o Quilombo de Quariterê,<br />

em Gua<strong>por</strong>é, no Mato Grosso.<br />

O quilombo resistiu com<br />

aproximadamente 100 pessoas<br />

até Tereza ser capturada<br />

e morta <strong>por</strong> soldados<br />

em 1770.<br />

Mas, na verdade, essa é<br />

Driely Marques, que luta<br />

pelo direito e representatividade<br />

da mulher negra<br />

e seu espaço na sociedade.


Iara Iavelberg militou na Organização<br />

Revolucionária Marxista<br />

Política Operária (Polop), na Vanguarda<br />

Popular Revolucionária<br />

(VPR), na VAR-Palmares e, finalmente,<br />

no Movimento Revolucionário<br />

8 de Outubro (MR-8). Ela foi uma<br />

das comandantes mais procuradas<br />

pela ditadura devido sua im<strong>por</strong>tância<br />

na resistência contra o golpe.<br />

Mas, na verdade, essa é Vithoria Ednere,<br />

que luta pelo fim do sistema<br />

patriarcal, machista, racista e preconceituoso.


ISTOCK<br />

ARTIGO<br />

POR SILVIA CHAKIAN<br />

Violência contra a<br />

mulher na internet


Na era digital e globalizada, onde<br />

pessoas do mundo inteiro, conectadas,<br />

se comunicam e compartilham mensagens,<br />

textos, fotos e vídeos, com velocidade<br />

e alcance assustadores, a internet,<br />

as redes sociais e os grupos de<br />

conversa ou mensagens instantâneas,<br />

infelizmente também constituem terreno<br />

fértil para a proliferação de toda forma<br />

de violação de direitos humanos –<br />

numa sociedade patriarcal, machista,<br />

racista e homofóbica – não é preciso<br />

muito esforço para imaginar quais são<br />

os grupos sociais mais atingidos.<br />

Só no Brasil são cerca de 81,5 milhões<br />

de pessoas com mais de dez<br />

anos acessando diariamente a internet<br />

pelo celular e gastando 29,7 horas<br />

<strong>por</strong> mês em conexão. A pesquisa<br />

Jovem Digital Brasileiro (Conecta,<br />

2014) mostrou que 96% dos entrevistados<br />

com idade entre 15 e 32 anos<br />

usam a Internet diariamente e 90%<br />

navegam nas redes sociais. Quatro<br />

aplicativos de comunicação estão em<br />

80% dos celulares (facebook, e-mail,<br />

whatsapp e youtube).<br />

São espaços virtuais que surgem<br />

como grande ferramenta de comunicação<br />

e informação, ao mesmo tempo<br />

em que abrem espaço para que a violência<br />

de gênero do mundo real seja<br />

praticada também no ambiente virtual,<br />

com alcance muito maior e consequências<br />

tão ou mais devastadoras,<br />

dada a capacidade de maior exposição<br />

da intimidade das vítimas, que pode<br />

ser disseminada a um número elevado<br />

e indeterminado de usuários, numa<br />

fração de segundos.<br />

É neste cenário que surge a chamada<br />

<strong>por</strong>nografia de vingança (revenge <strong>por</strong>n<br />

ou cyber vingança) e o cyberbullying.<br />

A <strong>por</strong>nografia de vingança se traduz<br />

na conduta do (ex) companheiro, (ex)<br />

namorado, (ex) marido ou terceiro que,<br />

após ter acesso permitido a fotografias<br />

e vídeos de conteúdo íntimo da vítima,<br />

decide divulgá-los, sem o seu consentimento,<br />

com o intuito de constrangê-la.<br />

A prática geralmente ocorre quando<br />

o parceiro (ou ex parceiro) não aceita<br />

a recusa da vítima em manter com ele<br />

relacionamento, ou não se conforma<br />

com sua decisão de rompê-lo. Também<br />

pode ocorrer quando a vítima viola as<br />

chamadas expectativas de gênero, adotando<br />

o que seria um “com<strong>por</strong>tamento<br />

feminino inadequado” (ex: traição).<br />

Já o cyberbullying vem sendo classificado<br />

como o uso do espaço virtual<br />

para disseminar comentários depreciativos,<br />

sendo as meninas e mulheres as<br />

principais vítimas.<br />

Em 2014, uma pesquisa realizada<br />

pelo Data Popular/Instituto Avon revelou<br />

que 83% dos homens entrevistados admitiram<br />

ter ameaçado publicar fotos ou<br />

vídeos da parceira nua na internet 1 .<br />

Essa prática que atinge milhares de<br />

meninas e mulheres, diariamente, no<br />

meio virtual, tem se revelado uma das<br />

formas mais graves de violência de gênero,<br />

ao mesmo tempo em que se<br />

“<br />

Essa prática que atinge<br />

milhares de meninas e<br />

mulheres, diariamente,<br />

no meio virtual, tem se<br />

revelado uma das formas<br />

mais graves de<br />

violência de gênero.<br />

apresenta como grande desafio <strong>por</strong><br />

parte de todos aqueles que lutam pelo<br />

fim da discriminação e violência contra<br />

a mulher.<br />

É fato que o Direito não acompanhou<br />

a evolução da tecnologia e o enquadramento<br />

da violência praticada na<br />

internet enfrenta a ausência de tipos<br />

penais específicos e adequados para<br />

descrever tais práticas.<br />

Atualmente os casos de cyberbullying<br />

podem configurar a prática de<br />

crimes contra a honra (injúria, calúnia<br />

e difamação), sem prejuízo de ensejarem<br />

responsabilização civil <strong>por</strong> danos morais<br />

e, em última análise, violência psicológica<br />

traduzida em lesão à saúde psíquica.<br />

Nas situações envolvendo menores de<br />

idade, a proteção vem do Estatuto da<br />

Criança e do Adolescente.<br />

Nos casos de <strong>por</strong>nografia de vingança,<br />

além dos crimes contra a honra,<br />

é possível que a conduta praticada pelo<br />

autor configure também os delitos de<br />

ameaça ou extorsão, dependo do caso.<br />

Vale dizer que os crimes contra<br />

honra, cujas penas previstas são bastante<br />

brandas, somente podem ser<br />

processados mediante ação penal privada,<br />

o que significa dizer que a vítima<br />

depende da Defensoria Pública ou de<br />

advogado constituído para o ajuizamento<br />

da queixa-crime.<br />

A Lei 12.737/12 (Lei Carolina<br />

Dieckmann) incluiu no Código Penal<br />

uma série de infrações praticadas no<br />

ambiente virtual, desde que o conteúdo<br />

divulgado tenha sido obtido de forma<br />

ilícita, ou seja, tenha sido subtraído,<br />

sem o conhecimento da vítima, razão<br />

pela qual não se aplica aos casos de<br />

<strong>por</strong>nografia de vingança, quando na<br />

grande maioria das vezes, o autor teve<br />

acesso ao conteúdo divulgado de maneira<br />

lícita.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

55


Em relação à retirada do material divulgado<br />

na rede, o Marco Civil da Internet,<br />

aprovado a partir da Lei n.<br />

12.965/14, previu que os provedores<br />

que não retirarem do ar o material após<br />

notificação extrajudicial poderão responder<br />

pelos danos causados à vítima.<br />

No mais, há diversos Projetos de<br />

Lei em tramitação no Congresso Nacional,<br />

com vistas a tipificar penalmente<br />

a conduta daquele que promove a divulgação<br />

e expõe, <strong>por</strong> meio de imagens,<br />

vídeos ou quaisquer outros meios de<br />

material que contenha nudez ou ato<br />

sexual de caráter privado.<br />

Merece destaque o Projeto de Lei<br />

nº 5.555 de 2013, de autoria do<br />

Deputado João Arruda, que altera a<br />

Lei nº 11.340/06 ao criar mecanismos<br />

para o combate a condutas<br />

ofensivas contra a mulher na internet<br />

ou em outros meios de propagação de<br />

informação.<br />

O Projeto, que tem como relatora<br />

a Deputada Tia Eron, tem como objetivo<br />

alterar o artigo 3º da Lei Maria da<br />

Penha, incluindo no respectivo rol o<br />

direito à comunicação, bem como<br />

acrescentar ao artigo 7º novo inciso<br />

(VI), que contará com a seguinte redação:<br />

“violação da sua intimidade, entendida<br />

como a divulgação <strong>por</strong> meio<br />

da Internet, ou em qualquer outro<br />

meio de propagação da informação,<br />

sem o seu expresso consentimento,<br />

de imagens, informações, dados pessoais,<br />

vídeos, áudios, montagens ou<br />

fotocomposições da mulher, obtidos<br />

no âmbito de relações domésticas,<br />

de coabitação ou de hospitalidade”.<br />

Uma das consequências mais significativas<br />

do Projeto refere-se à natureza<br />

da ação penal nesses casos. Entendeuse<br />

que para atingir melhor as finalidades<br />

do tipo penal, a ação deve ser pública<br />

condicionada à representação, ao contrário<br />

do que ocorre com os delitos<br />

contra a honra, que se processam mediante<br />

ação privada.<br />

Trata-se de providência imprescindível<br />

para se garantir às vítimas, o<br />

acesso pleno à justiça, evitando-se que<br />

a falta de informação ou de recursos<br />

limitem seu direito à busca pela responsabilização<br />

criminal dos responsáveis<br />

e reparação dos danos causados.<br />

Por fim, a despeito da necessidade<br />

urgente desse aprimoramento legislativo,<br />

não se desconhece que as causas<br />

ISTOCK<br />

sociais dessa forma de violência estão<br />

diretamente relacionadas às questões<br />

de nossa sociedade patriarcal e de expressões<br />

machistas, que reservam às<br />

mulheres o papel do recato, do com<strong>por</strong>tamento<br />

sexual “adequado”, discreto<br />

e tradicional.<br />

São essas expectativas sobre o<br />

“com<strong>por</strong>tamento feminino adequado”,<br />

criadas ao longo de séculos de dominação<br />

masculina, que autorizam o julgamento<br />

moral da vítima. Ao mesmo<br />

tempo em que tem sua intimidade exposta<br />

na internet, passa a ser responsabilizada<br />

pela própria violência que a<br />

vitimou, como se tivesse “contribuído”<br />

para sua ocorrência. Daí <strong>por</strong>que pessoas<br />

conhecidas ou mesmo desconhecidas<br />

das vítimas passam a compartilhar o<br />

material divulgado, disseminando-o no<br />

ambiente virtual.<br />

Dessa forma, evidentemente não<br />

basta a solução dos casos concretos e<br />

a tipificação adequada das formas de<br />

violência contra a mulher na internet.<br />

Mais que isso, a certeza é de que os<br />

avanços somente virão com a promoção<br />

de debates e reflexão da sociedade<br />

sobre os aspectos da naturalização da<br />

cultura de violência contra a mulher,<br />

que tolera o compartilhamento sucessivo<br />

desse conteúdo na rede, ignorando as<br />

consequências nefastas para as vítimas,<br />

que podem variar do isolamento social,<br />

stress pós traumático e depressão, até<br />

o suicídio. ø<br />

1. (disponível em http://www.agenciapatricia -<br />

galvao.org.br/dossie/pesquisas/violencia-contraa-mulher-o-jovem-esta-ligado/,<br />

acessado em 28<br />

de março de <strong>2016</strong>).<br />

Silvia Chakian de Toledo Santos - Promotora de<br />

Justiça de São Paulo, Especializada em Violência<br />

Doméstica e Familiar contra a Mulher, membro<br />

colaborador do Conselho Nacional do Ministério<br />

Público, integrante da Comissão Nacional de Combate<br />

à Violência Doméstica do Ministério Público.<br />

56 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong>


<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

57


Nadezhda Krupskaya foi liderança<br />

do Partido Social-Democrata<br />

Russo. Trabalhava para erradicar o<br />

analfabetismo entre a população russa,<br />

como um dos pilares do avanço<br />

da revolução bolchevique. Foi do Comissariado<br />

da Educação e responsável<br />

pela disseminação das bibliotecas<br />

pela União Soviética. Depois da revolução<br />

foi presa, exilada e escreveu<br />

o livro “A mulher trabalhadora” sobre<br />

as condições das mulheres russas que<br />

trabalhavam nos campos e fábricas.<br />

Mas, na verdade, essa é Ana Júlia<br />

Guedes, que luta <strong>por</strong> levar consigo a<br />

história das mulheres que deram sua<br />

vida nas revoluções.


Carmen da Silva foi<br />

uma das mais notáveis feministas<br />

brasileiras do século<br />

XX. Escritora e jornalista,<br />

ela aproximava-se do<br />

público feminino escrevendo<br />

artigos para uma revista feminina<br />

que discutia a questão<br />

da mulher, divulgava o<br />

movimento feminista brasileiro<br />

e suas principais bandeiras<br />

de luta.<br />

Mas, na verdade, essa é Paula<br />

Madeira, que luta <strong>por</strong> menos<br />

desigualdade social e melhor<br />

qualidade de vida para<br />

todos.


Elaine Cunha e sua filha, em “Maternidade<br />

- Mulheres com deficiências”.<br />

O ensaio reafirma o direito<br />

d<strong>elas</strong> serem mães, contra<br />

todo o preconceito da sociedade.<br />

FOTO: LULUDI MELO<br />

SUPERAÇÃO<br />

POR CECÍLIA ALVIM<br />

Protagonistas de<br />

uma outra história<br />

Mulheres com deficiência enfrentam grandes barreiras<br />

na luta <strong>por</strong> direitos e pelo respeito à diversidade<br />

60 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong>


Aparentemente, <strong>elas</strong> têm sim uma<br />

diferença... Olívia não enxerga com os<br />

olhos, mas com o coração. Fabíola não<br />

anda velozmente, no entanto, tem uma<br />

caminhada linda que inspira muita<br />

gente. Conceição já não anda, mas encanta<br />

com sua autonomia, generosidade<br />

e seu sorriso aberto, mesmo depois<br />

de ter passado <strong>por</strong> maus bocados<br />

na vida. Já Rejane se desloca para todo<br />

lado com sua prótese na perna, símbolo<br />

de suas vitórias sobre o preconceito<br />

e as adversidades do caminho.<br />

Assim como essas mulheres de histórias<br />

anônimas fizeram de cada obstáculo<br />

uma o<strong>por</strong>tunidade para se tornarem<br />

pessoas melhores, tantas outras<br />

mulheres com deficiência no Brasil e<br />

no mundo são sinônimo de superação<br />

e inspiração para muitas pessoas. Isso<br />

não significa, entretanto, que ser mulher<br />

com deficiência seja algo fácil numa<br />

sociedade diversa, mas ainda muito<br />

excludente e preconceituosa.<br />

“Com o mercado de trabalho altamente<br />

competitivo hoje, alguns empregadores<br />

acham que aceitar uma pessoa<br />

com deficiência pode afetar a produtividade.<br />

No entanto, quando isso acontece,<br />

as pessoas tornam-se mais humanas<br />

e solidárias, aumenta o trabalho<br />

em equipe, o ambiente muda”, destaca<br />

a psicóloga Patrícia Valadares.<br />

Em novembro de 2013, durante o<br />

I Seminário Nacional de Políticas Públicas<br />

e Mulheres com Deficiência,<br />

promovido pelo governo federal, as<br />

mulheres representantes da sociedade<br />

civil e do poder público das cinco<br />

regiões do país, aprovaram uma carta<br />

com 41 propostas “necessárias ao fortalecimento<br />

das mulheres com<br />

deficiência e à efetividade dos direitos<br />

e políticas públicas direcionadas ao<br />

segmento”.<br />

“<br />

Muitas vezes as mulheres<br />

com deficiência<br />

ficam mais vulneráveis<br />

às violações<br />

de direitos.<br />

Entre as propostas, estão pontos<br />

im<strong>por</strong>tantes que desnudam a dura realidade<br />

vivida <strong>por</strong> <strong>elas</strong>: “intensificar, no<br />

âmbito do Ministério do Trabalho, campanhas<br />

e treinamentos junto aos empregadores,<br />

voltadas para superação<br />

das barreiras atitudinais que impedem<br />

o acesso d<strong>elas</strong> ao trabalho; promover<br />

pesquisas e indicadores relacionados a<br />

essas mulheres, especificando suas deficiências;<br />

promover a realização de<br />

campanhas com foco na autoestima<br />

de meninas e mulheres com deficiência,<br />

bem como no enfrentamento a estereótipos,<br />

discriminações e preconceitos;<br />

sensibilizar e subsidiar o poder judiciário<br />

para a promoção dos direitos dessas<br />

mulheres, estabelecendo parcerias para<br />

o enfrentamento à violência, e para o<br />

fim dos pedidos de esterilização involuntária,<br />

interdição forçada e internação<br />

compulsória; assegurar às mulheres<br />

com deficiência o direito ao exercício<br />

de sua sexualidade, a constituição de<br />

família, ao pleno gozo dos direitos sexuais<br />

e reprodutivos, incluído o direito<br />

à gestação e à adoção”, entre outras.<br />

Para Luciene Carvalhais, psicóloga<br />

que atua na área, muitas vezes as mulheres<br />

com deficiência ficam mais vulneráveis<br />

às violações de direitos. “Somase<br />

a isso, em alguns casos, o preconceito<br />

de gênero, de raça, a falta de laços familiares<br />

e de condições financeiras.<br />

Nessa soma de estigmas, aumenta a<br />

vulnerabilidade”.<br />

Autonomia e resistência<br />

Para a professora de psicologia Fabíola<br />

Fernanda do Patrocínio, usuária<br />

de cadeira de rodas, a deficiência<br />

remete a uma posição de descrédito e<br />

desvantagem, criando uma ordem de<br />

exclusão socialmente construída, <strong>por</strong>ém<br />

é uma experiência singular. “Convivi<br />

com mulheres com todos os tipos de<br />

deficiência e com posturas muito distintas<br />

diante da vida, e percebi que<br />

cada uma tem um modo particular de<br />

compreender as experiências de limitações,<br />

rejeição, preconceito, o que<br />

pode culminar em posicionamentos de<br />

fragilidade, vitimização e submissão ou<br />

na construção de posicionamentos libertários<br />

e emancipatórios”.<br />

Em sua dissertação de mestrado em<br />

Psicologia, Fabíola avaliou a realidade<br />

das mulheres com deficiência física adquirida.<br />

Ela destaca alguns elementos<br />

que desencadeiam os processos de autonomia<br />

dessas mulheres, entre eles a<br />

disponibilidade para intercâmbios sociais;<br />

a implicação com uma obra a ser<br />

realizada, como a educação de um<br />

filho, o trabalho, o es<strong>por</strong>te, a arte; recursos<br />

financeiros e o acesso a tecnologias<br />

como cadeira de rodas, próteses<br />

e outras. “Contudo, o fundamental é<br />

que essas mulheres cultivem o 'cuidado<br />

de si', atualizando constantemente lutas<br />

subjetivas e sociais que lhes possibilitem<br />

produzir uma vida bela mesmo<br />

nessas condições”.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

61


45,6 milhões<br />

da população brasileira<br />

informam ter algum tipo de deficiência<br />

15 milhões<br />

deficiência<br />

visual<br />

16 milhões<br />

deficiência<br />

motora<br />

25,7milhões<br />

são mulheres<br />

11,8 milhões<br />

deficiência<br />

intelectual<br />

4,9 milhões<br />

deficiência<br />

auditiva<br />

*Algumas mulheres possuem<br />

mais de uma deficiência<br />

DIFERENÇA SALARIAL<br />

mulheres ganham<br />

menos<br />

17,2% 28,5%<br />

se tiverem<br />

deficiência<br />

que os homens<br />

Fonte: IBGE<br />

A Carta do I Seminário Nacional<br />

de Políticas Públicas e Mulheres com<br />

Deficiência apontou também três propostas<br />

relacionadas à área da educação,<br />

que podem contribuir para a promoção<br />

de uma cultura do respeito à diversidade<br />

e à dignidade das meninas e mulheres<br />

com deficiência a partir da escola: garantir<br />

a deficiência como categoria<br />

transversal nos parâmetros curriculares<br />

nacionais; difundir a Lei Maria da<br />

Penha na rede de ensino, garantindo<br />

os formatos acessíveis; garantir a inclusão<br />

de meninas com deficiência em<br />

idade escolar na rede regular de ensino<br />

e o trans<strong>por</strong>te acessível.<br />

Histórias que<br />

inspiram<br />

Entre tantas mulheres com diversas<br />

deficiências que enfrentam<br />

inúmeros obstáculos para viver<br />

em sociedade, estudar, trabalhar,<br />

criar suas famílias, quatro d<strong>elas</strong><br />

contam suas histórias de vida que<br />

significam muito mais do que as<br />

palavras são capazes de expressar.<br />

São histórias que comprovam os<br />

dados sobre a desigualdade e as<br />

dificuldades que as mulheres com<br />

deficiência encontram para viver,<br />

mas que revelam grandes superações.<br />

Histórias que são sinônimo<br />

de esperança e do poder que as<br />

mulheres têm para mudar o<br />

mundo!<br />

Olívia Souza Silva<br />

Um problema de retinose pigmentar,<br />

detectado na infância, fez Olívia perder<br />

a visão progressivamente. “É um problema<br />

atrás dos olhos. Minhas córneas<br />

são perfeitas. Quero doá-las quando<br />

eu me for. Você pode ver, meus olhos<br />

têm brilho”.<br />

Com 5 anos, Olívia saiu de Araçuaí<br />

para Belo Horizonte com os pais e irmãos,<br />

alguns deles também com baixa<br />

visão. Para os pais trabalharem, foi estudar<br />

no Instituto São Rafael, instituição<br />

de educação para pessoas com deficiência<br />

visual, onde ficou em regime<br />

de internato até os 12 anos. Ao ouvir<br />

de uma colega que estava numa “escola<br />

de cegos” é que ela se deu conta de<br />

que praticamente não enxergava. A<br />

partir daí viveu uma fase difícil de aceitação<br />

de si mesma. “No São Rafael,<br />

aprendi a ler em Braille (sistema de leitura<br />

com o tato), aprendi a me cuidar,<br />

a cozinhar, tinha amigos como eu”.<br />

Com 14 anos, Olívia recebeu o<br />

difícil diagnóstico após o exame com<br />

o oftamologista: “essa doença é progressiva.<br />

Em algum momento, você<br />

vai perder toda a visão e não há nada<br />

que a medicina possa fazer. Mas você<br />

tem duas opções: pôr fim à sua vida,<br />

ou escolher ser feliz”. Segundo Olívia,<br />

não foi fácil ouvir isso, mas foi o empurrão<br />

que precisava para passar a<br />

“ver” a vida de outro modo. “Eu pensei<br />

comigo que queria viver e resolvi que<br />

ia fazer tudo o que pudesse na vida.<br />

Tive uma juventude boa, animada, e<br />

sempre fui feliz, até demais”, conta<br />

com uma risada genuína. “Meu natural<br />

é sorrindo, <strong>por</strong>que amo a vida. Mas é<br />

claro que tive dias em que não estava<br />

bem, enfrentei muitas dificuldades”.<br />

62 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong>


MARK FLOREST<br />

Ainda muito jovem, foi mãe, assumindo<br />

o filho sozinha. “Enfrentei o<br />

preconceito de pessoas que achavam<br />

que eu não daria conta de cuidar dele<br />

e que ele poderia ter o mesmo problema.<br />

Mas superei tudo isso, ele nasceu<br />

bem, e fiz tudo que uma mãe faz”.<br />

Olívia conviveu com muitos amigos,<br />

namorou e encontrou o “homem dos<br />

seus sonhos”, Edésio, que também tem<br />

deficiência visual, com quem se casou<br />

aos 29 anos de idade e teve mais um<br />

filho, que enxerga.<br />

Embora quisesse trabalhar, ela conta<br />

que não conseguia. “Ia atrás de vagas,<br />

mas sempre me diziam que depois me<br />

ligariam”, conta. Passou a vender loterias<br />

no centro da cidade, assim como<br />

seus irmãos com deficiência visual. Assim,<br />

sustentava a si e a seus filhos. Até<br />

30 e poucos anos, ela enxergava pouco<br />

durante o dia, via vultos e movimentos,<br />

e nada à noite. Aos poucos, passou a<br />

não enxergar com os olhos, e a perceber<br />

o mundo com o coração, usando<br />

os demais sentidos, que se aguçaram.<br />

Após anos vendendo loterias na rua,<br />

Olívia recebeu finalmente uma proposta<br />

para trabalhar no Sindicato dos Professores.<br />

“Era um sonho ter a minha carteira<br />

assinada”. Em um primeiro momento,<br />

ela mesma teve receio de não<br />

conseguir se adaptar à nova função de<br />

telefonista. Mas com o apoio de diretores<br />

“<br />

A deficiência<br />

me ensinou a<br />

ver as pessoas<br />

<strong>por</strong> dentro.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

63


e colegas, Olívia se firmou na nova<br />

profissão e conseguiu transcrever para<br />

o braile todas as informações que precisava<br />

para desenvolver bem suas atividades.<br />

“Através do meu jeito de trabalhar,<br />

quis provar para mim e para as<br />

pessoas que deficiente visual é capaz<br />

sim. Todo deficiente devia aprender<br />

que não somos coitadinhos, pois somos<br />

capazes de muitas coisas”.<br />

Com 47 anos, fez o ensino médio<br />

através do EJA (Educação de Jovens e<br />

Adultos). No início, percebeu certa resistência<br />

da turma e de alguns professores<br />

à sua presença, mas com o<br />

tempo ganhou o apoio da sala. “Fechei<br />

a prova de matemática do primeiro bimestre<br />

e ajudei a organizar a formatura.<br />

Não quero nada de graça, eu quero<br />

conquistar. Preciso lutar para ocupar o<br />

meu espaço”.<br />

Segundo ela, um grande desafio<br />

para as pessoas com deficiência visual<br />

é realmente ocupar outros espaços da<br />

cidade além da escola, como os equipamentos<br />

públicos, o trans<strong>por</strong>te coletivo<br />

e as ruas: ter os lugares preferenciais<br />

respeitados, entrar nos ônibus, não<br />

trombar com obstáculos nas calçadas.<br />

Além disso, faltam livros e materiais<br />

em braile: “Acho que já li quase todos<br />

que existem para consulta na biblioteca<br />

pública”, conta Olívia.<br />

Olívia acredita que a sociedade precisa<br />

superar preconceitos e possibilitar<br />

o<strong>por</strong>tunidades de trabalho e apoio para<br />

os estudos para toda pessoa com deficiência.<br />

“Quero fazer o Enem e estudar<br />

Psicologia para poder ajudar as pessoas.<br />

Sou vitoriosa. A deficiência me ensinou<br />

a ver as pessoas <strong>por</strong> dentro. Você olha<br />

as fisionomias. Eu conheço pela voz,<br />

pelo perfume, pelo tato, pelo abraço”.<br />

E é assim, com brilho nos olhos e na<br />

alma, que Olívia segue seu caminho.<br />

Rejane Dias Ferreira<br />

Rejane nasceu com uma lesão na<br />

medula. O médico disse à sua mãe<br />

que ela não iria andar, que viveria<br />

entre 7 e 10 anos, e que nunca seria<br />

uma “bailarina na vida”. Ao contrário<br />

dos prognósticos médicos, ela teve<br />

poucas sequ<strong>elas</strong>. “Eu sou um milagre<br />

de Deus. Tenho algo muito im<strong>por</strong>tante<br />

para fazer nesse mundo”.<br />

Perdeu o pai com um ano de idade.<br />

Sua mãe foi morar com sua avó, e<br />

depois de um tempo deixou os filhos<br />

com ela. Sua avó, Maria Vieira, hoje<br />

com 81 anos, sempre a levou aos médicos<br />

para os cuidados que precisava.<br />

Com cerca de um ano de vida, a lesão<br />

na medula gerou uma ferida no pé, que<br />

foi tratada como um problema na pele.<br />

No entanto, era o sinal de um problema<br />

associado que se chama osteomielite,<br />

uma inflamação no osso. Teve que fazer<br />

mais de 40 cirurgias para tentar sanar o<br />

problema. Segundo ela, algumas foram<br />

desnecessárias, erros médicos. Houve<br />

desgaste do osso <strong>por</strong> tantas cirurgias.<br />

“Meu refúgio era ficar internada. Era o<br />

único momento em que eu sentia que<br />

me viam, que recebia atenção”.<br />

Rejane teve fases de depressão<br />

desde criança. Vivia chorando, assistindo<br />

TV e fechada em seu quarto. Só saía<br />

para ir à escola. “Não tinha muitos<br />

amigos. Minha vida era essa: ir no<br />

posto, a médicos, fazer curativos, buscar<br />

remédios”. A ferida no pé fazia minar<br />

constantemente um líquido com um<br />

odor forte e as pessoas se afastavam<br />

dela <strong>por</strong> isso. Na escola, sofria com os<br />

apelidos ruins, com o fato dos colegas<br />

se sentarem distante dela, e até com<br />

atitudes agressivas. “Eu achava absurdo<br />

ficar longe de todo mundo. Uma vez<br />

minha avó foi na escola explicar a<br />

minha situação e dizer que eu tinha alguém<br />

para me defender”.<br />

Repetiu de ano várias vezes, pois<br />

frequentemente ficava 20, 30 dias no<br />

hospital. A difícil recuperação era em<br />

casa com os pés para cima. Quando<br />

foi para o ensino médio, já tinha 21<br />

anos. Teve uma infecção forte às vésperas<br />

de se formar. “Fiquei triste <strong>por</strong><br />

não poder ir à minha formatura”. Com<br />

26 anos, passou <strong>por</strong> uma fase difícil<br />

de saúde e ficou internada. O seu médico<br />

então afirmou, chorando, que não<br />

havia mais saída, que já tinha feito<br />

tudo o que podia, mas que agora seria<br />

preciso amputar sua perna, que já<br />

estava toda comprometida. “Depois<br />

dessa difícil decisão, nunca mais precisei<br />

voltar para o hospital. Foi uma libertação.<br />

Mas nenhuma mulher está preparada<br />

para perder um membro, afeta a<br />

imagem que temos de nós mesmas”.<br />

Após um ano para a recuperação<br />

completa da cirurgia de amputação, Rejane<br />

colocou uma prótese na perna,<br />

mas não fez fisioterapia para voltar a<br />

andar. “Aprendi sozinha. Fui me reerguendo<br />

e aprendendo a viver com a<br />

prótese, que é um acessório, com ela<br />

tudo é possível. Hoje sinto que caminho<br />

com tranquilidade”. Ela teve alguns tra-<br />

“<br />

Apesar de grandes<br />

dificuldades, deu<br />

passos grandiosos.<br />

64 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong>


MARK FLOREST<br />

balhos de carteira assinada e, atualmente,<br />

trabalha no Sindicato dos Professores.<br />

Para Rejane, um dos desafios para<br />

as pessoas com deficiência física é o<br />

deslocamento na cidade, que começa<br />

pela fila e pela entrada nos ônibus.<br />

Teve que mostrar a perna com a<br />

prótese várias vezes no coletivo e em<br />

outros lugares públicos para conseguir<br />

se assentar ou ter prioridade.<br />

Na sua opinião, muita gente ainda<br />

olha as pessoas com deficiência com<br />

preconceito. “Isso dói. Essa é a pior<br />

parte, acharem que a deficiência te<br />

torna uma pessoa inferior. Eu não sou<br />

metade de uma perna. Eu sou muito<br />

mais do que o pedaço da perna que eu<br />

perdi, que não me servia mais”. Ela<br />

afirma que aprendeu a lidar com o receio<br />

e a curiosidade das pessoas em<br />

relação à deficiência. “Mas não tem<br />

como acostumar com o preconceito,<br />

que é muita pobreza de espírito. Há<br />

muitas pessoas que têm a mente pequena<br />

em relação à diferença”. Rejane<br />

conta que já teve alguns relacionamentos,<br />

mas lamenta ser vista comumente<br />

com preconceito. “Percebo que muitos<br />

homens não se envolveriam comigo<br />

<strong>por</strong>que eu sou assim. Mas penso que<br />

amor é convivência. Se você convive,<br />

você aprende a amar”.<br />

Com sofrimento e coragem, ela<br />

aprendeu a andar e a vencer os obstáculos<br />

do caminho. “Essas dificuldades<br />

todas foram para me moldar, para me<br />

fazer mais forte. Eu tenho orgulho da<br />

pessoa que me tornei a partir da minha<br />

história”. E é com essa força de quem<br />

não desanima, que ela quer “fazer algo<br />

muito im<strong>por</strong>tante nesse mundo”: suscitar<br />

a esperança no coração das pessoas.<br />

“Eu quero ser pastora de mulheres, líder<br />

na minha Igreja, para fortalecer outras<br />

mulheres a partir da minha história”.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

65


Maria da<br />

Conceição Pires<br />

dos Santos<br />

Sãozinha, como é conhecida, é sorridente,<br />

falante, esperta. Hoje em dia<br />

se locomove numa cadeira de rodas,<br />

em função de uma doença degenerativa,<br />

a artrose, que trouxe muita dor e foi limitando<br />

seus movimentos. Tem também<br />

deficiência intelectual, condição que<br />

trouxe limitações para sua vida, mas<br />

também muitas experiências e aprendizados,<br />

e uma visão de mundo singular.<br />

Ainda pequena foi deixada em um<br />

abrigo, e de lá passou <strong>por</strong> outras instituições<br />

onde morou. “Eu ficava querendo<br />

ver meu prontuário. Queria saber<br />

se tinha mãe, irmão, pai. Queria saber<br />

toda minha história direito”, conta em<br />

um livro que escreveu. Parte de sua<br />

vida passou na antiga Febem, junto a<br />

outras crianças com e sem deficiência<br />

deixadas lá. “Eu tenho um trauma até<br />

hoje. Tinha muita coisa ruim lá. Era<br />

muita covardia. Até hoje eu abaixo a<br />

cabeça e começo a chorar.”<br />

Depois que a Febem foi extinta,<br />

Conceição e parte dessas pessoas com<br />

deficiência que não conseguiu ser reinserida<br />

em suas famílias de origem,<br />

foram transferidas para casas-lares da<br />

APAE (Associação de Pais e Amigos<br />

de Excepcionais) em Belo Horizonte.<br />

Nesses lares, são estimuladas a viver<br />

com autonomia, a cuidar de si mesmas,<br />

a desenvolver suas potencialidades e a<br />

trabalhar, dentro de suas possibilidades.<br />

“É um lugar de resgate da cidadania e<br />

da dignidade, onde essas pessoas vivem<br />

como irmãos há muitos anos”, observa<br />

Elen Mariz, assistente social da Apae.<br />

Segundo ela, Conceição “sobreviveu a<br />

todo esse holocausto” vivido nos abrigos,<br />

na Febem, e apesar disso, “tem<br />

muita habilidade social”.<br />

Ela morou durante alguns anos<br />

numa casa com outras quatro mulheres<br />

com deficiência intelectual e múltipla.<br />

Ajudou a cuidar dessa casa, “sempre<br />

com muito bom humor”. Ia sozinha<br />

no posto de saúde, na hidroginástica,<br />

na igreja. Trabalhou de carteira assinada<br />

na Apae durante alguns anos. Participava<br />

de reuniões em Belo Horizonte e<br />

Brasília como conselheira do Conselho<br />

Nacional de Assistência Social e do<br />

Conselho da Pessoa com Deficiência,<br />

onde ajudou a pleitear direitos e políticas<br />

públicas para as pessoas com deficiência.<br />

Sempre que preciso, tinha uma<br />

pessoa de apoio para ajudá-la a se<br />

deslocar, a entender e a participar de<br />

alguns debates. “Tínhamos chance de<br />

falar, de discutir. A gente é muito im<strong>por</strong>tante”,<br />

diz Conceição.<br />

Segundo Luciene Carvalhais, psicóloga<br />

na APAE, a deficiência intelectual<br />

traz um comprometimento das funções<br />

cognitivas e do com<strong>por</strong>tamento adaptativo.<br />

No entanto, para Patrícia Valadares,<br />

coordenadora de ações integradas<br />

da APAE, a sociedade ainda não entende<br />

que essas pessoas são capazes<br />

de muitas coisas, e que muitas vezes<br />

“<br />

Ela venceu o<br />

abandono, o<br />

preconceito e<br />

lutou <strong>por</strong> direitos<br />

só precisam de apoio, seja um mobiliário<br />

acessível, alguns recursos para<br />

se deslocar ou viver ou o simples apoio<br />

de outra pessoa na realização de certas<br />

atividades. “A pessoa que tem problema<br />

assim, não tem sua vontade, sua liberdade.<br />

Eu já tive namorado, já quis casar”,<br />

conta Sãozinha. A questão da sexualidade<br />

na deficiência intelectual é<br />

mais delicada ainda, segundo a psicóloga<br />

Luciene. “<strong>Elas</strong> têm interesses e querem<br />

mostrar, mas não são compreendidas.<br />

Há mulheres cegas e surdas com marido,<br />

filhos, mas no caso da deficiência<br />

intelectual isso é raro. Os familiares<br />

têm alguns receios, inclusive de quem<br />

vai cuidar dos filhos, de como isso vai<br />

ser. Nas casas-lar, algumas d<strong>elas</strong> têm<br />

namorado, mas são orientadas a se<br />

cuidar”, destaca.<br />

Segundo as profissionais da APAE,<br />

Sãozinha andava, dançava, pulava, até<br />

que passou a apresentar problema<br />

nos joelhos, fez cirurgia, tomou medicamentos,<br />

mas não adiantou. Como a<br />

doença é progressiva, passou a usar<br />

muleta e depois cadeira de rodas. “Eu<br />

já estudei, sou muito inteligente e entendo<br />

o que aconteceu comigo. Mas<br />

até hoje eu fico deprimida. Eu tenho<br />

que confirmar que a vida é assim, que<br />

o im<strong>por</strong>tante é a cabeça, é ter autonomia”,<br />

diz num triste desabafo de quem<br />

ressignificou a própria história. “Hoje<br />

eu ajudo na cozinha, faço artesanato,<br />

vejo televisão, gosto de música, de<br />

passear, de cantar no karaokê”.<br />

Conceição também gosta de registrar<br />

o que vive. “Eu quis escrever, <strong>por</strong>que<br />

via as coisas e guardava”. Quando foi<br />

à praia, ganhou um caderno vermelho<br />

da amiga Mercês, onde começou a escrever<br />

seus textos. “O tempo foi passando<br />

desde que escrevi minhas primeiras<br />

histórias”. Em 2005, o caderno<br />

66 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong>


se transformou num livro também de<br />

capa vermelha, que se chama: “Histórias<br />

da Conceição”, onde conta um<br />

pouco de suas descobertas e revela<br />

sua habilidade para escrever. “Hoje estou<br />

muito triste, deprimida. Ana Paula<br />

vai embora da APAE. Eu gosto muito<br />

dela. Arrumei minhas coisas e quis ir<br />

embora para sempre... É difícil conhecer<br />

as pessoas e d<strong>elas</strong> se separar. É mais<br />

difícil ainda para mim. Vou aprender<br />

aos poucos. Vou aprender a me controlar.<br />

Aprender a me conhecer. Eu sei<br />

que vou ver a Ana Paula ainda”, conta<br />

Conceição em um de seus textos, que<br />

demonstra a singular sabedoria que<br />

ela desenvolveu para viver e sorrir,<br />

apesar das adversidades.<br />

MARK FLOREST<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

67


Fabíola Fernanda<br />

do Patrocínio Alves<br />

Fabíola teve poliomelite aos 3 anos<br />

e 9 meses. Ficou 3 meses internada.<br />

Os médicos achavam que ela não ia<br />

sobreviver. A sequela da doença foi a<br />

perda total dos movimentos dos membros<br />

inferiores, a paraplegia.<br />

Ainda bem pequena, poucos anos<br />

depois de dar os primeiros passos, Fabíola<br />

teve que reaprender a viver sem<br />

andar. “Foi um refazer, uma retomada.<br />

Minha família teve que aprender a lidar<br />

com isso. Esse princípio da fé foi um<br />

alicerce da nossa vida, e é até hoje”,<br />

conta. Com o tempo ela reaprendeu a<br />

andar em casa, brincando com os irmãos,<br />

e com a ajuda de aparelhos.<br />

“Não é fácil para uma criança usar<br />

uma órtese, <strong>por</strong>que são equipamentos<br />

que machucam”.<br />

O apoio da família, e especialmente<br />

da mãe, Gláucia, foi fundamental para<br />

ela conseguir se refazer e tocar a vida<br />

adiante. “Eu sabia que minha mãe não<br />

ia me deixar fora da escola. Quando<br />

entrei, aos 6 anos, e <strong>por</strong> um bom<br />

tempo, ela me carregava no colo para<br />

a aula”, conta Fabíola, ao lembrar<br />

também que viveu o processo de<br />

inclusão escolar, numa época em que<br />

não se falava disso. “Era um salve-se<br />

quem puder na escola. Mas encontrei<br />

professoras muito abertas para<br />

acolher, que não sabiam como lidar,<br />

mas aprendiam”.<br />

Um dia os chefes de seu pai se sensibilizaram<br />

com a sua situação, levaram<br />

para ela uma boa cadeira de rodas e a<br />

apoiaram na reabilitação. Passou, então,<br />

<strong>por</strong> uma cirurgia nos quadris para<br />

esticar as pernas que estavam encurtando.<br />

Enquanto se recuperava, fez o<br />

primeiro semestre letivo em casa, deitada<br />

em uma cama. Com a ajuda de<br />

uma professora particular voluntária e<br />

de uma prancheta, fazia atividades e<br />

provas que a escola enviava.<br />

Concluiu o ensino médio, como os<br />

demais colegas. Fez o vestibular e começou<br />

a faculdade de psicologia aos<br />

19 anos. “O trans<strong>por</strong>te era sempre<br />

uma dificuldade. Minha mãe me acompanhou<br />

a faculdade inteira para me<br />

auxiliar nos deslocamentos, e sempre<br />

me esperava. Ela investiu em mim, na<br />

minha independência”, conta e se emociona<br />

ao lembrar de todos os esforços<br />

que faziam juntas.<br />

Teve seu primeiro namorado com<br />

18 anos. Anos depois se casou com<br />

Dirlei. “Ele me aceitou como sou, me<br />

apoia e ajuda”, diz com admiração.<br />

Quando engravidou, enfrentou resistências.<br />

“Muita gente achou que eu ia<br />

arrumar menino para minha mãe cuidar.”<br />

Ela conta que curtiu a gestação,<br />

se cuidou e fez o pré-natal adequadamente.<br />

Hoje, ela leva sua filha Esther,<br />

com 4 anos, para a escola, dirigindo<br />

um carro adaptado.<br />

“A educação nasceu em mim, primeiro<br />

como aluna, depois como professora.<br />

Do ensino infantil ao mestrado,<br />

“<br />

Ela superou<br />

barreiras e se<br />

tornou<br />

professora.<br />

não foi uma caminhada fácil”. Fez uma<br />

especialização e o mestrado em Psicologia,<br />

e passou a lecionar em faculdades<br />

particulares. Atualmente é doutoranda<br />

em Educação na UFMG. “Minha luta<br />

resultou em algo, onde eu cheguei.<br />

Sou privilegiada <strong>por</strong> isso. Eu sempre<br />

acreditei que as coisas iam dar certo,<br />

68 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong>


dava os primeiros passos e tinha apoio<br />

para prosseguir”.<br />

Trabalhou na Coordenadoria de<br />

Apoio e Assistência à Pessoa com Deficiência,<br />

com RH e em clínica, e depois<br />

começou a trabalhar no Instituto Esther<br />

Assunção. Hoje ela é coordenadora de<br />

projetos do Instituto, onde atua no programa<br />

que promove a inclusão de alunos<br />

com deficiência nas escolas, e é professora<br />

na Faculdade Pitágoras, em Betim.<br />

Fabíola diz que a deficiência física a<br />

ensinou a ter humildade, a contar com<br />

as pessoas, a reconhecer que há limitações.<br />

“Minha vida inteira foi de reconstruções.<br />

Tenho construído uma arte de<br />

viver, de articular apoios e acessibilidade.<br />

Se não há soluções arquitetônicas nos<br />

locais onde vou, driblo isso usando o<br />

diálogo, a articulação, a gratidão com<br />

as pessoas. A deficiência não é um<br />

mundo cor de rosa. Mas há um colorido,<br />

misturado com outros tons... Temos<br />

que nos reinventar a cada dia”.ø<br />

MARK FLOREST<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

69


Tuira Kayapo é uma mulher<br />

guerreira do povo indígena Kayapó.<br />

Ao sentir a ameaça da construção<br />

da represa Belo Monte sobre o Rio<br />

Xingu, ela levou seu facão até o engenheiro<br />

chefe do projeto, passou<br />

a lâmina em seu rosto e disse:“A<br />

eletricidade não vai nos dar a nossa<br />

comida. Precisamos que nossos rios<br />

fluam livremente. O nosso futuro<br />

depende disso. Nós não precisamos<br />

de sua represa”.<br />

Mas, na verdade, essa é Larissa Lopes,<br />

médica que luta diariamente<br />

para que todas mulheres da América<br />

Latina tenham acesso à saúde.


MARK FLOREST<br />

RACISMO<br />

POR DÉBORA JUNQUEIRA<br />

Violência simbólica<br />

e negligência<br />

Racismo institucional afeta a saúde da mulheres negras<br />

72 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong>


O Brasil é o segundo país do mundo<br />

com a maior população negra e as<br />

mulheres negras representam 25% dos<br />

191 milhões de habitantes. Essas mulheres<br />

formam a grande massa que<br />

busca atendimento na saúde pública e<br />

têm dificuldades de acesso aos serviços.<br />

É o que aponta o Relatório Anual das<br />

Desigualdades Raciais no Brasil 2009-<br />

2010. O tratamento desigual que, principalmente,<br />

as mulheres negras recebem<br />

nas instituições <strong>por</strong> causa de sua cor é<br />

considerado racismo institucional.<br />

Segundo o Relatório, 40,9% das<br />

negras (pretas e pardas) nunca haviam<br />

feito mamografia, contra 22,9% das<br />

brancas. Outras 18,1% das mulheres<br />

negras nunca haviam feito o exame<br />

Papanicolau, contra 13,2% das brancas.<br />

Em relação ao pré-natal, 71% das<br />

mães de crianças brancas fizeram mais<br />

de sete consultas; o número de mães<br />

de crianças negras que passaram pelos<br />

mesmos exames é 28,6% inferior.<br />

No Brasil, o Programa de Combate<br />

ao Racismo Institucional (PCRI) implementado<br />

em 2005, definiu o racismo<br />

institucional como “o fracasso das instituições<br />

e organizações em prover um<br />

serviço profissional e adequado às pessoas<br />

em virtude de sua cor, cultura,<br />

origem racial ou étnica. “Ele se manifesta<br />

em normas, práticas e com<strong>por</strong>tamentos<br />

discriminatórios adotados no<br />

cotidiano do trabalho, os quais são resultantes<br />

do preconceito racial, uma<br />

atitude que combina estereótipos racistas,<br />

falta de atenção e ignorância.<br />

Em qualquer caso, o racismo institucional<br />

sempre coloca pessoas de grupos<br />

raciais ou étnicos discriminados em situação<br />

de desvantagem no acesso a<br />

benefícios gerados pelo Estado e <strong>por</strong><br />

demais instituições e organizações”.<br />

(CRI, 2006, p.22).<br />

A pesquisa nacional sobre Discriminação<br />

Racial e Preconceito de Cor<br />

no Brasil, realizada em 2003, pela<br />

Fundação Perseu Abramo e Instituto<br />

Rosa Luxemburgo Stufting, mostra<br />

que apenas 3% da população brasileira<br />

já se percebeu discriminada nos<br />

serviços de saúde. Entre as pessoas<br />

negras que referiram discriminação,<br />

68% foram discriminadas no hospital,<br />

26% nos postos de saúde e 6% em<br />

outros serviços não especificados.<br />

Ainda que isso tenha sido percebido,<br />

poucos buscaram denunciar o ato.<br />

Entre aqueles que o fizeram, ninguém<br />

relatou ter sido informado sobre as<br />

providências tomadas pela instituição<br />

para reverter o quadro.<br />

A estudante de fisioterapia Regina<br />

Célia Costa Domingos (foto) fez estágio<br />

durante um ano na Unidade de<br />

Pronto Atendimento (UPA Centro-Sul)<br />

em Belo Horizonte. Ela relata que presenciou<br />

alguns casos que acredita se<br />

configurarem como racismo. “Observava<br />

que, já na triagem, as mulheres<br />

negras, mesmo com a verificação da<br />

taxa de glicose baixa, esperavam mais<br />

para serem atendidas do que as pessoas<br />

de pele mais clara. Os profissionais<br />

“<br />

40,9% das negras<br />

(pretas e pardas)<br />

nunca haviam feito<br />

mamografia,<br />

contra 22,9% das<br />

brancas.<br />

costumam julgar mais a pessoa negra,<br />

suspeitando que <strong>elas</strong> estão passando<br />

mal <strong>por</strong> que beberam ou se drogaram,<br />

mas não pensam o mesmo dos brancos.<br />

Isso pra mim é racismo”, opina.<br />

Segundo Regina, sua percepção<br />

vem dos comentários ou perguntas diferenciadas<br />

feitas aos negros, como<br />

<strong>por</strong> exemplo justificar que o remédio<br />

fez mal <strong>por</strong>que a pessoa deve ter misturado<br />

com bebida, ou mesmo perguntar<br />

para uma mulher negra com<br />

quantos parceiros ela tem relações sexuais.<br />

“Quando um jovem negro chega<br />

ferido num pronto-socorro, ele é visto<br />

como um bandido, mas quando o mesmo<br />

ocorre com um jovem branco,<br />

ficam curiosos para saber como ele se<br />

envolveu numa briga e <strong>por</strong>que se feriu,<br />

como se o jovem negro estivesse no<br />

seu lugar natural, mas o jovem branco<br />

não”, afirma<br />

Violência simbólica<br />

O racismo institucional está diretamente<br />

ligado à forma como a sociedade<br />

está estruturada e com a falta de reconhecimento<br />

da cidadania plena da população<br />

negra, impedindo-a de acessar<br />

integralmente bens e serviços, reduzindo<br />

a longevidade e potencializando agravos<br />

na saúde. Conforme esclarece o Ministério<br />

da Saúde (<strong>por</strong>taldasaúde.gov.br),<br />

o racismo não se apresenta necessariamente<br />

na forma de atitudes discriminatórias<br />

explícitas, mas também na<br />

forma de resultados negativos ou desiguais<br />

para o grupo vulnerável (negação<br />

da necessidade). É preciso identificar o<br />

racismo nas instituições e como ele<br />

ocorre, a saber: linguagem codificada<br />

(violência simbólica) e negligência (indiferença<br />

diante da necessidade).<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

73


Para a professora do UNI-BH e diretora<br />

do Sinpro Minas, Ângela Maria<br />

da Silva Gomes (doutora em etnobotânica<br />

negro-africana, coordenadora nacional<br />

do movimento negro unificado<br />

e membro do comite impulsor da Marcha<br />

Mulheres Negras) o racismo ocorre<br />

quando há a crença de supremacia de<br />

um grupo sobre o outro. “Numa sociedade<br />

desigual vão sempre ensinar<br />

às vítimas que <strong>elas</strong> estão num lugar<br />

natural e ao opressor que o fato de ele<br />

estar <strong>por</strong> cima, assim como todas as<br />

atitudes dele contra o oprimido, também<br />

é algo natural”, exemplifica. Segundo<br />

ela, o racismo institucional começa<br />

com a formação de uma violência simbólica.<br />

Os médicos vão estudar onde<br />

somente há brancos e cria-se uma<br />

ideia natural de que o grupo de mulheres<br />

negras é inferior, como se tivessem incapacidade<br />

intelectual. “Se os médicos<br />

cristalizam isso, quando vão atender o<br />

paciente eles dizem: tem esse remédio<br />

aqui, mas ele é caro, vou receitar outro.<br />

Ele não pergunta se o paciente tem dinheiro.<br />

O produto da violência simbólica<br />

é que o sujeito cria um papel para o<br />

outro. Então a mulher negra é a prostituta<br />

e, quase sempre, o preconceito<br />

antecede o diagnóstico. Há casos em<br />

que o médico nem encosta na pessoa<br />

negra, <strong>por</strong>que acha que ela é um vetor<br />

de doenças”, afirma.<br />

Segundo Ângela, os estereótipos<br />

são reducionistas, enclausura a pessoa<br />

num determinado modelo. “Se a pessoa<br />

sair daquele modelo vai sofrer violência<br />

e ser discriminado. O racismo se utiliza<br />

da violência simbólica, ou seja, repetir<br />

os símbolos tantas vezes que acreditase<br />

que é verdade”, explica. “Há um<br />

genocídio da juventude negra, um feminicídio<br />

negro, pois 65% das mulheres<br />

mortas são negras. Há poucas estatísticas<br />

e estudos sobre racismo dentro<br />

das universidades. Isso é uma alienação<br />

que ocorre como forma de ocultar os<br />

conflitos”, opina.<br />

Mulheres negras e aids<br />

Em artigo intitulado Consciência<br />

Negra: Racismo institucional, mulheres<br />

negras e a aids, Emanuelle Goes,<br />

enfermeira, blogueira, doutoranda em<br />

Saúde Pública pela UFBA (Universidade<br />

Federal da Bahia), descreve que a barreira<br />

institucional funciona como uma<br />

rede que se ramifica, impede o acesso<br />

das mulheres negras e piora o seu<br />

processo de adoecimento, vulnerabilizando-as<br />

nas diversas entradas dos serviços<br />

de saúde, desde a oferta de preservativos<br />

no planejamento reprodutivo,<br />

aos exames para o HIV no pré-natal,<br />

assim como no diagnóstico e tratamento,<br />

seu retardo e o acesso precário<br />

serão os principais fatores do agravamento<br />

da doença e da morte precoce.<br />

De acordo com a Pesquisa Nacional<br />

de Demografia e Saúde - PNDS (BRA-<br />

SIL, 2008) sobre a oferta de teste para<br />

o HIV no pré-natal, para 79,7% das<br />

“<br />

“Há um genocídio<br />

da juventude negra,<br />

um feminicídio negro,<br />

pois 65% das<br />

mulheres mortas<br />

são negras.<br />

Tempo de<br />

atendimento médico (%)<br />

BRANCAS<br />

NEGRAS<br />

Acompanhantes no parto<br />

46,2 27<br />

Consultas de pré-natal (2012)<br />

85,8 71,8<br />

Orientação para a im<strong>por</strong>tância<br />

do aleitamento materno<br />

77,7 62,5<br />

Teste de HIV<br />

84,7 79,7<br />

Mortes maternas<br />

34 60<br />

Mortalidade na primeira<br />

semana de vida<br />

36 47<br />

74 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong>


mulheres negras é ofertado o teste,<br />

enquanto para as brancas, o índice é<br />

de 84,7% - isso sabendo-se que o teste<br />

do HIV no pré-natal faz parte do grupo<br />

de exames obrigatórios durante a consulta,<br />

de acordo com os protocolos do<br />

Ministério da Saúde.<br />

MARK FLOREST<br />

Mitos e negligência<br />

A questão é que o racismo institucional<br />

nem sempre se expressa em<br />

atos manifestos, explícitos ou declarados<br />

de discriminação. “Ao contrário, atua<br />

de forma difusa no funcionamento cotidiano<br />

de instituições e organizações,<br />

que operam de forma diferenciada na<br />

distribuição de serviços, benefícios e<br />

o<strong>por</strong>tunidades aos diferentes segmentos<br />

da população do ponto de vista racial”,<br />

relata Laura Cecilia López no artigo O<br />

conceito de racismo institucional:<br />

aplicações no campo da saúde. (Interface<br />

- Comunic., Saude, Educ., v.16,<br />

n.40, p.121-34, jan./mar. 2012.).<br />

Com base em pesquisas, Laura Cecilia<br />

questiona se o que as instituições<br />

em saúde disseminam seriam, de fato,<br />

práticas sistemáticas baseadas em um<br />

imaginário de fragilidades intrínsecas à<br />

mulher branca e uma ‘força natural’<br />

que dispensa maiores cuidados para a<br />

mulher negra, ou, de outra parte, a<br />

negligência em relação a problemas<br />

de saúde que as atingem.<br />

Para a professora Ângela Gomes,<br />

quando o profissional de saúde trata a<br />

mulher negra como se ela aguentasse<br />

mais a dor, ele tem na cabeça a imagem<br />

da escravidão. “Quando a mulher não<br />

tem atendimento adequado chega-se<br />

na violência física, com casos de aplicação<br />

do medicamento errado ou achar<br />

que o paciente com anemia falciforme<br />

Para a professora Ângela Gomes o racismo institucional pode levar à morte.<br />

está fazendo manha. O racismo institucional<br />

pode levar à morte, <strong>por</strong>que a<br />

pessoa pode não ter o atendimento<br />

emergencial”, esclarece.<br />

Ela lembra que o cuidado com a<br />

saúde que as mulheres negras historicamente<br />

carregaram precisa ser resgatado.<br />

“As mães de santo de terreiro<br />

tratam de todos sem discriminação.<br />

Essa lição deveria ser aprendida. No<br />

período da escravidão, as mulheres<br />

negras tratavam da saúde da população,<br />

eram raizeiras, lutavam pela liberdade.<br />

A matriz da mulher negra é de cuidar,<br />

é da saúde. As amas de leite, quitandeiras<br />

e quilombolas entendem a saúde<br />

como algo sagrado e dão uma lição de<br />

enfrentamento ao racismo”, conclui.<br />

Políticas de combate<br />

ao racismo<br />

A saúde das mulheres negras foi<br />

tema de audiência pública da subcomissão<br />

especial da Câmara dos deputados<br />

que avalia as políticas de assistência<br />

social e saúde da população<br />

negra, realizada em junho de 2015.<br />

Em re<strong>por</strong>tagem da Agência Câmara<br />

Notícias sobre o evento que reuniu representantes<br />

de ONGs de mulheres negras<br />

e do governo, a coordenadorageral<br />

da Saúde das Mulheres do<br />

Ministério da Saúde, Maria Esther de<br />

Albuquerque Vilela, ressaltou que há<br />

estudos que provam que profissionais<br />

consideram as mulheres negras mais<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

75


esistentes à dor. “<strong>Elas</strong> são menos tocadas<br />

do que uma mulher branca, <strong>elas</strong><br />

são negligenciadas. Tem toda uma<br />

questão de racismo institucional, que<br />

temos trabalhado com isso para mudar<br />

a cultura das instituições para que a<br />

gente possa diminuir o risco de morte<br />

materna de mulheres negras”, afirma.<br />

Ela assinala que 92% das mortes provocadas<br />

pela demora no atendimento<br />

poderiam ser evitadas.<br />

O Relatório da Subcomissão Especial<br />

destinada a Avaliar as Políticas de Assistência<br />

Social e Saúde da População<br />

Negra, da Comissão de Seguridade<br />

Social e Família da Câmara dos Deputados,<br />

foi aprovado em outubro de<br />

2015, com várias recomendações ao<br />

Poder Executivo sobre saúde da população<br />

negra. Entre <strong>elas</strong> estão: a proposição<br />

de um projeto de lei que<br />

estenda o acompanhamento da saúde<br />

de crianças e jovens até dezessete anos<br />

no âmbito do programa Bolsa Família;<br />

a prioridade para apreciação do Projeto<br />

de Lei nº 7.103, de 2014, da Deputada<br />

Benedita da Silva, que “modifica a Lei<br />

nº 12.288, de 20 de julho de 2010<br />

(Estatuto da Igualdade Racial), para incluir<br />

o quesito cor ou raça nos prontuários,<br />

registros e cadastramentos do<br />

Sistema de Informação em Saúde do<br />

Sistema Único de Saúde (SUS), além<br />

de outras recomendações ao Ministério<br />

da Saúde, Ministério do Desenvolvimento<br />

Social e Combate à Fome e ao<br />

Ministério das Mulheres, Igualdade Racial<br />

e Direitos Humanos a partir das<br />

conclusões do trabalho da Subcomissão.<br />

Nilma Lino Gomes, enquanto ministra<br />

da Secretaria de Políticas de<br />

Promoção da Igualdade Racial – SEP-<br />

PIR, destacou a necessidade de implantar<br />

e consolidar o Sistema Nacional<br />

de Promoção da Igualdade Racial – SI-<br />

NAPIR, que tem como objetivos aprimorar<br />

o sistema de informação em<br />

saúde, incluindo o quesito raça/cor<br />

nas estatísticas; desenvolver ações para<br />

reduzir a anemia falciforme, hanseníase,<br />

câncer de colo uterino, entre outras;<br />

garantir e ampliar o acesso da população<br />

do campo e das florestas, bem<br />

como das áreas quilombolas, aos serviços<br />

de saúde. Para executar a política,<br />

prevê-se a criação de comitês técnicos<br />

de saúde nos estados e municípios.<br />

Segundo a extinta SEPPIR, o monitoramento<br />

das desigualdades raciais<br />

em saúde, <strong>por</strong> meio dos sistemas de<br />

informação, é uma ferramenta im<strong>por</strong>tante<br />

para a gestão, pois além de subsidiar<br />

a formulação de políticas públicas,<br />

permite a comparação entre perfis epidemiológicos<br />

e a avaliação de equidade<br />

na utilização de serviços de saúde.<br />

Para Nilma Gomes, o racismo é<br />

um fenômeno ideológico, fator de violação<br />

de direitos e produção de iniquidades,<br />

especialmente no campo da<br />

saúde. “O racismo tem relação com as<br />

condições em que a pessoa nasce,<br />

com a sua trajetória familiar, com as<br />

condições de trabalho e o acesso a<br />

bens. O racismo também é visível na<br />

“<br />

92% das mortes<br />

provocadas pela<br />

demora no<br />

atendimento<br />

poderiam ser<br />

evitadas<br />

qualidade do cuidado e da assistência<br />

prestada, o que é evidenciado nos indicadores<br />

de morbimortalidade”(referente<br />

à incidência das doenças e/ou<br />

dos óbitos de uma população), afirma.<br />

O documento Racismo como Determinante<br />

da Saúde, elaborado em<br />

2011 pela Secretaria de Políticas de<br />

Ações Afirmativas – SPAA/SEPPIR,<br />

com a colaboração do Comitê Técnico<br />

de Saúde da População Negra, ressalta<br />

que a utilização do conceito raça para a<br />

análise das desigualdades verificadas na<br />

saúde de pessoas e grupos não afasta<br />

outros fatores também im<strong>por</strong>tantes na<br />

produção de diferenciais e injustiças<br />

neste campo. “Entre eles, é preciso destacar<br />

os fatores socioeconômicos de gênero,<br />

idade, fatores ambientais, entre<br />

outros, que agem concomitantemente<br />

com a raça e vão determinar a ampliação<br />

ou redução dos diferenciais apresentados.<br />

No entanto, vale também<br />

assinalar que, em vários estudos, de diversas<br />

áreas do conhecimento, o controle<br />

das variáveis demonstrou a<br />

persistência da raça – ou do racismo –<br />

como fator im<strong>por</strong>tante na produção de<br />

desigualdades”, diz o documento.<br />

Desde maio de 2009, está oficializada<br />

a Política Nacional de Saúde Integral<br />

da População Negra, cujo objetivo<br />

geral é “promover a saúde integral da<br />

população negra, priorizando a redução<br />

das desigualdades étnico-raciais, o combate<br />

ao racismo e à discriminação nas<br />

instituições e serviços do SUS” (Brasil,<br />

2010, p.33). “Essa política dialoga<br />

com um conjunto de ações e políticas<br />

voltadas à promoção da equidade no<br />

SUS – Saúde LGBT, Saúde da População<br />

do Campo, Floresta e Águas,<br />

Saúde da População em Situação de<br />

Rua e Educação Popular em Saúde”,<br />

explica a ex-ministra.<br />

76 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong>


Campanha de<br />

enfrentamento<br />

ao racismo na<br />

saúde<br />

O governo federal lançou, em<br />

novembro de 2015, uma campanha<br />

publicitária que buscou envolver<br />

usuários e profissionais da rede pública<br />

de saúde na luta contra o racismo.<br />

Com o slogan Racismo faz<br />

mal à saúde. Denuncie! A ação<br />

visa conscientizar a população de<br />

que a discriminação racial também<br />

se manifesta na saúde.<br />

As peças veiculadas na TV, rádio,<br />

impresso e redes sociais incentivam<br />

as pessoas a não se calarem<br />

diante de atos de discriminação<br />

no Sistema Único de Saúde (SUS).<br />

Por meio do Disque Saúde (136) é<br />

possível denunciar qualquer situação<br />

de racismo ou obter informações<br />

sobre doenças mais comuns entre<br />

a população negra e que exigem<br />

um melhor acompanhamento.<br />

É o caso do diabetes mellitus<br />

(tipo II), cuja taxa de mortalidade,<br />

a cada 100 mil habitantes, afeta<br />

na população preta 34,1 habitantes,<br />

na população parda atinge 29,1 e<br />

entre a branca, 22,7. A anemia<br />

falciforme, doença grave que deve<br />

ser diagnosticada precocemente<br />

<strong>por</strong> meio do teste do pezinho, é<br />

encontrada em maior escala entre<br />

a população negra, com incidência<br />

que varia de 6% a 10%, enquanto<br />

no conjunto da população oscila<br />

entre 2% e 6%.ø<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

77


Ísis Dias de Oliveira foi militante<br />

da Ação Libertadora Nacional<br />

durante a ditadura.Foi presa no dia<br />

30/01/1972 pelo DOI-CODI/RJ ,e<br />

desde então, ficou desaparecida <strong>por</strong><br />

anos até que em 1987 seu nome apareceu<br />

em uma lista de presos políticos<br />

falecidos. Seus pais nunca tiveram<br />

respostas das autoridades militares<br />

sobre o que aconteceu com<br />

ela durante a prisão.<br />

Mas, na verdade, essa é Isis Medeiros,<br />

fotógrafa do projeto, que luta<br />

pela liberdade de expressão e <strong>por</strong><br />

uma mídia honesta que de fato emancipe<br />

o povo com informação real.


Zuzu Angel foi estilista e valorizou<br />

a moda brasileira com as rendas<br />

cearenses, estampas de chita,<br />

cores e formas tropicais. Ela protestou<br />

contra o regime militar através<br />

de suas estampas, mas após o<br />

desaparecimento de seu filho, militante<br />

do Movimento Revolucionário<br />

8 de Outubro (MR-8), ela começou<br />

a denunciar a tortura e assassinato<br />

de jovens presos. Zuzu morreu em<br />

1976, em um acidente de carro provocado<br />

<strong>por</strong> agentes da repressão.<br />

Mas, na verdade, essa é Débora de<br />

Araújo, que luta <strong>por</strong> um projeto feminista<br />

e popular.


http://www.mothernaturepartnership.org<br />

SAÚDE<br />

POR NANCI ALVES<br />

Intimidade ameaçada<br />

Acesso a absorventes higiênicos ainda é<br />

um problema para muitas mulheres<br />

80 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong>


Há muito tempo falar sobre menstruação<br />

deixou de ser um tabu, mas é<br />

incrível que em pleno século 21, mulheres<br />

sofram pela falta de absorventes<br />

higiênicos, seja <strong>por</strong> problemas financeiros<br />

ou <strong>por</strong> negação de direitos. O<br />

que, em princípio, poderia ser somente<br />

um problema íntimo feminino tornase<br />

um problema social quando atinge<br />

mulheres em privação de liberdade ou<br />

em extrema pobreza. Mas, ainda bem<br />

que algumas d<strong>elas</strong> podem contar com<br />

iniciativas criativas e solidárias que ajudam<br />

a contornar o problema.<br />

Menstruei aos quase 14 anos de<br />

idade. Foi uma grande alegria, pois<br />

esperava ansiosa <strong>por</strong> esta transformação,<br />

já que minhas amigas todas eram<br />

“mocinhas”, como se dizia na década<br />

de 70. Após perceber a novidade, chamei<br />

minha mãe na <strong>por</strong>ta do banheiro<br />

e ela, naturalmente, me disse: “espera<br />

um pouquinho que já volto”. Ela era<br />

uma mulher simples que, quando menstruou<br />

pela primeira vez, em 1940,<br />

teve que se virar sozinha, pois não<br />

tinha liberdade para falar disso com<br />

sua mãe. Minha avó só ficou sabendo<br />

que minha mãe já tinha menstruado<br />

três anos depois, quando estava programando<br />

levá-la ao médico para entender<br />

o atraso das “regras”. Foi aí<br />

que <strong>elas</strong> conversaram sobre o assunto,<br />

mas com muita reserva. Seguramente,<br />

como minha avó, mamãe lavava e secava<br />

sua toalhinha às escondidas em<br />

algum canto da casa. Prática comum,<br />

até então, de quase todas as mulheres,<br />

apesar de ser exatamente neste período<br />

que o Brasil começou a produzir o primeiro<br />

absorvente higiênico descartável<br />

(Modess). Claro que bem poucas mulheres<br />

tiveram acesso ou quiseram a<br />

novidade nos primeiros anos – a mudança<br />

foi gradativa.<br />

Bem, voltando à minha história,<br />

pouco tempo depois, minha mãe retorna<br />

com um pacotinho de absorvente<br />

e me dá as orientações necessárias.<br />

Uma situação tão natural já naquela<br />

época, mas que ainda hoje não é a<br />

realidade de milhares de adolescentes<br />

e mulheres em várias partes do mundo.<br />

De acordo com pesquisa do Unicef,<br />

uma em cada 10 estudantes africanas<br />

faltam às aulas durante o período menstrual,<br />

o que equivale a até 20% do ano<br />

letivo, <strong>por</strong> falta de absorventes ou de<br />

saneamento adequado. Muitas dessas<br />

meninas abandonam a escola <strong>por</strong> completo,<br />

o que aumenta a probabilidade<br />

de complicações de saúde, gravidez na<br />

adolescência e casamento precoce, e<br />

limita ainda mais a sua futura carreira<br />

e o<strong>por</strong>tunidades econômicas. Em Uganda,<br />

uma das iniciativas que surgiu para<br />

tentar mudar essa realidade foi uma<br />

empresa social que produz absorventes<br />

a baixo custo, a AFRIpads.<br />

Em seu site (ww.afripads.com/),<br />

eles afirmam que criaram uma indústria<br />

de base rural, gerando emprego para<br />

mais de 150 ugandeses, a maioria mulher.<br />

“AFRIpads Kits menstruais são<br />

absorventes reutilizáveis projetados para<br />

“<br />

Uma em cada 10<br />

estudantes africanas<br />

faltam às aulas<br />

durante o período<br />

menstrual.<br />

fornecer proteção na higiene feminina<br />

e conforto para adolescentes e mulheres<br />

que, <strong>por</strong> falta de recursos, precisam<br />

usar do improviso durante a “semana<br />

da vergonha”: pedaços de roupas velhas,<br />

de colchão de espuma, papel higiênico,<br />

folhas e fibras de bananeira.<br />

Tudo anti-higiênico e desconfortável.”<br />

Privação de liberdade<br />

e de absorventes<br />

Uma outra situação inimaginável<br />

sobre a falta de absorvente higiênico é<br />

vivida <strong>por</strong> mulheres que estão em situação<br />

de privação de liberdade, no<br />

Brasil. Presas, muitas vezes abandonadas<br />

p<strong>elas</strong> famílias, precisam buscar alternativas<br />

nada confortáveis como, <strong>por</strong><br />

exemplo, usar o miolo de pão em formato<br />

de absorvente interno, mais conhecido<br />

como OB. O que representa<br />

um risco grande para a sua saúde.<br />

De acordo com Adelaide Augusta<br />

Belga, enfermeira obstetra que presta,<br />

voluntariamente, atendimento (prénatal,<br />

planejamento familiar, saúde da<br />

mulher) em alguns presídios femininos<br />

na região metropolitana de Belo<br />

Horizonte, “o miolo de pão é um meio<br />

de cultura favorável para o crescimento<br />

de microrganismos como bactérias,<br />

fungos, vírus, etc. Todos estes são<br />

causadores de vaginoses, doenças<br />

infec cio sas de caráter ginecológicos<br />

que podem agravar se não forem<br />

detectados e tratados precocemente”.<br />

Da mesma forma, o uso de toalhinha<br />

como absorvente higiênico pode ser<br />

um risco para a saúde, caso não seja<br />

lavada, desinfetada e exposta ao sol<br />

para secar bem. “Tem mulheres que,<br />

<strong>por</strong> questões culturais e ecológicas,<br />

utilizam as toalhinhas, pois estão<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

81


contribuindo com a diminuição do lixo<br />

ambiental, uma vez que não terá<br />

descarte do absorvente”, afirma.<br />

“A primeira vez que eu tomei conhecimento<br />

da realidade da falta de<br />

absorvente foi no presídio Bicas II<br />

(MG). Em uma visita, as meninas reclamaram<br />

da pouca alimentação, mas<br />

como eu já tinha visto dentro da cela<br />

um saquinho cheio de miolo de pão,<br />

eu disse: é pouca comida e vocês ainda<br />

jogam o miolo do pão fora? A moça<br />

abaixou a cabeça e me disse: não é<br />

para jogar fora não. É para fazer OB,<br />

pois não temos visita de família e estamos<br />

sem absorventes. Na hora, fui tomada<br />

<strong>por</strong> uma raiva tão grande que<br />

eu tive vontade de gritar. O Estado fala<br />

que gasta R$2.400,00 com cada presa,<br />

mas se a família não visita ou manda o<br />

kit, a presa está ferrada”, conta a presidenta<br />

da Grupo de Amigos e Familiares<br />

de Pessoas em Privação de Liberdade,<br />

em Belo Horizonte, Maria<br />

Teresa dos Santos (foto).<br />

Segundo ela, as detentas recebem,<br />

mensalmente, apenas meia barra de<br />

sabão de coco para tomar banho, um<br />

creme dental e absorventes. “Porém,<br />

eles não dão para o ciclo todo, <strong>por</strong>que<br />

a maioria das mulheres tem um fluxo<br />

intenso. As que não têm ajuda da família<br />

passam necessidade. <strong>Elas</strong> não recebem<br />

sabonete, shampoo, condicionador e o<br />

papel higiênico costuma dar para 15<br />

ou 20 dias, economizando muito”, conta<br />

ao reforçar que estes são apenas alguns<br />

dos problemas vividos p<strong>elas</strong> presas.<br />

“Um verdadeiro caos, falta médico, remédio,<br />

água, a comida péssima e, em<br />

NANCI ALVES<br />

nome da segurança, as presas, em<br />

geral, assim como os presos, não são<br />

levadas a médicos <strong>por</strong> falta de escolta”,<br />

desabafa Maria Tereza dos Santos.<br />

Já a enfermeira obstetra, que também<br />

presta atendimento voluntário em<br />

presídios femininos na região metropolitana<br />

de Belo Horizonte, Polyana<br />

Monteiro Mourão, afirma que nunca<br />

ouviu das presas que <strong>elas</strong> usam miolo<br />

de pão ou toalhinha. “Existe uma rede<br />

de solidariedade entre <strong>elas</strong>, sendo que,<br />

quando uma mulher não tem assistência<br />

do Estado, da família ou escassez de<br />

recursos, as outras a ajudam doando o<br />

que ela precisa. Em todas as unidades<br />

que visitamos, sempre há atendimento<br />

médico periódico, <strong>por</strong>ém nem sempre<br />

de ginecologistas. Existem muitos grupos<br />

operativos que acontecem nessas<br />

unidades, conduzidos <strong>por</strong> estudantes<br />

de cursos na área da saúde, educação,<br />

profissionais voluntários, grupos religiosos<br />

que visam levar informação,<br />

além de doações, o que compensa as<br />

deficiências desses locais, <strong>por</strong>ém não<br />

desabonam o dever do Estado. As presas<br />

têm muitas dúvidas com relação<br />

aos cuidados com o próprio corpo,<br />

planejamento familiar, ciclo menstrual,<br />

climatério, dentre tantas outras relacionadas<br />

ao universo , afirma.”<br />

Segundo a enfermeira, a menstruação<br />

para essas mulheres, muitas<br />

vezes, é vista como algo incômodo devido<br />

à revista, que é um dos procedimentos<br />

de segurança dentro do<br />

presídio, em que as mulheres têm que<br />

se despir e agachar <strong>por</strong> três vezes,<br />

sempre que saem da cela. <strong>Elas</strong> reclamam<br />

que, quando estão menstruadas,<br />

torna-se um transtorno passar <strong>por</strong> esse<br />

tipo de revista, não só pelo constrangimento<br />

em ex<strong>por</strong> algo tão íntimo e<br />

tão cercado de tabus como a menstrua-<br />

82 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong>


ção, mas também pela sujeira que muitas<br />

vezes acontece e que <strong>elas</strong> mesmas<br />

têm que limpar. Portanto, é comum<br />

que <strong>elas</strong> solicitem prescrição de anticoncepcionais<br />

que ajudem a interromper<br />

a menstruação para evitar esses<br />

transtornos”, conta.<br />

Solidariedade<br />

Para tentar amenizar a realidade vivida<br />

p<strong>elas</strong> presas, o Gupo de Amigos e<br />

Familiares de Pessoas em Privação de<br />

Liberdade, em Belo Horizonte, faz uma<br />

campanha intitulada “Flores no Cárcere”,<br />

arrecadando produtos de higiene que<br />

são distribuídos para as detentas em alguns<br />

presídios. “Contamos com apoio<br />

de várias estudantes que estão nos movimentos<br />

sociais e que usam as festas e<br />

encontros para fazer as arrecadações.<br />

Também fazemos rodas de conversa<br />

com os universitários para que, <strong>por</strong><br />

meio deles, a sociedade possa tomar<br />

conhecimento das maz<strong>elas</strong> do cárcere,”<br />

afirma Maria Tereza dos Santos.<br />

A Pastoral Carcerária, um organismo<br />

da Conferência Nacional dos Bispos<br />

“<br />

O controle do<br />

corpo feminino<br />

encarcerado extrapola<br />

a restrição à<br />

liberdade de ir e vir e<br />

atinge a intimidade.<br />

do Brasil (CNBB), afirma em seu site<br />

(carceraria.org.br) que “são as famílias<br />

as mantenedoras do bem estar de seus<br />

entes queridos nas prisões. Mas no<br />

caso das mulheres, a maioria não<br />

recebe visita e, assim, aqu<strong>elas</strong> que não<br />

conseguem trabalho dentro do sistema<br />

penitenciário, não têm como garantir<br />

mais do que a roupa do corpo”. Em<br />

todo o país, a Pastoral está atenta a<br />

essa realidade e periodicamente realiza<br />

campanha para a arrecadação de vários<br />

itens de higiene para as mulheres encarceradas.<br />

A Pastoral considera que<br />

a “atitude do Estado evidencia que o<br />

controle do corpo feminino encarcerado<br />

extrapola a restrição à liberdade de ir<br />

e vir e atinge a intimidade. A invasão<br />

da intimidade naturaliza-se dentro dos<br />

cárceres e em razão de seus efeitos –<br />

o constrangimento e a humilhação vivida<br />

p<strong>elas</strong> mulheres – aprofundarem a<br />

submissão, essa violação torna-se elemento<br />

fundamental para a manutenção<br />

da ordem penitenciária e constitui ação<br />

corretiva do com<strong>por</strong>tamento das mulheres<br />

presas conforme os padrões<br />

(patriarcais) de feminilidade”.<br />

A coordenadora para a questão da<br />

mulher presa na Pastoral Carcerária<br />

Nacional, Irmã Petra Silvia Pfaller, afirma<br />

que mesmo o Brasil sendo signatário<br />

das Regras de Bangkok que dispõe<br />

sobre os regramentos acerca do tratamento<br />

de mulheres encarceradas, o sistema<br />

prisional ignora as suas especificidades,<br />

pois foi feito <strong>por</strong> homens e para<br />

homens. “Não se considerou a possibilidade<br />

que as mulheres podem ter necessidades<br />

diferentes, desejos diferentes,<br />

responsabilidades diferentes, e até o<br />

que as leva ao delito pode ser diferente<br />

em relação aos homens”, afirma.<br />

Essa mesma constatação foi feita<br />

pela jornalista Nana Queiroz ao fazer,<br />

POPULAÇÃO CARCERÁRIA<br />

FEMININA<br />

EUA<br />

205.400<br />

CHINA<br />

103.766<br />

26.416<br />

POR TRÁFICO<br />

DE DROGAS<br />

BRASIL 38.848<br />

19.424<br />

ENTRE<br />

18 E 29 ANOS<br />

8.158<br />

ENTRE<br />

35 E 45 ANOS<br />

4.273<br />

ENSINO<br />

MÉDIO<br />

11.654<br />

AGUARDAM<br />

JULGAMENTO<br />

388<br />

ENSINO<br />

SUPERIOR<br />

RÚSSIA<br />

53.304<br />

TAILÂNDIA<br />

44.751<br />

26.416<br />

NEGRAS<br />

6.992<br />

ENTRE<br />

30 E 34 ANOS<br />

3.884<br />

ENTRE<br />

46 E 60 ANOS<br />

19.424<br />

FUNDAMENTAL<br />

INCOMPLETO<br />

Fonte: Infopen Mulheres - Ministério da Justiça<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

83


durante 4 anos, uma pesquisa sobre as<br />

mulheres presas no Brasil. Seu intenso<br />

trabalho resultou no livro Presos que<br />

Menstruam (Editora Record, 2015).<br />

Segundo a autora, o Estado esquece,<br />

<strong>por</strong> exemplo, que as mulheres precisam<br />

de absorventes, de papel higiênico para<br />

duas necessidades em vez de uma (muitas<br />

vezes, a mulher usa jornal velho), e que<br />

as mulheres engravidam, têm filhos e<br />

precisam amamentar. Ao visitar várias<br />

cadeias, Nana Queiroz conversou com<br />

muitas mulheres e percebeu que, como<br />

são raros, os itens de higiene são usados<br />

como moedas de troca dentro dos presídios<br />

femininos. “Shampoo, sabonete,<br />

esmalte e tinta de cabelo são moedas<br />

valiosíssimas dentro dos presídios femininos,<br />

muito mais do que nos masculinos,<br />

<strong>por</strong>que as mulheres tentam recuperar a<br />

dignidade através da vaidade”, conta.<br />

Nana Queiroz defende que a sociedade<br />

precisa, urgentemente, enxergar<br />

as mulheres presas enquanto mulheres,<br />

considerando suas especificidades de<br />

gênero. “Que exista a distribuição de<br />

absorventes, o pré-natal para gestantes,<br />

creches dignas para os bebês presos,<br />

tratamento ginecológico preventivo,<br />

acesso a trabalho e facilidades para<br />

que as mulheres mantenham o contato<br />

com seus filhos”, diz. Ela resssalta que<br />

temos cerca de 350 crianças presas<br />

no Brasil hoje, vivendo em c<strong>elas</strong> imundas<br />

e sem condições minimamente<br />

dignas. “O perfil dos crimes que levam<br />

as mulheres à cadeia é diferente dos<br />

que levam o homem à cadeia. Só 10%<br />

das mulheres cometeram crimes violentos,<br />

ou seja, crimes contra a pessoa.<br />

Logo, a maioria d<strong>elas</strong> poderia estar<br />

amamentando em casa, cumprindo<br />

pena domiciliar. Já existe a caneleira<br />

eletrônica, tecnologicamente isso é<br />

possível”, desabafa.<br />

Uma história<br />

inacreditável<br />

Em muitos países, como no Brasil,<br />

falar sobre menstruação, cólica, TPM,<br />

etc, não é mais tabu, nem mesmo com<br />

amigos e professores. Mas quando o<br />

tema é falta de acesso a itens básicos<br />

de higiene, o silêncio é profundo, gerando<br />

isolamento das mulheres que vivem<br />

este drama. Com certeza, muitas<br />

iniciativas devem existir em todo o mundo,<br />

onde pessoas ou ONGs tentam<br />

fazer campanhas ou produzir material<br />

mais barato, como o caso citado anteriormente.<br />

Porém, uma história impressionante<br />

vem da Índia, onde milhares<br />

de mulheres vivem este drama silenciosamente.<br />

Um documentário produzido<br />

pela CNN (O homem dos absorventes)<br />

nos conta como um homem humilde<br />

(que deixou a escola aos 14 anos para<br />

ajudar sua mãe a criar três irmãos,<br />

depois da morte do pai) tem feito uma<br />

revolução feminina, criando máquinas<br />

para produzir absorventes baratos.<br />

Assim que se casou, em 1998, Arunachalam<br />

Muruganantham percebeu<br />

que sua esposa, Shanthi, estava escondendo<br />

alguma coisa dele. Ficou<br />

chocado ao descobrir que eram “trapos<br />

asquerosos” que ela usava durante a<br />

menstruação. Como ele cuidava também<br />

da mãe viúva, Shanthi disse que<br />

não podia gastar com absorventes que<br />

eram caros, pois tinha que sobrar dinheiro<br />

para o leite.<br />

O problema de Shanthi motivou<br />

Muruganantham a buscar uma solução<br />

e, assim, decidiu que poderia fazer absorventes<br />

mais baratos. Após uma breve<br />

pesquisa sobre material apropriado,<br />

produziu um absorvente de algodão e<br />

deu para sua esposa avaliar. Porém,<br />

como a menstruação é mensal, viu<br />

que levaria muito tempo para aperfeiçoar<br />

seu produto. A solução seria arrumar<br />

voluntárias e se surpreendeu ao descobrir<br />

que nas aldeias vizinhas menos de<br />

uma mulher em cada 10 usava absorventes.<br />

Mas o problema era falar sobre<br />

isso com as mulheres, onde o tema é<br />

tabu. Sua saída foi buscar ajuda em um<br />

grupo de estudantes da faculdade de<br />

medicina local. Mas, mesmo sem formação<br />

nenhuma, em pouco tempo percebeu<br />

que as alunas usavam o material<br />

fornecido <strong>por</strong> ele, mas apenas uma se<br />

encarregava de responder o questionário<br />

para todas, o que invalidava sua pesquisa.<br />

Novamente sozinho, Muruganantham<br />

resolveu ele mesmo avaliar a eficácia<br />

do seu produto: “Eu me tornei o<br />

homem que usava um absorvente”.<br />

Com sua imaginação, criou um sistema<br />

para imitar um útero. Colocava em<br />

seu corpo, na região da cintura, uma<br />

bexiga cheia de sangue de cabra, sempre<br />

doado <strong>por</strong> um amigo açougueiro.<br />

No material, acrescentava um aditivo<br />

para evitar que coagulasse muito rapidamente,<br />

mas o mal cheiro não conseguia<br />

evitar. Com este “útero” escondido<br />

<strong>por</strong> baixo das roupas e com absorvente,<br />

Muruganantham andava a<br />

pé ou de bicicleta normalmente, e, de<br />

vez em quando, bombeava o sangue<br />

para testar as taxas de absorção de<br />

seu absorvente. O problema foi o alto<br />

custo dessa ideia: foi abandonado pela<br />

esposa, pela mãe e pelos amigos. Sua<br />

esposa não sou<strong>por</strong>tou vê-lo investir<br />

tempo e dinheiro neste projeto, diante<br />

de tanta dificuldade financeira que enfrentavam.<br />

E como o indiano lavava<br />

suas roupas ensanguentadas em um<br />

poço público, toda a aldeia concluiu<br />

84 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong>


FASFA<br />

que ele tinha uma doença sexual e,<br />

claro, traía sua mulher.<br />

Muruganantham conseguiu descobrir,<br />

depois de mais de dois anos de<br />

pesquisa, que o segredo do absorvente<br />

feito p<strong>elas</strong> indústrias era a celulose, retirado<br />

de casca de árvore. Mas para<br />

processar o material precisava de máquina.<br />

Como ela era muito cara, criou<br />

também sua própria máquina, com<br />

material barato e de fácil manutenção.<br />

Foi assim que, depois de quatro anos<br />

e meio, conseguiu criar um método<br />

seguro e de baixo custo para a produção<br />

de absorventes.<br />

Os cientistas do Instituto Indiano<br />

de Tecnologia (IIT), ao receberem seu<br />

projeto, não deram muita im<strong>por</strong>tância,<br />

pois viram que não era competitivo<br />

com as multinacionais. Porém, para<br />

Muruganantham o valor da sua proposta<br />

estava exatamente em “criar um novo<br />

mercado” e não competir. A surpresa<br />

foi que o IIT inscreveu a simples máquina<br />

de Muruganantham em uma<br />

competição <strong>por</strong> um prêmio nacional<br />

de inovação. Competindo com 943<br />

projetos, ele ficou em primeiro lugar e<br />

recebeu o prêmio do então presidente<br />

da Índia, Pratibha Patil. Com a fama e<br />

toda a história esclarecida, conseguiu<br />

que sua esposa, mãe e amigos retornassem<br />

ao seu convívio. Muruganantham<br />

está fazendo uma revolução na<br />

vida de muitas pessoas. Além de ajudar<br />

a melhorar a saúde das mulheres, que<br />

passaram a ter acesso a um item básico<br />

de higiene, está também mudando a<br />

economia do país, pois muitas das indianas<br />

que viviam em situação de miséria<br />

agora têm fonte de renda. Na<br />

prática, ele produz as máquinas e leva<br />

para comunidades carentes, onde treina<br />

mulheres para a produção e venda<br />

dos absorventes. No documentário,<br />

uma jovem indiana conta que fugiu de<br />

casa com os filhos pequenos depois<br />

de sofrer muita violência doméstica.<br />

Por falta de apoio e condições de trabalhar,<br />

foi parar na prostituição. Essa<br />

história só mudou com a chegada da<br />

máquina e dos novos conhecimentos<br />

trazidos <strong>por</strong> Muruganantham. Agora<br />

ela fabrica absorventes, podendo sobreviver<br />

das suas vendas.<br />

Vivendo de forma simples com sua<br />

família em um apartamento modesto, o<br />

indiano sonhador ganha o suficiente<br />

para viver dignamente, pois seu desejo<br />

não é ficar rico e sim ajudar as mulheres,“<strong>por</strong>que<br />

eu sei que nenhum ser humano<br />

morre <strong>por</strong> causa da pobreza, tudo<br />

acontece <strong>por</strong> causa da ignorância”, diz.ø<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

85


Winnie Mandela lutou<br />

contra o apartheid na África<br />

do Sul, foi duramente perseguida<br />

<strong>por</strong> sua militância e<br />

mesmo assim e foi grande responsável<br />

p<strong>elas</strong> manifestações<br />

a favor da soltura de Nelson<br />

Mandela. No fim da segregação<br />

racial ela se tornou presidente<br />

da Liga das Mulheres<br />

no Congresso Nacional Africano<br />

(CNA).<br />

Mas, na verdade, essa é Lorena<br />

Lemos que luta <strong>por</strong> uma<br />

educação de qualidade e pela<br />

emancipação das mulheres<br />

negras.


Meena Keshwar Kamal<br />

foi uma feminista afegã<br />

e ativista que trabalhou pelos<br />

direitos das mulheres. Fundou<br />

a Associação Revolucionária<br />

das Mulheres do Afeganistão<br />

(RAWA) em 1977, um grupo<br />

organizado para promover<br />

igualdade e educação para as<br />

mulheres. Fundou também<br />

escolas para ajudar crianças<br />

refugiadas e suas mães, oferecendo<br />

hospital e aprendizado<br />

em atividades manuais.<br />

Mas, na verdade, essa é Kimberly<br />

Rennó que luta pela vida<br />

das mulheres


ISTOCK


COMPORTAMENTO<br />

POR DÉBORA JUNQUEIRA<br />

Depilação feminina<br />

Opção estética ou imposição social?<br />

O hábito de eliminar os pelos do<br />

corpo faz parte da rotina de muitas<br />

mulheres na atualidade. Cera quente<br />

ou fria, lâmina, creme depilatório,<br />

linha, seja qual for o método escolhido,<br />

deixar a pele lisinha se tornou quase<br />

uma obsessão moderna. O que esse<br />

com<strong>por</strong>tamento representa? Quais as<br />

suas raízes culturais? Será que as mulheres<br />

se depilam <strong>por</strong> opção estética<br />

ou imposição social? O debate sobre<br />

esse hábito de origens remotas revela<br />

algumas curiosidades e reflexões de<br />

âmbito feminista.<br />

Você sabia que, <strong>por</strong> muito tempo,<br />

os pelos pubianos e o das axilas eram<br />

muito valorizados como um símbolo<br />

máximo da feminilidade? Segundo a<br />

historiadora Mary Del Priore, autora<br />

dos livros “Histórias e conversas de<br />

mulher” e “Histórias íntimas”, durante<br />

o Império, as mangas bufantes das mulheres<br />

se encarregavam de cobrir o pelo<br />

das axilas, considerado muito sensual,<br />

pois eles apontavam a cor e a qualidade<br />

dos pelos pubianos. Por outro lado, “o<br />

ato de depilar-se é coisa antiga. Os<br />

índios brasileiros já o faziam, com a intenção<br />

de diferenciar-se dos animais de<br />

pelo. Daí Pero Vaz de Caminha referir-<br />

“<br />

“Ali andavam entre<br />

eles três ou quatro<br />

moças, bem moças e<br />

bem gentis, com cabelos<br />

muito pretos,<br />

compridos p<strong>elas</strong> espáduas,<br />

e suas vergonhas<br />

tão altas, tão<br />

cerradinhas e tão<br />

limpas das cabeleiras<br />

que, de as muito<br />

bem olharmos, não<br />

tínhamos nenhuma<br />

vergonha.”<br />

Pero Vaz de Caminha<br />

Carta ao rei de Portugal<br />

se, em sua carta ao rei de Portugal, às<br />

mulheres tão ‘limpinhas’, mencionando<br />

suas ‘vergonhas’ depiladas. Escravos<br />

egípcios, homens e mulheres também<br />

se depilavam. Era a marca de sua condição”,<br />

descreve a historiadora.<br />

“Eu me depilo <strong>por</strong>que acho que<br />

fico mais bonita. Uso cera <strong>por</strong>que a lâmina<br />

me dá alergia, principalmente na<br />

hora em que os pelos estão crescendo<br />

na virilha e na axila. Acredito que as<br />

mulheres se depilam <strong>por</strong> uma questão<br />

cultural e, <strong>por</strong> consequência, para agradar<br />

o parceiro. O meu marido nunca<br />

exigiu que eu me depilasse, mas já<br />

aconteceu de fazer comentários em<br />

tom de brincadeira certa vez que eu<br />

não estava depilada”, conta a psicóloga<br />

paulistana Daniele Bettini.<br />

Na re<strong>por</strong>tagem Obsessão atual <strong>por</strong><br />

depilar é fruto de pressão social, não<br />

escolha estética (Portal Uol,<br />

22/06/2015), Jocelyn Patinel, presidente<br />

do MIEL (Movimento Internacional<br />

<strong>por</strong> uma Ecologia Libidinal) e<br />

mestre em psicologia social afirma que<br />

muitas mulheres dizem que se depilam<br />

<strong>por</strong> vontade própria ou questões de<br />

higiene, mas que, no fundo, têm essa<br />

norma tão internalizada que estão alie-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

89


ISTOCK<br />

nadas. “Em minhas pesquisas com estudantes,<br />

nunca encontrei mais do que<br />

30% de mulheres que perceberam espontaneamente<br />

a pressão social para<br />

depilar”, afirma.<br />

Ainda, segundo a professora, para<br />

além dos inconvenientes fisiológicos<br />

que a eliminação dos pelos traz, como<br />

ressecamento da pele e favorecimento<br />

de infecções, a depilação reflete um<br />

com<strong>por</strong>tamento submisso. O movimento<br />

que ela preside tem sede na<br />

França e existe desde 2003. O MIEL<br />

defende a emancipação individual e<br />

social, posicionando-se contra o ato<br />

de se livrar dos pelos. Jocelyn diz acreditar<br />

que um hábito estético só existe<br />

quando há liberdade para adotá-lo ou<br />

não. “Quando você recebe forte pressão<br />

social, inclusive bullying, <strong>por</strong> não segui-lo,<br />

então é uma opressão”, afirma.<br />

Influência da<br />

<strong>por</strong>nografia<br />

A re<strong>por</strong>tagem também traz o depoimento<br />

de Denise Bernuzzi de<br />

Sant’Anna, professora da PUC (Pontifícia<br />

Universidade Católica) de São<br />

Paulo e autora do livro História da<br />

Beleza no Brasil (Editora Contexto).<br />

Segundo ela, eliminar os pelos pubianos<br />

é um hábito ainda mais novo, disseminado<br />

principalmente depois dos anos<br />

2000, <strong>por</strong> influência do fácil acesso à<br />

<strong>por</strong>nografia, que lançou a moda. “Tem<br />

a ver com a necessidade de as partes<br />

íntimas serem fotogênicas, como um<br />

rosto barbeado. Isso não existia antes”,<br />

declara a professora.<br />

Em revistas e sites femininos, o tema<br />

depilação gira mais em torno da discussão<br />

sobre qual o melhor método a<br />

ser utilizado, abordando os prós e<br />

90 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong>


contras de cada um. É comum encontrar<br />

expressões como “não depilar é inaceitável<br />

socialmente”, “ter pelos no corpo<br />

está fora de moda”, ou, ainda, “são<br />

raras as mulheres que mantém os pelos<br />

naturais do corpo”. Ou seja, para a jovem<br />

leitora dessas publicações a liberdade<br />

de não se depilar nem é cogitada.<br />

ARQUIVO PESSOAL<br />

Sem justificativas<br />

médicas<br />

No site www.bolsademulher.com,<br />

a re<strong>por</strong>tagem Depilação íntima total<br />

é segura? traz o depoimento da ginecologista<br />

e obstetra paulista, Denise<br />

Gomes, que afirma que todos os pelos<br />

do nosso corpo, principalmente aqueles<br />

que ficam em regiões próximas a cavidades,<br />

são de muita im<strong>por</strong>tância. “Os<br />

pelos pubianos protegem nosso corpo<br />

contra microrganismos, barrando os<br />

agentes infecciosos”, diz.<br />

Os cílios previnem infecções oculares,<br />

os pelinhos localizados nas narinas<br />

evitam gripes, resfriados e doenças<br />

respiratórias causadas <strong>por</strong> vírus ou bactérias.<br />

“A penugem da entrada da<br />

vagina ajuda a evitar infecções vaginais<br />

e corrimentos”, aponta. Entretanto, a<br />

médica afirma que depilar totalmente<br />

a região mais íntima da mulher não<br />

traz tantos riscos à saúde. “Se a mulher<br />

já está acostumada, faz a depilação íntima<br />

completa e nunca apresentou nenhuma<br />

doença infecciosa vaginal ela<br />

pode continuar com o hábito. Quem<br />

tem este histórico pode remover os<br />

pelos das áreas mais afastadas da vagina,<br />

como coxas e pélvis”, recomenda<br />

a ginecologista.<br />

O ginecologista e obstetra Hélio<br />

Borges Diniz, de Belo Horizonte, desconhece<br />

estudos que relacionam a eliminação<br />

de pelos com problemas ginecológicos.<br />

“Entre os homens primitivos,<br />

a função dos pelos era proteger<br />

o corpo, mas hoje a roupa faz esse papel.<br />

Não há nenhuma relação entre<br />

depilação e problemas ginecológicos e<br />

acredito que retirar os pelos pode contribuir<br />

para a higiene”, afirma.<br />

Tipo ex<strong>por</strong>tação<br />

A forma de depilação completa da<br />

região do púbis é conhecida no exterior<br />

como Brazilian Waxing. Segundo a<br />

brasileira Desiree Dantas (foto), dona<br />

de um salão de beleza em Houston,<br />

nos Estados Unidos, a moda da depilação<br />

total ou com o chamado “bigodinho de<br />

Hitler” também faz sucesso <strong>por</strong> lá. “No<br />

meu salão, o casal costuma vir junto se<br />

depilar e a moda do Brazilian Waxing<br />

também chegou aos homens, muitas<br />

vezes <strong>por</strong> exigência da mulher”, conta.<br />

Um estudo de 2012, realizado pela<br />

Universidade de Indiana e pelo Instituto<br />

Kinsey para Estudos sobre Sexo, Gênero<br />

e Reprodução, ouviu a opinião<br />

de 2.451 americanas e o resultado<br />

apontou que 87% das jovens entre 18<br />

e 24 anos removem total ou parcialmente<br />

os pelos pubianos. O estudo<br />

também revelou que as mulheres adeptas<br />

da depilação são mais confiantes e<br />

seguras em relação ao seu corpo do<br />

que aqu<strong>elas</strong> que não costumam encarar<br />

o processo. <strong>Elas</strong> também têm maior<br />

índice de satisfação sexual, examinam<br />

mais os seus genitais e não se sentem<br />

constrangidas em falar sobre o assunto.<br />

Entre as mulheres com mais de 50<br />

anos de idade, 51% revelaram não ter<br />

nem ao menos aparado os pelos nos<br />

últimos 30 dias.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

91


Pelos Pelos<br />

Para enfatizar a naturalidade da<br />

existência dos pelos e mostrar que<br />

essa opção existe para as mulheres,<br />

jovens do Coletivo Além divulgaram<br />

na rede social Tumblr o projeto “Pelos<br />

Pelos”. O ensaio é composto de fotos<br />

com valor político e artístico para questionar<br />

o padrão estético “sem pelos” e<br />

o que se pode entender como uma ditadura<br />

da depilação. A proposta é<br />

refletir que a depilação não precisa ser<br />

padrão imposto de beleza.<br />

“É necessário pensar <strong>por</strong> que os<br />

pelos são geradores de tanto asco. Vivemos<br />

em uma sociedade permeada<br />

<strong>por</strong> um machismo que corrói nossas<br />

relações e com<strong>por</strong>tamentos, que define<br />

opressão cruel às mulheres, e buscamos<br />

combatê-lo!” diz o manifesto no coletivo.<br />

Veja em www.pelospelos.com.br.<br />

A mineira Júlia Braga, consultora<br />

de produtos de beleza artesanais e<br />

doula, é adepta da estética natural e<br />

posou para o projeto Pelos Pelos. “Sofria<br />

muito ao me depilar e comecei a<br />

refletir sobre o motivo de passar <strong>por</strong><br />

isso, pensando se o que fazia era pra<br />

mim ou para os outros. Então passei a<br />

aceitar que ter pelos é natural. No início<br />

foi difícil, o meu parceiro na época<br />

estranhou um pouco e achou que eu<br />

queria “aparecer” deixando os pelos da<br />

axila à mostra. Eu era professora de inglês,<br />

quando contei aos meus alunos<br />

que eu não me depilava, eles disseram<br />

que nunca haviam percebido. Hoje, o<br />

meu marido acha normal, apesar de<br />

não achar bonito. O im<strong>por</strong>tante é que<br />

eu me sinto bem e essa é a minha<br />

opção. Penso que se a pessoa se acha<br />

bonita sem pelos que se depile, mas eu<br />

gosto de ser assim e não tenho que dar<br />

satisfação pra ninguém”, declara.<br />

92 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong>


MARK FLOREST<br />

Um pouco de história<br />

<strong>por</strong> Mary Del Priori<br />

O ato de depilar-se é coisa antiga.<br />

Os índios brasileiros já o faziam, com<br />

a intenção de diferenciar-se dos animais<br />

de pelo. Daí Pero Vaz de Caminha referir-se<br />

às mulheres tão “limpinhas”,<br />

mencionando suas “vergonhas” depiladas.<br />

Escravos egípcios, homens e<br />

mulheres também se depilavam. Era a<br />

marca de sua condição. A pasta depilatória<br />

nasce no Oriente Médio, feita<br />

de açúcar, água e limão. Já, durante o<br />

Renascimento, o tosão farto recoberto<br />

de fitas e até joias estava na moda na<br />

Corte de Catarina de Médicis.<br />

Por séculos, o sexo feminino foi<br />

considerado um lugar de poder, pois<br />

os excretos, como o sangue menstrual<br />

e os pelos pubianos, eram usados em<br />

rituais de feitiçaria para “prender homem”,<br />

como comprovam os processos<br />

da Inquisição em que tais práticas,<br />

desde o século XVI, são mencionados.<br />

O grande poeta barroco, Gregório de<br />

Mattos, revelou, num poema, que no<br />

passado os homens preferiam as mulheres<br />

que não “lavassem seu cu”. O<br />

“gosto de sainete” era fortemente apreciado<br />

até <strong>por</strong> Napoleão Bonaparte que<br />

escrevia à sua amada Josefina, dizendo:<br />

“Não te laves, estou chegando!”.<br />

As informações que temos sobre<br />

as práticas sexuais de nossas avós referem-se<br />

com mais entusiasmo ao colo<br />

e seios, braços e sobretudo pés femininos<br />

como lugares de desejo. Pouco se<br />

fala na genitália que, coberta <strong>por</strong> muitos<br />

panos e maltratada <strong>por</strong> muitos partos<br />

- lembro que não havia contracepção -<br />

foi pouco lembrada na prosa e no<br />

verso do período colonial ou durante o<br />

Império. Na mesma época, as mangas<br />

bufantes se encarregavam de cobrir o<br />

pelo das axilas, considerado muito sensual,<br />

pois eles apontavam a cor e a<br />

qualidade dos pelos pubianos.<br />

Na Europa, durante o século XIX,<br />

Goya pintou a “Maja desnuda” com<br />

uma penugem e Courbet, em “A origem<br />

do mundo”, fez um impressionante retrato<br />

da pilosidade genital. No século<br />

XX, prisioneiras de Auschwitz-Birkenau<br />

e amantes de soldados alemães eram<br />

obrigadas a se raspar, da cabeça aos<br />

pés. As segundas, numa forma de<br />

identificação e punição, com o fim da<br />

II Guerra Mundial.<br />

Nos anos 70, a depilação passou à<br />

moda estética e higiênica. O surgimento<br />

do biquíni fio-dental generalizou o hábito.<br />

Atualmente, há sociólogos que<br />

identificam a depilação excessiva com<br />

mais uma tentativa de rejuvenescimento<br />

da mulher.<br />

A genitália adolescente sendo o<br />

modelo desse ideal de juventude. Por<br />

outro lado, vitrines expõe, nos EUA,<br />

manequins de lingerie com pilosidade<br />

aparente, insistindo na realidade dos<br />

fatos. Interessante notar que a hipersexualização<br />

das imagens e da indústria<br />

<strong>por</strong>nográfica se contrapõe a um modelo<br />

asséptico e infantil.<br />

O senso comum explica que,<br />

quando escolhida e desejada, a depilação<br />

pode ser sinônimo de liberdade.<br />

Quanto imposta, ela rouba a significação<br />

do mistério e da maturidade sexual<br />

da mulher.ø<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

93


Carolina Maria de Jesus<br />

foi moradora da favela do Canindé,<br />

zona norte de São Paulo.<br />

Ela trabalhava como catadora<br />

e registrava o cotidiano da comunidade<br />

em cadernos que encontrava<br />

no lixo. Ela é considerada<br />

uma das primeiras e<br />

mais im<strong>por</strong>tantes escritoras<br />

negras do Brasil.<br />

Mas, na verdade, essa é Carolina<br />

Nunes, estudante de Ciências<br />

Sociais e luta <strong>por</strong> um feminismo<br />

enegrecido e pela real<br />

emancipação do povo preto.


Acreditamos em um mundo<br />

em que mais mulheres consigam<br />

se espelhar na força<br />

dessas personagens e que sejamos<br />

nós as protagonistas<br />

da nossa própria revolução!<br />

FICHA TÉCNICA<br />

Fotógrafa: Isis Medeiros<br />

Figurino: Alzira Calhau<br />

Assistente de figurino:<br />

Kimberly Rennó<br />

Luz: Pedro Faria<br />

Pré-produção e idealização:<br />

Mulheres do Levante Popular<br />

da Juventude<br />

Texto de abertura: Cecília Alvim


CNC<br />

CULTURA<br />

POR DÉBORA JUNQUEIRA<br />

Um novo olhar<br />

sobre o cinema<br />

O feminismo encontra cada vez mais<br />

espaço no movimento cineclubista<br />

96 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong>


Basta uma pesquisa rápida no Google<br />

para ver que há várias iniciativas que<br />

associam o cinema com o feminismo,<br />

principalmente no cineclubismo, um<br />

movimento em que a participação das<br />

mulheres é marcante. Os cineclubes,<br />

espaços que exibem filmes brasileiros e<br />

estrangeiros, sem fins lucrativos e que<br />

promovem debates, têm se tornado um<br />

im<strong>por</strong>tante instrumento para a reflexão<br />

sobre a luta emancipatória das mulheres.<br />

Segundo um levantamento da Secretaria<br />

do Audiovisual, do Ministério<br />

da Cultura, em julho de 2015, havia<br />

mais de mil cineclubes espalhados pelo<br />

país, distribuídos em 701 cidades, o<br />

que representa somente 12,6% do<br />

total. Conforme informações da re<strong>por</strong>tagem<br />

“Brasil precisa triplicar cidades<br />

com cineclubes em 5 anos para bater<br />

meta”, o dado revela um desafio quase<br />

inalcançável: atingir o patamar de 37%<br />

das cidades com cineclubes até 2020,<br />

uma das metas do Plano Nacional<br />

de Cultura.<br />

Grande parte dos cineclubes aborda<br />

as questões de gênero somente em<br />

datas comemorativas, como o Dia Internacional<br />

da Mulher, mas há também<br />

aqueles que se dedicam exclusivamente<br />

ao tema como o projeto Terça Feminista,<br />

do Cine Metrópolis, de Vitória/ES,<br />

iniciado em abril de 2015. Em <strong>2016</strong>,<br />

as sessões passam a ser às quintasfeiras,<br />

e o nome muda para Feministas<br />

de quinta. “Tive a ideia de fazer sessões<br />

feministas e como já participo há tempos<br />

do movimento cineclubista, senti a necessidade<br />

de trabalhar de forma coletiva,<br />

<strong>por</strong> isso foi criado o Coletivo Femenina,<br />

que contou com o apoio da professora<br />

Gabriela Alves, que já tinha um trabalho<br />

sobre cinema, corpo e mulher”, conta a<br />

professora universitária e realizadora de<br />

cinema, Saskia Sá.<br />

Segundo ela, o público é formado<br />

principalmente <strong>por</strong> mulheres de todas<br />

as faixas etárias, mas o público masculino<br />

também tem frequentado as sessões.<br />

“Todos podem participar do debate<br />

desde que respeitando as diferenças,<br />

considerando o fato de que esse é<br />

um espaço emancipatório para as mulheres,<br />

<strong>por</strong>tanto, opiniões machistas<br />

não são aceitas”, comenta.<br />

“Para a nossa programação damos<br />

preferência a filmes (longas e curtas)<br />

que tragam as temáticas que nos tocam,<br />

como direitos reprodutivos, aborto,<br />

LGBTT, a questão da violência contra<br />

a mulher, estupro, gênero, incluindo<br />

as questões étnico-raciais. Enfim, os<br />

temas debatidos são im<strong>por</strong>tantes <strong>por</strong><br />

trazerem à tona questões do universo<br />

das mulheres que muitas vezes, se tornam<br />

dramas vividos em silêncio, solitariamente.<br />

Quando fazemos o debate<br />

sobre estes temas, os tornamos visíveis<br />

e os desmistificamos, construindo um<br />

território do comum, onde podemos<br />

ouvir e ser ouvidas”, afirma.<br />

Há também os cineclubes que reúnem<br />

somente mulheres para assistir e<br />

debater produções audiovisuais de<br />

cunho feminista. Um exemplo é o<br />

“<br />

os temas debatidos<br />

são im<strong>por</strong>tantes<br />

<strong>por</strong> trazerem à tona<br />

questões do universo<br />

das mulheres<br />

Cine Bandidas, de Goiás, que iniciou a<br />

partir de um grupo de WhatsApp formado<br />

<strong>por</strong> amigas que discutiam pelo<br />

aplicativo temas do cotidiano d<strong>elas</strong>.<br />

Com o objetivo de reunirem-se pessoalmente,<br />

foi criado o cineclube batizado,<br />

em tom de brincadeira, com o<br />

mesmo nome do grupo virtual que faz<br />

referência a um termo popular usado<br />

para rotular a postura de mulheres que<br />

têm atitudes consideradas fora dos padrões<br />

convencionais. A coordenadora<br />

do cineclube, Cirlene Santos (foto),<br />

trouxe a experiência a partir do cineclube<br />

que envolve crianças na escola<br />

infantil onde trabalha, em Goiânia.<br />

Ela conta que, no início do cineclube,<br />

o marido de uma d<strong>elas</strong> ficou<br />

com ciúmes e quis acompanhar a esposa<br />

na sessão, que normalmente era<br />

só para mulheres. Nesse dia o debate<br />

foi sobre um filme que abordou a Lei<br />

Maria da Penha, sobre violência doméstica.<br />

Segundo ela, a participação<br />

de um homem causou um certo constrangimento<br />

e as sessões continuaram<br />

fechadas só para mulheres. “Estamos<br />

fazendo uma boa troca de experiências<br />

e creio, contribuindo para a emancipação<br />

das mulheres”, afirma Cirlene.<br />

Cinema e educação<br />

O espaço das mulheres no movimento<br />

cineclubista tem sido cada vez<br />

mais evidente. A jornalista e cineclubista<br />

Simone Norberto é uma mulher apaixonada<br />

<strong>por</strong> cinema, que se dedica à<br />

sétima arte nesses espaços alternativos.<br />

“Na minha cidade natal não havia cinema<br />

e, em Porto Velho, onde moro,<br />

as salas só exibiam filmes comerciais.<br />

Lembro-me que o filme Anaconda<br />

ficou um ano em cartaz”, conta.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

97


No cineclubismo, sua primeira experiência<br />

foi com a realização de sessões<br />

de cinema na casa dela, usando o<br />

vídeo cassete e a TV. Mais tarde o cineclube<br />

batizado de CineOca passou a<br />

utilizar os equipamentos do Sesc. “Lembro<br />

que uma vez estávamos exibindo<br />

para um grupo de 45 adolescentes e a<br />

luz acabou, foi uma confusão. Hoje a<br />

palavra ‘cineoca’ já virou sinônimo de<br />

cineclube entre os alunos”, descreve<br />

com orgulho.<br />

O CineOca funciona desde 2005,<br />

em Porto Velho, Rondônia, com exibições<br />

uma vez <strong>por</strong> mês no Sesc e tem<br />

como objetivo difundir o cinema de<br />

qualidade, alternativo, regional, de nacionalidades<br />

diferentes, com propostas<br />

inovadoras, temáticas diversas, diretores<br />

conceituais e produções que têm pouca<br />

o<strong>por</strong>tunidade de divulgação em circuitos<br />

considerados comerciais. Dentro do<br />

projeto Rede cineclubista na escola,<br />

que funciona em parceria com outras<br />

entidades, acontecem exibições em instituições<br />

de ensino.<br />

Segundo ela, a formação política<br />

pro<strong>por</strong>cionada é o principal. “O cineclube<br />

é atual e a troca de experiências<br />

entre as pessoas é enriquecedora. Mesmo<br />

entre pessoas muito simples se expressando<br />

sobre um filme, aprendemos<br />

muito. Ao participar do Conselho Nacional<br />

de Cineclubes passei a ter consciência<br />

de que o que fazemos é transformador<br />

e é cada vez mais forte a minha<br />

participação nessa área”, afirma.<br />

Além de coordenadora do CineOca,<br />

Simone Norberto é jornalista<br />

no Tribunal de Justiça de Rondônia,<br />

onde ajudou a desenvolver um cineclube.<br />

O projeto Barco da Justiça do<br />

TJ usa o cineclube como instrumento<br />

para um trabalho educativo com as comunidades<br />

ribeirinhas do rio Madeira,<br />

com a exibição de filmes dentro da temática<br />

direitos humanos. A Justiça visita<br />

a região, de barco, uma vez <strong>por</strong><br />

mês para audiências itinerantes e,<br />

nesse dia, é montada a tenda do cinema.<br />

Simone relata que a temática de<br />

gênero é sempre abordada. “Já foi exibido<br />

um filme sobre a Lei Maria da<br />

Penha, seguido <strong>por</strong> debate, com a participação<br />

de uma juiza convidada. Nesses<br />

momentos, os homens também<br />

participam da conversa sobre violência<br />

doméstica, sendo um im<strong>por</strong>tante momento<br />

de conscientização”. Para ela,<br />

as mulheres dessas comunidades, que<br />

sobrevivem com benefícios sociais, não<br />

têm consciência do quanto são oprimidas<br />

pelo machismo.<br />

Movimento cineclubista<br />

A participação das mulheres no cineclubismo<br />

conta com algumas guerreiras.<br />

Uma d<strong>elas</strong> é Gleiciara Ramos,<br />

cineclubista há mais de 30 anos e exsecretária-geral<br />

do Conselho Nacional<br />

de Cineclubes (CNC). Gleiciara percebe<br />

SIMONE NORBERTO<br />

“<br />

O projeto Barco da<br />

Justiça usa o cineclube<br />

para trabalho educativo<br />

com as comunidades<br />

ribeirinhas.<br />

98 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong>


que, atualmente, há mais mulheres no<br />

cineclubismo do que na década de 80,<br />

quando este teve início através do movimento<br />

estudantil. “Naquele tempo,<br />

havia no movimento grande influência<br />

dos grupos de esquerda que resisitiam<br />

à Ditadura Militar, mas era comum a<br />

discriminação com as mulheres e com<br />

os gays”, afirma.<br />

Segundo ela, o cineclubismo é um<br />

movimento de resistência. “Temos que<br />

aproximar mais o movimento cineclubista<br />

dos movimentos sociais para que<br />

ele fique mais enrraizado. Hoje está<br />

tudo muito fragmentado com cada um<br />

olhando para o seu próprio umbigo. O<br />

cineclube é capaz de unir as bandeiras<br />

sociais, ambientais, étnicas e de gênero<br />

de maneira transversal”, acredita.<br />

À frente do Cineclube Manga Rosa,<br />

em Itaparica, na Bahia, que trabalha<br />

com conteúdo educativo e arte para<br />

crianças, ela também participa do projeto<br />

Segunda Cineclubista em escolas<br />

de Salvador. “Certa vez exibimos o<br />

filme Doméstica e achei interessante<br />

como os adolescentes se identificaram<br />

com os filhos dessas trabalhadoras que,<br />

muitas vezes, deixam seus filhos de<br />

lado para cuidar dos filhos dos patrões.<br />

Outro filme exibido foi Histórias Cruzadas,<br />

abordando o preconceito racial<br />

e a organização das mulheres”, conta.<br />

Para Gleiciara, o cineclube é uma<br />

produção coletiva de conhecimento e<br />

as mulheres têm um papel fundamental<br />

<strong>por</strong> terem a coletividade como valor.<br />

“<strong>Elas</strong> se destacam na organização, na<br />

preocupação com uma temática mais<br />

ampliada e com as questões que envolvem<br />

todos os aspectos da vida real”,<br />

acredita. Ela também destaca o papel<br />

ARQUIVO PESSOAL<br />

dos cineclubes nos bairros e nas comunidades<br />

mais carentes. “Não concordo<br />

que cineclube é para poucas<br />

pessoas verem, isso pode até acontecer<br />

nos grandes centros urbanos, agora,<br />

na periferia, muitas pessoas se reúnem<br />

para assistir o filme, <strong>por</strong>que as pessoas<br />

muitas vezes, não têm condições de<br />

gastar com o trans<strong>por</strong>te para ir num<br />

cinema fora do seu bairro”, afirma.<br />

Gleiciara também participa do Conselho<br />

Nacional de Cineclubes (CNC),<br />

onde foi secretária-geral da gestão provisória<br />

até outubro de 2015. Ela explica<br />

que o CNC tem como objetivo propiciar<br />

a reflexão sobre a linguagem do cinema,<br />

possibilitar a experiência fílmica como<br />

ferramenta de educação, estimular o<br />

desenvolvimento do pensamento crítico<br />

e viabilizar ações concretas de intercâmbio<br />

entre cineclubistas, realizadores,<br />

pesquisadores, críticos e pessoas que<br />

se interessam pelo cinema como arte<br />

transformadora.<br />

Os Cineclubes do Sinpro Minas,<br />

Joaquim Pedro de Andrade e Uma<br />

Tela na Minha Rua fazem parte do<br />

CNC e, atualmente, a diretora do sindicato,<br />

Terezinha Avelar, é membro da<br />

coordenação da entidade, que possui<br />

mais de 500 cineclubes cadastrados em<br />

Para Simone Norberto, a formação política pro<strong>por</strong>cionada<br />

pelo cineclube é o principal.<br />

“<br />

O cineclube é uma<br />

produção coletiva de<br />

conhecimento e as<br />

mulheres têm um papel<br />

fundamental <strong>por</strong><br />

terem a coletividade<br />

como valor.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

99


etomada em 2008, foi com o filme<br />

As horas, exibido em março, numa<br />

programação com filmes e debates sobre<br />

questões de gênero. Nós trabalhamos<br />

muito com essa ideia de programação<br />

temática de acordo com alguma<br />

data comemorativa, depois passamos<br />

a selecionar os filmes pelos diretores,<br />

mas as questões sobre gênero nunca<br />

deixaram de ser debatidas, <strong>por</strong>que todo<br />

filme que a gente exibe dá para puxar<br />

algum gancho com o cotidiano das<br />

mulheres”.<br />

Terezinha destaca como um dos<br />

pontos altos do Cineclube a mostra<br />

com filmes da cineasta e roterista brasileira<br />

Laís Bodanzky. Ela também relembra<br />

fatos pitorescos como a saída<br />

de pessoas da sala de cinema resmungando<br />

Para Gleiciara Ramos, o cineclubismo é um movimento de resistência.<br />

diante de cenas de sexo no<br />

todo o país, que envolvem grupos de<br />

pessoas, associações ou entidades, formalizadas<br />

ou não, que exibem produções<br />

audiovisuais com uma leitura crítica.<br />

Espaço de formação<br />

Para Terezinha Avelar, o cineclube<br />

é, também, um lugar de formação do<br />

senso crítico e um espaço para discussões<br />

sobre o audiovisual, visando ampliar<br />

as discussões sobre os mais variados<br />

temas. “Comecei a me interessar<br />

mais <strong>por</strong> cinema quando estava em<br />

sala de aula e passava filmes para as<br />

minhas turmas. Como professora de<br />

geografia não podia levar os alunos<br />

para conhecer pessoalmente os locais<br />

citados, <strong>por</strong>tanto, os filmes sempre foram<br />

bons instrumentos para eles visualizarem<br />

tipos de vegetações e lugares.<br />

Mas passava o filme todo, <strong>por</strong>que me<br />

incomodava a ideia do uso de filmes<br />

para ocupar um espaço vago na grade,<br />

<strong>por</strong>que um professor faltou ou <strong>por</strong>que<br />

choveu”, comenta.<br />

Segundo ela, a ideia de retomar o<br />

cineclube no Sinpro veio quando ela<br />

se tornou responsável pela área de<br />

Cultura da entidade. “Quando surgiu o<br />

projeto Cine Mais Cultura, do Ministério<br />

da Cultura, entramos com o projeto,<br />

ganhamos o equipamento para a exibição<br />

e recebemos uma formação sobre<br />

cineclubismo, aí tivemos mais incentivo<br />

para continuar”.<br />

Sobre a ligação entre feminismo e<br />

cineclubismo, Terezinha, que é militante<br />

do movimento feminista, conta que,<br />

no início do Cineclube Joaquim Pedro<br />

de Andrade, as exibições eram temáticas,<br />

mas que hoje a questão de gênero<br />

é discutida quando vem à tona em<br />

algum filme e a plateia deseja comentar.<br />

“A primeira sessão do cineclube, na<br />

filme. “A gente entende que nem sempre<br />

o público está preparado, ele levanta,<br />

cochila, ri, bate palma... Dentro<br />

de uma sala de cinema isso é um<br />

direito das pessoas e a gente não pode<br />

inibir”, afirma.<br />

Ela acredita que a participação das<br />

mulheres no cineclubismo tem sido<br />

crescente. “A retomada do cinema e<br />

do cineclubismo tem envolvido muito<br />

a juventude. Desde que comecei a participar<br />

do Conselho Nacional de Cineclubes,<br />

há uns cinco anos, percebo<br />

que a presença de mulheres tem aumentado.<br />

Há muitas mulheres à frente<br />

dos cineclubes e muita coisa está sendo<br />

produzida <strong>por</strong> <strong>elas</strong>. Mulheres no elenco,<br />

no roteiro, na direção, na produção,<br />

assim como <strong>elas</strong> estão mais presentes<br />

na sociedade, no cinema também essa<br />

participação é grande, com exceção<br />

da parte técnica que ainda é dominada<br />

pelos homens. Acredito que as mulheres<br />

têm um olhar diferenciado na cinematografia”,<br />

sentencia.<br />

CNC


Experiências<br />

cineclubistas do<br />

Sinpro Minas<br />

O Sindicato dos Professores do Estado<br />

de Minas Gerais (Sinpro Minas),<br />

em 5 de abril de 1997, inaugurou seu<br />

cineclube. Por sugestão do cineasta<br />

Helvécio Ratton, o cineclube foi batizado<br />

de “Joaquim Pedro de Andrade”, uma<br />

homenagem ao cineasta que pertenceu<br />

a uma geração que constituiu o chamado<br />

Movimento do Cinema Novo.<br />

Outra iniciativa com o uso do audiviosual<br />

foi o projeto Cinema e Psicanálise,<br />

com exibições de filmes seguidos de debates<br />

para um público interessado em<br />

discutir psicanálise a partir dos temas<br />

propostos pelos filmes. Por cerca de 15<br />

anos, as exibições aconteceram no Espaço<br />

Cultural Barbosa Lima Sobrinho,<br />

na sede do Sinpro Minas, no bairro Floresta,<br />

em Belo Horizonte. Para a psicanalista<br />

e organizadora, Eliane de Andrade,<br />

o projeto não se configurava<br />

exatamente como cineclubismo. “O foco<br />

era discutir os temas a partir de uma<br />

visão psicanalítica, sem preocupação<br />

com os detalhes da produção cinematográfica.<br />

O debatedor era sempre um<br />

psicanalista e o público era diversificado<br />

com professores, estudantes e pessoas<br />

da comunidade”, explica.<br />

Em 2008, dentro das comemorações<br />

dos 75 anos do Sinpro Minas, houve<br />

uma retomada das atividades Cineclubistas,<br />

<strong>por</strong>ém de uma forma mais ampla,<br />

envolvendo sessões de exibição de filmes<br />

e debates não só para a categoria profissional,<br />

mas também para toda a comunidade<br />

belorizontina. A retomada se<br />

deu exatamente no momento em que,<br />

A cineastra Ana Luiza de Azevedo participou de debate no Sinpro.<br />

no Brasil, as políticas públicas de fomento<br />

ao cineclubismo foram implantadas através<br />

do Ministério da Cultura, com ações<br />

mais efetivas.<br />

“As nossas ações cineclubistas ganharam,<br />

então, um destaque maior passando<br />

a funcionar em novo espaço<br />

(foto), no Centro de Referência do Professor<br />

da Rede Privada (Sinpro Cerp),<br />

situado no centro de Belo Horizonte,<br />

com equipamentos modernos de audiovisual<br />

e com uma sala com capacidade<br />

para 60 pessoas”, destaca a coordenadora<br />

do Cineclube,Terezinha Avelar.<br />

O Cineclube Joaquim Pedro de Andrade<br />

tem seu funcionamento todas as<br />

terças-feiras, às 19 horas, e visa o<strong>por</strong>tunizar<br />

a formação e a comunicação<br />

entre os professores e a comunidade<br />

em geral, promovendo o desenvolvimento<br />

da categoria em um espaço<br />

para o debate de temas relevantes.<br />

Está em atividade também o Cineclube<br />

Uma Tela no Meu Bairro, que<br />

foi montado com os equipamentos do<br />

Ministério da Cultura, pelo Programa<br />

Cine Mais Cultura. Inicialmente era situado<br />

na sede do Sinpro Minas, no<br />

bairro Floresta, em Belo Horizonte,<br />

mas atualmente as exibições acontecem<br />

em diversos bairros de Belo Horizonte<br />

e em algumas cidades.<br />

Para a diretoria do Sinpro Minas, a<br />

retomada do cineclube justifica-se,<br />

ainda, pela notória ausência de um espaço<br />

cultural de reflexão e integração<br />

entre o professor da rede privada, o<br />

seu sindicato e a comunidade. “A reorganização<br />

do cineclube é uma das respostas<br />

dos movimentos populares e<br />

justifica-se pelo caráter democrático e<br />

acessível à comunidade”, acrescenta o<br />

ex-presidente e diretor do Sinpro Minas,<br />

Gilson Reis.ø<br />

ARQUIVO SINPRO MINAS<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

101


102 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

JANUÁRIO GARCIA


HISTÓRIA<br />

POR ANA MARIA FELIPPE<br />

ADAPTADO POR CECÍLIA ALVIM<br />

Lélia Gonzalez: mulher<br />

negra na história do Brasil<br />

Neste ano de <strong>2016</strong>, já contamos<br />

22 anos que a guerreira Lélia Gonzalez<br />

passou à condição de “ancestral”. A<br />

atualidade da luta que travou, sobre a<br />

qual refletiu e ensinou, nos faz reviver<br />

um pouco de sua trajetória. Que seu<br />

exemplo seja guia nessa luta que, a<br />

cada caminhada, constatamos mais a<br />

fazer: a luta contra o racismo.<br />

Lélia Gonzalez nasceu em Belo Horizonte<br />

em 1935. Quando Lélia era<br />

criança, sua família instalou-se no Rio,<br />

na favela do Pinto, bairro do Leblon.<br />

Lélia era a penúltima de 18 irmãos/ãs;<br />

filha de pai negro ferroviário e mãe índia.<br />

Casou-se aos 28 anos, para assumir<br />

definitivamente o sobrenome Gonzalez.<br />

Nas escolas e nas faculdades (graduou-se<br />

em História/Geografia e Filosofia)<br />

era reconhecida pela dedicação<br />

e inteligência. Como educadora, Lélia<br />

lecionou em muitas escolas de nível<br />

médio, em faculdades e universidades.<br />

No final dos anos 1960 e início de<br />

1970, Lélia era uma assumida mulher<br />

negra: “Essa questão do branqueamento<br />

bateu forte em mim e eu sei que bate<br />

muito forte em muitos negros também.<br />

Há também o problema de que, na escola,<br />

a gente aprende aqu<strong>elas</strong> baboseiras<br />

sobre os índios e os negros; na própria<br />

universidade o problema do negro não<br />

é tratado nos seus devidos termos.”<br />

Foi em 1982 que Lélia escreveu<br />

“Lugar de negro”, junto com Carlos<br />

Hasenbalg. E <strong>por</strong> que demoraria 12<br />

anos para gritar, <strong>por</strong> escrito? Porque<br />

só em 1982 Lélia teria firmado na escrita<br />

que “O lugar natural do grupo<br />

branco dominante são moradias amplas,<br />

espaçosas, situadas nos mais belos recantos<br />

da cidade ou do campo e devidamente<br />

protegidas <strong>por</strong> diferentes tipos<br />

“<br />

Essa questão do<br />

branqueamento<br />

bateu forte em<br />

mim e eu sei que<br />

bate muito forte<br />

em muitos negros<br />

também.<br />

de policiamento: desde os antigos feitores,<br />

capitães do mato, capangas,<br />

etc., até a polícia formalmente constituída.<br />

Desde a casa grande e do sobrado,<br />

aos belos edifícios e residências<br />

atuais, o critério tem sido sempre o<br />

mesmo. Já o lugar natural do negro é<br />

o oposto, evidentemente: da senzala<br />

às fav<strong>elas</strong>, cortiços, <strong>por</strong>ões, invasões,<br />

alagados e conjuntos “habitacionais”<br />

(cujos modelos são os guetos dos países<br />

desenvolvidos) dos dias de hoje, o critério<br />

também tem sido simetricamente<br />

o mesmo: a divisão racial do espaço.”<br />

Quando compreendeu teoricamente<br />

a questão da opressão e da exclusão,<br />

Lélia continuou fazendo exatamente a<br />

mesma trajetória teórica e intelectual<br />

que seguia anteriormente, mas, nesse<br />

momento, ela se dedica à leitura dos<br />

pensadores negros, da história do povo<br />

negro, das rainhas negras, lendo e refletindo<br />

noite adentro. A inteligência e<br />

a desenvoltura teórica – que continuou<br />

exercendo institucionalmente, como<br />

professora na Pontifícia Universidade<br />

Católica, até o final da vida, tendo<br />

sido eleita Chefe do Departamento de<br />

Sociologia, um mês antes – foi posta a<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

103


As Escolas de Samba:<br />

O golpe de 1964 implicaria na desarticulação<br />

das elites intelectuais<br />

negras, de um lado, e no processo de<br />

integração das entidades de massa<br />

numa perspectiva capitalista, de outro.<br />

As escolas de samba, <strong>por</strong> exemplo,<br />

cada vez mais, vão se transformando<br />

em empresas da indústria turística.<br />

Os antigos mestres de um artesanato<br />

negro, que antes dirigiam as atividades<br />

nos barracões das escolas, foram<br />

sendo substituídos <strong>por</strong> artistas<br />

plásticos, cenógrafos, figurinistas,<br />

etc. e tal... Os “nêgo véio” da Comissão<br />

de Frente foram substituídos <strong>por</strong><br />

mulatas rebolativas e tesudas. Os<br />

desfiles transformaram-se em espetáculos<br />

tipo teatro de revista, sob a<br />

direção de uma nova figura: o carnavalesco.<br />

Lélia Gonzalez<br />

serviço da realidade e da necessidade<br />

do povo negro e, em especial, das<br />

mulheres negras. Lélia passa a ser a<br />

grande referência teórica do Movimento<br />

Negro (principalmente do novo MN,<br />

nos anos 1970, que ajudou a fundar).<br />

É a primeira intelectual negra no país.<br />

É nessa condição que está citada no<br />

Dicionário Mulheres do Brasil, na Enciclopédia<br />

Encarta Africana e, em Mulheres<br />

Negras do Brasil.<br />

Lélia Gonzalez teve uma trajetória,<br />

permanente e irrestrita, na direção do<br />

conhecimento. Pela fala, olho no olho,<br />

ela sabia que conhecimento buscar em<br />

sua riquíssima bagagem teórica (Filosofia,<br />

História, Teoria da Comunicação,<br />

Proxêmica, Psicologia e Psicanálise,<br />

Antropologia, Sociologia, Teoria da<br />

Arte e Estética, Teoria dos Objetos,<br />

Política, Hermenêutica) para fazer com<br />

que o/a interlocutor/a compreendesse<br />

a questão “crucial”. Sua capacidade<br />

de interpretação se mostrou na crítica<br />

às ideologias e à hegemonia de dominação<br />

(de lógica machista, branca e<br />

europeia) que sempre forçou o povo<br />

negro ao lugar de submissão, de menor<br />

condição e capacidade.<br />

Já havia lido os grandes filósofos<br />

críticos, Marx, Sartre, Althusser e<br />

outros. Havia lido a sociologia, Max<br />

Weber e outros. Mas quando Lélia lia,<br />

lia tudo; comprava tudo e lia tudo; não<br />

parava enquanto não terminasse: noite<br />

adentro, dia afora.<br />

Agora, na luta pela consciência racial,<br />

lia os africanos, todos: em inglês,<br />

em francês, em espanhol. Ela havia<br />

aprendido tudo sozinha. Nunca frequentou<br />

escola de idioma. Aprendeu<br />

francês no tempo da faculdade, procurando<br />

ler os autores. Logo no início<br />

traduziu três livros para a editora Freitas<br />

Bastos. Depois parou de traduzir, não<br />

tinha mais paciência. E dava aula,<br />

muitas aulas. E estudou psicanálise:<br />

todo Freud, todo Lacan, todo Foucault!<br />

E era com toda essa bagagem teórica<br />

que palestrava e não dava trégua,<br />

apesar da simpatia contagiante.<br />

Lélia gostava de ler e falar. Escreveu<br />

pouco para o tanto que deixou! Nessa<br />

hora, ela já tinha consciência de que<br />

sabia muito e articulava magnificamente:<br />

o social, o psicológico, o ideológico, a<br />

luta de classes, a opressão do povo ne-<br />

104<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong>


gro, sobre a acomodação e sobre mulher<br />

(havia lido toda Simone de Beauvoir)!<br />

Tinha horror à acomodação e à ignorância<br />

e reafirmava a necessidade do<br />

estudo para que a consciência não fosse<br />

“oba-oba”, para que o “movimento negro”<br />

não fosse “movimentação”!<br />

O universo de conhecimento que<br />

Lélia trazia, forçosamente determinado<br />

<strong>por</strong> ela para a transformação do real,<br />

muito mais tem a ver com a oralidade<br />

africana dos griôs, do que com a academia<br />

ocidental. Lélia representou uma<br />

griô que conta histórias verdadeiras<br />

para seu povo. Ela falava e ensinava<br />

não só para preservar a história, mas,<br />

principalmente, para resgatar as genealogias,<br />

as origens e as tradições de<br />

seu povo, para que esse povo compreendesse<br />

a lógica da discriminação<br />

e alcançasse a consciência, resgatando<br />

o orgulho de si mesmo, para a superação<br />

da condição de exclusão em que<br />

havia sido colocado. Foi na defesa<br />

JANUÁRIO GARCIA<br />

O aparecimento<br />

do Movimento de<br />

Mulheres Negras:<br />

Em, 1975, quando as feministas ocidentais<br />

se reuniam na Associação<br />

Brasileira de Imprensa para comemorar<br />

o Ano Internacional da Mulher,<br />

<strong>elas</strong> ali compareceram, apresentando<br />

um documento em que caracterizavam<br />

a situação de opressão<br />

da mulher negra.<br />

Os anos seguintes testemunharam a<br />

criação de grupos de mulheres negras<br />

(Aqualtune, 1979; Luiza Mahin, 1980;<br />

Grupo de Mulheres Negras do Rio<br />

de Janeiro, 1982) que, de um modo<br />

ou outro, foram reabsorvidos pelo<br />

Movimento Negro. Todas nós, sem<br />

jamais termos nos distanciado do<br />

MN, continuamos nosso trabalho de<br />

militantes no interior das organizações<br />

mistas a que pertencíamos (André<br />

Rebouças, IPCN, SINBA, MNU,<br />

etc.), sem, no entanto, desistir da discussão<br />

de nossas questões específicas<br />

junto aos nossos companheiros que,<br />

muitas vezes, tentavam nos excluir<br />

do nível das decisões, delegando-nos<br />

tarefas mais ”femininas”. Todavia,<br />

como nós, mulheres e homens negros,<br />

nos conhecemos muito bem, nossas<br />

relações, apesar de todos os “pegas”,<br />

desenvolvem-se num plano mais igualitário<br />

cujas raízes, como dissemos<br />

acima, provêm de um mesmo solo: a<br />

experiência histórico-cultural comum.<br />

Lélia Gonzalez<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

105


desse povo que, dentre outras atividades, excluídos vai nortear suas campanhas<br />

participou de seminários nacionais e para cargos públicos, em 1982 (1ª suplente<br />

como Deputada Federal, PT) e<br />

internacionais que duraram, pelo menos,<br />

de 1975 a 1989. A necessidade em 1986 (suplente de Deputada Estadual,<br />

PDT), tendo como principais re-<br />

de implementação e transformação foi<br />

reconhecida pela atriz e política Ruth ferências as liberdades individuais e as<br />

Escobar (presidente do Conselho Nacional<br />

dos Direitos da Mulher – CNDM, Lélia sempre acreditou que uma<br />

transformações sociais.<br />

Trabalhadoras negras<br />

do qual Lélia era membro) que a indicou sociedade solidária e fraterna é possível.<br />

A mulher negra permanece como o<br />

publicamente, em editorial do jornal Para isso, compreendia como necessário<br />

setor mais explorado e oprimido da<br />

Folha de S. Paulo, para ocupar a vaga que, além do engajamento na luta política<br />

mais ampla, os grupos não domi-<br />

sociedade brasileira, uma vez que<br />

do Ministério da Cultura, em 1985.<br />

sofre uma tríplice discriminação (social,<br />

racial e sexual). Nossa situação<br />

Entre traduções de livros de filosofia, nantes, excluídos do poder, deviam<br />

textos de palestras e “Lugar de Negro”, produzir seu próprio conhecimento.<br />

atual não é muito diferente daquela<br />

Lélia deixou “Festas Populares no Brasil”,<br />

editora Index, 1987, premiado na estudo das culturas humanas, especial-<br />

Foi em razão disso que se dedicou ao<br />

vivida <strong>por</strong> nossas antepassadas: afinal,<br />

a trabalhadora rural de hoje não<br />

Feira Internacional do Livro, de Leipzig, mente da cultura negra. Muitos de seus<br />

difere muito da “escrava do eito” de<br />

Alemanha, na categoria “Os mais belos escritos e falas conjugaram ciência e<br />

ontem; a empregada doméstica não<br />

livros do mundo”, além de panfletos política e atuaram contra o racismo e<br />

é muito diferente da “mucama” de<br />

político-sociais, partidários, engajados, outras formas de preconceito, contribuindo<br />

para a formação acadêmica e<br />

ontem; o mesmo poderia dizer-se da<br />

de muita reflexão. Seus escritos, simultaneamente<br />

permeados pelos ce-<br />

cidadã de muitos dos que com ela con-<br />

vendedora ambulante, da “joaninha”,<br />

da servente ou da trocadora de ônibus<br />

de hoje, e “escrava de ganho” de<br />

nários da ditadura militar e da emergência<br />

dos movimentos sociais, são Compreendia que o ser humano<br />

viveram direta ou indiretamente.<br />

ontem.<br />

reveladores de sua capacidade intelectual não pode ficar parado, acomodado a<br />

e identificam sua constante preocupação um modus vivendi, sem ver adiante.<br />

Aquele papo do “exige-se boa aparência”,<br />

dos anúncios de empregos, a gente<br />

em articular as lutas mais amplas da Isso ficou evidente nos anos 70 quando,<br />

sociedade com a demanda específica ajudando a fundar as o<strong>por</strong>tunidades<br />

pode traduzir <strong>por</strong>: “negra não serve”.<br />

dos negros, das mulheres e dos homossexuais.<br />

A preocupação com os o Instituto de Pesquisas das Culturas<br />

coletivas de consciência negra [como<br />

Secretária, recepcionista de grandes<br />

empresas, balconista de butique elegante,<br />

comissária de bordo, etc. e tal,<br />

Negras (IPCN-RJ), o Movimento Negro<br />

Unificado (MNU), e o Olodum-BA],<br />

são profissões que exigem contato<br />

fez a opção definitiva de sua vida.<br />

com o tal público “exigente” (leia-se<br />

Tinha 59 anos quando faleceu, em<br />

racista). Afinal de contas, para a cabeça<br />

desse público a trabalhadora ne-<br />

10 de julho de 1994, na cidade do Rio<br />

Lélia sempre<br />

de Janeiro. Depois de sua morte,<br />

gra tem que ficar no “seu lugar”: ocultada,<br />

invisível, “na cozinha”.<br />

muitos grupos apareceram no país,<br />

acreditou que<br />

uma sociedade<br />

lançando seu nome, em homenagem.<br />

Seu pensamento também já foi objeto<br />

Lélia Gonzalez<br />

solidária e<br />

fraterna é<br />

de estudos e dissertações acadêmicas.ø<br />

possível.<br />

Ana Maria Felippe é professora,<br />

pós-graduada em Filosofia da Ciência (UFRJ), e<br />

coordenadora do Memorial Lélia Gonzalez<br />

(www.leliagonzalez.org.br). Foi aluna e amiga de<br />

Lélia, com quem conviveu <strong>por</strong> mais de 30 anos.<br />

106 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />


Aqui você ouve, durante 24 horas, música de<br />

qualidade e fica em sintonia com temas atuais sobre<br />

educação, trabalho, política, cidadania, meio ambiente,<br />

cultura e pautas sociais. Um espaço com muita<br />

participação dos professores.<br />

www.sinprominas.org.br/radio-sinpro/<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

107


ATEBEMG<br />

108<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong>


PERFIL<br />

POR SAULO ESLLEN MARTINS<br />

Conceição Rosière<br />

A mulher que dá vida aos bonecos<br />

Dona de uma personalidade doce e<br />

serena, uma mulher determinada, justa<br />

e corajosa, que tem no currículo o domínio<br />

de cinco idiomas e o hábito de<br />

viajar pelo mundo. Estas são algumas<br />

características da bonequeira Conceição<br />

Rosière, de 65 anos, uma figura marcante<br />

para o teatro de animação em<br />

Minas Gerais e no Brasil. Engajada na<br />

luta pela valorização e difusão do teatro<br />

de bonecos, “Ção”, como é chamada<br />

pelos artistas, é uma mulher de pulso<br />

firme, mas que mostra toda a sua ternura<br />

nos espetáculos que produz.<br />

Conceição acabou de chegar de<br />

uma viagem, na qual visitou países<br />

como Índia e Butão, em busca de<br />

novas experiências pessoais e também<br />

de outras técnicas de construção e animação<br />

de objetos. “Cada país que<br />

visitei é peculiar à sua maneira, principalmente,<br />

do ponto de vista do teatro<br />

de bonecos. Existe muita riqueza e diversidade.<br />

Me suspreendo a cada dia.<br />

Nos meus estudos e pesquisas fui descobrindo<br />

novas formas de fazer o ofício,<br />

seja na construção ou, até mesmo, a<br />

temática. Esses estudos sempre antecedem<br />

as viagens. Quando visito os<br />

países, já sei bastante sobre a cultura e<br />

teatro de bonecos dos lugares. Nessas<br />

incursões, pude assistir a espetáculos<br />

de sombras e varas na Indonésia, ao<br />

bunraku no Japão, ao katiputli na<br />

Índia, ao teatro na água do Vietnã, ao<br />

de fios em Miamar, ao teatro negro<br />

Conheci bonequeiros,<br />

indaguei sobre suas<br />

técnicas de atuação<br />

e como os bonecos<br />

eram construídos;<br />

isso não tem preço.<br />

em Praga e vários outros em festivais.<br />

Conheci bonequeiros, indaguei sobre<br />

suas técnicas de atuação e como os<br />

bonecos eram construídos: isso não<br />

tem preço. Pude também comprar vários<br />

bonecos diretamente de quem<br />

fazia, o que contribuiu imensamente<br />

para aumentar os meus conhecimentos<br />

e habilidades”.<br />

Bonequeira desde 1982, Conceição<br />

fez parte do grupo de teatro Patati &<br />

Patatá. Hoje, é vice-presidenta da Associação<br />

Brasileira de Teatro de Bonecos,<br />

já presidiu também a Associação<br />

de Teatro de Bonecos de MG (Atebemg),<br />

entidade que ajudou a criar.<br />

Fez parte, durante quatro anos, da comissão<br />

de análise de projetos culturais<br />

do estado de MG. Ganhadora de prêmios<br />

<strong>por</strong> textos e espetáculos, ela recebeu,<br />

em 2015, uma comenda da<br />

Prefeitura de Belo Horizonte, <strong>por</strong> serviços<br />

prestados à cultura da cidade.<br />

No ano passado, um texto de sua autoria<br />

foi vencedor de um prêmio da<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

109


Fundação Clóvis Salgado. O grupo<br />

Pigmalião Escultura que Mexe vai montar<br />

a peça que tem estreia prevista<br />

para o primeiro semestre de <strong>2016</strong>.<br />

Conceição conta que a arte sempre<br />

teve espaço em sua vida. Amava assistir<br />

aos programas de TV Vila Sésamo e<br />

Topo Gigio, que usavam técnicas de<br />

manipulação direta para dar vida aos<br />

bonecos. Sempre gostou de desenhar,<br />

esculpir e criar coisas “úteis e inúteis”,<br />

só pelo desafio. “Me lembro de apresentar,<br />

para deleite de meus irmãos<br />

mais novos, a cena de marionetes do<br />

filme A Noviça Rebelde, com panos<br />

amarrados em um cordão. Eu cantava,<br />

imitando as vozes dos carneiros”.<br />

Em 1973, ela foi morar na Alemanha.<br />

Lá, teve acesso a vários livros<br />

sobre teatro de animação. Começou a<br />

fazer bonecos de tecido para a filha<br />

brincar. No entanto, ainda não tinha<br />

pensado em nada profissional. “Quando<br />

voltei ao Brasil, em 1981, li no jornal<br />

que havia um “tal” de Álvaro Apocalypse<br />

que ia ministrar um curso sobre<br />

teatro de bonecos, na escola de B<strong>elas</strong><br />

Artes da UFMG - o Giramundo só<br />

tinha ficado conhecido no festival de<br />

inverno de Ouro Preto, em 1979,<br />

quando eu estava fora do Brasil. Só<br />

então me dei conta que havia pessoas<br />

que eram bonequeiras, que construÍam<br />

e animavam suas próprias esculturas,<br />

o que era fascinante. Fiz o curso com<br />

Álvaro, Tereza e Madu, mestres inesqueciveis”.<br />

Foi então que a história da Conceição<br />

bonequeira começou a ser contada.<br />

Construiu seus primeiros bonecos: uma<br />

vovó (boneco de luva); um palhacinho<br />

(boneco de vara); e uma baiana sambista<br />

(marionete de fios). Conheceu o bonequeiro<br />

Tião Vieira e montou com ele<br />

uma história que contou no aniversário<br />

de 5 anos da filha, Amanda. “Depois<br />

disso veio a querida Sheyla Alves, o<br />

Paulinho Polika, Sumaya Costa, Agnaldo<br />

Pinho e vários outros bonequeiros<br />

que fui conhecendo e com quem aprendi,<br />

de cada um, um pouco mais. Fui<br />

contaminada e nunca mais parei”.<br />

Ao ser questionada sobre as diferenças<br />

entre homens e mulheres no<br />

mundo dos bonecos, Conceição é enfática:<br />

“Não há nenhum diferencial.<br />

Nunca percebi algum tipo de preconceito”.<br />

A manipulação exige habilidade<br />

e assim é determinado quem manipulará<br />

qual boneco, o mesmo acontece com<br />

a construção. As vozes podem ser<br />

feitas <strong>por</strong> ambos os sexos, basta uma<br />

boa preparação vocal. Assim, competimos<br />

em pé de igualdade e se formos<br />

pesquisar, no Brasil, as mulheres podem<br />

até ser maioria. Nós damos vida a formas<br />

inanimadas, construímos sonhos,<br />

levamos o público a um mundo onde<br />

tudo é possível. Quando conseguimos<br />

que o público se envolva pelo nosso<br />

imaginário e nos acompanhe numa<br />

viagem de fantasia, cumprimos bem<br />

nossa missão, sendo bonequeiros ou<br />

bonequeiras. Aqui não somos divas no<br />

teatro e sim condutoras de uma espécie<br />

de fio da vida, que vai até o inanimado<br />

e o faz viver, contar uma história,<br />

como se o objeto manipulado tivesse<br />

vida própria”.ø<br />

ATEBEMG<br />

110<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong>


POUCAS E BOAS<br />

Conferência Nacional de Mulheres repudia golpe de estado<br />

Professoras, representantes do<br />

Sinpro Minas, participaram, nos dias<br />

10, 11 e 12/05, em Brasília, da 4ª<br />

Conferência Nacional de Políticas<br />

para as Mulheres (4ªCNPM). O encontro<br />

reuniu cerca de três mil mulheres<br />

de todas as regiões do País,<br />

as delegadas aprovaram propostas<br />

que exigem continuidade das conquistas<br />

nas políticas de proteção e<br />

de direitos para as mulheres.<br />

Ao final, as conferencistas aprovaram<br />

uma carta das mulheres ao<br />

povo brasileiro para expressar o<br />

seu repúdio ao golpe de Estado que<br />

pretende interromper o mandato<br />

da primeira e única mulher que venceu<br />

duas eleições presidenciais, e<br />

tem, até o ano de 2018, o direito e a<br />

legitimidade de exercer o comando<br />

da nação.<br />

Já exonerada da condição de Secretária<br />

Especial de Políticas para<br />

as Mulheres, Eleonora Menicucci reforçou<br />

a im<strong>por</strong>tância de as mulheres<br />

cobrarem e defenderem todas as<br />

conquistas dos últimos anos. “A Conferência<br />

mostrou que temos uma<br />

capacidade de lutar e garantir políticas<br />

públicas de gênero. Agora sabemos<br />

que podemos eleger mulheres<br />

vereadoras, deputadas, governadoras<br />

e presidentas, <strong>por</strong>que nós somos<br />

guerreiras e podemos”, destacou.<br />

Dentre as propostas aprovadas,<br />

incluem-se a da reserva de no mínimo<br />

1% dos recursos do Orçamento<br />

para o enfrentamento da violência.<br />

Outra prevê a aplicação do fundo<br />

partidário para capacitação de mulheres<br />

na política. Foi aprovada<br />

ainda a criação de um fundo para<br />

garantir o Sistema Nacional de Políticas<br />

para as Mulheres, nos moldes<br />

do SUS, que defina atribuições da<br />

União, dos Estados e municípios em<br />

relação ao direito de mulheres.<br />

As participantes da conferência<br />

incluíram também uma proposta<br />

que prevê reserva de recursos para<br />

ações específicas relacionadas à<br />

diversidade. Esta contempla mulheres<br />

negras, indígenas, quilombolas,<br />

de matriz africana, ciganas, de<br />

comunidades e povos tradicionais,<br />

de terreiro, do campo, das águas,<br />

da floresta, lésbicas, transexuais,<br />

travestis, egressas do sistema prisional,<br />

com deficiência e com mobilidade<br />

reduzida.<br />

As delegadas e observadoras<br />

trouxeram para a 4ª CNPM o resumo<br />

de todos os debates realizados nas<br />

conferências municipais, intermunicipais,<br />

livres, estaduais e nas consultas<br />

nacionais. A maioria apontou<br />

a necessidade da constituição de<br />

um Sistema Nacional de Políticas<br />

para as Mulheres.<br />

Etapas preparatórias<br />

Com o tema “Mais direitos, participação<br />

e poder para as mulheres,<br />

as etapas preparatórias para a 4ª<br />

CNPM tiveram início em junho de<br />

2015 e mobilizaram mais de 150 mil<br />

pessoas em torno dos debates. No<br />

total, mais de 2,5 mil cidades participaram<br />

de conferências municipais<br />

e intermunicipais. Todos os Estados<br />

e o Distrito Federal realizaram as<br />

suas etapas estaduais. Foram promovidas<br />

conferências livres e uma<br />

Plenária Governamental, com ministérios,<br />

secretarias e instâncias<br />

do governo federal. Também foram<br />

realizadas consultas nacionais com<br />

grupos que tradicionalmente encontram<br />

maior dificuldade de acesso<br />

e expressão nos processos convencionais<br />

de participação social.<br />

PAULO NEGREIROS<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

111


POUCAS E BOAS<br />

INTERNET<br />

Pacto pela igualdade de gênero na mídia<br />

A ONU Mulheres lançou, em março<br />

de <strong>2016</strong>, uma parceria com mais de 35<br />

veículos da mídia impressa, online, da<br />

TV e do rádio, de vários países. Batizada<br />

de "Pacto de Mídia — Dê um Passo pela<br />

Igualdade de Gênero", a iniciativa foca<br />

em ações concretas ligadas à Agenda<br />

2030, já que o objetivo número 5 é garantir<br />

que a igualdade de direitos entre<br />

homens e mulheres seja alcançada.<br />

O pacto reconhece o papel de influência<br />

que os meios de comunicação<br />

podem ter em promover o empoderamento<br />

feminino. A iniciativa funcionará<br />

como uma aliança entre a ONU Mulheres<br />

e organizações de mídia comprometidas<br />

com a igualdade de gênero.<br />

As 35 primeiras entidades parceiras<br />

do pacto transmitem para milhões de<br />

pessoas na África, na Ásia-Pacífico, nos<br />

países árabes, na Europa e na América<br />

Latina. A diretora-executiva da ONU<br />

Mulheres afirmou que a agência quer<br />

que a mídia internacional trabalhe a<br />

favor da igualdade de gênero. Phumzile<br />

Mlambo-Ngcuka destaca ser uma<br />

parceria im<strong>por</strong>tante, <strong>por</strong>que os meios<br />

de comunicação "exercem grande influência<br />

sobre como as pessoas percebem<br />

e entendem o mundo".<br />

Centro Feminista de Estudos<br />

e Assessoria<br />

www.cfemea.org.br<br />

União Brasileira de Mulheres (UBM)<br />

www.ubmulheres.org.br<br />

Líder africana anula 850 casamentos infantis e<br />

envia meninas de volta para a escola<br />

Rede Feminista de Saúde<br />

www.redesaude.org.br<br />

Theresa Kachindamoto, líder feminista<br />

em Malawi, país da África, anulou<br />

mais de 850 casamentos forçados nos<br />

últimos 3 anos e colocou meninas na<br />

escola. Mais da metade das mulheres<br />

em Malawi se casam antes dos 18 anos.<br />

Somente em 2015 foi instituída a maioridade<br />

de 18 para casamentos (mesmo<br />

com assinatura dos pais). Agora, a luta<br />

é para que essa idade seja elevada para<br />

os 21 anos.<br />

Theresa já foi ameaçada de morte<br />

<strong>por</strong> outros políticos que são contra<br />

suas políticas públicas. Ela rebate e diz<br />

que continuará lutando até a morte. E<br />

deixa uma mensagem quando entrevistada:<br />

“se <strong>elas</strong> forem educadas, podem<br />

ser o que quiserem. Ou seja, até esposas<br />

e mães. Mas se <strong>elas</strong> quiserem”,<br />

reforça.<br />

Segundo o Unicef, o casamento<br />

infantil é uma violação dos direitos<br />

das adolescentes e mulheres. As<br />

meninas que são casadas quando<br />

ainda são crianças estão mais propensas<br />

a deixar a escola, a sofrer<br />

violência doméstica, a contrair<br />

HIV/Aids e a morrer devido a complicações<br />

durante a gravidez e o<br />

parto. O casamento infantil também<br />

prejudica as economias, levando a<br />

ciclos intergeracionais de perpetuação<br />

da pobreza.<br />

Fonte: http://www.hypeness.com.br/<br />

Movimento Vamos Juntas<br />

https://www.facebook.com/movimentovamosjuntas<br />

Empodere duas Mulheres<br />

https://www.facebook.com/empodereduasmulheres<br />

112 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong>


LIVROS<br />

FILMES<br />

Imprensa feminina<br />

e feminista no Brasil<br />

Autora: Constância Lima Duarte<br />

Editora: Autêtica<br />

O Espelho Diamantino<br />

(1827-1828), O<br />

Despertador das<br />

Brasileiras (1830-<br />

1831), O Bello Sexo<br />

(1850-1851), A Mensageira<br />

(1897-1900).<br />

Esses são alguns<br />

dos 143 títulos de<br />

jornais e revistas<br />

reunidos em A Imprensa feminina e feminista<br />

no Brasil: Século XIX, de Constância<br />

Lima Duarte, professora da Faculdade<br />

de Letras da Universidade Federal<br />

de Minas Gerais (UFMG). A obra,<br />

resultado de anos de pesquisas realizadas<br />

pela autora sobre a história das<br />

mulheres, a literatura de autoria feminina<br />

e o movimento feminista no Brasil, traz<br />

fac-símiles e transcrições de textos dos<br />

jornais, organizados <strong>por</strong> ordem cronológica<br />

e de publicação.<br />

Um defeito de cor<br />

Autora: Ana Maria Gonçalves<br />

Editora: Record<br />

A narrativa ficcional,<br />

de Ana Maria<br />

Gonçalves, traz a<br />

história de uma<br />

africana idosa,<br />

cega e à beira da<br />

morte, que viaja da<br />

África para o Brasil<br />

em busca do filho<br />

perdido há décadas.<br />

Ao longo da travessia, ela vai contando<br />

sua vida, marcada <strong>por</strong> mortes,<br />

estupros, violência e escravidão. Inserido<br />

em um contexto histórico im<strong>por</strong>tante<br />

na formação do povo brasileiro e narrado<br />

de uma maneira na qual os fatos<br />

históricos estão imersos no cotidiano e<br />

na vida dos personagens.<br />

Heroínas negras na<br />

literatura infantil<br />

Preocupada em dar visibilidade às<br />

protagonistas negras na literatura<br />

infantil, a livreira Luciana Bento criou<br />

o projeto “100 livros infantis com<br />

meninas negras”. A intenção, segundo<br />

a autora da iniciativa, é contribuir<br />

para a diminuição do preconceito<br />

racial e de gênero. “As crianças não<br />

deveriam ler livros só com personagens<br />

brancas e depois sairem nas<br />

ruas e verem uma população multicolorida<br />

como a nossa”, pontua. A<br />

lista pode ser consultada em:<br />

www.100meninasnegras.tumblr.com.<br />

Cadernos Pagu<br />

Criados em 1993, Cadernos Pagu é<br />

hoje um dos principais periódicos<br />

brasileiros focados na problemática<br />

de gênero. A produção sobre os principais<br />

temas contemplados pela publicação<br />

– trabalho, educação, violência,<br />

sexualidade, raça, família, literatura,<br />

teorias feministas e de gênero<br />

– tem oferecido significativa<br />

contribuição para as discussões no<br />

âmbito acadêmico e para a atuação<br />

de diversas entidades, inclusive na<br />

formulação de políticas públicas.<br />

Saiba mais em www.pagu. uni -<br />

camp.br.<br />

Persépolis (animação)<br />

Direção: Marjane Satrapi e Vincent<br />

Paronnaud<br />

Baseado na autobiografia em quadrinhos<br />

de Marjane Satapri, este filme de animação<br />

francês conta a história de uma<br />

garota iraniana que emigra para a França<br />

para continuar seus estudos e deixar<br />

o país que estava então sob o regime<br />

do Aiatolá Khomeini.<br />

Como se fosse da família (documentário)<br />

Direção: Alice Riff e Luciano Onça<br />

Neste documentário, duas trabalhadoras<br />

domésticas refletem sobre suas trajetórias<br />

de vida e trabalho, servindo desde<br />

cedo e até a vida adulta a uma mesma<br />

família. As domésticas debatem a recente<br />

regulamentação que garante os mesmos<br />

direitos dos trabalhadores às domésticas.<br />

Revolução em Dagenham (Ficção)<br />

Direção: Nigel Cole<br />

A luta das mulheres inglesas <strong>por</strong> melhores<br />

condições salariais em um ‘mundo de<br />

homens’ é a temática central do filme.<br />

As operárias da fábrica da Ford de Dagenham,<br />

na Inglaterra, vivenciam uma<br />

rotina desgastante de trabalho, atrelada<br />

a condições precárias e longas jornadas.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Junho <strong>2016</strong><br />

113


RETRATO<br />

Conceição<br />

Evaristo<br />

Nascida numa favela de Belo<br />

Horizonte, foi empregada doméstica<br />

e se tornou professora,<br />

mestre em Literatura<br />

Brasileira pela PUC Rio e doutora<br />

em Literatura Comparada<br />

pela Universidade Federal Fluminense.<br />

Escritora com projeção<br />

internacional, suas obras,<br />

em especial o romance Ponciá<br />

Vicêncio, de 2003, abordam<br />

temas como a discriminação<br />

racial, de gênero e de classe.<br />

Marcello Casal Jr - Agencia Brasil

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!