Revista Elas por elas 2014
A revista sobre gênero Elas por Elas foi criada, em 2007, com o objetivo de dar voz às mulheres e incentivar a luta pela emancipação feminina. A revista enfatiza as questões de gênero e todos os temas que perpassam por esse viés. Elas por Elas traz reportagens sobre mulheres que vivenciam histórias de superação e incentivam outras a serem protagonistas das mudanças, num processo de transformação da sociedade. A revista aborda temas políticos, comportamentais, históricos, culturais, ambientais, literatura, educação, entre outros, para reflexão sobre a história de luta de mulheres que vivem realidades diversas.
A revista sobre gênero Elas por Elas foi criada, em 2007, com o objetivo de dar voz às mulheres e incentivar a luta pela emancipação feminina. A revista enfatiza as questões de gênero e todos os temas que perpassam por esse viés. Elas por Elas traz reportagens sobre mulheres que vivenciam histórias de superação e incentivam outras a serem protagonistas das mudanças, num processo de transformação da sociedade. A revista aborda temas políticos, comportamentais, históricos, culturais, ambientais, literatura, educação, entre outros, para reflexão sobre a história de luta de mulheres que vivem realidades diversas.
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Cantando
a própria
história
QUILOMBOLAS
A luta pela
liberdade de
um povo
Grupo Meninas de
Sinhá ajuda mulheres a
resgatar a autoestima
através da música
Creche:
direito das
crianças e
das mães
Cora Coralina
“Eu sou aquela mulher a quem o tempo muito ensinou. Ensinou a amar a vida e não desistir da luta, recomeçar
na derrota,
renunciar
a palavras
e pensamentos
negativos. Acreditar nos valores humanos e ser otimista.”
Departamento de Comunicação do Sinpro Minas:
Diretores responsáveis: Aerton Silva e Marco Eliel de Carvalho
Editora/Jornalista responsável: Débora Junqueira (MG05150JP)
Redação: Denilson Cajazeiro (MG09943JP),
Nanci Alves (MG003152JP e Saulo Martins (MG15509JP)
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Design Gráfico: Fernanda Lourenço e Mark Florest
Revisão: Aerton Silva e Denilson Cajazeiro
Estagiária: Pollyana Bitencourt
Foto capa: Sérgio Falci
Conselho Editorial:
Lavínia Rodrigues, Terezinha Avelar, Marilda Silva, Liliani Salum Moreira,
Cláudia Pessoa, Clarice Barreto, Nádia Maria Barbosa,
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A força das mulheres
Em 1964, o Brasil sofre o golpe militar. 50 anos depois, o país
relembra os impactos da ditadura instaurada, o que torna esse momento
propício para redescobrir o papel das mulheres na luta contra o regime.
A sétima edição da revista Elas por Elas aborda esse tema a partir do depoimento
da professora Ingrid Faria, autora do livro Mulheres e Militância
– Encontros e confrontos durante a ditadura militar. A obra coloca em
evidência a resistência das mulheres.
Aliás, resistir parece ser o verbo das mulheres, personagens nas
diversas matérias. Mulheres em busca de mais cidadania através do
trabalho, como as catadoras de papel, pessoas pobres que dependem de
benefícios sociais para criar os filhos e para conseguir uma vaga na
escola. Realidade estampada na reportagem sobre educação infantil, que
mostra como a falta de vagas nas creches públicas tem impacto na vida
de crianças e mães e aprofunda, ainda mais, o quadro de desigualdade de
gênero no mercado de trabalho.
Outros exemplos de resistência vêm das mulheres que vivem em comunidades
quilombolas, onde enfrentam todo o tipo de dificuldades para
manter a tradição de seu povo. Nessas comunidades, as mulheres negras
são maioria e ocupam lugares de destaque. A temática racial, sempre presente
na revista, rendeu à Elas por Elas o Prêmio Abdias Nascimento,
em 2013, pela matéria “Fora das capas de revistas”, na categoria mídia
alternativa.
Essa edição também destaca o protagonismo das mulheres à frente de
movimentos sociais, populares e sindicais. Para a pesquisadora Ana
Carolina Ogando, as mulheres historicamente participaram desses espaços,
mas a presença e a atuação delas ficaram de certa forma invisibilizadas.
Invisíveis também estão muitas artistas, como mostra outra reportagem.
A conclusão é que o pouco destaque na história oficial para as artistas
plásticas é reflexo do machismo de uma sociedade patriarcal.
O machismo também é visto como uma das causas da violência contra
as mulheres, conforme aponta a matéria na qual a pesquisadora Marlise
Matos explica que a dominação de gênero tem causas estruturais. Nesse
aspecto, o destaque é para a CPMI da violência doméstica, cujo relatório
mostra que a Lei Maria da Penha, apesar de ser um grande avanço, ainda
não conseguiu inibir os crimes porque os estados não se equiparam para
os trabalhos de punição e prevenção.
A boa notícia fica por conta dos avanços trazidos pelo Programa Bolsa
Família, que há uma década transfere renda e transforma a realidade de
muitas mulheres. Assim como as várias iniciativas em prol da emancipação
feminina que podem ser conferidas nas páginas a seguir.
Por fim, a homenagem póstuma à Dona Valdete, líder do grupo
mineiro Meninas de Sinhá, que ganhou a capa dessa edição por ser um
exemplo de mulher guerreira e lutadora. Com a ideia simples de resgatar
cantigas de roda e danças para elevar a autoestima das mulheres, fez
muito mais que isso, criando um grupo de sucesso e deixando um
importante legado cultural e social.
Boa leitura!
Revista Elas por Elas - março 2014 3
RECONHECIMENTO
Revista Elas por Elas
recebe o Prêmio
Abdias Nascimento
Pág 7
50 ANOS DO GOLPE
Memórias
da repressão
Pág 8
CAPA
Cantando a própria história
Grupo Meninas de Sinhá ajuda mulheres a resgatar a
autoestima através da música
Pág 18
TRABALHO
Lixo que traz cidadania
Pág 26
REALIDADE
Mudança na vida das
mulheres pobres
Pág 30
CIDADANIA
Por outra
sociedade
Pág 12
QUILOMBOLA
A luta pela liberdade
de um povo
Pág 38
4
VIOLÊNCIA
Resultado da CPMI
aponta para mudança
de realidade
Pág 44
Machismo: doença
cultural que precisa
ser curada
Pág 52
ARTES
Artistas invisíveis
Pág 68
PERFIL
Érika Foureaux: o sonho
de mudar o mundo pelo
designer
Pág 74
ARTIGOS
Rumo à emancipação
Pág 22
O estatuto do nascituro
e suas consequências
Pág 84
Sexo, prazer proibido
Pág 90
Estupro:
problema global
Pág 58
EDUCAÇÃO
direito das crianças
e das mães
Pág 62
DIVERSIDADE
Uma lei contra
a violência
homofóbica
Pág 78
HISTÓRIA
Simplesmente Pagu
Pág 88
POUCAS E BOAS
DICAS CULTURAIS
Pág 92
Revista Elas por Elas - março 2014 5
Os
professores
na TV
Temas
relacionados
à educação e
assuntos em
debate na
sociedade.
O programa de
TV do Sindicato
dos Professores
do Estado de
Minas Gerais.
TV Band Minas,
TV Comunitária de BH
www.youtube.com/sinprominas
Confira no site abaixo a programação
Filiado à Fitee, Contee e CTB
www.sinprominas.org.br
RECONHECIMENTO
Revista Elas por Elas recebe o
Prêmio Abdias Nascimento
A reportagem “Fora das capas de
revistas”, da jornalista do Sinpro Minas
Débora Junqueira, publicada na revista
Elas por Elas 2013, foi a vencedora
entre três finalistas na categoria Mídia
Alternativa ou Comunitária do 3º Prêmio
Nacional Jornalista Abdias Nascimento.
O prêmio é organizado pela Comissão
de Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira-Rio),
do Sindicato dos Jornalistas
Profissionais do Município do Rio de
Janeiro.
A matéria mostra, com referência
na dissertação de mestrado da historiadora
Carolina Santos de Oliveira, que
as adolescentes negras leitoras de revistas
femininas não se reconhecem nessas
publicações. A ausência de garotas negras
nas capas dessas revistas e o pouco
espaço destinado aos temas que se referem
à negritude, assim como a forma
de abordagem sobre as questões raciais
e de gênero, revelam uma manifestação
do racismo na mídia e a disseminação
de estereótipos de beleza inatingíveis.
“O fato de a revista estar entre as
finalistas e ter vencido o concurso
reforça a ideia, que sempre defendemos,
de que em um sindicato é possível fazer
uma comunicação alternativa, que dialogue
não só com a categoria mas com
toda a sociedade. A repercussão do
prêmio, além de importante profissionalmente,
projeta o nome do Sinpro
Minas e da Elas por Elas, consolidando-a
como mídia alternativa e instrumento
contra as desigualdades de
gênero e raciais”, afirmou a jornalista
Débora Junqueira.
O concurso distribuiu R$ 35 mil e
revelou, em sete categorias, reportagens
Nádia Barbosa (esquerda) e Lavínia Rodrigues (direita) comemoram a premiação
com Débora Junqueira (centro).
que tornaram visíveis o racismo no
Brasil e formas de enfrentar o problema,
que trava o desenvolvimento socioeconômico
do país. Para a coordenadora
da terceira edição do Prêmio e da Cojira-Rio,
Sandra Martins, as matérias
vencedoras sinalizam para o amadurecimento
da imprensa brasileira em relação
à igualdade racial. “Observamos,
além da excelência profissional, uma
clara compreensão da questão racial e
também um compromisso dos jornalistas
com os direitos humanos”, declarou.
O prêmio homenageia o jornalista,
ativista e ex-senador da República Abdias
Nascimento – falecido em 2011
aos 97 anos. Referência quando o assunto
é igualdade racial, Abdias teve
uma importante trajetória: participou
do movimento integralista, da Frente
Negra Brasileira, foi pioneiro em iniciativas
no campo da cultura e um militante
ativo no movimento negro. Foi
indicado em 2009 ao Prêmio Nobel da
Paz em função de sua defesa pelos direitos
civis e humanos dos afrodescendentes
no Brasil e na diáspora
africana.ø
Fernanda Lourenço
Revista Elas por Elas - março 2014 7
50 ANOS DO GOLPE | por Denilson Cajazeiro
Memórias
da repressão
Obra traz relatos de mulheres que
enfrentaram o regime militar e foram
torturadas nos porões da ditadura
O Brasil vai revisitar, neste ano, os
diversos impactos do golpe militar de
1964, que retirou do poder o governo
de João Goulart. Para reavivar a memória
em torno desse triste momento
da vida do país, que completa 50 anos,
trajetórias de quem lutou contra o
regime serão recontadas, como a de
Jussara Martins, a líder estudantil capixaba
presa no conhecido Congresso
da União Nacional dos Estudantes
(UNE), em Ibiúna (SP), em 1968,
quando estava com 21 anos.
Militante da Ação Popular (AP), a
estudante universitária entrou para a
clandestinidade em julho de 1969 e,
dois anos depois, foi presa novamente
e levada para o Departamento de
Ordem Política e Social (Dops) de Belo
Horizonte. Lá, conheceu o horror da
tortura, em sessões que duravam horas.
“Eles botaram cobra em cima de
mim, me deram muito choque elétrico,
pau de arara, afogamento. A água era
embaixo para aumentar a potência do
choque e é uma dor, uma dor!”, relembra.
Do Dops de Belo Horizonte, Jussara
recorda-se que foi levada para outro
centro de tortura, em Petrópolis (RJ),
onde passou por condições piores, em
que os militares usavam técnicas mais
experimentais. Uma delas consistiu em
colocá-la em uma câmara refrigerada,
onde havia alteração constante de temperatura
e variação sonora intensa.
“A história do som com a temperatura
era uma coisa assim que desestruturava
completamente. Eu pensava assim: ‘vou
enlouquecer’. Mas é uma coisa que enlouquece
mesmo”, relata Jussara, que
cantava músicas do Chico Buarque durante
a tortura, como estratégia para
não ficar completamente desestabilizada.
Apesar das várias sessões pelas quais
passou, ela resistiu e não forneceu qualquer
informação aos militares sobre o
paradeiro de companheiros ou locais
de refúgio usados por militantes contra
o regime, os chamados aparelhos.
“Eu dizia assim... é como se eu tivesse,
assim, vamos supor que houve
um desabamento. Estou embaixo dos
escombros. Não tem como sair. Essa é
Revista Elas por Elas - março 2014 9
minha situação. Eu ficava me lembrando.
Não tem saída! Abrir não é saída! Não
vai melhorar minha situação! Só vai
piorar a dos outros, sem melhorar a
minha. Então eu não posso falar!”,
conta Jussara.
O relato dela, feito na Comissão da
Verdade, foi também publicado no livro
Mulheres e Militância – Encontros e
confrontos durante a ditadura militar,
publicado pela editora da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG). Baseada
em entrevistas, a obra reconstitui
a trajetória de nove mulheres oriundas
do movimento estudantil que militaram
contra o regime militar e foram torturadas
nos porões da ditadura. “A gente carrega
socialmente uma memória do silêncio
sobre a ditadura. Na democracia, a
questão do silêncio vai aparecer porque
não tratamos isso de forma clara, não
passamos essa história a limpo”, afirma
Ingrid Faria, professora do Departamento
de Psicologia da UFMG e autora do
livro, que contou com a colaboração
das pesquisadoras Zeidi Trindade e Maria
de Fátima Santos. Segundo Ingrid, algo
que a surpreendeu foi a capacidade de
resistência dessas mulheres, mesmo após
terem passado por tantas adversidades.
“Quando eu terminava de ouvir as entrevistas,
ficava às vezes três dias sem
conseguir conversar. Essa foi uma coisa
que me impactou muito. Essas pessoas,
em determinados momentos, quiseram
morrer para acabar com o sofrimento
que estavam vivendo. Como elas conseguiram
reconstruir suas vidas? Isso é
algo impressionante. Como não enlouqueceram,
não sucumbiram e tiveram a
capacidade de sobreviver a isso”, aponta
Ingrid.
A professora avalia que o atual momento,
em que o país completa 50
anos do golpe, é propício para redescobrir
o papel das mulheres na luta contra
o regime militar.“Tivemos um cenário
político que chamou as mulheres para
responderem, e elas responderam politicamente,
para a história do país e da
democracia. Foi uma contribuição muito
grande”. Confira abaixo trechos da entrevista
concedida à Elas por Elas.
Modelos
Uma delas engravidou no período
de clandestinidade e teve de sair do
país. Deixou uma filha aqui, com os
avós. Então se rompeu muito com desejos,
com modelos. Essa coisa de naquela
época as mulheres saírem do
país com os companheiros de militância,
que eram seus relacionamentos afetivo-amorosos,
sem serem casadas, teve
um impacto muito grande, subjetivamente,
para elas mesmas, em algumas
dimensões, e para elas em relação às
famílias.
Coletividade
Em termos dos perfis, o que as
aproxima muito é o sentimento de coletividade,
de doação, algo que se
perdeu muito nas gerações posteriores.
Era algo muito presente na socialização
delas como um todo. No geral, há uma
presença forte de ligações humanistas,
não necessariamente religiosas. Está
presente também, de certa maneira,
uma resistência ao autoritarismo, seja
ele qualquer que fosse, num momento
em que isso eclode no mundo inteiro.
Essas questões estão presentes em toda
formação delas. Se você pega o que
elas leram quando criança, a geração
da gente não leu isso nem na universidade.
Tipo Gramsci, Sartre. Era muita
filosofia, desde muito cedo.
Gênero e militância
Você não tinha ainda uma discussão
sobre esse lugar do feminino. Mas
várias delas relataram, por exemplo,
dentro das organizações, um lugar de
certa forma secundário, no sentido de
ação. Essas mulheres tinham posicionamentos
e colocavam esses posicionamentos.
Mas na hora da negociação
das ações, ainda prevaleciam modelos
tradicionais. Algumas delas tinham liderança.
O que elas viam era que a
condição feminina era muito usada
contra elas. Por exemplo, as que tinham
ligação com a Ação Popular (AP), que
era de origem católica, eram chamadas
de igrejeiras, de mulherzinha, de burguesinhas.
Então havia essa conotação
de diminuí-las politicamente em função
dessa origem feminina. Mas naquele
momento, essa leitura não estava presente
pra elas. Elas sabiam que acontecia,
conseguiam perceber que isso
era acionado, mas não por essa dimensão
do ser mulher efetivamente.
Maternidade
A questão da maternidade tem uma
característica muito forte no relato e
na trajetória delas. Para o bem e para
o mal. Para o bem, em alguns momentos,
essa condição feminina as pro-
10
tegia. Mas proteger não significa não
ser torturada não, significa que a barriga
incomodava os torturadores e alguns
tipos de tortura deixavam de ser praticadas.
A outra coisa é que, se por um
lado esse lugar feminino fragilizava,
por outro sobreviver e poder ter a
criança representava vida para elas.
Então era mais um motivo pelo qual
elas tinham de lutar para sobreviver.
Tanto dentro quanto fora da prisão.
No mesmo momento em que essa condição
as deixava mais frágeis, ao mesmo
tempo as fortalecia muito. Isso é muito
interessante. Em determinado momento
do movimento feminista houve uma
radicalização em termos da maternidade,
das mulheres entenderem que a maternidade
era um lugar de opressão, e
elas, de certa forma, não quererem ser
mães, para não caírem nessa opressão.
E para essas mulheres, ao contrário,
foi a grande redenção, o lugar onde
Internet
elas conseguiram voltar à vida. Porque
significava que se aquela criança tinha
resistido a tudo que havia passado na
barriga da mãe ou muito pequena, e se
a mãe havia resistido a tudo aquilo,
elas tinham vencido o regime, vencido
os torturadores. Então isso era uma
forma de resistência muito forte para
essas mulheres. “Eles não conseguiram
acabar comigo, com meu filho, eu gerei
vida no lugar de morte”. Essa é uma
frase muito intensa.
Invisibilidade
Historicamente, as mulheres são
muito invisíveis no que diz respeito à
conjuntura social. Na ditadura, acho
que precisa sim que as mulheres apareçam,
principalmente porque acho
que há algumas dimensões em torno
da militância que diz respeito também
a ser mulher, e isso fica invisibilizado
pela ação política, pelo fato histórico.
Então quando você fala em tortura é
diferente para homens e mulheres. Isso
precisa ser mostrado. As mulheres eram
duplamente torturadas. Uma porque
elas eram consideradas subversivas à
ordem, mas não só a política, principalmente
a ordem social. Elas estavam
subvertendo o lugar da mulher, e isso
era muito presente na tortura, os militares
falavam isso. Elas não eram só
punidas, torturadas e violentadas porque
eram contra o regime, mas também
porque eram mulheres fazendo isso
contra o regime, enfrentando homens
militares. Tudo isso era acionado. A
moral feminina era o tempo inteiro colocada
como uma forma de violência.
Elas eram torturadas moralmente no
sentido do lugar da mulher. Os militares
cobravam delas o desgosto que estariam
dando aos pais, e isso tem um peso
muito grande para elas.
Papel da mulher contra
a ditadura
Acho que tem dois papéis importantes.
Um no que diz respeito ao lugar
social da mulher. Essas mulheres contribuíram
muito para romper com todo
o tradicionalismo que havia do lugar
social feminino, que estava disponível
só para ser mãe, esposa, algo ainda
presente atualmente. Elas romperam
bastante em termos de comportamento.
Sofreram todas as consequências desse
rompimento, mas abriram condições
muito grandes para as gerações posteriores
poderem ter momentos de escolha.
Possibilitaram modelos existindo.
A outra questão, além disso, é a contribuição
efetiva que essas mulheres tiveram
para a história política do país,
inclusive a entrada das mulheres na
política, que ainda hoje é pouca. Tivemos
um cenário político que chamou
as mulheres para responderem, e elas
responderam politicamente, para a história
do país e da democracia. Foi uma
contribuição muito grande.ø
Revista Elas por Elas - março 2014 11
Denilson Cajazeiro
CIDADANIA | por Denilson Cajazeiro
Por outra
sociedade
Para além dos movimentos feministas, mulheres
fazem ativismo em outras frentes em busca de
melhores condições de vida para todos
Dona Delse não se esquece da madrugada
de 9 de março do ano passado.
Por volta das três da manhã, ela e
outras cerca de 150 famílias ocuparam
um terreno no bairro Ressaca, em Contagem,
na região metropolitana de Belo
Horizonte. Com pedaços de lona, madeiras
e tapumes, eles logo começaram
a erguer moradias no local, até então
coberto de mato.
“Foi um dia especial, muito importante
pra gente, de conquista, em que
muitas pessoas que não tinham casa
conseguiram um espaço”, relembra a
moradora, cujo nome na carteira de
identidade é Delseane da Silva Lucas,
uma senhora de 50 anos que sempre
pelejou bastante e atualmente vive do
trabalho informal. “Hoje me sinto no
céu, me sinto bem. Pra mim que já
estou nessa idade, conseguir um pedaço
de terra é muito bom. A vida está muito
difícil, e o aluguel está muito caro”, diz.
Também moradora do local, Érica
Coelho (foto), de 28 anos, foi uma das
organizadoras da ocupação, batizada
de Guarani-Kaiowá. O nome escolhido
deve-se à “identificação das lutas dos
trabalhadores assalariados nas cidades
com as lutas dos povos indígenas originários
do país, historicamente destituídos
de seus meios essenciais de vida por
interesses e forças próprias ao capitalismo”,
conforme explica a nota publicada
no site das Brigadas Populares,
movimento popular de inspiração socialista,
do qual Coelho é militante
desde 2010 e onde atua nas frentes de
reforma urbana e de juventude.
“O jovem é o mais criminalizado
pela sociedade. Ou se enquadra no capitalismo,
ou é preso ou morto. O
jovem está nessa fase de sofrer mais
pressão, e ao mesmo tempo não tem
acesso a bens culturais. Decidi ir para
essa frente depois de vir para cá, depois
de ver o abuso policial. Todo jovem
daqui já foi enquadrado na parede para
ver se estava portando algo”, critica
Coelho, formada em Ciências Sociais
pela Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG).
Na ocupação, a jovem faz parte do
núcleo de coordenação. Mora com o
companheiro, André, numa moradia
já de alvenaria, e se desdobra para dar
conta das tarefas definidas para o cargo,
que vão desde a parte administrativa a
Revista Elas por Elas - março 2014 13
mediações de conflito entre vizinhos.
As decisões do que fazer no local são
tomadas em assembleias de moradores,
realizadas a cada quinze dias, e a prioridade,
no momento, é a construção
de um centro social para abrigar cursos,
oficinas e demais atividades culturais e
de formação, mas ainda não há recursos
suficientes.
“É muito trabalho. Às vezes penso:
será que tenho essa força? Mas quando
vejo os resultados, é muito emocionante
saber que o trabalho é coletivo tanto
aqui quanto nas Brigadas. O que me
anima é saber que não estou sozinha”,
afirma Coelho, para quem as ocupações
são uma forma de minimizar os impactos
sociais do sistema capitalista e reduzir
o déficit habitacional no país, atualmente
de 5,24 milhões de moradias, segundo
estudo do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea). “A maioria dos
que aqui estão [na Guarani-Kaiowá]
moravam de aluguel ou de favor na favela
ao lado”, explica a militante.
A cerca de 50 quilômetros dali, a
batalha enfrentada é outra. O trabalho
de Beatriz Vignolo (foto), de 29 anos,
é para preservar um monumento natural,
a Serra da Moeda, em Brumadinho,
na região metropolitana de Belo
Horizonte. Há pelo menos seis anos, a
advogada percorre comunidades vizinhas
e se reúne com lideranças e associações
comunitárias para convencer a população
local dos riscos que mineradora
Ferrous pode trazer, caso a empresa
ganhe a queda de braço com os moradores
e comece a operar na região.
“Em 2010, entrei com uma ação
popular e consegui ter acesso ao projeto
da empresa, que até então tramitava
em sigilo industrial no Departamento
Nacional de Produção Mineral. Temos
entrado com várias ações jurídicas e
descobrimos irregularidades. Por
exemplo, a empresa não conhece exatamente
onde está o lençol freático, ou
seja, ela não sabe o impacto nos recursos
hídricos da região”, denuncia Vignolo,
preocupada com os impactos da atividade
minerária na biodiversidade e nas
comunidades tradicionais e quilombolas
do entorno.
Mark Florest
A jovem, que até o ano passado
presidiu a organização não governamental
Abrace a Serra da Moeda, é
uma das responsáveis por organizar
um ato, em 21 de abril, que desde
2008 reúne milhares de pessoas num
abraço simbólico ao local. A data escolhida
é uma referência à Inconfidência
Mineira, como forma de simbolizar a
luta contra a exploração das riquezas
naturais. No último ato, 20 mil pessoas
participaram.
“A luta é brava, mas tenho uma
visão otimista. A maior dificuldade tem
sido lidar com o poder econômico, que
manipula o poder público”, afirma Vignolo,
numa crítica ao prefeito de Brumadinho,
Antônio Brandão (PSDB),
que revogou o decreto de preservação
de 30 nascentes d’água em 500 hectares
da Serra. O caso foi parar no Ministério
Público Estadual, que investiga o fato
de a Ferrous ter doado 150 mil reais a
uma entidade presidida pelo vice-prefeito,
para a suposta realização de
evento cultural na cidade. “Tenho amor
a essa terra. Sou nascida e criada aqui.
Quando eu era criança, aqui não tinha
nada, nem mercadinho. Não queremos
todas as mazelas que têm em cidades
minerárias”, diz a advogada.
As ações de dona Delse, Érica
Coelho e Beatriz Vignolo ilustram bem
a forte presença feminina nas lutas
mais gerais da população, vinculadas
ou não às demandas de gênero. Cotidianamente,
elas reescrevem a história,
ainda marcada por letras masculinas,
por meio de batalhas por uma sociedade
melhor para todos. “Atualmente, em
todo o mundo e em particular na América
Latina, os principais movimentos
têm a participação expressiva das mulheres.
A resistência feminina expressa
forte dinamismo e cada vez mais organiza
lutas que conectam as várias dimensões”,
ressalta Cláudia Prates, da
Marcha Mundial das Mulheres, em
artigo da revista Mátria.
14
Cláudia Ferreira
Mulheres invisibilizadas
À frente de tantos movimentos sociais,
populares ou sindicais, resta saber
se elas têm recebido o merecido reconhecimento
pelo protagonismo que desempenham.
Para Ana Carolina
Ogando, cientista política e pesquisadora
do movimento feminista brasileiro, as
mulheres historicamente participaram
desses espaços, como sindicatos e associações,
mas a presença e a atuação
delas ficaram de certa forma invisibilizadas,
e o que ganha centralidade é a
demanda pela qual elas lutam. “Sempre
tento entender isso como algo da nossa
cultura política, marcada fortemente
pelo patriarcalismo, que cria espaços
específicos para homens e mulheres.
No próprio pensamento social brasileiro,
o lugar da mulher é invisível. Quando
aparece, está associado ao espaço privado,
da família”, avalia.
Segundo ela, tem havido uma inquietação
entre as mulheres nesses movimentos,
decorrente da observação de
que, embora sejam maioria, não conseguem
ocupar espaços de decisão
para pensar em questões que as afetam.
“E quanto mais visibilidade o movimento
feminista tem, mais forte é essa crítica.
E o movimento feminista tem ganhado
maior centralidade nos últimos anos”.
Mais do que visibilidade, defende
Ogando, precisa haver a valorização
do papel da mulher, para além da figura
de mãe, de cuidadora. “Essa valorização
vem com o questionamento do porquê
elas não ocupam os espaços de decisão,
seja nas associações de bairro e movimentos
populares, seja na política institucional
[partidos e governos]”.
Ciente dessa dificuldade, Cláudia
Ferreira se esforça para não deixar que
a atuação das mulheres fique na memória
apenas das que participaram dos
movimentos. Fotógrafa profissional
desde 1977, quando começou a trabalhar
na redação do Jornal do Brasil, no
Rio de Janeiro, a jornalista se dedica,
há 25 anos, a registrar o ativismo feminino.
Revista Elas por Elas - março 2014 15
Olhar revelador
Com o olhar de militante, ela rodou
o país e o mundo atrás das marchas,
manifestações e conferências das mulheres,
como o 8º Encontro Nacional
Feminista, em 1989, em Bertioga, no
litoral de São Paulo, onde fez a primeira
cobertura de movimentos feministas e
registrou o banho de mar de ativistas
nuas, uma das fotos que mais a marcou
até hoje. “Nesse dia estava gripada,
com febre, e algumas pessoas me avisaram
que havia mulheres nuas tomando
banho de mar. Levantei-me da cama,
com muito custo, e fui registrar. Acho
que foi marcante pelo espírito libertário
naquela época”, recorda a fotógrafa,
que também coordena o Centro de
Atividades Culturais, Econômicas e Sociais
(Caces), uma organização não governamental
com o objetivo de combater
desigualdades e estimular a equidade
de gênero, raça e etnia.
Os registros dela resultaram no livro
Mulheres e Movimentos, que reúne
260 imagens em preto e branco, do
período entre 1989 e 2002, e escolhidas
de um acervo de mais de quatro mil
fotos, a maioria delas feitas em uma
época em que não havia a facilidade
das câmeras digitais. “Sempre estive
nesses espaços e descobri que tinha
reunido material suficiente e abrangente
para fazer o livro; me sentia guardiã
dessa memória. Então todo o meu trabalho
é de documentação e preservação
da memória das mulheres nos movimentos
sociais”, comenta Ferreira, que
atualmente está envolvida na elaboração
de outra obra com imagens e textos
documentais sobre a Marcha das Margaridas,
ato das trabalhadoras rurais
que a fotógrafa cobre desde a primeira
edição, em 2000.
Segundo Cláudia Bonan, que assina
os textos do livro, um olhar para os
movimentos das mulheres brasileiras
pode ser revelador. Segundo ela, esses
movimentos “foram componentes de
primeira linha nas lutas contra o regime
autoritário e na restauração das liberdades
democráticas. Nos anos 1990,
de volta ao Estado de Direito, as mulheres
seguiram inquietando a sociedade
com a pergunta: qual é a democracia
que queremos? Mais do que reconquistar,
para as mulheres em movimentos, tratava-se
de reinventar a democracia, de
maneira a tornar mais inclusivas e justas
as sociedades, e mais prazerosa e
criativa a vida das pessoas”.
Para a fotógrafa, o maior desafio
atual para as mulheres é consolidar e
ampliar os espaços ocupados, além de
não ser “estrangeiro nessa terra de homens”.
“Elas sempre foram peças fundamentais
para os movimentos sociais,
onde o protagonismo delas é muito
grande. Mas nossa sociedade foi desenvolvida
para os homens serem protagonistas.
Há milênios convivemos
com isso, e as mulheres precisam brigar
neste espaço para dividir o protagonismo.
Mas não queremos ser iguais
aos homens. Queremos um mundo
onde caibam as mulheres com suas especificidades”.ø
Fotos: Cláudia Ferreira
16
Revista Elas por Elas - março 2014 17
Saulo Esllen Martins
CIDADANIA | por Saulo Esllen Martins
Cantando a própria história
Grupo Meninas de Sinhá ajuda mulheres a resgatar a autoestima
através da música
Sem compromissos e horários para
cumprir e com muito tempo para se
fazer o que der na “telha”, muitos
dizem que a velhice pode ser a melhor
fase da vida. Acontece que, na prática,
em muitos casos, a tal “terceira idade”
vem acompanhada por tédio, angústia,
depressão, poucos rendimentos financeiros
e muita solidão. Abandonados
ou sobrecarregados pelas famílias, os
idosos lutam para sobreviver com dignidade.
Sem forças próprias para reagir
às doenças psíquicas, muitos vivem a
mercê de antidepressivos e ansiolíticos.
Os remédios tornam-se os principais
companheiros. E as mulheres representam
uma parcela significativa dessa
população.
Um trabalho sociocultural desenvolvido
há 25 anos no bairro Alto Vera
Cruz, em Belo Horizonte, conseguiu
diminuir as filas dos consultórios e
postos de saúde da região. O grupo
Meninas de Sinhá, criado em 1989
por Valdete da Silva Cordeiro, já atingiu
centenas de mulheres com mais de 50
anos, dando a elas novas perspectivas
e motivos para viver.
Dona Valdete morreu em janeiro
deste ano, aos 75 anos. Fundadora e
líder do grupo, deixou um legado de
alegria e superação. Ela dizia que precisava
fazer algo, se mover de alguma
forma, ajudar as vizinhas que viviam
com problemas de saúde. “Isso me incomodava
demais! No fundo eu sabia
que elas não precisavam de tantos remédios,
e os problemas que tinham
com filhos e maridos eram comuns a
todas. Então pensei: talvez possamos
nos ajudar”, contou Valdete em entrevista
ao Jornal O Tempo.
E foi assim que começou a saga das
Meninas de Sinhá. Valdete convidava
as mulheres para conversas em grupo.
Em pouco tempo a notícia se espalhou.
“Chegamos a ter 50 mulheres. Contávamos
a nossa vida e nossos problemas,
fazíamos artesanato e algumas até vendiam.
Mas como eu não gostava de
ficar parada, pensei em acrescentar às
reuniões algo de movimento pro corpo.
Foi daí que reunimos a música e a
dança!”, explicou.
Hoje, são 28 mulheres no grupo.
Rosária Madalena Andrade foi escolhida
entre as Meninas para ser a nova presidente.
Integrante desde o início, ela
relembra com saudade como tudo começou.
“Valdete nos chamou para fazer
artesanato, exercícios, brincadeiras, cantorias,
essas coisas, para ocupar o
tempo e nos distrair. Hoje, as brincadeiras
de roda se tornaram uma marca
registrada”.
Sobre a missão de liderar as Meninas
de Sinhá, Rosária destaca a política de
igualdade que impera entre elas. “Tivemos
uma votação, de início eu disse
que não queria ser nada além do que já
era, ou seja, parte de um grupo. É
muita responsabilidade, nunca vou
chegar nem perto do que a Valdete foi.
Ela era uma mulher muito guerreira e
sábia, apesar de não ter estudo. Na
minha simplicidade, eu quero continuar
esse trabalho que mexe com o psicológico
dessas mulheres. Vou procurar
fazer tudo que estiver ao meu alcance.
“
Meninas de Sinhá
é um comovente
passeio pelo parque
temático das
emoções.
Valdete construiu uma história maravilhosa
que precisa continuar por causa
dessas mulheres e de outras que podem
vir a fazer parte. Com força de vontade
e coragem, nós vamos continuar nesse
caminho”, comenta, emocionada.
Para o jornalista e produtor cultural
Israel do Vale, Dona Valdete foi um
exemplo de liderança. “Uma mulher
incrível, de sabedoria extrema, generosa,
engajada, capaz de despertar as pessoas
para o que elas têm de melhor, que
construiu em torno das Meninas de
Sinhá o impulso de nos reunirmos em
roda e celebrarmos o precioso momento
do encontro, que se constrói e só existe
coletivamente”.
“Ouvir Meninas de Sinhá é experimentar
um mergulho pra dentro de nós.
Uma imersão no imaginário coletivo,
que recompõe os caminhos da nossa
identidade: dos sentimentos mais remotos,
de uma infância apagada na memória.
Meninas de Sinhá é um comovente
passeio pelo parque temático das
emoções”, declara Israel.
“Tenho um filho especial e ficava
sempre com ele na varanda de casa,
cantarolando. Dona Valdete passava
sempre por lá e gritava: ‘Mariinha, você
precisa sair de casa, entre para o nosso
grupo’. Comecei apenas para fazer ginástica.
Mas Dona Valdete foi logo me
passando a roupa e eu me senti muito
importante”. Maria Gonçalves Santos
está no grupo dede 2001. Ela conta
que já era amiga de Dona Valdete, mas
depois de conviver com ela no grupo a
proximidade aumentou muito.
“Ela me ensinou muita coisa, foi
uma incentivadora. Mexeu com a minha
autoestima. Era uma pessoa que queria
sempre o melhor para os outros.
Aprendi a tocar zabumba, cantar, conheci
cantores famosos e cantei com
eles. Me senti muito realizada. Somos
mulheres da periferia, em geral negras,
detalhes podem fazer grandes mudanças
em nossas vidas”, esclarece Mariinha.
Revista Elas por Elas - março 2014 19
Alegria gratuita
As Meninas de Sinhá não cobram
pelas apresentações. Levam alegria gratuita
para as pessoas. Visitam creches,
asilos, associações, tudo de graça. Doam
música e simpatia. E isso tudo surgiu
de uma ideia simples, de uma mulher
que pensava na coletividade. “Conheci
Valdete em uma consulta no posto de
saúde. Ela me viu e falou sobre o grupo.
Pensei durante alguns dias até que
decidi fazer a primeira visita. Agora,
tomo apenas um medicamento para
controlar a pressão. Tenho outro astral.
Sou mais animada. Virei outra pessoa
depois que passei a fazer parte do
grupo”, destaca Maria Mercês Pedro,
participante há mais de 20 anos.
Diva Altina de Jesus ressalta que se
está viva é por causa do grupo. “Esse
grupo é tudo pra mim. Vida, saúde,
Saulo Esllen Martins
alegria. É difícil até explicar a importância
da Valdete na minha vida. Engraçado
é que nas primeiras vezes que
eu a vi, não fui muito com a cara dela.
Era um momento em que eu estava
em depressão, então eu vivia mal humorada.
Mesmo assim, ela me tratou
muito bem e me recebeu de braços
abertos, a partir daquele momento ela
entrou no meu coração”.
Para Durvalina Maria de Oliveira, é
difícil contar tudo de bom que as Meninas
trouxeram para a sua vida. “São
muitas emoções. Posso falar um pedacinho.
Quando entrei nesse grupo foi
por necessidade. Eu reclamava muito
da vida. Chorava dia e noite. Cheguei
há dezesseis anos com uma forte depressão,
eu tomava remédios tarja preta.
Com um ano de participação recebi
alta do psiquiatra”.
As Meninas compartilham alegrias
e tristezas. Ensinam e aprendem a cada
dia. “A principal lição que aprendi com
o grupo foi gostar de mim. Se você
não se gosta é difícil ter carinho por
outras pessoas. Eu comia unha, andava
vestida de qualquer jeito, não penteava
nem o cabelo. Com os conselhos da
Valdete e essa verdadeira terapia que é
conviver com as Meninas, a minha rotina
foi mudando. Nem tudo pode ser
tratado com remédios. O carinho, a
atenção, as conversas e os abraços
fazem muita diferença na vida das pessoas.
Ao som das cantigas, na alegria
das rodas e cirandas, os olhares sinceros
e as palavras singelas dão conta de
curar o sofrimento”, comenta Durvalina
agradecida.
Terezinha Avelar é professora e presidente
do Movimento Popular da Mulher
(MPM). Ela destaca o engajamento das
Meninas de Sinhá na busca pela própria
identidade. “Elas fazem um resgate da
própria história através das cantigas.
Quando recuperamos a nossa essência,
percebemos o mundo de uma outra
forma. Conheci Dona Valdete quando
eu lecionava na Escola Municipal Ricardo
Salum, eu a via sempre caminhando
pelas ruas e conversando com as pessoas.
Minha mãe também conviveu com ela.
Fazia algumas atividades com as Meninas.
Mas não era parte do grupo.
Mais tarde eu a reencontrei no movimento
popular, sempre propositiva, afinada
com políticas progressistas, tirando
as pessoas do sofrimento”.
Terezinha demorou em associar que
aquela Valdete era a líder do grupo
Meninas de Sinhá. “Eu estava tão próxima
que não conseguia perceber quanta
riqueza e sabedoria tinha ali. Essas mulheres
provocaram mudanças no pensamento
e nos corações das pessoas,
colocaram a comunidade em evidência.
Saber que Valdete participou do MPM
é um elo que me ajuda a compreender
a minha própria história”.ø
20
“Tá
caindo fulô...”
– memórias de
Valdete e das
Meninas de
Sinhá
ARTIGO | por Fátima Oliveira 1
Levei um tempão para assimilar o
falecimento de Valdete da Silva Cordeiro,
criadora das Meninas de Sinhá (1989),
aos 75 anos, em 14/1/2014. Tinha
aura de eterna a mineira de Barra, na
Bahia (1938). Veio para BH, com sua
madrinha, aos 5 anos. Estudo? Até o
2º ano do antigo primário! Trabalhou
como doméstica e no Ciame. Era aposentada
do Estado. Deixou marido, 4
filhos, 16 netos e 4 bisnetos.
De plantão, não fui ao enterro.
Viajei na memória para “mulherar”
uma negra, comunista (PCdoB), feminista
e antirracista. Foi liderança comunista
destacada nas lutas comunitárias.
Juntas, percorremos o Alto Vera
Cruz coletando assinaturas para a
Emenda Popular Saúde da Mulher na
Constituinte Mineira: garantia de serviços
de aborto previsto em lei (gravidez pósestupro
e risco de vida da gestante).
Valdete foi minha vice quando presidi
o Movimento Popular da Mulher (MPM),
de 1989 a 1991. Numa reunião do
MPM, ela argumentou que precisávamos
fazer algo pelas idosas de seu bairro,
dopadas de diazepam! A bem da verdade,
ela comunicou uma decisão que
sua perspicácia e sabedoria definiram
como um imperativo ético contra a
medicalização abusiva. E arrematou:
“Elas ficam sem comer, mas sem diazepam,
não! Tudo em mulher hoje em
dia é depressão, como em criança é virose!”.
Honestamente? Eu, médica,
ouvia pela primeira vez uma crítica impecável
sobre a futilidade terapêutica e
a banalização do diagnóstico de depressão.
Era de uma inteligência rara: pegava
tudo no ar. A proposta dela decorria
de discussões do MPM sobre “medicalização
do corpo”, enfatizando o parto,
sob o olhar crítico feminista. Era 1989!
Não foi fácil Valdete materializar a
ideia, milimetricamente pensada por
ela, centrada na busca da autoestima!
O Meninas de Sinhá se concretizou
como grupo cultural de resgate de cantigas
de roda, com cerca de 30 mulheres,
dos 50 aos 90 e tantos anos, com um
sucesso deslumbrante. O primeiro CD
(“Tá Caindo Fulô”, 2007) ganhou o
prêmio TIM de Música Brasileira em
2008, o 6º prêmio Rival Petrobras de
Música e o reconhecimento de patrimônio
cultural brasileiro pelo Ministério
da Cultura no prêmio Cultura Viva
2007. “Roda da Vida”, o segundo CD,
2011, é apoteótico.
Ano passado, eu e Kia Lilly passamos
uma tarde na casa de Valdete. Um
papão: a origem feminista das Meninas
de Sinhá e as vezes em que fui ao Alto
Vera Cruz. Embevecidas, ouvimos o
relato dela sobre as Meninas de Sinhá
na 8ª edição do Festival Brave (Breslávia,
Polônia, de 2 a 7 de julho de 2012).
“Lá, caiu a ficha do acerto de nosso
trabalho como terapia. Lá, doei sementinhas
de Meninas de Sinhá pra
muitas partes do mundo”.
A criatividade dela era singular. Em
2013, saindo do plantão, nos encontramos
na portaria do hospital. Fomos
a um café... “Fátima, inventar é comigo
mesmo! Sou boa nisso, desde menina”.
Inventou seu sobrenome (da Silva) aos
16 anos para se registrar e, antes, inventou
a data de seu aniversário (só
sabia o ano), escolheu o 7 de setembro.
Disse ao Museu da Pessoa (5/8/2007):
“É inventado meu aniversário. E quis
fazer uma festa. Fui juntando dinheiro...
Comprei doces no botequim, cortei os
pedacinhos, pus em um prato. E o
bolo?! E o bolo? Eu não tinha bolo. Arrumei
uma caixinha de sapato, comprei
as velas... Enfiei na caixa, foi meu bolo
de aniversário... Fiz aquela festa... A
meninada gostou... Bolo de caixa de
sapato e doce de botequim”.
É, Valdete: “Tá caindo fulô, eh
eh/ Tá caindo fulô, eh ah/ Lá do
céu, cai na terra, eh/ Tá caindo
fulô...”.
1. Médica, escritora e feminista
Sérgio Falci
Revista Elas por Elas - março 2014 21
Marcello Casal Jr/ABr
ARTIGO | por Renata Rosa 1
Rumo à emancipação
É preciso romper com todas as formas de subordinação,
inclusive com a sub-representação política
Este ensaio tem como objetivo apresentar
algumas reflexões acerca das assimetrias
de gênero que ainda estruturam
as relações sociais em nosso cotidiano
e a situação das mulheres em relação
aos espaços de poder e sua representação
política.
Um breve debate sobre ‘Democracia
de Gênero’ cumprirá o papel de fio
condutor, articulado a um novo paradigma
em curso na América Latina para
as relações de poder entre homens e
mulheres, em consonância com a discussão
apresentada por Gomáriz (2000).
Um conjunto destacado de investigações
acadêmicas demonstra que, na
América Latina, os movimentos feministas,
a partir da segunda metade do
século XX, se apresentaram como um
dos fenômenos subversivos mais significativos
experimentados na região, por
seu profundo questionamento aos pensamentos
hegemônicos sobre as relações
humanas e os contextos sociopolíticos,
econômicos, culturais e sexuais.
No Brasil, as mulheres, a partir de
suas lutas e diferentes formas de organização,
alcançaram visibilidade social,
que se traduziu em importantes políticas
públicas. Reconhecimento e redistribuição
são eixos indispensáveis para todo e
qualquer projeto emancipacionista. De
qualquer modo, para que o avanço se
dê de fato é preciso romper a fronteira
da sub-representação política.
Com uma população aproximada de
193 milhões de habitantes, nosso país
possui um destacado contingente de
mulheres, mais da metade de sua população,
cujos níveis educacionais estão
se elevando e ultrapassam o dos homens,
nas diferentes camadas sociais. As mulheres,
ainda que lentamente, vêm ocupando
carreiras mais prestigiadas e assumem
importantes postos de decisão.
De qualquer modo, a dissonância salarial
é ainda uma realidade corriqueira no
cotidiano profissional das mulheres em
relação aos homens.
Ainda mais grave é o fato de que as
mulheres são a maioria nos setores econômicos
informais e mais vulneráveis,
além de ocuparem a quase totalidade
dos serviços domésticos e relacionados
à economia do cuidado: as mulheres
são, preferencialmente, as que cuidam
na esfera privada e também no mercado
de trabalho: enfermeiras, professoras,
psicólogas, assistentes sociais, diaristas,
cozinheiras, entre tantas outras profissões
‘naturalizadas’ como tarefas preferenciais
de mulheres.
A construção social e cultural dos
papéis tradicionais de mulheres e homens
estão ainda tão entranhados que a implementação
de leis que desafiam a subordinação
“naturalizada” das mulheres
tornou-se um desafio crítico no país.
Inferimos que o processo de superação
da subordinação pressupõe a desconstrução
dos estereótipos acerca do
papel das mulheres na sociedade, mais
especificamente com relação aos cuidados
e responsabilidades juntos aos
seus núcleos familiares, cuja responsabilidade
cabe ao Estado e à sociedade
como um todo.
Essa perspectiva pressupõe a ressignificação
da concepção do sujeito feminino
no processo de articulação da ação
política governamental, nas práticas cotidianas
e nas representações sociais estabelecidas.
Tal ressignificação compreende uma
revisão analítica do modelo de Estado
brasileiro e suas premissas no processo
de organização da ação política, ou seja,
na forma como é prevista a implementação
das políticas públicas voltadas para
as famílias, minimizadas numa concepção
de que as demandas familiares remetem
ao universo feminino. Essas ações, na
forma como se dão, naturalizam um
lugar específico para as mulheres na sociedade,
apesar de todos os avanços.
Pressupõe também uma nova postura
cultural de mulheres e homens.
A realidade das mulheres brasileiras
ainda está muito aquém do ideal normativo
e do marco constitucional adotado
pelo Estado brasileiro. Como demonstra
Tavares (2010), “até mesmo quando as
proteções e garantias legais se fazem
presentes, os braços do Estado não são
suficientemente longos para neutralizar
as profundas tradições culturais, que
continuam relegando as preocupações
das mulheres à esfera privada”.
A eleição de uma mulher para a
Presidência da República em 2010 foi
um marco histórico que elevou o Brasil
para um seleto grupo de países de democracia
representativa que tiveram ou
têm uma mulher em sua presidência,
levando-se em conta, ainda, o protagonismo
feminino no contexto político latino-americano
e a presença de mulheres
no comando de destacadas nações.
Apesar dessa nova conjuntura política
no país, a participação de mulheres nos
parlamentos nacional e estaduais não
avançou. Os dados sobre a presença de
mulheres no Congresso Nacional e nas
Assembleias Legislativas demonstram a
persistência da sub-representação feminina
em total contraposição à crescente
elevação do nível educacional e presença
no mundo do trabalho.
É nesse contexto que apresentamos
um novo debate, vinculado ao campo
teórico feminista, sobre a proposta da
Democracia de Gênero. A discussão
parte do princípio de que é preciso
definir um novo instrumento e um novo
paradigma que convoque a sociedade
como um todo para se transformar. Critica
a visão de que a tomada de consciência
precisa ser apenas feminina –
não são as mulheres que precisam alcançar
o patamar masculino; também
os homens precisam rever sua condição,
seu papel sociocultural. Assim, a proposta
defendida pelos autores instaura um
novo viés à luta feminista, defendendo
a urgência de ampliação do grau de
consciência masculino sobre a construção
de sua identidade, para a articulação de
Revista Elas por Elas - março 2014 23
um novo arranjo político que permita o
desenvolvimento de uma nova perspectiva
para o exercício do poder.
Todo esse debate baseia-se na percepção
de que mudanças efetivas vêm
ocorrendo na vida das mulheres nos últimos
30 anos e, para que se possa
avançar, faz-se necessário repensar estratégias
e vias pela real emancipação
de todas as mulheres (somos muitas e
somos diferentes!!!). Há consenso de
que na sociedade contemporânea o ingresso
das mulheres no mercado de
trabalho e o maior acesso à escolaridade
foram aspectos decisivos para redefinir
seu lugar na sociedade e na família,
entretanto, a persistência de desigualdades
e assimetrias de gênero nas
formas de organização da vida familiar,
sobretudo em relação à distribuição das
tarefas domésticas, envolvimento e responsabilidades
com os cuidados interpessoais
dos seus membros e ainda a
tomada de decisões, como também o
acesso aos espaços de poder, demonstram
que as estratégias da luta feminista
precisam traçar um novo percurso
tático, capaz de envolver a sociedade
como um todo.
As sociedades latino-americanas não
se democratizarão se não for desencadeado
um processo pela democracia
de gênero, banalizada no mundo privado,
no tarefismo cotidiano instaurado
pela economia do cuidado, negando às
mulheres o direito de estabelecer, no
dia a dia, relações iguais de poder, na
perspectiva de democratizar os múltiplos
espaços e ambientes. A derrocada do
patriarcado só se dará quando se der a
transformação da outra metade do
mundo.
Esse conjunto de reflexões é estratégico
quando nos deparamos com articulações
por parte do Estado a fim de
distorcer os avanços da luta feminista
desencadeados em todo mundo, ao
ressignificar padrões e códigos conservadores
que se adaptam e se deslocam
de acordo com os interesses hegemônicos,
com o propósito de anestesiar
ou mesmo anular as transformações
sociais em curso.
Estudos diversos vêm desenvolvendo,
há algum tempo, reflexões teóricas
acerca do papel do Estado na constituição
de identidades masculinas e femininas
– com base nas ações estatais
e políticas públicas em curso – e revelam
como essas ações interferem no modo
como são produzidas e reproduzidas
as relações de gênero, de modo a conservar
ou romper com padrões que
operam pela naturalização da subordinação
das mulheres.
EBC
Por essa razão, recorro também ao
conceito de “State Feminism”, que integra
a dinâmica feminista desencadeada
na América Latina nos últimos
anos, por referir-se a um novo processo
de institucionalização e legitimação
da desigualdade de gênero como
uma nova problemática na sociedade e
no Estado, que precisa ser combatida e
superada, conforme os termos de Guzmán
(2001). Encontramos sua origem
nos estudos feministas sobre o Estado
do Bem-Estar Social na década de
1980, embora, ainda hoje, seu significado
seja variado e não livre de controvérsias.
24
Experimentamos um novo posicionamento
do Estado em relação às demandas
do movimento feminista, ampliando
o leque de diálogo e negociação,
além da criação de canais de interlocução
estatal, a partir das novas formas de
organizações feministas, oriundas de
processos crescentes de institucionalização
e profissionalização delas (Matos,
2010).
Alvarez (2000) reforça a compreensão
de que, embora não exista
uma unidade do pensamento feminista
na América Latina e sim várias faces,
suas ideias e demandas foram incorporadas
na região, normatizando e instituindo
novos campos de debate e novos
instrumentos governamentais, como as
conferências e demais instâncias de
participação e controle público, planos
nacionais de igualdade, entre outros.
Entretanto, apesar desse novo cenário
político para a luta feminista, alguns
pontos estratégicos permanecem estancados,
quando não bastante banalizados,
no que se refere à tomada de decisões e
ao acesso aos espaços de representação
e poder político, bem como a eliminação
de todas as formas de violência. Por
isso é necessário avançar para outra
fase, rumo à emancipação feminina,
substantivamente e como uma conquista
para toda a sociedade, e não exclusivamente
para as mulheres.
E é esta característica que diferencia
a proposta de Democracia de Gênero
das políticas tradicionais: sua perspectiva
e natureza totalizante, no sentido em
que não se dirige exclusivamente às mulheres,
mas convoca todo o conjunto da
sociedade para seguir avançando até a
emancipação de todas as mulheres.
A proposta de Democracia de Gênero
não descarta a necessidade de espaços
próprios para mulheres ou para
homens, porém foca-se nas relações socioculturais
com o propósito de se avançar
até a paridade, de fato. A inovação paradigmática
baseia-se na busca sistemática
de incluir também os homens na tarefa
e no compromisso pela emancipação.
Portanto, debater Democracia de
Gênero, na perspectiva de instituição
de um novo paradigma para as lutas
do movimento feminista, implica em
compreender a necessidade de uma
ruptura definitiva com a velha tese de
que o principal problema a ser superado
refere-se ao déficit das mulheres em
relação aos homens. Esta concepção
de que as mulheres precisam alcançar
um patamar já experimentado pelos
homens é que precisa ser ampliada,
não só superada: cabe também aos
homens modificarem seus parâmetros
de valores, papéis e atribuições.
Para concluir, compreendemos que
os avanços para as lutas feministas,
nesse novo cenário político em desenvolvimento
na América Latina, envolvem,
imprescindivelmente, a inclusão
progressiva dos homens para que se
dê – de fato – um novo trato para a
emancipação feminina e pela construção
de uma nova consciência identitária na
sociedade, articulada às novas relações
experimentadas entre os diferentes
atores sociais e o Estado, não apenas
por reconhecimento e visibilidade mas,
também, para romper com as barreiras
da sub-representação política.ø
Referências:
ALVAREZ, Sonia. Em que Estado está o
feminismo latino-americano: uma leitura
crítica das políticas públicas com perspectiva
de gênero. 2000. In: FARIA; SILVEIRA;
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impasses, desafios e perspectivas para a ação
feminista. SOF, São Paulo, 2000. P. 9-25.
ENRÍQUEZ, Corina Rodríguez. Economia
Del cuidado y política econômica: uma aproximacióna
SUS interrelaciones. In: XXXVIII
Reunión de la Mesa Directiva de la Conferencia
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Del 2005.
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e Género: a modo de introducion. Em: Democracia
de Género. Una Propuesta para Mujeres
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n. 32, marzo de 2001. 35p.
MATOS, Marlise. Movimento e teoria feminista:
é possível reconstruir a teoria feminista
a partir do sul global? Revista de Sociologia
e Política, junho, n. 36, vol 18, 2010.
MATOS, Marlise & PARADIS, Clarisse.
2012. Os Feminismos latino-americanos e
sua complexa relação com o Estado: debates
atuais. P 1-17.
PATEMAN, Carole. Críticas Feministas
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TELLS, Carme (Org.). Perspectivas feministas
en teoría política. Barcelona: Paidós, 1996,
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TAVARES, Rebecca Reichmann. Igualdade
de Gênero e o empoderamento das mulheres.
In: O progresso das mulheres no Brasil
(2003-2010). ONU MULHERES. CEPIA: Cidadania,
Estudo, Pesquisa, Informação e Ação.
Brasília, 2011.
VARGAS, Virgínia (2002). “Los feminismos
latinoamericanos em su tránsito AL nuevo
milênio. (Uma lectura político personal)”.
Em: Daniel Mato (coord.) Estudios y Otras
Prácticas Intelectuales Latinoamericanas en
Cultura y Poder. Caracas: Consejo Latinoamericano
de Ciencias Sociales (CLACSO) y CEAP,
FACES, Universidad Central de Venezuela. P.
307-316.
WALBY, Sylvia. Cidadania e transformações
de gênero. In: GODINHO, Tatau (Org.) Políticas
Públicas e Igualdade de Gênero. São Paulo:
Prefeitura Municipal de São Paulo, 2004, p.
169-182. (Caderno Especial da Coordenadoria
Especial da Mulher).
1 - Historiadora, pesquisadora feminista,
mestre e doutoranda em Ciências Sociais.
Revista Elas por Elas - março 2014 25
Saulo Esllen Martins
TRABALHO | por Saulo Esllen Martins
Lixo que traz cidadania
Entre os catadores em associações, mulheres exercem
liderança e superam desigualdades
O caminhão chega na porta do depósito
para mais um dia de entregas.
São grandes quantidades de plástico,
papel, metal e materiais de toda ordem,
descartados por residências e empresas.
Ela não espera a ajuda dos homens
que estão ali por perto, coloca as mãos
na massa e arrasta um enorme saco
plástico, cheio de materiais que podem
ser reaproveitados. No corredor, a mulher
conversa com alguns colegas, enquanto
investiga o conteúdo do embrulho.
Rapidamente, visualiza um recipiente
de sabonete líquido e um par
de chinelos. “Essas coisas têm serventia,
nem vão para a triagem. Esse vidrinho
chique vai direto para o meu banheiro,
e o calçado servirá para alguém aqui.
Quer ver?” E não demora, aparece um
dono para as havaianas.
Esse é apenas um pequeno relato
do cotidiano de Maria das Graças
Marçal. Aos 63 anos, ela é a coordenadora
da Associação dos Catadores
de Papel, Papelão e Material Reaproveitável
de Belo Horizonte (Asmare).
Conhecida como Dona Geralda, a catadora
começou nesse ramo ainda
criança, acompanhando a mãe.
“Foi assim, com oito anos eu já trabalhava.
Iniciei nessa profissão por causa
da fome. Começamos a dar destino para
aquilo que ninguém queria, tirando do
lixo o que não era lixo, para vender e
sustentar a família. Com 16 anos ganhei
a minha primeira filha e nessa época eu
já puxava o meu primeiro carrinho de
papel. O catador, antigamente, era visto
como marginal. As pessoas diziam que
nós sujávamos a cidade. Não existia associação.
Era cada um por si. Mulheres
e homens sofriam muito com o preconceito
e a discriminação. Não tínhamos
acesso à cidadania. Você acabava de
catar papel, entrava numa lanchonete e
era tocado pra fora porque estava sujo”,
relembra Dona Geralda.
A catadora retirou do lixo tudo que
possui. “Isso aqui é a minha vida. Tenho
muito orgulho do que fiz e faço. Nunca
me senti triste por causa do meu trabalho.
Foi o meio que consegui para
sustentar os meus doze filhos, dos quais
nove ainda estão vivos. Hoje, tenho
filho que trabalha em jornal, mecânico
e motorista. Todos estão bem encaminhados”,
analisa.
“O lixo está na cabeça das pessoas.
Pra mim nada é lixo. Tudo tem uma
utilidade. Até os restos de comida
podem virar adubo. São poucas as
coisas que devem ser totalmente descartadas,
como no caso do lixo de banheiro.
O resto a gente aproveita”.
Economia solidária
Na Asmare, Geralda conheceu os
conceitos de economia solidária, associativismo
e sociabilidade. Ao todo são
cento e oitenta famílias atendidas. 53%
dos associados são mulheres. “Mulheres
e homens são iguais, aqui na associação.
Nos tornamos uma família. Somos a
primeira associação de catadores e hoje
viramos referência no Brasil e no mundo.
Já viajei para dentro e fora do país, representando
os catadores. Estive na
ONU, no Banco Mundial e falei sobre
as nossas dificuldades e conquistas. A
Asmare é um exemplo de como as
pessoas, juntas, podem fazer a diferença.
Conquistamos dois galpões para a
triagem, uma marcenaria e um bar, o
Reciclo”.
O trabalho funciona da seguinte maneira:
alguns catadores saem com seus
carrinhos para buscar o material nas
ruas da cidade. Outra parte da matéria-
-prima chega em caminhões de empresas,
hospitais e órgãos públicos, em geral.
Quem sai para catar geralmente são os
homens, por causa do grande esforço
físico. Todavia, muitas mulheres também
exercem essa tarefa. Enquanto isso, nos
galpões a triagem é feita com mais de
80% de participação feminina.
Na opinião de Dona Geralda, as
mulheres exercem um papel muito importante
na Asmare e na sociedade.
Ela aponta que a cidadania chegou
para as mulheres. “Antes, a mulher
servia apenas para ser a chefe do fogão.
Estamos em todas as áreas. Superamos
muitas barreiras e enfrentamos muito
preconceito. A mulher é capaz e quando
ela age com o coração se torna ainda
mais forte. Tenho muito orgulho de
ser mulher e catadora. Minha vida foi
de superação. Quando temos vontade
de vencer, a força vem”.
Reginaldo Rodrigues Ribeiro é assistente
Social da Asmare. O trabalho dele
consiste em dar suporte e atender as demandas
dos catadores. Com o intuito
de perceber as necessidades do grupo,
ele desenvolveu uma pesquisa interna e
destacou muitas questões relacionadas
ao INSS, segurança no trabalho, saúde,
encaminhamento de jovens para o trabalho,
envolvimento com drogas, retirada
de documentos, entre outras.
“Fizemos também um recadastramento
e percebemos que mais da metade
dos associados são mulheres. No
trabalho de separação e triagem as
mulheres são mais habilidosas. Os homens
têm atuado na função de trazer o
material da rua. As atividades são complementares
e equilibram as relações.
As mulheres têm conquistado cada vez
mais espaço. Muitas delas sustentam
suas famílias. Algumas são mães e pais,
como elas dizem. Eu conheço outras
associações no interior do estado e sei
que a Asmare serviu de referência. Na
maioria delas, as mulheres estão na direção.
Entre os catadores, as mulheres
fazem a diferença”, enaltece Reginaldo.
Rompendo barreiras
Algumas pessoas passaram a vida
como catadores. Mas esse não é o caso
de Elizângela Aparecida da Silva. Hoje,
ela exerce a função de auxiliar administrativo
na Asmare. Apesar de um começo
difícil, a vida reservou algumas surpresas
e oportunidades para ela.
Revista Elas por Elas - março 2014 27
Para onde
vai o lixo?
Nos últimos dez anos, a população
brasileira aumentou 9,65%,
e o volume de resíduos cresceu
21%. Até agosto de 2014, todos
os lixões do país deverão estar desativados,
conforme determina a
Lei 12.305, que instituiu a Política
Nacional de Resíduos Sólidos
(PNRS). Esses depósitos de lixo a
céu aberto serão substituídos por
aterros sanitários, ambientalmente
adequados para o manejo de rejeitos.
O Brasil produz diariamente 240
mil toneladas de lixo, e 70% desse
volume é destinado aos lixões. De
acordo com dados do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea),
ainda estão em funcionamento mais
de 2,9 mil lixões no país, localizados
em 2,8 mil municípios. Apenas
18% das cidades brasileiras contam
com programas oficiais de coleta
seletiva.
Nos centros urbanos atuam cerca
de 1 milhão de catadores, que são
responsáveis por 90% do material
processado na indústria da reciclagem.
Segundo o Ipea, existem
1.175 organizações coletivas que
agrupam entre 40 mil e 60 mil
profissionais.
Saulo Esllen Martins
“Eu ainda era uma criança e minha
mãe já era catadora. Quando criaram
a Asmare, nós morávamos aqui neste
espaço. Era uma ocupação. Eu cresci
nesse meio, convivendo com catadores
e aprendendo a tirar a sobrevivência
do lixo. Na adolescência parei de catar
papel e fui fazer uma capacitação na
marcenaria da associação. Lá, existia
um trabalho voltado para os filhos dos
trabalhadores. Fiz um curso de acabamento
em móveis e também ajudava a
pintar os carrinhos dos associados.
Quando eu estava com dezenove anos,
surgiu uma vaga na administração e
estou aqui até hoje”, revela Elizângela,
com entusiasmo.
A jovem não conheceu o pai. Mãe,
avó e tia ajudaram na sua educação.
“Sempre acompanhei o trabalho delas.
Muitos dizem que somos o sexo frágil,
mas eu não penso assim. Entre os catadores,
as mulheres exercem liderança,
lutam por melhores condições e direitos.
Estamos dominando o pedaço!”, enfatiza
o papel das mulheres.
Elizângela reconhece que a falta de
estudo é um fator que dificulta ainda
mais a vida. Mas, otimista, ressalva que
a vida está melhorando. “Minha mãe
era uma catadora de rua. Eu já trabalho
em um setor administrativo, e a minha
filha terá mais possibilidades. Eu espero
que ela possa estudar, ter um bom emprego,
fazer uma faculdade. Eu sonho
para ela um futuro bem melhor. A associação
nos deu dignidade, mudou a
visão da sociedade sobre os catadores.
Hoje, a nossa imagem é boa. Somos
reconhecidos como cidadãos que contribuem
para a limpeza da cidade e
para a preservação do meio ambiente
e não como marginais”, reflete.
Maria da Paixão Pereira Santos, conhecida
por Baiana, conta que já trabalhou
em muitas outras profissões,
como empregada doméstica e na roça,
mas a melhor opção foi como catadora
de papel. “Ninguém aqui gosta de falar
Dona Geralda, coordenadora da cooperativa
Asmare, mostra os “achados”
reaproveitáveis, durante o trabalho de
separação dos materiais recicláveis.
lixo. Lidamos com materiais reaproveitáveis
ou recicláveis. Através do meu
trabalho, criei oito filhos, conquistei
minha casa. Meu trabalho é esse, o
ganha pão da minha família, eu faço
com muita satisfação. Essa é a minha
alegria, meu divertimento, onde encontro
meus amigos”, diz.
O sentimento de pertencimento a
um grupo revelado nas palavras de
Baiana são uma constante quando se
conversa com as catadoras. Elas se
sentem bem, realizadas e capazes de
transformar a própria realidade.
Empoderamento
Esse é um dos aspectos revelados
na pesquisa Reflexões sobre o trabalho
e empoderamento das mulheres catadoras,
realizada pela psicóloga Ângela
Rosane de Oliveira.
“Trabalho com catadoras há anos e
venho percebendo que, a cada dia, as
28
mulheres estão mais à frente. Então
pensei em entender qual é o papel das
mulheres nesses empreendimentos. Eu
tive uma grata surpresa de perceber
que elas transmitem confiança, inclusive
para os homens. Quando eu levantei
essa questão, elas me responderam:
porque mulher é transparente. Ou seja,
existe uma confiança de todos na liderança
feminina. A Dona Geralda, que
coordena a Asmare, é uma referência
para mulheres e homens. É uma pessoa
que o conjunto dos associados respeita.
Cheguei a essa conclusão de que existe
uma relação de confiança e transparência.
Quando surgem problemas, as
mulheres têm a tendência de parar, escutar
e buscar o diálogo. É uma atividade
para além do trabalho, pois agrega e
mobiliza pessoas que sobrevivem ao
transformar o lixo dos outros em cuidado
com o meio ambiente e geração de
renda”, enfatiza.
Saulo Esllen Martins
A psicóloga acompanha o trabalho
dos catadores junto ao Instituto Nenuca
de Desenvolvimento Sustentável
(INSEA), entidade que desenvolve atividades
de capacitação para esses grupos.
Segundo a pesquisadora, o perfil das
catadoras, em Belo Horizonte, é variado.
São mulheres de todas as idades que
trabalham nas ruas ou nos galpões.
Dez entidades reúnem, na maioria dos
casos, mulheres que moravam na rua
ou que passaram necessidades extremas.
Ângela Rosane destaca que existe
um leque muito grande de atividades
nessas organizações. A maioria das
mulheres atua na triagem, que é um
trabalho mais delicado, tem uma riqueza
de detalhes. “Os próprios homens não
gostam dessa tarefa. O que deixa claro
que existe uma divisão sexual do trabalho.
Mas, não que isso seja um problema
para os grupos. Os homens
ficam mais na prensa, no descarregamento,
nas funções mais pesadas. E as
mulheres também atuam na limpeza
dos galpões, na gestão do empreendimento,
entre outras áreas. Hoje, as
mulheres ocupam espaço em todas as
frentes de trabalho da cadeia produtiva
da reciclagem, dentro da atividade de
coleta seletiva. Desde a busca pelo material,
seja com carrinho ou caminhão,
passando pela separação até a gestão
do empreendimento, as mulheres estão
envolvidas”, comenta Ângela.
“Eu acordo, arrumo a minha casa e
corro pra associação. Volto pra casa
só à noite. É uma atividade que me satisfaz.
Eu gosto muito daqui. Já são
treze anos nessa rotina. Nunca tive
vergonha de ser catadora. Minhas filhas
dizem sempre: o dia em que a senhora
não traz alguma coisa que achou entre
os materiais a gente estranha. O lixo é
a nossa vida. É dele que tiramos o
nosso sustento. Ele se transforma em
comida, moradia, transporte e lazer”,
declara Heloisa Paula de Oliveira.
“Ser mulher é superar um
desafio a cada dia”
Há quinze anos Zenilda Niquelino
Siqueira chegava na Asmare com um
filho no colo. De lá pra cá, foram
muitas conquistas. “O fato de ser mulher
não me faz mais fraca ou dependente.
Eu busco meu material, separo, mas
também não tenho medo de pedir ajuda
quando preciso. Contudo, sou independente.
Quando chega uma mulher
aqui, em uma situação parecida com a
minha, eu me sinto na obrigação de
ajudar. Porque eu tive pessoas que me
ampararam e hoje posso fazer o mesmo
por outras. Ser mulher é superar um
desafio a cada dia”.
“Para muita gente isso aqui é um
monte de lixo, mas pra nós é uma coisa
muito rara. Nós ajudamos a preservar a
natureza e ainda ganhamos dinheiro
com isso. Lixo pra nós é cidadania!, comenta
Zenilda, com satisfação.ø
Revista Elas por Elas - março 2014 29
Xênia Martins, mãe de seis filhos, conta com o Bolsa Família para sobreviver
Mark Florest
Mudança
na vida das
mulheres pobres
O Bolsa Família, cuja maioria dos titulares
são mulheres, tem impacto na redução das
desigualdades de gênero
REALIDADE | por Débora Junqueira
O Bolsa Família, programa de distribuição
de renda do governo federal,
completou dez anos em 2013. Dados
divulgados pelo Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome
(MDS) revelam que 93% dos 13,8 milhões
de famílias que recebem o benefício
são mulheres, e 68%, negras. Estudos
mostram os efeitos do programa para
a economia e desfazem vários mitos,
como o de que o benefício variável
pago para cada criança adicional estimularia
as mulheres beneficiárias a
terem mais filhos.
Nas comemorações dos dez anos, o
MDS e o Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea) lançaram o livro
Programa Bolsa Família – Uma década
de inclusão e cidadania, com vários
artigos e estudos. A avaliação é de
que o programa contribuiu para a melhoria
na distribuição de renda no Brasil
e para a redução das desigualdades sociais
nos últimos anos, mas ainda há
desafios para acabar com a pobreza no
país.
Atualmente, o número de pessoas
que vivem com renda mensal menor
que R$ 70,00 (consideradas em situação
de miséria ou extrema pobreza) é
de 3,6% da população. O dado mostra
que houve uma redução de 28% do número
de pessoas miseráveis nos estados
brasileiros desde a implementação
do programa até hoje. Em 2001, essas
pessoas correspondiam a 8,8% da população.
“Caso não existisse o programa,
o percentual hoje seria de
4,9%, e não 3,6%”, afirmou o presidente
do Ipea, Marcelo Neri, ao divulgar
resultados de estudo que faz
avaliações macroeconômicas sobre o
Bolsa Família a partir de indicadores
observados ao longo dos seus dez anos
de existência.
Efeitos sobre o PIB
O Bolsa Família também garante,
em curto prazo, maior expansão do
Produto Interno Bruto (PIB) do país do
que qualquer outra transferência social
de renda a um custo fiscal baixo para
Revista Elas por Elas - março 2014 31
Família extrativista do Pará depende do benefício
os padrões internacionais – sempre,
com benefícios de longo prazo sobre a
capacidade das pessoas de gerar renda.
Conforme o relatório do estudo do
Ipea, para cada R$ 1,00 adicionado
ao programa se aumenta R$ 1,78 ao
PIB – uma vez que o valor do Bolsa Família
gera um aumento de 1,78% na
atividade econômica das famílias beneficiadas
e aumento de 2,40% sobre o
consumo dessas pessoas.
Família cooperativista do Acre está entre os beneficiados do programa
Ana Nascimento/MDS
Eduardo Aigner/MDS
Atualmente, o Bolsa Família atende
a 13,8 milhões de famílias – quase 50
milhões de pessoas. O valor médio do
benefício passou de R$ 73,70, em outubro
de 2003, para R$ 152,35, em setembro
de 2013. O investimento pelo
governo federal no Bolsa Família em
2013 foi de R$ 24 bilhões. “Trata-se de
um programa que consegue gerar grandes
efeitos custando apenas 0,5% do PIB”,
acentuou o presidente do Ipea, em entrevista
publicada sobre o tema na Rede
Brasil Atual.
O Bolsa Família foi vencedor do 1º
Prêmio para Desempenho Extraordinário
em Seguridade Social (Award for Outstanding
Achievement in Social Security),
concedido pela Associação Internacional
de Seguridade Social (ISSA, em inglês),
considerado o Nobel da seguridade
social. “A distinção confirma o quão
transformador o programa é para a
vida das mulheres brasileiras, já que
93% dos titulares das milhões de famílias
atendidas são mulheres”, comentou a
ministra Eleonora Menicucci, da Secretaria
de Políticas para as Mulheres, em
nota da SPM. Segundo ela, o Bolsa Família
assegurou a autonomia econômica
de milhões de brasileiras para gerir os
recursos, e a igualdade de gênero foi
colocada no centro das políticas públicas
do governo da presidenta Dilma.
Nas comemorações dos dez anos
do programa, a ministra Tereza Campello,
do MDS, destacou a importância
conquistada pela mulher, ressaltando
os impactos sobre os indicadores nacionais
de educação, saúde e emprego.
Segundo ela, as mulheres têm um papel
fundamental na diminuição da evasão
escolar dos beneficiários do programa.
Cada uma delas assume o compromisso
de garantir que os filhos entre seis e
15 anos estejam matriculados na escola,
mantendo uma frequência mínima de
85% da carga horária – 10% a mais do
exigido pela rede de ensino. São mais
de 15 milhões de jovens e crianças incluídos
no programa, contribuindo para
a elevação da média nacional. Além
disso, a taxa de aprovação dos estudantes
do Bolsa Família é igual à média
nacional: 80%.
Ela relatou que o programa estimula
as mães a levarem os filhos ao Sistema
Único de Saúde (SUS), que acompanha
o crescimento e o desenvolvimento das
crianças menores de sete anos. A preocupação
do governo inclui a garantia
32
de atendimento médico às mulheres
entre 14 e 44 anos, gestantes ou que
estão amamentando. Todas precisam
fazer o pré-natal nos hospitais da rede
pública, que estão obrigados a garantir
assistência à saúde do bebê.
A ministra ainda lembrou que, na
área do trabalho, o Bolsa Família
também permite o acesso a uma modalidade
do Pronatec (Programa Nacional
de Acesso ao Ensino Técnico e
Emprego): o Pronatec/Brasil sem Miséria.
Com o acesso ao Cadastro Único
de Programas Sociais, jovens e adultos
podem se qualificar para o ingresso no
mercado de trabalho. Hoje, as mulheres
representam mais de 66% do total de
participantes do programa, qualificandose
mais em profissões até então consideradas
masculinas.
Estudo realizado pelo Núcleo de Estudos
e Pesquisas sobre a Mulher da
Universidade de Brasília (Nepem/UnB),
em 2006, intitulado O Programa Bolsa
Família e o Enfrentamento das Desigualdades
de Gênero, também aponta
três impactos na condição social das
mulheres titulares do benefício: aumento
do poder de compra, com estímulo à
economia local, já que o dinheiro utilizado
circula no município; afirmação da autoridade
e de mais autonomia feminina
no espaço doméstico, uma vez que ela
deixa de depender exclusivamente do
marido; e a percepção da própria mulher
de ser uma cidadã brasileira.
Xênia Teodoro Martins, de 27 anos,
mora na periferia de Belo Horizonte e
recebe o benefício mensalmente, algo
em torno de R$ 166,00. Ela tem seis
filhos, sendo que os mais novos - a
bebê de dois meses e os de 2 , 6 e 9
anos - moram com ela. “Os outros
dois moram com a avó paterna, pois
não tive condições de criá-los, quando
ainda trabalhava como empregada doméstica”,
conta. Xênia está há dois
anos sem poder trabalhar por não ter
conseguido vaga na creche para a filha
68% das pessoas que recebem o Bolsa Família são negros
Galeria Bolsa Familia
Revista Elas por Elas - março 2014 33
de 2 anos e por ter engravidado, mesmo
depois que fez uma laqueadura como
método anticoncepcional. “Estou processando
o hospital, mas até agora
não deu em nada”, diz, conformada.
Para sobreviver e cuidar das crianças,
ela conta com a ajuda do marido e,
quando dá, faz algum “bico”. “O dinheiro
que eu recebo é pouco, mas
ajuda. Nunca gastei nada comigo, só
com as crianças. O ruim é que o
dinheiro só sai no fim do mês e a
gente passa aperto”, reclama.
Perguntada sobre a influência do
Bolsa Família para a definição da quantidade
de filhos dela e das mulheres beneficiadas
que ela conhece, respondeu:
“Não vale a pena ter mais filhos para receber
mais e nem conheço alguém que
pense isso, pois o que a gente recebe é
muito pouco em relação ao custo para
alimentar, comprar material escolar e
uniforme para uma criança”, afirma.
Mais filhos,
mais desigualdades
A opinião de Xênia vai ao encontro
das conclusões expressas em artigo divulgado
no livro do Ipea intitulado “O
Programa Bolsa Família e as taxas de
fecundidade no Brasil”, produzido pelo
demógrafo José Eustáquio Diniz Alves
e pela professora Suzana Cavenaghi,
ambos da Escola Nacional de Ciências
Estatísticas (ENCE), do IBGE. “No Brasil,
há uma corrente da opinião pública
que considera que o Programa Bolsa
Família tem um efeito pró-natalista
entre a população de baixa renda. O
maior número de filhos dificultaria a
criação de portas de saída da pobreza
e a política de transferência de renda
equivaleria a uma situação de ‘enxugar
gelo ’. Porém, os dados do censo demográfico
de 2010 mostram que, a
despeito dos diferenciais socioeconômicos,
as taxas de fecundidade continuaram
caindo no Brasil, inclusive entre
a população mais pobre coberta pelo
Merenda escolar na Escola Municipal Rita Maia, em Xapuri, no Acre.
O Programa contribui para a manutenção das crianças podres nas escolas.
Cadastro Único do Programa Bolsa
Família”, explica José Eustáquio.
Segundo ele, de fato, o custo mensal
para sustentar uma criança no Brasil de
hoje, mesmo entre a população pobre,
tem um valor muito superior aos R$
32,00 do benefício variável do PBF.
Além do mais, as mulheres e os casais
têm demonstrado o desejo de uma prole
pequena, pois a qualidade de vida dos
filhos tem se tornado mais importante
do que a mera quantidade do tamanho
da prole. Famílias menores têm maior
mobilidade social ascendente.
Ele explica que, para a população
pobre que não tem acesso à contratação
de serviço doméstico e está excluída
dos serviços públicos de qualidade, o
maior número de filhos tende a sobrecarregar
o trabalho feminino e reduzir
as chances educacionais e de inserção
produtiva das mulheres. “Por isso, os
dados mostram que as mulheres estão
sobrerrepresentadas nas situações de
pobreza e existe uma forte correlação
negativa entre o número de filhos e a
renda familiar. Ou seja, o maior número
de filhos tende a aumentar as desigual-
34
Eduardo Aigner/MDS
dades de gênero e a diminuir o capital
social das mulheres”, constata.
Na sua opinião, para incentivar a
emancipação pessoal e social e a autodeterminação
reprodutiva das mulheres
cobertas pelo programa Bolsa Família
é preciso garantir os direitos plenos de
cidadania aos beneficiários. “Para que
o PBF seja uma política social inclusiva
e efetiva tem que atuar em seis dimensões:
elevar o poder de compra das famílias
para eliminar a fome e a desnutrição
infantil; fortalecer os direitos à
saúde e à educação, visando garantir o
acompanhamento pré-natal, o acesso
à saúde reprodutiva e a redução da
mortalidade infantil e das taxas de morbidade
e mortalidade; garantir a permanência
das crianças na escola, possibilitando
a redução das taxas de reprovação
e evasão e o melhor aproveitamento
escolar que possa se traduzir
em maior capital humano na medida
em que os filhos superem as taxas de
escolarização dos pais e obtenham
maior acesso ao mercado de trabalho
e melhores retornos salariais; fortalecer
outras políticas, como alfabetização de
adultos, geração de trabalho e renda,
fornecimento de registro civil e demais
documentos, etc; reduzir as desigualdades
de gênero nos domicílios por
meio da maior autonomia feminina e
de políticas de conciliação trabalho-família;
aumentar o poder de negociação
dos trabalhadores de baixa renda, elevando
a capacidade de barganha da
força de trabalho nas atividades mercantilizadas
e incentivar a criação de
capital social por meio do fortalecimento
da cooperação e de redes de solidariedade
locais”, aponta.
Revista Elas por Elas - março 2014 35
Pesquisa mostra que não
existe diferença no
comportamento reprodutivo
entre as mulheres do PBF
O artigo “O Programa Bolsa Família e as taxas de fecundidade
no Brasil”, de José Eustáquio Diniz Alves e Suzana
Cavenaghi, traz uma interessante análise sobre o tema e cita
dados com base na pesquisa Impactos do Bolsa Família na
Reconfiguração dos Arranjos Familiares, nas Assimetrias de
Gênero e na Individuação das Mulheres, realizada na cidade
do Recife em 2007-2008. A pesquisa mostra que não existe
diferença significativa no comportamento reprodutivo entre
as mulheres que vivem em famílias beneficiadas e não beneficiadas.
Conforme descrevem os autores, a fecundidade mais
elevada entre a população pobre, menos escolarizada, com
menor nível de consumo e piores condições habitacionais é
uma realidade constatada em todas as pesquisas sobre o
comportamento reprodutivo no Brasil. A literatura mostra
que, em grande parte, essa maior fecundidade se deve à
falta de acesso aos serviços de saúde sexual e reprodutiva,
mas também acontece devido à falta de perspectivas profissionais
e educacionais, assim como de um projeto de vida
que possibilite o progresso cultural e material dessas mulheres
jovens.
Os dados da pesquisa também mostram que é alta a
porcentagem de mulheres que engravidaram sem ter planejado,
independentemente de participarem ou não do PBF. De
certa forma, isso ratifica a hipótese de que essas mulheres
estão no programa porque já tinham filhos, e não o contrário,
isto é, tiveram filhos porque estão no programa.
O levantamento mostrou ainda que mais da metade das
famílias obtém os métodos contraceptivos por meio do Programa
de Saúde da Família (PSF). As outras fontes de
obtenção para as famílias beneficiadas do PBF são os centros
de saúde (ou ambulatórios) e as farmácias particulares, com
17% e 26%, enquanto as famílias não beneficiadas do PBF
conseguem 27% e 20%, respectivamente, nestes dois locais.
O fato de as famílias beneficiadas recorrerem um pouco
mais às farmácias particulares pode indicar que a renda do
PBF pode estar sendo usada inclusive para a compra de
métodos contraceptivos via mercado. Assim, as falhas da
política pública de saúde reprodutiva poderiam estar sendo
compensadas, em parte, pela política de transferência condicionada
de renda.
“É preconceito
achar que o
Bolsa Família
acomoda as
pessoas”
ENTREVISTA
Tereza Campello
A ministra de Desenvolvimento
Social e Combate à Fome
(MDS) fala sobre os impactos do
Programa Bolsa Família para
quebrar o ciclo inter-geracional
da pobreza e ressalta estudos
que apontam a importância do
benefício no fortalecimento do
protagonismo da mulher.
36
Elas por Elas - O que representa
o Bolsa Família para a superação
das desigualdades de gênero?
Tereza Campello - Desde seu lançamento,
em 2003, o Bolsa Família reconhece
o papel da mulher como chefe
de família, como a pessoa que sabe
aplicar corretamente os recursos para
atender às necessidades básicas de
todos, principalmente os filhos e filhas.
Esta foi uma decisão muito importante
que tomamos: a prioridade da mulher
como responsável familiar pelo benefício.
Em outubro passado, nós lançamos,
junto com o Ipea (Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada), o livro
Programa Bolsa Família: uma década
de inclusão e cidadania [acessível em
http://pt.slideshare.net/bolsafamilia10
anos/livro-bolsafamilia-10anos]. Nele,
há um artigo muito bom dos pesquisadores
Walquiria Domingues Leão Rego
e Alessandro Pinzani, onde eles demonstram
como o Bolsa Família
mudou a vida de diversas mulheres que
vivem na área rural e em pequenas cidades
do Nordeste e Minas Gerais. Eles
acompanharam por cinco anos a situação
dessas mulheres e mostram como
a transferência de renda permitiu que
elas se emancipassem, que elas crescessem
como pessoas. Foram mudanças
materiais e subjetivas. Essas mulheres
não são mais resignadas à pobreza e à
fome. Hoje, elas têm esperança, acreditam
e lutam para ter uma vida melhor.
E não é apenas esse estudo, mas
diversos deles que apontam a importância
do Bolsa Família no fortalecimento
do protagonismo da mulher.
Do balanço que vocês fizeram
desses 10 anos do programa, qual
aspecto chama mais atenção
quanto a efetividade do PBF?
O aspecto mais importante é o impacto
do Bolsa Família no que se refere
à transformação nas crianças e nos jovens
do Brasil. Muito se fala no impacto
do Bolsa Família sobre a pobreza e a
extrema pobreza – e ele é realmente
muito importante, afinal são 36 milhões
fora da miséria nesses últimos 10 anos.
Mas, se a gente olhar a transformação
na vida das crianças, vemos como o
benefício pode ser um importante agente
da quebra do ciclo intergeracional da
pobreza. As crianças, antes do Bolsa
Família, muitas vezes nem chegavam à
escola. E hoje a gente vê que todas
estão na escola. O nível de abandono
das crianças do Bolsa Família é muito
inferior ao das demais crianças. A taxa
de permanência delas na escola é muito
superior. No ensino básico, do 2º ao
5º ano, as crianças do Bolsa Família tiveram
94,3% de permanência, ante a
média de 92,1% das crianças fora do
programa. Até no ensino médio essa
diferença permanece, estando as
crianças do Bolsa Família com 74,1%,
e as demais, com 66,2%. Isso são informações
com base nos registros escolares
e já mostra o efeito transformador
sobre essas crianças – que,
antes, eram as primeiras a se evadir
das salas de aula. Também temos dados
estatísticos que mostram que o Bolsa
Família não é bom só para o beneficiário,
como também para todo o Brasil.
Cada real investido no Bolsa Família
retorna R$ 1,78 para a economia, ou
seja, o Bolsa Família está ajudando o
Brasil a manter um padrão de consumo,
a manter a economia funcionando. É
preciso lembrar ainda que 75% dos beneficiários
economicamente ativos trabalham,
mas mesmo trabalhando, por
conta de toda desigualdade histórica
construída no Brasil ao longo de séculos,
não conseguem ter um retorno econômico
que sustente a sua família. É preconceito
de quem ainda acha que o
Bolsa Família acomoda as pessoas. O
que ele faz é apoiar essas batalhadoras
em passos importantes para melhorar
de vida.
Caso outro partido vença as
eleições presidenciais, há algum
risco para o programa ou o fato
dele estar consolidado dificultará
mudanças na forma como ele é
conduzido?
Desde sua criação, em 2003, o
Bolsa Família é lei, estabelecido num
conjunto de normas e é permanentemente
fiscalizado. Ele já é uma política
de Estado que visa garantir direitos previstos
em nossa Constituição. Mas
como apontamos antes, o Bolsa Família
não é somente assistência social.
Como grande conquista do programa,
ele também não é assistencialista. Essa
é a nossa briga nesses últimos 10 anos.
O Bolsa Família garantiu as crianças na
escola, garantiu as crianças vacinadas.
A gente tem hoje um estudo comprovando
que o Bolsa Família é responsável
pela redução de 50% da
mortalidade infantil relacionada à pobreza,
causada por diarreia e desnutrição.
Está provado que o Bolsa Família
reduziu a diarreia e a desnutrição. A família
que não leva a criança para vacinar,
que não leva a criança para se
pesar e se medir, está fora do Bolsa Família.
E acho uma pena que as pessoas
queiram dizer que o Bolsa Família não
é de Estado. Nós não queremos que reduzam
o programa e o transformem
num programa assistencialista. Nós já
rompemos isso em 2003. Vamos manter
o programa como um Bolsa Família
da educação, da saúde e da Assistência
Social. Vamos garantir nossas crianças
não só livres da fome, mas livres da
morte por desnutrição, e manter nossas
crianças na escola. Essa é a nossa
grande vitória.ø
Revista Elas por Elas - março 2014 37
A luta pela
liberdade de
um povo
Comunidades remanescentes de Quilombos querem
reconhecimento e direitos sociais
QUILOMBOLAS
por Saulo Esllen Martins
fotos: Mark Florest
Cercada por cachoeiras, fazendas,
pousadas e condomínios de luxo, a comunidade
quilombola do Açude está situada
na Serra do Cipó, a pouco mais
de 100 km de Belo Horizonte. São algumas
dezenas de casas ao pé da serra.
O clima alegre do lugar não remonta
ao sofrimento dos escravos libertos que
ali viveram. Os costumes ainda são
bem tradicionais. Fogão a lenha, banhos
de rio e crianças brincando no quintal.
Ao lado do vilarejo encontra-se a
fazenda Cipó Velho, onde os negros
foram o braço forte da mão de obra
nos séculos passados. O casario dos
senhores e a senzala onde moraram
mais de 60 escravos ainda estão preservados
e, hoje, funcionam como pousada
e museu.
Sob a batuta de Dona Mercês e ao
som do tambor de herança africana, as
mulheres dali ficaram famosas por participarem
de composições dos músicos
Maurício Tizumba e Marina Machado
e pela tradicional festa do Candombe,
realizada em homenagem a Nossa Senhora
do Rosário. Mas a simplicidade
continua a ser característica do lugar.
Os moradores do Açude são conhecidos
pela tradição musical e pela oralidade
na transmissão da cultura e da história.
“O Açude é de escutar e passar pra
frente, sentar e contar histórias”, diz
Shirlene Sabino.
Shirlene nasceu e cresceu no lugarejo
e relembra com saudosismo como a
mãe e as tias resgataram a identidade
da comunidade. “Eram quatro mulheres,
a minha mãe (Dona Geralda), Tia
Mercês, Tia Vilma e Dindinha Lena.
Elas enfrentaram os fazendeiros da região.
Batalharam pelo nosso reconhecimento
como povo quilombola. Caminharam
à frente e lideraram a comunidade
durante toda a vida. Hoje,
nós, que somos mais jovens, tentamos
pegar esse cajado e continuar no caminho
que traçaram”, frisa. Graças ao
empenho dessas mulheres, o povo do
Açude conquistou o documento da terra
e o certificado de comunidade remanescente
de quilombolas.
Revista Elas por Elas - março 2014 39
“A grande liderança do nosso povo
é a tia Mercês. Ela é fantástica, nos ensinou
praticamente tudo que sabemos.
Sempre foi uma mulher que inspirou a
união da família. Em relação à cultura,
recebeu dos nossos ancestrais todo o
legado, como a festa do candombe,
que é o traço mais forte da nossa comunidade.
Eu acho que ninguém vai
conseguir fazer o que ela fez. A maneira
de tratar as pessoas, rezar, tocar violão,
cantar e contar as histórias. É um privilégio
conviver com ela”.
“Ser remanescente de um quilombo
é uma questão que eu ainda estou tentando
entender. Viemos da precariedade,
tivemos nosso trabalho explorado pelos
mesmos senhores dos escravos. Ainda
hoje, toda a terra do Cipó é deles. Até
onde a vista se perde. Os herdeiros
deles são as pessoas mais ricas aqui da
região. Nós só temos o nosso quintal
para plantar”, enfatiza Shirlene.
Orgulho da origem
As mulheres do Açude contam que
depois da abolição muitos morreram
de fome. Crianças foram encontradas
mamando em suas mães mortas, estendidas
no chão. Para muitas delas, a
escravidão no Brasil ainda não acabou.
“Eu trabalho muito e ganho pouco.
Penso que só mudou a forma de escravizar.
O povo mora mal, come mal,
enfim, vive mal. Somos escravos de
Dona Mercês, liderança do Quilombo do Açude
Quilombo:
símbolo da luta
de resistência
dos escravos
O regime escravista no Brasil chegou
ao fim em 1888, com a Lei Áurea. Contudo,
a abolição não foi seguida por ações de
integração dos negros à sociedade. A exclusão
social e o preconceito racial continuaram
como marcas da sociedade. A
maioria dos escravos libertos passou a
viver à margem, e, juntamente com os
que haviam fugido de seus senhores, aumentaram
o contingente dos quilombos.
“kilombo”, do idioma Mbundu dos
Bantus (povos da região onde hoje é o
país de Angola), quer dizer o mesmo
que acampamento ou fortaleza. No Brasil,
é um termo diretamente ligado ao período
escravocrata, para designar as comunidades
onde escravos fugitivos se uniam
e se organizavam, de forma econômica,
política, religiosa, social e militar, conforme
a cultura que traziam de suas terras natais.
A Constituição Federal de 1988 asse-
40
uma condição social. Mesmo assim, eu
tenho muita esperança, principalmente
nessas meninas que têm muita vontade
de estudar e trabalhar para mudar essa
realidade. As mulheres têm o desejo e
a iniciativa de ver as coisas melhores.
E isso é um dos motivos que me fazem
ter muito orgulho de ter vindo desse
povo”, analisa Shirlene.
São muitas as funções das mulheres
na comunidade do Açude. Cuidam das
crianças, da casa, de tudo um pouco.
Muitas trabalham como diaristas, cozinheiras,
camareiras e guias de turismo
nas pousadas da Serra do Cipó.
Plantam, colhem, cuidam dos animais.
Em geral, são as mulheres que executam
todas essas tarefas.
Rita Sabino enfatiza a importância
da educação dentro e fora de casa.
“Meu sonho é ver essa meninada estudada,
tendo mais oportunidade que a
gente, mas sem abandonar a comunidade
e esquecer as origens, lembrando
sempre do que nós ensinamos. Essa
geração tem muitas possibilidades. A
educação que a minha mãe (Dona
Mercês) nos deu foi uma mistura de
disciplina e amor. Eu só tenho a agradecer.
Aqui, a educação fica por conta
das mulheres. Os homens são muito
bons pra nós, mas são pouco comunicativos.
Nós somos a força dessa comunidade.
Isso já é uma tradição. Penso
que vai continuar assim, com as mulheres
no comando. O ensino sobre as
coisas certas começa dentro de casa e
deve continuar na escola. O mais importante
é o caráter e o respeito”.
Mulheres negras no comando
Hoje, a história é um pouco diferente.
A criminalidade e o êxodo rural
fizeram com que a quantidade de homens
fosse reduzida de maneira significante.
Mas não é só por uma questão
de números que elas são protagonistas.
De acordo com o historiador Pablo
Matos Camargos, que trabalhou no
projeto Quilombos Gerais, coordenado
pelo Centro de Documentação Eloy
Ferreira da Silva (Cedefes), em boa
parte das comunidades, as mulheres
são maioria e ocupam lugares de destaque.
Ele visitou mais de cem comunidades
remanescentes de quilombolas
em Minas Gerais. “Em todos os aspectos,
até mesmo por causa de uma
tradição africana matriarcal, a mulher
é muito ativa, mas não existe a institucionalização
dessa liderança. Os homens
é que participam das instâncias decisórias.
O tempo inteiro elas sofrem o
preconceito de gênero, social e de raça.
E a pobreza e o isolamento são entraves
para o avanço social”.
Para o pesquisador, a parte mais
importante do projeto foi levantar a
questão do direito à terra. “Resolvendo
isso o restante terá mais condições de
ser solucionado. Em alguns casos, o
próprio estado se apropriou das terras
quilombolas. Além disso, a grilagem e
a iniciativa privada tomaram conta do
resto. E nessa luta pela conquista do
território tem muita mulher envolvida”,
enfatiza Pablo Matos.
Estatísticas da Federação Quilombola
de Minas Gerais apontam que hoje
existam 500 comunidades no estado.
A entidade foi criada em 2005 com o
intuito de respaldar as demandas das
comunidades. Sandra Maria da Silva é
a presidente da Federação. Ela é moradora
da comunidade Carrapatos de
Tabatinga, em Bom Despacho. Um
exemplo de força e determinação.
“A minha mãe é a nossa referência.
Eu só estou aqui nessa Federação por
causa dela. Ela tem 80 anos e está
mais forte do que eu. Tem uma força
excepcional. Sempre foi uma militante
pelos nossos direitos e fez isso sem nenhuma
instituição por trás. Ela é a mãe
Tiana. Uma amostra da resistência e
do pensamento coletivo das mulheres
negras”.
A presidente reclama da invasão
urbana sofrida nas comunidades. “Ser
uma mulher quilombola, hoje, é ser
tudo. Mãe, filha, trabalhadora e educadora
no nosso lar. Antigamente, vivíamos
da agricultura e pecuária de subsistência,
fora da realidade das cidades. Não tínhamos
saúde e educação, mas tígurou
aos quilombolas o direito às terras
em que vivem, e o decreto nº 4887, de 20
de novembro de 2003, ofi cializa o procedimento
para identificação, reconhecimento,
delimitação, demarcação e titulação
dos territórios ocupados.
Dados da Fundação Cultural Palmares
mostram que em 2010 existiam 1.170 comunidades
quilombolas certificadas e mais
3.524 em uma fila de espera, espalhadas
por todas as regiões do Brasil, com uma
população estimada em mais de 2,5 milhões
de descendentes de escravos. Porém,
o movimento negro estima que esse número
de comunidades remanescentes
deve ultrapassar os 5.500.
Historicamente, nos quilombos brasileiros
havia uma desigualdade em relação
ao número entre homens e mulheres. Isso
acontecia devido ao processo de chegada
dos escravos trazidos da África, que na
maioria eram homens. Essa desproporção
refletiu na população quilombola durante
o período colonial, em que se calculava
que para cada mulher havia três ou mais
homens.
Algumas pesquisas apontam que
ocorria nesses quilombos a prática da
poliandria, fenômeno cultural no qual
uma mulher se relaciona com mais de
um homem, sem que haja conflito. Uma
tradição matriarcal vinda de tribos africanas.
Revista Elas por Elas - março 2014 41
nhamos dignidade e o conhecimento
transmitido pelos nossos antepassados.
Até que nos encontraram. Aí sim, começaram
os nossos maiores problemas”.
Cadê os homens?
Sandra fala das dificuldades impostas
para manter a identidade e a tradição
nos quilombos, diante do acúmulo de
funções das mulheres. “Agora, além
de cuidar das tarefas do nosso dia a
dia, temos que ter a disposição de ir
para o enfrentamento, até mesmo sem
os homens. Na nossa região, muitos
homens morreram e outros foram embora
em busca de trabalho e não voltaram.
Hoje, somos, em maioria, mulheres,
jovens e crianças. Com isso,
somos nós que trabalhamos para manter
a comunidade. Integramos a associação,
ocupamos os conselhos e lutamos por
direitos. Na maioria das comunidades,
as mulheres enfrentam fazendeiros, políticos,
grandes empresários, drogas e
prostituição”, ressalta. “Se você for à
minha comunidade vai se perguntar:
cadê os homens?”
A Federação Quilombola reúne
forças pelo empoderamento das mulheres.
“Falta reconhecimento da própria
comunidade e do poder público, ainda
existe muito machismo também. As
mulheres já conquistaram vários direitos,
mas, na prática, são muitas as violações.
Lutamos para que as políticas sejam
efetivadas e as mulheres quilombolas
ocupem lugares de destaque na sociedade.
Não aceitamos mais ficar nos
bastidores”.
Em um processo de capacitação e
formação para geração de emprego e
renda, a Federação tem o foco na educação
e seus dirigentes encaram esse
fator como primordial para as mulheres.
“Começamos pela alfabetização, depois
o ensino básico, e pretendemos levar
muitas mulheres à universidade. Sonhamos
com um novo perfil de mulheres
negras”.
Crianças da comunidade são a esperança de um futuro melhor
A entidade trabalha para mudar o
paradigma que recai sobre a mulher
negra de que ela só serve para serviços
“menores”. “Essa coisa, por exemplo,
de ser chamada de mulata... Não somos
as ‘mulas’ dos brancos! A exposição
do carnaval ajudou a vender essa
imagem. Antes, era uma festa dos negros,
feita nas comunidades. Agora, o
dinheiro define como as coisas vão ser.
Saulo Esllen Martins
As celebridades pagam para ser destaque.
Aquele carnaval nosso não existe
mais. Até para assistir é preciso pagar.
Nós somos negras e não mulatas. E a
“globeleza” não me representa!”
Sandra tem esperança de ver todas
as comunidades com seu título, desenvolvidas
socialmente e humanamente.
“Queremos continuar contribuindo para
o crescimento do nosso país. Quanto
42
mais avanços nós tivermos, o Brasil
será ainda melhor. Precisamos ter a
nossa contribuição reconhecida. Eu
tenho fé, as próximas gerações vão colher
os frutos da luta por direitos”.
A historiadora Agda Marina Ferreira
é assessora da Federação Quilombola.
Sua principal função é visitar as comunidades
quilombolas e levar informações
sobre direitos e viabilizar o acesso às
políticas públicas.
Admirada com o modo de vida coletivo,
Agda fala das diferenças entre
uma mulher que nasce em uma comunidade
quilombola e uma que vive na
cidade. “Nas cidades é pregado o individualismo,
o que praticamente não
existe nas comunidades. Elas se reúnem
para fazer quase tudo. Cozinham,
bordam, contam histórias, cantam,
dançam, tudo em grupo. A solidariedade
é um ponto crucial entre as mulheres
desse meio. Os laços afetivos são muito
fortes entre as famílias quilombolas”.
Para a historiadora, em muitas ocasiões,
as mulheres se tornam líderes
por vocação, em outras por necessidade,
entretanto, o machismo ainda é uma
mancha que insiste em não desaparecer.
“Na região do Jequitinhonha, por
exemplo, acontece um fenômeno no
qual os homens saem para trabalhar e
ficam durante meses em outras cidades.
Nesses casos, as mulheres assumem
tudo. Elas tomam as decisões. Em
outros lugares, as meninas casam-se
muito cedo e são totalmente submissas
aos maridos. São obrigadas a parar
com os estudos e relatam muito sofrimento.
Também existem alguns casos
de violência doméstica. São muitas
questões a serem superadas”.
O Quilombo na cidade
A comunidade matriarcal dos
Luízes resiste às pressões urbanas
A comunidade quilombola dos Luízes
situa-se no bairro Grajaú, na capital
mineira. São um dos poucos povos
quilombolas que ainda resistem nas
grandes cidades. De acordo com informações
do Centro de Documentação
Eloy Ferreira da Silva, existem relatos
dessa comunidade desde 1895, quando
seu território era em Nova Lima.
O fato inusitado em relação aos
Luízes é que eles vieram de um relacionamento
entre um fazendeiro e uma
escrava. Antônio Luiz Simões Lopes e
Anna Apolinária tiveram nove filhos.
Eles são um caso excepcional, herdeiros
de um escravagista. Antônio Luiz doou
suas terras para a mulher, que se tornou
a matriarca da comunidade.
A bisneta do casal explica um pouco
da história da família “Nossa família
começou com uma mulher. Estamos à
frente na luta pelos direitos. Minha tia
Cordelina foi assassinada por causa
disso. Eu já tive sob a proteção dos direitos
humanos”, relata Maria Luzia Sidônio.
Maria esclarece que a comunidade
dos Luízes é certificada como quilombola
pela Fundação Cultural Palmares. No
entanto, seus moradores sofrem forte
pressão devido aos inúmeros projetos
imobiliários que vêm se instalando na
região nas últimas décadas. A manutenção
de seu território é uma das
grandes lutas dos Luízes.
A comunidade originariamente
tinha 18 mil metros quadrados, com
mais de duas mil pessoas morando em
37 lotes. Com as invasões e construções
no entorno das moradias, o terreno
diminuiu para 6 mil metros
quadrados onde vivem, hoje, cerca de
150 pessoas. Segundo relato de moradores,
as danças afro, que ocorriam aos
sábados, quase não acontecem mais,
devido às reclamações da vizinhança incomodada
com barulho dos batuques.
Outro problema foi a perda do centro
cultural, local que se transformou em
um prédio residencial.
Dona Luzia se orgulha ao dizer que
na comunidade não há analfabetismo,
e com relação aos projetos para seu
povo, ela apresenta o sonho de construírem
uma capela e um espaço para
realização de cursos profissionalizantes
e resgate das manifestações culturais.
Todavia, ela conclui: “para isso é necessário
garantirmos a nossa permanência
aqui”.
Forte papel das mulheres
A professora de história e pesquisadora
Miriam Aprígio é moradora da
comunidade. Ela reafirma a frequência
de mulheres em funções ativas. “Constatei
na minha pesquisa que muitas
mulheres ficaram responsáveis pelas
famílias. A Maria Luiza, minha bisavó,
tomava as decisões e todos acatavam.
Ela era o elo entre as gerações”.
“Essa é a minha história. É de onde
eu venho e de onde eu sou. Me tornei
professora, para repassar essa história
que está no meu sangue. É algo muito
vivo na memória das pessoas daqui. A
ligação comunal, uma vivência interligada,
um zelo pelo outro, não é só por
obrigação, são laços eternos. Isso fortaleceu
o papel da mulher. Apesar de
estarmos no meio urbano, permanecemos
quilombolas”, reflete Miriam.ø
Revista Elas por Elas - março 2014 43
Laycer Tomaz/Câmara dos Deputados
Resultado da
CPMI aponta
para mudança
de realidade
VIOLÊNCIA | por Nanci Alves
Aumenta, escandalosamente, no
Brasil, o número de assassinatos
de mulheres, exatamente porque
são mulheres, o chamado feminicídio.
Crimes, em sua maioria,
cometidos por homens com os
quais tiveram algum envolvimento
afetivo. De quem é a culpa? A
Lei Maria da Penha completará
8 anos, mas apesar de ser um
grande avanço, não conseguiu
inibir os crimes porque os Estados
não se equiparam para os trabalhos
de punição e prevenção.
Essa foi uma das conclusões da
Comissão Parlamentar Mista de
Inquérito encerrada em 2013. A
CPMI faz 73 recomendações para
todas as instâncias de poder, pedindo
mais compromisso e eficácia
em suas ações, em prol do combate
à violência contra a mulher.
Em nosso país, a violência contra a
mulher já ganhou a dimensão de chaga
social. É o que demonstram várias pesquisas
realizadas nesta área. Cinco mulheres
são espancadas a cada 2 minutos
no Brasil, segundo pesquisa do Instituto
Perseu Abramo, de 2010. A pesquisa
de opinião Percepção da Sociedade
sobre Violência e Assassinatos de Mulheres,
realizada pelo Data Popular e
Instituto Patrícia Galvão, em 2013,
com pessoas de ambos os sexos e
todas as classes sociais, revela que 54%
conhecem uma mulher que já foi agredida
por um parceiro, e 56% conhecem um
homem que já agrediu uma parceira.
De acordo com a Organização das Nações
Unidas (ONU), mais de 70% das
mulheres ainda passarão por pelo menos
um episódio de violência durante a vida.
Em 30 anos (1980 a 2010 ), cerca
de 91 mil mulheres foram assassinadas
no país, de acordo com os dados do
Mapa da Violência 2012, pesquisa
coordenada pelo sociólogo Julio Jacobo
Waiselfisz, com apoio da Faculdade
Latino-americana de Ciências Sociais
Revista Elas por Elas - março 2014 45
e do Instituto Sangari. O levantamento
foi feito com base em dados do Sistema
de Informações de Mortalidade (SIM) e
do Sistema de Informação de Agravos
de Notificação (Sinan) - ambos do Ministério
da Saúde.
Os dados do estudo “Violência contra
a Mulher: feminicídios no Brasil”, realizado
pelo Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea), mostram que em
dez anos, entre 2001 e 2011, ao menos
50 mil mulheres foram mortas no Brasil
- número muito maior do que a população
de milhares de municípios brasileiros.
De acordo com este estudo, estima-se
que ocorreram, em média, 5.664
mortes de mulheres por causas violentas
a cada ano, 472 a cada mês. Isso
significa que 15 mulheres são assassinadas
por dia no Brasil, ou uma a cada
hora e meia. A pesquisa revela também
que a maioria dos crimes é cometida
por companheiro ou ex-companheiro e
que as mulheres jovens foram as principais
vítimas: 31% estavam na faixa
etária de 20 a 29 anos, e 23%, de 30 a
39 anos. Mais da metade dos óbitos
(54%) foram de mulheres de 20 a 39
anos. No Brasil, 61% dos óbitos foram
de mulheres negras (61%), e grande
parte das vítimas tinha baixa escolaridade
– 48% com até 8 anos de estudo.
Essa realidade assustadora coloca o
Brasil, vergonhosamente, em sétimo
lugar, no mundo, entre os países que
mais matam mulheres: em cada grupo
de 100 mil, são assassinadas 5,8 mulheres,
anualmente.
Lei Maria da Penha
precisa ser fortalecida
Os dados da violência contra a mulher
no Brasil, em geral, já são conhecidos
por quase todos, apesar de só
aparecerem, parcialmente na mídia,
quando ocorre algum crime que promete
audiência. Mas independentemente
desses e outros agravantes e descasos,
a grande angústia é a seguinte: trata-se
Femicídios por
100 mil mulheres
2,71 a 3,74
4,63 a 4,64
5,07 a 5,99
6,03 a 6,99
7,42 a 7,81
8,51 a 8,54
9,08 a 11,24
Espírito Santo
Bahia
Alagoas
Roraima
Pernambuco
Goiás
Rondônia
Paraíba
Mato Grosso
Pará
Tocantins
Minas Gerais
Paraná
Mato Grosso do Sul
Rio Grande do Norte
Rio de Janeiro
Amapá
Brasil
Distrito Federal
Sergipe
Acre
Ceará
Amazonas
Rio Grande do Sul
Maranhão
São Paulo
Santa Catarina
Piauí
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0 2 4 6 8 10 12
Elaboração: IPEA/DISET - Mapa: Base Cartográfica Digital IBGE
Dados: Elaboração própria com dados IBGE e SIM/DATASUS - Data: Ago/2013
11,24
9,08
8.84
8.51
7.81
7.57
7.42
6.99
6.95
6.81
6.75
6.49
6.49
6.44
6.31
6.03
5.99
5.82
5.53
5.40
5.33
5.26
5.07
4.64
4.63
3.74
3.28
2.71
46
de uma violência silenciosa que tem
deixado marcas profundas na sociedade
brasileira, mas o que vem sendo feito
para combater esses assassinatos?
Em 2003 foi criada, pelo governo
federal, a Secretaria de Políticas para
as Mulheres, com status de ministério,
com políticas voltadas à proteção e
emancipação da mulher. E, em 2006,
foi sancionada a Lei Maria da Penha
(Lei 11.340/2006), que criou e/ou
fortaleceu importantes equipamentos
como delegacias da mulher, juizados
especializados, promotorias da mulher,
núcleos da Defensoria Pública, coordenadorias
da mulher, abrigamentos e
casas-abrigo. Em 2007, o governo federal
lançou o Pacto Nacional pelo
Enfrentamento à Violência Contra a
Mulher, visando a implementação de
políticas públicas integradas em todo
território nacional. Ações importantes
mas que não conseguiram, ainda, o
efeito pretendido. Por quê? Como o
poder público tem atuado, na prática?
Que tipo de trabalho vem sendo feito
para apoiar e defender a mulher vítima
de agressões e/ou ameaçada de morte?
Por que milhares de homens que cometeram
a agressão e/ou assassinato
continuam soltos? Por que muita mulher,
mesmo que busque ajuda da polícia e
da justiça, não consegue fugir da morte?
Procurando respostas para questões
como essas, foi instaurada, no Congresso
Nacional, a Comissão Parlamentar
Mista de Inquérito (CPMI
2012/2013) que, durante quase dois
anos, trabalhou para entender e conhecer
melhor a situação da violência
contra na mulher no Brasil e apurar
denúncias de omissão por parte do
poder público com relação à aplicação
de instrumentos instituídos pela Lei
Maria da Penha para proteger as mulheres
em situação de violência.
O documento final, que teve como
relatora a senadora Ana Rita (PT/ES),
foi entregue em agosto passado à presidenta
Dilma Rousseff pela deputada
federal Jô Moraes (PCdoB/MG), presidente
da CPMI, para quem o trabalho
foi inusitado. “Apesar de ser a terceira
CPMI de violência contra a mulher, foi
a primeira que conseguiu concluir seus
trabalhos, ter aprovado o relatório e
recomendações muito abrangentes. As
CPMIs de 1992 e 2001 representaram
avanços, pois expuseram a chaga da
violência contra a mulher. Desta vez,
nosso foco foi analisar as atitudes e
procedimentos que todas as instâncias
de poder estão usando para garantir a
aplicação da Lei Maria da Penha e se
os equipamentos públicos determinados
por ela estão sendo efetivados”, afirma
Jô Moraes.
Formada por 11 deputados federais
e 11 senadores, a CPMI analisou mais
de 30 mil documentos, fez audiências
públicas e visitou casas-abrigos, delegacias
da mulher, institutos médicos legais,
juizados e varas da mulher nos estados
de Pernambuco, Minas Gerais,
Santa Catarina, Rio Grande do Sul,
Espírito Santo, Alagoas, São Paulo,
Bahia, Paraíba, Rio de Janeiro, Mato
Grosso do Sul, Pará, Goiás, Amazonas,
Ceará, Roraima e no Distrito Federal.
“Em função do tempo, não visitamos
todo o país, mas todos os estados responderam
aos requerimentos enviados
“
A Lei Maria
da Penha ainda
não é plenamente
aplicada no
Brasil.
pela CPMI. Escutamos o conjunto dos
órgãos públicos, como as secretarias
vinculadas aos governos estaduais, Ministério
Público, Defensoria Pública e
Tribunais de Justiça. Essa dimensão fez
a grande diferença e possibilitou, por
exemplo, apresentar um diagnóstico
de cada estado”, conta a presidente da
CPMI.
Para Jô Moraes, o trabalho foi o
mais denso realizado por uma Comissão
Parlamentar na área de Direitos Humanos.
“E chegamos também a conclusões
muito pesadas, mas o importante
é que conseguimos propor 13 projetos
de lei complementar e fazer mais de
70 recomendações a todas as instâncias
de poder”. No final desta matéria está
o endereço eletrônico para acesso ao
relatório da CPMI, na íntegra.
Como se pode ler no documento,
após inspeção em quase todo o país,
ficou constatado que a Lei Maria da
Penha ainda não é plenamente aplicada
no Brasil: “em algumas capitais e sobretudo
no interior, os operadores jurídicos
continuam aplicando a lei conforme
lhes convém, fazendo uso de
instrumentos ultrapassados e já proibidos
pelo Supremo Tribunal Federal (STF),
como os institutos despenalizadores da
Lei nº 9.099, de 26 de setembro de
1995, entre os quais se destaca a suspensão
condicional do processo”.
É preciso compromisso
e investimento
A Comissão Parlamentar constatou
a ausência de dados estatísticos confiáveis
e comparáveis em todos os poderes
constituídos e em todas as esferas de
governo e, por isso, aponta para a necessidade
urgente de criar sistemas de
informações sobre a violência contra
as mulheres que permitam planejar,
monitorar e avaliar as políticas públicas.
O relatório reforça que, para reduzir os
índices de violência, construindo um
caminho para a igualdade de gênero, é
Revista Elas por Elas - março 2014 47
necessário compromisso e investimento:
“as políticas de enfrentamento à violência
contra as mulheres devem ser
efetivamente assumidas pelos poderes
públicos constituídos. Isso requer a
criação de mecanismos políticos de empoderamento
das mulheres autônomos
e bem estruturados, a exemplo de Secretarias
Estaduais e Municipais de Mulheres.
Requer, ainda, tanto orçamento
específico para o desenvolvimento de
políticas públicas integradas e multissetoriais
quanto o fortalecimento da Lei
Maria da Penha, com a criação de Juizados,
Promotorias e Defensorias Especializadas
de Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher, além do julgamento
célere dos agressores e homicidas,
do enfrentamento das elevadas
Lucio Bernardo Jr. / Câmara dos Deputados
taxas de feminicídios e da superação
de preconceitos e estereótipos profundamente
arraigados”.
Entre os projetos de lei propostos
pela CPMI e que já tramitam no Congresso,
estão os que propõem alterar o
Código Penal, inserindo o feminicídio
como circunstância qualificadora do
crime de homicídio; classifica a violência
doméstica como crime de tortura; torna
obrigatória, nos currículos escolares, a
inclusão do tema do respeito à igualdade
de gênero e a prevenção e combate à
violência doméstica; acaba com a concessão
de fiança pela autoridade policial
nos casos de violência doméstica e familiar
contra a mulher; prevê atendimento
especializado no SUS às mulheres
vítimas de violência. Há também o projeto
que determina prazo para análise
do pedido de prisão preventiva para os
agressores, o que garante benefício
temporário da Previdência às vítimas e
o que destina parte dos recursos do
Fundo Penitenciário Nacional à manutenção
de casas de abrigo que acolham
vítimas de violência doméstica.
O relatório da CPMI nos mostra
que o caminho será longo e que não
bastam as leis se o próprio Estado não
se esforçar para se equipar de acordo
com as exigências, criando condições
e espaços para atender as vítimas de
agressões masculinas, assim como cobrar
mais agilidade nos processos contra
os autores dos crimes. Segundo Jô Moraes
(foto) , com a realidade atual é impossível
se falar em democracia no
Brasil. “É urgente que consigamos por
fim à tolerância estatal no processamento
e julgamento desses crimes. O
poder judiciário precisa ser eficaz. É
necessário mudar a cultura jurídica de
tolerância à violência contra as mulheres
e implementar a Lei Maria da Penha,
punindo os autores de atos violentos,
além de apoio concreto à vítima, assim
como seus filhos”, acrescenta.
Na avaliação da parlamentar, o trabalho
da CPMI precisa ter uma continuidade,
pois o relatório nos apresenta
um diagnóstico preocupante. “Fizemos
muitas recomendações a todas as instâncias
de poder. E para monitorar as
aplicações dessas recomendações, sugerimos
a criação de uma comissão
composta por parlamentares da Câmara
e do Senado”, explica. Aprovada e
criada, a Comissão Permanente Mista
de Combate à Violência contra a Mulher
tem 27 deputados e dez senadores.
Eles devem diagnosticar as lacunas na
prestação de segurança pública às mulheres
vítimas de violência. Devem
também apresentar propostas para consolidação
de uma Política Nacional de
Enfrentamento à Violência contra as
mulheres.
48
CPMI já traz
resultados
Assessoria de Comunicação TJES
A simples passagem da CPMI por
diversos estados, onde foram realizadas
dezenas de audiências públicas e diligências,
estimulou boas iniciativas, produzindo
efeitos positivos sobre as políticas
públicas. É o que ressalta Jô
Moraes ao destacar que em Minas Gerais,
por exemplo, foi criada mais uma
vara de violência doméstica e familiar
contra a mulher. “Um bom passo, mas
ainda precisaremos de mais profissionais
nesta vara, pois são milhares de processos”,
avalia.
No Paraná, foi feito o Mutirão das
Marias implementado pela Secretaria
de Segurança Pública em cumprimento
às 300 ordens de prisão de agressores
de mulheres que não estavam sendo
cumpridas no estado. O nome do mutirão
é uma alusão à Lei Maria da
Penha. “Quando estive lá, junto com
demais representantes da CPMI, não
havia uma Defensoria Pública organizada,
devidamente instalada. O trabalho
era desenvolvido de forma bastante
precária. Hoje o que assistimos é a incorporação
intensa de ações e também
com uma Coordenadoria Estadual presente
de forma decidida. Essa determinação
é fundamental para conquistarmos
as mudanças tão necessárias”,
acentua Jô Moraes. Entre tantas outras
iniciativas importantes após as visitas
nos estados, a presidente da CPMI destaca
ainda a instituição do Portal da
Lei Maria da Penha e do Botão do Pânico
no Espírito Santo, a criação do
Núcleo da Promotoria da Mulher no
Rio de Janeiro e a criação da Secretaria
da Mulher no Amazonas.
Para a coordenadora estadual de Enfrentamento
à Violência Doméstica do
Tribunal de Justiça do Estado do Espírito
Santo, Hermínia Maria Silveira Azoury
(foto), que é também presidente do
Fórum Nacional de Juízes de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher
(Fonavid), a CPMI tem sido um grande
estímulo para a busca de políticas públicas.
“O Espírito Santo é o estado
com o maior índice de assassinatos de
mulheres, chegando a 9,6 por grupo
de 100 mil. Precisávamos agir rapidamente.
Mas era impossível a fiscalização
quanto às medidas protetivas, e a própria
Lei Maria da Penha deixou essa falha.
Os legisladores não pensaram nisso.
Então, uma alternativa urgente que encontramos
foi a criação e implantação
do botão do pânico por meio do qual a
mulher aciona a polícia, a Patrulha Maria
da Penha, quando se sente ameaçada.
Com esse dispositivo, as mulheres se
sentem empoderadas, e os homens, intimidados,
pois não querem ser presos.
Já constatamos que não houve reincidência
em todos os casos em que as
mulheres receberam o botão do pânico”,
afirma Hermínia Azoury ao acrescentar
que esse dispositivo tem dado melhor
resultado do que a tornozeleira, pois ela
conta com um sistema de áudio. Ao
gravar o que o homem fala durante a
agressão, produzimos uma prova do
crime, o que não é possível com a tornozeleira”,
explica.
Segundo ela, as críticas da CPMI
quanto à morosidade da Justiça são
procedentes, mas é impossível trabalhar
com a falta de condições adequadas,
infraestrutura, equipe multidisciplinar,
Revista Elas por Elas - março 2014 49
etc. “É preciso, por exemplo, se criar
mais varas. Há capitais, como Salvador,
com 3 milhões de habitantes e apenas
uma vara especializada para atender a
mulher vítima de violência. Esperamos
que as recomendações da CPMI sejam
atendidas”, completa.
Também no âmbito nacional, de
acordo com o texto do relatório, a
CPMI pode ter estimulado a ampliação
do orçamento, da Secretaria de Políticas
para as Mulheres (SPM), destinado ao
enfrentamento da violência e a recente
criação da Casa da Mulher Brasileira,
programa instituído pela Presidência
da República para ser executado pela
SPM, em parceria com estados, municípios
e o poder judiciário.
Segundo a secretária-adjunta de Enfrentamento
à Violência contra as Mulheres,
Rosângela Rigo, os resultados
apresentados pela CPMI e, principalmente,
suas recomendações são essenciais
para o fortalecimento de uma política
pública de enfrentamento à violência.
“Agora, temos um diagnóstico claro da
realidade e que confirma algumas questões
que a Secretaria de Política para
Mulheres vem trabalhando desde sua
criação, fortalecendo a proposta dos
novos projetos como a Casa da Mulher
Brasileira, que integra o programa nacional
Mulher, Viver Sem Violência,”
afirma. A Casa será implantada nas 27
capitais brasileiras e reunirá, no mesmo
espaço, todos os serviços públicos para
a prevenção e o combate à violência:
segurança, justiça, saúde, assistência social,
acolhimento, brinquedoteca, abrigamento
e orientação para a autonomia
econômica da mulher vítima da violência.
Segundo Rosângela Rigo, alguns estados
já assinaram convênios para o repasse
de recursos, e o projeto é que, até julho
deste ano, sejam implantadas duas unidades
em locais ainda em estudo, dependendo
de processos licitatórios. Para
a capital mineira, a previsão é até setembro.
“Um trabalho articulado para
No Espírito Santo, estado com
maior índice de feminicídios, foi
criado o botão do pânico, para
que a mulher acione a polícia.
dar agilidade ao processo e que permitirá
à mulher ter acesso a tudo no mesmo
lugar, sem ter que peregrinar. E no processo
de interiorização, a Secretaria,
em sintonia com o Fórum das Mulheres
do Campo e da Floresta, oferece unidades
móveis, ônibus com profissionais
que, de acordo com a demanda, fazem
o encaminhamento dessa mulher para
os serviços, em parceria com os municípios
e os estados, visando garantir um
atendimento integral e humanizado”,
afirma.
Mais informação
sobre a violência
Entre as recomendações feitas pela
CPMI para a Secretaria de Política da
Mulher está a criação de um Sistema
Nacional de Informação sobre Violência
contra a Mulher, com atenção à produção
de dados sobre a violência contra
as mulheres negras. De acordo com
Rosângela Rigo, até o final de 2014, a
SPM implantará um sistema articulado
com informações das delegacias, com
o sistema de notificação sobre a violência
do Ministério da Saúde, com todos os
processos na área da Justiça.
A secretária-adjunta destaca também
a transformação, em breve, do serviço
de informação e orientação à mulher,
o Ligue 180, em Disque Denúncia
180. “Hoje, o ligue 180 recebe ligações
de mais da metade dos municípios brasileiros
e com 7% das ligações feitas
por mulheres do campo e da floresta.
A interiorização deste serviço é importante,
pois a violência está em todas as
classes sociais e regiões do país. Atendemos
também a demanda de brasileiras
em situação de violência na Espanha,
Itália e Portugal. Mas, em breve, este
serviço será ampliado para mais 10
50
Antônio Cosme
países e, o mais importante, se transformará
em Disque Denúncia. A mulher
poderá ligar, gratuitamente, para este
serviço que funciona 24 horas, todos
os dias da semana, fazendo sua denúncia
que será, imediatamente, encaminhada
para as autoridades competentes como
Polícia Militar, sistema de saúde em
caso de violência sexual, Justiça, etc.
Uma resposta imediata com medidas
protetivas para evitar assassinatos. É
possível enfrentar a violência, mas para
isso, é fundamental que essa denúncia
chegue para que as autoridades, cada
uma no seu papel e na sua competência,
possam atender essa mulher”, alerta.
Rosângela Rigo convoca a toda sociedade
para trabalhar em sintonia no
combate à violência contra a mulher,
“pois além de aumentar o número de
assassinatos, aumentou também o requinte
de crueldade. Não basta matar.
Muitos ainda querem deformar o corpo,
fazendo cortes, mutilações até no aparelho
genital. Tudo isso caracteriza
crime de ódio contra mulheres. A CPMI
propõe que estes crimes sejam considerados
como feminicídio, o que ajudará
a aumentar a punição, mas todos precisamos
atuar rapidamente para evitar
mais mortes”, enfatiza.
Pequenas ações que
fazem a diferença
Algumas medidas simples de combate
à violência podem ser tomadas rapidamente
por qualquer município, sem
que a sociedade precise cobrar. Para a
presidente da CPMI, Jô Moraes, basta
ter bom senso. “Por exemplo, a companhia
de energia elétrica deveria se
preocupar em iluminar as ruas com
mais eficácia. Existem muitas lâmpadas
queimadas ou falta de iluminação pública
em muitos lugares onde mulheres precisam
circular após deixarem o trabalho,
escola, etc. Da mesma forma, os ônibus
devem ter liberação para que passageiras
possam descer mais próximo do
seu destino, após as 22 horas. As prefeituras
devem fazer frequentemente
as capinas nas ruas e lotes vagos, cobrando
do proprietário para acabar
com a falta de visibilidade, principalmente
em locais ermos. Devem pensar
em ações que ajudem as comunidades
a terem uma rede de informação. A
sociedade não pode fingir que não vê e
que não tem nada a ver com a violência
contra a mulher. Esse distanciamento
ajuda na banalização do crime”, afirma.
Na opinião da parlamentar, além
de todas essas medidas é necessária
uma mudança cultural. “A Lei Maria
da Penha pegou. Todos a conhecem e
falam dela, até as crianças sabem do
que se trata, mas temos dedicado mais
tempo a tentar acabar com a impunidade
do que prevenir. A política de prevenção
ainda é limitada. Precisamos incorporar
um debate cultural para a valorização
da mulher, para o fim de sentimento
masculino de que a mulher é sua propriedade.
Todas precisam fazer sua
parte, a escola, os meios de comunicação
que tanto desvalorizam a mulher,
principalmente nos comerciais que a
vendem como objeto, os compositores
musicais, os movimentos sociais, os
sindicatos, as igrejas e todos os instrumentos
de formação. Tudo e todos
precisam pensar no que fazem, no
que dizem, na ideia que reforçam e
propagam. Precisamos sempre valorizar
a mulher como cidadã, como sujeito
de direito e não só de deveres. Se você
não buscar mudança cultural alimentada
por toda a cadeia de produção de
ideias, você não pode realizar prevenção”,
finaliza.ø
SERVIÇO:
Central de Atendimento à Mulher - Ligue 180
- Relatório da CPMI: spm.gov.br/publicacoes-teste/publicacoes/relatorio-final
- Secretaria de Política para Mulheres - www.spm.gov.br/
http://mapadaviolencia.org.br/
http://www.compromissoeatitude.org.br/home/pagina-inicial/
Revista Elas por Elas - março 2014 51
VIOLÊNCIA | por Nanci Alves
Machismo: doença cultural
que precisa ser curada
A prevenção da violência passa pela compreensão
sobre as causas estruturais da dominação de gênero
Mudar a cultura machista do Brasil
é o maior desafio para se combater a
violência. É o que afirma a pesquisadora
do Departamento de Ciência Política
da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG) e coordenadora do Nepem
(Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a
Mulher), Marlise Matos. Segundo ela,
é importante ter em mente as causas
estruturais da violência para um trabalho
eficaz de prevenção. “Sem essa postura,
vamos continuar com a sensação de
enxugar gelo, pois a violência cresce a
cada dia”.
Na avaliação da pesquisadora, o
Brasil está sempre nos primeiros lugares
do ranking de qualquer indicador de
violência (crimes com arma de fogo,
no trânsito, violência contra mulheres,
etc) porque traz em sua história muita
violação de direitos e sua institucionalização.
“O quadro perverso de desigualdade
social é antigo, porque a exploração
econômica vem desde a colonização,
também violenta. Na nossa
história, foram muitos anos de forças
autoritárias no poder e poucos e recentes
anos de forças democráticas. Só hoje,
podemos falar publicamente, por
exemplo, que o Estado erra, que a Justiça
é falha”, afirma.
De acordo com Marlise Matos, tudo
isso reflete na questão de gênero, pois
a hegemonia sempre esteve com uma
pequena elite, composta por homens.
“As conquistas femininas são todas recentes:
o direito a estudar, trabalhar
fora de casa, votar, ser militar, ser candidata
a algum cargo político, etc. Pela
primeira vez elegemos uma mulher
para presidente do país. E ainda são
poucas as mulheres na vida política.
Na Câmara dos Deputados, 98% são
homens e, em geral, brancos, escolarizados,
profissionais liberais, latifundiários.
O eixo de dominação está nessa forma
de representação. Manter isso é ter as
mulheres sob o domínio dos homens”,
afirma Marlise Matos.
Portanto, a dominação de gênero
tem causas estruturais. “Hoje 60% das
que se formam no ensino superior são
mulheres. Saíram da vida privada, a
casa, e foram para o mundo público,
que historicamente é masculino, ocupando,
aos poucos, as escolas, o mercado
de trabalho, as várias instâncias de poder.
Dessa forma, a mulher desequilibrou o
núcleo estrutural que organizou a sociedade.
Ela foi contra o que era natural,
foi para o público, mas o inverso não
aconteceu. O homem não foi para o espaço
privado. Em geral, não aceita fazer
as atividades para o funcionamento da
casa, gerando um mal estar que tem
sido recoberto com mais violência. E,
assim, quando a mulher sai do privado
novamente, tornando pública a expressão
da violência que vive, rompe a
última das fronteiras. Em geral, é aí que
o companheiro a mata”, ressalta.
Mas o fato de que a mulher se escolarizou
e que tem ocupado o mercado
de trabalho não significa que tomou
total consciência do lugar de subordinação.
O modelo de poder é masculino,
patriarcal. “Muitas vezes, a mulher, no
lugar de poder, repete o que aprendeu,
isso está arraigado. Ela até acredita,
pois a sociedade a faz pensar assim,
que precisa ser igual ao homem para
não ser atropelada”, acrescenta a pesquisadora.
“
A violência se
instala quando a
mulher não fala o
primeiro ‘não’
A postura machista da mulher, que
faz com que se sinta responsável e culpada
por tudo, é mais visível quando é
vítima da violência. Nessa hora, ela
tem dificuldade, inclusive, em denunciar
o homem que a agrediu. De acordo
com a médica coordenadora do Programa
de Saúde da Mulher da Faculdade
de Medicina da Universidade de São
Paulo, Ana Flávia D’Oliveira, ao participar
do Fórum Fale Sem Medo (ocorrido
em novembro de 2013, em São
Paulo), a mulher, muitas vezes, não denuncia
seu companheiro não só pelas
suas ameaças, mas “porque tem vergonha
do que o outro vai pensar sobre
ela; ou até mesmo porque acredita que
seu marido a está educando ou que
tem este direito, já que culturalmente o
homem é quem sabe, quem faz. Essa
mulher sofre, ainda mais, com a cobrança
de todos”. Para a médica, é
preciso desestigmatizar esse problema
e mostrar como ele é comum, em todas
as classes sociais. “E, acima de tudo,
reforçar que vergonha é bater, é cometer
violência. Isso, com certeza, ajudaria a
diminuir o sentimento ‘de vergonha’
vivido por essas mulheres. A sociedade
as culpa tanto que a cultura é a seguinte:
se é estuprada, morre de vergonha, e
muitas vezes, sofre em silêncio. Mas se
é sequestro relâmpago, não existe vergonha,
a denúncia é feita na hora. Precisamos,
urgente, mudar a percepção
com relação à violência de gênero”,
afirma Ana Flávia.
Sociedade perversa
No processo de desconstrução de
ideias e comportamentos que reforçam
a violência, é preciso eliminar também a
imagem de que a violência aparece de
uma hora para outra. Para a coordenadora
do Nepem, Marlise Matos, ninguém começa
dando um tiro. “Com todo esse
viés cultural, a violência se instala quando
a mulher não fala o primeiro ‘não’,
diante de pequenos atos como ciúme. A
Revista Elas por Elas - março 2014 53
Bruno Carvalho
sociedade diz que ciúme é amor, e a
jovem, muitas vezes animada pelas
amigas, é levada a achar bonito o namorado
ciumento e não percebe que isso é,
na verdade, a tentativa de dominar o seu
corpo, a sua vida. O ciclo vai aumentando.
Começa com uma coisinha à toa como
‘não use esta roupa ou não saia com
esta pessoa’, e depois vêm as proibições,
gritos, tapas, etc. E a mulher ainda escuta
dele e de toda a sociedade: ‘quem mandou
você fazer isso? Você sabia que ele não
queria’. O ciúme é resultante de uma
cultura autoritária que precisa ser identificado
logo no início como a centelha
que vai incendiar lá na frente. A mulher
precisa se colocar neste momento, logo
na primeira manifestação, e dizer: você
não pode controlar meu andar no
mundo”, reforça Marlise Matos (foto).
Mudar padrão de comportamento
social é muito difícil. E todos precisam
fazer sua parte nesse processo de transformação.
Assim, a escola, enquanto
segunda instância de socialização, tem
papel fundamental. A pesquisadora
alerta que a escola e cada educador
não podem se furtar ao debate de temáticas
como gênero, sexualidade,
questão racial: “é preciso buscar qualificação
nesses temas. Hoje temos oportunidades
gratuitas e à distância como
a Rede de Educação para a Diversidade
do Ministério da Educação com cursos
à distância, gratuitos. O professor que
nunca busca informação e apoio para
ajudar seus alunos na reflexão crítica
está ajudando a manter esse ciclo perverso
de dominação de gênero”.
Na avaliação de Marlise Matos, precisamos
acabar com estereótipos e desmistificar
a ideia de que meninos podem,
e meninas não. Essas ideias vão sendo
repetidas, inculturadas por todos. “É
comum ouvirmos piadas e frases que
reforçam essa cultura como, por
exemplo, quando uma mulher está grávida
de menina e um amigo ou parente
fala para o pai da criança: ‘ah, agora,
você passa de consumidor para fornecedor’!
São mensagens machistas de
desvalorização do sexo feminino e que
reforçam o ciclo de violência”, afirma.
Da mesma forma, a violência não é
vista, por exemplo, quando a sociedade
erotiza o corpo feminino. Desde criança,
a menina aprende tirar fotos sensuais,
usar maquiagem excessiva para as
festas, usar roupas justas e coladas. Se
ela não faz, está fora do contexto. Homens
e mulheres são socializados nesta
cultura reducionista, de banalização do
corpo. Para Marlise Matos, “o corpo
erotizado, permanentemente visível, é
também uma forma de manter a mulher
no lugar de subordinação, de objeto.“A
cultura estimula a mulher a mostrar, fazendo-a
se sentir valorizada assim por
meio da música, do carnaval, do BBB,
da Globeleza…. É a cultura do estupro.
A sociedade, o tempo todo, estimula
que a mulher use seu corpo e depois a
responsabiliza quando é vítima de violência:
– mas ela só andava mostrando
o corpo! É um paradoxo. Vamos ter
que conviver com isso por algum tempo
até que todos se esforcem para a mudança
cultural e um dos caminhos,
acredito, é termos mais mulheres no
exercício do poder”, diz.
A culpa é sempre dela
Até mesmo quando o assunto é criticar
o machismo, a mulher fica com a
responsabilidade, pois a frase mais
comum é: “Quem educa o homem é a
mulher, então ela forma o machista”.
Culpar a mulher por tudo é também
um ato de violência. Para a Promotora
de Justiça do Ministério Público do Estado
de São Paulo e Coordenadora do
Núcleo de Combate à Violência Doméstica
e Familiar contra a Mulher -
Grande São Paulo II, Maria Gabriela
Prado Manssur, mudar essa mentalidade
54
O ator Cauã Reimond participou de campanha contra a violência doméstica.
passa pela educação, mas também
pela Justiça. “É necessário que haja
uma punição severa e uma lei que funcione,
para que se mude uma cultura,
além do trabalho de prevenção constante,
com campanhas educativas nas
diversas mídias. Por exemplo, antes as
pessoas fumavam em restaurantes,
boates, em shoppings. Essa cultura foi
mudada, pois além de uma forte campanha
sobre os riscos do fumante passivo,
houve a previsão de multa ao estabelecimento
e a quem burla a regra.
Da mesma forma, hoje em dia, diminuiu
o número de motoristas que dirigem
após uso de bebida alcoólica. Tudo se
deve ao fato da ação preventiva e repressiva
à embriaguez no volante”, contextualiza
Maria Gabriela.
A promotora considera que, na área
da Justiça, há muito que fazer, mas já
podemos considerar vários avanços.
“Muitas pessoas criticam o papel da
Justiça, mas não enxergam todos os
esforços e conquistas ao longo desses
quase oito anos da Lei Maria da Penha.
Se por um lado há o aumento de
crimes, por outro, há o aumento
também do interesse das cúpulas dos
poderes em fomentar a rede protetiva
dos direitos da mulher como um todo”,
afirma. No entanto, a promotora concorda
que falta credibilidade na Justiça
e diz que “a sociedade quer ver que os
crimes são mesmo punidos, que as mulheres
são respeitadas e que nossa vida
vale muito mais que uma cesta básica.
Na verdade, falta dar credibilidade à
voz da mulher. Quando alguém vai à
delegacia e fala que o carro foi furtado,
todo mundo acredita e ninguém fica
pedindo documento, prova, etc...
Quando uma mulher vai à Delegacia e
diz que está sendo ameaçada, geralmente
o processo é arquivado ou sequer
se instaura inquérito policial porque
não tem testemunha da ameaça. E a
palavra da vítima, onde fica? Por que
as pessoas sempre acham que as mulheres
querem prejudicar os homens
quando fazem uma denúncia? O índice
de denunciação caluniosa e falsa comunicação
de crime é muito baixo. A
mulher precisa ser ouvida com imparcialidade
e atenção”, afirma.
Maria Gabriela chama a atenção
para o papel da família e da escola.
“Crianças e adolescentes estão em fase
de formação de caráter, de valores e de
dignidade. Deve-se ensinar aos meninos
a respeitarem as meninas, a dividir as
tarefas de casa, a terem os mesmos direitos
e deveres. Isso quem ensina são
os pais, irmãos, tios, avós e educadores”,
diz a promotora ao contar um caso que
atendeu dias antes desta entrevista: “consegui
a internação de um adolescente
que havia agredido fisicamente a mãe,
além de ameaçá-la de morte. Atendi a
mãe aqui na Promotoria de Justiça,
toda machucada. Ao perguntar para o
adolescente porque ele fez aquilo, ele
Internet
respondeu, com a maior naturalidade,
que ela não fazia papel de mãe, não
limpava a casa e não fazia comida para
ele, que era um lixo. Essa é a cultura
machista de uma adolescente de 16
anos, que assistiu ao pai agredindo a
mãe durante sua infância e que acha
que ser mãe é fazer comida e limpar a
casa. A violência se perpetua. É preciso
agir antes que ela se transmita de geração
para geração”.
Para a promotora, a partir do momento
que os homens que respeitam
as mulheres divulgarem essa ‘nova cultura’,
outros homens começarão a se
inspirar e a repetir esse comportamento.
“A causa passa a ser de todos e todas
e não só uma ‘causa feminista’. Esses
homens também são pais, filhos, irmãos
e se preocupam com o respeito à integridade
física, moral e sexual das mulheres
de suas famílias. Para mim, ser
um homem valente é ter a coragem de
Revista Elas por Elas - março 2014 55
abraçar essa causa. Isso faz toda a diferença.
Gosto da campanha ‘Homem
de verdade não bate em mulher, encabeçada
pelo ator Cauã Reimond. Vários
homens seguiram o exemplo e postaram
fotos no facebook e no instagram com
a mesma frase”.
Na sua avaliação, o grande desafio
da Justiça é passar confiança para a vítima,
para que ela se sinta acolhida e
não desista de punir o autor da sua
agressão. “Ainda que ela decida continuar
a viver com ele sob o mesmo
teto. Quanto a isso, nós não temos
como impedir. Mas quanto à aplicação
da lei, nós podemos e devemos agir
com o maior rigor possível e todos
devem fazer sua parte. Não pode haver
furo da rede. Se a mulher consegue
levar os fatos à autoridade ou a um
centro de referência da mulher, ou a
um posto de saúde, mas o seu caso
não vai adiante porque um dos atores
envolvidos não está preparado para o
recebimento dessa denúncia, ela vai
perder a credibilidade na Justiça e ficar
com a sensação de que a impunidade
impera. Este sentimento de frustração
pode levá-la a pensar que não vale a
pena correr o risco em denunciar. Ou
seja, é preciso que haja um trabalho
concatenado e contínuo entre os órgãos
da Justiça envolvidos na prevenção,
proteção e repressão da violência contra
a mulher”, avalia.
A promotora acrescenta ainda que
todos e todas que se predispõem a trabalhar
com a Lei Maria da Penha precisam
ter a sensibilidade em atender e
entender a vítima sem julgá-la, sabendo
que cada uma delas tem a sua história,
seu momento, seu tempo. “É preciso
respeitar cada mulher, independente da
sua profissão, raça, cor, religião, cultura,
roupa que está usando, idade. É preciso
empoderar essa mulher e deixá-la escolher
o seu caminho, colocando à sua disposição
todos os direitos previstos na Constituição.
Essa é a verdadeira igualdade:
respeitá-la e protegê-la como ela é”,
afirma Maria Gabriela (foto), ao ressaltar
que é preciso estar preparada técnica e
emocionalmente para trabalhar com essa
Lei, porque dá muito trabalho. “Vai
muito além de um processo, de uma
condenação, de uma pena a ser aplicada.
Mas é dos trabalhos mais gratificantes,
porque você, de fato, salva não só uma
vida, como uma família inteira e, consequentemente,
uma sociedade. É preciso
amar o que faz e, acima de tudo, acreditar
na Justiça. Eu acredito”, diz.
Dudu de Oliveira
Recuperação
passa por
autoconhecimento
Se o comportamento violento de
alguns homens é reflexo de uma
construção social baseada em valores
machistas, é possível desconstruir
esse comportamento por meio de
um aprofundamento e de uma reflexão
sobre o que é ser homem na sociedade.
Esse é o caminho proposto
pelo Grupo Reflexivo de Homens
Autores de Violência Contra a Mulher
do Coletivo Feminino, de São Paulo,
que atende homens indiciados pela
Justiça.
De acordo com o coordenador
do Programa de Responsabilização
para Homens Autores de Violência
Contra Mulheres, do Coletivo Feminista
Sexualidade e Saúde, Sérgio
Flávio Barbosa (foto à direita), o que
estimula a mudança de comportamento
é a participação de outros homens
que passam ou já passaram
pelo grupo. “Ao se sentar na roda de
conversa com outros homens que
estão em estágio avançado de discussão,
os novatos começam perceber
que há uma solução. Nosso modelo
de atuação está baseado na responsabilização
dos atos praticados. Com
isso, os participantes são obrigados
a tomar uma decisão, sobre si, sobre
seu relacionamento e sobre sua visão
de mundo”, explica.
O trabalho com homens autores
de atos violentos é realizado pelo
Coletivo mesmo antes da Lei Maria
da Penha, quando os homens que
cometiam violência contra a mulher
eram obrigados a pagar cesta básica,
multa, fazer trabalho comunitário ou
serviço voluntário. “Era aplicada a
Lei 9.099/95 para esses casos como
uma violência menor. Entendíamos
56
que nenhuma dessas formas educava e
conscientizava o homem sobre sua atitude
contra a mulher. Ao começar
aplicar nossa metodologia para homens
autores de violência, o índice de reincidência
começou a diminuir, porque o
trabalho que é realizado é baseado nas
teorias feministas e principalmente nas
relações de gênero”, afirma.
Ajuda coletiva
Além da mudança dos caminhos da
educação como um primeiro passo preventivo,
Sérgio defende a aplicação da
Lei Maria da Penha de forma integral,
possibilitando que esse homem seja encaminhado
para um Centro de Responsabilização.
“O homem que busca
o Coletivo, por exemplo, para compreender
suas razões, começa a mudar
muito mais rapidamente. Não vai jogar
a culpa no baixo salário, nas horas trabalhadas,
no trânsito e muito menos
na companheira. Ele vai conseguir assumir
que a sua vida, enquanto homem,
foi a projeção daquilo que ele não é. O
melhor trabalho e o seu resultado é
quando o homem busca ajuda, aceita
ser ajudado e possibilita entrar em contato
com os seus sentimentos. Mesmo
aquele homem que não cometeu ato
violento, mas que se sente angustiado
pela possibilidade de cometer uma violência
contra a sua companheira, deve
procurar rapidamente por ajuda”.
Foi o que aconteceu com Ivo (nome
fictício). Após denúncia de sua esposa,
foi aconselhado pela juíza a frequentar
o Programa de Responsabilização para
Homens Autores de Violência Contra
Mulheres como forma de ajuda. “No
meu caso, era opcional, mas preferi
participar dos 16 encontros propostos.
Porém, gostei tanto que já vou participar
do 19º encontro. Meu problema aconteceu
por causa do machismo, agravado
pelo uso de bebida alcoólica. Nossa
convivência é difícil, somos os dois machistas,
gerando uma violência mútua,
porém sempre tinha sido apenas verbal.
Quando exagerei, ela me denunciou.
Saí de casa, mas retornei dois meses
depois, já participando deste grupo de
ajuda. Pra mim, tem sido proveitoso,
pois aprendi a me policiar e a pensar
diferente. Hoje, já sei que o melhor caminho
quando a relação fica pesada é
sair fora, pois, muitas vezes, evitar a
briga é difícil. Nada é mais precioso do
que a liberdade. Muitas vezes, a gente
fica no casamento por causa dos filhos
e até das coisas materiais. Mas tudo
isso perde o sentido, quando chega
numa situação de violência. No grupo,
a gente vê que tem muita gente nesta
mesma situação. Lá, a gente fala, escuta
e tudo isso ajuda na nossa reflexão e
crescimento pessoal”, conta.
Para Ivo, todas as pessoas deveriam
fazer um bom tempo de psicoterapia
antes de se casar. “Isso ajudaria no autoconhecimento
para saber se é isso
mesmo e se é a pessoa certa, porque
quando a gente casa não imagina que
vai viver isso. Ninguém casa para sair
brigando”, afirma Ivo, ao acrescentar
que “todo homem, ou mulher, deve
buscar ajuda de um grupo como o do
Coletivo Feminino, quando sentir que
corre o risco de ser violento ou violenta
em alguma situação”.ø
Sérgio Barbosa, coordenador do Programa de Responsabilização para Homens Autores
de Violência Contra Mulheres
Argos foto
Revista Elas por Elas - março 2014 57
Marcelo Camargo/ABr
VIOLÊNCIA | por Nanci Alves
Estupro: problema global
Crime invisível que condena as mulheres ao silêncio
Quantas mulheres você conhece? E
quantas você sabe que sofreram violência
sexual? Talvez você não conheça nenhuma,
pois é um crime que ninguém
fala sobre ele, nem para a melhor amiga.
Crime invisível! Porém, os casos de estupro
são maiores do que o de homicídio
doloso (com intenção de matar), conforme
os resultados dos estudos do 7º
Anuário Brasileiro de Segurança Pública,
do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
(FBSP), publicado em 2013. Os estudos
registram 50,6 mil casos de estupro em
todo o país, enquanto os de homicídios
dolosos chegaram a 47,1 mil mortes. O
número de estupros no Brasil subiu
18,17% em 2012, na comparação com
o ano anterior. O que significa dizer que
foi de 22, 1 estupros por grupo de 100
mil habitantes em 2011, para 26,1 em
2012.
Ao avaliar essa pesquisa, o membro
do Fórum Brasileiro de Segurança Pública,
professor Robson Sávio, alerta
para a necessidade de considerarmos
duas variáveis. A primeira é que o
estudo foi baseado na nova legislação,
a Lei Federal 12.015, de 2009, que
altera a conceituação de “estupro”,
passando a incluir, além da conjunção
carnal, os “atos libidinosos” e “atentados
violentos ao pudor”. Isso, provavelmente,
aumenta a quantidade de registros.
A segunda é que há, cada vez
mais, políticas públicas com mecanismos
que garantem a integridade da mulher
que denuncia o estupro: novos canais
de denúncia, delegacias especializadas,
etc. Portanto, melhores mecanismos
que auxiliam no aperfeiçoamento da
coleta de dados. “Infelizmente, os casos
reais são muito maiores que aqueles
noticiados às agências estatais, principalmente
às polícias – dado que outras
agências públicas, como a saúde pública,
por exemplo, têm obrigação de notificação
do crime”, afirma.
Na realidade, por medo e pelo estigma,
milhares de mulheres não denunciam
o estupro. Muitas vezes são
abusadas durante anos, mas preferem
o sofrimento solitário a se exporem
publicamente. De acordo com Robson
Sávio, vivemos uma “certa hipocrisia
social que revitima a mulher. Além de
sofrer a violência, a mulher é quase
condenada ao silêncio”.
Nossa cultura retrata uma sociedade
machista e patriarcal, que ainda vê a
mulher como mercadoria, e não dona
de seu corpo e da sua sexualidade.
Essa mentalidade precisa mudar para
atingirmos um patamar de igualdade e
respeito. Na avaliação de Robson Sávio,
é inadmissível que o Estado não aprimore
os mecanismos de prevenção e
punição dos autores da violência contra
a mulher. “Lembrando que em relação
aos autores do ato violento há que se
pensar em medidas para além da simples
detenção, haja vista que, muitas vezes,
foram também vítimas de abusos sexuais,
principalmente na infância. A vingança
como punição nesse e noutros casos
não resolve o problema. Trata-se, portanto,
de um enfrentamento complexo
e difícil, porque é perpassado por outros
elementos, como por exemplo a rotulação
e estigmatização das vítimas pela
sociedade”, ressalta.
Problema mundial
Notícias de estupros coletivos na
Índia chocam o mundo inteiro, mas,
na realidade, a violência sexual é um
problema global. De acordo com estudo
feito em 56 países e publicado em fevereiro
de 2014, na revista The
Lancet, uma em cada 14 mulheres já
foi, pelo menos uma vez, vítima de violência
sexual por parte de alguém que
não o seu parceiro.
Matéria divulgada na Agência Brasil
mostra que a realidade varia de país
para país. As mais altas taxas de violência
sexual estão no Centro da África
Subsaariana (21% na República Democrática
do Congo), no Sul da mesma
região (17,4% na Namíbia, África do
Sul e no Zimbabue), e na Oceania
(16,4% na Nova Zelândia e Austrália).
Os países do Norte da África e Médio
Oriente (4,5% na Turquia) e no Sul da
Ásia (3,3% na Índia e em Bangladesh)
registraram as taxas mais baixas. No
Brasil, a porcentagem encontrada foi
de 7,6%. Já no Uruguai e na Argentina,
o percentual ficou em 5,8%. O Peru registrou
a taxa de 15,3%.
Na Europa, os países do Leste (6,9%
na Lituânia, Ucrânia e no Azerbaijão)
têm percentual muito mais baixo do
que os do Centro (10,7% na República
Tcheca, Polônia, Sérvia, em Montenegro
e Kosovo) e do que os do Ocidente
(11,5% na Suíça, Espanha, Suécia, no
Reino Unido, na Dinamarca, Finlândia
e Alemanha).
Já a pesquisa da ONU, realizada
em seis países asiáticos com 10 mil
homens, indica que 24% deles admitem
ter praticado o crime. Durante quatro
anos, agentes da ONU visitaram lares
de áreas urbanas e rurais de Bangladesh,
Camboja, China, Indonésia, Papua-
Nova Guiné e Sri Lanka. A novidade
desse estudo é que ele se baseia em
conversas individuais com homens, e
não com mulheres vítimas de estupros,
tanto em zonas urbanas como rurais.
A pergunta não era, especificamente,
se haviam praticado estupro e sim se já
haviam forçado uma mulher que não
era a esposa ou namorada a ter relações
sexuais. O resultado mostra que 11%
dos entrevistados relataram ter cometido
o crime ao menos uma vez na vida,
sendo que a taxa subiu para 24%
quando foram consideradas a esposa,
a noiva ou a namorada. Os pesquisadores
constaram também que homens
com histórico de vitimização, como
abuso sexual na infância ou coagidos
sexualmente, tinham mais probabilidade
de cometer o crime.
Uma das pesquisadoras que participaram
do estudo, Emma Fulu, disse,
Revista Elas por Elas - março 2014 59
durante a divulgação dos resultados, que
esse problema é “de interesse universal
porque metade da população do mundo
vive nas regiões estudadas, e, embora
os países sejam culturalmente diversos,
não teve diferenciações significativas
quanto ao abuso sexual”. Segundo
Emma, os fatores associados à violência
podem ser modificados, como a banalização
da prostituição ou o fato de os
homens terem sido testemunhas, quando
crianças, de atos de violência contra
suas mães. Sobre o crime cometido
dentro de casa, ela reforça que é preciso
repensar a estrutura da família.
Marcas profundas
Os dados assustam, mas o pior é
saber as graves sequelas que um ato
criminoso como este deixa em suas vítimas,
seja o estuprador conhecido ou
não. De acordo com a psicóloga e
coordenadora do centro de referência
da mulher da Prefeitura de São Paulo –
Casa Eliane de Grammont –, Branca
Paperetti, quando falamos em estupro,
pensamos no ato violento que acontece
na rua, por desconhecido. “Esse é
muito impactante, e costuma deixar
sequelas e sintomas como estresse póstraumático,
com episódios de revivescência,
lembranças recorrentes, medo
de sair sozinha, terror noturno, pesadelos,
etc. Nesse tipo de ocorrência
não é raro também haver uma espécie
de julgamento e responsabilização da
mulher, com insinuações de que ela estava
no lugar errado, e vestida de forma
inapropriada”, afirma a psicóloga ao
reforçar que não podemos nos esquecer
do estupro que ocorre nas relações de
confiança, nos relacionamentos afetivos,
com a prática sexual não consentida e
não desejada por uma das partes, e do
estupro na infância e adolescência, praticado
por alguém conhecido, ou da família.
“Essas formas de violação costumam
deixar marcas profundas de insegurança,
de medo de relacionamentos,
Estupro no Brasil
Número total de registros
2011
42,4 mil
= 5 a cada hora
aumento de
18,17%
2012
50,6 mil
= 6 a cada hora
Fonte: 7º Anuário Brasileiro
de Segurança Pública
60
de problemas com a autoimagem e autoestima,
depressão, sentimentos de
culpa. Geralmente, quem passa por
esse tipo de experiência, tem uma necessidade
de cuidados mais em longo
prazo, para sua superação”, afirma.
Além de sofrer a violência em si, a
mulher ainda tem que lidar com as críticas,
julgamentos, com a justiça, e, o
pior, os traumas que deixam marcas
profundas por toda vida, principalmente
se a vítima não buscar ajuda de profissionais
capacitados. Segundo a psicóloga,
como o assunto é delicado, a mulher
nem sempre tem coragem para
falar do que sofreu, assim como denunciar.
As mulheres estupradas por
desconhecidos têm maior facilidade de
denunciar do que as que sofrem violência
sexual por parte de familiares, cônjuges
ou conhecidos”, afirma. Porém, denunciar
esse homem pode ajudar na
recuperação psicológica da vítima. “Isso
vai depender das circunstâncias em que
se deu o estupro. Em geral, se ele for
punido, pode haver a sensação de
justiça e isso pode ajudar na sua recuperação”,
completa a psicóloga.
Denunciar é importante
Por mais difícil e sofrido que seja
procurar as autoridades e fazer a denúncia
de um estupro, é necessário que a vítima
tome essa decisão imediatamente após
o ato. É o que orienta a delegada-chefe
“
A mulher sempre
deve denunciar para
que seja possível acabar
com a impunidade.
da Divisão Especializada de Atendimento
à Mulher, ao Idoso e à Pessoa com Deficiência,
em Belo Horizonte, Margaret
de Freitas Assis Rocha, ao explicar que
além de lavrar a ocorrência, a polícia
encaminha a mulher para o exame de
corpo de delito que vai colher provas da
violência. “Se ela tomar banho ou demorar
muito para procurar a polícia,
vai dificultar na investigação. A vítima é
também encaminhada para serviços de
saúde como hospitais e atendimento
psicológico. Além de cuidados básicos,
esta mulher precisa tomar, com urgência,
medicamentos para combater doenças
sexualmente transmissíveis. Porém,
mesmo que passe algum tempo, a mulher
sempre deve denunciar para que seja
possível acabar com a impunidade”, explica.
E, no caso da violência ter sido cometida
por algum homem com quem a
vítima tenha uma relação de afeto ou
de convivência, com a denúncia, o
crime pode ser enquadrado na Lei
Maria da Penha, que prevê uma série
de direitos como medida protetiva de
urgência e abrigamento. A mulher pode
ainda solicitar pensão alimentícia e a
guarda dos filhos, além de benefícios
junto ao INSS, caso os danos físicos ou
psicológicos gerados pela violência a
impeçam de trabalhar.
A delegada Margaret de Freitas
orienta que a denúncia de abuso sexual
deve ser feita na Delegacia de Mulheres,
“ mas em locais onde isso não é possível,
a vítima deve acionar a Polícia Militar,
que está bem preparada para fazer
todos os encaminhamentos necessários”.
De acordo com Margaret de Freitas
Rocha, tem sido preocupante a grande
incidência de abuso sexual cometido
por jovens, com uso do golpe chamado
“Boa noite, Cinderela”, quando se usam
drogas para dopar a vítima. “É importante
alertar as adolescentes e jovens
que, em baladas ou festas, nunca devem
se afastar de seus copos, de sua bebida,
mesmo que seja água. Muitos homens
mal intencionados se aproveitam da
inocência ou distração e fazem esse
crime. Dopam as jovens e depois
abusam sexualmente. Quando elas
acordam, não sabem o que aconteceu,
quem foi ou se foi mais de um homem.
É triste ver o sofrimento dessas jovens.
Por isso, todas precisam se cuidar mais
e não confiar que todo mundo é do
bem. Tem muita gente disposta a fazer
mal para o outro”, alerta.
O abuso sexual de mulheres alcoolizadas
foi o tema de um trabalho acadêmico
da universitária Thays Gonçalves,
de 19 anos, em São Paulo, que teve
um título inusitado: “Cu de bêbado tem
dono sim”. Apresentado durante o IV
Congresso Jurídico-Científico da Faculdade
de Direito de São Bernardo do
Campo, em São Paulo, o tema ganhou
repercussão na mídia. Segundo a universitária,
a intenção era causar um
choque inicial para chamar atenção
sobre o tema, descrito no subtítulo “estupro
de vulnerável em caso de embriaguez
feminina”.
Durante sua apresentação, Thays
contou um caso que aconteceu em
Santa Catarina, em que uma moça foi
chamada por conhecidos para beber e
fumar num ginásio esportivo. “Após se
recusar a beijar um dos caras, a menina
continuou bebendo, até ficar embriagada.
Ela foi estuprada pelo rapaz, se
lembra de tudo, mas não conseguia se
mexer ou pedir para parar. É agonizante.
Eu pretendo prolongar o tema para
minha monografia do final do curso,
na qual quero entrevistar moças que
sofreram esse tipo de estupro e se procuraram
ajuda ou não. Muitas mulheres
sentem vergonha de pedir auxílio quando
sofrem”, declarou.ø
Serviço:
- Casa Eliane de Grammont (SP) :
telefone (11) 55499339
- Disque 180
Revista Elas por Elas - março 2014 61
EDUCAÇÃO | por Débora Junqueira | fotos: Mark Florest
Creche:
direito das crianças
e das mães
Universalizar a educação infantil é crucial
para a superação dos conflitos de gênero
no mercado de trabalho
A catadora de materiais recicláveis
Sílvia Paixão, mãe de seis filhos, sabe
bem o que representa para uma mulher
não ter com quem deixar os filhos para
poder trabalhar. Filha de catadora, ela
define a atividade como uma tradição
da família. Sua filha mais velha, que
aos 23 anos é mãe de cinco crianças,
segue o mesmo destino.
O filho caçula de Sílvia, de seis
anos, concluiu a etapa infantil numa
Umei (Unidade Municipal de Educação
Infantil da Prefeitura de Belo Horizonte),
mas os filhos mais velhos foram criados
dentro do galpão da cooperativa de catadores
de papel Asmare, na capital.
“Eu preparava a mamadeira
no meio da rua e dava o
leite para as crianças, sentada
ali mesmo na calçada.
Sempre levava meus filhos
comigo, pois não tinha com
quem deixá-los”, conta Sílvia.
Por estar numa situação de vulnerabilidade
social, ela teve prioridade
para conseguir vaga para os filhos mais
novos em creches municipais. “Sempre
falo que para arrumar uma vaga nas
creches, em Belo Horizonte, a mulher
tem que se inscrever grávida, mas tive
a sorte de ter orientação e pedi ajuda
no conselho tutelar para conseguir vaga
na Umei”, diz. Segundo ela, muitas
mães precisaram acionar a Justiça para
conseguir uma vaga na educação infantil
pública. “Hoje o meu filho mais novo
já está na escola, mas passei por muito
sofrimento para conciliar o trabalho e
o cuidado com as crianças. A gente
sabe que é importante que os filhos tenham
uma boa educação para, quem
sabe, encontrar um trabalho mais
digno”, conclui.
O Anuário de Mulheres Brasileiras,
publicado em 2011, revelou que a falta
de escolas infantis é a dificuldade mais
sentida pelas brasileiras para se manterem
em seus empregos. Sem dúvida, a falta
Revista Elas por Elas - março 2014 63
de creches prejudica a quantidade e a
qualidade da inserção das mães no mercado
de trabalho, porque a mulher ainda
é considerada como insubstituível no
papel de cuidadora e nas atividades domésticas.
Portanto, as mulheres que
têm obrigações no lar estão saindo para
o mercado de trabalho e dependem do
compartilhamento dessas atividades para
melhor conciliar trabalho e família. Esse
compartilhamento pode partir da própria
família, organizações assistenciais, instituições
particulares ou do estado, esse
responsável pela oferta de creches.
A mestranda em Estudos Populacionais
e Pesquisas Sociais (ENCE/IBGE),
Iara Azevedo Vitelli Viana, no artigo O
papel da creche na conciliação feminina
entre trabalho e família e relações
de gênero no mercado de
trabalho: horas trabalhadas na ocupação
principal (disponível na internet),
discute a conciliação entre trabalho remunerado
e responsabilidades familiares,
entendendo que a diferença
negativa para as mulheres nas horas
trabalhadas semanalmente poderia ser
revertida em trabalho produtivo caso
houvesse compartilhamento de atividades,
com impacto positivo nas condições
socioeconômicas das famílias.
Os resultados da sua pesquisa mostraram
que as mulheres possuem menor
participação no mercado de trabalho.
A taxa de atividade para elas é de
60,1%, enquanto que para os homens
é de 97,0%. As mulheres que não têm
acesso à creche/pré-escola possuem
“
Silvia
A falta de creches
prejudica a iserção
das mães no mercado
de trabalho.
e sua filha. Desafio para conciliar maternidade e trabalho.
64
uma participação ainda menor, de
52,9%. A taxa de desocupação segue
a mesma direção desfavorável às mulheres.
A diferença na taxa chega a
10,8% entre homens e mulheres sem
acesso à creche, sendo 7,4% entre
aqueles que têm acesso. Segundo a autora,
o trabalho pode ser determinado
pelo acesso a serviços de compartilhamento
do cuidado de filhos pequenos,
devendo as políticas de gênero no mercado
de trabalho considerá-los.
“A educação infantil tem importância
na determinação da possibilidade de
engajamento produtivo das mães, que
encontram dificuldade em conciliar trabalho
e família. Tem importância
também na diminuição das desigualdades
no mercado de trabalho em relação
aos homens, reproduzidas durante toda
a história passada. Desigualdades essas
que provêm, além da participação na
população economicamente ativa,
também dos rendimentos auferidos, do
tipo de inserção e do número de horas
trabalhadas, sempre desfavorecendo as
mulheres. Assim, a disponibilização
desse serviço de compartilhamento das
atividades familiares para as mães é
uma importante política para a superação
dos conflitos de gênero no mercado
de trabalho”, conclui no artigo.
Uma pesquisa da Secretaria de Assuntos
Estratégicos da Presidência da
República, divulgada em 2013, mostra
um impacto positivo no emprego e no
salário das mães que possuem filhos
em creches. Nesse caso, 50% trabalham
fora de casa. Entre as que têm crianças
fora da educação infantil, o índice é de
40%. A pesquisa, feita em conjunto
com o Banco Mundial e a Universidade
College London, acompanhou 1,5 mil
crianças cariocas de 4 e 5 anos: metade
conseguiu entrar em creches públicas
em 2007 e a outra metade, não.
Déficit de vagas na educação
infantil é desafio no país
A Secretaria Municipal de Educação
de Belo Horizonte (Smed) declara que
há um déficit de vagas em educação infantil
estimado em aproximadamente
17 mil crianças, conforme dados de
2013. Segundo a Smed, o déficit de
vagas nas creches é calculado com base
nos dados de demanda existente no
Sicei (Sistema de Cadastramento da
Educação Infantil), ou seja, se refere a
famílias que procuraram o atendimento
numa das instituições municipais de
Educação Infantil da Rede Própria e
não obtiveram a vaga e, como as
famílias podem inscrever as crianças
em quantas instituições quiserem, elas
podem estar inscritas em mais de uma
Umei/Escola, o que torna a estatística
relativa. Segundo o Sindicato dos Professores
da Rede Municipal de Belo
Horizonte (SindRede/BH), o número
de crianças de 0 a 6 anos fora da
escola é muito maior, conforme dados
de 2012, atingindo 160 mil crianças.
Segundo a Smed, o ano de 2013
encerrou-se com o atendimento na
Rede Própria em 74 Umeis (Unidades
Municipais de Educação Infantil), 13
Emeis (Escolas Municipais de Educação
Infantil), 26 Escolas de Ensino Fundamental
com turmas de Educação Infantil
e 193 creches conveniadas. Sendo que
foram atendidas 24.335 crianças na
Rede Própria e 23.129 crianças na
Rede Conveniada, totalizando 47.464
crianças.
Revista Elas por Elas - março 2014 65
Douglas Almeida, membro do Conselho
Tutelar de Belo Horizonte, informa
que, em 2013, sete mil solicitações de
matrículas ao órgão ficaram sem encaminhamento
por falta de vagas na rede
de creches do município. Segundo ele,
isso porque a maioria dos pais ainda
não procura o Conselho quando não
encontra vaga. “A quantidade de vagas
é irrisória diante da demanda”, afirma.
Se a creche não fornecer a vaga, a
orientação é que os pais ou responsáveis
pela criança se cadastrem em uma lista
de espera. Caso a creche demore muito
para providenciar a vaga, as Diretorias
Regionais de Ensino devem ser procuradas.
Os pais também podem procurar
a Defensoria Pública e o Ministério Público
ou o Conselho Tutelar mais próximo.
O Censo Democráfico 2010 mostra
que quase 80% das crianças brasileiras
não estão matriculadas em creches. Segundo
o IBGE, o número de crianças na
primeira infância matriculadas aumentou
de 9,4% para 23,6% nos últimos dez
anos. O contraponto é que o aumento
se intensifica no estrato social de maior
poder aquisitivo, sendo que nas classes
mais baixas apenas 12,2% das crianças
são atendidas. Apesar de o índice demográfico
do Brasil ter diminuído na
atualidade – 1,9 filho por mulher em
2010 – evidencia-se um aumento da demanda
por vagas em creches.
Conforme o Anuário da Educação
Básica 2013, publicado pela Editora
Moderna, no caso das creches, de
forma geral, só existem estimativas do
déficit de vagas, como no relatório do
Banco Mundial Educação Infantil: Programas
para a Geração Mais Importante
do Brasil. Segundo o estudo,
havia, em 2011, uma demanda não
atendida de cerca de 1,8 milhão de
vagas em creches em todo o país. O
Brasil já instituiu para 2016 a obrigatoriedade
de matrícula na pré-escola
de todas as crianças a partir dos quatro
80% das crianças
brasileiras não
estão matriculadas
em creches.
Crianças
matriculadas
2003
9,4%
2013
23,6%
12,2%
das classes
mais baixas
anos, mas ainda precisa adaptar a
oferta de vagas à demanda que surgirá
em decorrência desta medida.
Direito à educação
Universalizar o atendimento na educação
infantil é um desafio brasileiro
não só como uma política de gênero
para atender as mães que precisam
trabalhar, contribuindo, assim, para diminuir
as desigualdades entre homens
e mulheres no mercado de trabalho,
mas também como um direito constitucional
das crianças por educação.
O artigo 208 da Constituição Federal
garante às crianças de 0 a 5 anos o direito
à educação infantil, em creche e
pré-escola. Além disso, esse direito
também está assegurado no Estatuto
da Criança e do Adolescente (1990),
na Lei de Diretrizes e Bases da Educação
(LDB, de 1996) e no Plano Nacional
de Educação (PNE, de 2001).
Segundo especialistas, a criança que
não passa por essa etapa da educação
pode ter o desenvolvimento prejudicado
e ficar exposta a outros riscos, como
violência, trabalho infantil, abuso e exploração
sexual. Mais do que um local
para deixar as crianças enquanto as
mães trabalham, a educação infantil
tem um papel fundamental na formação
do indivíduo e reflete em uma melhora
significativa no aprendizado e socialização
da criança.
A professora Sônia Soares, que atua
na educação infantil pública de Belo Horizonte,
reforça o entendimento de que
a creche é um direito das crianças que
precisa ser garantido pelo estado. “A
defasagem para crianças de 0 a 2 anos
é um nó maior ainda. A universalização
desse direito das crianças e das mulheres
ainda está muito distante”, diz. Embora
não seja obrigatório matricular as crianças
de até 3 anos, a vaga nas creches é um
direito previsto na LDB, sendo dever
dos municípios, com ajuda dos estados,
garantir creches e pré-escolas públicas
para todas as crianças.
A luta pelo direito à creche é uma
luta popular que teve grande força no
final da década de 70, período de emergência
dos movimentos sociais urbanos,
como o contra a carestia, num cenário
em que as mulheres começaram a ingressar
com mais intensidade no mercado
de trabalho. Naquela época, a ausência
de políticas públicas voltadas
para o atendimento à criança de 0 a 6
anos no campo educacional, somada à
precária rede de assistência social, provocou
um considerável crescimento na
criação de novas creches e centros infantis
comunitários e filantrópicos.ø
66
Revista Elas por Elas - março 2014 67
Artistas
invisíveis
O pouco destaque para as mulheres nas artes plásticas
reflete o impacto do machismo na sociedade
ARTES | por Débora Junqueira
“As mulheres precisam estar
nuas para entrar no Metropolitan
Museum? Menos de 5% dos artistas
nas seções de arte moderna são
mulheres, mas 85% dos nus são
femininos”, diz um cartaz, de 1989,
assinado pelo Guerrilla Girls, grupo
criado na década de 80, em Nova
York, que reúne mulheres famosas
por usarem máscaras de gorila em
suas intervenções feministas e
nomes de artistas falecidas como
pseudônimos.
A provocação do Guerrilla Girls
é um símbolo do debate sobre a
presença das mulheres nas artes
plásticas, cuja falta de destaque
para as artistas reflete o preconceito
e o machismo da sociedade, como
mostra a própria história do feminino
na arte.
“Em 2011, mais de duas décadas
após o primeiro levantamento, o
coletivo Guerrilla Girls decidiu realizar
uma nova contagem das obras
do Metropolitan Museum. Deparou-se
com um dado surpreendente:
diminuíram tanto o número
de mulheres nas seções de arte
moderna e contemporânea (de 5%
para 4%) quanto o número de nus
femininos (de 85% para 76%)”,
destaca a reportagem da Revista
Bravo, Mulheres ainda são minoria
na arte? (maio/2013).
Na pesquisa de doutorado da
cientista social e professora da USP
Ana Paula Cavalcanti Simioni, de
2008, ela localizou, no Brasil, uma
cifra de mais de 212 artistas mulheres
que participaram, entre 1844 e 1922,
das exposições gerais (com a República,
denominadas Salões Nacionais
de Belas Artes), praticamente todas
elas ainda hoje desconhecidas. Na
sua tese Profissão artista: pintoras
e escultoras acadêmicas, a professora
destaca e analisa duas causas de obliteração
da trajetória das artistas
brasileiras. Primeiramente, o acesso
desigual à formação artística e, em
segundo lugar, o papel desempenhado
pelos críticos de arte. “A questão da
formação está atrelada à da crítica.
Ela foi significativa para excluir as
mulheres do grande gênero da pintura
histórica, que era considerado o mais
elevado pelo sistema acadêmico”,
afirma (leia a entrevista na página
71).
A sua constatação é de que,
historicamente, o trabalho feminino
foi muito sub-representado no
campo artístico, ainda que existam
exceções e que as mulheres artistas
existiram, mas não estão expostas
porque não foram reconhecidas.
Desigualdade de
gênero na arte
Em Paris, o Centro George
Pompidou possui uma coleção de
obras feitas por mulheres. A exposição
Elles: mulheres artistas esteve
no Brasil em 2013, com 20 trabalhos
de 65 artistas que representam
mais de 100 anos de arte feminina,
de 1907 a 2010.
A professora Samantha Simões
Braga, graduada em publicidade,
mestre em Literaturas de Língua
“
As mulheres artistas
não estão expostas
porque não foram
reconhecidas
Portuguesa e doutoranda em Literatura
Comparada, levou suas
turmas de alunos da PUC Minas
para ver a exposição. Na sua avaliação,
a exposição Elles foi claustrofóbica
e pesada, mas importante
para a reflexão sobre o espaço das
mulheres nos museus, que antes
eram vistas somente como musas
e não eram reconhecidas como
verdadeiras artistas.
“Alguns alunos relataram mal
estar com a exposição. As obras
tocam em pontos polêmicos como
o lugar de submissão em que as
mulheres foram colocadas na arte
e na sociedade. Apesar de tudo, a
mulher hoje ainda está em um lugar
periférico. A mulher artista passa
por mais dificuldades do que os
homens, pois em tudo ela precisa
provar sua capacidade. Há muito
machismo e preconceito. Os debates
sobre o feminismo estagnaram
como se a desigualdade de gênero
já estivesse resolvida, mas a gente
vê que não está”, opina Samantha.
Impactos de uma
história de preconceitos
Quando se questiona o fato de
não existirem artistas do sexo femini -
no equiparadas a Leonardo da Vinci
e Michelangelo, é preciso resgatar
um pouco da construção da história
das mulheres na arte. Para se ter
uma ideia, em 1582, uma pintora
espanhola foi proibida pelo pai de
tornar-se retratista oficial do reino.
O fato de a obra ser pintada
por uma mulher desvalorizava a
obra, portanto muitas passavam a
autoria para os homens. Como cita
a reportagem da Revista Bravo,
em 1922, por exemplo, o Metropolitan
Museum, em Nova York,
adquiriu a tela Charlotte du Val
d’Ognes acreditando tratar-se de
Revista Elas por Elas - março 2014 69
“As mulheres precisam estar nuas para entrar no Met. Museum?”,
diz o protesto do grupo Guerrilha Girls.
Performace da francesa Orlan, “O beijo da artista”, em 1977, que distribuía
beijos em troca de 5 francos, numa exposição em Paris.
Internet
um Jacques-Louis David. Descobriu-se,
em 1951, que a obra tinha sido realizada
por uma das alunas do pintor francês
(sua identidade ainda é objeto de discussão).
O Metropolitan só fez a correção
26 anos depois. A pintura, enaltecida
inicialmente pelo próprio museu
por expressar “um austero gosto do
tempo”, sofreu uma depreciação quando
a autoria de David foi contestada. Rapidamente,
os historiadores passaram
a enxergar no quadro um “tratamento
gentil” e o “espírito feminino”.
Na tese de doutorado da professora
Ana Paula Simioni, ela descreve bem a
trajetória de preconceito contra as mulheres
na arte. “Somente em 1790, na
Europa, a Academia Real passou a permitir
que mulheres expusessem suas
obras nos salões. Mas o acesso à École
des Beaux-Arts continuou a lhes ser vetado,
assim como ao principal prêmio
do sistema, o Prix de Rome. Artistas
passaram a desfrutar da liberdade de
expor suas obras, mas, em contrapartida,
tornaram-se incapacitadas a competir
naquele que se destacou (sobretudo a
partir de David) como o maior dos gêneros
artísticos: o da pintura de história. Segundo
a nova estética, o corpo masculino
transformara-se em centro simbólico e
figurativo do civismo heróico. Excluídas
das academias, as artistas ficaram impossibilitadas
de se exercitar no gênero,
na medida em que não poderiam estudar
o modelo vivo, central para a figuração
e composição de tais tipos de telas”,
descreve num trecho da tese.
Além de desfavorecidas pelo acesso
desigual à formação artística orientada
pelos padrões machistas da sociedade
naquela época, as mulheres também
sofreram as consequências da crítica,
que era porta voz do pensamento dominante.
“Em 1806, quando novamente uma
mulher artista foi premiada, começouse
a afirmar a noção de que existiria
uma ´temática feminina´, consagrada
primordialmente ao fixar o espaço doméstico,
cuja contraposição, velada,
seria a de uma ´temática masculina´,
dedicada aos temas públicos, históricos,
civis. Dava-se início à formação de uma
nova categoria de enquadramento para
a produção das mulheres, a da ´arte feminina´
que, ao nomear e rotular mediante
critérios diversos suas produções,
terminava por separá-las e, mesmo
sem o querer, dificultava as tentativas
de profissionalização das mulheres artistas
daquele período”, explica a autora.
Segundo Ana Paula, as mulheres
que desejavam se formar como artistas
no Brasil se deparavam com o fato de
que, até 1881, não havia instituição
pública alguma apta a acolhê-las como
discentes. Naquele ano, inauguraramse
as aulas para o sexo feminino no
Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro,
mas a classes inclinavam-se mais
para a formação de artesãos do que
propriamente de artistas.
“Felix Ferreira, importante crítico
de arte do século XIX no Rio de Janeiro,
louvava a iniciativa do liceu por propiciar
que a mulher pudesse ´auxiliar eficazmente
o marido (...) nas despensas preciosas
do lar´. Com esse discurso, percebe-se
que a profissionalização artística
feminina era aí compreendida como
uma formação eminentemente técnica
e voltada a um público humilde”, cita.
Como efeito da crítica, muitas artistas
ficaram banidas dos livros de história
da arte. Mas apesar de tantos empecilhos,
as artistas mulheres foram conquistando
espaços nos salões e exposições,
nas mostras, nas escolas de arte,
obtendo premiações e fazendo-se notar.
Também não se pode negar o papel
do movimento feminista na arte e sua
luta para desconstruir a premissa de
mulher objeto de desejo e musa inspiradora.
Mesmo sem reconhecimento,
sempre houve um olhar feminino por
trás da tela, com talento equivalente ao
dos homens.
ENTREVISTA | Ana Paula Cavalcanti 1
Elas por Elas - Você acha
que hoje os debates sobre gênero
na arte são atuais?
Ana Paula - Creio que sim,
tendo em vista que apenas desde a
década de 1970, nos países anglosaxões,
e muito mais recentemente
em outros países como França,
Itália e Brasil, as teorias de gênero
vêm alimentando um necessário
revisionismo sobre as práticas e valores
tradicionalmente empregues
pela história da arte. Esses, como
diversas historiadoras já mostraram
(Linda Nochlin, Tamar Garb, Griselda
Pollock, entre tantas outras)
tenderam a produzir um não reconhecimento
das mulheres atuantes
em períodos específicos da história,
como durante os séculos XVI, XVII,
XVIII e XIX.
Mas mesmo em períodos mais recentes,
como nas vanguardas históricas,
a produção de diversas artistas passou
a ser reconhecida apenas recentemente,
em especial aquelas que se orientavam
para as artes, ditas aplicadas, como as
artistas russas, ou mesmos as alunas
da Bauhaus, só foram revalorizadas
após as transformações teóricas, conceituais
propiciadas pelo impacto das
teorias de gênero no campo das artes.
Em países latinos como Brasil, Argentina,
Chile, Itália, Portugal, etc, esses
debates foram feitos apenas na última
década, havendo muitas artistas a
serem recuperadas, suas obras conhecidas
e suas produções problematizadas.
Arquivo pessoal
Revista Elas por Elas - março 2014 71
As mulheres ainda são minoria
na arte? Esse ainda é um espaço
a ser ocupado pelas mulheres?
O problema da maioria ou minoria
não é um problema numérico, mas
sim de poder. Em seu último livro
(2013), Alain Quemin, estudando os
artistas mais consagrados no mundo
da arte contemporânea, observa a presença
ínfima de mulheres nos topos
das listagens mais importantes; elas
são aí minoria, ainda que, dentre os
alunos das instituições de arte sejam,
provavelmente, maioria.
O estudo mostra o quanto o gênero,
entre outras categorias como nacionalidade,
lugar de nascimento, geração,
etc, são variáveis de reconhecimento
significativo quando se pensa no ranking
internacional mais legítimo ou central.
Mas claro que há realidades locais e
nacionais que são diversas, o Brasil,
por exemplo, é um país distinto nesse
quesito, pois no topo das listas de
artistas mais consagrados há a presença
de Adriana Varejão, Beatriz Milhazes,
entre outras. No entanto, vale notar
que o Brasil não ocupa uma posição
central no mercado da arte contemporâneo
internacional.
Sinto que, por vezes, tomamos a
nossa realidade, tão particular e um
tanto periférica, como sendo “a norma”,
ou um índice forte de grandes alterações
nessa questão. Será? Não estou segura,
o livro de Quemin aponta coisas bem
diversas.
Na sua tese de doutorado, você
destaca o acesso desigual à formação
artística e o papel desempenhado
pelos críticos de arte
para a justificar a desigualdade
de gênero na arte. Qual o peso
desse passado histórico e qual a
realidade hoje desses dois aspectos:
formação e crítica?
Creio que o modo com que os críticos
julgaram e classificaram as artistas
naquele momento (final do XIX e início
do XX), como “amadoras”, foi importante
no sentido de desestimular estudos,
colecionismo e a musealização das
obras de muitas dessas artistas, e, com
isso, tiveram um passo decisivo, embora
não previsível naquele momento, na
sua exclusão do cânone. A questão da
formação está atrelada à da crítica. Ela
foi significativa para excluir as mulheres
do grande gênero da pintura histórica,
que era considerado o mais elevado
pelo sistema acadêmico.
Excluídas do acesso ao modelo vivo,
que era, na França, um monopólio da
Academia, as mulheres só podiam executar
gêneros menores, como as pinturas
de gênero, as paisagens e naturezasmortas.
Com isso, foram relegadas a
nichos menos valorizados das práticas
artísticas, vistas como distantes da genialidade,
um atributo então visto como
essencialmente e naturalmente masculino,
e não fruto das condições de formação
desiguais. Com a crise do sistema
acadêmico essa modalidade de exclusão
se esgarça, perde sua força. Mas é
substituída por outros tipos de relações
assimétricas entre os gêneros no interior
do campo das artes.
De todos os dados que você
colheu sobre a segregação das
mulheres na arte, o que te chamou
mais atenção ou qual o fato mais
absurdo?
Não saberia dizer. Talvez o que me
marcou mais foi ter sido contatada pela
família da escultora Julieta de França,
primeira mulher brasileira a gozar do
prêmio de viagem ao exterior entre
1901 e 1905, após conhecerem minha
tese, e me mostrarem um álbum da artista,
com todos os recortes de jornais
sobre ela, por ela mesmo colhidos,
fotos de obras suas que hoje estão desaparecidas.
Essa documentação rara, maravilhosa,
se chama “Souvenir de ma carrière
artistique” e hoje está no Museu
Paulista. Esse fato me fez ver que talvez
haja muitas obras e documentação com
as famílias, que podem ser redescobertas
e contribuírem para uma transformação
efetiva do nosso atual conhecimento
sobre elas e suas produções.
Recentemente, o Brasil recebeu
a exposição Elles, de Paris. Na
sua opinião, a coleção com obras
só de mulheres deu visibilidade
ao tema no Brasil?
Creio que aqui a visibilidade e o impacto
gerado pela exposição foram
muitíssimo menores do que na França,
incomparável eu diria. Lá a exposição
gerou um debate cultural ampliado,
que, efetivamente, revolveu e transformou
as perspectivas historiográficas.
Aqui me pareceu um fato isolado, mas
ainda assim, mesmo que pontual, estimula
perguntas, dúvidas, interesse em
um público ainda muito pouco habituado
a esse tipo de temática. Não foi uma
mostra revolucionária, mas certamente
trouxe contribuições.ø
1. Graduada em Ciências Sociais pela
Universidade de São Paulo, mestre e doutora
em Sociologia pela Universidade de São
Paulo, realizou doutorado Sanduíche na
École des Hautes Études en Sciences Sociales-
Paris e pós-doutorado pela Université
de Genève. É docente do Instituto de Estudos
Brasileiros (USP) desde 2009, atuando na
área de Sociologia, com ênfase em Sociologia
da Arte e da Cultura, particularmente nos
seguintes temas: Arte e gênero e Mecenatos
públicos e privados no Brasil (séculos XIX e
XX). Atualmente dedica-se aos seguintes
projetos de pesquisa: “Artistas Modernistas
na Coleção do Instituto de Estudos Brasileiros”
e “Outros modernismos: produção
artística e cultura visual no Brasil, 1920-
1940”. É autora da obra Profissão Artista:
Pintoras e Escultoras Brasileiras, 1884-1922,
entre outros livros e artigos.
72
Destaques na exposição Elles: mulheres artistas
O Bicho, de Lygia Clark
A brasileira Lygia Clark (1920-1988)
criou uma série de chapas metálicas e
dobráveis, intitulada “Bichos”, que
podem ser esculturas ou brinquedos. A
artista queria que o público pudesse manusear
as obras e vivenciar uma arte
verdadeiramente participante.
Eu Quero Sair Daqui – Birgit
Jürgenssen (1976)
A austríaca Birgit Jürgenssen foi uma
das mais marcantes artistas feministas
avant-garde do mundo. O corpo feminino
e sua metamorfose foram o foco do
seu trabalho, que predominantemente
era composto por desenhos, pinturas e
fotografias.
Art Must Be Beautiful,
de Marina Abramovic (1975)
A famosa performer Marina Abramovic aparece
num vídeo no qual ela escova os longos
cabelos e repete que “A Arte deve ser bonita”
até ficar mais violenta e descabelada. O trabalho,
que parte de um gesto tipicamente feminino,
explora o conceito de “agressão passiva”
para criticar os padrões de beleza na arte.
Cena do vídeo-performance Art must be
beautiful, de Marina Abramovic
El Marco, de Frida Kahlo (1938)
Quando Frida Kahlo esteve em Paris, pintou
o quadro El Marco, um pequeno e colorido
autorretrato da artista que lembra mais a arte
naïf do que a surrealista. Pintado em uma superfície
de alumínio e vidro sobreposto, o
quadro foi a primeira obra de um artista mexicano
do século XX adquirida pelo Louvre.
La Chambre Bleue, de Suzanne Valadon (1923)
A francesa Suzanne Valadon aprendeu a pintar pela observação quando ainda era uma modelo
que posava para pintores. O quadro a óleo La Chambre Bleue é um autorretrato no qual ela faz
uma releitura de Vênus e o Tocador de Alaúde, de Ticiano. Em sua versão, a mulher está mais
forte, fuma e lê livros, hábitos considerados provocadores para a época.
La Tache Rouge, de Louise
Bourgeois (1989)
A artista plástica francesa Louise Bourgeois
(1911-2010) ficou famosa por suas
esculturas, mas na mostra traz um lado
pouco conhecido: uma série de desenhos
que evocam o corpo feminino.
Fonte: www.saraivaconteudo.com.br
Revista Elas por Elas - março 2014 73
74
PERFIL | por Nanci Alves | fotos: Arquivo Noisinho da Silva
Érika Foureaux: o sonho de
mudar o mundo pelo designer
Nascida em Belo Horizonte, a designer
Érika Foureaux, hoje diretora
do Instituto Noisinho da Silva, foi, ainda
pequena, para Paris, onde passou quase
toda a infância por causa do exílio dos
pais, ex-militantes do Partido Comunista.
“A vida foi boa comigo, me colocou
no lugar que é o berço do humanismo,
do ativismo, do pensamento. Vivi toda
a infância em Paris, na década de 70,
uma época fervilhante. Tive também
uma boa escola dentro de casa, pois
com pais militantes políticos, aprendi
a ser contestadora. Meus pais me ensinaram
que as leis existem, mas devem
ser questionadas, desde que com boa
argumentação. Por isso, ainda pequena,
já contestava até meus próprios pais”,
conta Érika.
No início da adolescência, Érika retornou
para a França, apenas com a
mãe e a única irmã, onde ficou até os
18 anos. “Meus pais haviam se separado
e minha mãe queria fazer um curso na
França. Ao voltar novamente para o
Brasil, me casei com o Vitor. Quando
nasceu minha primeira filha, Júlia,
entrei em uma loja de uma marca francesa,
da qual admirava o design dos
seus produtos. Queria que o quarto do
meu bebê tivesse aquela cara. Durante
nossa conversa na loja, me convidaram
para trabalhar com eles. Bastava um
treinamento”, lembra.
Além deste contrato de trabalho,
Érika e seu marido passaram a ser representantes
desta empresa francesa
no Brasil, por meio de franquia. Por
um tempo sua vida foi assim até que
aos 25 anos, arquiteta e mãe de 3
filhas (Júlia, Sophia e Nina), fez um
curso de design de produtos na Universidade
do Estado de Minas Gerais,
(UEMG). “Vi que já estava transitando
mais na área de designer do que de arquitetura,
mas precisava me profissionalizar
didaticamente. Durante o curso,
formamos um grupo de estudo para
mostrar que designer não era supérfluo
e que podíamos fazer mudanças na sociedade
por meio dele. Já era um movimento
no mundo todo”, reforça.
Em sintonia com esses acontecimentos,
Érika experimentava mudanças
em sua vida pessoal. Com o nascimento
da segunda filha, Sophia, que tem deficiência
física, ela se viu diante de
novo desafio. “Eu, com dificuldades
“
Senti que tinha que
fazer alguma coisa para
garantir uma oportunidade
igualitária para Sophia.
para as injustiças, senti que tinha que
fazer alguma coisa para gerar uma
oportunidade igualitária para Sophia.
Muita coisa a Júlia tinha permissão
para fazer e a Sophia não, porque não
conseguia se sentar sozinha, por
exemplo. Achamos uma cadeira nos
Estados Unidos, mas era horrível, muito
cara e com conotação médica. Mais
tarde, quando Sophia foi para o ensino
fundamental, o problema se agravou.
“No primeiro dia de aula, a gente preparou
a escola, mas na hora que
abrimos a porta da sala, ela falou:
mãe, como vou assentar nesta carteira?
Aí, minha ficha caiu. Pensei: É mesmo,
Sophia não vai aprender deste jeito,
ela precisa de uma cadeira que dê
apoio, condições, segurança”, conta.
Essas demandas diárias motivaram
Érika a buscar uma resposta por meio
do seu trabalho de designer. “Reconheço
que só pensei em inclusão porque tive
a Júlia antes. Como ofereci o que pude
para ela, me dei conta de que aquela
situação era desigual e que algo precisava
ser feito pela Sophia. Ainda não sabia
como e nem o quê”, afirma Érika ao
ressaltar que quando um mulher engravida
não imagina ter um filho com
algum problema, mas precisa ter em
mente que sempre tem uma forma de
melhorar a realidade. “O que é necessário
é estar disposto a encarar os desafios.
Assim, o primeiro momento é
aceitar que seu filho tem alguma deficiência;
depois, buscar tratamento ade-
Revista Elas por Elas - março 2014 75
Equipe Oficina da Ciranda
quado e, no terceiro momento, o que
varia de família para família, é construir
seus próprios caminhos. E esse foi o
meu objetivo. Me incomodava a falta
de recursos disponíveis no mercado.
Quando eu a levava a consultórios, na
sala de espera falava sobre isso com
outras mães. As cadeiras eram feitas
por fisioterapeutas ou engenheiros com
conotação de deficiente e eu queria
algo com conotação de eficiente e, sobretudo,
com cara de criança. Quando
se espera um filho, ninguém vai na região
hospitalar da cidade fazer compras.
E todo objeto para criança com alguma
deficiência você precisa ir lá, onde
tem coisas de hospital. Mas seu filho
não é doente. O que ele tem não é
uma doença no sentido de progressiva,
que vai para a morte, como tudo,
nestas lojas, demonstra ser. Isso me indignava”,
ressalta.
Nasce Noisinho da Silva
Érika visualizava algo novo, intuitivamente,
mesmo sem saber ainda o
que fazer. Tudo ficou claro só a partir
do congresso que participou no Canadá,
em 2003, onde o governo chamou arquitetos,
decoradores, designers gráficos
e industriais para promoverem uma sociedade
mais justa e inclusiva até 2015.
“Achei aquilo impressionante. Conheci
o conceito de design universal, para
todos. A gente, na hora de projetar,
tem que pensar na diversidade, no
magro, no gordo, no baixo, no alto,
no idoso, na grávida. O objetivo é
sempre procurar a utopia. Atrás dela,
a gente consegue melhorar muito”, diz
Érika. Então, em 2003, foi desfeita a
parceria com a empresa francesa. Junto
com amigos que buscavam uma proposta
de design revolucionário, e com
a ajuda técnica da mãe, criou no mesmo
ano a organização não governamental
Noisinho da Silva (www.noisinhodasilva.org).
A proposta era melhorar o mundo
para todas as crianças por meio do design.
De acordo com Érika, o primeiro
passo foi um projeto para pesquisa,
em 33 escolas públicas de ensino fundamental
em Belo Horizonte, com
apoio da Petrobras, para saber se a
inclusão acontecia, os diversos olhares
sobre ela, a questão da acessibilidade
arquitetônica, o comportamento da
educação, etc. Foram mais de três mil
pessoas ouvidas e, a partir dos resultados
da pesquisa, a ONG desenvolveu e
criou a Carteira Escolar Inclusiva com
design universal, para promover a entrada
da criança na escola. “É a primeira
carteira inclusiva no Brasil que a gente
tem notícia. Um projeto que atende a
todas as crianças, com ou sem deficiência.
O Ministério do Desenvolvimento
da Indústria e Comércio, através
do Programa Brasileiro de Design,
destinou uma verba que nos possibilitou
o desenvolvimento industrial do produto,
em série, para ser comercializado. Ele
tem sido vendido para prefeituras, principalmente”,
conta Érika.
A Noisinho da Silva criou o projeto
da Carteira Escolar Inclusiva, mas a produção
ficou por conta da The Products,
uma empresa social. Parte do lucro
obtido com a venda dos produtos é revertida
para a Noisinho da Silva, para a
pesquisa e desenvolvimento de novos
produtos e tecnologias sociais. Assim, o
segundo produto desenvolvido pela
ONG foi a cadeirinha para criança com
idade entre 1 e 6 anos e que não consegue
se assentar no chão, em função
da sua deficiência. Com o nome de Ciranda,
a cadeirinha tem sido produzida,
principalmente, para atender a demanda
das Umeis (Unidade Municipal de Educação
Infantil), mas também é vendida
em lojas e, como comemora Érika,
assinada por designer e não por profis-
76
sionais da área da saúde. “A criança
precisa participar das vivências e se ela
não consegue se assentar fica de fora, o
que atrapalha seu desenvolvimento. Por
isso, a Noisinho criou a Ciranda, um
dispositivo que faz com que a criança
consiga ficar sentada junto com outras.
Serve para atividades que vão até 40
minutos, com espaço entre elas, pois
não podem ficar sentadas desta forma
mais do que este tempo”, explica.
E para que em casa também essas
crianças possam ter a cadeirinha, a ONG
oferece uma tecnologia social. Trata-se
da Oficina da Ciranda, em final de semana,
para ensinar os pais a fabricarem
o produto. Enquanto eles estão na marcenaria
aprendendo a fazer a Ciranda,
as crianças da família, com deficiências
ou não, participam de atividades lúdicas
e culturais como contação de história,
dança, canto, circo, etc. Segundo Érika,
muitas mães revelam que nunca tiveram
um final de semana assim, alegre e com
um tempo para elas, pois as oficinas
contam com uma cuidadora para cada
criança com deficiência grave e monitores
para as demais durante todo o tempo.
Além disso, as mães se veem capazes de
produzir algo e, muitas vezes, começam
a se questionar, reconhecem que seu
lugar não é o da deficiência, que são capazes.
Isso potencializa, empodera estas
mulheres. É bonito ver também a troca
entre as famílias. Combinam atividades
juntas, como ir a um parque no final de
semana. Para muitas famílias, é a primeira
vez que sairão com outras pessoas que
vivem a mesma realidade. Se sentem
acolhidas”. As oficinas podem ser realizadas
em outros estados também, mas
sempre com parcerias. Em Minas, o
apoio vem de instituições como, por
exemplo, o Salão do Encontro e o Centro
de Desenvolvimento da Madeira, do
Senai. “É um trabalho feito por todos.
Por isso se chama Noisinho, porque sozinho
ninguém faz nada. Participam as
famílias, a equipe de profissionais do
Tecnologia social: pais aprendem a fabricar cadeira especial.
Noisinho, minhas três filhas que cresceram
aprendendo, na prática, o verdadeiro
sentido de inclusão, os namorados,
amigos, sobrinhos. Enfim, todos que
querem ajudar”, afirma a designer.
Érika conta ainda que, apesar das
meninas não terem aproveitado os produtos,
elas aprenderam a lidar com a
diversidade naturalmente. “Cresceram
neste universo inclusivo, sempre ajudando
nas atividades da oficina, com
as famílias. Convivem com crianças
com todo tipo de deficiência, com pais
participativos e com mães que lutam
sozinhas para criar seus filhos, pois,
pelo que percebemos em nosso público
nos centros urbanos, mais de 90% das
mulheres são abandonadas pelos maridos
quando nasce algum filho com
deficiência grave. Minhas filhas cresceram
vendo e aprendendo sobre questões
assim, que nem sempre são abordadas
nas famílias em geral: como inclusão,
desigualdades de gênero, raça
e social, etc. Com certeza, elas são
pessoas melhores do que eu, com
menos preconceitos”, afirma.
Entre os aprendizados da vida, a designer
confessa que se conscientizou,
acima de tudo, de que o ser humano
não pode viver sem sonho. “Mas o
propósito não pode ser apenas o de
comprar um bem. Porque, depois que
você comprar, como ficará sua vida? O
sonho de ficar rico só faz sentido para
mim, se for como Bill Gates. Se tornou
milionário, mas, depois disso, quis ser o
homem que faz a diferença nas principais
questões do mundo. Ele vem fazendo
transformações, investindo muito em
pesquisas na área da saúde, como, por
exemplo, da aids. Ele está realizando
seu sonho e mudando a realidade. Todos
precisamos achar nosso sonho que transforma,
dentro das nossas condições,
competências e realidade”, diz.ø
Revista Elas por Elas - março 2014 77
DIVERSIDADE | por Denilson Cajazeiro
Uma lei contra
a violência
homofóbica
Lésbicas cobram do poder público
ações pedagógicas e legislação que
criminalize a homofobia
78
Núbia Campos já perdeu a conta
de quantas vezes sofreu discriminação
pelo fato de se relacionar com mulheres.
A advogada, de 27 anos, já foi afastada
de crianças, por não ser considerada
um bom exemplo, perdeu amigos de
infância e volta e meia tem de conviver,
em locais públicos, com olhares e comentários
preconceituosos ou agressões
verbais, pelo simples fato de demonstrar
afeto à companheira.
“Por vezes, ouvi que não deveria comentar
tão abertamente sobre meu relacionamento,
colocar fotos em redes
sociais e tratar com normalidade, bem
como não deveríamos ter expressão
afetiva nenhuma em público”, relata a
advogada, que teme sair em São Paulo,
onde vive, acompanhada da namorada.
“Infelizmente, em todos os lugares, dependendo
da hora, temos medo. Há
grupos fascistas organizados que ainda
hoje matam homossexuais e transexuais,
espancando-os. Isso causa-nos medo
sim, e nas nossas famílias, mas nada
podemos fazer a não ser lutar, vamos
resistir, não vamos nos curvar”, afirma
Núbia, que acabou de concluir o mestrado
em Políticas Públicas e Formação Humana
pela Universidade Estadual do Rio
de Janeiro (UERJ), com pesquisa sobre
o movimento de lésbicas no Brasil.
Segundo as lésbicas, a violência homofóbica,
física ou psicológica, de fato
é hoje o que mais as preocupa. As estatísticas
oficiais mostram o porquê.
De acordo com o mais recente relatório
a respeito do assunto, da Secretaria de
Direitos Humanos da Presidência da
República, foram registradas quase 10
mil violações em 2012 relacionadas à
população LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis, Transexuais e Transgêneros),
e as denúncias mais comuns
foram, na ordem, violência psicológica,
como humilhações, hostilizações e
ameaças, discriminação e violência
física. Os números referem-se apenas
às denúncias feitas ao poder público, e
a própria Secretaria reconhece, no relatório,
que os casos são bem mais numerosos.
“Há uma violência que fica invisível,
como no caso do estupro corretivo,
porque entra no índice de violência
contra a mulher. Até mesmo no boletim
de ocorrência não se especifica que [o
crime] ocorreu porque a mulher é lésbica.
Somos duplamente discriminadas,
por ser mulher e por ser lésbica. Quando
somos negras, aí há uma tripla discriminação”,
comenta Soraya Menezes,
diretora da Associação Lésbica de Minas
e membro da Associação Brasileira de
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis,
Transexuais e Transgêneros (ABGLT).
Na raiz de tanta violência, avalia Menezes,
está um problema de ordem cultural.
“Vivemos num país machista, falocrático,
em que a mulher ainda é vista
como propriedade. Quando ela decide
dizer que não quer este modelo que
está aí, quer outra mulher, ela foge do
padrão da sociedade. Temos de derrubar
séculos e séculos de uma cultura machista.
No mundo todo, a homossexualidade
foi vista como pecado, ou doença ou
crime. Aos poucos, vamos quebrando
tabus”, opina a diretora, para quem o
quadro atual só será alterado com “ações
pedagógicas”. “A legislação é importante
para estabelecer parâmetros de punição.
“...as pessoas
não nascem
preconceituosas,
elas foram
educadas
para isso”.
Mas o que vai mudar mesmo esta cultura
são ações pedagógicas contra a homofobia,
o preconceito, dentro da escola e
de casa. Porque as pessoas não nascem
preconceituosas, elas foram educadas
para isso”.
“Cura gay”
No ano passado, o assunto ganhou
projeção na mídia, principalmente depois
que o então presidente da Comissão
de Direitos Humanos e Minorias da
Câmara dos Deputados, o pastor Marco
Feliciano, tentou emplacar o polêmico
projeto de lei batizado de “cura gay”,
de autoria do deputado João Campos
(PSDB-GO). Na prática, a proposta
previa suspender trecho de resolução
do Conselho Federal de Psicologia, de
1999, que proibiu profissionais da área
de colaborar com eventos e serviços
que proponham tratamento e cura das
homossexualidades. Outro trecho que
o projeto queria suprimir determina
que “os psicólogos não se pronunciarão,
nem participarão de pronunciamentos
públicos, nos meios de comunicação
de massa, de modo a reforçar os preconceitos
sociais existentes em relação
aos homossexuais como portadores de
qualquer desordem psíquica”.
Graças à reação do movimento gay,
da repercussão negativa que o caso ganhou
na sociedade e de muitos protestos
país afora, a proposta não foi além da
Comissão de Direitos Humanos. Em
julho, o autor da iniciativa desistiu de
levá-la ao plenário e, com isso, a
Câmara arquivou o projeto, visto por
muitos como uma proposta que estimula
ainda mais a homofobia. “Não faz sentido
pensar a homossexualidade como
doença. O psicólogo não deve contribuir
para fomentar o preconceito e a discriminação.
Precisamos respeitar a diferença
e trabalhar a inclusão e o bemestar
social”, afirma Jacqueline Moreira,
conselheira do Conselho Federal de
Psicologia.
Revista Elas por Elas - março 2014 79
Para tentar frear os casos de violência
e discriminação homofóbica, alguns
poucos estados e municípios aprovaram
leis nesse sentido. Em Minas, por
exemplo, a lei 14.170 estabelece
“sanção à pessoa jurídica que, por ato
de seu proprietário, dirigente, preposto
ou empregado, no efetivo exercício da
atividade profissional, discrimine ou
coaja pessoa, ou atente contra os seus
direitos, em razão de sua orientação
sexual”. A legislação prevê também
multa que pode chegar a R$ 50 mil ou
até fechar o estabelecimento.
Mas a lei mais aguardada pelas lésbicas
e por toda a comunidade gay
ainda tramita no Senado. Há mais de
seis anos, o projeto de lei que criminaliza
a homofobia (PLC 122) no país circula
pelos corredores da Casa e desperta os
ânimos da bancada religiosa toda vez
que um parlamentar demonstra intenção
de votá-lo. Nem mesmo a pesquisa
feita pelo DataSenado, em que mais
de 70% dos brasileiros entrevistados
disseram querer que o preconceito
contra homossexuais se torne crime, e
Arquivo pessoal
a carta enviada pela Organização das
Nações Unidas (ONU) ao Congresso,
com o pedido de aprovação do projeto,
foram suficientes para convencer os
senadores a acelerar a tramitação da
proposta. Ao contrário, uma manobra
na Casa a anexou à tramitação do
novo Código Civil, o que foi classificado
por militantes como um retrocesso e
deve atrasar ainda uma futura apreciação.
Se aprovada, a lei seria um importante
marco legal para coibir casos
de violência e discriminação em decorrência
da orientação sexual, conforme
avaliam pesquisadores da área de Direitos
Humanos.
“Essa lei é de extrema importância.
Mas sabemos que há setores fundamentalistas
que, toda vez que uma lei como
essa começa a ser discutida, vêm com
20 pedras nas mãos. Seria uma ação
para coibir aquelas pessoas que acham
que podem nos curar. Se há polêmica é
porque há preconceito. Então há também
uma culpabilidade da igreja e do legislativo
por cada homossexual assassinado. Não
é somente a mão de quem fez, mas
também de quem não está fazendo
nada”, diz Soraya Menezes.
Visibilidade para as lésbicas
Enquanto a lei não é aprovada,
Bianka Carboniere (foto), de 22 anos,
trabalha para dar visibilidade aos interesses
das mulheres lésbicas. Estudante
de Relações Públicas, a jovem decidiu
criar o site Sapatômica, voltado para o
público lésbico e feminino. “Passei por
muitas situações que me inspiraram bastante
na criação do site. Então comecei
a pensar e me preocupar com outras
meninas que passavam por situações
semelhantes ou piores e não sabiam
como agir. Aí pensei em criar o site,
para orientar, dar visibilidade, e ser um
espaço de discussão também”, revela
Bianka, que diz enfrentar com frequência
situações de discriminação no cotidiano.
“Num bar, em São Paulo, peguei na
mão da minha namorada e, por isso,
um homem saiu do local dizendo que
não poderíamos fazer aquilo ali. Uma
situação muito desagradável, constrangedora.
Isso é algo bem constante.
Acontece frequentemente com pessoas
que conheço”, conta a estudante.
No ar há três anos, o site reúne informações
sobre política, cultura, viagens,
comportamento, gastronomia,
sexo, entretenimento, entre outros
80
temas. “Também queremos mostrar a
todos os outros públicos, de todas as
orientações sexuais, religiões, culturas
e raças, que os LGBT não são uma sociedade
diferente e individualizada. Nós
ouvimos as mesmas notícias, temos os
mesmos interesses, exercemos as
mesmas profissões e estamos no mesmo
barco”, completa Bianka.
A jovem defende também a inclusão
do assunto no ambiente escolar para
quebrar a barreira do preconceito. “A
homossexualidade era considerada doença
até recentemente, em 1990 [desde essa
data a Organização Mundial de Saúde a
retirou da lista internacional de doenças].
Isso é muito recente. É ainda pouco
tempo, principalmente na sociedade brasileira,
que tem muita influência religiosa.
A gente cresce na escola e aprende que
o normal é um menino e uma menina
se casarem. Por isso é preciso incluir o
tema da homossexualidade de forma natural
no currículo escolar. Porque, hoje
em dia, é tratado como tabu, ou como
novidade, algo superdiferente. E na verdade
não é. É algo natural e tem de ser
tratado de forma natural”, afirma Bianka,
otimista com o porvir: “essa nova geração
que está surgindo está muito mais à
vontade para se socializar com o diferente.
Vejo cada vez mais isso nas crianças e
adolescentes”.
Danilo Ramos/RBA
Revista Elas por Elas - março 2014 81
“Passei por um processo de silenciamento”
“Silenciei a respeito da minha homossexualidade
dentro de casa por cinco
anos”. A declaração, da advogada e militante
feminista Mariana Septimio, de
28 anos, revela o quão é difícil, para
muitos que decidem assumir a homossexualidade,
tratar do assunto entre familiares.
De acordo com relatório feito
pela Secretaria de Direitos Humanos da
Presidência da República, relativo ao
ano de 2012, 25,5% das violações de
direitos humanos de caráter homofóbico
ocorreram nas casas da vítima.
“A primeira violência que a gente
sofre, infelizmente, é na família. Apesar
de eu ser de uma família amorosa e carinhosa,
infelizmente essa questão de
sexualidade é um ponto muito difícil de
ser trabalhado. Há uma posição muito
arraigada na sociedade. Quando conversei
com minha família sobre minha
homossexualidade, foi uma resistência
muito grande. Ouvi falas muito duras,
principalmente por parte do meu pai”,
conta Mariana Septimio.
Ainda segundo o relatório, 30,8%
das violações ocorreram na rua, e 5,3%,
no local de trabalho. “Nunca tive receio
de demonstrar afeto, por mais que
viessem reações. Verbalmente, já fui
agredida várias vezes. Conheço o relato
de várias amigas que foram convidadas
a se retirarem de bares, por demonstrarem
afeto a suas companheiras. Conheço
casos que chegaram até a violência
sexual, o chamado estupro corretivo”,
relata a advogada.
O relatório completo pode ser acessado
na página da Secretaria de Direitos
Humanos da Presidência da República
(www.sdh.gov.br), e qualquer denúncia
de violação de direitos humanos de caráter
homofóbico pode ser feito ao
Disque 100 ou ao Ligue 180.
Mortes
De acordo com levantamento do
Grupo Gay da Bahia (GGB), o Brasil
registrou, no ano passado, 312 assassinatos
de gays, travestis e lésbicas,
uma média de uma morte a cada 28
horas. Segundo a entidade, a realidade
é reflexo da falta de políticas públicas
para garantir a segurança da comunidade
LGBT, e o Brasil continua liderando os
crimes contra homossexuais, com cerca
de 40% dos delitos cometidos no
mundo.
As informações são coletadas nos
meios de comunicação e notificações
de crimes feitas por organizações não
governamentais. Ainda de acordo com
a entidade, as lésbicas representam
cerca de 3% do total de homicídios,
mas as pesquisas revelam que elas são
mais agredidas e violentadas no ambiente
familiar.
ABr
82
ENTREVISTA
Núbia Campos
“Continuamos,
eu e minha namorada,
na resistência”
A advogada Núbia (à esquerda) e a companheira Lie
Elas por Elas - Você já vivenciou
algum caso de violência ou
discriminação pelo fato de ser
lésbica?
Núbia Campos - Já sofri inúmeras
vezes discriminação pelo fato de me
relacionar com mulheres. Fisicamente,
nunca fui agredida, felizmente. Mas a
violência psicológica foi muito grande
por parte de ex-amigos de infância, religiosos,
bem como por alguns integrantes
da minha família, que abominaram
minha conduta de muitas formas
diferentes. Há muitas formas de discriminação
por causa da expressão da sexualidade
e todas elas causam sofrimento.
Continuamos, contudo, eu e
minha namorada, na resistência. O
problema das pessoas lidarem com o
meu relacionamento deve ser tratado
Arquivo pessoal
por elas internamente, não posso me
privar de viver e me expressar por
causa delas. Sobre o medo, sim, existe,
mas no meu caso não impede que expressemos
em público o afeto. O que
de fato ocorre é que quem está ligada
na militância sabe quais são os lugares
que são menos seguros e você acaba
evitando. Há grupos fascistas organizados
que ainda hoje matam homossexuais
e transexuais, espancando-os.
Isso causa-nos medo sim, e nas nossas
famílias, mas nada podemos fazer a
não ser lutar, vamos resistir, não vamos
nos curvar.
Casos de lesbofobia têm sido
frequentes, na sua opinião?
Os casos de lesbofobia são muito
frequentes, assim como a homofobia,
com homens homossexuais, e a transfobia.
Os motivos da intolerância das
pessoas são crenças culturais e muitas
vezes religiosas. Há verdades “imutáveis”
que, se feridas, causarão abominação.
Ocorre que as pessoas são criadas com
uma visão de “normalidade” e as condutas
que fogem da heterossexualidade
e monogamia são rapidamente tidas
como “anormais”. Isso gera, socialmente,
uma postura de intolerância, que têm
níveis diferentes. Há pessoas que conseguem
ter uma lésbica como amiga,
mas não “aceitariam” se fosse sua filha;
outras não conseguem visualizar duas
mulheres de mãos dadas na rua; por
fim, há pessoas que chegam a violentar
fisicamente a lésbica por causa de sua
conduta, bem como homens, machistas,
que adotam o estupro corretivo de lésbicas
como conduta a ser seguida nestes
casos. Tal intolerância é fruto de diversos
mecanismos sociais, em minha visão,
de grupos determinados que desejam
manter o status quo social, com propósitos
específicos. A família tradicional
monogâmica, que tanto os fundamentalistas
religiosos defendem no Congresso
Nacional, e que também continua a escravizar
a mulher perante o marido e a
família, serve a propósitos determinados
dentro de um sistema capitalista. Outras
possíveis configurações e formas de se
relacionar desafiam gravemente este
modelo. Ou seja, para mim e para
muitos que estão no movimento, a luta
pela liberdade sexual está inserida na
luta da liberdade social, com uma crítica
mais aprofundada, uma vez que a discriminação
homofóbica, assim como
outras discriminações, nascem a partir
de conceitos e verdades sociais de desconstrução
muito complexa, que não se
fazem de uma hora para outra.
O que precisa ser feito para
mudar esse quadro?
Em minha opinião, para mudar o
quadro, deve haver, emergencialmente,
leis mais protetivas. Mas é claro que
não é só. Digo das leis pois têm efeito
imediato para um problema muito grave
e que ocorre hoje. Não podemos esperar.
Certamente a criminalização da homofobia
não fará com que ela desapareça,
como num passe de mágica. A história
nos mostra isso com o racismo. Mas o
reconhecimento é mais que necessário,
com os números alarmantes divulgados
pelo governo federal, através da Secretaria
de Direitos Humanos. Queremos
que os crimes sejam devidamente punidos,
com penas compatíveis, simplesmente
porque não somos cidadãos de
segunda categoria e queremos proteção
integral do estado. No mais, acreditamos
que deva haver, no âmbito da educação,
preparação dos educadores em geral
para que as diversas formas de exercício
da sexualidade sejam ensinadas como
“normais”, a fim de que as próximas
gerações sejam ensinadas sobre tal fenômeno,
sem que haja rejeição. Há
muitos interesses neste jogo, infelizmente,
e por isso não pararemos de lutar, até a
aprovação de todas as leis e políticas
públicas que julgarmos necessárias para
a nossa proteção.ø
Revista Elas por Elas - março 2014 83
Marcelo Camargo/ABr
ARTIGO | Clair Castilho Coelho 1
O estatuto do
nascituro e suas
consequências
O Estatuto do Nascituro é um tema
que merece ser abordado sob vários
aspectos. É um assunto multifacetado
e que revela uma das mais profundas
heranças misóginas de nossa sociedade
patriarcal, capitalista, judaico-cristã. Remete
à tentativa milenar de dominar o
corpo e a sexualidade das mulheres,
utilizando valores para o disciplinamento
da vida das pessoas, que são impostos
através da culpa e do pecado. Nesta
perspectiva é necessário entender e interpretar
o que se esconde atrás de um
discurso hipócrita, pretensamente ético
e em defesa da vida. Esta pregação,
falsa e oportunista, resulta em pressões
e ações concretas no interior do poder
legislativo, na intimidação do poder
executivo e no questionamento quanto
aos pequenos avanços obtidos junto
ao poder judiciário.
Um exemplo de ameaça ao poder
judiciário é a proposta de emenda constitucional
que garante às igrejas a arguição
de constitucionalidade frente ao
Supremo Tribunal Federal.
As relações com o Poder Executivo
são, na maioria das vezes, a barganha
pelo apoio nas votações de projetos de
interesse do governo, na distribuição
de ministérios, no comércio de benesses
entre seus correligionários. O governo,
em geral, se rende com o argumento
da necessidade de “governabilidade”.
As iniciativas mais agressivas e impactantes,
no entanto, ocorrem no âmbito
do Poder Legislativo. Cabe destacar
o “estatuto do nascituro/bolsa estupro”,
a CPI do aborto, a “Cura gay” entre
outras.
No dia 24 de Abril de 2013, esteve
na pauta da Comissão de Finanças da
Câmara dos Deputados o projeto de
lei nº 478/2007, que “dispõe sobre o
Estatuto do Nascituro e dá outras providências”.
Este projeto baseia-se na crença de
que a vida tem início desde a concepção,
ou seja, antes mesmo do ovo ser implantado
no útero. Visa, assim, estabelecer
os direitos dos embriões – os chamados
nascituros. Equipara o nascituro e o embrião
humanos ao mesmo status jurídico
e moral de pessoas nascidas e vivas.
O conteúdo limitante e agressivo
desse projeto teria como consequência
a derrubada de qualquer direito das
mulheres decidirem pela interrupção
da gravidez. Visa suprimir os permissivos
legais, previstos no Código Penal como
em caso de risco de vida da mulher, da
gravidez resultante de estupro e a antecipação
terapêutica do parto no caso
de anomalias graves (como anencefalia)
aprovada pelo Supremo Tribunal Federal.
Como observa a socióloga Maria
José Rosado, coordenadora-geral de
Revista Elas por Elas - março 2014 85
Católicas pelo Direito de Decidir –
Brasil, referida no blog Viomundo, a
“proposta de dar ao nascituro um ‘estatuto’
é mais uma tentativa dos setores
mais retrógrados da sociedade de impedir
a efetivação dos direitos de cidadania
das mulheres (...). Inúmeras pesquisas
de opinião mostram que a população
brasileira, independentemente
de filiação religiosa, é majoritariamente
favorável a que continuem sendo permitidos
os abortos legais e é contrária
a que as mulheres sejam presas por
realizarem um aborto. Essa proposta,
além de ferir a Constituição vigente,
significaria um grave retrocesso”.
Mas, o mais odioso, um verdadeiro
escárnio à dignidade das mulheres e
aos direitos humanos é que o mesmo
projeto ainda prevê uma bolsa para as
mulheres vítimas de estupro criarem
seus filhos. Esse é o vergonhoso projeto
conhecido como “Bolsa Estupro”.
No Portal Vermelho - www.vermelho.org.br
- um artigo com o título
“Bolsa estupro: conservadorismo avança
em comissão na Câmara”, datado de
05/06/2013, reproduz um conjunto
de razões e argumentos amplamente
divulgados pelos movimentos feministas
e de mulheres que são incontestáveis
tais as aberrações defendidas pelos fundamentalistas.
Chama a atenção que o
projeto de lei, ao reconhecer a paternidade
de crianças resultantes de estupro,
transforma a brutalidade de uma violência
sexual, um crime hediondo, em uma relação
legal, gerida com o crivo do Estado,
que deverá pagar a “bolsa estupro” no
caso de não se reconhecer o autor do
crime contra a mulher. Ao garantir a
possibilidade de paternidade ao estuprador,
o Estatuto do Nascituro subjuga
a integridade das mulheres e mais, contribui
para a perpetuação da violência e
da impunidade, uma vez que, ao serem
vistos como “pais”, e não como estupradores,
estes homens podem vir a
contar com a benevolência de uma sociedade
patriarcal, que culpabiliza as
mulheres, mesmo quando essas são vítimas
da violência infringida.
Com isso, o projeto de lei expõe a
nós, mulheres, e a toda a sociedade a
diferentes tipos de violência.
Uma situação aviltante é que, no
Brasil, mulheres e meninas sofrem cotidianamente
maus-tratos e humilhações,
que vão desde o momento em que
prestam a queixa-crime nas delegacias,
nos exames de corpo de delito, até o
momento em que vão ser atendidas
por médicos, enfermeiros e psicólogos
nos hospitais. Em outras palavras,
mesmo que estejam respaldadas pela
legislação para realizar a interrupção
da gravidez em caso de estupro, as
mulheres passam por todo tipo de constrangimentos
até a finalização do atendimento.
Com a criminalização do
aborto em caso de estupro, como prevê
o Estatuto do Nascituro, essa situação
só se agravará.
Uma vez que não haverá mais possibilidade
de se realizar a interrupção
da gravidez, muitas mulheres e meninas
que sofreram violência sexual poderão
desistir de prestar queixa-crime contra
o agressor, já que este ato, em si, é
para elas um ritual de humilhações. Ou
seja, se aprovado, o Estatuto do Nascituro
também irá contribuir para que as
estatísticas de estupro diminuam, quando
na realidade este é um crime que só
aumenta no Brasil.
86
Infelizmente, à mercê de uma sociedade
que se recusa a debater abertamente
o aborto, de uma imprensa que
se cala ao invés de esclarecer e de políticos
oportunistas que usam a fé religiosa
para arregimentar cada vez mais
eleitores, o Estatuto do Nascituro já foi
aprovado na Comissão de Seguridade
Social e Família e na Comissão de Finanças
e Tributação da Câmara dos
deputados. Ele deve ainda passar pela
terceira e última, a Comissão de Constituição
e Justiça, e depois seguir para
votação no plenário.
O Estatuto do Nascituro se baseia
na ideia religiosa de que células fecundadas
já são uma vida, uma afirmação
que está longe de ser um consenso. O
Blog Tá pocando
Brasil é um estado laico e deve ser
orientado pela Constituição, não por
qualquer preceito ou moral religiosa.
O aborto é uma questão de saúde
pública e de autonomia de mulheres
sobre seus corpos.
O Estatuto do Nascituro, a “Bolsa
Estupro” e a CPI do aborto são partes
integrantes de um conjunto de iniciativas
do Legislativo Federal que visam implantar
um clima de intimidação e terror
às mulheres e naturalizar a interferência
das religiões e suas concepções morais
como uma prática que pretende ser legítima
dentro dos marcos de um estado
laico. Aí reside um perigo real, pois se
a sociedade brasileira não atentar para
estas investidas, correrá o risco de caminhar
para um estado confessional e
teocrático. Trata-se de uma estratégia
visível, basta verificar que os projetos
de lei que limitam e retiram direitos das
mulheres são defendidos ostensivamente
pelas bancadas fundamentalistas, compostas
por deputados espíritas, evangélicos
e católicos.
A sociedade brasileira precisa reagir
e analisar, antes de tudo, qual o papel
destes deputados no parlamento brasileiro.
Entre outras particularidades ver
quais são os seus aliados, quais as suas
alianças e o que defendem, além das
leis restritivas às liberdades e aos direitos
das mulheres.
É interessante notar que há importantes
aliados dessas bancadas, por
exemplo, os representantes do agronegócio
e setores à direita que buscam
aprofundar as propostas neoliberais e
a entrega do país às grandes corporações
transnacionais. Aliam-se aos mais
notórios agressores do meio ambiente,
aos grupos econômicos que exploram
trabalho escravo nas propriedades rurais,
que promovem chacinas de indígenas,
promovem desmatamentos criminosos
nas matas brasileiras, acabam com a
biodiversidade, contaminam e empestam
as reservas aquíferas de venenos e
agrotóxicos, enfim, que matam todo e
qualquer tipo de vida que possa limitar
seus interesses. São esses os aliados
dos fundamentalistas. O que se questiona
é: que vida eles defendem? E, finalmente,
para quem servem estes parlamentares?
Algum deles já apresentou
algum projeto de lei de interesse do
Brasil e de seu povo? Ou sua ação parlamentar
é “bisbilhotar” e interferir na
vida privada dos cidadãos e cidadãs?ø
1 Farmacêutica-Bioquímica, Mestre em Saúde
Pública, Professora aposentada do Departamento
de Saúde Pública da Universidade Federal
de Santa Catarina, Secretária Executiva
da Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos
Sexuais e Direitos Reprodutivos
Revista Elas por Elas - março 2014 87
Internet
HISTÓRIA | por Saulo Esllen Martins
Simplesmente Pagu
Irreverência e ousadia marcaram a trajetória da escritora Patrícia Galvão
Escritora, jornalista, produtora cultural
e militante política, Patrícia Rehder
Galvão, mais conhecida como Pagu, já
recebeu muitas definições. Todas elas
ressaltam uma personalidade questionadora
e um espírito inquieto demais
para o seu tempo. De acordo com seu
biógrafo, Augusto de Campos, o apelido
Pagu foi dado pelo poeta Raul Bopp,
88
quando Patrícia lhe mostrou alguns
poemas. Bopp sugeriu que ela adotasse
um nome literário feito com as primeiras
sílabas de seu nome e sobrenome:
Pagu. Foi um engano de Bopp, pensando
que a moça se chamasse Patrícia
Goulart. Mas ele escreveu um poema
para ela, “O côco de Pagu”, e o apelido
ficou.
Natural de São João da Boa
Vista/SP, nasceu em 9 de junho de
1910, mudou-se para a capital em
1912. Morou na Liberdade, no Brás,
na Aclimação, na Bela Vista e em uma
chácara no então município de Santo
Amaro. Depois de breves períodos no
Rio de Janeiro e em Paris, para fugir
da repressão, encontrou sossego em
Santos, onde morreu em decorrência
de um câncer, em 12 de dezembro de
1962. Por conta da doença e após sair
da prisão, Patrícia tenta suicídio, que
não se consuma. Sobre o episódio, ela
escreveu no panfleto “Verdade e Liberdade”:
“Uma bala ficou para trás, entre
gazes e lembranças estraçalhadas”.
Diferente das moças de sua época,
Pagu usava blusas transparentes, fumava
na rua e dizia palavrões. Com 15 anos,
passa a colaborar no Brás Jornal, com
um pseudônimo. Apresentada aos artistas
Oswald de Andrade e Tarsila do
Amaral, entre os 18 e 19 anos, se integra
ao movimento antropofágico, de
cunho modernista. Após dois anos,
casa-se com Oswald e tem seu primeiro
filho, Rudá de Andrade. Três meses
após o parto, Pagu viaja para Buenos
Aires, na Argentina, para participar de
um festival de poesia. Conhece, então,
Luís Carlos Prestes, e se entusiasma
com os ideais marxistas.
Na volta, filia-se ao Partido Comunista
Brasileiro (PCB), junto com Oswald.
Foi o início de um período de intensa
militância política. Em março de 1931,
o casal funda o jornal O Homem do
Povo, que apoia “a esquerda revolucionária
em prol da realização das reformas
necessárias”. Em seus artigos,
Pagu critica as “feministas de elite” e
os valores das mulheres paulistas das
classes dominantes.
Jovem, bonita e burguesa, Patricía
Galvão não necessitava lutar pelos direitos
de sua classe, a mais favorecida,
então resolve fazer o que acreditava.
Aos 20 anos agita o bairro do Cambuci
em protesto contra o governo provisório.
Comanda uma greve de estivadores
em Santos, e é presa pela primeira
vez, das vinte e três que ainda iriam
ocorrer, tornando-se a primeira prisioneira
política no país.
Em 1933 publica o romance Parque
Industrial, sob o pseudônimo de Mara
Lobo, considerado o primeiro romance
proletário brasileiro. Nesse mesmo ano
parte para uma viagem pelo mundo,
deixando no Brasil o marido e o filho.
Em 1935 filia-se ao Partido Comunista
da França, onde também fez
cursos na Sorbonne, em Paris, e lá é
presa como comunista estrangeira, com
identidade falsa. Seria deportada para
a Alemanha nazista, contudo o embaixador
brasileiro Souza Dantas consegue
mandá-la de volta ao Brasil. Separa-se
definitivamente de Oswald e então retoma
a atividade jornalística, mas o
passado não a deixa retornar tranquilamente,
e é novamente presa e torturada.
Desliga-se do PCB em 1940, assim
que sai da prisão. Adere ao trotskismo
e incorpora-se à redação do jornal A
Vanguarda Socialista. Em 1945 Patrícia
casa-se com Geraldo Ferraz, jornalista
da A Tribuna de Santos, cidade onde
passam a viver. Inicia em 1946 sua colaboração
regular no Suplemento Literário
do Diário de S. Paulo.
Tenta sem sucesso uma vaga de deputada
estadual nas eleições de 1950.
Em 1952 frequenta a Escola de Arte
Dramática de São Paulo, levando seus
espetáculos a Santos. É conhecida como
grande animadora cultural e dedica-se
em especial ao teatro, particularmente
no incentivo a grupos amadores.
Escreve também contos policiais,
sob o pseudônimo de King Shelter, publicados
originalmente na revista Detective,
dirigida pelo dramaturgo Nelson
Rodrigues, e depois reunidos em Safra
Macabra (Livraria José Olympio Editora,
1998).
Em 2004 a catadora de papel Selma
Morgana Sarti, em Santos, encontra
no lixo uma grande quantidade de fotos
e documentos da escritora e do jornalista
Geraldo Ferraz, seu último companheiro.
Esse acervo hoje faz parte do arquivo
da Unicamp.
Correspondente de vários jornais,
Pagu visita os Estados Unidos, o Japão
e a China. Entrevista Sigmund Freud e
assiste à coroação de Pu-Yi, o último
imperador chinês. Foi por intermédio
dele que Pagu consegue sementes de
soja, enviadas ao Brasil e introduzidas
na economia agrícola brasileira.
Hoje, Patrícia Galvão é lembrada
pelo Instituto e pela Agência que levam
seu nome. Essas iniciativas contribuem
de forma relevante para a qualificação
da cobertura jornalística sobre questões
críticas para as mulheres brasileiras,
produzindo notícias e conteúdos multimídia,
a fim de influenciar o debate público,
demandar respostas do Estado,
promover mudanças na sociedade e na
própria mídia.ø
Na véspera de sua morte, um
último texto seu é publicado, o
poema “Nothing”.
“Nada mais do que nada
Porque vocês querem que exista
apenas o nada
Pois existe o só nada”
Trecho do poema “Nothing” de Pagu/Patricia
Rehder Galvão.
(Publicado n’A Tribuna, Santos/SP, em
23/09/1962).
Revista Elas por Elas - março 2014 89
ARTIGO | por Silvia Raquel
Sexo,
prazer proibido
As diversas facetas da mutilação feminina
A consciência do corpo da mulher,
dos seus desejos e da sua autonomia
sempre foi para as sociedades patriarcais,
laicas ou fundamentalistas, uma
ameaça. O que se percebe é que em
todas as sociedades, seja ela qual for,
a mulher é mutilada de diversas formas.
Com a globalização das informações,
nunca tivemos tanto acesso a
notícias sobre as atrocidades exercidas
contra as mulheres em
todo o mundo. Inicialmente
me lembrei das mulheres africanas
que ainda meninas, por
imposição de seus pais e da sociedade,
sofrem a Ablação –
extirpação do seu órgão sexual.
Segundo dados da ONU,
estima-se que 128 milhões
de mulheres passaram por
este tipo de procedimento.
Lembrei-me também de
Rawan, a menina de oito
anos que foi vendida pelos
seus pais para “casar” e
morreu com ferimentos no
útero.E da jovem indiana que
foi estuprada por doze homens
a título de “penalidade” por ter
escolhido manter uma relação
amorosa com um rapaz que não
era de sua aldeia. Como se não
bastasse a irracionalidade das
guerras, as mulheres durantes as
ocupações ainda são vítimas da
violência sexual. Perto de nós, todos
os dias nos deparamos com mais um
caso de violência doméstica resultando
quase diariamente em mortes.
Ainda se mutilam intelectualmente
mulheres em todo o mundo, as privando
da educação básica e via de
consequência mantendo-as em situação
de inteira submissão financeira. O assédio
sexual no local de trabalho ainda
é uma constante depreciando o
papel da mulher no mercado produtivo.
Ao assistir o documen-
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tário Clitóris, prazer proibido, percebi
o quanto nós, mulheres, ainda desconhecemos
o nosso próprio corpo e já
que não o conhecemos, parte dos
nossos corpos foram mutilados inconscientemente.
Quando jovenzinha, a escola que
estudava resolveu oferecer uma misteriosa
aula sobre sexualidade. Estava
com doze anos, apenas as meninas
participariam como se algo de muito
secreto nos fosse revelado. A palestra
foi ministrada por uma empresa de absorventes
e quando entramos no auditório
nos deparamos com a projeção
da imagem do aparelho reprodutivo
feminino: Trompas de falópio, útero,
vagina, clitóris.
Ensinaram-nos sobre o período fértil,
menstruação, gravidez e doenças sexualmente
transmissíveis e saímos todas
da sala com um pacote de absorventes.
Foi o máximo de educação sexual que
tivemos na escola, que nada mais era
que uma palestra sobre reprodução.
Nada, em nenhum momento fui alertada
sobre o meu órgão sexual. O que demonstra
que a mutilação feminina tem
muitas facetas e embora ainda nos indigne
com as formas mais brutais e físicas
de exercê-la, ela também se corporifica
de forma subliminar.
Nós, meninas criadas nas serras das
Gerais, temos o recato como característica.
Quando crianças a genitália feminina
sempre foi algo intocável e se a
encostássemos com as próprias mãos
publicamente a repreensão era quase
que automática com frases mais ou
menos sutis do tipo: “filha, quer ir ao
banheiro?” Do mesmo modo, não há
dúvidas que a masturbação feminina
ainda é um tabu nas conversas entre
mães e filhas.
Neste contexto enfrentamos um
falso paradoxo, pois, a omissão de informações
sobre a nossa própria sexualidade
nos últimos tempos não foi
um empecilho para vivenciarmos a experiência
sexual. Diga-se, ainda, que
iniciamos muito mais cedo que em outros
países.Segundo pesquisa da USP,
publicada no ano de 2007, as jovens
brasileiras iniciam a sua vida sexual
entre os 13 aos 17 anos. Somos as segundas
no ranking mundial, só perdemos
para a Áustria.
No entanto, quando se fala em uso
de preservativos, caímos no ranking e
ocupamos o 7º lugar. O que para mim,
já é um indicativo da ausência de autonomia
sobre o nosso próprio corpo. E
se não temos autonomia sobre ele,
acabamos por acreditar que somos incapazes
de sentir prazer sexual.
O prazer sexual feminino se estabeleceu
na sociedade contemporânea
como algo espetacular e raro somado
até mesmo a uma naturalização da ausência
de prazer. Há mais de uma
década somos bombardeadas com a
lógica da “descoberta” do ponto “G”
como se uma vez perdido ou nunca
encontrado no canal vaginal você estará
fadada à frigidez. Não há estímulos
para que o parceiro procure as dezenas
áreas erógenas do corpo feminino.
Dessa forma, muito são os mitos de
onde e quando a mulher terá um orgasmo.
Tudo isso somado à ditadura
da boa forma, que muitas vezes mecaniza
a relação ao exibicionismo ou, no
sentido contrário, à inibição pelo constrangimento
de se apresentar fora dos
ditames estabelecidos de beleza.
A compreensão sobre a anatomia
do órgão sexual feminino passa a ser
um importante instrumento de autonomia
e empoderamento. No entanto,
ao pesquisar no “Google imagens” o
termo “Morfologia/anatomia do aparelho
sexual feminino” a antiga imagem
projetada na parede do auditório escolar
apareceu: trompas de falópio, útero,
vagina e clitóris, quando muito há imagens
citando os pequenos e grandes lábios
vaginais. Mas somente nós, mulheres,
temos um órgão reprodutor e
órgão sexual que se comunicam nas
suas funções, mas que são distintos.
E este é o grande segredo desvendado
no documentário, o clitóris não é
um único pontinho de carne acima da
uretra que se mostra sensível ao toque,
é um órgão bastante eficiente que tem
a finalidade exclusiva de proporcionar
prazer à mulher. É um órgão autônomo
do aparelho reprodutivo medindo por
volta de oito centímetros, formado por
duas raízes que estão envoltas em
bulbos, que quando estimulados transforma
toda a área vaginal em uma
área erógena, sua extremidade possui
cerca de oito mil terminações nervosas,
transformando-o num órgão muito mais
sensível ao prazer do que o próprio
pênis.
Deixando um pouco de lado o interesse
farmacêutico dos estudos que motivaram
a produção do documentário
não se pode desmerecer o papel fundamental
do vídeo uma vez que nos
ajuda a trilhar o caminho do autoconhecimento,
a compreender o nosso
próprio corpo e todas as suas potencialidades.
Pois não é pouco insistir
que a desinformação é uma forma sublimar
de amputação através da desconsideração
da nossa própria anatomia.
Não tenho dúvidas que este vídeo
(disponível na internet) é mais um instrumento
de emancipação feminina e
que assim, possamos utilizá-lo para
coibir mais esta castração velada que a
sociedade nos impõe dentre tantas outras
ações invisíveis que mutilam de
todas as formas, segundo a segundo,
as mulheres e suas potencialidades
físicas e emocionais.ø
Sílvia Raquel Barbosa Castelo Branco
Advogada, militante filiada ao Movimento Popular
da Mulher e União Brasileira de Mulheres,
ex-conselheira do Conselho Municipal dos Direitos
da Mulher nos anos de 2005 a 2007.
Autora do artigo Incriminalização da Violência
Doméstica e os Tribunais Especiais - Revista Eletrônica
de Direito Newton Paiva – 2005.
Revista Elas por Elas - março 2014 91
POUCAS E BOAS
LIVROS
Projeto quer garantir a
presença de doulas em maternidades
Suprir a demanda emocional e afetiva
no momento de maior importância
para muitas mulheres, o de dar à luz.
Essa é a função das doulas, acompanhantes
de parto capacitadas para oferecer
apoio continuado a grávidas e
também a seus parceiros e familiares,
proporcionando conforto físico, apoio
emocional e suporte antes, durante e
após o nascimento da criança.
O projeto de lei que propõe a obrigatoriedade
da disponibilização de doulas
em maternidades, casas de parto e estabelecimentos
hospitalares congêneres
da rede pública e privada de Belo Horizonte,
de autoria do vereador Gilson
Reis (PCdoB), está em tramitação na
Câmara Municipal, tendo sido aprovado
na Comissão de Legislação e Justiça.
Para ir a votação, o projeto ainda
precisa passar pelas comissões de Direitos
Humanos e Defesa do Consumidor
e de Saúde e Saneamento, com
previsão de votação no primeiro semestre
de 2014.
A ideia para o projeto surgiu da advogada,
socióloga e militante do parto
humanizado Gabriella Sallit. Ela contou
com o apoio de doulas em seu primeiro
parto e recentemente deu a luz a outro
bebê. "A doula é leiga como você, ou
seja, é uma relação entre iguais. É mulher
como você, a empatia é fácil de
acontecer", diz Gabriella.
Segundo Gabriella, em Belo Horizonte,
os hospitais privados permitem
a entrada de doulas, condicionando-a
à autorização da equipe médica. “Alguns
cobram uma taxa extra. Enquanto os
acompanhantes pagam cerca de
R$20,00, pela entrada das doulas é
cobrado R$150,00. Em regra, se a
grávida contrata uma profissional particular,
tem que escolher entre ela e o
acompanhante. Isso está longe de ser
a situação ideal”, conta. "Diante da
boa vontade do vereador Gilson Reis,
começamos a conversar sobre uma lei
que garantisse a todas as belorizontinas
o direito de ter uma acompanhante
profissional, de livre escolha, admitida
consigo durante todo o período da internação",
completa.
A proposta de lei dispõe que os estabelecimentos
ficariam obrigados a
permitir a presença de doula durante
todo o período de trabalho de parto,
parto e pós-parto, sempre que solicitada
pela mãe. “É preciso discutir a maternidade
numa perspectiva de mais humanização”,
afirma o vereador Gilson
Reis. Para ele, a questão do parto é
um tema atual na sociedade mundial.
“Existe um processo de desestímulo
das mulheres para concretizar a sua
condição da maternidade, e nós temos
uma necessidade de garantir uma política
pública para crianças, mães e para a
sociedade”, afirma.
O projeto esclarece ainda que a obrigatoriedade
das doulas não impedirá
a presença de acompanhante e que os
serviços privados de assistência prestados
por elas não acarretarão em custos
adicionais à parturiente. Às doulas
caberá apenas a prestação de seus serviços
com seus materiais de trabalho,
ficando proibida a realização de procedimentos
médicos ou clínicos. Gilson
destaca que esse projeto visa romper a
relação meramente cirúrgica do parto
através das cesarianas, tornando esse
momento tão importante para as mulheres
mais humanizado.
A Mulher na Sociedade de Classes:
Mito e Realidade
Autora:
Heleieth Saffioti
Editora: Expressão
Popular
Passados quase 50
anos desde sua primeira
edição, este
livro é considerado
um clássico dos estudos
de gênero, e sua autora, Heleieth
Saffioti, a pioneira na análise da situação
das mulheres como um efeito da sociedade
de classes. Para Saffioti, o problema da
mulher não é algo isolado da sociedade, e
superar a opressão feminina só será possível
com a destruição do regime capitalista e a
implantação do socialismo.
Mulheres Brasileiras e Gênero
nos Espaços Público e Privado
Uma Década de Mudanças na Opinião Pública
Autor:
Gustavo Venturi e
Tatau Godinho
Editora: Fundação
Perseu Abramo
A iniciativa da Fundação
Perseu
Abramo (FPA), em
parceria com as
Edições Sesc SP, ao realizar uma pesquisa
nacional de opinião pública com o intuito
de atualizar os dados realizados dez anos
antes e introduzir novas questões e perspectivas,
deu fruto ao livro. A obra conta com
prefácio da ministra da Secretaria de Políticas
para as Mulheres, Eleonora Menicucci. Entre
os temas abordados, destacam-se: Percepção
de Ser Mulher: Feminismo e Machismo; Divisão
Sexual do Trabalho e Tempo Livre;
Corpo, Mídia e Sexualidade; Saúde Reprodutiva
e Aborto; Violência Doméstica e Democracia,
Mulher e Política.
92
FILMES
Memórias de uma feminista
Autora:
Madeleine Pelletier
Editora: Editora
Mulheres
Escrito em 1933 e traduzido
por Paula Berinson,
o livro foi lançado
pela Editora
Mulheres em 2005 e
faz parte de uma coleção
intitulada Série Feministas (organizada
pela editora) trazendo memórias inéditas desta
feminista francesa, pouco conhecida no Brasil,
mas que marcou época pela audácia de seus
pensamentos e atitudes. Uma mulher que em
1911 lutava pela emancipação do sexo feminino
e defendia ações como a contracepção e o
aborto.
Eu sou Malala
A história da garota
que defendeu o direito
à educação e
foi baleada pelo Talibã
Autoras: Christina
Lamb e Malala Yousafzai
Editora: Companhia
das Letras
Quando o Talibã tomou controle do vale do
Swat, uma menina levantou a voz. Malala Yousafzai
recusou-se a permanecer em silêncio e
lutou pelo seu direito à educação. Mas quase
pagou o preço com a vida. Malala foi atingida
na cabeça por um tiro à queima-roupa dentro
do ônibus no qual voltava da escola. O episódio
a levou em uma viagem extraordinária de um
vale remoto no norte do Paquistão para as
salas das Nações Unidas em Nova York. Aos
dezesseis anos, ela se tornou um símbolo global
de protesto pacífico e a candidata mais jovem
da história a receber o Prêmio Nobel da Paz.
Cidadãs Brasileiras
O cotidiano de mulheres
trabalhadoras
Autora: Helena Scarparo Editora: Revan
Helena Scarparo é psicóloga e professora do
Instituto de Psicologia da PUCRS através do
qual, há vários anos, vem desenvolvendo trabalhos
de Psicologia Comunitária junto às
classes populares, na Grande Porto Alegre.
Este livro apresenta uma síntese do trabalho
de pesquisa realizado pela autora, trata-se do
processo de construção e avaliação do projeto
de vida de mulheres de classes populares e
sua relação com a experiência escolar. Problematiza
aspectos do desenvolvimento psicossocial
de mulheres na perspectiva das relações
de classe social, de gênero e de raça,
examinando o significado dos processos educativos,
tanto no espaço da escola, como em
outros espaços da vida cotidiana.
INTERNET
SOS Corpo
http://www.soscorpo.org.br
Secretaria de Políticas para Mulheres
http://www.spm.gov.br/
Agência Patrícia Galvão
http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/
Universidade Feminista Livre
http://www.feminismo.org.br/livre/
Copa 2014:
O que as mulheres têm
a ver com isso?
Produção:Esplar – Centro de
Pesquisa e Assessoria
Gênero: Documentário
Este vídeo traduz as preocupações de
organizações e movimentos que atuam
com mulheres, em relação aos impactos
negativos que megaeventos como a Copa
do Mundo trarão para a vida das mulheres.
Nele, a população é alertada e em especial
as mulheres, sobre as cidades que os turistas
vão encontrar quando vierem para
os jogos da Copa, quem ganha e quem
perde com o mundial, as ameaças às
suas vidas, a quem elas devem recorrer
nos casos de exploração sexual e que legado
a Copa vai deixar para as mulheres.
Gulabi Gang
Direção: Nishtha Jain
Gênero: Documentário
Bundelkhand no centro da Índia, uma
região famosa por seus bandidos rebeldes,
tem testemunhado um novo tipo de rebelião
com personagens incomuns. Gulabi
Gang é um grupo de mulheres indianas
que usam sari rosa e lutam por seus direitos.
Elas buscam a justiça para as mulheres
e dalits.
A Menina Espantalho
Direção: Cássio Pereira dos Santos
Gênero: Ficção
A Menina Espantalho é um curta com 13
minutos de duração que conta a história
de Luzia, uma menina que mora com
seus pais e o irmão Pedro no campo.
Quando Pedro começa a ir à escola,
Luzia quer acompanhá-lo, mas é impedida
pelo pai. Enquanto vigia um arrozal,
ela busca outros caminhos para aprender
a ler.
Revista Elas por Elas - março 2014 93
Elza Fiúza/ABr
RETRATO
Nilma Lino Gomes – Primeira mulher negra a assumir a direção de uma universidade federal. É reitora da
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab). Graduada em Pedagogia, mestre em Educação,
doutora em Ciências Sociais e pós-doutora em Sociologia. Atua nas áreas da educação, movimentos sociais, relações raciais,
diversidade cultural e gênero.
Possibilidades
Assim a fada falou:
- Menina, podes ser doce
vento na folhagem
nuvem de outono
cadeira de balanço
repouso do guerreiro
açúcar de pudim
cereja de bolo.
Te será permitido também
virar calendário de oficina
surfistinha de aluguel
freira erótica em covento
expert em dança do ventre
operária guerrilheira
até dona de bordel.
Maria
Apparecida
de Matos
Inda é pouco?
Então escolhe
ser mulher de traficante
ou santa canonizada
madre Tereza do morro
rainha de bateria
musa de trovador
jornalista cientista
motorista vigarista...
- Mãe, acorda. Cadê o almoço?
MARÇO 2014
N Ú M E R O 7
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