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Revista Elas por Elas 2018

A revista sobre gênero Elas por Elas foi criada, em 2007, com o objetivo de dar voz às mulheres e incentivar a luta pela emancipação feminina. A revista enfatiza as questões de gênero e todos os temas que perpassam por esse viés. Elas por Elas traz reportagens sobre mulheres que vivenciam histórias de superação e incentivam outras a serem protagonistas das mudanças, num processo de transformação da sociedade. A revista aborda temas políticos, comportamentais, históricos, culturais, ambientais, literatura, educação, entre outros, para reflexão sobre a história de luta de mulheres que vivem realidades diversas.

A revista sobre gênero Elas por Elas foi criada, em 2007, com o objetivo de dar voz às mulheres e incentivar a luta pela emancipação feminina. A revista enfatiza as questões de gênero e todos os temas que perpassam por esse viés. Elas por Elas traz reportagens sobre mulheres que vivenciam histórias de superação e incentivam outras a serem protagonistas das mudanças, num processo de transformação da sociedade. A revista aborda temas políticos, comportamentais, históricos, culturais, ambientais, literatura, educação, entre outros, para reflexão sobre a história de luta de mulheres que vivem realidades diversas.

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Maternidade<br />

ameaçada<br />

Apesar de ser referência no país em assistência<br />

humanizada pelo SUS, Sofia Feldman sofre com<br />

cortes no orçamento federal<br />

Mães órfãs:<br />

A vulnerabilidade da maternidade<br />

nas mãos da Justiça<br />

Marielle<br />

Mesmo um crime tão violento<br />

não pode apagar a luta de tantas<br />

mulheres brasileiras


Prezadas<br />

amigas e<br />

companheiras<br />

de luta,<br />

O ano de <strong>2018</strong> apresenta-se em um<br />

contexto de grandes dificuldades político-econômicas<br />

e, ao mesmo tempo,<br />

de grande resistência e protagonismo<br />

das mulheres brasileiras.<br />

Ante os inúmeros ataques aos trabalhadores,<br />

as injustiças sociais e tanto<br />

retrocesso social observado a partir<br />

do avanço das forças conservadoras e<br />

sucessivos golpes políticos, não há dúvidas<br />

que as mulheres são as que mais<br />

têm perdido direitos e conquistas que<br />

ao longo da história lograram ousar e<br />

vencer. É no campo do feminino que<br />

mais se vê, também, os ataques explícitos<br />

de uma crescente onda machista,<br />

racista, conservadora e, em muitos<br />

aspectos, fascista — que tem assolado<br />

o Brasil e o mundo, num refluxo antiprogressivista.<br />

O direito a ter direitos, o direito à<br />

luta pela igualdade de gênero, o direito<br />

a ser diferente, mas com igual acesso<br />

às o<strong>por</strong>tunidades – bandeiras históricas<br />

do movimento feminista – dependem<br />

fortemente da consolidação<br />

democrática para que eles se firmem.<br />

Com uma democracia despedaçada,<br />

que vivemos desde o golpe dado na<br />

presidenta Dilma Rousseff em 2016,<br />

e a fragilidade institucional que o país<br />

se encontra, todas essas lutas se veem<br />

sob forte ameaça, principalmente o<br />

combate a um patriarcado que insiste<br />

em se sobre<strong>por</strong>, há muitos anos em<br />

nossa sociedade, tentando inferiorizar<br />

as mulheres e apagar seu protagonismo<br />

na história.<br />

Entretanto, é nesse mesmo contexto<br />

nebuloso que focos claros de resistência<br />

e da luta feminista também<br />

ganham imensa visibilidade e expressão<br />

mundial. O protagonismo das mulheres<br />

em diversas lutas é<br />

reconhecido e notório na defesa da<br />

democracia e dos direitos sociais. Recentemente,<br />

pudemos ver o crescimento<br />

do manifesto das brasileiras de<br />

diversos espectros políticos contra o<br />

fascismo. Esse movimento tem logrado<br />

êxitos tanto na constituição da<br />

unificação da luta das mulheres<br />

quanto na concretização interna da<br />

sororidade feminina, elemento de<br />

vital im<strong>por</strong>tância para a sustentação<br />

do movimento e de suas conquistas.<br />

Todas <strong>por</strong> uma, todas <strong>por</strong> todas. É<br />

como diz a música entoada em diversas<br />

manifestações femininas e feministas:<br />

“Companheira, me ajuda, que<br />

eu não posso andar só. Eu sozinha<br />

ando bem, mas com você ando melhor”.<br />

Não há dúvidas: o feminismo é<br />

coletivo.<br />

É neste contexto que o Sinpro Minas<br />

lança o 11º número da revista <strong>Elas</strong><br />

<strong>por</strong> <strong>Elas</strong> trazendo, entre todas suas<br />

páginas, relatos, depoimentos e informações<br />

sobre temas atuais e fundamentais<br />

para o fortalecimento da resistência<br />

a todas as tentativas de retrocesso.<br />

Falar do assassinato da vereadora<br />

do Rio de Janeiro, Marielle<br />

Franco, é escancarar a tentativa de silenciar<br />

a mulher e toda a população<br />

negra, pobre, LGBTQI+; falar do descaso<br />

dos governos com a maternidade<br />

pública no Brasil é dar voz a todas as<br />

mulheres que lutam para ser mãe de<br />

forma saudável e segura; falar da saúde<br />

da pessoa trans é dar visibilidade à<br />

discriminação, homofobia e falta de<br />

respeito aos direitos do ser humano;<br />

falar dos bebês que são retirados de<br />

suas mães sem o consentimento das<br />

mesmas é denunciar as atrocidades<br />

de nossa sociedade; falar das barreiras<br />

para a mulher na produção cinematográfica<br />

é mostrar que o machismo<br />

impera também nessa área; falar da<br />

necessidade de discriminalizar o aborto<br />

é pro<strong>por</strong> um debate que precisa<br />

ser feito abertamente, saindo do campo<br />

religioso e ouvindo principalmente<br />

as mulheres. E, acima de tudo, falar<br />

da luta vitoriosa das professoras, em<br />

Minas Gerais, <strong>por</strong> nenhum direito a<br />

menos é demarcar que o país é nosso<br />

e que vamos seguir firmes na luta <strong>por</strong><br />

uma educação de qualidade e com a<br />

garantia de tudo que já conquistamos.<br />

Enfim, são muitas matérias e muitos<br />

convites à reflexão de como estamos<br />

construindo nossa sociedade e o quanto<br />

precisamos lutar para mudarmos<br />

paradigmas, preconceitos, discriminações<br />

e autoritarismos.<br />

Nossa revista <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> é sempre<br />

um convite para novos olhares. Olhares<br />

de pessoas que, como nós, vivem,<br />

lutam e sonham com um mundo mais<br />

justo, igualitário e humano. Como nos<br />

diz a música do compositor e cantor<br />

Arnaldo Antunes; “Seu olhar melhora<br />

o meu”. Que todos estes olhares nos<br />

ajudem a ver com mais clareza. Ótimos<br />

olhares. Boa leitura!<br />

Valéria Morato<br />

Presidenta do Sinpro Minas<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

3


Exposição<br />

A pele que habito<br />

7<br />

Luta de classes<br />

Guerrilheiras nas frentes de lutas<br />

Capa<br />

Maternidade<br />

ameaçada<br />

31<br />

Artigo<br />

A gente não quer só saúde:<br />

a gente quer gratuita, pública<br />

e de qualidade!<br />

Diversidade<br />

Uma luta<br />

necessária<br />

19<br />

Educação<br />

Desafios na trajetória acadêmica<br />

41 55<br />

25<br />

Saúde<br />

Aborto: questão de saúde pública<br />

47<br />

Artigo<br />

Ecofeminismo: construindo uma<br />

metodologia libertária<br />

65<br />

4 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


Memória<br />

Marielles não morrem<br />

Realidade<br />

Mães órfãs:<br />

71<br />

115<br />

Exposição<br />

Habitadas<br />

Perfil<br />

Avelin Buniacá<br />

83<br />

Machismo<br />

Canções que abalam<br />

Cultura<br />

Ela faz cinema<br />

125<br />

97 107<br />

Poucas e boas<br />

Internet<br />

Livros<br />

Filmes<br />

Retrato<br />

128<br />

129<br />

130<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

5


Departamento de Comunicação do Sinpro Minas: comunicacao@sinprominas.org.br<br />

Diretores responsáveis: Aerton Silva, Clarice Barreto e Gilson Reis (licenciado).<br />

Editoras/Jornalistas responsáveis: Carina Aparecida (MG13115JP) e Nanci Alves (MG003152JP).<br />

Redação: Cecília Alvim (MG09287JP), Déa Januzzi (MG2377JP),<br />

Débora Junqueira (MG05150JP) e Denilson Cajazeiro (MG09943JP).<br />

Projeto gráfico e Diagramação: Mark Florest.<br />

Revisão: Aerton Silva<br />

Foto capa: Comunicação Hospital Sofia Feldman<br />

Conselho Editorial: Antonieta Mateus, Clarice Barreto, Lavínia Rodrigues, Maria Izabel Bebela Ramos,<br />

Marilda Silva, Liliani Salum Moreira, Luliana Linhares, Soraya Abuid, Terezinha Avelar e Valéria Morato.<br />

Impressão: EGL-Editores Gráficos Ltda - Tiragem: 2.000:<br />

Distribuição gratuita: Circulação dirigida<br />

REVISTA ELAS POR ELAS<br />

PUBLICAÇÃO DO DEPARTAMENTO DE<br />

COMUNICAÇÃO DO SINPRO MINAS<br />

ANO XII - Nº 11 - OUTUBRO DE <strong>2018</strong><br />

ACESSE AS EDIÇÕES ANTERIORES EM<br />

www.sinprominas.org.br<br />

<strong>Elas</strong> <strong>por</strong> elas - nº 10<br />

Diretoria Gestão 2016/2020<br />

Adelmo Rodrigues de Oliveira, Aerton de Paulo Silva, Albanito Vaz Júnior (in memoriam), Alessandra Cristina Rosa, Alexandre Durann<br />

Matos, Alina Machado Moreira, Altamir Fernandes de Sousa, Ângela Maria da Silva Gomes, Ângelo Filomeno Palhares Leite, Antonieta<br />

Shirlene Mateus, Antônio Marcos das Chagas, Aparecida Gregório Evangelista da Paixão, Arnaldo Oliveira Júnior, Beatriz Claret Torres,<br />

Braulio Pereira dos Santos, Bruno Burgarelli Albergaria Kneipp, Camillo Rodrigues Júnior, Carla Fenícia de Oliveira, Carlos Afonso de Faria<br />

Lopes, Carlos Magno Machado, Carlos Roberto Schutte Junior, Carolina Azevedo Moreira, Cecilia Maria Vieira Abrahão, Celina Alves<br />

Padilha Arêas, Cid Indalécio Moreira Alves, Clarice Barreto Linhares, Claudia Nunes dos Santos Silva, Clédio Matos de Carvalho, Clovis<br />

Alves Caldas Filho, Décio Braga de Souza, Diogo Oliveira, Edson de Oliveira Lima, Edson de Paula Lima, Eduardo Arreguy Campos, Eliana<br />

Assunção Franco Codignole, Fábio dos Santos Pereira, Fabio Marinho dos Santos, Fátima Amaral Ramalho, Fernando Dias da Silva,<br />

Fernando Lucio Correia, Filipe Luis dos Santos, Francine Fernandes Cruz, Franz Lima Petrucelli, Geraldo Fabio Alves de Souza, Gilson Luiz<br />

Reis, Gisele Andrea Satrapa Oliveira, Grace Marisa Miranda de Paula, Guilherme Caixeta Borges, Haida Viviane Palhano Arantes, Handerson<br />

Correa Gomes, Heber Paulino Pena, Hélcia Amélia de Menezes Quintão Simplício, Helena Vicentina Flores, Heleno Célio Soares, Henrique<br />

Moreira de Toledo Salles, Hermes Honório da Costa, Hugo Gonçalves Soares, Humberto de Castro Passarelli, Idelmino Ronivon da Silva,<br />

Inez Grigolo Silva, Isabela Maria Oliveira Catrinck, Jaderson Teixeira, Jaqueline Rodrigues Gouveia Gomes, Jefferson Costa Guimarães,<br />

João Francisco dos Santos, Jones Righi de Campos, José Carlos Padilha Arêas, Josiana Pacheco da Silva Martins, Josiane Soares Amaral<br />

Garcia, Juvenal Lima Gomes, Kelly Angelina dos Reis Oliveira, Kenya de Jesus Sodre, Leila Lucia Gusmão de Abreu, Leonardo Alves Rocha,<br />

Lilian Aparecida Ferreira de Melo, Liliani Salum Alves Moreira, Luiz Antonio da Silva, Luiz Carlos da Silva, Luiz Claudio Martins Silva, Luliana<br />

de Castro Linhares, Marco Antonio Ramos, Marcos Antonio de Oliveira, Marcos Gennari Mariano, Marcos Paulo da Silva, Marcos Vinícius<br />

Araújo, Maria Célia Silva Gonçalves, Maria Cristina Teixeira do Vale, Maria da Conceição Miranda, Maria da Glória Moyle Dias, Maria Elisa<br />

Magalhães Barbosa, Maria Luiza de Castro, Mariana Helena Moreira Nascimento, Marilda Silva, Marilia Ferreira Lopes, Mario Roberto<br />

Martins de Souza Silva Braga, Marta Betânia Pereira Pimenta, Mateus Júlio de Freitas, Messias Simão Telecesqui, Miguel Jose de Souza,<br />

Miriam Fátima dos Santos, Moises Arimateia Matos, Mônica Junqueira Cardoso Lacerda, Nalbar Alves Rocha, Nelson Luiz Ribeiro Da Silva,<br />

Newton Pereira de Souza, Orlando Pereira Coelho Filho, Paola Notari Pasqualini, Patricia de Oliveira Costa, Petrus Ferreira Ricetto,<br />

Pitágoras Santana Fernandes, Ricardo de Albuquerque Guimarães, Robson Jorge de Araújo, Rockefeller Clementino da Silva, Rodrigo<br />

Rodrigues Ferreira, Rodrigo Souza de Brito, Rogerio Helvídio Lopes Rosa, Rossana Abbiati Spacek, Rozana Maris Silva Faro, Sandra Lúcia<br />

Magri, Sandra Maria Nogueira Vieira, Sebastião Geraldo de Araújo, Silvio Rodrigo de Moura Rocha, Simone Esterlina de Almeida Miranda,<br />

Siomara Barbosa Candian Iatarola, Sirlane Zebral Oliveira, Sirley Trindade Vilela Lewis, Tarcisio Fonseca da Silva, Telma Patrícia de Moraes<br />

Santos, Teodoro José Eustáquio de Oliveira, Terezinha Lúcia de Avelar, Thais Claudia D’Afonseca da Silva, Uldelton Paixão Espírito Santo,<br />

Umbelina Angélica Fernandes, Valéria Peres Morato Gonçalves, Vera Cruz Spyer Rabelo, Vera Lucia Alfredo, Virgínia Ferreira Ramos e<br />

Wellington Teixeira Gomes,<br />

f t i sinprominas g sinprominas.org.br<br />

FILIADO À<br />

SINDICATO DOS PROFESSORES DO ESTADO DE MINAS GERAIS<br />

SEDE: Rua Jaime Gomes, 198 - Floresta - CEP: 31015.240 - Fone: (31) 3115 3000<br />

Belo Horizonte - www.sinprominas.org.br<br />

SINPRO CERP - Centro de Referência dos Professores da Rede Privada<br />

Rua Tupinambás, 179 - Centro - CEP: 30.120-070 - BH - Fone: (31) 3274 5091<br />

REGIONAIS:<br />

Barbacena: Rua Silva Jardim, 425 - Boa Morte - CEP: 36201-004 - Fone: (32) 3331-0635; Coronel Fabriciano:<br />

Rua Moacir D'Ávila, 45 - Bairro dos Professores - CEP: 35170-014 - Fone: (31) 3841-2098; Di vinópolis: Av:<br />

Amazonas, 1.060 - Sidil - CEP: 35500-028 - Fone: (37) 3221-8488; Governador Valadares: Rua Benjamin<br />

Constant, 653 - Térreo - Centro - CEP: 35010-060 - Fone: (33) 3271-2458; Montes Claros: Rua Januária,<br />

672 - Centro - CEP: 39400-077 - Fone: (38) 3221-3973; Patos de Minas: Rua José Paulo Amorim, 150 -<br />

Guanabara - CEP: 38701-174 - Fone: (34) 3823-8249; Poços de Caldas: Rua Mato Grosso, 275 - Centro, CEP:<br />

37701-006 - Fone: (35) 3721-6204; Pouso Alegre: Rua Dom Assis, 241 - Centro - CEP: 37550-000 - Fone:<br />

(35) 3423-3289; Sete Lagoas: Rua Vereador Pedro Maciel, 165 - Nossa Senhora das Graças - CEP: 35700-<br />

477 - Fone: (31) 3772-4591; Uberaba: Rua Alfen Paixão, 105 - Mercês - CEP: 38060-230 - Fone: (34) 3332-<br />

7494; Uberlândia: Rua Olegário Maciel, 1212 - Centro - CEP: 38400-086 - Fone: (34) 3214-3566; Varginha:<br />

Av. Doutor Módena, 261 - Vila Adelaide - CEP: 37010-190 - Fone: (35) 3221-1831.<br />

6 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


Edição de moda: Dalila Coelho, Melissa Argôlo, Rafaela Corrêa<br />

Fotografia: Maria Frois<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

7


Universidade Federal de Minas Gerais<br />

Escola de Belas Artes<br />

Curso Design da Moda<br />

Disciplina Produção de Moda<br />

Orientador Professor Tarcísio D’Almeida<br />

Editorial “A pele que habito”<br />

Equipe: Dalila Coelho, Melissa Argôlo, Rafaela Corrêa<br />

Fotografia: Maria Fróis<br />

Styling: Dalila Coelho e Melissa Argôlo<br />

Beleza: Rafaela Corrêa<br />

Modelos: Isabela Azevedo, Lorraine Batista, Lua Sangi,<br />

Mayara Santos, Eurides Colen e Valéria dos Santos<br />

Julho de <strong>2018</strong><br />

Belo Horizonte


<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

17


Valéria Morato preside assembleia de professores do setor privado em <strong>2018</strong>.<br />

± | Sinpro Minas


Luta de classes<br />

<strong>por</strong> Aloísio Morais<br />

Guerrilheiras nas<br />

frentes de lutas<br />

Não tem como negar: <strong>2018</strong> será<br />

marcado em Minas, e também em diversas<br />

regiões do país, como o ano<br />

que teve as mulheres como protagonistas<br />

nas lutas contra a retirada de<br />

direitos. E elas venceram, deixando<br />

um belo exemplo para toda a classe<br />

trabalhadora. Na área educacional em<br />

Minas, tivemos as greves das professoras<br />

do setor privado, das educadoras<br />

infantis da Prefeitura de Belo Horizonte,<br />

e das professoras da rede estadual<br />

de ensino público.<br />

As combativas professoras (e professores)<br />

do setor privado de Minas<br />

Gerais puxaram uma greve de 12 dias<br />

em maio e junho para rechaçar um<br />

tremendo retrocesso proposto pelo<br />

sindicato patronal. Conquistas históricas<br />

dos trabalhadores e da categoria<br />

foram ameaçadas, mas, unidas, professoras<br />

e professores não pensaram<br />

duas vezes em ir à greve para garantir<br />

seus direitos. E garantiram!<br />

Os patrões tentaram pegar carona<br />

na reforma trabalhista do governo golpista<br />

para im<strong>por</strong> seus interesses. Quiseram<br />

mexer em quase tudo da convenção<br />

coletiva de trabalho. Se não<br />

fossem à luta, professoras e professores<br />

perderiam direitos e conquistas históricas<br />

como as bolsas de estudos, o<br />

descanso de 15 minutos durante o trabalho,<br />

o adicional <strong>por</strong> tempo de serviço<br />

ou mesmo mudança no calendário de<br />

férias, entre várias outras questões.<br />

Não foram poucos os pais e alunos,<br />

aliás, principalmente alunas, que se<br />

solidarizaram com as professoras e<br />

professores do setor privado. Uma delas<br />

foi Sofia Ramos Jayme, aluna da<br />

segunda série do ensino médio de<br />

uma escola de Belo Horizonte. “A greve<br />

dos professores me comoveu”, diz. “A<br />

capitalização da educação acaba com<br />

toda uma geração de jovens promissores,<br />

tornando seu crescimento e<br />

formação um produto. Mas a verdade<br />

é que meu futuro naquele momento<br />

não era meu foco, era o dos meus professores.<br />

Os educadores que tiveram<br />

seus direitos ameaçados não são números,<br />

não são um fardo que reduz<br />

os lucros que a educação traz, são pais,<br />

filhos e, primeiramente, seres humanos.<br />

Neste movimento, pude ver de<br />

perto o temor daqueles com quem<br />

convivo, aqueles que me ensinam sobre<br />

humanidade. Participar da greve é<br />

uma aplicação dos valores ensinados<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

19


<strong>por</strong> aqueles que tanto lutam <strong>por</strong> melhores<br />

condições nesse árduo trabalho<br />

que é educar”, afirma a estudante.<br />

Para Sofia, sua participação no movimento<br />

se deveu às figuras que a criaram.<br />

“Hoje já não sei contar quantas<br />

foram as educadoras que deixaram<br />

suas marcas em meu caminho, mas<br />

tenho certeza que dentro de mim tem<br />

um pouco de cada uma que me ensinou<br />

a olhar. As professoras, essas sábias<br />

mulheres que colorem as cinzas paredes<br />

escolares, são exemplo de força,<br />

liderança e humanidade. Neste espaço<br />

amplamente feminino encontramos<br />

novas mães que nos confortam no caminho<br />

da educação”, acrescenta.<br />

"O movimento grevista foi marcado<br />

<strong>por</strong> grande participação feminina. As<br />

professoras, estudantes, mães de estudantes,<br />

demonstraram força e coragem<br />

na luta contra o ofensiva patronal<br />

de retirada de direitos. E foram<br />

fundamentais na vitória! As mulheres<br />

não mediram esforços na resistência<br />

<strong>por</strong> uma educação de excelência para<br />

todas e todos envolvidos no processo<br />

educacional", destaca a presidenta do<br />

Sindicato dos Professores do Estado<br />

de Minas Gerais (Sinpro Minas), Valéria<br />

Morato, que viveu intensamente todos<br />

os momentos da greve.<br />

Educadoras infantis<br />

pararam Umeis<br />

Polly Schivek<br />

Outro movimento grevista marcante<br />

em <strong>2018</strong>, em Belo Horizonte, foi o das<br />

5 mil professoras das 132 Unidades<br />

Municipais de Educação Infantil<br />

(Umeis) e de 42 escolas municipais<br />

que atendem a faixa etária. A greve<br />

teve início em 23 de abril, quando elas<br />

tiveram que enfrentar até a tropa de<br />

choque da polícia. Lutadoras, mantiveram-se<br />

em greve <strong>por</strong> 52 dias, quando<br />

parte delas permaneceram acampadas<br />

<strong>por</strong> 21 dias em frente ao prédio da<br />

prefeitura, na Avenida Afonso Pena.<br />

O movimento das grevistas contou<br />

com o apoio de professores de outros<br />

segmentos, pais e mães. A reivindicação<br />

central era a garantia de uma carreira<br />

unificada, com os mesmos direitos<br />

dos professores do ensino fundamental<br />

na rede.<br />

Formada <strong>por</strong> profissionais que já<br />

têm trajetória na educação, as professoras<br />

infantis formam uma categoria<br />

relativamente nova, criada em 2003<br />

com remuneração baixa e em condições<br />

de trabalho desiguais em relação<br />

aos demais professores da rede. Por<br />

isso é uma categoria sempre em luta<br />

<strong>por</strong> melhores condições de trabalho.<br />

A primeira greve da educação infantil<br />

ocorreu em janeiro de 2005,<br />

quando a prefeitura tentou implantar<br />

uma jornada diferenciada, colocando<br />

11 meses de funcionamento ininterruptos.<br />

O movimento gerou um debate<br />

na cidade, conseguindo conquistar sua<br />

primeira vitória ao ter implantado o<br />

mesmo calendário da escola básica.<br />

Em 2012, realizaram nova greve específica,<br />

desta vez <strong>por</strong> 45 dias, quando<br />

conquistaram o direito de serem reconhecidas<br />

como professoras e não<br />

mais como educadoras infantis. Entre<br />

as conquistas mais significativas conseguiram<br />

a garantia da aposentaria especial<br />

de professor e a entrada no quadro<br />

de carreira do magistério, além de<br />

receber salário integral na dobra, abonos<br />

iguais aos do ensino fundamental<br />

e poder acumular dois cargos efetivos<br />

de magistério.<br />

Mas a greve que vai ficar marcada<br />

na memória das professoras das<br />

Umeis foi a realizada entre abril a ju-<br />

20 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


nho de <strong>2018</strong>. “A reivindicação central<br />

era carreira única e valorização”, contou<br />

Evangely Maria Oliveira Rodrigues<br />

Albertini (foto), diretora do Sind-<br />

Rede/BH e professora da Escola Dom<br />

Orione e Umei Alaíde Lisboa. “No dia<br />

23 de abril tivemos uma assembleia<br />

na Praça da Estação e de lá seguimos<br />

em passeata até a prefeitura. Para<br />

pressionar para que fôssemos recebidas<br />

pelo prefeito, decidimos ocupar<br />

uma pista da Avenida Afonso Pena. A<br />

PM pediu que a desocupássemos e,<br />

quando estava sendo desocupada, a<br />

tropa de choque da PM começou a nos<br />

atacar com bombas de efeito moral,<br />

spray de pimenta e jatos d'água, uma<br />

coisa revoltante. Prenderam dois dirigentes<br />

do sindicato e o caminhão de<br />

som”, lembra a professora.<br />

Mas o feitiço acabou virando contra<br />

o feiticeiro. O episódio fez com que a<br />

greve ganhasse a mídia, o movimento<br />

cresceu, e no dia 25 já tinha a adesão<br />

de 100% da categoria. “A greve repercutiu<br />

pelo país e recebemos manifestações<br />

de apoio de diversas partes do<br />

pais e do mundo”, recorda Evangely.<br />

“Acabou que no dia 25 a Afonso Pena<br />

parou, o prefeito Kalil recebeu a comissão<br />

de negociação. Pudemos repudiar<br />

a violência sofrida e falar diretamente<br />

com ele como a professora<br />

da educação infantil é explorada e merece<br />

valorização e carreira única.”<br />

Resultado: depois de 52 dias de<br />

greve, mais uma vez, as professoras<br />

das Umeis saíram vitoriosas. Conseguiram<br />

que fosse apresentado um plano<br />

de unificação de carreira (alcançando<br />

80% da reivindicação), a devolução<br />

dos salários cortados e autonomia<br />

para construir o calendário de<br />

reposição. E nos próximos concursos<br />

serão exigidos aos/às candidatas/os o<br />

Curso Superior de Pedagoga e/ou o<br />

Normal Superior no ingresso da carreira.<br />

Além disso, o profissional será<br />

posicionado no nível correspondente<br />

à sua formação.<br />

“Nossa greve foi bastante sofrida.<br />

O prefeito Alexandre Kalil encerrou a<br />

mesa de negociação no início da greve.<br />

Não estávamos sendo ouvidas. Exigíamos<br />

a reabertura da mesa de negociação<br />

e apresentação de um projetolei<br />

para unificar nossa carreira. Sentíamos<br />

desrespeitadas, <strong>por</strong>que somos<br />

uma categoria maciçamente feminina,<br />

temos um salário pouco maior que o<br />

salário mínimo e tivemos nossos salários<br />

cortados. Nossa reivindicação<br />

era justa, exigíamos o que nos é de direito,<br />

um carreira com direitos iguais,<br />

pois temos a mesma formação. A dificuldade<br />

ficou evidenciada <strong>por</strong>que<br />

somos uma categoria de mulheres. O<br />

prefeito se mostrou machista, disse<br />

que ia esticar a corda para ver quem<br />

ia vencer, impôs o silêncio sem negociação,<br />

fez a greve se estender, exigiu<br />

a suspensão de greve para negociar,<br />

tentando ferir a organização das trabalhadoras.<br />

Fizemos pressão, muitos<br />

atos e procuramos todos os vereadores,<br />

deputados, pais, mães, sindicatos, Ministério<br />

Público e conseguimos arrancar<br />

o direito de carreira justa para<br />

a professora da educação infantil”,<br />

conclui Evangely.<br />

Rede estadual<br />

também foi à luta<br />

Quem também foi para o campo de<br />

batalha foram as professoras e demais<br />

servidores do ensino público estadual.<br />

Em assembleia no dia 28 de fevereiro,<br />

a categoria resolveu entrar em greve<br />

a partir de 8 de março, depois de in-<br />

Denilson Cajazeiro<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

21


frutíferas reuniões com secretários<br />

de Estado. Em 2015, após sete anos<br />

de lutas pelo pagamento do piso salarial<br />

e três grandes greves, a categoria<br />

conseguiu que uma lei estadual garantisse<br />

o pagamento do Piso Salarial<br />

Profissional Nacional, e a lei estadual<br />

21.710/15 garantiu o pagamento básico<br />

e não mais o subsídio.<br />

Para isso, as professoras aceitaram<br />

um processo de longo prazo, abriram<br />

mão de várias questões salariais e de<br />

carreira para conquistar o sonhado<br />

piso salarial. Porém, contrariando a<br />

legislação estadual e o próprio acordo<br />

assinado, o governo estadual acumulou<br />

dois reajustes (2017 e <strong>2018</strong>) sem pagar<br />

a categoria, deixando clara a sua disposição<br />

de não mais negociar com as<br />

servidoras.<br />

Não restou outra alternativa à greve,<br />

com as seguintes bandeiras de luta:<br />

pagamento do piso salarial conforme<br />

o acordo assinado entre o Sindicato e<br />

o Governo do Estado; fim do parcelamento<br />

dos salários e do 13º, pelo cumprimento<br />

dos acordos assinados e atendimento<br />

de qualidade pelo Ipsemg.<br />

A categoria se mobilizou intensamente<br />

e participou de uma série de<br />

assembleias, passeatas e até mesmo<br />

de uma manifestação na BR-381, na<br />

entrada de Belo Horizonte, no dia 15<br />

de março. Houve ainda travamento<br />

de pistas em outros locais, como a<br />

ocupação de parte da BR-040, na pista<br />

que vem de Brasília. As trabalhadoras<br />

insistiam em cobrar do governador o<br />

cumprimento dos acordos assinados<br />

e o pagamento do piso salarial, tendo<br />

realizado também gestões junto à Assembleia<br />

Legislativa e ao Ministério<br />

Público Federal e Estadual.<br />

Enquanto isso, as trabalhadoras/es<br />

em educação radicalizavam e, no dia<br />

4 de abril chegaram até mesmo a voltar<br />

a fechar a BR-381, desta vez em Igarapé.<br />

No dia seguinte foi a vez de uma marcha<br />

da educação, que partiu às 5h da<br />

Praça do Trabalhador, em Contagem,<br />

rumo ao Palácio da Liberdade, um<br />

trajeto de mais de dez quilômetros.<br />

A pressão começava a dar resultado.<br />

Uma reunião do Comando Estadual de<br />

Greve e representantes da Assembleia<br />

Legislativa, realizada em 4 de abril deu<br />

início à discussão sobre uma Proposta<br />

de Emenda à Constituição (PEC) a ser<br />

apresentada pelo Legislativo. O piso<br />

salarial seria garantido na Constituição<br />

Estadual, eliminando a necessidade de<br />

projeto de lei específico todo ano.<br />

Com o avanço das negociações, no<br />

dia 18 de abril os/as trabalhadores/as<br />

em Educação decidiram em assembleia<br />

entrar em estado de greve, suspendendo<br />

tem<strong>por</strong>ariamente a greve<br />

<strong>por</strong> tempo indeterminado. Mas impuseram<br />

algumas condições, como<br />

vincular o estado de greve à promulgação<br />

da PEC 49/18 sobre o piso salarial<br />

e realizar a negociação da reposição<br />

somente após a promulgação da PEC<br />

como forma de pressão.<br />

De outro lado, concordavam com<br />

as seguintes questões apresentadas<br />

pelo governo: regularização dos pagamentos<br />

de prestadores de serviço pelo<br />

Ipsemg até junho, incluindo o cartãofarmácia;<br />

retomada das nomeações do<br />

concurso (seriam no mínimo 10 mil<br />

nomeações em <strong>2018</strong>); retorno do pagamento<br />

de férias-prêmio em espécie<br />

para quem já se aposentou; pagamento<br />

do retroativo do reajuste de 2016 (pagamento<br />

parcelado de abril a dezembro<br />

deste ano), entre outras questões.<br />

"A presença da mulher é essencial,<br />

<strong>por</strong>que a gente só muda a realidade<br />

pela luta coletiva. As mulheres vivenciam<br />

várias violências que precisam<br />

ser enfrentadas e interrompidas. Fazemos<br />

isso com a presença das mulheres<br />

nos espaços políticos, nos sindicatos,<br />

nas lutas! ", destacava ao final<br />

da luta a coordenadora-geral do Sind-<br />

UTE/MG, Beatriz Cerqueira (foto), ao<br />

comentar sobre a im<strong>por</strong>tância da participação<br />

da mulher no movimento.<br />

Arquivo pessoal<br />

22 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


Trabalhadoras<br />

se unem pela<br />

defesa dos<br />

direitos<br />

A mulher representa mais de 52%<br />

da população e dos eleitores no Brasil,<br />

além de ser mais de 48% no mercado<br />

de trabalho. Porém, é sub-representada<br />

em todo espaço de poder. Para mudar<br />

esta realidade e lutar pela pauta específica<br />

das mulheres no mundo do trabalho<br />

e sindical, as seis maiores centrais<br />

sindicais do país (CSB, CTB, CUT, Força<br />

Sindical, NCST e UGT) se uniram no<br />

Fórum Nacional das Mulheres Trabalhadoras<br />

das Centrais Sindicais (FNMT).<br />

Com o golpe de 2016, que retirou uma<br />

presidenta eleita, as demandas hoje<br />

são bem maiores, como explica a diretora<br />

do Sinpro Minas, Secretária Nacional<br />

da Mulher Trabalhadora da CTB<br />

e membro do FNMT, Celina Arêas<br />

(foto): “só tivemos retrocesso nos direitos<br />

fundamentais das/os trabalhadoras/os.<br />

Seja na educação, saúde, trabalho,<br />

questões sociais etc. A degradação<br />

do mercado de trabalho é um dos<br />

pontos críticos no pós-reforma trabalhista.<br />

A maioria dos postos gerados<br />

são de trabalho intermitente, parciais,<br />

precarizados, além de mais de 13% de<br />

desemprego, ou seja, mais de 27 milhões<br />

de desempregados e, entre esses,<br />

a maioria são mulheres, elevando os<br />

níveis de extrema pobreza no país”.<br />

Celina reforça que em todos os dados<br />

de precarização do trabalho, as<br />

mulheres são as mais prejudicadas.<br />

“Estudo do Dieese mostra que entre<br />

2015 e 2017, 55,5% das pessoas que começaram<br />

a trabalhar nas ruas, <strong>por</strong>que<br />

ficaram desempregadas, são mulheres.<br />

Precisamos mudar o quadro das estatísticas<br />

sobre nós no país. O Brasil é o<br />

quinto país que mais mata mulheres<br />

no mundo; as mulheres cumprem uma<br />

jornada de trabalho extensa, em média<br />

54,4 horas <strong>por</strong> semana; e ocupam o<br />

154º lugar no ranking mundial da participação<br />

feminina em cargos políticos.<br />

Ganhamos quase 30% a menos que os<br />

homens, sofremos assédio moral e sexual<br />

e somos as primeiras a ser demitidas<br />

e as últimas a se realocar no mercado<br />

de trabalho”, destaca.<br />

Emancipação da classe<br />

trabalhadora<br />

As representantes sindicais no Fórum<br />

aprovaram uma Plataforma das Mulheres<br />

Trabalhadoras que foi entregue<br />

às/aos candidatas/os às eleições <strong>2018</strong>.<br />

Trata-se de um programa mínimo<br />

para exigir o compromisso com os interesses<br />

das mulheres trabalhadoras:<br />

nenhum direito a menos; trabalho decente;<br />

fim da violência contra a mulher;<br />

em defesa do SUS e da saúde da mulher;<br />

pela educação pública, laica e de<br />

qualidade; em defesa dos direitos fundamentais<br />

da classe trabalhadora etc.<br />

As trabalhadoras lutam pela revogação<br />

da lei da Reforma Trabalhista e da<br />

Emenda Constitucional 95, que congela<br />

o investimento público em todas as<br />

áreas <strong>por</strong> 20 anos, e querem também<br />

o engavetamento da ameçadora proposta<br />

da reforma da previdência.“As<br />

reformas promovidas pelos golpistas<br />

prejudicam toda a sociedade, mas são<br />

as mulheres as mais atingidas, seja<br />

no mercado de trabalho ou na falta<br />

de atendimento em questões que envolvam<br />

violência”, diz Celina. O FNMT<br />

defende a criação de políticas públicas<br />

e leis mais rigorosas contra o assédio<br />

moral e sexual, a discriminação de<br />

gênero, raça, deficiência ou orientação<br />

sexual. “O Fórum defende o empoderamento<br />

feminino, com mais mulheres<br />

no poder. “Não pode haver democracia<br />

plena sem a ampla participação das<br />

mulheres, da juventude e da população<br />

negra nas decisões do país. Para avanços<br />

em áreas essenciais é preciso ter<br />

mais presença feminina em cargos de<br />

decisão em todos os setores", afirma.<br />

CTB<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

23


Mirian Laxuquê, aluna da pós-graduação em Educação, UFMG.<br />

± | Carina Aparecida


Educação<br />

<strong>por</strong> Denilson Cajazeiro<br />

Desafios na trajetória<br />

acadêmica<br />

Quando decidiu tornar-se professora,<br />

na segunda metade dos anos 70,<br />

Analise da Silva contrariou a expectativa<br />

de seus familiares, que a imaginavam<br />

formada em engenharia. À época,<br />

ela cursava Edificações no Centro Federal<br />

de Educação Tecnológia, o Cefet,<br />

no bairro Nova Suiça, em Belo Horizonte.<br />

O avô a apoiou, embora não<br />

tenha ficado feliz com a mudança. A<br />

mãe disse para pensar melhor, mas foi<br />

mesmo a avó quem manifestou abertamente<br />

a sua insatisfação: “eu não<br />

acredito que a gente passou <strong>por</strong> tudo<br />

que a gente passou para você dar esse<br />

desgosto pra gente”.<br />

Apesar do apelo, Analise permaneceu<br />

firme na escolha e, após cursar<br />

o magistério, passou aos 17 anos em<br />

um concurso na rede pública de Belo<br />

Horizonte, em 1979. “Eu me lembro<br />

que fomos à delegacia do Horto buscar<br />

um documento de emancipação, para<br />

que eu pudesse tomar posse, já que<br />

era menor de idade. O local era o mesmo<br />

que todo ano íamos buscar a declaração<br />

de pobreza, em que comprovávamos<br />

nossa dificuldade financeira”.<br />

A decisão de seguir a carreira docente<br />

fora motivada <strong>por</strong> uma experiência<br />

na escola estadual onde estudou,<br />

na capital, e foi a única negra de<br />

sua turma. Quando tinha 15 anos, ela<br />

aceitou o convite feito <strong>por</strong> uma professora<br />

da instituição de ensino para<br />

substituí-la durante seis meses – período<br />

de uma licença para uma viagem.<br />

O trabalho em sala de aula rendeu a<br />

Analise o prêmio de melhor professora<br />

daquele ano na escola.<br />

Depois de 29 anos, 4 meses e 18<br />

dias como professora na rede municipal<br />

de ensino, ela passou em outro<br />

concurso, desta vez para a Faculdade<br />

de Educação da Universidade Federal<br />

de Minas Gerais (UFMG), onde está<br />

desde dezembro de 2008 e leciona<br />

em disciplinas na graduação, mestrado<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

25


e doutorado. “Quando cheguei aqui,<br />

na primeira ou segunda semana de<br />

aula, fui à sala do café, para beber<br />

água, e lá estavam três colegas conversando.<br />

Depois de ser apresentada<br />

<strong>por</strong> um dos professores, um deles disse:<br />

'ah, agora fechou as cotas, não é?'<br />

E aí eu respondi: 'não, só está começando,<br />

daqui a pouco vamos chegar<br />

chutando a <strong>por</strong>ta'. Como ficou aquele<br />

clima, ele disse que tinha sido uma<br />

brincadeira, e eu respondi que também<br />

estava brincando”, relata Analise (foto),<br />

ao comentar situações de racismo que<br />

com frequência se observa nos corredores<br />

das universidades brasileiras.<br />

O triste episódio ilustra os vários<br />

percalços que as mulheres negras enfrentam<br />

cotidianamente para estar<br />

num espaço historicamente marcado<br />

pela presença de mulheres e homens<br />

brancos. Só recentemente, com a adoção<br />

de políticas públicas de ações afirmativas,<br />

é que as instituições de ensino<br />

superior do país passaram a ter uma<br />

maior presença da população negra<br />

em seus bancos escolares.<br />

No entanto, desafios como a falta<br />

de políticas de assistência estudantil<br />

ou a desvalorização dos saberes das<br />

“O desafio na graduação<br />

é a sobrevivência<br />

ao longo<br />

do curso, <strong>por</strong>que o<br />

corpo negro é<br />

aceito, mas o saber<br />

negro não”<br />

Sinpro Minas<br />

mulheres negras tornam a permanência<br />

delas no espaço acadêmico uma<br />

luta cotidiana, para enfrentar o preconceito<br />

racial e de gênero. Casos de<br />

violência simbólica na academia, em<br />

decorrência do racismo institucional,<br />

são frequentemente relatados <strong>por</strong> elas.<br />

“O desafio na graduação é a sobrevivência<br />

ao longo do curso, <strong>por</strong>que o<br />

corpo negro é aceito, mas o saber<br />

negro não. O currículo é eurocêntrico<br />

e não se abre à pluralidade e às múltiplas<br />

formas de viver e estar no mundo<br />

e no Brasil”, critica a estudante Miriam<br />

Laxuquê, mestranda no curso de Pedagogia<br />

da UFMG, para quem o desafio<br />

começa <strong>por</strong> ser mulher, negra, pobre<br />

e da periferia. “O sistema não nos dá<br />

o<strong>por</strong>tunidade para competir em condições<br />

de igualdade”.<br />

A falta de espaço para pesquisar a<br />

temática de gênero e racial na academia<br />

é um dos problemas relatados<br />

pela estudante. Segundo aponta, muitos<br />

professores se recusam a orientar<br />

alunos com essa proposta, <strong>por</strong> afirmarem<br />

desconhecer o assunto. Com<br />

isso, a universidade perpetua um quadro<br />

de silenciamento da realidade e<br />

do conhecimento das mulheres negras.<br />

“Ao longo da minha trajetória na graduação,<br />

presenciei vários relatos dessa<br />

natureza, <strong>por</strong>que é difícil na universidade<br />

ter espaços para esse tipo de<br />

debate, racial e de gênero. O professor<br />

diz que não conhece o conteúdo e não<br />

pode trabalhá-lo. Por aí se percebe<br />

que os espaços de pesquisas ainda são<br />

reservados às pessoas brancas”.<br />

De fato, os números de bolsas de<br />

mestrado, doutorado, iniciação científica<br />

e produtividade em pesquisa<br />

concedidas a pesquisadoras e alunas<br />

de graduação e pós-graduação no país<br />

revelam a disparidade racial. Segundo<br />

26 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


dados do Ministério da Ciência, Tecnologia,<br />

Inovações e Comunicações<br />

(MCTIC), entre 2013 e 2017, na área<br />

de Ciências Exatas e da Terra, 11.638<br />

mulheres brancas entre 20 e 29 anos<br />

receberam bolsas do Conselho Nacional<br />

de Desenvolvimento Científico e<br />

Tecnológico (CNPq). Entre as mulheres<br />

negras na mesma faixa etária, esse<br />

número foi de 6.108 bolsas. Na área<br />

de Ciências Agrárias, também entre<br />

20 e 29 anos, foram 14.503 bolsas concedidas<br />

às mulheres brancas, enquanto<br />

as negras receberam 7.937. Em Linguística,<br />

Letras e Artes, foram 7.379 e<br />

3.477, respectivamente. No ano passado,<br />

do total de 93,5 mil bolsas do<br />

CNPq concedidas, 31% foram destinadas<br />

às mulheres brancas, enquanto<br />

as pesquisadoras e estudantes negras<br />

receberam 15% do total. Compilados<br />

pelo site Gênero e Número, os dados<br />

demostram que, também na academia,<br />

os obstáculos são bem maiores para<br />

as mulheres negras.<br />

Em outras ocasiões, afirma Mirian<br />

Laxuquê, o debate sobre o assunto em<br />

sala de aula torna-se um processo desgastante,<br />

que provoca uma sobrecarga<br />

emocial naquelas que o defendem.<br />

“Há uma resistência <strong>por</strong> parte de quem<br />

ministra os cursos, uma dificuldade<br />

de aceitar nosso ponto de vista. O<br />

nosso pocisionamento gera um desconforto<br />

naqueles que mantêm um<br />

padrão na universidade. Quando saímos<br />

de um lugar silenciado e passamos<br />

a ter voz, a gente passa a ser mais reprimida,<br />

e isso é um embate desgastante,<br />

que vai criando um sentimento<br />

de não lugar, de não pertencimento”,<br />

declara a estudante. Embora pouco<br />

abordado no interior da academia,<br />

esse mal-estar discente é mais comum<br />

do que se imagina e, conforme apon-<br />

11.638<br />

Brancas<br />

11. 7.487<br />

719<br />

Brancas<br />

Número de bolsas<br />

(Mulheres de 20 a 29 anos)<br />

6.108<br />

Negras<br />

Ciências Exatas<br />

e da Ter<br />

rra<br />

Negras<br />

Ciências Humanas<br />

14.503<br />

Brancas<br />

7.379<br />

Brancas<br />

Linguística,<br />

Letras<br />

e Artes<br />

7.937<br />

Negras<br />

Ciências Agrárias<br />

3.477<br />

Negras<br />

CNPq, de 2013 a 2017 (Mestrado, doutorado, iniciação científica, etc)<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

27


tam diversos estudos no campo da<br />

educação, tem sido um dos fatores<br />

responsáveis pelo abandono escolar.<br />

Não é <strong>por</strong> menos que, segundo dados<br />

da pesquisa “Estatísticas de gênero”,<br />

divulgada pelo IBGE neste ano,<br />

apenas 10% das mulheres negras completam<br />

o ensino superior no Brasil,<br />

enquanto o percentual de mulheres<br />

brancas com ensino superior completo<br />

é 2,3 vezes maior (23,5%). “A nossa<br />

permanência é um processo conturbado,<br />

pelo fato de a educação ter sido<br />

negada para a população negra como<br />

um todo, e o espaço não ter sido estruturado<br />

pra gente. Ainda não há políticas<br />

públicas que garantam a nossa<br />

permanência. Eu sou uma das poucas<br />

que conseguiu concluir o curso, <strong>por</strong>que<br />

a expulsão do espaço acadêmico ainda<br />

é muito comum. Por isso é preciso<br />

estar unido”, afirma Iara Amorin (foto),<br />

estudante do último período de Pedagogia<br />

da Universidade do Estado de<br />

Minas Gerais (UEMG).<br />

Docência<br />

Outro desafio apontado é a baixa presença<br />

de docentes negras no espaço<br />

acadêmico, o que dificulta a expansão<br />

de pesquisas sobre a temática racial e<br />

de gênero. A professora Analise, <strong>por</strong><br />

exemplo, faz parte do pequeno grupo<br />

de menos de 3% de doutoras negras<br />

na docência de pós-graduação brasileira,<br />

conforme dados do Censo da<br />

Educação Superior. “Até hoje, não houve<br />

um semestre em que pelo menos um<br />

aluno tenha me visto no início do curso<br />

e perguntado: 'cadê o professor'? 'Você<br />

é substituta'? Não consigo atribuir isso<br />

Arquivo pessoal<br />

senão à questão racial. Conversando<br />

com outras colegas brancas, elas me<br />

dizem que essas perguntas não são feitas<br />

a elas”, afirma Analise da Silva.<br />

Para a professora Ana Lúcia Souza,<br />

do Instituto de Letras da Universidade<br />

Federal da Bahia (UFBA), o que está<br />

em jogo é um modo distinto de ver o<br />

mundo. Por isso as matrizes curriculares,<br />

pontua a docente, precisam ser<br />

repensadas, pois as que predominam<br />

na academia hoje desconsideram as<br />

tradições da população negra. “É um<br />

espaço eurocentrado e torna-se um<br />

embate quando entramos com outra<br />

proposta. Os enfrentamentos nem<br />

sempre são explícitos, mas as pessoas<br />

colocam sob suspeita seu saber, seus<br />

conhecimentos. É como se duvidassem<br />

o tempo todo da nossa capacidade de<br />

estar ali”, diz Ana Lúcia Souza.<br />

Atualmente, a pesquisadora se dedica<br />

a estudar a conexão entre o hip<br />

hop, a juventude negra e a educação.<br />

“Estou muito atenta para esses movimentos<br />

juvenis, que são muito renovadores.<br />

Tenho trabalhado com o conceito<br />

de letramento de reexistência.<br />

Na realidade, não é só existir como se<br />

estivéssemos dando resposta, mas<br />

também a gente reinventar nosso<br />

modo de ser, nossa agenda negra. Pensar<br />

nossas tradições nesses espaços<br />

de escolarização que sempre nos rejeitaram”,<br />

explica a pesquisadora. Na<br />

universidade onde leciona, apenas 2%<br />

do corpo docente é formado <strong>por</strong> negros,<br />

de um total de cerca de três mil<br />

professores, conforme levantamento<br />

do Coletivo Luiza Bairros, que atua<br />

no combate ao racismo na instituição.<br />

Na Bahia, vale lembrar, 76,3% das pessoas<br />

se autodeclaram pretas e pardas,<br />

de acordo com o IBGE. O estado é o<br />

segundo maior do país em número<br />

28 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


de pessoas que se autodeclaram negras,<br />

atrás apenas do Pará.<br />

Há dois anos, a Universidade Federal<br />

de Juiz de Fora (UFJF) decidiu<br />

estampar o racismo presente na academia<br />

<strong>por</strong> meio de uma campanha<br />

institucional. Cartazes foram espalhados<br />

pelo campus com a imagem<br />

de professores negros e a seguinte<br />

pergunta: “quantos professores negros<br />

você tem?”. A iniciativa chamou a atenção<br />

de quem passou pelos corredores<br />

da instituição sobre a desigualdade<br />

racial no país, que se reproduz nos<br />

mais diferentes ambientes, inclusive<br />

nas universidades públicas brasileiras.<br />

Para superar esse quadro, professoras<br />

e alunas negras apontam a necessidade<br />

de ir além das políticas de<br />

cotas. Entre outras medidas, elas defendem<br />

a ampliação do número de<br />

bolsas de estudo para a produção de<br />

pesquisas com a temática racial e de<br />

gênero, o acesso a políticas de permanência<br />

estudantil e a publicação<br />

de editais específicos, que contemplem,<br />

<strong>por</strong> exemplo, a publicação de<br />

livros e a seleção de docentes. “A gente<br />

só consegue se enxergar em um espaço<br />

quando nos reconhecemos. Infelizmente,<br />

temos pouco acesso ao conhecimento<br />

gerado pelas mulheres negras.<br />

Acho que publicações para difundir<br />

mais essas produções científicas produziriam<br />

uma valorização grande para<br />

quem está entrando no ensino superior,<br />

para poder enxergar esse espaço<br />

como um lugar de possibilidades”, opina<br />

Miriam Laxuquê.<br />

Frente a esses desafios, a professora<br />

Analise demonstra preocupação, já que<br />

as recentes medidas restritivas do governo<br />

Temer freiam a expansão de<br />

o<strong>por</strong>tunidades no país e aceleram as<br />

desigualdades. “Se a gente não conseguir<br />

revogar a emenda 95, que congela<br />

investimentos <strong>por</strong> 20 anos, vejo pouca<br />

possibilidade de alterar esse cenário<br />

atual. Vamos ter de começar do zero.<br />

E começar do zero, para nós, negros, é<br />

dizer que não vamos começar”, afirma.<br />

Para a estudante Iana Amorin, o cenário<br />

atual poderia ser outro caso a lei 10.639<br />

estivesse sendo adotada em todo o país.<br />

“O povo negro lutou,<br />

historicamente, e temos<br />

de honrá-lo, trazendo<br />

o conhecimento<br />

negro para dentro<br />

desse universo<br />

Aprovada há 15 anos, a legislação tornou<br />

obrigatório o ensino de história e cultura<br />

africana e afrobrasileira nas escolas<br />

públicas e particulares. Ocorre que,<br />

em muitas instituições de ensino, a temática<br />

pouco abordada e, muitas vezes,<br />

fica restrita a datas comemorativas,<br />

como o Dia Nacional da Consciência<br />

Negra, em 20 de novembro. “É necessário<br />

que a população negra se organize<br />

e constitua-se como um povo autônomo.<br />

A gente sabe que o povo negro lutou,<br />

historicamente, e temos de honrá-lo,<br />

trazendo o conhecimento negro<br />

para dentro desse universo. Nossa base<br />

não é da subalternidade e do encarceramento,<br />

e sim do conhecimento. Vamos<br />

retornar ao passado e fazer o presente<br />

valer a pena”, afirma Amorin,<br />

que planeja continuar os estudos, num<br />

mestrado em Educação.<br />

Depositphotos<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

29


Moara Gomes Ferreira no Centro de Parto Normal Helena Greco - Hospital Sofia Feldman.<br />

± | Comunicação Sofia Feldman


Capa<br />

<strong>por</strong> Cecília Alvim<br />

foto Arquivo Sofiia Feldman<br />

Maternidade<br />

ameaçada<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2018</strong><br />

31


Em uma manhã ensolarada, chego<br />

ao Hospital Sofia Feldman, na região<br />

norte de Belo Horizonte. Já no pátio<br />

de entrada, onde há abrigos sombreados<br />

em que pessoas descansam, é possível<br />

ver muitas mulheres, grávidas,<br />

trabalhadoras, mães com crianças de<br />

colo, um movimento intenso de pessoas<br />

que anuncia a vida que pulsa incessantemente<br />

nesse lugar. Vidas que<br />

nascem, que esperam, que acolhem,<br />

que acariciam, vidas que sorriem!<br />

Reconhecido nacionalmente como<br />

maternidade de referência na assistência<br />

humanizada ao parto, o Sofia,<br />

como é conhecido, atende mulheres<br />

de todo o estado, de todos os cantos<br />

do país, migrantes, imigrantes, enfim,<br />

qualquer mulher que precise de um<br />

pouso para fazer a vida nascer. Por<br />

ser um hospital “<strong>por</strong>ta aberta”, atende<br />

a todas as mulheres, antes, durante e<br />

após o parto, sem restrições, além de<br />

atender também bebês recém-nascidos<br />

em seus leitos e na UTI Neonatal.<br />

Na fachada do hospital, uma placa<br />

grande anuncia: 100% SUS, ou seja,<br />

todo o atendimento do Sofia é pelo<br />

Sistema Único de Saúde e voltado para<br />

a população em geral. Assim, a maternidade<br />

não distingue seu público<br />

<strong>por</strong> renda ou origem social. Com isso,<br />

é a maior maternidade do Brasil em<br />

número de partos. São mais de 900<br />

<strong>por</strong> mês, 11 mil <strong>por</strong> ano. Da <strong>por</strong>taria<br />

para dentro, são todas mulheres, dignas<br />

de uma assistência humanizada,<br />

protagonistas de seus partos e de suas<br />

histórias. “Com 34 anos de existência,<br />

nós abraçamos o SUS desde o início.<br />

Todas são atendidas da mesma forma.<br />

E isso não é favor, é direito, é cidadania<br />

plena”, afirma o médico Ivo Lopes,<br />

que é um dos diretores fundadores<br />

do Sofia.<br />

“<br />

Da <strong>por</strong>taria para dentro,<br />

são todas mulheres,<br />

dignas de uma assistência<br />

humanizada,<br />

protagonistas de seus<br />

partos e de suas histórias.”<br />

Cecília Alvim<br />

32 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


Protagonismo<br />

feminino<br />

E o que faz o Hospital Sofia Feldman<br />

ser assim tão diferenciado e reconhecido?<br />

Para o médico Ivo Lopes, um<br />

dos diferenciais está no fato da maternidade<br />

ter a sua equipe formada<br />

majoritariamente <strong>por</strong> mulheres, desde<br />

sua origem. “As mulheres apoiaram o<br />

tipo de atendimento que temos aqui.<br />

Essa luta tem sido feita pelas mulheres.<br />

O hospital é delas”, destaca. <strong>Elas</strong> são<br />

80% dos funcionários do Sofia. São<br />

elas que assistem outras mulheres —<br />

conhecem bem da mesma realidade<br />

e dos desafios da gestação e do parto<br />

e, com isso, conseguem dar o apoio<br />

necessário a esse momento tão delicado<br />

e bonito que é o nascimento.<br />

Para Vera Bonazzi (foto), enfermeira<br />

e responsável técnica pela enfermagem<br />

do Sofia, esse diferencial está<br />

sim nas mulheres, inclusive naquelas<br />

que são enfermeiras obstetras e assistem<br />

aos partos de perto. “Nós ficamos<br />

ao lado das gestantes, com conhecimento<br />

e assistência para que<br />

elas tenham uma experiência positiva<br />

de parto”. Para ela, esse modelo respeita<br />

as mulheres que trabalham na<br />

instituição, que integram equipes multiprofissionais,<br />

e também aquelas que<br />

são assistidas, <strong>por</strong>que gera compartilhamento<br />

de informações, co-responsabilidade,<br />

autonomia, diálogo. “Essa<br />

forma de cuidar empodera a mulher,<br />

<strong>por</strong>que as decisões não são unilaterais,<br />

mas dialogadas”, destaca Vera.<br />

“Para se mudar o mundo, é preciso<br />

mudar a forma de nascer”, como dizia<br />

o obstetra Michel Odent, citado <strong>por</strong><br />

Vera. Ela entende que o Sofia tem mudado<br />

a forma de nascer de muitas<br />

crianças, e com isso mudado o mundo<br />

delas e de suas mães, <strong>por</strong>que, segundo<br />

Vera, a experiência positiva do nascimento<br />

marca para toda a vida.<br />

Assim, o hospital é conhecido <strong>por</strong><br />

incentivar e apoiar a realização de um<br />

grande número de partos normais e<br />

naturais e <strong>por</strong> evitar intervenções desnecessárias<br />

e cesarianas, que só são<br />

realizadas sob critérios rigorosos de<br />

indicação. Essa forma humanizada de<br />

assistência ao nascimento, que gera<br />

tantas mudanças, está baseada em<br />

evidências científicas e protocolos do<br />

Ministério da Saúde, da Organização<br />

Mundial de Saúde, e tem como um de<br />

seus objetivos “resgatar a imagem do<br />

parto normal como uma forma prazerosa,<br />

segura e saudável de dar à luz”,<br />

conforme nota do hospital.<br />

Nos últimos tempos, mulheres que<br />

têm acesso a mais informações e a<br />

grupos de preparação para o parto,<br />

têm procurado o Sofia em busca de<br />

algo que muitas vezes não encontram<br />

nas maternidades convencionais: acolhimento,<br />

direito à escolha informada,<br />

e boas práticas que facilitam o caminho<br />

para o parto normal, a despeito da<br />

onda de cesarianas e de violência obstétrica<br />

de que se tem notícia nos tempos<br />

atuais. “A hospitalização do parto<br />

implicou na subordinação da mulher<br />

à ordem médica. Mas, com o tempo,<br />

as mulheres têm rompido com esse<br />

paradigma, e têm decidido escolher a<br />

forma como querem ter seus filhos”,<br />

afirmou Ivo Lopes.<br />

A assistência diferenciada do Sofia<br />

vem também de uma concepção compartilhada<br />

na época de sua fundação.<br />

“Os profissionais que estavam à frente<br />

acharam que deviam adotar um mo-<br />

Sofia Feldman<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

33


delo não-hegemônico de assistência<br />

ao parto, mais centrado na mulher,<br />

menos tecnocrático e intervencionista.<br />

Isso aconteceu numa época de contestação<br />

ao modelo de assistência em<br />

nível mundial. E as profissionais que<br />

aqui estavam contribuíram muito para<br />

essa construção”, segundo João Batista<br />

Lima, médico e diretor do hospital.<br />

E é a partir dessas mudanças de<br />

práticas assistenciais e de experiências<br />

de parto que a vida vai se recriando<br />

para tantas gestantes, crianças, famílias,<br />

trabalhadoras. Mulheres que vão tomando<br />

consciência de seus direitos,<br />

se empoderando e transformando a<br />

história — uma história bonita que é<br />

reescrita a cada dia no cotidiano de<br />

uma das maiores maternidades do país.<br />

Conheça um pouco<br />

do Sofia<br />

Sofia Feldman<br />

As mulheres que procuram a maternidade<br />

são acolhidas em diversos espaços<br />

para além dos 185 leitos hospitalares<br />

disponíveis. Se tiverem algum<br />

agravamento na gravidez, são assistidas<br />

na Casa da Gestante Zilda Arns. Lá,<br />

além de quartos, há um jardim especial,<br />

onde mulheres recebem escalda-pés,<br />

terapias e carinhos para atenuar<br />

o mal-estar e as tensões das últimas<br />

semanas de gravidez. Já as mães<br />

de recém-nascidos internados podem<br />

ficar no Espaço de Sofias, enquanto<br />

seu bebê está na UTI, ou na Casa do<br />

Bebê, onde ficam junto da criança enquanto<br />

ela ganha peso, o que traz tranquilidade<br />

e saúde para mães e bebês.<br />

Também existe no Sofia a creche para<br />

atender às funcionárias, que podem<br />

amamentar em livre demanda, além<br />

da existência da “Sala de Apoio à Amamentação<br />

para a mulher trabalhadora<br />

que amamenta”. O Sofia incentiva o<br />

aleitamento materno também <strong>por</strong><br />

meio do seu Banco de Leite Humano,<br />

que ajuda a salvar e melhorar a vida<br />

de centenas de recém-nascidos.<br />

A maternidade é referência em ensino<br />

e também em programas como o<br />

Rede Cegonha, lançado durante o governo<br />

Dilma, com a finalidade de melhorar<br />

as práticas de assistência ao<br />

parto no país. “A Rede Cegonha ampliou<br />

o modelo de assistência centrado na<br />

mulher no país, com o investimento<br />

de um volume significativo de recursos<br />

no período”, destacou João Batista Lima.<br />

O hospital oferece residências<br />

médicas em Ginecologia e Obstetrícia<br />

e em outras áreas, após ter sido<br />

credenciado como Hospital de Ensino<br />

pelo MEC e pelo Ministério da Saúde<br />

em 2014. Nos últimos anos, tem<br />

recebido profissionais de países da<br />

África, Caribe e América Latina para<br />

treinamentos.<br />

Congelamento de<br />

recursos para SUS<br />

afeta hospital<br />

Apesar de todo reconhecimento nas<br />

áreas da assistência à saúde e de formação<br />

de profissionais, o hospital<br />

sofre uma grave crise de financiamento,<br />

que tem dificultado o seu funcionamento.<br />

Por ser 100% SUS, vive de<br />

recursos da União, Estado e Município.<br />

No entanto, nos últimos tempos, parte<br />

desses recursos não tem chegado, e o<br />

34 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


que chega é insuficiente para suprir<br />

as inúmeras demandas do hospital:<br />

de reparos estruturais, à compra de<br />

insumos e equipamentos, e até mesmo<br />

para pagar a folha de pessoal.<br />

Os efeitos do congelamento dos investimentos<br />

sociais <strong>por</strong> 20 anos, a<br />

partir da Emenda Constitucional nº<br />

95, aprovada pelo governo ilegítimo de<br />

Michel Temer após o Golpe de 2016, já<br />

se fazem sentir também na saúde pública.<br />

“Naturalmente, esse congelamento<br />

afeta também o Sofia, <strong>por</strong>que<br />

novos recursos para o custeio e ampliação<br />

do atendimento não tendem a<br />

chegar, enquanto a demanda só cresce”,<br />

destaca o médico João Batista Lima.<br />

O Hospital Sofia Feldman conta<br />

com uma receita média de R$<br />

4.800.000,00 e um custo mensal de<br />

R$ 5.800.000,00, com déficit operacional<br />

mensal de R$ 1.000.000.00, segundo<br />

dados da própria instituição.<br />

Enquanto esse déficit vai aumentando,<br />

as <strong>por</strong>tas do hospital continuam abertas<br />

para as mulheres, em função da<br />

alta demanda <strong>por</strong> assistência humanizada.<br />

“A humanização é a construção<br />

da cidadania de todos, especialmente<br />

da mulher antes, durante e após o<br />

parto. <strong>Elas</strong> valentemente conquistaram<br />

esse espaço, e nós temos a responsabilidade<br />

de continuar atendendo aqui<br />

o que as mulheres estão construindo<br />

para o futuro”, reafirma Ivo Lopes.<br />

Nesse cenário de escassez de recursos,<br />

já foram suspensos 15 leitos na<br />

UTI Neonatal – sete em fevereiro e oito<br />

em agosto. "Houve uma queda de 20%<br />

nos atendimentos neonatais em julho<br />

diretamente ligada à falta de profissionais<br />

ocasionada pela impossibilidade<br />

de contratação e pelas situações sazonais<br />

que reduzem o número de partos”,<br />

informa nota do Hospital.<br />

Ainda na nota, a instituição informa<br />

que passa <strong>por</strong> situação financeira grave,<br />

que pode vir a comprometer o atendimento<br />

à população. "Houve redução<br />

do quadro de funcionários decorrente<br />

de pedidos de desligamentos espontâneos,<br />

mas não houve corte linear <strong>por</strong><br />

decisão administrativa. São quase 1.200<br />

funcionários que trabalham com amor<br />

e afinco e, mesmo em condições adversas,<br />

com atraso de salários, continuam<br />

oferecendo às usuárias e usuários<br />

um atendimento de qualidade, pautado<br />

nas orientações da OMS, nos preceitos<br />

do SUS – universalidade, equidade, integralidade<br />

– e nos conceitos da humanização<br />

do cuidado”.<br />

Para Ivo Lopes, o movimento de<br />

mulheres tem promovido diversas ações<br />

em defesa do hospital. “Temos que honrar<br />

o SUS, essa conquista de cidadania<br />

pela qual o povo brasileiro, e as mulheres<br />

aqui, vem lutando. É esse respeito<br />

às conquistas das mulheres que nos<br />

inspira a continuar”, afirma.<br />

A Secretaria Municipal de Saúde<br />

de Belo Horizonte informa, em nota,<br />

que tem feito o repasse de recursos<br />

pactuado, que o Plano Operativo Anual<br />

(POA) com o hospital foi refeito e, com<br />

isso, “a Prefeitura irá a<strong>por</strong>tar recursos<br />

adicionais de até R$ 500 mil <strong>por</strong> mês,<br />

para serem utilizados na prestação<br />

da assistência a partir de agosto de<br />

<strong>2018</strong>”. A nota informa, ainda, que a<br />

“SMSA encaminhou ao Ministério da<br />

Saúde uma solicitação, que está em<br />

análise, de a<strong>por</strong>te adicional na ordem<br />

Daniela Djean<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

35


de R$ 18 milhões/ano para o hospital”,<br />

e que tem feito esses esforços para<br />

ajudar o Hospital a diminuir seu déficit<br />

mensal, embora “esse déficit não seja<br />

de responsabilidade do município”.<br />

Em nota, a Secretaria de Estado<br />

de Saúde de Minas Gerais (SES-MG)<br />

informa que tem repassado para a<br />

instituição recursos relacionados à<br />

Rede Cegonha, ao Programa Estadual<br />

de Triagem Auditiva Neonatal, e ao<br />

Programa de Fortalecimento e Melhoria<br />

da Qualidade dos Hospitais do<br />

SUS/MG (Pro-Hosp Incentivo), mas<br />

que há outros pagamentos pendentes<br />

em função da situação de calamidade<br />

financeira do Estado, decretada oficialmente<br />

em dezembro de 2016. A<br />

nota afirma também que “a manutenção<br />

do Sofia Feldman é de extrema<br />

relevância, uma vez que atende uma<br />

multiplicidade de municípios e oferta<br />

uma assistência de qualidade, amparada<br />

em Boas Práticas Obstétricas e<br />

Neonatais”.<br />

Somos Sofia<br />

Uma campanha de financiamento<br />

coletivo foi criada na internet para<br />

tentar buscar, junto à sociedade,<br />

recursos para a aquisição de insumos<br />

e equipamentos para o<br />

Hospital. É possível fazer doações<br />

online a partir de 10 reais, com<br />

direito a contrapartidas.<br />

Conheça e participe: www.benfeitoria.com.br/somossofia<br />

Gilmara Guedes com sua filha Sofia.<br />

Maternidade nasceu<br />

de um sonho<br />

O Hospital Sofia Feldman tem uma<br />

história incomum. Foi criado na década<br />

de 1970 a partir de um sonho<br />

compartilhado <strong>por</strong> algumas pessoas:<br />

do gesto de solidariedade de Marx<br />

Golgher, doador do terreno; do nome<br />

de sua avó, uma mulher palestina que<br />

criou seus filhos em BH, Sofia Feldman;<br />

e da iniciativa de José de Souza Sobrinho,<br />

da Sociedade São Vicente de Paulo,<br />

que buscou recursos públicos e<br />

doações para a construção, que foi<br />

feita através de mutirão comunitário.<br />

Para esse empreendimento, ele recebeu<br />

o apoio de jovens médicos que<br />

estão no hospital até hoje, Ivo Lopes e<br />

José Carlos da Silveira, e de muitas<br />

outras pessoas da região.<br />

O ambulatório foi inaugurado em<br />

1978 e o hospital em 1982, com pouco<br />

mais de dez leitos com internação<br />

conjunta – mãe e filho. Até 1986, o<br />

hospital funcionou com trabalho voluntário<br />

e doações da comunidade.<br />

Nesse ano, passou a integrar um programa<br />

que foi precursor do SUS, e a<br />

partir daí passou a receber recursos<br />

públicos. Depois de algumas décadas,<br />

continua a ser referência em atendimento<br />

público humanizado, acalentando<br />

e realizando o sonho de muitas<br />

mulheres de ter um bom parto, de<br />

ter seus direitos respeitados, de ter<br />

seus filhos ao alcance dos braços desde<br />

o nascimento.<br />

Cecília Alvim<br />

36 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


Mulheres<br />

encontram apoio<br />

para superar os<br />

desafios do parto<br />

Vozes de mulheres e choros de bebês<br />

ecoam, enquanto se caminha pelos<br />

corredores do hospital. Nas suítes de<br />

parto do hospital ou na Casa de Parto,<br />

a mulher pode escolher a posição em<br />

que se sente mais confortável para esperar<br />

e ter o seu bebê. Além do leito<br />

tradicional, há uma banheira, banco<br />

de cócoras, ducha, bola de pilates e<br />

outros recursos para aliviar as contrações<br />

e tensões do parto, que acontece<br />

sob o olhar atento das enfermeiras<br />

obstetras e assistentes, e com o apoio<br />

emocional de doulas e/ou do acompanhante<br />

de livre escolha da mulher,<br />

direito garantido em lei e no dia-a-dia<br />

da maternidade.<br />

Fernanda Amâncio (foto), 29 anos,<br />

é uma dessas mulheres atendidas na<br />

Casa de Parto. Nos outros partos, teve<br />

indução, anestesia, e agora se sente<br />

tranquila esperando a chegada do seu<br />

terceiro filho, que quer ter <strong>por</strong> parto<br />

natural. “É uma dor que a gente sente,<br />

mas su<strong>por</strong>ta, <strong>por</strong>que sabe que é para<br />

o bem, que faz parte, que vai passar”,<br />

relata. Em meio à conversa, ela pára,<br />

respira fundo, e entre uma contração<br />

e outra, serenamente conta sua história,<br />

o que mostra o clima de naturalidade<br />

como o parto é tratado na maternidade.<br />

Seu companheiro, Pablo<br />

Silva, está <strong>por</strong> perto e diz que Fernanda<br />

está tranquila, e que eles estão animados<br />

com o nascimento que está<br />

para acontecer.<br />

Enquanto algumas mulheres esperam,<br />

outras já têm seus filhos nos braços<br />

e aguardam a alta hospitalar, passando<br />

o tempo entre carinhos e cuidados<br />

com a nova vida. Gilmara Guedes<br />

Sad, de 31 anos, está sentada numa<br />

cama em uma das enfermarias, com<br />

sua bebezinha no colo. Ela é a pequena<br />

Sophia Guedes, que nasceu no Sofia.<br />

Há 14 anos, Gilmara teve seu primeiro<br />

filho na maternidade. Ela conta que<br />

percebeu o hospital em condições físicas<br />

mais precárias do que anos antes,<br />

mas, segundo ela, “o atendimento continua<br />

maravilhoso”. Ela diz que ficou<br />

feliz quando foi encaminhada para o<br />

Sofia novamente. “Meu parto foi natural.<br />

Não me proibiram de comer. Tive<br />

uma ótima assistência das enfermeiras,<br />

das doulas, todas muito atenciosas,<br />

com o maior amor do mundo”. Enquanto<br />

ajeita a roupinha de sua pequena,<br />

sorri encantada e diz: “É assim<br />

que a gente começa, e é tão bom começar<br />

a vida aqui neste lugar. A vida é<br />

seguir em frente. Estou apaixonada!”<br />

Cecília Alvim<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

37


Ela conseguiu<br />

iluminar sua<br />

vida<br />

Joelma, Marcelo, Catarina e Benjamim.<br />

“O que há de mais<br />

sagrado na minha<br />

vida, quando eu<br />

me tornei mãe,<br />

foi no Sofia.”<br />

Em outra manhã, o sol ilumina intensamente<br />

a varanda da casa de uma<br />

mulher, que se tornou mãe também<br />

no Sofia Feldman. Joelma Lima (foto)<br />

tem uma história e uma força singular.<br />

Faltam palavras que deem conta de<br />

tanta alma expressa em uma vida, em<br />

uma só mulher.<br />

Ela, como tantas de nós, se fez mãe<br />

em meio aos desafios da vida. Mas reflete<br />

uma luz intensa, de quem já conseguiu<br />

iluminar a sua própria escuridão.<br />

Ela enfrentou com bravura uma<br />

fortíssima tempestade, raios, chuvas<br />

e trovões. O céu escureceu e a vida virou<br />

noite quando soube que o coração<br />

de João, seu filho tão esperado durante<br />

39 semanas de gestação, já não mais<br />

batia. Ao saber disso, recusou uma<br />

cesárea forçada em um hospital comum.<br />

Decidiu ir até o Sofia, onde foi<br />

amparada <strong>por</strong> profissionais, que a<br />

viam como uma mulher que muito<br />

sofria. Ali ela acolheu e gestou sua intensa<br />

dor, optou pela indução através<br />

de remédios, e assim, pela via normal,<br />

teve João em seus braços, o abraçou<br />

com intenso amor, e o “entregou para<br />

o universo”... Não há palavras que<br />

deem conta de tamanha dor...<br />

Foram dias e noites de sombras,<br />

soluços e lágrimas... Até que um dia<br />

ela acordou da noite escura e decidiu<br />

que queria ser mãe novamente. Preparou-se<br />

<strong>por</strong> meses, fez o pré-natal no<br />

Sofia, onde teve apoio e aconchego. Na<br />

primavera, foi até o Sofia e ali recebeu<br />

Maria Catarina, uma linda e alegre menina,<br />

que respira doçura e “sabideza”.<br />

Está com 2 anos e alguns meses, e já<br />

oferece pão, e afeto, a quem chega...<br />

Tempos depois, foi a vez de preparar<br />

a casa e o coração para a chegada<br />

de Benjamin, um bebê de 3 meses,<br />

que já sorri e dá gargalhadinhas encantadoras<br />

no colo de sua mãe, que o<br />

aconchega e amamenta quase todo o<br />

tempo da entrevista. Ele também nasceu<br />

no Sofia, e ali ficou <strong>por</strong> uns 15 dias<br />

em tratamento e sob o olhar atento de<br />

Joelma, que esteve todo o tempo ao<br />

seu lado, situação comum na maternidade<br />

e rara em outros ambientes<br />

hospitalares. Entre suas boas práticas,<br />

a maternidade incentiva e apoia a<br />

permanência de mães junto aos<br />

recém-nascidos, que precisam ficar<br />

em observação. “Os cuidados no Sofia<br />

não alcançam só a criança, mas também<br />

a mãe, a mulher. Eu tive assistência<br />

de nutricionista e de psicóloga<br />

<strong>por</strong>que não estava comendo bem enquanto<br />

meu menino estava internado”,<br />

conta Joelma.<br />

Essa mulher que enfrentou tempestades,<br />

e sorri com ternura para Catarina<br />

e Benjamim, quer que mais mulheres<br />

tenham a mesma opção que ela teve<br />

de encontrar atendimento público qua-<br />

Sofia Feldman<br />

38 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


lificado e humanizado no Sofia Feldman.<br />

“O que há de mais sagrado na minha<br />

vida, quando eu me tornei mãe, foi no<br />

Sofia. A minha história se passa nos<br />

corredores e quartos da maternidade,<br />

que representou também um salvamento<br />

num momento de dor. A assistência<br />

que tive me apontou caminhos<br />

para eu restaurar minha vida e minha<br />

família”, conta Joelma, emocionada.<br />

Mulheres que mudam<br />

o mundo<br />

Sabendo do trabalho relevante e da<br />

falta de recursos enfrentada pela maternidade,<br />

Joelma se uniu a outras<br />

mulheres, que também foram bem<br />

assistidas lá, e decidiram ampliar a<br />

luta em defesa do Sofia. “O Sofia não<br />

atender significa um problema para<br />

nós, mulheres. Temos que lutar muito<br />

ainda para que essa melhor opção<br />

continue a existir para todas as mulheres.<br />

Defendemos a vida das mulheres,<br />

contra a mortalidade materna<br />

e pelo direito a uma assistência digna<br />

e humana”, alerta.<br />

Assim, pela iniciativa de várias mulheres<br />

com histórias próximas a dela,<br />

nasceu o Mexeu com o Sofia, mexeu<br />

com Todas, movimento de apoio à maternidade,<br />

que já tem dezenas de ativistas<br />

e mais de 8 mil seguidores no<br />

Facebook. O grupo de usuárias e apoiadores<br />

da maternidade promove diversas<br />

ações nas redes sociais, participa de<br />

reuniões, e promove discussões em<br />

busca de soluções e recursos para o<br />

Sofia. Além do “Mexeu”, outros grupos<br />

buscam apoiar o hospital em sua luta<br />

<strong>por</strong> melhorias e mais investimentos,<br />

entre eles, a Associação Comunitária<br />

de Amigos e Usuários do Hospital Sofia<br />

Feldman (ACAU/HSF), que há anos promove<br />

ações de apoio à maternidade.<br />

Sofia Feldman<br />

Movimento<br />

Nasce Leonina<br />

Além da luta pela manutenção<br />

do Sofia, as mulheres de Belo<br />

Horizonte e região também têm<br />

lutado pela abertura da maternidade<br />

Leonina Leonor, através<br />

do movimento Nasce Leonina.<br />

O espaço foi construído como<br />

anexo à UPA Venda Nova, em<br />

2009, mas nunca abriu as <strong>por</strong>tas.<br />

A maternidade recebeu investimentos<br />

de mais de R$ 4 milhões.<br />

O espaço projetado tem 32 leitos,<br />

7 suítes de parto (6 com banheira),<br />

UTI Neonatal, e uma estrutura<br />

com capacidade para<br />

atender até 350 parturientes<br />

<strong>por</strong> mês, com uma proposta de<br />

assistência humanizada centrada<br />

na mulher.<br />

Enquanto o espaço segue inutilizado<br />

e estragando, as mulheres<br />

seguem sua luta. Apesar disso,<br />

não há previsão real para a<br />

maternidade entrar em funcionamento.<br />

Segundo nota da Secretaria<br />

Municipal de Saúde de<br />

BH, a abertura só será possível<br />

após “reforma na unidade, com<br />

custo estimado de R$ 10 milhões.<br />

Embora prevista no Plano<br />

Municipal de Saúde - <strong>2018</strong> a<br />

2021, serão necessários estudos<br />

de viabilidade, visto que a implantação<br />

demanda recursos financeiros<br />

ainda indisponíveis”.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

39


SECOM/PMI


Artigo<br />

Clarice Barreto Linhares<br />

A gente não quer<br />

só saúde: a gente<br />

quer gratuita, pública<br />

e de qualidade!<br />

O ano de <strong>2018</strong> seria provavelmente<br />

de grandes comemorações para o Sistema<br />

Único de Saúde (SUS), que completou<br />

30 anos desde a sua criação legal.<br />

Seria. Não fossem os obstáculos<br />

orçamentários no desenrolar dos anos,<br />

nos quais experimentamos poucas<br />

gestões (especificamente entre 2003<br />

e 2015) que priorizaram a saúde pública<br />

como foco dos investimentos sociais.<br />

Não fosse, ainda mais, o grande golpe<br />

sofrido pelo povo brasileiro, no ano<br />

de 2016, que depôs a presidenta Dilma<br />

Rousseff, legitimamente eleita com<br />

mais de 54 milhões de votos, mediante<br />

alegação de motivos torpes e que não<br />

justificavam tal ação engendrada pelas<br />

instituições brasileiras contra a classe<br />

trabalhadora. Sim, pois o golpe está<br />

para além da deposição de uma presidenta<br />

ou a retirada de um partido<br />

do governo. O golpe concretiza-se para<br />

a retirada de direitos da classe trabalhadora<br />

e para a privatização do patrimônio<br />

público conquistado no Brasil.<br />

Um desses grandes patrimônios é<br />

o próprio SUS, que nasceu no bojo<br />

dos movimentos de redemocratização<br />

do país, na década de 1980, a partir<br />

da luta do Movimento Sanitarista, que<br />

envolveu diversos profissionais da área<br />

de saúde, bem como usuários da saúde<br />

pública e vários outros atores sociais<br />

nos quais se inserem também os movimentos<br />

de lutas e bandeiras feministas.<br />

Consolidado na Constituição<br />

Federal de 1988, o Sistema encontra<br />

inúmeros problemas a serem transpostos,<br />

mas também avanços consideráveis<br />

e serviços garantidos aos brasileiros<br />

exclusivamente <strong>por</strong> meio dele.<br />

O SUS vai muito além de consultas,<br />

cirurgias, diagnósticos e procedimentos<br />

médicos. Ele atua na prevenção, na vigilância<br />

sanitária, controle de zoonoses<br />

e até mesmo na fiscalização da rede<br />

de saneamento básico de água e esgoto.<br />

Não é uma questão apenas de política,<br />

mas de direito humano. Devemos nos<br />

empenhar nessa quadra tão acirrada<br />

de luta de classes, escancarada, e cor-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

41


Carina Aparecida<br />

relação de forças desfavorável aos trabalhadores,<br />

em empunhar a defesa do<br />

SUS como questão prioritária, humanitária<br />

e de sobrevivência.<br />

Segundo dados apurados pelo jornalista<br />

Pedro Rafael Vilela, para o Jornal<br />

Brasil de Fato, a opção prioritária pelo<br />

SUS é de cerca de 167 milhões de brasileiros.<br />

A matéria, publicada em maio<br />

de <strong>2018</strong>, nos diz que, para além desse<br />

signifivativo número, o sistema “(...)<br />

está disponível, indistintamente, ao<br />

conjunto dos 205 milhões de habitantes<br />

do país, inclusive aqueles 47 milhões<br />

que possuem algum plano privado. Ao<br />

todo, são 330 mil leitos, 12 milhões de<br />

internações e 4,3 bilhões de procedimentos<br />

ambulatoriais já realizados.”<br />

Assim, com apenas esses números,<br />

que se desdobram numa infinidade<br />

positiva de outras realizações do SUS,<br />

percebemos claramente que a política<br />

de saúde pública é de suma im<strong>por</strong>tância<br />

para os/as brasileiros/as bem<br />

como a única saída de acesso à saúde<br />

para milhões destes/as.<br />

Mediante o golpe de 2016, a ruína<br />

das políticas sociais começou a se estabelecer<br />

e ganhar fôlego, jogando uma<br />

cota inenarrável de recuperação da<br />

crise do sistema capitalista, como sempre,<br />

nos ombros da classe trabalhadora<br />

brasileira. A Emenda Constitucional<br />

95, a chamada “Emenda da Morte”, estabeleceu<br />

um teto de congelamento de<br />

investimentos <strong>por</strong> 20 anos em setores<br />

basilares às políticas públicas, fundamentalmente<br />

aqueles que sustentam<br />

a classe que vive da venda de sua força<br />

de trabalho e que não recebe o preço<br />

justo <strong>por</strong> essa venda para manter suas<br />

condições dignas de vida e existência<br />

material. A EC 95 compromete o funcionamento<br />

do SUS e praticamente decreta<br />

a sua falência.<br />

Interessses privatistas<br />

O período pós-golpe de 2016 está se<br />

caracterizando tanto pelo desmonte<br />

das políticas públicas quanto pela privatização<br />

das políticas sociais e de todo<br />

patrimônio da sociedade brasileira.<br />

Esse interesse privatista fica claramente<br />

expresso quando notamos que o governo<br />

golpista tem alçado a postos da<br />

gestão pública nomes de indivíduos<br />

oriundos do mercado e representantes<br />

do capital financeiro. O objetivo é claro:<br />

O “enxugamento” da ação do Estado<br />

42 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


dentro da sua perspectiva social e privatização<br />

das políticas sociais com<br />

vistas a auferir lucros para o setor privado.<br />

Essas pessoas que vêm da inciativa<br />

privada não se preocupam com a questão<br />

pública e a saúde concebida como<br />

um direito assegurado pela nossa Constituição<br />

vigente. A política nacional de<br />

saúde, inequivocamente, será afetada<br />

com a privatização e consequente financeirização<br />

desse setor.<br />

Cumpre-nos salientar que a preocupação<br />

em garantir a saúde pública<br />

veio da percepção coletiva da sociedade,<br />

conectada com a luta pela democracia.<br />

Articulações pela saúde pública<br />

nasceram na resistência ao regime<br />

militar brasileiro e com princípios<br />

igualitários de universalidade e<br />

integralidade – que são princípios democráticos<br />

opostos aos interesses privatistas.<br />

O enriquecimento e o lucro<br />

pelo sofrimento alheio ou pela negação<br />

e/ou restrição do acesso à saúde é um<br />

crime contra a dignidade humana –<br />

princípio do qual o Brasil é signatário<br />

em diversos foros internacionais, inclusive<br />

perante órgãos da ONU (Organização<br />

das Nações Unidas).<br />

Sob a égide dessa realidade, é mister<br />

analisar que o risco da falência do<br />

SUS e a privatização da saúde representam,<br />

de fato, uma sentença de morte<br />

em médio ou até curto prazo para<br />

milhões de trabalhadores/as brasileiros/as<br />

que dependem do funcionamento<br />

dessa política. A superexploração<br />

de mão-de-obra do/a trabalhador/a<br />

bem como o desemprego e o subemprego<br />

– que tendem a se acirrar<br />

neste período pós aprovação da Reforma<br />

Trabalhista – o/a faz adoecer e<br />

não lhe permite o acesso necessário à<br />

saúde ou sequer às medidas preventivas<br />

que a garantam.<br />

Nesse nefasto contexto, todos os<br />

avanços conquistados na saúde da<br />

mulher, através do Plano Nacional de<br />

Ação Integral à Saúde da Mulher, são<br />

colocados em xeque, pois são medidas<br />

que nascem da ampliação do SUS, da<br />

sua compreensão e do foco na saúde<br />

da mulher.<br />

Saúde da mulher: foco<br />

primordial e diferenciado<br />

No debate da saúde, é necessário fortalecermos<br />

a luta feminista e sua im<strong>por</strong>tância.<br />

As especificidades da saúde<br />

da mulher requerem que tenhamos<br />

cuidado redobrado nessa análise. Os<br />

movimentos feministas sempre nos<br />

lembraram que a questão da saúde<br />

tem que agregar a diferença de gênero,<br />

pois temos que ter igual acesso aos<br />

direitos, respeitadas as diferenças biológias<br />

no campo da saúde. As peculiaridades<br />

que envolvem a saúde da<br />

mulher, como a atenção ginecológica,<br />

obstétrica, saúde preventiva, acesso a<br />

anticoncepcionais, dentre outras, nos<br />

“...o risco da falência do<br />

SUS e a privatização da<br />

saúde representam, de<br />

fato, uma sentença de<br />

morte em médio ou até<br />

curto prazo para milhões<br />

de trabalhadores/as<br />

brasileiros/as...”<br />

requer tomar a bandeira da saúde pública<br />

como uma luta feminista.<br />

Quando nos referimos à mulher<br />

trabalhadora, essa questão entra como<br />

um enfrentamento adicional pela manutenção<br />

dos seus direitos de trabalhadora<br />

e, aí sim, igualitários aos direitos<br />

trabalhistas dos homens. Pois<br />

é direito da mulher ser gestante e poder<br />

retornar em segurança ao seu trabalho;<br />

amamentar seus filhos sem ser<br />

discriminada pelo/a seu/sua chefe; receber<br />

o mesmo salário dos homens,<br />

pois possui igual ou maior competência<br />

e sabedoria para desenvolvimento<br />

de suas tarefas. As lutas não são desconectadas<br />

e são estandartes que as<br />

centrais sindicais devem abraçar e<br />

defender junto às feministas.<br />

Sendo o SUS um instrumento de<br />

uso prioritário pela classe trabalhadora,<br />

esse debate é inescapável aos seus representantes.<br />

Isso posto, é um debate<br />

próprio da mulher trabalhadora.<br />

Dentro do documento da Política<br />

Nacional de Assistência Integral à Saúde<br />

da Mulher, editado pelo Ministério<br />

da Saúde em 2004, a política pública<br />

de saúde deve ter “...um enfoque de<br />

gênero, a integralidade e a promoção<br />

da saúde como princípios norteadores<br />

e busca consolidar os avanços no campo<br />

dos direitos sexuais e reprodutivos,<br />

com ênfase na melhoria da atenção<br />

obstétrica, no planejamento familiar,<br />

na atenção ao abortamento inseguro<br />

e no combate à violência doméstica e<br />

sexual. Agrega, também, a prevenção<br />

e o tratamento de mulheres vivendo<br />

com HIV/aids e as <strong>por</strong>tadoras de doenças<br />

crônicas não transmissíveis e de<br />

câncer ginecológico. Além disso, amplia<br />

as ações para grupos historicamente<br />

alijados das políticas públicas, nas suas<br />

especificidades e necessidades”.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

43


Sind-Saúde MG<br />

Ou seja, a falência do SUS, para<br />

além de uma derrota à classe trabalhadora,<br />

é uma derrota para as mulheres<br />

trabalhadoras.<br />

Vamos falar de aborto?<br />

Como mulheres e trabalhadoras, torna-se<br />

premissa obrigatória entrarmos<br />

em um tema tão melindrado e tabu<br />

na sociedade brasileira. Não parto<br />

aqui para um debate moral. Cada qual<br />

tem seu juízo de valor. Parto aqui da<br />

realidade objetiva: abortos são realizados,<br />

diariamente, criminalizados ou<br />

não. O aborto é, <strong>por</strong>tanto, questão de<br />

saúde pública.<br />

Assim, torna-se também uma questão<br />

de classe falar de descriminalização.<br />

Por quê? As mulheres pertencentes<br />

às classes mais favorecidas o<br />

farão, ou fazem, em clínicas, assistidas<br />

e amparadas, mesmo que clandestinamente,<br />

pois possuem recursos para<br />

tanto. E as mulheres da classe trabalhadora,<br />

sem condições materiais, o<br />

farão em péssimas condições e com<br />

risco de morte.<br />

Logo, o que se coloca não é a defesa<br />

do aborto e sim a descriminalização,<br />

visto que quem decide fazê-lo dificilmente<br />

será demovida de sua resolução.<br />

Não cabe a ninguém, do meu ponto<br />

de vista, qualquer julgamento nesse<br />

sentido. A mulher tem direito sobre<br />

seu corpo, uma bandeira feminista<br />

histórica, e a ela cabe essa decisão individual<br />

sobre a qual ninguém ou nenhuma<br />

instituição pode se haver.<br />

Muitas mulheres morrem <strong>por</strong> se<br />

submeterem a abortos não assistidos<br />

e a maior parte delas está na classe<br />

trabalhadora. Dois pontos im<strong>por</strong>tantes<br />

dentro do nosso debate: 1) O aborto é<br />

uma questão de saúde pública, algo<br />

que deve ser debatido amplamente<br />

com a sociedade e, 2) Também é uma<br />

questão a ser levada para dentro do<br />

próprio Sistema Único de Saúde.<br />

Recentemente, na Argentina, as<br />

mulheres quase obtiveram uma grande<br />

vitória nesse sentido. Conseguiram,<br />

<strong>por</strong> meio de muita pressão popular,<br />

em um Congresso desfavorável ao pleito,<br />

que a legislação que permite a escolha<br />

<strong>por</strong> um aborto seguro, até à terceira<br />

semana de gestação, fosse aprovada<br />

em uma das câmaras legislativas.<br />

No entanto, a força do conservadorismo<br />

e do obscurantismo diante do tema<br />

prevaleceu, tendo a pauta feminista<br />

sido derrotada no Senado, antes mes-<br />

44 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


mo da apreciação presidencial. Cabe<br />

ressaltar que no país vizinho, Uruguai,<br />

onde o aborto foi descriminalizado,<br />

estudos apontam para a redução dos<br />

procedimentos.<br />

Essa luta no Brasil depende de muito<br />

esforço e de convencimento. Temos<br />

um Congresso majoritariamente conservador<br />

e que tende a piorar nesse<br />

aspecto (espero estar muito errada)<br />

depois das eleições de <strong>2018</strong>. É necessário<br />

que essa luta encabece as discussões<br />

da saúde pública no que tange<br />

a atenção à saúde da mulher, pois diuturnamente<br />

somos noticiados sobre<br />

mulheres que morrem <strong>por</strong> procedimentos<br />

mal realizados. Portanto, não<br />

há como avançar nesse difícil debate<br />

sem a garantia do Sistema Único de<br />

Saúde e da atenção especial à mulher.<br />

Golpe político impede<br />

avanço no debate<br />

Não há dúvidas de que o SUS está<br />

comprometido com a preservação da<br />

dignidade humana, pois se traduz no<br />

direito à saúde a todos/as os/as brasileiros/as,<br />

como preconiza a Constituição<br />

Federal de 1988. Existem nele<br />

ideias de solidariedade social e responsabilidades<br />

mútuas entre sociedade<br />

e Estado, desde o atendimento<br />

médico hospitalar, prevenção, oferta<br />

de medicamentos e vacinas, à questão<br />

da saúde específica da mulher.<br />

A Emenda Constitucional 95, que<br />

congela os investimentos em políticas<br />

sociais, é reflexo de um governo que<br />

não tem compromisso com as questões<br />

sociais. O descompromisso fica bem<br />

claro em recentes declarações que não<br />

asseguram a oferta da política nacional<br />

de saúde pelo SUS, <strong>por</strong> parte do atual<br />

“O SUS contempla<br />

uma política social<br />

igualitária e o Estado<br />

tem dever de<br />

prover esse direito<br />

constitucionalmente<br />

garantido.<br />

Ministro da Saúde. O compromisso<br />

com o governo golpista é com retrocessos,<br />

privatizações, com o pensamento<br />

conservador da sociedade e<br />

com o desmonte dos direitos da classe<br />

trabalhadora.<br />

Diante de toda explanação que tenfiz<br />

ao longo deste artigo, deixo-lhes<br />

indagações que para mim têm respostas<br />

certeiras: Quem mais perde<br />

com o desmonte do SUS? A classe tralhadora<br />

brasileira. E dentro da própria<br />

classe trabalhadora, quem é mais prejudicada?<br />

A mulher trabalhadora brasileira.<br />

Não desconheço as inúmeras deficiências<br />

do Sistema e constantes falhas<br />

na sua gestão compartilhada em todos<br />

os níveis federativos. Porém, é preciso<br />

salientar e exaltar o SUS que funciona<br />

e que muita gente desconhece. O SUS<br />

que estava no rumo certo, visando seu<br />

crescimento, que focava na classe trabalhadora<br />

e fundamentalmente na mulher<br />

trabalhadora.<br />

Desconstituir e privatizar o SUS é<br />

impensável para o povo brasileiro. O<br />

SUS contempla uma política social<br />

igualitária e o Estado tem dever de<br />

prover esse direito constitucionalmente<br />

garantido. O golpe político veio<br />

abrir o SUS para o mercado, para os<br />

planos privados de saúde. Precisamos<br />

denunciar e nos movimentar contra<br />

o desmonte das políticas sociais que<br />

são um partimônio do povo brasileiro,<br />

conquistado com décadas de luta. Não<br />

há outra forma de reversão desse processo<br />

de desmonte que não passe pela<br />

mobilização popular. É preciso haver<br />

resistência pela saúde pública em geral<br />

e em especial pela saúde da mulher.<br />

E é dever das organizações da classe<br />

trabalhadora agregarem à sua luta<br />

pela revogação da Reforma Trabalhista<br />

e contra a reforma da Previdência,<br />

também a defesa do SUS e a revogação<br />

da Emenda Constitucional 95.<br />

**O presente artigo teve como referência<br />

os dois programas de TV ExtraClasse,<br />

sobre os 30 anos do SUS,<br />

elaborados pela equipe do departamento<br />

de comunicação do Sinpro<br />

Minas, o qual coordeno, e exibidos<br />

pela Rede Minas.<br />

Clarice Barreto Linhares<br />

Socióloga, mestre em Ciência Política; vice-presidenta<br />

e diretora de comunicação do Sinpro Minas;<br />

secretária-geral da FITEE<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

45


Legalização<br />

pode<br />

salvar<br />

vidas?<br />

Negar<br />

o direito<br />

é mantê-lo na<br />

clandestinidade?


Saúde<br />

<strong>por</strong> Déa Januzzi<br />

Aborto: questão<br />

de saúde pública<br />

O tema é polêmico e tende a cair<br />

no discurso religioso, impondo um<br />

fardo muito pesado para a mulher<br />

que, <strong>por</strong> algum motivo, não su<strong>por</strong>ta<br />

levar uma gravidez adiante. A sociedade<br />

precisa discutir o assunto de<br />

forma aberta e democrática, pois,<br />

querendo ou não, o aborto sempre foi<br />

uma realidade em nosso país. Esta<br />

matéria visa contribuir com a reflexão<br />

a partir de dados concretos,<br />

principalmente num contexto em que<br />

forças retrógradas, num governo ilegítimo,<br />

querem retirar o que já está<br />

previsto em lei no Brasil — aqui a<br />

gestação pode ser interrompida<br />

voluntariamente em caso de estupro,<br />

risco de morte para a mãe ou bebê<br />

com anencefalia. Não dá para retroceder.<br />

Na matéria, você entenderá a<br />

im<strong>por</strong>tância e a urgência de lutarmos<br />

pela descriminalização do aborto.<br />

CENA Nº 1 – 1979. Rio de Janeiro, Rua<br />

Dona Mariana, Botafogo. Com o endereço<br />

e o dinheiro na bolsa, ela está<br />

tensa e perdida. Decidira fazer um<br />

aborto, pois não tinha planejado aquela<br />

gravidez, apesar de ter um companheiro,<br />

mas que ficou em silêncio,<br />

mudo, diante da sua decisão de ter ou<br />

não um filho. Assim que chega à clínica<br />

clandestina da Rua Dona Mariana, vê<br />

muitas outras mulheres na sala de espera.<br />

Sofre, mas não se arrepende,<br />

afinal, aos 26 anos, está começando a<br />

sua vida profissional, num mercado<br />

de trabalho essencialmente masculino,<br />

que não admite justificativas nem perdoa<br />

as mulheres. Em minutos, chamam<br />

o seu nome. Ela entra, toma uma<br />

anestesia e acorda num colchão jogado<br />

no chão. Atordoada, ela se levanta ainda<br />

tonta e volta para a sua cidade. Ao<br />

chegar sente dores, cólicas e procura<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

47


a ginecologista dela, que avisa – precisa<br />

de nova curetagem, <strong>por</strong>que há restos<br />

no útero. O procedimento é feito e ela<br />

segue sua vida com a aflição de uma<br />

mulher que acabara de fazer um aborto<br />

às escondidas, sem segurança, qualquer<br />

garantia ou acolhimento. Na clandestinidade.<br />

CENA Nº 2 – 1989. Jabaquara, interior<br />

de São Paulo, uma freira chega<br />

ao hospital público da cidade <strong>por</strong> indicação<br />

psiquiátrica, pois estava com<br />

tendências suicidas. Ela tinha sido estuprada<br />

<strong>por</strong> três homens, mas tanto<br />

médicos como a direção do hospital<br />

tinham dúvidas se faziam ou não o<br />

aborto, mesmo o caso (gravidez <strong>por</strong><br />

estupro) se enquadrando em uma das<br />

três situações em que o aborto é permitido<br />

<strong>por</strong> lei. Depois das dúvidas, o<br />

aborto foi realizado e, na ocasião, ela<br />

agradeceu: “Doutor, o senhor salvou<br />

a minha vida”.<br />

Mídia Ninja<br />

CENA Nº 3 – 2013. Ela foi sequestrada<br />

e estuprada. Conhecia o agressor,<br />

uma pessoa influente em sua região.<br />

Após sofrer a violência procurou abrigo<br />

na casa de uma amiga. Ficou duas semanas<br />

de cama, até que reuniu forças<br />

para ir à delegacia denunciar o abuso.<br />

Foi ignorada. Então, procurou a Delegacia<br />

da Mulheres. Estava ferida, mas<br />

mesmo assim passou <strong>por</strong> todo tipo<br />

de humilhação. Infelizmente, a delegada<br />

disse que não podia fazer nada.<br />

Quando pronunciou o nome da pessoa,<br />

então, ela repetiu que não podia fazer<br />

nada. Mas a pior notícia chegaria três<br />

meses depois. "Após ser estuprada,<br />

entrei em depressão. Tentei suicídio<br />

algumas vezes. Mas pensei: pelo menos<br />

estou viva. Eu vou realizar meus sonhos.<br />

Eu vou ficar bem. E aí descobri<br />

que estava grávida e foi como se a vida<br />

tivesse acabado”. Ao procurar um hospital<br />

para interromper a gravidez, esbarrou<br />

em novas barreiras. "Eles duvidaram<br />

de mim. Pediram o Boletim<br />

de Ocorrência (BO) e eu não tinha”.<br />

CENA Nº 4 – 2017. São Paulo. Com<br />

nove semanas de gestação e nenhuma<br />

previsão de resposta definitiva do Judiciário<br />

brasileiro sobre o pedido que<br />

fez para realizar um aborto, Rebeca<br />

Mendes Silva, de 31 anos, tomou uma<br />

decisão sem volta: interrompeu a gravidez<br />

de forma legal, em dezembro de<br />

2017, na Colômbia, onde o aborto é<br />

permitido. Ela alegou problemas financeiros<br />

e falta de condições emocionais<br />

e psicológicas para criar outra<br />

criança. Rebeca resolveu fazer o pedido<br />

à Justiça para não ser, depois,<br />

criminalizada pela escolha. Estudante<br />

de Direito e mãe de dois meninos<br />

– um de 9 anos e o outro de 6 –<br />

Rebeca descobriu a gravidez no dia 14<br />

de novembro, e pediu ao Supremo<br />

Tribunal Federal (STF) uma liminar<br />

que a autorizasse a abortar. Ela foi a<br />

primeira mulher a entrar com um pedido<br />

de aborto no STF.<br />

48 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


Medo e silêncio<br />

Vocês acham que essas mulheres<br />

cometeram crime? Que deveriam ser<br />

condenadas a três anos de prisão em<br />

uma das penitenciárias do Brasil,<br />

como prevê o Código Penal brasileiro?<br />

É preciso lembrar: "Se todas que<br />

fizeram aborto estivessem na prisão<br />

hoje haveria um contingente de 4,7<br />

milhões de mulheres. Pelo menos<br />

cinco vezes o atual sistema prisional,<br />

que já é o quarto do mundo. Porque<br />

não há bom senso nessa conversa?<br />

Aborto não é matéria de prisão, é de<br />

cuidado, de proteção e prevenção",<br />

apontou a pesquisadora Débora Diniz,<br />

da Universidade de Brasília e do<br />

Instituto Anis de Bioética, em<br />

depoimento na audiência pública no<br />

Supremo Tribunal Federal (STF). Ela<br />

mostrou que uma em cada cinco<br />

mulheres brasileiras de até 40 anos já<br />

fez um aborto. “Pior ainda é que a<br />

criminalização tem impacto maior<br />

nas mulheres pobres, que acabam re -<br />

cor ren do a métodos inseguros para<br />

interromper a gravidez”, afirmou a<br />

pesquisadora, que foi aplaudida de pé.<br />

A luta pelo acesso universal ao aborto<br />

legal, seguro e gratuito teve início<br />

quando o Partido Socialismo e Liberdade<br />

(PSOL) e o Instituto Anis de Bioética<br />

apresentaram, em março de 2017,<br />

uma ação no STF reivindicando que<br />

mulheres com até 12 semanas de gestação<br />

não fossem consideradas criminosas<br />

se praticassem aborto. A ADPF<br />

(Arguição de Descumprimento de Preceito<br />

Fundamental), nome que recebeu<br />

a ação, trata a criminalização do aborto<br />

como o que é de fato: uma violência<br />

contra as mulheres.<br />

Atualmente, no Brasil, o Código Penal<br />

determina prisão de até três anos<br />

para as mulheres que praticam aborto,<br />

e investigação até de oito anos depois<br />

do ato. O medo da prisão e o silêncio<br />

imposto pela lei penal acentuam o sofrimento<br />

de grande parte dessas mulheres<br />

que, muitas vezes, já se encontram<br />

em situação de extrema vulnerabilidade.<br />

A criminalização ainda prejudica<br />

a discussão pública sobre o assunto,<br />

apesar de ser um fato comum<br />

na vida das brasileiras.<br />

A ADPF poderia mudar essa<br />

realidade. O texto argumenta que os<br />

artigos 124 e 126 do Código Penal, de<br />

1940, que tipificam o crime de aborto<br />

auto-provocado – ou feito <strong>por</strong> outra<br />

pessoa com o consentimento da<br />

gestante – violam os princípios cons -<br />

titucionais da dignidade da pessoa<br />

humana e da cidadania.<br />

A ação, relatada pela ministra Rosa<br />

Weber, em audiência pública, ouviu<br />

argumentações sobre o tema. Realizada<br />

nos dias 3 e 6 de agosto, abriu o<br />

sinal verde da esperança para as mulheres<br />

desse país.<br />

Próximos passos<br />

Mas o que vai acontecer a partir de<br />

agora? Quando o caso será julgado?<br />

Foram dois dias em que mais de 60<br />

pessoas expuseram experiências pessoais,<br />

opiniões e dados. As audiências<br />

públicas foram propostas ao STF para<br />

debater a referida ação, com assessoria<br />

técnica do Instituto de Bioética Anis,<br />

para que o aborto não seja considerado<br />

crime quando feito até a décima segunda<br />

semana de gravidez.<br />

Mídia Ninja<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

49


A relatora da ação, ministra Rosa<br />

Weber, deverá preparar o voto e o relatório<br />

do caso — um resumo das alegações<br />

e do posicionamento dos órgãos<br />

chamados a se manifestar, como a<br />

Advocacia-Geral da União (AGU). Não<br />

há prazo para isso. Assim que concluir<br />

o voto, Rosa Weber deve pedir a inclusão<br />

do processo na pauta de julgamento<br />

do plenário do Supremo, o que<br />

só deve acontecer em 2019, <strong>por</strong> causa<br />

das eleições deste ano.<br />

Legalizar o aborto<br />

ajuda a salvar vidas<br />

“Justa e necessária.” Assim se expressa<br />

a ginecologista e obstetra Regina Amélia<br />

Aguiar (foto), de 59 anos, sobre a descriminalização<br />

do aborto no Brasil. Formada<br />

há 35 anos, é professora associada<br />

do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia<br />

da Faculdade de Medicina e<br />

atende também no Ambulatório Jenny<br />

Faria, do Hospital das Clínicas da UFMG<br />

– setor de gestação de alto risco. Também<br />

coordenou a maternidade do Hospital<br />

das Clínicas <strong>por</strong> 25 anos.<br />

Com sabedoria, Regina Aguiar explica:<br />

“A legalização do aborto no Brasil<br />

não vai induzir nenhuma mulher a interromper<br />

a gestação, mas com certeza<br />

reduzirá as taxas de abortamentos inseguros<br />

que levam ao risco de vida de<br />

mulheres em idade fértil. Causam ainda<br />

um rombo no futuro reprodutivo dessas<br />

mulheres e na saúde mental de todas.”<br />

Os dados referentes aos abortos<br />

voluntários no Brasil não são confiáveis,<br />

pois realizados à sombra da clandestinidade.<br />

Pesquisa Nacional do<br />

Carina Aparecida<br />

Aborto, publicada em 2016, cita o dado<br />

conhecido de que naquele ano, quase<br />

uma em cada cinco mulheres até 40<br />

anos já teria realizado pelo menos,<br />

um aborto. Com maior frequência entre<br />

mulheres de baixa escolaridade,<br />

pretas, pardas e indígenas, principalmente<br />

nas regiões Norte, Nordeste e<br />

Centro-Oeste. Em Minas Gerais, o<br />

aborto responde <strong>por</strong> 6,2% dos óbitos<br />

maternos, média calculada com os<br />

dados de 2008 a 2016.<br />

O método mais usado pelas mulheres<br />

é o medicamento, misoprostol<br />

que induz o aborto. De acordo com a<br />

pesquisa de 2016, metade das mulheres<br />

utilizou medicamentos e quase a metade<br />

delas, precisou ficar internada<br />

para finalizar o aborto. Uma pro<strong>por</strong>ção<br />

significativa das mulheres ainda recorre<br />

a métodos de alto risco, como<br />

uso de sondas, introdução de objetos<br />

perfurantes e realizados <strong>por</strong> pessoas<br />

sem nenhuma formação.<br />

Durante toda a vida profissional,<br />

Regina Aguiar sempre trabalhou em<br />

serviço público universitário, em que<br />

todas as formas de interrupção da<br />

gestação previstas em lei eram garantidas<br />

às usuárias da instituição. Algumas<br />

interrupções <strong>por</strong> doença fetal incompatível<br />

com a vida, além da anencefalia,<br />

também são feitas <strong>por</strong> meio<br />

de autorização judicial.<br />

Ela é testemunha do enorme sofrimento<br />

emocional de mulheres que buscam<br />

a interrupção voluntária da gravidez:<br />

“Essas decisões provocam um<br />

impacto negativo na saúde mental das<br />

mulheres. Nunca conheci uma mulher<br />

que tenha ficado feliz <strong>por</strong> recorrer a<br />

um aborto. Respeitar o direito ao aborto<br />

é uma questão urgente. A legalização<br />

não estimula a prática, mas permite<br />

que as mulheres o façam de forma se-<br />

50 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


gura, sem correr risco de vida. Garantir<br />

que as mulheres precisem, cada vez<br />

menos, de recorrer ao aborto é uma<br />

questão de cidadania”, diz a médica.<br />

Para Regina Aguiar, “a única forma<br />

de garantir a saúde e a vida das mulheres<br />

em idade reprodutiva deve ser<br />

baseada em acesso de qualidade ao<br />

planejamento familiar. O que inclui<br />

disponibilidade de métodos contraceptivos,<br />

respeito aos direitos reprodutivos,<br />

planejamento preconcepcional,<br />

assistência pré-natal ao parto e<br />

puerpério.”<br />

A interrupção voluntária da gravidez<br />

é uma questão da mulher: “O corpo<br />

feminino é que detém a capacidade<br />

de gerar. Obviamente, quanto maior<br />

a possibilidade de as mulheres exercerem<br />

de forma livre e segura a sexualidade,<br />

menores seriam as probabilidades<br />

de gestação não desejada e,<br />

em consequência, a procura pela interrupção<br />

voluntária da gestação”, finaliza<br />

a médica.<br />

Túlio Viana<br />

Defesa de direitos<br />

adquiridos<br />

Enquanto o STF não julga a ação de<br />

legalização do aborto, a militante e<br />

professora de Direito Cynthia Semiramis<br />

(foto), de 42 anos, pede que todos<br />

fiquem atentos ao que vem acontecendo<br />

nos bastidores, <strong>por</strong> trás dos<br />

panos. “Pela PEC 181/2015, aprovada<br />

em comissão especial (<strong>por</strong> 18 x 1) que<br />

deve ir a plenário em breve, “corremos<br />

o risco de perder as formas legais de<br />

aborto já existentes, o que vai provocar<br />

um retrocesso jurídico assustador”.<br />

A PEC 181/2015 é uma proposta de<br />

emenda à constituição. Era para ser<br />

apenas sobre aumento de licença maternidade,<br />

no caso de nascimento prematuro.<br />

A PEC foi alterada para modificar<br />

os artigos 1º, parágrafo III, e 5º<br />

da Constituição, incluindo os termos<br />

proteger a vida desde a concepção. Se<br />

aprovada, acabará com o uso de células-tronco<br />

em pesquisas, de contraceptivos<br />

de urgência como a pílula do<br />

dia seguinte e toda e qualquer possibilidade<br />

de interrupção voluntária de<br />

gravidez no Brasil.<br />

Só para dar exemplo do que vai<br />

ocorrer se a PEC for aprovada. “Hoje<br />

mulheres que engravidam em um estupro<br />

podem abortar. Caso a PEC seja<br />

aprovada, não poderão mais. Existem<br />

projetos de lei (como o Estatuto do<br />

Nascituro) para que estupradores tenham<br />

direitos referentes à paternidade,<br />

sendo reconhecidos como pai na certidão<br />

de nascimento, o que gera obrigação<br />

de pagar pensão e também direito<br />

à visita e guarda compartilhada. Imaginem<br />

as consequências desagradáveis<br />

no caso de um estuprador figurando<br />

na certidão de nascimento duas vezes:<br />

uma como pai do bebê, e outra como<br />

avô. E mesmo que o estuprador seja<br />

identificado, a mulher terá de conviver<br />

com ele (e ser lembrada da violência<br />

sexual) para sempre, não podendo se<br />

mudar ou recomeçar a vida em outro<br />

lugar sem que seja discutido o direito<br />

da criança à convivência paterna. É as-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

51


sustador perceber que os legisladores<br />

estão minimizando a gravidade de uma<br />

violência sexual em nome da maternidade<br />

compulsória.”<br />

Outro caso grave citado <strong>por</strong> Cyn -<br />

thia: “Hoje, a mulher grávida pode antecipar<br />

o parto caso se descubra que<br />

o feto é anencéfalo. Isso <strong>por</strong>que a ausência<br />

de encéfalo impede a vida autônoma<br />

fora do corpo materno. Manter<br />

a gravidez nesses casos é um risco<br />

para a saúde da mulher. Se aprovada<br />

a PEC, a mulher vai ter de conviver<br />

com gravidez de risco, ter um parto<br />

complicado e dar à luz um bebê que<br />

vai morrer com menos de um dia de<br />

vida. Obrigar uma mulher a passar<br />

<strong>por</strong> isso, aumentando sofrimento e<br />

riscos à sua saúde, é desumano.”<br />

Dá para perceber que as consequências<br />

dessa PEC são muito mais graves<br />

do que parecem. Não é uma questão<br />

de ter informação ou acesso a contraceptivos,<br />

mas de resolver situações<br />

prejudiciais à gestante de forma a garantir<br />

seu direito à vida e à saúde.<br />

A escolha sobre a interrupção da<br />

gravidez, hoje, é decisão da mulher.<br />

“Há mulheres que, mesmo sabendo<br />

dos riscos em relação à saúde, levam<br />

a gestação a termo. E há aquelas que<br />

mantêm a gravidez mesmo tendo sido<br />

fruto de estupro ou o feto ser anencéfalo.<br />

Essa é uma decisão individual, e<br />

não cabe a ninguém, muito menos ao<br />

Estado, interferir nessa decisão. Porém,<br />

o que a PEC faz é exatamente retirar<br />

esse direito de escolha nos casos<br />

em que há violência sexual ou risco<br />

de vida”, afirma a professora de Direito<br />

ao reforçar que “querem obrigar todas<br />

as mulheres a manter uma gestação,<br />

<strong>por</strong>que consideram que o direito do<br />

feto se sobrepõe ao da mulher à própria<br />

vida e dignidade.”<br />

Cinco motivos para legalizar<br />

1. O aborto é uma realidade na<br />

vida das mulheres de todos os<br />

credos e classes sociais.<br />

Por mais que a criminalização dificulte<br />

a prática e crie riscos desnecessários<br />

para a saúde das mulheres, centenas<br />

de abortos são feitos todos os dias no<br />

Brasil. Segundo dados do IBGE, estima-se<br />

que 7,4 milhões de brasileiras já<br />

fizeram pelo menos um aborto. A Pesquisa<br />

Nacional do Aborto revela que<br />

mais de 500 mil mulheres abortaram<br />

apenas em 2015. Uma em cada cinco<br />

mulheres até 40 anos já fez, pelo menos,<br />

um aborto na vida.<br />

Essas mulheres geralmente são jovens,<br />

já tiveram filhos e seguem religiões<br />

cristãs. Mulheres comuns que, <strong>por</strong> dificuldades<br />

econômicas, situações de<br />

violência ou vulnerabilidade, planejamento<br />

pessoal ou qualquer outra razão,<br />

decidiram interromper uma gravidez,<br />

apesar das condenações morais e do<br />

cerco do sistema penal.<br />

2. A criminalização penaliza<br />

principalmente mulheres em<br />

situação de vulnerabilidade.<br />

“Todos somos pró-aborto. Uns, próaborto<br />

clandestino; nós, pró-aborto<br />

legal”, lia-se em alguns dos cartazes levados<br />

às ruas pelas argentinas. A afirmação<br />

diz de uma desigualdade de<br />

acesso que se repete <strong>por</strong> aqui: enquanto<br />

algumas mulheres podem<br />

pagar caro para realizar o procedimento<br />

em clínicas clandestinas, outras precisam<br />

recorrer a métodos inseguros – e<br />

sofrem graves consequências. A criminalização<br />

penaliza principalmente mulheres<br />

pobres, negras e indígenas, que<br />

são as que têm menos acesso às políticas<br />

públicas e estão em situação de<br />

maior vulnerabilidade social, perpetuando<br />

o racismo institucional.<br />

A legalização do aborto se faz urgente<br />

para assegurar a vida e a dignidade<br />

das mulheres. Trata-se de uma<br />

questão de saúde pública: o aborto<br />

clandestino no Brasil é a quinta causa<br />

de morte materna. Além disso, internações<br />

hospitalares causadas <strong>por</strong> abortos<br />

inseguros são recorrentes, custam<br />

caro e poderiam ser evitadas se a legislação<br />

garantisse condições dignas<br />

de atendimento nos serviços de saúde<br />

e acesso ao aborto legal e seguro. (Vitoriosas<br />

na Câmara, as argentinas não<br />

conseguiram aprovação do Senado para<br />

a descriminalização do Aborto).<br />

3. A criminalização é um ataque<br />

à liberdade de crença.<br />

Ninguém será obrigada a fazer um aborto<br />

caso ele seja descriminalizado, é<br />

claro! A legalização permite que cada<br />

mulher seja livre para tomar essa decisão<br />

de acordo com suas crenças e possibilidades.<br />

Não <strong>por</strong> acaso, em meio à<br />

onda verde que tomou a Argentina,<br />

viam-se tantas pessoas – homens,<br />

transexuais, crianças, idosos, mães,<br />

pais, avós, religiosos ou não. Defender<br />

a legalização do aborto é reafirmar a liberdade<br />

de crença em nosso país e no<br />

Estado Laico, assegurar que valores de<br />

parcela da população não impliquem<br />

no cerceamento do direito de decisão<br />

de todas as pessoas.<br />

52 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


Mídia Ninja<br />

É fácil entender <strong>por</strong> que essa conta<br />

fecha: o acesso universal e gratuito ao<br />

aborto legal e seguro faz valer direitos<br />

fundamentais invioláveis, protegidos<br />

pela nossa constituição – dignidade,<br />

igualdade, liberdade, cidadania, direito<br />

à vida, à saúde e, vale destacar, ao planejamento<br />

reprodutivo.<br />

4. A legalização pode até diminuir<br />

o número de abortos.<br />

Pode parecer contraditório, mas a legalização<br />

não aumenta o número de<br />

abortos. Pelo contrário, em países em<br />

que o procedimento deixou de ser crime,<br />

essa taxa caiu, como apontam dados<br />

do Instituto Guttmacher. Entre<br />

1990/1994 e 2010/2014, um período<br />

de duas décadas, a taxa anual de aborto<br />

nas regiões desenvolvidas caiu, principalmente<br />

em países ricos onde a prática<br />

é legalizada – passou de 46 para 27<br />

abortos para cada mil mulheres em<br />

idade reprodutiva. O mesmo não ocorreu<br />

em países em desenvolvimento, <strong>por</strong>ção<br />

do mundo em que o procedimento é<br />

majoritariamente criminalizado.<br />

5. A legalização é condição<br />

para a efe tivação dos direitos<br />

sexuais e re produtivos.<br />

Não <strong>por</strong> acaso, nossas irmãs argentinas<br />

reforçam: precisamos de educação sexual<br />

para decidir; anticoncepcionais<br />

para não abortar e, em última instância,<br />

aborto seguro para não morrer. Ao contrário<br />

do que diz o senso comum, machista<br />

e punitivista, não “engravida<br />

quem quer”. Além de a cultura machista<br />

fazer recair sobre a mulher quase integralmente<br />

a responsabilidade de evitar<br />

uma gravidez, o acesso a métodos contraceptivos<br />

pelo Sistema Único de Saúde<br />

(SUS) ainda é falho e desigual – os<br />

entraves encontrados incluem desinformação,<br />

falta de equipamentos e treinamento<br />

dos profissionais de saúde.<br />

Para prevenir o aborto, é preciso garantir<br />

políticas de saúde acessíveis e<br />

universais, que levem em conta os direitos<br />

sexuais e reprodutivos de todas<br />

as pessoas, a fim de diminuir também<br />

o número de gestações não-planejadas,<br />

mortalidade materna e infantil.<br />

Forçar que uma gravidez não-intencional<br />

seja levada a termo é violar esse direito<br />

fundamental.<br />

Fonte: Instituto Anis de Bioética e PSOL<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

53


± | Mark Florest


Diversidade<br />

<strong>por</strong> Nanci Alves<br />

Uma luta<br />

necessária<br />

Nascer com o aparelho reprodutor<br />

feminino e se reconhecer como mulher<br />

ou nascer com o aparelho reprodutor<br />

masculino e se reconhecer como<br />

homem sempre foi considerado, pela<br />

nossa sociedade, como “normalidade”.<br />

Quem está fora deste modelo binário<br />

como a pessoa trans (que não se reconhece<br />

com a identidade biológica) ou<br />

a travesti sofrem julgamentos e recebem<br />

diagnósticos terríveis.<br />

Até o dia 18 de junho deste ano<br />

(<strong>2018</strong>), a pessoa trans era considerada<br />

pela Organização Mundial de Saúde<br />

uma pessoa com sofrimento mental,<br />

identificada no CID (Código Internacional<br />

de Doenças) de número 10, que<br />

trata de doenças ligadas a transtornos<br />

como esquizofrenia, cleptomania e<br />

depressão. Pela nova classificação da<br />

OMS, as identidades trans passam a<br />

ser diagnosticadas pelo CID 11, como<br />

incongruência de gênero, uma condição<br />

relativa à saúde sexual (como ejaculação<br />

precoce ou a disfunção erétil).<br />

Essa mudança significa um avanço<br />

para o clínico e infectologista, Sidnei<br />

Rodrigues de Faria, do ambulatório<br />

trans do Hospital Eduardo de Menezes,<br />

da Fundação Hospitalar do Estado de<br />

Minas Gerais (Fhemig), inaugurado no<br />

dia 23/11/2017, em Belo Horizonte. “Muito<br />

im<strong>por</strong>tante reconhecer que não é<br />

transtorno psiquiátrico, mas também,<br />

<strong>por</strong> outro lado, é im<strong>por</strong>tante que ainda<br />

receba um CID, <strong>por</strong>que só assim as<br />

pessoas trans poderão ser atendidas<br />

nos poucos locais públicos que oferecem<br />

serviços necessários aos cuidados<br />

da sua saúde. Nós, médicos, precisamos<br />

do código de procedimento, <strong>por</strong>que<br />

ainda não está planejado o sistema<br />

para atendimento de população trans<br />

sem um CID”, afirma Sidnei Faria, destacando<br />

que a demanda no Brasil é<br />

grande e poucos lugares prestam atendimento<br />

especializado. “No futuro, os<br />

ambulatórios trans deixarão de ser necessários<br />

e estas pessoas conseguirão<br />

atendimento em clínicas e hospitais,<br />

como todas pessoas não trans — chamadas<br />

de cisgênero, ou apenas cis. Mas<br />

agora, o ambulatório tem o papel também<br />

de dar visibilidade à demanda da<br />

população trans”, afirma.<br />

O ambulatório do Eduardo de Menezes<br />

oferece atendimento com clínico<br />

geral, psicóloga, endocrinologista e assistente<br />

social. São acompanhamentos<br />

essenciais para a saúde e também para<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

55


uma futura cirurgia de redesignação<br />

sexual (adequação dos genitais ao gênero<br />

com o qual a pessoa se identifica),<br />

caso a pessoa assim o deseje, pois não<br />

é regra. De modo geral, de acordo com<br />

o clínico, uma das primeiras demandas<br />

<strong>por</strong> cuidado em saúde está relacionada<br />

à hormonioterapia (a modificação na<br />

cor<strong>por</strong>alidade <strong>por</strong> meio de hormônios),<br />

seguida de cirurgia de readequação<br />

cor<strong>por</strong>al (mastectomia masculinizante<br />

— homens trans) e, <strong>por</strong> último, a<br />

cirurgia de redesignação sexual. “Além<br />

do atendimento da demanda, temos a<br />

preocupação com a promoção de saúde<br />

(estimular hábitos de vida saudável<br />

como alimentação, prática de atividades<br />

físicas, evitar tabagismo e etilismo)<br />

e de incentivo àqueles/as que não têm<br />

estudo que retomem, pois é im<strong>por</strong>tante<br />

para que tenham maior o<strong>por</strong>tunidade<br />

no mercado de trabalho”, explica<br />

Sidnei Faria.<br />

Há apenas 20 anos que o Brasil<br />

passou a ter alguma preocupação com<br />

a atenção à saúde de transexuais e<br />

travestis. Vale lembrar que até 1997 a<br />

cirurgia de redesignação sexual era<br />

proibida e só a partir de 2008, no segundo<br />

governo do ex-presidente Lula,<br />

que o SUS passou a oferecer (na prática,<br />

em 2009) o processo transexualizador.<br />

Para os procedimentos ambulatoriais<br />

é necessário uma idade mínima de 18<br />

anos e para procedimentos cirúrgicos,<br />

21 anos. É também necessário acompanhamento<br />

médico e psicológico <strong>por</strong>,<br />

pelo menos, dois anos antes da cirurgia<br />

e um ano de acompanhamento póscirúrgico.<br />

“A minha leitura deste tempo<br />

que o SUS pede é para garantir que a<br />

pessoa esteja em condições clínicas e<br />

psicológicas, para que não tenha arrependimento,<br />

pois são procedimentos<br />

irreversíveis”, avalia o clínico.<br />

“<br />

…só a partir de 2008,<br />

no segundo governo do<br />

ex-presidente Lula, que<br />

o SUS passou a oferecer<br />

(na prática, em<br />

2009) o processo transexualizador.”<br />

Internet<br />

56 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


Corpos genitalizados e<br />

exotificados<br />

O SUS não sabe informar qual a demanda<br />

para a cirurgia de redesignação<br />

sexual em todo o país, mas divulga<br />

que desde 2009 até abril deste ano foram<br />

realizadas 474 cirurgias que compreendem<br />

a troca de sexo, retirada<br />

de mama, plástica mamária reconstrutiva<br />

e cirurgia de troca de timbre<br />

de voz, histerectomia (retirada do útero)<br />

e colpectomia (retirada da vagina),<br />

além de outros procedimentos complementares<br />

ao processo.<br />

De acordo com a coordenadora da<br />

ONG Transvest (que combate a transfobia<br />

e inclui travestis, transexuais e<br />

transgêneros na sociedade), professora<br />

Duda Salabert (foto), a oferta de hospitais<br />

públicos é pequena, apenas 5<br />

em todo o Brasil (relação dos hospitais<br />

no final da matéria): “a pessoa trans<br />

que deseja fazer a cirurgia de redesignação<br />

de gênero terá que esperar muitos<br />

anos. Temos que lembrar que as<br />

pesquisas mostram que nossa expectativa<br />

de vida é de 35 anos”, desabafa.<br />

Ela reforça que as pessoas trans não<br />

têm problema com seus corpos – eles<br />

estão certos; a questão é a imposição.<br />

“A sociedade precisa entender que os<br />

corpos são plurais. Hormonizados ou<br />

não, podem carregar uma identidade<br />

feminina ou não. A pessoa tem que ter<br />

autonomia para escolher a identidade<br />

com a qual se reconhece e não a imposição<br />

pautada na genitália”, ressalta.<br />

Duda destaca que a transexualidade<br />

é muito mais que uma cirurgia. “Nossos<br />

corpos são tão genitalizados que<br />

as pessoas se julgam no direito de<br />

ficar nos perguntando se vamos ou<br />

não fazer cirurgia. A maioria das pessoas<br />

trans que eu conheço não tem<br />

esse desejo. O debate precisa ser maior.<br />

Nós precisamos falar em saúde integral<br />

– desde a saúde social, de onde estes<br />

corpos estão inseridos, à saúde mental,<br />

emocional e corpórea. Isso o serviço<br />

público não nos oferece”, afirma.<br />

A professora destaca que é preciso<br />

mudar também a realidade da exotificação<br />

dos corpos das pessoas trans.<br />

“Às vezes, vamos ao médico <strong>por</strong> um<br />

simples problema como uma dor de<br />

garganta e o(a) médico(a) faz tantas<br />

perguntas sobre nosso corpo que não<br />

faria para uma pessoa cis. Nossos corpos<br />

não são reconhecidos como humanos<br />

e sim como coisas abjetas. A<br />

consulta fica transfóbica <strong>por</strong>que o/a<br />

médico/a exotifica nossos corpos ao<br />

nos fazer perguntas que não estão<br />

dentro do problema que nos levou lá.<br />

Muitas vezes o paciente fala que está<br />

com unha encravada e tem que responder<br />

se já foi ao psiquiatra ou se já<br />

fez teste de HIV. Se essas perguntas<br />

fossem feitas para todas as pessoas<br />

como forma de prevenção, seria diferente,<br />

mas não é”, destaca.<br />

Reconhecimento do<br />

nome social<br />

Outra questão que precisa entrar no<br />

debate da saúde é o respeito ao nome<br />

social. Numa luta antiga, a pessoa trans<br />

conseguiu, recentemente, o direito de<br />

adotar o nome social em seu registro<br />

civil, sem a necessidade de ter que se<br />

submeter à cirurgia de redesignação<br />

sexual, como era obrigatório até então.<br />

Essa foi a decisão do Supremo Tribunal<br />

Federal no dia 1º de março deste ano<br />

(<strong>2018</strong>), quando os ministros invocaram<br />

o princípio do respeito à dignidade<br />

Mark Florest<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

57


humana. Para a diretora da União Nacional<br />

LGBT, liderança do Grupo Gay<br />

da Bahia (GGB) e da União de Negros<br />

pela Igualdade (UNEGRO/ Bahia), Millena<br />

Passos (foto), o passo agora é garantir<br />

que todas as pessoas trans possam<br />

ter acesso a esse direito. “Sabemos<br />

que para fazer o registro do nome<br />

social os cartórios cobram uma taxa<br />

que varia entre 300 e 500 reais, em<br />

todo o Brasil. Muita gente não tem<br />

como pagar e precisa descobrir mecanismos<br />

para baratear esse custo.<br />

Por isso, aqui na Bahia, entramos com<br />

ação coletiva no Ministério Público e<br />

na Defensoria Pública”, afirma.<br />

Enquanto isso, a falta do nome social<br />

favorece que também o atendimento<br />

médico seja transfóbico, afastando muitas<br />

pessoas dos consultórios. De acordo<br />

com a professora Duda Salabert, 80%<br />

das pessoas trans e travestis se autohormonizam<br />

pela falta de laudos, de<br />

acesso a médicos especializados, pela<br />

falta de informação de muitos desses<br />

profissionais sobre nossos corpos, pelo<br />

medo da transfobia, etc. “Precisamos<br />

que a transexualidade seja despatologizada<br />

e precisamos de mais ambulatórios<br />

trans, inclusive nos municípios<br />

do interior, e de mais formação nos<br />

cursos de medicina, pois vemos que a<br />

hormonização da pessoa trans não é<br />

estudada, pesquisada. Tanto é que não<br />

tem nenhuma medicação específica<br />

para nossos corpos”, finaliza.<br />

De acordo com o clínico Sidnei Faria,<br />

realmente é urgente uma mudança<br />

na base curricular da medicina no<br />

Brasil. “Alguns profissionais estudam<br />

sozinhos ou em grupos, mas não existe<br />

na nossa formação um estudo mais<br />

Arquivo pessoal<br />

aprofundado que permita um atendimento<br />

de qualidade da saúde da pessoa<br />

trans. Assim, o ambulatório trans<br />

do Hospital Eduardo de Menezes é<br />

também um espaço de formação: “passam<br />

<strong>por</strong> aqui conosco estudantes de<br />

psicologia e residentes de medicina<br />

de família e comunidade que vão atender<br />

pessoas trans nas suas unidades”.<br />

Sobre a prática da hormonização<br />

sem acompanhamento médico, o endocrinologista<br />

do ambulatório do Hospital<br />

Eduardo de Menezes, Eduardo<br />

Ribeiro Mundim, chama a atenção para<br />

os riscos à saúde. “No ambulatório, é<br />

comum chegar pessoas que começaram<br />

sozinhas. Algumas, de forma correta<br />

e outras absurdamente errada, <strong>por</strong>que<br />

alguém 'ensinou' ou viu na internet. É<br />

preciso informação, exames. Não pode<br />

ser feito no escuro, sem acompanhamento<br />

médico. Sozinho/a, como poderá<br />

avaliar os efeitos e reduzir a chance<br />

de efeitos colaterais?”, ressalta.<br />

Transfobia<br />

A patologização da identidade trans<br />

faz com que recaia nas pessoas transexuais<br />

e travestis uma grande carga<br />

de preconceito e discriminação, afetando<br />

sua saúde. O professor de taekwondo,<br />

Maykon Santana, de 20 anos,<br />

casado e com 2 filhos, é um exemplo<br />

dessa realidade. Com o tratamento<br />

<strong>por</strong> meio de hormônios, iniciado recentemente<br />

no ambulatório trans em<br />

BH, ele diz que se sente deprimido<br />

<strong>por</strong>que sofre discriminação. “É muito<br />

difícil conviver com pessoas que não<br />

nos respeitam. Não percebem que as<br />

palavras delas doem profundamente<br />

na gente. É pesado sofrer preconceito<br />

e discriminação o tempo todo, sem<br />

58 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


ter escolhas. Aqui no ambulatório estou<br />

encontrando acolhida e uma luz<br />

para chegar onde preciso”, conta.<br />

Para a psicóloga do ambulatório<br />

trans do Hospital Eduardo de Menezes,<br />

Andreia Resende dos Reis (foto),<br />

o sofrimento da pessoa trans, além da<br />

discriminação, passa também pela<br />

negação de direitos tão essenciais<br />

como o uso do nome social, modificações<br />

cor<strong>por</strong>ais e uso de banheiros públicos<br />

de acordo com sua identidade<br />

de gênero. “O desrespeito ao direito<br />

de adotarem o nome social nas instituições<br />

escolares e de saúde é uma<br />

forma de preconceito. Ele possui conotação<br />

pública, enquanto fator determinante<br />

de identificação, e como<br />

parte do atributo de constituição pessoal<br />

e social. Se o nome é um cartão<br />

de visita, que nomeia quem a pessoa<br />

é, o desrespeito ao uso do nome social<br />

aparece como enfraquecimento da<br />

identidade das pessoas travestis e<br />

transexuais. A não identificação com<br />

o nome de registro e o nome como desejam<br />

ser reconhecidas, expõe-nas a<br />

situações vexatórias e, <strong>por</strong>tanto sofridas”,<br />

explica. Diversas leis em âmbito<br />

federal, estadual e municipal trazem<br />

“…o desrespeito ao uso<br />

do nome social aparece<br />

como enfraquecimento<br />

da identidade<br />

das pessoas travestis<br />

e transexuais.”<br />

como garantia o uso do nome social –<br />

elas precisam ser respeitadas.<br />

Andreia Reis destaca que o processo<br />

das modificações cor<strong>por</strong>ais <strong>por</strong><br />

meio de hormônios é um trabalho<br />

lento, desafiador e, muitas vezes, cheio<br />

de tribulações. “E em geral, as modificações<br />

são vistas de forma minuciosa<br />

pelos olhares da sociedade como algo<br />

a ser analisado, questionado e reprovado”,<br />

diz. O professor Maykon Santana,<br />

que apenas recentemente foi informado<br />

que o SUS oferece este serviço,<br />

diz que mesmo com a demora,<br />

vai fazer o que puder para que possa<br />

melhorar sua autoestima. “Preciso fazer<br />

a mastectomia, pois um dos sofrimentos<br />

é ter que esconder o corpo,<br />

tanto no trabalho como na vida social.<br />

Me privo de passeios, não posso sequer<br />

ir a um clube como os outros homens.<br />

Tudo isso traz muito sofrimento. Terei<br />

que aguardar o tempo e a fila de espera,<br />

pois na rede particular, essa cirurgia<br />

custa mais de 7 mil reais, impossível.<br />

Quanto à cirurgia de transgenitalização,<br />

ainda não sei se terei vontade de<br />

fazer futuramente”, afirma.<br />

Carina Aparecida<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

59


O drama do banheiro, destacado<br />

pela psicóloga, é outra história que impede<br />

muitas pessoas trans de viverem<br />

de forma saudável sua vida, seja no<br />

trabalho, nos locais públicos ou na escola.<br />

O técnico de enfermagem, e que<br />

trabalha atualmente como pipoqueiro,<br />

Paulo Henrique (foto), 39 anos, afirma<br />

que não usa banheiro público <strong>por</strong>que<br />

já sofreu muito. “A última vez, uma senhora<br />

gritou comigo, disse que eu não<br />

podia estar ali. Por outro lado, não<br />

tenho coragem de entrar no banheiro<br />

masculino <strong>por</strong> medo de apanhar, sofrer<br />

outras agressões. Se eu já tivesse feito<br />

a cirurgia de mastectomia, ficaria mais<br />

fácil, pois passaria desapercebido pelos<br />

homens transfóbicos”, afirma.<br />

De acordo com Andreia Reis, o banheiro<br />

e os ambientes generificados<br />

(enfermarias, vestiários, provadores<br />

de lojas, filas em ambientes escolares<br />

etc.) são arquiteturas binárias relacionadas,<br />

em sua grande maioria, a conflitos<br />

e constrangimentos para as pessoas<br />

travestis e transexuais que vivem<br />

na fronteira da heteronormatividade.<br />

“…não tenho coragem<br />

de entrar no banheiro<br />

masculino <strong>por</strong> medo<br />

de apanhar, sofrer outras<br />

agressões.”<br />

Carina Aparecida<br />

“Esses espaços reiteram os mecanismos<br />

hegemônicos que regulam corpos numa<br />

perspectiva do sexo anatômico. Tais<br />

privações levam muitas vezes à evasão<br />

escolar, a situações de agressões verbais<br />

e até físicas dentro dos espaços”, afirma<br />

a psicóloga ao ressaltar que essas exclusões<br />

dificultam a possibilidade de<br />

um processo de transição acolhedor,<br />

com apoio do núcleo familiar, da rede<br />

social, das instituições de saúde, escolar<br />

etc. “Embora o uso do nome, o uso do<br />

banheiro (espaços generificados) e as<br />

modificações cor<strong>por</strong>ais pelo uso de<br />

hormônios ou através de procedimentos<br />

cirúrgicos não definam a transexualidade<br />

nem a travestilidade, elas<br />

são reivindicações necessárias e legítimas<br />

de grande parte das pessoas<br />

trans e travestis”, diz.<br />

A psicóloga afirma que o ambulatório<br />

trans oferece uma escuta qualificada.<br />

“Aqui elas se sentem acolhidas,<br />

pois boa parte deles e delas já experimentaram<br />

situações desagradáveis<br />

nas instituições de saúde. Adotamos<br />

o prontuário eletrônico com o uso do<br />

nome social e, devido ao histórico de<br />

desrespeito nas unidades de saúde,<br />

optamos <strong>por</strong> receber esses usuários e<br />

usuárias <strong>por</strong> agendamento telefônico<br />

e <strong>por</strong> encaminhamentos de diversas<br />

instituições públicas e privadas”, destaca.<br />

Paulo se diz satisfeito com o<br />

atendimento que vem recebendo no<br />

ambulatório. Ele conta que chegou lá<br />

preparado para tudo que precisa ser<br />

feito. “Nunca me automediquei nesse<br />

processo. Aqui fui bem recebido e<br />

estou há seis meses fazendo hormonização,<br />

enquanto aguardo o tempo<br />

para as cirurgias necessárias para a<br />

transgenitalização – “só assim serei<br />

realmente feliz”, completa. Ele considera<br />

im<strong>por</strong>tante o apoio que vem re-<br />

60 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


cebendo de alguns amigos e de sua família,<br />

especialmente de seus pais.<br />

Para o endocrinologista Eduardo<br />

Mundim, é preciso que a sociedade faça<br />

uma reflexão: “o que eu faço quando<br />

outro está sofrendo? Eu vou em busca<br />

da condenação pelos sofrimentos dele<br />

ou tentarei entender o que está acontecendo,<br />

deixando minhas questões,<br />

minhas referências e pontos de vista<br />

pessoais? Se eu me nego a ouvir o sofrimento<br />

do outro, que sociedade é<br />

essa? O que corremos risco de fazer é<br />

aumentar este sofrimento com a minha<br />

incapacidade de entender, de conviver<br />

com o que é diferente de mim.”<br />

Para o médico, os próprios cursos<br />

de medicina precisam começar a pensar<br />

como atender a população trans.<br />

“O preconceito começa pelos professores,<br />

na abordagem, desde quando<br />

encontram uma pessoa trans num<br />

ambulatório escolar. Temos, aqui, relato<br />

de pessoas que foram objetos de<br />

exposição pública para os alunos com<br />

comentários tristes. Nós, profissionais<br />

da saúde, também somos carregados<br />

de preconceitos e transmitimos isso<br />

para os/as alunos/as. As escolas precisam<br />

mudar”, alerta.<br />

Já o clínico Sidnei Faria chama a<br />

atenção para a im<strong>por</strong>tância da família<br />

e de toda a sociedade para o combate<br />

ao machismo e à LGBTfobia. “Tenho filhos<br />

de 4 e de 3 anos. Eles já falam “isso<br />

é de menino, isso é de menina”. Tenho<br />

que falar sempre: “isso não é de menino<br />

e nem de menina, é de quem quiser”.<br />

A imposição de papeis na nossa<br />

cultura machista é muita intensa. No<br />

momento em que o ultrassom mostra<br />

o sexo do bebê, a sociedade já coloca<br />

uma sentença na vida da criança que<br />

gera uma série de expectativas tão intensas.<br />

Se ela, no futuro, escolher viver<br />

Equipe ambulatório trans do Hospital Eduardo de Menezes<br />

o gênero de forma não esperada, terá<br />

que enfrentar uma barreira muito<br />

grande, com imposições muito fortes.<br />

A gente tem que fazer mea-culpa, pois<br />

a ciência também contribui para a<br />

visão de adoecimento das pessoas. Por<br />

isso, foi im<strong>por</strong>tante a mudança de CID<br />

10 para 11, pelo menos não está mais<br />

caracterizado como doença psiquiátrica,”<br />

conclui.<br />

Por que é im<strong>por</strong>tante<br />

discutir gênero<br />

O Brasil tem se mostrado um país<br />

transfóbico e a discussão sobre o tema<br />

precisa ser feita com toda a sociedade.<br />

De acordo com o Mapa de Assassinatos<br />

de Travestis e Transexuais no Brasil<br />

2017, produzido pela Associação Nacional<br />

de Travestis e Transexuais (AN-<br />

TRA), somos o país que mais mata travesti<br />

e trans no mundo – a cada 48<br />

horas há um assassinato com vítimas<br />

em situação degradante que expõe o<br />

ódio com que os crimes foram feitos.<br />

“Qual a nossa indignação e o comprometimento<br />

com a vida dessas pessoas<br />

que são assassinadas diariamente pelo<br />

fato de (re)existirem fora dos padrões<br />

impostos pela sociedade?” É o que<br />

pergunta a secretária de Articulação<br />

Política da ANTRA, Bruna Benevides,<br />

no texto de abertura do Mapa 2017.<br />

Pelos dados da Associação, até meados<br />

de agosto foram assassinadas 104 pessoas<br />

em <strong>2018</strong>, entre travestis e trans.<br />

“Muitas vezes, o primeiro contato<br />

de uma Travesti ou Transexual com a<br />

sociedade é através da violência. Algumas<br />

no próprio seio familiar e de<br />

Carina Aparecida<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

61


forma muito precoce. Momento em<br />

que conhecem também a exclusão,<br />

que as coloca pra fora da possibilidade<br />

de disputa nos espaços sociais,<br />

que vêm sendo historicamente negados”,<br />

afirma a secretária.<br />

Ela ressalta que o risco de uma<br />

pessoa trans ser assassinada é 14 vezes<br />

maior que um homem gay cis (TGEU,<br />

2017) e afirma que é urgente se pensar<br />

em prevenção e educação — “em campanhas<br />

ostensivas e periódicas, contra<br />

o preconceito, contra o ódio, contra o<br />

discurso religioso que nos demoniza,<br />

contra aquela 'liberdade de expressão'<br />

que nos desumaniza. Nos desumani-<br />

Freepik<br />

zando, podem fazer conosco o que<br />

quiserem, até matar e, ainda, contam<br />

com a certeza da impunidade ”.<br />

Para a professora e coordenadora<br />

da Transvest, Duda Salabert, para combater<br />

tal realidade e promovermos uma<br />

cultura de respeito e paz é preciso discutir<br />

com a sociedade – e a escola é<br />

fundamental. “Os discursos sobre o<br />

tema são caricaturados <strong>por</strong> setores<br />

mais conservadores que acreditam que<br />

o debate de gênero em sala de aula<br />

tem objetivo de acabar com a família.<br />

Na verdade, é mais profundo. Falar sobre<br />

gênero não só é ampliar o conceito<br />

de família, mas também de humanidade<br />

– mostrar que o ser humano é<br />

mais diverso, plural. Reduzir a nossa<br />

existência a uma postura binária (homem<br />

e mulher, que vai se reduzir à<br />

genitália) é uma visão pobre do ser humano.<br />

Somos mais que genitália, temos<br />

dimensão psicológica, cultural, além<br />

da biológica. O debate sobre gênero<br />

tem que passar <strong>por</strong> tudo. Não temos<br />

como discutir a violência na escola<br />

sem discutir gênero. O bullying, <strong>por</strong><br />

exemplo – quem mais comete bullying<br />

na escola? Os homens. Mas <strong>por</strong> quê?<br />

Será que <strong>por</strong> motivo cultural, patriarcal?<br />

E quando o assunto com os/as alunas<br />

é o combate à gravidez precoce?<br />

Temos que discutir gênero: qual o papel<br />

da mulher criado na sociedade, o que<br />

se espera de um corpo feminino, <strong>por</strong>que<br />

a mulher é um corpo mais vulnerável?<br />

Se vou discutir feminicídio, os dados<br />

do mapa da violência mostram que diminuiu<br />

em 10% a morte de mulheres<br />

brancas e aumentou em 54% de mulheres<br />

negras. Tudo isso está no debate<br />

de gênero/raça, não tem como dissociar<br />

gênero da violência que está na nossa<br />

sociedade. Tem gente que ainda pensa<br />

que discutir gênero é discutir pautas<br />

62 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


LGBTs. Não, é discutir empoderamento<br />

feminino, emancipação. No Senado<br />

(palavra que significa senhores) brasileiro,<br />

o primeiro banheiro feminino<br />

foi feito apenas em 2016. Somente 10%<br />

do Senado é ocupado <strong>por</strong> mulheres.<br />

Discutir gênero é falar desse espaço<br />

não ocupado <strong>por</strong> mulheres, é falar da<br />

diferença salarial, etc”, afirma.<br />

Duda é a primeira travesti na história<br />

da América do Sul a pleitear<br />

uma vaga no Senado. “Uma vitória do<br />

Movimento Trans, mas aponta uma<br />

derrota para a democracia, pois denuncia<br />

a invisibilidade – onde estavam<br />

esses corpos?” reflete.<br />

Colocar no poder mais pessoas que<br />

representam todas (trans, cis, negras,<br />

quilombolas, sem terra, indígenas, estudantes,<br />

héteros e homossexuais, ciganas<br />

etc.) é fundamental para<br />

combater o machismo, o feminicídio,<br />

“…a carne que<br />

mais sangra no<br />

mercado é a<br />

carne negra e<br />

trans.”<br />

a LBGTfobia e toda discriminação que<br />

sofrem as pessoas trans, especialmente<br />

as negras. É o que defende a ativista<br />

política do movimento LGBT na<br />

Bahia, Millena Passos. “Precisamos<br />

colocar pessoas nos vários espaços de<br />

poder que nos representem para que<br />

tenhamos uma fala unificada em<br />

favor da vida e dos direitos de todos e<br />

todas. Só assim teremos acesso ao<br />

mercado de trabalho”, afirma. Millena<br />

trabalha como assessora técnica da<br />

Secretaria de Política para as Mulheres,<br />

na Bahia, mas sabe da sua condição<br />

de exceção e se preocupa muito<br />

também com os assassinatos das pessoas<br />

trans e travestis no Brasil. “Em<br />

outubro do ano passado, fui para Belo<br />

Horizonte acompanhar uma mãe no<br />

reconhecimento do corpo de sua filha<br />

no Instituto Médico Legal (IML). Ela<br />

tinha sido assassinada <strong>por</strong> ser trans.<br />

Fiquei ainda mais chocada quando<br />

abriram a geladeira e descobrimos<br />

mais 3 corpos de pessoas trans e negras<br />

aguardando reconhecimento.<br />

Duas estavam lá há mais de um mês.<br />

Muitas vezes foram rejeitadas pelas<br />

próprias famílias e, assim, perdem o<br />

contato com as mesmas. Sofrem violência<br />

o tempo todo, são assassinadas<br />

e acabam sendo enterradas como indigentes.<br />

Com esta realidade podemos<br />

fazer uma alusão aos versos consagrados<br />

na voz da cantora Elza Soares, “a<br />

carne que mais sangra no mercado é a<br />

carne negra e trans”, desabafa.<br />

Processo<br />

transexualizador<br />

De acordo com o dados do Ministério<br />

da Saúde/SUS, no Brasil<br />

são apenas 11 serviços habilitados<br />

pela pasta, sendo 5 hospitalares<br />

(com cirurgia) e 6 ambulatoriais.<br />

Ambulatórios: Hospital Universitário<br />

Professor Edgard Santos,<br />

na Bahia; Hospital Universitário<br />

Cassiano Antonio de Moraes, no<br />

Espírito Santo; Hospital das Clínicas<br />

de Uberlândia (MG); Instituto<br />

Estadual de Diabetes e Endocrinologia<br />

do Rio de Janeiro; Centro<br />

de Referência e Treinamento<br />

DST/AIDS de São Paulo e no CRE<br />

Metropolitano, de Curitiba.<br />

Hospitais: Hospital de Clínicas<br />

de Porto Alegre, que pertence à<br />

Universidade Federal do Rio Grande<br />

do Sul; Hospital Universitário<br />

Pedro Ernesto, da Universidade<br />

Estadual do Rio de Janeiro; Hospital<br />

de Clínicas da Faculdade de<br />

Medicina da USP; Hospital das<br />

Clínicas de Goiânia, da Universidade<br />

Federal de Goiás e no Hospital<br />

das Clínicas, da Universidade<br />

Federal de Pernambuco.<br />

Serviço:<br />

Transvest<br />

Fone: (31) 999 222 666<br />

www.transvest.org.br<br />

Grupo Gay da Bahia<br />

Fone: (71) 3322-2552<br />

www.ggb.org.br<br />

www.antrabrasil.org<br />

Ambulatório Trans do Hospital<br />

Eduardo de Menezes<br />

3328-5058<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

63


Artigo<br />

Dra. Ângela Maria da Silva Gomes<br />

Ecofeminismo:<br />

construindo uma<br />

metodologia libertária<br />

Agricultura é um substantivo feminino<br />

− é o que, metaforicamente,<br />

nos lembra a agrônoma Ângela Cordeiro.<br />

Foram as mulheres da África e<br />

do mundo que domesticaram as plantas<br />

para que curassem e alimentassem<br />

os humanos. Entre quintais, canteiros,<br />

trilhas e jardins, mulheres oyos, núbias,<br />

incas, astecas, bantos, iorubás,<br />

mayas inventaram a agricultura há<br />

mais de 6000 anos.<br />

Outros pensadores, como Fritojf<br />

Capra, mencionam que o planeta Terra,<br />

Gaia, carrega a feminilidade em<br />

sua dinâmica organizacional e cósmica<br />

e que Yin e Yang antes estavam interligados.<br />

Mas apesar dessa pseudo valorização<br />

do feminino, cabe perguntar<br />

onde estão as mulheres nos estudos<br />

da ecologia e <strong>por</strong> que não as vemos<br />

nos movimentos ecológicos?<br />

Parte disso nos leva a refletir sobre<br />

as ideologias que promovem a violência<br />

contra as mulheres e a degradação<br />

ambiental. Violência ambiental, seja<br />

simbólica ou física.<br />

Do ponto vista da justiça socioambiental,<br />

o antropocentrismo, a ciência<br />

cartesiana e o capitalismo parecem<br />

ter caminhado lado a lado na construção<br />

de ideologias que estabeleceram<br />

o poder e a dominação homem-natureza<br />

e homem-mulheres. Alguns autores<br />

são unânimes em dizer que o<br />

discurso construído ao longo da história<br />

para dominar a natureza se assemelha<br />

ao discurso para dominar as<br />

mulheres.<br />

Todas essas questões aparecem no<br />

contexto de um debate antigo, mas<br />

que surge nos últimos tempos, denominado<br />

de Ecofeminismo. Assim como<br />

o feminismo, o Ecofeminismo, enquanto<br />

movimento e corrente de pensamento,<br />

conta com diferentes linhas<br />

teóricas e filosóficas, <strong>por</strong>ém todas têm<br />

como base a ligação entre mulheres e<br />

ecologia. Assim como o feminismo, o<br />

Ecofeminismo é um movimento essencialmente<br />

político.<br />

O que quer o<br />

Ecofeminismo?<br />

O termo aparece inicialmente na França,<br />

criado pela feminista Françoise<br />

d´Abone, em 1974. A autora entendia<br />

o Ecofeminismo como uma teoria que<br />

busca o fim de todas as formas de<br />

opressão. Relaciona as conexões entre<br />

as dominações <strong>por</strong> raça, gênero, classe<br />

social e a dominação da natureza.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

65


Internet<br />

Françoise d'Abone utiliza, pela primeira<br />

vez, o termo Ecofeminismo na<br />

sua obra Le Feminisme ou la Mort para<br />

referir-se à capacidade das mulheres<br />

como impulsoras de uma revolução<br />

ecológica, que ocasione e desenvolva<br />

uma nova estrutura relacional de gênero<br />

entre mulheres e homens.<br />

Uma das pioneiras do movimento<br />

foi Vandana Shiva (foto), na Índia, que<br />

lutou e luta <strong>por</strong> um modelo de desenvolvimento<br />

ecológico centrado no papel<br />

das mulheres. Nos anos 1970 e<br />

1980, Vandana Shiva fez parte do movimento<br />

Chipko, no qual mulheres indianas<br />

protestaram contra a exploração<br />

florestal industrial ao abraçar as<br />

árvores que lhes serviam de fonte de<br />

sustento. Essas mulheres enfrentaram<br />

as multinacionais da indústria madeireira<br />

e foram reprimidas com violência<br />

<strong>por</strong> essas empresas, dando inclusive<br />

origem à expressão “treehugger”<br />

(abraçador de árvores) utilizada<br />

para designar ambientalistas.<br />

Mulheres ecologistas, a exemplo<br />

de Vandana Shiva, aparecem como<br />

uma das mais im<strong>por</strong>tantes ativistas<br />

da luta “anticolonial agroecológica” e<br />

do feminismo no Terceiro Mundo. No<br />

livro Abraçar la Vida, Shiva enfatiza<br />

que, imbuídas do sentimento de estarem<br />

ligadas aos ritmos da natureza,<br />

as mulheres compreendem as interconexões,<br />

as inter-relações entre esta<br />

e os seres humanos. Assim, pensar<br />

em prevenção contra a destruição<br />

ambiental tem seu ponto forte nesse<br />

vínculo. Essa identificação tornou-se<br />

um projeto positivo, que as alçou ao<br />

nível de guardiãs da ecologia e da biodiversidade,<br />

e do feminismo no<br />

mundo. Nasciam, assim, as premissas<br />

do Ecofeminismo.<br />

A natureza dos<br />

discursos<br />

Pensando na relação da sociedade ocidental<br />

com a natureza, pode-se afirmar<br />

que o antropocentrismo, ciência moderna<br />

e o capitalismo sempre se sustentaram<br />

<strong>por</strong> modelos civilizatórios<br />

patriarcais e racistas.<br />

Quando no livro de Gênesis, dentro<br />

da Bíblia, o antropocentrismo aparece<br />

66 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


em trechos como: “Deus disse ao homem<br />

dominai os peixes, dominai os<br />

rios, dominai os mares...”, nessas leituras<br />

promulgou-se a lógica da supremacia<br />

patriarcal e antropocêntrica colonial.<br />

Em outras palavras “ao colonizador<br />

tudo, e aos não europeus e às<br />

mulheres, nada”. Assim, nessa linha<br />

de pensamento, prevalece a ideia de<br />

que a natureza está para servir ao homem,<br />

que se coloca como “a imagem<br />

e semelhança de Deus”. Uma narrativa<br />

que, ao chegar ao século XV, autoriza<br />

o uso intensivo e abusivo da natureza<br />

para servir ao homem cristão, que<br />

nesse caso é o colonizador, invasor de<br />

territórios indígenas, africanos e dos<br />

corpos das mulheres.<br />

Cotidianamente vivenciamos o antropocentrismo<br />

e o patriarcalismo em<br />

estereótipos de linguagem que associam<br />

mulheres e negros aos animais,<br />

como inferiores ou nocivos. Exemplo<br />

disso é que, quando se quer ofender<br />

uma mulher no Brasil, ela pode ser<br />

chamada de “vaca”, “galinha”, “cobra”,<br />

ou os negros podem ser chamados de<br />

“urubus”, "macacos", entre outros. O<br />

que esses discursos promovem é uma<br />

violência simbólica. Ostentam os homens<br />

brancos como superiores e determinam<br />

os grupos que devem<br />

servi-los; daí parte desses estereótipos<br />

terem prestado à escravidão de<br />

africanos e até hoje justificarem a violência<br />

contra as mulheres e negros.<br />

Assim, na lógica antropocêntrica ocidental,<br />

o masculino colonizador colocou-se<br />

como o civilizador autorizado<br />

a “domesticar” sob tortura, pessoas<br />

(mulheres, indígenas e negros africanos)<br />

e animais. A ideia de degradação<br />

ambiental e feminicídio passa a ser<br />

naturalizada, afinal tudo é visto como<br />

forma de elevação civilizatória. Os<br />

“Os quintais são<br />

modelos sustentáveis<br />

que exemplificam<br />

os ‘princípios<br />

femininos’ de gestão<br />

agroecológica”<br />

que não têm alma são frágeis ou “irracionais”<br />

e perigosos, <strong>por</strong> não aceitarem<br />

a subjugação.<br />

Esse preconceito com a natureza<br />

se estende para o uso da biodiversidade.<br />

Na visão antropocêntrica, a alta<br />

diversidade de plantas e de seres vivos<br />

é vista como “sujeira”, caos (mato); e a<br />

monocultura (plantar uma única espécie)<br />

e as podas drásticas ornamentais,<br />

passam a ser consideradas como<br />

algo higienizado (limpo) e não como<br />

sistemas frágeis dependentes de produtos<br />

químicos venenosos.<br />

A biodiversidade, para as sociedades<br />

ocidentais modernas, só será valorizada<br />

se puder ser transformada em matéria-prima<br />

e mercadoria. Enquanto para<br />

povos tradicionais e mulheres, a biodiversidade<br />

é a base de sustentação<br />

coletiva da vida física e espiritual.<br />

É comum vermos monoculturas de<br />

eucalipto ao lado de quintais de mulheres<br />

com plantas frutíferas, alimentares,<br />

místicas e ornamentais. Os quintais<br />

são modelos sustentáveis que exemplificam<br />

os “princípios femininos” de<br />

gestão agroecológica. Uma grande variedade<br />

de plantas medicinais, alimentares<br />

e místicas − como manjericão,<br />

arruda, maracujá, cebolinha, dente de<br />

leão, salsinha − dão beleza e estabilidade<br />

ecológica aos quintais.<br />

Em contraposição, as áreas de monoculturas<br />

e do agronegócio são fontes<br />

de doenças e desequilíbrios constantes,<br />

geradores de riscos e desastres ambientais<br />

em escalas crescentes. Pobres<br />

de biodiversidade, mas enriquecem<br />

os ruralistas e as multinacionais de<br />

agrotóxicos.<br />

Ciência, silêncio e<br />

sequestro de saberes<br />

A ideologia da ciência moderna levou<br />

à fragmentação do conhecimento<br />

(ciências da saúde, ciências exatas e<br />

humanas), super valorizando a razão<br />

em detrimento da emoção. Negou, assim,<br />

os conhecimentos interligados e<br />

complexos como os saberes femininos<br />

afro-indígenas. Cabe lembrar que os<br />

saberes tradicionais femininos não<br />

separavam tecnologia e mitos de emoção.<br />

Shiva fala que os colonizadores e<br />

capitalistas praticam um antagonismo:<br />

em alguns momentos, colocam o saber<br />

desses grupos como desaparecidoepistemicídio<br />

e em outros, se apropriam<br />

e sequestram esse saber e o colocam<br />

como de origem masculina,<br />

científico-europeia.<br />

Um exemplo desta invisibilidade<br />

do conhecimento feminino é o da história<br />

do arroz africano. A planta, que<br />

tem origem na região do Congo, foi domesticada<br />

e beneficiada, pela primeira<br />

vez, há mais de 5 mil anos, <strong>por</strong> mulheres<br />

do Congo em cultivos agroecológicos.<br />

Só depois, o colonizador o migra para<br />

a China e oculta sua origem. Judith<br />

Carney relata contos das mulheres africanas,<br />

que colocavam as sementes do<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

67


Depositphotos<br />

arroz nos cachos dos cabelos dos filhos,<br />

para que tivessem alimento ao serem<br />

levados forçosamente para as Américas.<br />

Também a tecnologia de beneficiamento<br />

do arroz é feminina. Desenhos<br />

como o de Debret mostram mulheres<br />

africanas em navios negreiros pilando<br />

o arroz durante o trajeto África Brasil.<br />

Do século XVI a XIX, o estado do Maranhão<br />

torna o Brasil o maior produtor<br />

de arroz do mundo.<br />

A sociedade ocidental capitalista<br />

desqualificou diversas práticas tradicionais<br />

femininas e africanas, denominando-as<br />

pejorativamente de atrasadas,<br />

“primitivas”. Ao mesmo tempo<br />

em que se apropriavam, as colocavam<br />

a serviço do grande capital, como é o<br />

caso hoje de patenteamento de tecnologias<br />

de povos tradicionais pela<br />

indústria farmacêutica.<br />

Racismo religioso e sexismo também<br />

servem para negar o legado ecológico<br />

feminino africano presente no<br />

Brasil e no mundo. O legado ecológico<br />

presente nas tradições afro-brasileiras,<br />

nas quais há uma sacralização da natureza<br />

e sistemas de curas holísticos,<br />

que também vai ser neocolonizado,<br />

no século XXI. Um bom exemplo é a<br />

nomenclatura colonizadora atual, enquanto<br />

denominava a cura com o “banho<br />

de descarrego”, esse passa a ser<br />

perseguido, associado a rituais malignos<br />

dos negros, quando o mercado<br />

capitalista se apropria, vira “banho<br />

de Ofurô”, sendo cobrado em casas<br />

de massagem e motéis do Brasil.<br />

O mesmo tem ocorrido com a maioria<br />

das terapias naturais, que são praticadas<br />

há milhares de anos pelos povos<br />

de matriz africana, e agora, são<br />

todas renomeadas como de origem<br />

oriental chinesa. O ritual de “passe”<br />

dos “macumbeiros” agora denominase<br />

de terapia “Reiki”. Isto é uma evidente<br />

manifestação de neocolonialismo,<br />

novas formas de colonização neoliberal<br />

do patrimônio cultural das mulheres<br />

negras, indígenas e pobres.<br />

Outro aspecto im<strong>por</strong>tante é que<br />

se o patriarcalismo deixou as mulheres<br />

com as tarefas de reprodução da família,<br />

de cuidar do ECO que é a casa,<br />

elas souberam construir um saber integrador<br />

à essência humana em diferentes<br />

pontos do mundo; mesmo que<br />

tenham sido perseguidas <strong>por</strong> isto, tanto<br />

na Europa como na América do<br />

Sul, como é o caso do Brasil.<br />

No período escravagista em Minas<br />

Gerais, as mulheres quitandeiras que<br />

não se chamavam ecofeministas, mas<br />

curavam, vendiam plantas de seus<br />

quintais, benziam e ajudavam os escravos<br />

a fugir para os quilombos, foram<br />

duramente perseguidas. Nos séculos<br />

XVII e XVIII, como citado <strong>por</strong> Lima e<br />

Souza (2004), no esforço de evidenciar<br />

68 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


a hegemonia de construção da ciência<br />

médica moderna, não só foi criada<br />

uma legislação que penalizava esse<br />

sistema de cura, como associado ao<br />

poder do clero, foi construído um imaginário<br />

que perseguiu violentamente<br />

benzedeiras, mães-de-santo, raizeiros<br />

nos centros urbanos.<br />

Em pleno séc. XXI, os povos de religiões<br />

de matriz africana, a maioria<br />

liderada <strong>por</strong> mulheres, não podem<br />

ter liberdade de praticar sua religião<br />

<strong>por</strong> temor de perseguição e racismo<br />

religioso, que tem levado a ataque os<br />

terreiros de candomblé e umbanda.<br />

No entanto, grande parte dos brasileiros<br />

sabe que o sistema de cura<br />

dessas casas (banhos, chás, benzeções)<br />

é que garante a vida de pelo menos<br />

80% dos brasileiros.<br />

Epistemicídio e<br />

renascimento<br />

É impossível não reconhecer que a<br />

forma como as mulheres cuidam e<br />

gerenciam os ecossistemas da natureza<br />

é muito diferenciada da dos homens.<br />

O modelo capitalista, ocidental, patriarcal<br />

fez a escolha <strong>por</strong> um modelo<br />

tecnológico energívoro (gasta muita<br />

energia) e poluidor; um modelo de<br />

consumo que trocou o ser pelo ter, e<br />

um modelo de crescimento ilimitado<br />

e insustentável que quer lucros a qualquer<br />

custo ambiental.<br />

Nos últimos decênios, a sociedade<br />

foi se dando conta também de que<br />

não vigora apenas uma injustiça social,<br />

mas também uma injustiça social ecológica:<br />

devastação de ecossistemas inteiros,<br />

contaminação de cursos d’àgua,<br />

exaustão dos bens naturais e surgimento<br />

de doenças autoimunes (câncer,<br />

“o Ecofeminismo é<br />

um movimento<br />

necessário, de luta<br />

para construção<br />

de uma sociedade<br />

sustentável, justa<br />

e feliz<br />

<strong>por</strong> exemplo). Uma crise geral do sistema-vida<br />

e do sistema-Terra.<br />

Passados 500 anos, podemos dizer<br />

que a barbárie do racismo segue matando<br />

negros, mulheres e pobres: morre<br />

quem conserva a natureza. Nos últimos<br />

12 anos em que se implantou a<br />

lei Maria da Penha, diminuiu o número<br />

de mulheres brancas assassinadas,<br />

mas aumentou, em 54%, o número de<br />

mulheres negras.<br />

As forças produtivas se transformaram<br />

em forças destrutivas. Diretamente,<br />

o que se busca mesmo é dinheiro<br />

e a dominação cultural.<br />

Cabe ainda perguntar: quem controla<br />

os ecossistemas da Terra, em<br />

termos de tecnologia, capital e poder?<br />

A resposta é simples: a maioria são<br />

empresas controladas <strong>por</strong> homens<br />

brancos, eurodescendentes.<br />

Então, essa matriz patriarcal, capitalista,<br />

ocidental e eurocêntrica tem<br />

que ser responsabilizada pela crise<br />

ecológica que produziu.<br />

A matriz matriarcal trilhou <strong>por</strong> outros<br />

rumos, mas foi invisibilizada; trilhou<br />

pela vida, pela subjetividade, pela<br />

complexidade e pela sustentabilidade<br />

ecológica. Criou os princípios da agroecologia,<br />

“princípios femininos”.<br />

Assim, o Ecofeminismo é um movimento<br />

necessário, de luta para construção<br />

de uma sociedade sustentável,<br />

justa e feliz. É de onde vieram as transformações<br />

integradas com os ciclos<br />

femininos e os ciclos da natureza. De<br />

onde viemos e jamais deveríamos ter<br />

nos separado. Revisitar esse movimento<br />

é sim retomar o elo do AYÊ<br />

(terra) com o Orum (forças do universo)<br />

e a justiça. Inclusive feministas negras,<br />

na marcha de Mulheres Negras em<br />

2015, em Brasília, afirmavam que a<br />

cosmovisão de mundo das matrizes<br />

matriarcais afro-indígenas, pode ser<br />

uma metodologia libertária das oprimidas<br />

e dos oprimidos.<br />

O Ecofeminismo pode redesenhar<br />

revolucionariamente outro modelo de<br />

desenvolvimento que inclua a ecologia<br />

e os direitos humanos e ensine o conceito<br />

de BEM VIVER. Tudo está conectado<br />

com tudo: princípios femininos<br />

e desafios para o século XXI.<br />

Dra. Ângela Maria da Silva Gomes<br />

Engenheira Florestal. Dra. em Geografia Cultural pela<br />

UFMG: etnobotânica negro africana<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

69


“Ninguém queria<br />

estar na<br />

minha pele”


Realidade<br />

<strong>por</strong> Débora Junqueira<br />

foto Carina Aparecida<br />

Mães órfãs:<br />

A retirada compulsória de bebês<br />

de mulheres em situação de vulnerabilidade<br />

traz reflexões que envolvem<br />

os direitos de crianças, adolescentes<br />

e de mães órfãs de filhos, que ficam<br />

em abrigos ou vão para adoção. Uma<br />

situação complexa, que desnuda os<br />

efeitos de políticas ineficientes para<br />

combater as desigualdades sociais no<br />

país, agravada quando há judicialização<br />

da vida e criminalização da pobreza.<br />

Graziele Soares da Silva é uma das<br />

mães que perdeu o poder familiar de<br />

dois filhos que foram destinados para<br />

a adoção. Na última gravidez, das<br />

nove que já teve, ela foi com dois filhos<br />

e o companheiro para o Abrigo<br />

Granja de Freitas da Prefeitura Municipal<br />

de Belo Horizonte. No Granja,<br />

moram famílias em situação de vulnerabilidade<br />

que ganham um teto e<br />

apoio de políticas sociais.<br />

“Eles roubam os nossos filhos sem<br />

perguntar se você quer mudar de vida”,<br />

reclama, afirmando que nunca foi chamada<br />

na Justiça para se defender nos<br />

processos em que perdeu a guarda<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

71


Carina Aparecida<br />

Esses movimentos reúnem membros<br />

do sistema de garantia dos direitos<br />

das crianças e adolescentes e cidadãos<br />

e cidadãs que lutam em defesa de mulheres<br />

e crianças vulneráveis.<br />

“Há uma mentalidade na sociedade<br />

de que uma criança rica tem mais<br />

amor do que uma pobre. O abrigamento<br />

compulsório e preventivo ocorre<br />

<strong>por</strong> uma forte convicção de que a<br />

mãe não vai conseguir cuidar da criança,<br />

mas não há dolo comprovado e<br />

sim receio de uma ação que ninguém<br />

sabe se vai acontecer”, afirma Sônia<br />

Lansky, pediatra do SUS, doutora em<br />

saúde pública e militante de movimentos<br />

sociais.<br />

dos filhos. Graziele (foto) engravidou<br />

a primeira vez aos 13 anos de idade e<br />

foi morar na rua <strong>por</strong>que a mãe queria<br />

que ela abortasse o bebê. Ela conta<br />

que foi apresentada às drogas <strong>por</strong> um<br />

companheiro, também morador de<br />

rua. “Fiquei cinco anos sem usar drogas,<br />

mas tive uma recaída e voltei para<br />

a rua novamente. O que me ajudou a<br />

sair dessa vida foi o nascimento da<br />

minha filha. Aceitei vir para o abrigo<br />

para não perdê-la”, desabafa.<br />

Talvez, lendo até aqui, alguém possa<br />

julgar que, para quem é pobre, com<br />

histórico de rua e drogas e com tantos<br />

filhos, o melhor destino para as crianças<br />

dessas mulheres seja mesmo a<br />

adoção <strong>por</strong> uma família rica. Quem<br />

sabe podem ter quarto decorado, escola<br />

particular e acesso a bens mate-<br />

riais e culturais com a possibilidade<br />

de um futuro diferente dos irmãos<br />

que não tiveram a mesma “sorte”?<br />

No debate sobre esse tema, questiona-se<br />

exatamente qual o efeito dessa<br />

mentalidade culturalmente incutida<br />

nas decisões de quem opera as áreas<br />

da Justiça, assistência social e saúde.<br />

Por que somente mulheres pobres e<br />

normalmente negras são as maiores<br />

vítimas de decisões que as separam<br />

de seus bebês se existem usuárias de<br />

drogas em todas as classes sociais?<br />

Quais os parâmetros para o exercício<br />

da maternidade? Quais os impactos<br />

geracionais dessas decisões judiciais<br />

para essas famílias abandonadas pelo<br />

Estado? Essas são algumas indagações<br />

dos movimentos sociais como o “De<br />

quem é esse bebê?” e “Mães órfãs”.<br />

Violações de direitos<br />

Ela descreve uma cena presenciada<br />

<strong>por</strong> várias pessoas que mais parece filme.<br />

Uma mulher com transtornos mentais<br />

teve o filho recém-nascido levado<br />

<strong>por</strong> um representante do judiciário e<br />

um policial enquanto ela fazia uma<br />

consulta médica, <strong>por</strong>que a maternidade<br />

comunicou à Justiça que ela era <strong>por</strong>tadora<br />

de transtornos mentais. “O companheiro<br />

dela gritou ‘estão levando a<br />

criança’, e os dois saíram correndo<br />

atrás do carro da polícia”, conta estarrecida<br />

ao se lembrar do fato.<br />

Sônia relata uma série de violações<br />

dos direitos das crianças nos casos de<br />

abrigamento compulsório. “Mesmo<br />

que o bebê tenha tido alta, o serviço<br />

social o mantém lá, mas internar uma<br />

criança no hospital quando ela está<br />

sadia aumenta o risco de ela pegar<br />

uma infecção, além da privação do<br />

aleitamento materno, com sérios danos<br />

para o seu desenvolvimento. Não<br />

é função do hospital decidir sobre o<br />

destino dessa criança”, afirma.<br />

72 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


“Se a mulher chegar ao hospital<br />

com estereótipo de pobre, mesmo que<br />

ela esteja em um ótimo momento da<br />

sua vida, se os profissionais olharem<br />

no prontuário que ela já usou drogas<br />

e perdeu um filho, já é suficiente para<br />

comunicar à Vara da Infância, com o<br />

objetivo de se resguardar de futuras<br />

punições. Com isso, a mulher é condenada<br />

pelo seu passado e não é vista<br />

como sujeito”, lamenta.<br />

Lúcio Bernardo<br />

Impacto das<br />

determinações da Justiça<br />

A obrigatoriedade de comunicação à<br />

Vara da Infância de Juventude de<br />

Minas Gerais (TJMG) <strong>por</strong> profissionais<br />

de maternidades e unidades de<br />

básicas de saúde, diante de evidências<br />

ou constatação de que a mãe é usuária<br />

de drogas e/ou tem trajetória de rua,<br />

foi uma determinação da Portaria de<br />

nº 3/2016 do Tribunal de Justiça de<br />

Minas Gerais (TJMG). A Portaria seguia<br />

as Recomendações 5 e 6, publicadas<br />

em 2014 pelo Ministério Público<br />

de Minas Gerais e ainda definia a penalização<br />

criminal para os profissionais<br />

que a descumprissem.<br />

As recomendações do MP acerca<br />

do fluxo em casos de gestantes usuárias<br />

são de junho e agosto de 2014, expedidas<br />

pela 23ª Promotoria de Justiça<br />

da Infância e Juventude Cível de Belo<br />

Horizonte. A primeira, dirigida às maternidades,<br />

solicita que os casos de<br />

mães usuárias de substâncias entorpecentes<br />

sejam comunicados à Vara<br />

da Infância e Juventude de Belo Horizonte.<br />

A segunda, dirigida às Unidades<br />

Básicas de Saúde, recomenda que sejam<br />

comunicados à Vara os casos de<br />

gestantes usuárias de drogas.<br />

Em defesa das mães<br />

“A Portaria só consolidou a prática<br />

que era usual no sistema. A visão discriminatória<br />

da rede de atendimento<br />

de Belo Horizonte foi formada durante<br />

décadas. Quando ninguém pergunta<br />

onde está o pai é discriminação de<br />

gênero. Por que só a mãe é cobrada?”,<br />

questiona Daniele Bellettato, Defensora<br />

Pública da Infância e Juventude Cível<br />

de Belo Horizonte.<br />

Os críticos das Recomendações e<br />

Portaria argumentam que essas normas<br />

dificultam o cumprimento do artigo<br />

100 do Estatuto da Criança e do Adolescente<br />

(ECA) em que está previsto<br />

que, na aplicação de medidas protetivas,<br />

sejam observados os vínculos familiares<br />

e a prevalência da família natural.<br />

“A família substituta deveria ser<br />

exceção, mas virou regra”, afirma a<br />

defensora pública Júnia Roman Carvalho<br />

(foto), em atuação na Defensoria<br />

Especializada de Direitos Humanos,<br />

Coletivos e Socioambientais (DPDH).<br />

Ela conta que, em Belo Horizonte, a<br />

situação ficou tão crítica que teve mãe<br />

tentando fugir do hospital com filho<br />

na sacola, moradoras de rua grávidas<br />

com medo de fazer o pré-natal e até<br />

indo ter os seus filhos em outras cidades.<br />

“A situação chamou atenção<br />

pela quantidade de crianças abrigadas<br />

e a questão foi levada para o Fórum<br />

de Direitos Humanos, que fez uma recomendação<br />

completamente diferente<br />

da que estava posta”, afirma.<br />

“Dizer para uma mãe que ela é incompetente<br />

para a maternidade é mui-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

73


Mark Florest<br />

to grave. Acompanhei o caso de uma<br />

mulher que estava com data agendada<br />

para tirar a carteira de trabalho com<br />

ajuda do próprio abrigo. Quando ela<br />

estava caminhando para estruturar a<br />

vida dela, a criança foi levada com uso<br />

de força policial num ato violento. A<br />

mãe ofereceu resistência e ainda sofreu<br />

processo criminal”, conta indignada.<br />

Ela lembra que as recomendações<br />

foram direcionadas aos hospitais públicos<br />

e questiona: “será que nos hospitais<br />

particulares não têm usuários<br />

de droga ou família extensa com vulnerabilidade?<br />

Remédios com tarjas<br />

pretas também são drogas. É preciso<br />

que a gente discuta esse tema até reverter<br />

esse quadro. As pessoas têm<br />

que entender a violência que isso significa.<br />

Uma família em situação de<br />

rua precisa de assistência e garantia<br />

de moradia e educação”, completa.<br />

Portaria suspensa<br />

A Portaria 3/2016, assinada pelo juiz<br />

Marcos Flávio Lucas Padula, foi suspensa<br />

<strong>por</strong> ele mesmo em agosto de<br />

2017, quando apresentou uma minuta<br />

de substituição ainda em estudo. No<br />

período de vigência da Portaria, ocorreram<br />

audiências públicas com debates<br />

polêmicos e repercussão na mídia sobre<br />

as ações para garantir o direito<br />

de defesa das mães em situação de<br />

vulnerabilidade.<br />

“Entramos com várias correições<br />

e representações no Conselho Nacional<br />

de Justiça para denunciar a falta de<br />

acesso dessas mães à defesa nos processos.<br />

Até o início de <strong>2018</strong>, essas<br />

mães não tinham direito à defesa. Os<br />

processos não tinham petição inicial,<br />

começavam com um ofício do Conselho<br />

Tutelar ou da polícia. A mãe não<br />

era citada e não tinha como se defender.<br />

Dessa forma, a criança ia para<br />

adoção e não tinha mais jeito de recorrer”,<br />

conta Daniele.<br />

A defensora pública Júnia Roman<br />

argumenta que essas normas ameaçam<br />

também os profissionais de saúde.<br />

“Qualquer coisa que acontecer com a<br />

criança, a responsabilidade vai recair<br />

sobre esses profissionais”, diz. Segundo<br />

ela, essas questões foram levadas para<br />

discussão nos conselhos de Psicologia<br />

e de Assistência Social. “Foram feitos<br />

vários debates e audiências. Esse é<br />

um problema que acontece em todo<br />

o Brasil”, lembra.<br />

Os promotores do Ministério Público<br />

e juízes da Vara de Infância de<br />

Juventude de Minas Gerais não quiseram<br />

se posicionar sobre as críticas.<br />

Segundo suas assessorias, eles não estão<br />

comentando mais o assunto.<br />

74 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


Maioria vai para adoção<br />

Des st tino dos beb<br />

b<br />

ês<br />

até 12 meses<br />

s<br />

ao sair<br />

do abrig<br />

go<br />

Fa amília Pai ai, Mãe ou ambos<br />

Tota<br />

al Adoção<br />

2013<br />

2015<br />

2014<br />

2016<br />

6<br />

2<br />

3<br />

9<br />

27<br />

17<br />

8<br />

18<br />

53<br />

34<br />

24<br />

38<br />

86<br />

53<br />

35<br />

65<br />

Fonte<br />

:<br />

Defensoria Pública da Inf<br />

ân<br />

nc cia<br />

e<br />

Juv entude e Cível de Belo Horizo<br />

onte<br />

te.<br />

As normas da Justiça tiveram impacto<br />

sobre as estatísticas de abrigamentos<br />

compulsórios determinados como medida<br />

protetiva para os bebês. Há registros<br />

de retirada compulsória de filhos<br />

de mulheres em situação de vulnerabilidade<br />

desde 2011.<br />

Segundo dados da Vara Cível da Infância<br />

e Juventude de Belo Horizonte<br />

(Minas Gerais - 2017), desde 2013, quintuplicou<br />

o número de crianças acolhidas<br />

diretamente das maternidades públicas<br />

da capital. Foram 468 bebês separados<br />

de suas mães logo após o nascimento<br />

e encaminhados diretamente<br />

para instituições de acolhimento.<br />

Por outro lado, os dados da saída<br />

de bebês de 0 a 12 meses das casas de<br />

acolhimento, no mesmo período, revelam<br />

que mais de 60% desses bebês<br />

não são restituídos à sua família natural<br />

ou extensa (avós e tios), mas foram<br />

encaminhados para adoção.<br />

A evolução dos dados da Secretaria<br />

Municipal de Assistência Social de<br />

Belo Horizonte revela um número ainda<br />

maior de acolhimentos. De 2012 a<br />

julho de <strong>2018</strong> foram atendidas pela<br />

central de vagas 854 requisições da<br />

Vara da Infância e Juventude e do Conselho<br />

Tutelar para abrigamento de bebês.<br />

Em 2016, foram acolhidos 123 bebês.<br />

Esse número caiu para 87 em<br />

2017, ano em que a Portaria foi suspensa.<br />

Mas até julho de <strong>2018</strong>, 73 bebês<br />

haviam sido acolhidos nos abrigos da<br />

Prefeitura. Entre os motivos declarados<br />

pelo Conselho Tutelar e Vara da Infância<br />

e Juventude na requisição do<br />

acolhimento estão abandono, negligência,<br />

busca e apreensão, violência<br />

física e maus tratos, sem responsável<br />

legal e genitora usuária de drogas. Sendo<br />

que maus tratos e violência física<br />

representam cerca de 2% dos casos.<br />

Em dezembro de 2016, a Prefeitura<br />

Municipal de Belo Horizonte inaugurou<br />

uma unidade de acolhimento infantil<br />

somente para bebês de 0 a 12 meses. A<br />

Casa de Bebês no bairro Pampulha tem<br />

vaga para 12 crianças. Atualmente, há<br />

20 entidades que executam as 46 unidades<br />

(abrigos) da Prefeitura Municipal<br />

de Belo Horizonte que atendem crianças<br />

e adolescentes de 0 a 17 anos. Esses<br />

abrigos são instituições privadas, sem<br />

fins lucrativos, geridas, em sua maioria,<br />

<strong>por</strong> entidades religiosas que recebem<br />

recursos do município para prestar o<br />

serviço. Cada vaga tem um custo em<br />

torno de 3.000,00.<br />

Segundo Enrico Martins Braga,<br />

coordenador da Central de Vagas da<br />

Secretaria Municipal de Assistência<br />

Social de Belo Horizonte, há um recurso<br />

para ser destinado à construção<br />

de um alojamento para as<br />

mulheres que derem a luz poderem<br />

ficar junto com os seus bebês. Na<br />

Casa de Bebês, a família pode visitar<br />

somente durante o dia.<br />

Ele explica que há também um<br />

serviço de família acolhedora, habilitada<br />

para cuidar da criança provisoriamente,<br />

recebendo um recurso. E,<br />

ainda, um projeto para dar subsídios<br />

para a família extensa.<br />

“A prioridade é a reintegração na<br />

família de origem. Para o poder familiar<br />

ser destituído legalmente precisa<br />

correr um processo com direito à ampla<br />

defesa. O Brasil é um país em que<br />

não se permite o aborto, mas onde as<br />

mães podem doar os seus filhos assim<br />

que derem à luz. Então, nem toda<br />

criança que chega aos abrigos tem<br />

pais que queiram exercer essa função<br />

e isso é um direito legal. É possível<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

75


que os parentes mais próximos assumam<br />

essa criança e essa é uma prerrogativa<br />

do ECA”, defende.<br />

Segundo ele, há uma equipe técnica<br />

que faz um trabalho social para que<br />

os bebês que estão nas unidades de<br />

acolhimento retornem àquelas mães<br />

que têm condições de cuidar deles.<br />

“Se a mãe precisa de tratamento antes<br />

de retornar o convívio com o seu filho,<br />

ela vai ser encaminhada e há políticas<br />

para isso. Não são só as mães que violam<br />

o direito dos seus filhos, o Estado<br />

também viola o direito dessas pessoas<br />

quando não garante condições de proteção”,<br />

argumenta.<br />

Visita de pai é exceção<br />

Thaís Martins Araújo (foto), psicóloga<br />

na casa de bebês, conta que visita de<br />

pais no abrigo é uma raridade. “A exceção<br />

é um pai que todo final de semana<br />

vem visitar o filho”, conta. Ao<br />

responder sobre qual o caso que mais<br />

a impactou no tempo em que trabalha<br />

lá, respondeu: “Havia uma mãe com<br />

problemas mentais que queria muito<br />

ficar com o bebê. Eu acreditava que<br />

ela conseguiria se tivesse mais um<br />

tempo, mas a juíza não permitiu e ela<br />

perdeu o bebê para a adoção, ficando<br />

ainda mais transtornada”, relata.<br />

A Defensoria Pública da Infância<br />

e da Juventude entrou com uma ação<br />

civil pública (002417080867-7) para<br />

garantir a amamentação das crianças<br />

que estão no acolhimento institucional,<br />

na qual ficou acordado que os bebês<br />

seriam encaminhados para a Casa de<br />

Bebês e as mães poderiam visitar durante<br />

o dia e deixar o leite ordenhado<br />

para que fosse dado às crianças durante<br />

a noite.<br />

Segundo a defensora pública<br />

Daniele Bellettato, algumas casas de<br />

acolhimento não fizeram esse encaminhamento<br />

e houve denúncia de<br />

que até pediram às mães para pararem<br />

de amamentar, evitando assim a<br />

transferência. “Isso já foi comunicado<br />

ao Juízo e aguarda decisão que pode<br />

ser o estabelecimento de multas para<br />

essas casas <strong>por</strong> não cumprirem o que<br />

foi acordado”, afirma.<br />

Mark Florest<br />

“Ninguém<br />

queria estar na<br />

minha pele”<br />

Quando eu e a jornalista/fotógrafa<br />

Carina Santos estávamos no Abrigo<br />

Granja de Freitas para conversar com<br />

uma moradora nos deparamos com o<br />

galpão onde várias mulheres reunidas<br />

faziam trabalhos manuais. Uma delas<br />

estava orgulhosa dos seus pontos de<br />

crochê e de pequenos laços de fita colados<br />

em passadores, que eram vendidos<br />

para uma loja. Essa mulher era<br />

Raquel Martins, de 35 anos.<br />

No início da conversa, ela já foi<br />

logo explicando. “Eu sou magra <strong>por</strong>que<br />

não consigo comer, mas me denunciaram<br />

dizendo que eu era usuária de<br />

drogas e eu não sou”. Ela está há poucos<br />

meses no abrigo com duas filhas dos<br />

seis que já teve. “O meu sonho sempre<br />

foi ter seis filhos”, disse num dos poucos<br />

momentos em que sorriu.<br />

Ela contou que era moradora do<br />

Morro das Pedras, comunidade carente<br />

em Belo Horizonte, e passou a vida<br />

com a renda da venda de latinhas de<br />

alumínio para reciclagem. Um dia,<br />

quando voltou da maternidade com o<br />

bebê, foi despejada do barracão onde<br />

morava <strong>por</strong> não ter os 350 reais do aluguel.<br />

Como não havia alternativa, foi<br />

para uma ocupação numa área pública.<br />

Lá foi descoberta com um recém-nascido.<br />

Dessa forma, o bebê foi para uma<br />

unidade de acolhimento da Prefeitura<br />

e ela, com as duas filhas, para o Granja<br />

de Freitas. Como se não bastasse, a<br />

filha de 14 anos já chegou grávida de<br />

trigêmeos no abrigo, mas teve um aborto<br />

espontâneo, segundo ela.<br />

76 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


Por pouco, a história da menina<br />

quase repete a da mãe. “Aos 13 anos,<br />

eu já estava com neném no colo. Hoje<br />

esse menino deve ter uns 22 anos,<br />

mas eu nunca mais o vi, <strong>por</strong>que o pai<br />

era usuário de drogas e entregou a<br />

criança para uma mulher que levou a<br />

criança sem que eu pudesse fazer<br />

nada”, conta. “A minha mãe teve oito<br />

filhos e me jogou na rua. Eu tive que<br />

arrumar um homem qualquer para<br />

cuidar de mim e tive que enfrentar o<br />

mundo. Meu sonho de mãe é dar tudo<br />

para os meus filhos. Quando puder,<br />

vou dar um celular para a minha filha”,<br />

relatou com a voz embargada.<br />

Em pouco tempo de conversa, deu<br />

para perceber que a maternidade tinha<br />

um significado im<strong>por</strong>tante para Raquel.<br />

Mesmo com todo o sofrimento<br />

que cerca a sua trajetória, a sua maior<br />

preocupação e orgulho são os filhos.<br />

Ela passou <strong>por</strong> abusos e castigos físicos<br />

na infância, ficou abrigada na antiga<br />

Febem, foi vítima de estupros, violência<br />

doméstica e uma história que até parece<br />

ficção para quem está distante<br />

dessa realidade cruel de quem vive<br />

na miséria.<br />

Em meio à lembrança de tantas<br />

histórias tristes, enfatizava sempre o<br />

medo de perder seus filhos. Segundo<br />

ela, em 2010, perdeu uma filha para a<br />

adoção e, mais tarde, soube que a<br />

criança sofreu abusos da família que<br />

cuidava dela. Tendo sido encaminhada<br />

para outro abrigo.<br />

“Ninguém queria estar na minha<br />

pele. O juiz tirou a minha filha de<br />

mim. Os vizinhos me denunciaram<br />

injustamente. Eu falei com o juiz 'eu<br />

quero a minha filha' e pedi para ele se<br />

colocar no meu lugar. Como eu posso<br />

dormir pensando nisso, tiraram a menina<br />

de mim para fazer covardia. Eu<br />

“Meu sonho é dar tudo para os meus filhos,” diz Raquel Martins.<br />

pergunto pra eles, cadê minha filha?<br />

Ninguém me responde. Qualquer hora,<br />

eles podem tirar todos os meus filhos<br />

de mim. E aí, como é que eu fico? É<br />

<strong>por</strong> causa das minhas duas filhas que<br />

estão do meu lado e me dizem ‘mãe,<br />

eu te amo’, que eu estou su<strong>por</strong>tando<br />

tudo isso”, desabafa em lágrimas, nos<br />

emocionando também.<br />

Exemplos de esperança<br />

A defensora pública Júnia Roman explica<br />

que algumas mulheres têm um<br />

desejo louco de ser mãe e quando elas<br />

perdem os filhos elas acabam tendo<br />

gravidezes sucessivas. Ela cita o caso<br />

de uma mãe que perdeu o primeiro<br />

filho para a adoção e engravidou no-<br />

Carina Aparecida<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

77


Carina Aparecida<br />

vamente, depois ela fez uma ligadura<br />

de trompas, só que esse bebê também<br />

foi tirado dela, vindo a falecer no abrigo.<br />

“Ao contrário do que alguns podem<br />

pensar, os maus tratos aos filhos é uma<br />

exceção. Eu defendo que a criança fique<br />

com a mãe e quando houver uma situação<br />

de risco, aí deve-se intervir. Não<br />

pode ser exercício de futurologia. A<br />

questão é possibilitar moradia para<br />

essa mulher com seus filhos, que pode<br />

ser abrigo num primeiro momento,<br />

depois a bolsa moradia e acompanhamento.<br />

Quando isso acontece, há exemplos<br />

muito felizes”, recomenda.<br />

Maria Aparecida dos Santos (foto)<br />

saiu do interior de Minas para trabalhar<br />

como babá na capital. Mais tarde,<br />

sem emprego e sem estudo, acabou<br />

na rua. Num dos abrigos que freqüentava<br />

conheceu o seu companheiro.<br />

Grávida, foi com ele para o abrigo<br />

Granja de Freitas onde teve apoio para<br />

fazer o pré-natal e ter a sua filha em<br />

setembro de 2017.<br />

Ela trabalha num posto de reciclagem<br />

perto do abrigo, enquanto a criança<br />

fica na creche. Conta que está aguardando<br />

receber auxilio moradia para<br />

sair do abrigo e ter a sua casa. “Nunca<br />

me envolvi com droga, mas na maternidade<br />

me perguntaram isso. Eu amamento<br />

a minha filha até hoje e cuido<br />

bem dela, mas não quero ter mais filhos.<br />

Há pouco tempo uma mãe aqui<br />

deixou a criança cair do berço e ela<br />

morreu. Descuidos podem acontecer,<br />

mas não acho que só <strong>por</strong>que a pessoa<br />

é pobre ela não vai cuidar direito. Tem<br />

gente que tem condições e abandona<br />

o seu filho ou tira a criança antes de<br />

nascer”, reflete.<br />

Marcela Vianna de Brito, de 35<br />

anos, é um exemplo de esperança.<br />

Mãe de cinco filhos, três moram com<br />

a mãe no Rio de Janeiro, perdeu um<br />

para a adoção. “Eu pensava que a minha<br />

filha estava com a avó paterna,<br />

quando soube que ela foi adotada foi<br />

uma dor inexplicável. Ninguém me<br />

chamou. O pai dela achou que ela ia<br />

ficar melhor com a família adotiva. A<br />

gente perde o chão e não quero que<br />

isso aconteça de novo”.<br />

Quando ela era moradora de rua e<br />

usuária de drogas o filho mais novo<br />

dela, com três anos, nasceu. Na época,<br />

uma re<strong>por</strong>tagem na qual ela era personagem<br />

chamou a atenção para um<br />

detalhe, o enxoval do bebê que ela esperava<br />

na rua era extremamente limpo.<br />

Com medo que as drogas fizessem<br />

algum mal ao bebê, informou na maternidade<br />

sobre o vício. Ela teve alta e<br />

o bebê ficou lá, sem que pudesse amamentar.<br />

Como havia passado pelo sofrimento<br />

de perder uma filha para<br />

adoção, conseguiu ir para o abrigo<br />

com a criança e, com apoio, parou<br />

com as drogas, reconstruindo sua vida.<br />

Hoje, Marcela tem casa e emprego.<br />

Antes disso, recebia o Bolsa Família,<br />

segundo ela, era crucial para a sua sobrevivência<br />

naquele período. Ela trabalha<br />

numa associação que aborda<br />

moradoras de rua para receberem assistência<br />

social e no caso de grávidas,<br />

encaminhamento para pré-natal e cuidados<br />

com a saúde.<br />

78 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


Alienação<br />

parental estatal<br />

Quando o Estado faz a criança<br />

acreditar que foi abandonada<br />

Ricardo Barbosa/ALMG<br />

Quando quem detém a guarda legal<br />

ou judicial de uma criança pratica<br />

atos com o propósito de fazê-la repudiar<br />

um dos genitores, isso é considerado<br />

alienação parental. Estudiosas<br />

de Direito acreditam que o Estado<br />

também pode praticar alienação parental,<br />

especialmente durante a aplicação<br />

e execução de medidas de acolhimento<br />

institucional de crianças e<br />

adolescentes, quando os tem sob sua<br />

guarda e define um destino que os<br />

faz acreditar que foram abandonados<br />

<strong>por</strong> suas famílias.<br />

Esse é o tema do artigo científico<br />

Alienação Parental Estatal das pesquisadoras<br />

da Universidade Federal<br />

de Minas Gerais (UFMG) Danielle Bellettato<br />

(foto) e Tereza Cristina Sorice<br />

Baracho Thibau. O artigo foi publicado<br />

na edição de janeiro/18 da <strong>Revista</strong> Brasileira<br />

de Direito Civil em Perspectiva<br />

(http://www.indexlaw.org/index.php/d<br />

ireitocivil/article/view/4089/pdf).<br />

“Na miséria<br />

existe amor”<br />

As autoras argumentam que ocorre<br />

alienação parental quando o Estadoguardião<br />

faz a criança submetida às<br />

medidas de proteção de acolhimento<br />

institucional acreditar que os pais a<br />

abandonaram, quando, na verdade,<br />

essas crianças ou adolescentes não<br />

foram reintegrados em suas famílias<br />

de origem <strong>por</strong> conclusões preconceituosas<br />

eivadas de violência institucional,<br />

discriminação estrutural e inobservância<br />

pelo Estado ao direito de<br />

defesa e devido processo legal.<br />

O artigo cita que quando esses<br />

indivíduos completam 18 anos e são<br />

desinstitucionalizados, são entregues<br />

à própria sorte e, sozinhos no mundo,<br />

acabam buscando apoio em suas<br />

famílias biológicas e encontram<br />

grande dificuldade para superar os<br />

traumas da alienação parental que<br />

sofreram enquanto estiveram sob a<br />

guarda do Estado.<br />

“A alienação parental estatal caracteriza-se<br />

pelo o afastamento de<br />

uma criança do seio de sua família<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

79


<strong>por</strong> suposta precaução, mediante medida<br />

cautelar, sem que especificamente<br />

nenhuma situação de risco atual e<br />

iminente tenha efetivamente acontecido,<br />

baseando-se apenas em presunções<br />

e preconceitos. É certo que boa<br />

parte das crianças que lotam as casas<br />

de acolhimento não foram abandonadas<br />

<strong>por</strong> suas famílias. O que se nota é<br />

que são crianças oriundas de famílias<br />

pobres e têm sido tratadas pelo Estado<br />

como objeto e não como sujeitos de<br />

direito, num retrocesso à doutrina<br />

menorista de outrora”, argumentam.<br />

As autoras defendem que a situação<br />

de vulnerabilidade social, <strong>por</strong> si só,<br />

não é capaz de autorizar o acolhimento<br />

institucional, uma vez que a marginalização<br />

da pobreza foi expressamente<br />

proibida pelo artigo 23 do ECA/90.<br />

“Preferir a segregação familiar, <strong>por</strong><br />

meio do acolhimento institucional à<br />

proteção integral, <strong>por</strong> meio da aplicação<br />

de medidas de proteção (consubstanciada<br />

em políticas públicas efetivas<br />

para evitar que as situações de vulnerabilidade<br />

sofridas pela família acabem<br />

acarretando danos concretos ao infante),<br />

é inverter a lógica protecionista do<br />

ECA/90, com base em fundamento exclusivamente<br />

preconceituoso”.<br />

“Direito de viver e<br />

conviver”<br />

Segundo o artigo, família pobre também<br />

é família. “Na miséria existe amor,<br />

existe união e existe direito a viver e<br />

conviver. Compete ao Poder Público<br />

implementar políticas públicas capazes<br />

de pro<strong>por</strong>cionar às famílias pobres<br />

condições para superar tais vulnerabilidades.<br />

É certo que há casos em<br />

que o afastamento da criança de sua<br />

família de origem é necessário para<br />

preservar-lhe direitos, mas a interferência<br />

estatal deve ser limitada aos<br />

casos estritamente legais, desde que<br />

verificada a concreta necessidade e,<br />

jamais, alcançar situações fundadas<br />

em preconceitos em razão de condições<br />

financeiras, sociais, origem, crença,<br />

gênero, cor ou qualquer outra forma<br />

de discriminação”.<br />

Defendem ainda que a atuação estatal<br />

no âmbito desta interferência<br />

deve ser primorosa. “A aplicação e a<br />

execução de medidas de proteção de<br />

acolhimento institucional de crianças<br />

e adolescentes e, principalmente, a<br />

conclusão pelo encaminhamento à família<br />

substituta, devem ser cuidadosamente<br />

verificadas, com a observância<br />

do devido processo legal, com zelo para<br />

não incorrer em julgamentos morais,<br />

subjetivos e discriminatórios”, opinam<br />

em um dos trechos do documento.<br />

Na conclusão, defendem a necessidade<br />

de um diálogo franco, direto,<br />

aberto e constante entre todos os agentes<br />

envolvidos no processo de acolhimento<br />

institucional. E alertam para<br />

que as arbitrariedades denunciadas<br />

mereçam especial atenção do Estado,<br />

sob pena de serem reveladas ainda<br />

inúmeras outras formas de alienação<br />

parental estatal, além das praticadas<br />

<strong>por</strong> discriminação estrutural ou violência<br />

institucional, violando valores<br />

supremos da sociedade fraterna, pluralista<br />

e sem preconceitos almejados<br />

pela Carta Magna.<br />

Carina Aparecida<br />

80 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

81


Habitadas<br />

Ensaio fotográfico: Carina Aparecida<br />

<strong>Elas</strong> ocupam um pedaço de terra, um pedaço de chão, um pedaço de céu.<br />

Ocupam o concreto que se desfaz, o teto solitário e cada fecho de luz que<br />

entra pela janela.<br />

Ocupam o canto cheio de poeira, a goteira e os fios embolados que já clamavam<br />

<strong>por</strong> vida.<br />

Ocupam a fechadura empenada e a <strong>por</strong>ta pra rua.<br />

O cinza sem verde e o silêncio sem canto.<br />

Ocupam as paredes sem fotos. A memória sem presente e o horizonte<br />

sem olhares.<br />

Este ensaio fotográfico é dedicado a todas as mulheres que ocupam lugares sem<br />

vida na cidade e dali constroem o direito à moradia. Cada mulher que ocupa,<br />

transborda sua casa em luta. Cada mulher que ocupa, também se habita.<br />

O ensaio fotográfico “Habitadas” foi realizado em três ocupações urbanas de<br />

Belo Horizonte, construídas com dezenas de famílias em resistência à especulação<br />

imobiliária e à crescente retirada de direitos. A Ocupação Anita Santos<br />

faz homenagem à Anita Gomes dos Santos, ex-moradora de rua e grande lutadora<br />

em defesa dos direitos da população de rua. A Ocupação Vicentão homenageia<br />

Vicente Gonçalves, advogado popular e defensor da vida nas favelas,<br />

do povo operário e pobre da cidade de Belo Horizonte. E, <strong>por</strong> fim, a Ocupação<br />

Marielle Franco resgata a coragem da socióloga, feminista e lutadora pelos direitos<br />

humanos, que também construiu o valor e urgência do verbo Ocupar. Marielle<br />

teve a vida arrancada, em um dos mais tristes capítulos da história do país.<br />

Anita e Vicentão também já se foram. Mas dessa força ainda presente seguem<br />

brotando lutas e sonhos das mãos de muitas mulheres que representam a<br />

grande maioria à frente das ocupações já existentes e das que nascem a cada<br />

dia <strong>por</strong> este país afora.


<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

83


“ Alexandra<br />

Aparecida Simone, 41 anos<br />

Ocupação Anita Santos<br />

Pra mim significa muito estar<br />

nesta ocupação. Sou mulher,<br />

mãe. Criei meus dois filhos sozinha.<br />

Eu me acho uma guerreira.<br />

Eu sei que eu sou uma guerreira!


“ Tainá<br />

Rodrigues Lima, 21 anos<br />

Ocupação Vicentão<br />

Eu sou uma mulher que sofri<br />

muito, desde pequena, a questão<br />

do preconceito <strong>por</strong> eu ser negra,<br />

<strong>por</strong> ser pobre. Mas eu me sinto renovada.<br />

Aqui na ocupação eu me<br />

encontrei, a mulher que eu precisava<br />

saber quem eu era. Nem eu<br />

acreditava que eu tinha toda essa<br />

força que eu tô tendo agora. De ir,<br />

encarar e defender mesmo e não<br />

abaixar a cabeça.


“ Sônia<br />

Gonçalves de Oliveira, 50 anos<br />

Ocupação Vicentão<br />

Como minha mãe era índia, ela falava:<br />

a terra é da gente! Ela olhava<br />

aquele mundão e dizia: essa terra<br />

é minha. Foi o que eu aprendi com<br />

ela, essa terra é nossa. E <strong>por</strong> esta<br />

terra que eu vou lutar, <strong>por</strong> mim e<br />

<strong>por</strong> todos que estão na rua. Continuar<br />

lutando aqui e daqui que vou<br />

tirar um teto pra mim, pra minha<br />

neta … tô tirando pra ela. Eu não<br />

quero que ela passe pelas coisas<br />

que eu passei.


“ Bruna<br />

Costa de Jesus, 30 anos<br />

Ocupação Vicentão<br />

Eles acham que a gente <strong>por</strong> ser<br />

negra, periférica, a gente tem que<br />

viver só na favela, não podemos<br />

ter acesso ao centro; mas nós<br />

temos e eu tô amando a Ocupação.<br />

Eu chego aqui e sei que eu tô<br />

na minha casa. Durmo tranquila e<br />

tô lutando pra deixar um lar para<br />

os meus filhos.


“ Tatiane<br />

Silva Souza, 30 anos<br />

Ocupação Anita Santos<br />

Quando a gente não conhece os<br />

direitos, a gente só anda de cabeça<br />

baixa. A partir do momento<br />

que você começa a conhecer os<br />

direitos, você consegue ter uma<br />

visão e uma resposta do que é<br />

certo ou não, independente da<br />

opinião deles. O nosso empoderamento,<br />

a nossa certeza do que é<br />

nosso, nossa força de lutar e conquistar<br />

é maior do que essa fina<br />

nata que tá sobre o poder.


“ Fernanda<br />

da Silva Cruz, 25 anos<br />

Ocupação Marielle Franco<br />

Aqui na Ocupação construímos o<br />

respeito ao próximo. E aqui, como<br />

mulher, me sinto mais forte. Senti<br />

que a união faz a força e a força<br />

faz de nós “Marielle Franco”.


“ Alessandra<br />

Martins Cordeiro, 37 anos<br />

Ocupação Anita Santos<br />

Quando você tá na rua, sem lar,<br />

sem nada, sua autoestima fica<br />

baixa, a preocupação quando<br />

você tem uma família e não tem<br />

um lar pra pro<strong>por</strong>cionar uma condição<br />

de segurança, de conforto<br />

pra eles. Eu, na posição de mãe,<br />

tava me sentindo muito mal. Hoje<br />

não, eu me sinto com força.


“ Samara<br />

Oliveira de Arruda, 30 anos<br />

Ocupação Marielle Franco<br />

Mesmo com muitas pessoas<br />

olhando pra gente com preconceito,<br />

hoje eu me sinto mais forte,<br />

mais capaz. Eu não abaixo minha<br />

cabeção, não.


“ Paula<br />

Ozana R. Salomão, 47 anos<br />

Ocupação Anita Santos<br />

Eu já participei de outras ocupações<br />

e fomos despejados. Toda<br />

vez que eu entro para uma ocupação<br />

com minha família, a gente<br />

amadurece mais, vive mais, tem<br />

mais experiência de luta <strong>por</strong> uma<br />

moradia. Eles dizem que eram só<br />

os homens que lutavam pela<br />

casa. Não! As mulheres também<br />

lutam pela sua casa. Eu também<br />

sou lutadora!


“ Camila<br />

Luana de S. Silva, 25 anos<br />

Ocupação Anita Santos<br />

Tô aqui tentando vencer, pra conseguir<br />

um lugarzinho. Pagar um<br />

aluguel, sabendo que a casa<br />

nunca vai ser sua é triste, é complicado.


“ Taís<br />

de Aquino Machado, 27 anos<br />

Ocupação Marielle Franco<br />

Eu tava desempregada, morando<br />

de favor, com cinco filhos e aqui<br />

eu consegui um espaço. Agora,<br />

posso receber meus parentes e<br />

meus filhos também receberem<br />

os coleguinhas deles. Hoje eu<br />

tenho um lar.


“ Karine<br />

Quaresma dos Santos, 30 anos<br />

Ocupação Marielle Franco<br />

São tantas lutas, tantas diferenças.<br />

Mas aprendemos a vencer e<br />

lidar. Antes de ser uma moradora<br />

de ocupação, sou mulher, mãe e<br />

guerreira, pois me sinto mais forte<br />

ainda!


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Machismo<br />

<strong>por</strong> Nanci Alves<br />

Canções<br />

que abalam<br />

Não im<strong>por</strong>ta a época nem o estilo<br />

musical – violência doméstica, psicológica,<br />

assédio sexual, apologia ao estupro<br />

e silenciamento sempre fizeram<br />

parte de inúmeras canções brasileiras,<br />

das antigas marchinhas de carnaval ao<br />

funk de hoje em dia. Ouvir e cantar estas<br />

músicas, até há pouco tempo, eram<br />

ações comuns feitas até mesmo <strong>por</strong><br />

muitas de nós, mulheres, que pouco<br />

questionávamos o conteúdo das letras,<br />

<strong>por</strong> mais machistas que fossem. Parece<br />

que tudo era mesmo naturalizado pela<br />

cultura patriarcal e machista herdada<br />

desde os tempos da colonização. Porém,<br />

com o crescimento do movimento<br />

feminista, em meados do século<br />

passado, esta história vem mudando.<br />

Embora o número de composições só<br />

tenha aumentado, cantar a violência<br />

contra a mulher virou um ofensa e até<br />

mesmo crime, principalmente num<br />

país onde, de acordo com o 11º Anuário<br />

Brasileiro de Segurança Pública (FBSP,<br />

2017) morrem, diariamente, 13 mulheres<br />

assassinadas <strong>por</strong> companheiros ou<br />

ex-companheiros, ou seja, uma a cada<br />

duas horas. Os dados mostram também<br />

que a cada 11 minutos uma menina/mulher<br />

é estuprada no Brasil –<br />

lembrando que esse número pode ser<br />

bem maior, pois muitos casos não são<br />

registrados <strong>por</strong> medo ou constrangimento<br />

sofridos pela vítima.<br />

Colocar em letras de música a mulher<br />

neste lugar de submissão ou merecedoras<br />

de agressões, física e psicológica,<br />

é dar voz ao machismo (com<br />

valores, representações e práticas vigentes),<br />

que deveria ser questionado.<br />

De acordo com a professora do curso<br />

de História da UFMG, Míriam Hermeto,<br />

"a canção popular pode ser pensada<br />

como uma produção cultural que não<br />

apenas veicula representações sociais,<br />

mas que as cria, as constrói – e nesse<br />

sentido, é também produtora da própria<br />

sociedade. Ao criar e veicular valores<br />

e práticas, ela não apenas representa<br />

parte do que está vigindo socialmente,<br />

como constrói 'novos fazeres' ”.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

97


A partir desse pensamento e diante<br />

da realidade de produção de músicas<br />

machistas em todas os estilos (sertanejo,<br />

funk, rock, MPB, samba, pagode,<br />

rap, etc), a grande questão é: até que<br />

ponto uma composição pode estimular<br />

mais violência? O fato de cantar sem<br />

questionar o que está sendo dito já é<br />

um sério problema. Para a historiadora,<br />

“além de pensar que a canção<br />

popular pode 'influenciar' seus ouvintes<br />

– que são sujeitos ativos, e sempre<br />

têm responsabilidade sobre suas<br />

ações no mundo – é interessante pensar<br />

em como ela pode naturalizar práticas<br />

culturais, atribuindo um valor<br />

positivo ou valorizando práticas antidemocráticas”,<br />

afirma.<br />

Míriam Hermeto (foto), ao destacar<br />

que a música popular é um produto<br />

cultural, que tem a dimensão artístico-cultural,<br />

política, estética e, claro,<br />

comercial, reforça que, “uma vez em<br />

circulação, os produtos sociais devem<br />

ser criticados e devem ser parte do<br />

debate social”. Ela ressalta que, politicamente,<br />

a ação dos movimentos sociais<br />

e dos sujeitos políticos deve incor<strong>por</strong>ar<br />

a crítica a esse viés de canções<br />

e músicas. “A instituição da censura<br />

“Sabe aquelas minas cachorra,<br />

piranha,<br />

sapeca / Então pode trazer<br />

elas que R7 dá um trato /<br />

Põe no pelo e goza nela”<br />

(“Adestrador de<br />

Cadela” – Mc Mm)<br />

Fernanda Sá Motta<br />

prévia, a meu ver, é um passo grande<br />

para o enterro da democracia. Os limites<br />

devem vir da sociedade, mesmo<br />

para os discursos de ódio. Uma vez<br />

denunciadas e julgadas – hoje, a legislação<br />

já nos permite essa forma de<br />

ação – as canções e outros produtos<br />

culturais podem ser "limitados" , defende<br />

Míriam Hermeto.<br />

Para a historiadora, a escola é<br />

lugar privilegiado para o debate sobre<br />

a realidade social – <strong>por</strong> mais que movimentos<br />

políticos radicais tentem,<br />

hoje, cercear esse debate, seja coibindo<br />

a escola e os professores de<br />

fazê-lo, seja não permitindo o confronto<br />

de diferentes posições. “A escola<br />

deve ser lugar de debater o que os<br />

estudantes, os professores e a comunidade<br />

escolar produzem, ouvem,<br />

vêm, consomem, creem. Só que isso<br />

deve ser feito a partir de duas bases<br />

fundamentais, que devem com<strong>por</strong> a<br />

escola como instituição social: a base<br />

ética, de respeito e legitimação do<br />

outro; e a base epistemológica, de tratamento<br />

adequado das temáticas, a<br />

partir das diferentes disciplinas/áreas<br />

do conhecimento”, afirma.<br />

As sutilezas da violência<br />

Em muitas músicas, antigas e atuais,<br />

o que vemos é muito sexismo e misoginia<br />

em vários tons de 'amor' – uma<br />

verdadeira romantização da violência.<br />

A cantora, compositora e dançarina<br />

do Grupo Folclórico Aruanda, Ana<br />

Luísa Cosse, se diz indignada com<br />

essa cultura que agride e objetifica a<br />

mulher. “É inquietante pensar na romantização<br />

de agressões, ciúmes, assédio,<br />

silenciamento e relacionamentos<br />

abusivos em letras de música. E o<br />

machismo não é só o que é explicito e<br />

98 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


evoltante, afinal, é muito comum<br />

cantarmos melodias sem nem prestar<br />

atenção no que diz a letra. Por isso é<br />

im<strong>por</strong>tante nos atentarmos a pequenos<br />

detalhes que às vezes nos passam<br />

despercebidos. O machismo sutil<br />

pode ser ainda mais problemático,<br />

<strong>por</strong>que parece normal e é facilmente<br />

aceito e, muitas vezes, defendido. Precisamos<br />

questionar e compreender o<br />

problema. Parar de consumir e reproduzir<br />

esses conteúdos, lutando para<br />

quebrar essa prática musical que reforça<br />

e estimula atitudes machistas<br />

na nossa sociedade”, afirma.<br />

Ana Luísa (foto) diz que tem uma<br />

grande preocupação com a escolha de<br />

seu repertório. “Já cantei músicas com<br />

letras machistas sem nem perceber.<br />

Hoje minha consciência é outra, é uma<br />

desconstrução diária do machismo.<br />

“Sua boca diz não quer / E<br />

meu ouvido diz<br />

duvido, duvido, duvido<br />

(“Então Foge” – Marcos<br />

e Belutti)<br />

“<br />

Mulher que nega /<br />

Nega o que não é para negar<br />

/ A gente pega, a<br />

gente entrega.”<br />

(Formosa – Vinicius de Moraes)<br />

Muitas dessas músicas não são mais<br />

cantadas nem pelos artistas que as compuseram.<br />

Os tempos são outros. Estamos<br />

nos reconstruindo. Às vezes me deparo<br />

querendo cantar uma música que gosto<br />

muito e que, de alguma forma, fez parte<br />

da minha formação e me dou conta de<br />

que não concordo com a mensagem<br />

que ela passa e decido não cantar, exatamente<br />

<strong>por</strong> não querer reproduzir determinados<br />

discursos”, conta.<br />

Cultura do Estupro<br />

Estimular o senso crítico é realmente<br />

um dos caminhos para mudarmos o<br />

ciclo vicioso, pois “machismo na cultura<br />

reforça com<strong>por</strong>tamentos machistas”.<br />

É o que defende a doutora em<br />

Direito pela USP e diretora do InternetLab<br />

(centro de pesquisa sobre direito<br />

e tecnologia), Mariana Valente.<br />

“Não é <strong>por</strong> outro motivo que, nos últimos<br />

anos, se vem tocando tanto em<br />

questões como a cultura do estupro –<br />

as noções sobre sexualidade e autonomia<br />

da mulher são motores para<br />

com<strong>por</strong>tamentos violentos que, ainda<br />

<strong>por</strong> cima, levam à culpabilização da<br />

vítima. É essencial que utilizemos nossas<br />

palavras e nossos espaços para<br />

apontar essas questões, e 'desnaturalizar'<br />

essas concepções”, defende.<br />

Quando o assunto é violência, a<br />

sociedade precisa aprofundar a reflexão<br />

sobre o que deve ser livre ou o que<br />

precisa de limites. De acordo com a<br />

advogada, não é simples fazer uma<br />

afirmação geral do que deve ser permitido<br />

e o que não deve ser. “É muito<br />

im<strong>por</strong>tante que nos lembremos que<br />

uma cultura que valoriza pouco a liberdade<br />

de expressão acaba <strong>por</strong> afetar<br />

também, e muitas vezes até mais,<br />

quem é historicamente silenciado.<br />

Por outro lado, a violência também<br />

Together Fotografia<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

99


censura – e quem faz parte de populações<br />

subalternizadas sabe disso<br />

muito bem!”, afirma.<br />

Na avaliação da advogada, “é preciso<br />

que desenvolvamos cada vez mais<br />

um debate público mais sofisticado<br />

sobre o que deve ser resolvido com o<br />

Direito e o que deve ser resolvido com<br />

outros instrumentos, como mais discursos<br />

e mais diversos, vindos de mais<br />

grupos que não os suspeitos de sempre.<br />

Há casos em que discursos devem ser<br />

controlados sim, <strong>por</strong>que violam direitos<br />

e levam a violências. Há muitos<br />

outros em que o melhor é que pensemos<br />

em políticas, do Estado e no tecido<br />

social, para que mais discursos tenham<br />

espaço para serem transformadores<br />

realmente da cultura e das mentalidades<br />

– mas então temos de ter o compromisso<br />

real com essas políticas”.<br />

Martinha Baião<br />

“Minha nega na janela/ Diz<br />

que está tirando<br />

linha / Êta nega tu é feia /<br />

Que parece<br />

macaquinha / Olhei pra ela<br />

e disse / Vai já pra cozinha<br />

/ Dei um murro nela / E joguei<br />

ela<br />

dentro da pia / quem foi<br />

que disse que essa nega<br />

não cabia?<br />

(Minha Nega Na Janela -<br />

Germano Mathias)<br />

Dose dupla: Machismo e<br />

Racismo<br />

A mulher negra é tratada e retratada<br />

de forma ainda mais cruel em muitas<br />

dessas composições machistas, pois<br />

a violência de gênero se agrava com a<br />

racial. Para a atriz, arte-educadora,<br />

produtora cultural e ativista política,<br />

Carlandréia Ribeiro (foto), o que se<br />

vê é o resquício de um país escravocrata<br />

que, desde o sequestro e escravização<br />

dos africanos, trata o corpo<br />

negro feminino como objeto. “É hipersexualização<br />

e objetificação. Tratam<br />

a mulher negra como se fosse<br />

corpo sem alma. Nos choca perceber<br />

como isso está naturalizado. Ninguém<br />

pensa semanticamente sobre o que<br />

significam essas composições que, inclusive,<br />

são tocadas nas melhores casas<br />

do ramo, gravadas <strong>por</strong> artistas que a<br />

gente admira... aí, você poderia dizer,<br />

'mas essa canção foi gravada em outros<br />

tempos, em outro contexto'. O problema<br />

é que hoje a gente continua vendo<br />

esse tipo de letra que objetifica a mulher<br />

negra de forma a degradar a sua<br />

existência”, diz.<br />

Em um país em que o povo não se<br />

considera racista, a atriz nos chama a<br />

atenção para o racismo estrutural. “<br />

Ele está presente em todas as instituições.<br />

Em todos os lugares onde quer<br />

que a gente vá neste país, vamos encontrar<br />

o racismo estruturado, engendrando,<br />

institucionalizado. In fe -<br />

lizmente, até na canção popular isso<br />

não é diferente”, afirma Carlandréia<br />

ao apontar um caminho que precisa<br />

ser feito com urgência. “Falta escuta<br />

em nossa sociedade. Não falo de empatia,<br />

pois isso é construção social,<br />

feita ao longo da vida e não de uma<br />

hora para outra. Falo de escuta. Nós,<br />

mulheres negras e movimentos negros,<br />

100 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


Douglas Garcia<br />

Você me fala que não, mas<br />

eu te provo que sim / Você<br />

duvida se é bom, e eu te<br />

mostro no fim / Eu sei que<br />

você me quer, garota eu<br />

sinto no ar / Só que você<br />

não aceita sem antes<br />

titubear<br />

(Química – MC Biel)<br />

estamos pedindo, há tanto tempo, <strong>por</strong><br />

respeito e que as pessoas reflitam. Temos<br />

que banir expressões racistas do<br />

nosso vocabulário. Não estou falando<br />

de censura. É banir mesmo, <strong>por</strong>que<br />

ultrapassa todos os limites do direito<br />

à liberdade de expressão. A partir do<br />

momento em que você ofende, atinge,<br />

de forma violenta, a dignidade, a autoestima<br />

de outra pessoa, você já ultrapassou<br />

o limite do direito de expressão<br />

e já virou crime. Racismo é<br />

crime. Aliás, o crime de racismo está<br />

bem posto na lei, mas sua aplicabilidade<br />

não se dá, pois sempre tem a justificativa<br />

de que era 'brincadeira, não<br />

foi isso que quis dizer'. Para mudar<br />

essa cruel realidade, é preciso combater<br />

o ma chismo, o racismo, a misoginia<br />

em nossa cultura e, acima de tudo, ter<br />

escuta mais generosa para o início de<br />

uma mudança de valores. Em todos os<br />

setores e espaços da sociedade, a gente<br />

precisa aprender a descontruir o que<br />

foi naturalizado <strong>por</strong> 400 anos de escravidão<br />

neste país”, finaliza.<br />

<strong>Elas</strong> resistem!<br />

A reação da sociedade tem vindo de<br />

formas muito variadas. Em São Paulo,<br />

a atriz, roteirista, cantora e compositora<br />

gaúcha Barbara Riethe (foto) criou uma<br />

paródia feminista para contra<strong>por</strong> ao<br />

machismo do cantor MC Biel. Ela tem<br />

um canal no YouTube (Contra Regra),<br />

desde 2016, com a proposta de transformar<br />

em cenas as histórias sugeridas<br />

pelo público na sua fanpage. “O tema<br />

do feminismo surgiu sem querer no<br />

canal e quanto mais eu estudava a questão<br />

mais gritante ficavam os conteúdos<br />

machistas de músicas, filmes, videos<br />

na internet. Eu tenho uma banda (Korat)<br />

que, na época, estava se formando com<br />

o nome La Moustache e fazíamos covers.<br />

Trecho da paródia feminista<br />

- MC Biel Química<br />

#QueMico - Letra: Barbara<br />

Riethe e Juliana Bratfisch<br />

E se eu falo que não/ Você<br />

dá em cima de mim / Você<br />

se acha o bom / Mas é<br />

inseguro no fim. / Se eu te<br />

digo NÃO QUERO /<br />

Moleque, não vai mudar<br />

Só que você não aceita /<br />

Isso vai ter que parar<br />

É NÃO!<br />

Óh, tá apelando, hein! /<br />

Óh, que que isso, hein?<br />

Óh, é machista, hein! /<br />

Cultura do estupro, eu<br />

não vou aceitar!<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

101


Thales Ferreira<br />

ao trabalho do artista. Inquietações<br />

que nós da banda temos frente à<br />

nossa realidade. Para mudar essa cultura<br />

violenta, recriá-la, é preciso de<br />

educação, de acesso à informação.<br />

Trata-se de uma reforma social e política<br />

profunda. Só o coletivo é capaz<br />

disso, já que muitas vezes nosso governo<br />

não ajuda. Resistir e agir para<br />

educar e dar possibilidade para as<br />

pessoas. Tratar violência com mais<br />

violência é um tiro no pé”, afirma.<br />

Quando surgiu a música “Química”, do<br />

MC Biel, foi quase inevitável não pensar<br />

em fazer uma paródia”, conta.<br />

A música foi gravada com a participação<br />

de algumas atrizes e/ou educadoras,<br />

que aceitaram o convite feito<br />

<strong>por</strong> Barbara, em sua fanpage, e teve<br />

uma ótima repercussão, inclusive na<br />

grande mídia. Depois, veio outra música<br />

machista do MC Biel, “Ninguém<br />

segura ela e novamente a artista e sua<br />

banda, com apoio de parceiros, fizeram<br />

nova paródia: Ninguém engana ela.”<br />

Tem muitos comentários na página<br />

de Barbara, em ambas as paródias<br />

do MC Biel, desde apoio de outras<br />

mulheres até comentários machistas,<br />

ridicularizando a crítica feita. “Colocar<br />

no mundo um conteúdo crítico ou<br />

criativo é movimentar e, às vezes, incomodar,<br />

alterar a ordem normal das<br />

coisas. Isso gera ataques, mas o mais<br />

im<strong>por</strong>tante é a necessidade de resistir,<br />

de continuar, de fomentar, <strong>por</strong>que<br />

milhares se sentiram representadas e<br />

com certeza chamou bastante atenção<br />

para o assunto, destaca a artista<br />

ao acrescentar que é dever do artista<br />

pensar e questionar sua realidade.<br />

“Conforme a vida anda, o mundo gira,<br />

as coisas acontecem, reverberam em<br />

mim de determinada forma e eu respondo.<br />

Penso em músicas que coloquem<br />

perguntas no mundo, sobre<br />

vários temas. Minhas letras falam de<br />

relacionamentos abusivos, de racismo,<br />

de homofobia, de liberdade política,<br />

de feminismo, de desrespeito<br />

Novo pensamento<br />

Na avaliação da artista, as pessoas às<br />

vezes se esquecem do poder da palavra,<br />

da arte e da indústria cultural. “A palavra<br />

evoca, determina, ecoa na cabeça.<br />

Tudo que se faz publicamente é sério,<br />

tem que ser um ato pensado <strong>por</strong>que<br />

ele é social e político, <strong>por</strong>que influencia.<br />

A coisa repetida continuamente, mesmo<br />

que mentira, fica com cara de verdade.<br />

Quantos de nós crescemos ouvindo<br />

''mulher não pode sair <strong>por</strong> aí<br />

com muitos homens <strong>por</strong>que fica mal<br />

falada" (mulher não é dona do próprio<br />

corpo e é sancionada), "Homem não<br />

chora" (homens não têm o direito à<br />

sensibilidade e à fragilidade) ou ouvimos<br />

em letras de música ''invasão,<br />

é baile de favela. E os menor preparado<br />

pra foder com a xota dela". Música do<br />

MC João que coloca que favela é violenta<br />

e violência sexual é permitida.<br />

Ou ouvimos ainda ''Vai com suas amiga<br />

pra lá (vai pra lá),Cuidado pra elas não<br />

te dar perdido e vir aqui me dar", letra<br />

da canção “Amar Amei”, de Jonas<br />

Aguiar, que diz que as mulheres são<br />

inimigas e estão à mercê do desejo do<br />

homem. E <strong>por</strong> aí vai... Essas músicas<br />

são um desfavor, fazem apologia à violência,<br />

ao preconceito, à desigualdade<br />

102 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


de gênero, em maior ou menor escala.<br />

Quanto mais a gente evidencia isso,<br />

mais pensarão sobre, antes de escrever<br />

algo. Esse ciclo precisa ser quebrado<br />

<strong>por</strong> paródias ou <strong>por</strong> músicas de outras<br />

pessoas, principalmente mulheres,<br />

que já movimentam para um novo<br />

pensamento, Anitta, Pablo Vittar, IZA,<br />

Liniker, dentre outras”, ressalta.<br />

Barbara Riethe nos chama a atenção<br />

também sobre como o produto cultural<br />

atinge o público. “Existe uma diferença<br />

muito grande entre a arte que reflete<br />

a vida e, ao refletí-la de determinado<br />

ângulo, nos faz olhar e questionar. Outra<br />

coisa é já ex<strong>por</strong> na obra uma crítica<br />

a algo. E outra coisa ainda bem diferente<br />

é você reproduzir algo (como<br />

violência e machismo) cegamente, sem<br />

reflexão, e isso passa a ser normal.<br />

Nas três opções temos o ponto de vista<br />

de quem cria, do esclarecimento do<br />

criador. Mas é sabido que uma obra<br />

de arte não pertence ao seu criador,<br />

ela é dele e dele vai para o mundo.<br />

Quem ouve recria e reproduz. Portanto,<br />

outro problema se apresenta: como a<br />

sociedade recebe o conteúdo?”, questiona,<br />

ao citar o exemplo do pintor<br />

alemão Johann Moritz Rugendas (que<br />

viveu no Brasil de 1822 a 1825). “Ele<br />

pintou os escravos trabalhando para<br />

os seus senhores, ele fazia apologia a<br />

isso ou estava retratando seu tempo<br />

para questioná-lo? Em uma análise,<br />

vemos que ele sempre retratava situações<br />

de humilhação. Quanto tempo<br />

levou para que a sociedade olhasse<br />

um quadro dele e entendesse aquilo<br />

como uma denúncia? Acho que a questão<br />

ainda está na educação e de como<br />

compreendemos os conteúdos. Criar<br />

tem uma responsabilidade social embutida,<br />

e interpretar e se apropriar<br />

das criações também.”<br />

Por que a música é<br />

problemática?<br />

Quando a música “Surubinha de Leve”<br />

do MC Diguinho estourou, foi a gota<br />

d'água para um grupo de jovens paulistas<br />

(as publicitárias Nathália Ehl,<br />

Rossi Antunez, Lilian Oliveira, Carol<br />

Tod e Joana Mendes) usarem a criativade<br />

para expressar a insatisfação com<br />

a forma como a mulher é tratada e retratada<br />

na nossa sociedade. <strong>Elas</strong> lançaram<br />

o site Música Machista Popular<br />

Brasileira (mmpb.com.br), onde dão<br />

destaque para várias músicas problemáticas<br />

de outros tantos gêneros. “A<br />

resposta foi super positiva. Esperávamos<br />

muitas reações contrárias, mas<br />

nos surpreendemos bastante. E inclusive<br />

nenhum artista citado se manifestou<br />

sobre nosso projeto”, conta a<br />

publicitária Natália Ehl ao afirmar que<br />

não é intenção forçar nenhum compositor<br />

a mudar as letras dessas canções.<br />

“Não existe uma regra do que deveriam<br />

ou não fazer. O mais im<strong>por</strong>tante<br />

é refletir sobre a mensagem que estão<br />

passando, terem noção do impacto que<br />

ela pode causar e, a partir daí, começarem<br />

a construir um trabalho mais<br />

consciente, respeitoso”, afirma.<br />

“Estupro com carinho” -<br />

Os Cascavelletes<br />

“Eu quero te estuprar<br />

Com muito carinho”<br />

Comentário do site mmpb<br />

“Estuprar com carinho?<br />

Olha o nível de absurdo.<br />

Cadeia nele.”<br />

Thales Ferreira<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

103


Se te agarro com outro te mato<br />

Sidney Magal<br />

“Se te agarro com outro<br />

Te mato!<br />

Te mando algumas flores<br />

E depois escapo...<br />

Comentário do site mmpb:<br />

Essa letra pode ser enquadrada<br />

como uma grande ameaça.<br />

Quantas histórias não vemos<br />

<strong>por</strong> aí de homens que não superam<br />

o fim de um relacionamento<br />

e de fato matam suas<br />

ex? Essa música é uma clara<br />

representação do que milhares<br />

de mulheres vivem.<br />

Relacionamentos abusivos,<br />

doentes. O ciúme está até no<br />

contato da mulher com os amigos.<br />

Bizarro, não? Se você é<br />

desses, atenção: você é um<br />

abusado.<br />

No site, ao clicar onde está escrito<br />

“dá um shuffle”, as músicas são embaralhadas<br />

e uma das canções é selecionada.<br />

Além da letra e do vídeo da<br />

música, as jovens postam uma analíse<br />

crítica que nos ajuda na reflexão. Na<br />

plataforma, muitas compositoras e ou<br />

cantoras também fazem parte do acervo<br />

de músicas que reforçam a cultura<br />

machista. “Crescendo numa cultura<br />

patriarcal, muitas mulheres podem<br />

reproduzir o discurso machista, inclusive<br />

aquele que provoca a competição<br />

entre nós. Na maioria das vezes,<br />

isso acontece de forma automática. A<br />

questão aqui é parar pra refletir, começar<br />

a questionar essa cultura. Repensar<br />

o discurso e que juntas somos<br />

muito mais fortes”, afirma Natália ao<br />

informar que, no site, o próprio público<br />

pode sugerir canções que são analisadas<br />

e depois, publicadas.<br />

Lacradora – Cláudia Leite<br />

Copo na mão e as inimigas<br />

no chão /<br />

Copo na mão e as inimigas<br />

no chão /<br />

Claudinha lacradora dando<br />

nas recalcadas /<br />

Enquanto a gente brinda,<br />

elas tomam pisão<br />

Comentário do site mmpb:<br />

Cláudia Milk errou feio, errou<br />

rude na tentativa de lançar um<br />

"hino feminista". Faltou aprender<br />

a primeira lição: hei de ter<br />

sororidade com as manas. A letra<br />

tenta retratar uma "mulher<br />

empoderada" mas no final das<br />

contas se baseia em "se sentir<br />

bem em cima das inimigas".<br />

Claudinha do céu, não faça<br />

isso! A nossa autoestima tem<br />

que tá lá no alto sempre e das<br />

"inimiga" também.<br />

Que tal parar de retratar que<br />

mulheres não se dão bem ou<br />

estão em constante competição?<br />

Vamos todas juntas, com empatia.<br />

Ações como a dessas jovens tantas<br />

outras já surtiram efeito. Spotify,<br />

Deezer e YouTube retiraram de suas<br />

plataformas digitais o já referido funk<br />

Só Surubinha de Leve, do MC Diguinho.<br />

A música é acusada de fazer apologia<br />

ao estupro, em trechos como<br />

“taca bebida, depois taca a pica e<br />

abandona na rua”.<br />

Outra jovem que também partiu<br />

para uma ação concreta de conscientização<br />

sobre letras de músicas ofensivas<br />

à mulher foi a advogada Camila<br />

Queiroz, do Paraná. Em 2017, ela criou<br />

uma página no Facebook (Arrumando<br />

Letras) onde altera e comenta letras<br />

de canções que são agressivas para a<br />

mulher. Seu trabalho tem sido compartilhado<br />

e elogiado pelos/as internautas.<br />

No face, Camila escreveu “Nem<br />

sempre as músicas têm bom senso.<br />

Mas não tem problema não, a gente<br />

arruma”. Em uma de suas postagens<br />

(17/08), ela lembra de uma música que<br />

gostava de ouvir em sua adolescência,<br />

"Aninha sem tesão". Camila conta que<br />

não lembrava da letra. Então, pesquisou<br />

e a encontrou. “Li. Estou em choque.<br />

Essa banda era famosa aqui no<br />

sul quando eu tinha uns 15 anos. Eu<br />

ouvia isso sem nem racionalizar o<br />

quão horrível era. O tempo passou e<br />

hoje eu tenho uma página que fala<br />

104 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


exatamente sobre isso: letras de músicas<br />

que a gente escuta e nem sempre<br />

problematiza o conteúdo misógi -<br />

no/machista. Então, me senti na obri -<br />

gação de postar aqui pra vocês, pra<br />

perceberem que a questão é bem mais<br />

profunda do que parece. Já pararam<br />

pra pensar que talvez a gente não perceba<br />

o quão terríveis são algumas<br />

letras – como essa, que faz apologia<br />

CLARA ao estupro – <strong>por</strong>que aquilo<br />

nos é, de alguma forma, "natural"?<br />

Tenebrosa essa constatação, né? Mas<br />

isso aí é a tal da cultura do estupro.<br />

Quando a gente não vê muito problema<br />

em uma situação <strong>por</strong>que... bem ... foi<br />

sempre assim. Mulheres sempre passaram<br />

<strong>por</strong> isso então... tudo bem”.<br />

Música: uma construção<br />

de gênero<br />

Com esse título, na semana do Dia Internacional<br />

da Mulher deste ano, a<br />

Secretaria de Políticas para Mulheres<br />

da Prefeitura de São Leopoldo (RS)<br />

lançou a campanha “Música: Uma<br />

Construção de Gênero”, que denuncia<br />

machismo, feminicídio, cultura do estupro<br />

e violência contra mulher presentes<br />

em letras de músicas. São fotografias<br />

com mulheres segurando<br />

cartazes com trechos de canções. Além<br />

das redes sociais, as imagens ficaram<br />

expostas em vários lugares da cidade.<br />

A campanha teve uma ótima repercussão<br />

pelo facebook.<br />

Thales Ferreira<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

105


Arte: Mirela Persichini


Cultura<br />

<strong>por</strong> Carina Aparecida<br />

Ela faz cinema<br />

Pense nos bastidores da realização<br />

de um filme. Feche os olhos e pense.<br />

Quem é a pessoa que opera as câmeras?<br />

Quem domina os equipamentos<br />

de luz? Quem é aquela pessoa com<br />

fones grandes segurando toda a parafernália<br />

de som? E a pessoa sentada<br />

naquela cadeirinha típica de direção<br />

de cinema, orientando toda a equipe<br />

sobre o que deve ser feito? Não será<br />

surpresa se tiver vindo a sua cabeça<br />

imagens de homens em todas ou quase<br />

todas essas funções. Se isso tiver acontecido<br />

é <strong>por</strong>que sua imaginação reproduz<br />

a construção histórica do cinema<br />

no mundo e também no Brasil.<br />

Mesmo com toda invisibilização,<br />

todos esses lugares já foram e são cada<br />

vez mais ocupados <strong>por</strong> mulheres e<br />

falar sobre isso tem sido um debate<br />

cada vez mais urgente, não só para o<br />

universo do cinema, mas para toda a<br />

sociedade.<br />

A pesquisadora e professora de Cinema<br />

Carla Maia explica que o cinema<br />

não apenas representa o mundo, mas<br />

também cria um mundo junto com<br />

ele. "É um instrumento muito poderoso<br />

de fazer circular imagens e conteúdo<br />

simbólico que vão agir sobre os modos<br />

de viver, os modos de vida, os modos<br />

de ação", afirma. Para Carla, historicamente,<br />

o cinema foi realizado <strong>por</strong> homens<br />

brancos, de classe média, classe<br />

intelectual, gente privilegiada, o que<br />

influencia diretamente a forma como<br />

essas representações ganham força e<br />

assumem discursos. Terezinha Avelar,<br />

cineclubista e diretora do Sinpro Minas,<br />

também reflete sobre o poder do cinema:<br />

“É preciso fazer uma análise sobre<br />

em que contexto histórico foi feito determinado<br />

filme, quem estava <strong>por</strong> trás<br />

da câmera, quem fez o recorte. As cenas,<br />

colocadas de uma determinada<br />

forma, podem estar falando do lugar<br />

do opressor, ou do oprimido. É muito<br />

poderoso o cinema”, ressalta.<br />

Um meio tão poderoso concentrado<br />

há tanto tempo nas mãos e olhares<br />

masculinos. Uma construção que é histórica,<br />

mas também reflexo da forma<br />

como as mulheres são vistas, criadas<br />

e inseridas no contexto social. A realizadora<br />

audiovisual Mirela Persichini<br />

reflete que os meninos são criados para<br />

produzir e nós, mulheres, para cuidar.<br />

“Eles são criados brincando com carrinho.<br />

Já nós, somos criadas para brincar<br />

de boneca, cuidar das coisas. Então<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

107


Sinpro Minas<br />

até a forma como a gente foi criada diz<br />

sobre os espaços que a gente pode ou<br />

não ocupar. Demora pra gente entender<br />

que queremos fazer algo que não acessamos”,<br />

afirma.<br />

Cinema Feminista<br />

Frente a toda essa construção desigual,<br />

emerge a urgência de um cinema que<br />

supere tantos privilégios e opressões.<br />

E esse cinema tem sido denominado<br />

de cinema feminista justamente <strong>por</strong><br />

caminhar lado a lado à luta das mulheres.<br />

Carla Maia (foto) atenta que<br />

primeiro é im<strong>por</strong>tante entender o<br />

conceito de feminismo. “Feminismo<br />

é uma luta política, uma ação política<br />

e é uma filosofia também. A gente<br />

pensar em feminismo é a gente pensar<br />

em formas de resistir à opressão das<br />

minorias”, afirma. Carla ainda destaca<br />

que o feminismo abrange também outras<br />

lutas, como da população negra e<br />

LBTQI+. “É uma forma de resistência<br />

política contra formas de opressão<br />

das minorias. E quando eu falo em<br />

minorias, eu falo de minoria política,<br />

<strong>por</strong>que muitas vezes são maiorias numéricas”.<br />

Para a pesquisadora, um cinema<br />

feminista, <strong>por</strong>tanto, deve tomar<br />

para si essa questão da opressão contra<br />

minorias políticas, de modo a fazer<br />

do filme uma ferramenta de reflexão,<br />

um instrumento de resistência.<br />

Para a realizadora Mirela Persichini,<br />

os momentos da diferença surgem<br />

quando você coloca uma classificação<br />

de mulher para ser subalterna ao outro<br />

poder. “Alguém tem o poder, o falo, e<br />

alguém não tem. Alguém tem possibilidade<br />

de fala e alguém não tem. E<br />

meu feminismo considera todas as<br />

mulheres que não têm poder, as mulheres<br />

trans, as mulheres negras, os<br />

homens trans”, reflete.<br />

Além da construção política em si,<br />

o cinema feminista também se abre a<br />

debater linguagens, estética, formas<br />

de representação. Diversas possibilidades<br />

que demonstram a potência de<br />

um cinema que se propõe ao novo e<br />

que já tem uma trajetória. Carla Maia<br />

explica que os movimentos sociais começaram<br />

a querer diminuir essa assimetria,<br />

tomando pra si as câmeras<br />

nos anos 70 sobretudo, em que se viu<br />

um forte movimento de mulheres querendo<br />

filmar para poder se autorrepresentar,<br />

representar a elas próprias<br />

de uma maneira mais justa, já que enquanto<br />

só tínhamos homens brancos<br />

e cis dirigindo os filmes, esses homens<br />

108 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


Cardes Monção<br />

Letícia Souza, Rita Boechat, Daniela Pimentel e a Mirela Persichini: formam a coletiva Malva de Cinema.<br />

“Acho que agora o<br />

feminismo possibilita<br />

que a gente inaugure<br />

um outro lugar pra<br />

mulher. A gente tem<br />

conseguido escrever.<br />

E a gente filma.”<br />

eram sujeitos ativos e a mulher objeto<br />

desse olhar. “Podemos pensar em milhares<br />

de exemplos de filmes em que<br />

as mulheres sequer têm fala, elas estão<br />

ali para ser mesmo um objeto de prazer,<br />

para ser olhado. Por isso a preponderância<br />

<strong>por</strong> exemplo de personagens<br />

femininas jovens, belas, esbeltas,<br />

em um padrão físico cinematográfico<br />

que a gente reconhece muito<br />

rapidamente”, pontua.<br />

A produtora audiovisual e psicóloga<br />

Daniela Pimentel também reflete sobre<br />

a im<strong>por</strong>tância da representatividade.<br />

Segundo ela, se a gente resgata o passado,<br />

entendemos que tanto na literatura,<br />

como nas outras artes, como<br />

a pintura, etc.; as mulheres eram sempre<br />

faladas, escritas, pintadas. “Acho<br />

que agora o feminismo possibilita que<br />

a gente inaugure um outro lugar pra<br />

mulher. A gente tem conseguido falar,<br />

a gente tem conseguido escrever. E a<br />

gente filma”, destaca.<br />

Esses olhares que se lançam ao<br />

que é comum e vivido pelas próprias<br />

mulheres ganham força e ajudam a<br />

desconstruir padrões comuns de representação<br />

no cinema. Daniela conta<br />

que na última Mostra de Cinema de<br />

Tiradentes, foi exibido um filme de<br />

um cineasta em que havia cenas de<br />

um estupro. Logo na sequência, na<br />

mesma sessão, foi apresentado um filme<br />

de uma diretora (Tentei, de Laís<br />

Melo), que trazia um outro olhar. “Era<br />

muito mais sensível. Você vê pela câmera,<br />

como a diretora de fotografia<br />

trabalha as imagens, como a atriz interage<br />

com a câmera. Ali se percebia<br />

o protagonismo feminino”, destaca.<br />

Para Mirela, a questão do escutar,<br />

do ouvir, do produzir, do pensar, vai<br />

chegando num lugar que é das mulheres,<br />

em que nos sentimos contempladas.<br />

“Você assiste e fala: nossa, esse<br />

foi feito <strong>por</strong> mulher, <strong>por</strong>que traz as<br />

contradições. E talvez essa seja a ca-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

109


acterística muito potente de coisas<br />

feitas <strong>por</strong> mulheres, são coisas que<br />

mostram as falhas, as contradições.<br />

São abertas ao erro. É possível, são<br />

coisas possíveis”, reflete.<br />

A autenticidade no produzir tem<br />

sido um elemento forte em filmes feitos<br />

<strong>por</strong> mulheres. Terezinha Avelar chama<br />

atenção para o filme Autópsia, de Mariana<br />

Barretos. O curta com duração<br />

de sete minutos aborda como a cultura<br />

e a mídia são responsáveis pela objetificação<br />

da mulher, a partir de vários<br />

trechos de programa de televisão e<br />

propagandas. “É forte ver como somos<br />

bombardeadas todo o tempo com uma<br />

imagem que não nos representa. Isso<br />

tudo na TV, a qualquer hora do dia. O<br />

filme nos impacta, nos faz questionar<br />

toda essa lógica”, ressalta.<br />

Uma luta contra os<br />

números<br />

Divulgação<br />

Todo esse histórico de desigualdades<br />

é comprovado em números. Segundo<br />

levantamento da Agência Nacional do<br />

Cinema - ANCINE, dos 142 longas-metragens<br />

brasileiros lançados comercialmente<br />

em salas de exibição no ano<br />

de 2016, 75,4% foram dirigidos <strong>por</strong> homens<br />

brancos. As mulheres brancas<br />

assinam a direção de 19,7% dos filmes,<br />

enquanto apenas 2,1% foram dirigidos<br />

<strong>por</strong> homens negros. O dado mais assustador<br />

e preocupante é que nenhum<br />

filme em 2016 foi dirigido ou roteirizado<br />

<strong>por</strong> uma mulher negra.<br />

A desigualdade ocorre atrás e frente<br />

às telas. Nos 97 filmes de ficção analisados,<br />

que somaram 827 atores e atrizes,<br />

60% eram homens e 40% mulheres.<br />

Os/as negros/as, que representam<br />

mais da metade da população brasileira,<br />

compõem apenas 13% dos elencos<br />

das obras lançadas em 2016, e tendem<br />

a aparecer mais em filmes dirigidos e<br />

roteirizados <strong>por</strong> profissionais negros.<br />

Em 42% dos filmes de ficção, não há<br />

negros(as) no elenco principal.<br />

Esses dados também são elementos<br />

na construção do cinema feminista,<br />

em uma trincheira que traz a necessidade<br />

de se pensar o cinema negro.<br />

A pesquisadora e realizadora audiovisual<br />

Letícia Souza destaca que,<br />

quando se fala da questão de raça e<br />

gênero, é preciso dizer sobre uma disputa<br />

de um lugar, de um orçamento,<br />

de financiamentos, de incentivo. "Então<br />

eu acho que existe sim a barreira<br />

e toda uma estrutura para manter<br />

essa parte do bolo para um determinado<br />

grupo, que outros não acessem”,<br />

explica. Sobre o protagonismo da mulher<br />

negra no cinema, Letícia reflete<br />

sobre a im<strong>por</strong>tância dessa construção<br />

de narrativas. “Sendo realizadora e<br />

negra eu penso sobre o poder da identificação<br />

quando produzimos cinema.<br />

É um olhar que tá muito mais próximo<br />

da sua realidade, onde você consegue<br />

se enxergar. Olha, essa mulher, esse<br />

homem, parece com minha tia, com<br />

meu tio, minha mãe, meus irmãos,<br />

comigo. Histórias que perpassam. É<br />

como eu me enxergo nessa sociedade,<br />

nessa história”, destaca.<br />

Para Letícia, na história do cinema,<br />

não só as mulheres, mas pessoas negras<br />

de uma forma geral foram representadas<br />

de forma muito negativa. “É<br />

uma representação que é ridicularizada,<br />

desumanizada, objetificada, colocada<br />

sempre em situações de subalternidade,<br />

na maioria das vezes”, pon-<br />

110 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


Letícia Souza<br />

tua. Para ela, quando entram as mulheres<br />

negras neste cenário, entra<br />

também um novo olhar. “Como mulher<br />

negra, penso que é poder dizer<br />

um pouco de si mesma, com uma nova<br />

percepção que vai ser muito mais próxima,<br />

que vai complexificar relações<br />

de uma forma muito mais de igual<br />

para igual do que simplesmente em<br />

relações de subalternidade”, completa.<br />

Ocupando espaços<br />

Em resistência à lógica do cinema comercial,<br />

em todo o mundo, se multiplicam<br />

os festivais de filmes realizados<br />

<strong>por</strong> mulheres. Em Belo Horizonte, a<br />

Mostra de Cinema Feminista já realizou<br />

sua 4ª edição, exibindo centenas<br />

de obras de vários países, além da realização<br />

de debates. Mirela, Daniela e<br />

Letícia são integrantes da Coletiva<br />

Malva, que desde 2015 organiza essa<br />

Mostra. Mirella Persichini conta que<br />

a ideia é realizar um encontro entre<br />

novas produções e também trazer filmes<br />

de quem já tem uma trajetória<br />

no cinema. “E dar espaço para essas<br />

meninas irem lá e falarem: “Opa, eu<br />

também posso dirigir, montar, pegar<br />

a câmera e filmar, eu posso ser diretora<br />

de fotografia e ocupar os espaços de<br />

direção, que é uma coisa que as mulheres<br />

estão tentando acessar”, explica.<br />

Daniela conta que, em <strong>2018</strong>, foram<br />

69 filmes e 24 deles de diretoras negras.<br />

“É uma <strong>por</strong>centagem grande comparada<br />

com o que a Ancine nos traz como<br />

dado. A gente sabe que tem mulher fazendo<br />

filme, mulher negra fazendo cinema.<br />

A questão é <strong>por</strong> que elas não<br />

aparecem”, reflete. Para Letícia, apesar<br />

de toda luta, o cinema ainda é uma<br />

área dominada <strong>por</strong> homens, brancos<br />

e de classe média pra alta. “Então, uma<br />

mulher fazendo cinema, dirigindo um<br />

filme, escrevendo um roteiro, trabalhando<br />

atrás da câmera, ocupando as<br />

diversas funções do cinema é essencial.<br />

E marcar esse lugar da mulher quanto<br />

diretora, aquela que assina mesmo o<br />

filme, a gente já definiu assim que é<br />

um ato feminista”, destaca.<br />

Letícia ainda ressalta que a organização<br />

da Mostra entende o feminismo<br />

como uma luta <strong>por</strong> equidade, mais<br />

do que igualdade. “É ter meios para<br />

que você chegue aonde aquele que<br />

teve mais o<strong>por</strong>tunidades já está há<br />

muito tempo. Então, se eu penso em<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

111


Mirela Perschini<br />

feminismo como uma luta <strong>por</strong> equidade,<br />

a im<strong>por</strong>tância da Mostra Feminista<br />

pra mim é essa.”<br />

Além da Mostra Feminista, a coletiva<br />

Malva também organizou neste<br />

ano a 1ª Mostra Cinema Negra, que<br />

teve a participação de Adélia Sampaio,<br />

primeira mulher negra a dirigir um<br />

longa-metragem no Brasil. Segundo<br />

as organizadoras, a Mostra nasce da<br />

urgência de um debate a respeito da<br />

sub-representação das produções de<br />

realizadoras(es) negras(os) nas telas<br />

de cinema nacionais.<br />

Para a pesquisadora Carla Maia a<br />

diversidade é essencial para a construção<br />

da equidade. E a diversidade<br />

também no sentido de como se apropriar<br />

das funções. O mesmo levantamento<br />

da ANCINE revela que os números<br />

só estão a favor das mulheres<br />

em funções tradicionalmente construídas<br />

no cinema como “femininas”:<br />

41% em produção executiva e 58% na<br />

direção de arte.<br />

Como professora de cinema, ela<br />

diz que é uma tarefa diária levar para<br />

a sala de aula essas reflexões. “Os cursos<br />

de cinema precisam incentivar as<br />

meninas a assumirem funções técnicas,<br />

<strong>por</strong>que elas podem. Ao contrário<br />

do que muita gente diz, uma mulher<br />

pode perfeitamente operar qualquer<br />

equipamento técnico”, afirma.<br />

Carla ainda reflete que é essencial<br />

mais mulheres, independente da idade,<br />

produzirem filmes no Brasil e mais<br />

mulheres assistirem a estes filmes,<br />

entrando em diálogo com eles pra<br />

concordar, pra discordar, pra ter embate<br />

ou não. “Porque a gente não tá<br />

falando de consenso. As mulheres são<br />

muito diferentes e cada uma faz filme<br />

de jeitos muito diferentes. A gente<br />

pode pensar em um cinema feminista<br />

que é pautado <strong>por</strong> questões de resistência,<br />

contra a opressão feminina.<br />

Pensar em um cinema feminino já é<br />

mais perigoso, <strong>por</strong>que parece que todo<br />

mundo pensa e faz filme igual. É mulher,<br />

tem olhar feminino. Isso eu já discordo.<br />

As mulheres têm olhares diferentes”,<br />

destaca.<br />

Horizontes<br />

Se o passado nos apresenta dados e<br />

fatos desanimadores, o presente tem<br />

trazido bons motivos para acreditarmos<br />

na transformação. A verdade é<br />

112 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


que cada vez mais mulheres se organizam<br />

em coletivos, grupos de redes<br />

sociais, periferias, universidades e<br />

constroem espaços para mudar toda<br />

essa herança deixada <strong>por</strong> um cinema<br />

masculino e excludente.<br />

Terezinha Avelar afirma que o cenário<br />

tem mudado e que isso é resistência.<br />

“Onde a gente está, seja um<br />

longa ou um curta, a gente tá conseguindo<br />

ser protagonista. Então eu tenho<br />

muita esperança, <strong>por</strong>que há anos<br />

atrás a gente não tinha tanta produção<br />

de mulheres”, reflete.<br />

Carla Maia também acredita no<br />

processo de transformação e afirma<br />

que à medida em que se tem mais diversidade<br />

de sujeitos políticos, vai aparecer<br />

mais diversidade nas formas de<br />

fazer. “A gente precisa dessa diversidade,<br />

para que os processos sejam<br />

menos hierárquicos, menos caros. É<br />

possível fazer cinema de muitas maneiras,<br />

não existe uma só.” Para a pesquisadora<br />

também é preciso pensar<br />

sobre o lugar em que se produz. Estar<br />

no Brasil e não em Hollywood significa<br />

dizer que na maioria das vezes as pessoas<br />

fazem cinema com pouco recurso.<br />

“Por isso que a gente começa a inventar<br />

<strong>por</strong> exemplo fórmulas mais colaborativas,<br />

coletivos de cinema. A gente<br />

vive em um país muito desigual para<br />

gastar milhões e milhões de reais em<br />

um filme, que pouca gente assiste.<br />

Isso não existe. A gente tem que pensar<br />

na nossa realidade”, destaca.<br />

Sobre os desafios da mulher como<br />

protagonista, Carla ainda reflete que<br />

é preciso construir uma cultura de<br />

respeito com relação a esse lugar. “É<br />

tanto a mulher que quer comandar<br />

conseguir comandar em paz, com seus<br />

comandados entendendo que ela tem<br />

todo o direito de estar ali naquele<br />

“A gente quer<br />

pertencer à<br />

sociedade que<br />

a gente tá.”<br />

lugar, quanto as mulheres que decidirem<br />

inventar outras formas de realizar,<br />

menos hierárquicas, mais horizontalizadas,<br />

também consigam realizar.<br />

Mas claro, um mundo menos<br />

hierárquico ia fazer bem pra todo<br />

mundo. A gente tem que concordar.”<br />

Para a realizadora audiovisual Mirela<br />

Persichini, a construção do cinema<br />

feminista dialoga com a construção<br />

de uma nova sociedade. “A<br />

gente quer um lugar em que ser mulher<br />

não seja um motivo de assassinato,<br />

nem nada. A gente quer<br />

pertencer à sociedade que a gente tá.<br />

E pra gente é muito im<strong>por</strong>tante entender<br />

que as mulheres estão lutando<br />

é no mundo inteiro pra poder ser o<br />

que elas são”, defende.<br />

A luta segue para que o lugar de<br />

mulher seja onde ela quiser. Inclusive<br />

no cinema. Voltando ao início da<br />

re<strong>por</strong>tagem, agora é hora de fechar os<br />

olhos e mentalizar ser real e possível<br />

os bastidores do cinema repleto de<br />

mulheres em toda sua diversidade.<br />

Ganha a arte, ganha o cinema, ganha<br />

toda uma sociedade que sonha com o<br />

fim de tanta opressão e desigualdade.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

113


Memória<br />

<strong>por</strong> Déa Januzzi<br />

Marielles<br />

não morrem<br />

“Tiros não apagam estrelas. Mas tiram<br />

o brilho da paz e ferem o coração<br />

de uma Nação. Mostram que ser mulher<br />

corajosa no Brasil é muito perigoso. Mulher<br />

negra, pobre, lésbica, feminista e<br />

assassinada, esta canção não é só pra<br />

dizer que te amo. É também para te<br />

pedir perdão, <strong>por</strong> mim e pela minha Pátria<br />

que, apesar de tudo, ainda é muito<br />

amada / Pedir perdão <strong>por</strong> não ter reagido<br />

antes, quando ainda respiravas e<br />

gritavas sozinha <strong>por</strong> justiça, <strong>por</strong> liberdade,<br />

igualdade e direito à vida. Perdão<br />

<strong>por</strong> não estar ao seu lado pelas ruas e<br />

favelas do Rio de Janeiro, lutando pelo<br />

pão nosso, pelos pobres de todos os dias.<br />

Perdão pela minha vergonha. A sua<br />

morte é do tamanho da minha dor.”<br />

“Samba em dor maior”, de Carlos Ferrer, que<br />

virou música na voz da cantora mineira Júnia<br />

Rabelo, mostra a dor e a repercussão do assassinato<br />

da vereadora do Rio de Janeiro,<br />

Marielle Franco. As balas dirigidas à Marielle,<br />

no dia 14 de março de <strong>2018</strong>, mataram também<br />

o motorista Anderson Pedro Gomes.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

115


O mundo inteiro reagiu a essa violência,<br />

mas, até hoje, a pergunta que<br />

não foi respondida se espalha pelos<br />

quatro cantos do mundo: Quem matou<br />

Marielle? A revista <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> procurou<br />

especialistas, feministas, debruçou-se<br />

sobre os direitos humanos<br />

em busca de respostas. Uma missão<br />

quase impossível, principalmente com<br />

a proximidade das eleições. Um manto<br />

de silêncio e medo parece encobrir<br />

as possíveis fontes sobre o caso.<br />

Até mesmo a viúva de Marielle<br />

Franco, a arquiteta Mônica Benício,<br />

raramente dá entrevistas, pois tem<br />

sofrido constantes ameaças, perseguição<br />

de carros à noite e assédios.<br />

Ela pediu proteção à Comissão Interamericana<br />

de Direitos Humanos<br />

(IDH), órgão vinculado à Organização<br />

dos Estados Americano (OEA), que<br />

<strong>por</strong> sua vez solicitou ao Brasil a adoção<br />

de medidas protetivas.<br />

A Comissão entendeu que, diante<br />

da falta de informações sobre a morte<br />

da vereadora e da condenação de seus<br />

responsáveis, não é possível descartar<br />

que Mônica ainda esteja sob risco de<br />

vida. Mônica assumiu papel de destaque<br />

na defesa dos direitos humanos e em<br />

denúncias sobre o assassinato de Marielle<br />

e do motorista Anderson Gomes.<br />

O pedido foi aprovado em 3 de agosto<br />

e, diante dele, a OEA decidiu aumentar<br />

a pressão sobre o governo brasileiro<br />

pela segurança da viúva da vereadora.<br />

Em 20 de setembro, foi realizado<br />

um evento paralelo à 39ª Sessão do<br />

Conselho de Direitos Humanos da<br />

ONU, em Genebra, quando organizações<br />

da sociedade civil discutiram a<br />

militarização da segurança pública e<br />

Fotografias Emergentes<br />

a execução de Marielle: “Hoje eu venho<br />

aqui denunciar o Estado brasileiro e<br />

sua incompetência em solucionar o<br />

crime político mais grave já cometido<br />

nos últimos anos no nosso país, o assassinato<br />

de minha companheira, vereadora<br />

Marielle Franco e seu motorista,<br />

Anderson Gomes”. Dessa forma,<br />

Mônica Benício, viúva de Marielle<br />

Franco, iniciou sua fala, denunciando<br />

a falta de respostas seis meses após o<br />

brutal assassinato da vereadora e de<br />

seu motorista.<br />

Mônica participou do evento “Militarização<br />

da segurança pública: intervenção<br />

federal no Rio de Janeiro,<br />

execuções extrajudiciais e riscos para<br />

defensores de direitos humanos”, que<br />

reuniu representantes da sociedade<br />

civil brasileira para discutir o recrudescimento<br />

das políticas públicas de<br />

segurança e o impacto sobre a vida<br />

cotidiana, sobretudo dos moradores<br />

de favelas e periferias. Junto com Mônica<br />

Benício estiveram na ONU a Anistia<br />

Internacional, Conectas, Justiça<br />

Global, Redes da Maré e o Observatório<br />

da Intervenção Federal. Este último é<br />

uma iniciativa do Centro de Estudos<br />

de Segurança e Cidadania da Universidade<br />

Cândido Mendes, com o objetivo<br />

de acompanhar e divulgar os desdobramentos,<br />

os impactos e as violações<br />

de direitos decorrentes da intervenção<br />

federal no estado do Rio de Janeiro a<br />

partir da documentação e da análise<br />

criteriosa sobre fatos e dados. E também<br />

de mobilizar entidades, movimentos<br />

sociais, lideranças comunitárias<br />

e ativistas engajados nos temas<br />

de segurança pública de modo a criar<br />

uma rede apoiadora capaz de responder<br />

e fazer frente às violências e violações<br />

de direitos que decorram das<br />

ações da intervenção.<br />

116 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


Na ONU, as falas chamaram a atenção<br />

para a inconstitucionalidade do<br />

decreto que autorizou a intervenção<br />

federal no Rio de Janeiro, de cunho<br />

militar, em fevereiro deste ano. E<br />

também sobre como a militarização<br />

não é a resposta mais adequada para<br />

solucionar a questão da segurança pública.<br />

Participaram do debate: Camila<br />

Asano, coordenadora de programas<br />

da Conectas; Renata Neder, coordenadora<br />

de pesquisa e políticas da Anistia<br />

Internacional; Pablo Nunes, coordenador<br />

de Dados do Observatório da<br />

Intervenção; Eliana Silva, diretora da<br />

Redes da Maré e Mônica Benício, viúva<br />

de Marielle Franco.<br />

Mônica pediu que o Conselho da<br />

ONU pressione o governo brasileiro<br />

para dar uma solução ao caso: “Precisamos<br />

que o Estado brasileiro aceite<br />

a investigação internacional. O Estado<br />

precisa prestar contas à família e à<br />

sociedade. A pressão internacional<br />

em diversos níveis é o que pode garantir<br />

a investigação.”<br />

Eliana Silva, diretora da Redes da<br />

Maré, lembrou a operação que matou<br />

o estudante Marcus Vinícius e outras<br />

seis pessoas, em junho, no Rio de<br />

“Marielle Francisco<br />

da Silva, a<br />

Marielle Franco,<br />

era referência na<br />

luta pelos direitos<br />

humanos.”<br />

Janeiro. Ela contou que a operação<br />

“superou os limites do abuso do<br />

Estado”, utilizando um helicóptero<br />

que disparou contra a comunidade.<br />

“Em uma única rua, em um trecho de<br />

100 metros, contamos 59 marcas de<br />

tiros no chão”.<br />

Não é <strong>por</strong> acaso que há uma nuvem<br />

de silêncio encobrindo a execução de<br />

Marielle Franco. “Mulher, negra, mãe,<br />

feminista, socióloga, "cria da favela",<br />

como ela mesmo gostava de falar. Nascida<br />

no Complexo da Maré, Zona Norte<br />

do Rio de Janeiro, em 27 de julho de<br />

1979, Marielle Francisco da Silva, a<br />

Marielle Franco, era referência na luta<br />

pelos direitos humanos. A mais recente<br />

conquista na área foi o mandato de<br />

vereadora na Câmara Municipal do<br />

Rio de Janeiro. Em sua primeira disputa<br />

eleitoral, foi eleita com 46.502<br />

votos para o cargo de vereadora na<br />

capital carioca pela coligação PSOL e<br />

PCB. Marielle Franco foi a quinta mais<br />

votada na cidade. Sua trajetória acadêmica<br />

e política lhe valeu a declaração<br />

pública de voto de 257 acadêmicos e<br />

professores, que a apoiaram.<br />

Romerito Pontes<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

117


Áurea Carolina (PSOL)<br />

"Nossa conta era de superar cerca<br />

de 6 mil ou 6,5 mil votos. Até o último<br />

minuto a gente estava fazendo campanha.<br />

Fiquei muito feliz com essa<br />

votação expressiva, <strong>por</strong>que acho que<br />

é uma resposta da cidade nas urnas<br />

para o que querem nos tirar, que é o<br />

debate das mulheres, da negritude e<br />

das favelas", disse ela, pouco depois<br />

dos resultados. Carismática, gritava<br />

com orgulho uma frase que arrancava<br />

aplausos da plateia: "Lugar de mulher<br />

é onde ela quiser".<br />

Marielle Franco era crítica da<br />

intervenção federal na segurança<br />

pública do Rio de Janeiro. Ela assumiu<br />

a função de relatora da Comissão<br />

da Câmara de Vereadores do Rio,<br />

criada para acompanhar a atuação<br />

das tropas na intervenção. Em 10 de<br />

março deste ano, ela havia denunciado,<br />

em seu perfil nas redes sociais,<br />

indícios de que policiais do 41º Batalhão<br />

de Polícia Militar haviam<br />

cometido abusos de autoridade contra<br />

os moradores do bairro de Acari.<br />

Quatro dias depois, ela foi executada.<br />

Aos 38 anos foi assassinada a tiros no<br />

bairro do Estácio, centro do Rio de<br />

Janeiro, quando voltava do evento<br />

“Jovens Negras Movendo Estruturas”,<br />

na Lapa. Quatro tiros atingiram<br />

Lucas Ávila<br />

Marielle na cabeça, numa tentativa<br />

clara de silenciar a vereadora.<br />

Em Belo Horizonte, os tiros ainda<br />

ecoam. O sociólogo, ex-preso político<br />

na ditadura de 1964, assessor da Comissão<br />

da Verdade em Minas Gerais<br />

e diretor do Instituto Sérgio Miranda,<br />

Ronald Rocha, esclarece: “Ainda não<br />

se sabe quem ordenou e comandou<br />

os carrascos no Largo do Estácio, Rio<br />

de Janeiro. Constata-se, <strong>por</strong>ém, que o<br />

crime tem uma dimensão particular.<br />

Independentemente dos nomes e CPFs<br />

dos pistoleiros e mandantes, possui<br />

características novas. Primeiramente<br />

<strong>por</strong>que foi estimulado pela intolerância<br />

e o retrocesso que as forças conservadoras<br />

atualmente impõem ao país,<br />

bem como pelo clima militar-policialesco<br />

que a intervenção no Rio de Janeiro<br />

pro<strong>por</strong>cionou como solução dos<br />

problemas sociais”.<br />

Ronald analisa o contexto do crime:<br />

“Marielle havia denunciado assassinatos<br />

cometidos <strong>por</strong> policiais militares<br />

e assumido a relatoria da Comissão<br />

da Câmara Municipal que acompanha<br />

a intervenção federal na segurança<br />

pública do Rio de Janeiro, contra a<br />

qual vinha se posicionando publicamente.<br />

Há, pois, evidentes responsabilidades<br />

políticas em jogo. O grupo<br />

palaciano do governo Temer, sob o<br />

pretexto de combater o crime organizado,<br />

decretou intervenção militar<br />

no Rio de Janeiro, manipulou formalidades<br />

legais, atropelou o Conselho<br />

da República e encampou a segurança<br />

pública estadual mediante o controle<br />

direto das Forças Armadas.”<br />

A manobra, segundo o sociólogo,<br />

“demagógica e eleitoreira, repete a<br />

fracassada opção pela beligerância<br />

como única solução para o problema<br />

da violência. Já que o Rio de Janeiro<br />

118 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


se tornou exemplo de pobreza, desigualdade<br />

social e violência. Trata-se<br />

de um grave precedente, pois tem<br />

fundamento autocrático e fere o próprio<br />

regime democrático-constitucional.<br />

No entanto, carece de condições<br />

para garantir a segurança pública.<br />

Além disso, apresenta como resultado<br />

o aumento dos índices de violência.<br />

Portanto, deve ser considerada como<br />

fracasso retumbante.”<br />

A vereadora mais votada em Belo<br />

Horizonte, Áurea Carolina (PSOL),<br />

com 17.420 votos e um perfil parecido<br />

com o de Marielle Franco – negra, feminista,<br />

pobre, formada em Ciências<br />

Sociais – veio soprar novos ventos na<br />

política. Para a vereadora, a morte de<br />

Marielle “representa o questionamento<br />

de um sistema muito entranhado na<br />

mente das pessoas e das instituições,<br />

que é o racismo, a violência como lógica,<br />

como competição capitalista e<br />

exclusão das periferias. Marielle representava<br />

o poder desses lugares e<br />

de pessoas que são ignoradas como<br />

as favelas, os pretos, mães pobres e<br />

mulheres trabalhadoras que resistem<br />

<strong>por</strong> direitos e pela democracia”.<br />

Marielle incomodou os poderosos:<br />

“A tentativa de apagar o que ela representa,<br />

de exterminar o corpo dela<br />

é um engano, pois em todos os lugares<br />

onde vou estão florescendo marielles.<br />

Tenho andado muito e percebo que<br />

as jovens negras querem ser Marielle,<br />

fazer a diferença na política. A figura<br />

de Marielle transcendeu.”<br />

Áurea e Marielle se conheceram<br />

em 2016, no Rio de Janeiro, durante<br />

ato de apoio à negritude, promovido<br />

pelo deputado estadual Marcelo Freixo.<br />

A partir daí, as duas se conectaram e<br />

viviam em sintonia, comungavam as<br />

mesmas ideias e ideais.<br />

Ódio sem rosto<br />

Psicóloga, diretora do Programa de Inclusão<br />

Social de Egressas do Sistema<br />

Prisional <strong>por</strong> cinco anos, Daniela Tiffany<br />

(foto) hoje é assessora parlamentar<br />

na Assembléia Legislativa de Minas<br />

Gerais. Negra, ligada aos movimentos<br />

feministas, populares e sociais, Daniela<br />

tem certeza de quem matou Marielle:<br />

“Foi o machismo, o racismo, a intolerância.<br />

Foi esse ódio sem rosto que se<br />

materializa numa bala e tira a vida de<br />

uma mulher negra, lésbica, feminista<br />

e que estava trazendo outra narrativa<br />

para a política do Rio de Janeiro”. Ela<br />

é categórica: “Todos sabem que a resposta<br />

eficaz para o enfrentamento à<br />

violência passa <strong>por</strong> políticas públicas<br />

integradas de saúde, cultura e desenvolvimento<br />

social e não pelas forças<br />

policiais e militares, que atacam os<br />

pobres, pretos e favelados. O efeito é o<br />

genocídio, principalmente da juventude<br />

negra, com mortes e prisões que não<br />

trazem a paz social.”<br />

Intervenção militar, como a que<br />

ocorreu no Rio de Janeiro, “ataca os<br />

problemas imediatos, sem conseguir<br />

resolver, de fato, as questões que justificariam<br />

seus objetivos. Ao contrário,<br />

fortalece as milícias, a corrupção po-<br />

Arquivo pessoal<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

119


lítica, o tráfico de armas e a violência<br />

contra todas nós, mulheres negras,<br />

militantes e feministas. Ficamos impactadas<br />

com a morte de Marielle<br />

Franco, que é uma tentativa de nos intimidar”,<br />

confessa Daniela Tiffany.<br />

Balanço da<br />

Intervenção militar<br />

Em seis meses de intervenção federal,<br />

o Rio de Janeiro contabilizou 2.617<br />

homicídios dolosos, 742 mortos, 31<br />

chacinas e 4.850 tiroteios. Até agora,<br />

736 moradores e 51 agentes de segurança<br />

perderam suas vidas. Os dados<br />

são recentes e foram divulgados pelo<br />

Observatório da Intervenção, no documento<br />

Vozes sobre a intervenção.<br />

De acordo com as informações coletadas<br />

em depoimentos e monitoramentos,<br />

a ação do governo federal coleciona<br />

fracassos. “Se o cotidiano já<br />

era violento, talvez tenha até piorado”,<br />

descreve Tarcísio Lima, morador de<br />

Manguinhos, bairro da Zona Norte do<br />

Rio de Janeiro.<br />

O depoimento, que faz parte do<br />

documento, poderia ser de qualquer<br />

morador da Baixada Fluminense, de<br />

São Gonçalo ou da Rocinha, áreas que<br />

concentram os índices de violência<br />

mais crescentes desde fevereiro no<br />

Rio de Janeiro. Essas regiões são as<br />

principais localidades de onde dispara<br />

o aviso “atenção na região” no aplicativo<br />

Onde Tem Tiroteio, que alerta moradores<br />

do Rio de Janeiro sobre o perigo<br />

nas ruas. De 16 de fevereiro até o início<br />

de setembro, os cariocas receberam<br />

o alerta 3.111 vezes em seus celulares.<br />

Só na Baixada, o número de mortes<br />

<strong>por</strong> ação policial aumentou 48% e o<br />

número de mortos em autos de resis-<br />

tência atingiu seu maior número, 233<br />

pessoas. Segundo o Observatório, as<br />

regiões mais conhecidas pela violência<br />

e pelo tráfico, são as que mais têm<br />

sentido na pele as incursões militares.<br />

O quadro é desalentador: o número<br />

de homicídios e chacinas continua extremamente<br />

alto. Registros de mortes<br />

decorrentes de intervenção policial e<br />

tiroteios também cresceram. As disputas<br />

entre facções e quadrilhas, incluindo<br />

milicianos, fugiram ao controle<br />

em diversas áreas.<br />

As páginas do documento relembram<br />

a morte do menino Marcos<br />

Vinícius, quando saía da escola, os<br />

120 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


tiros disparados de helicópteros na<br />

Maré, a não elucidação do crime contra<br />

Marielle Franco e a falta de<br />

investigação nas chacinas da Rocinha<br />

e da Cidade de Deus. São exemplos<br />

pontuais – e graves – de uma situação<br />

cotidiana que mostra que a intervenção<br />

não enxerga o morador de favelas<br />

“<br />

A intervenção é ineficaz<br />

e mentirosa.<br />

Tudo não passa de<br />

uma grande perda<br />

de tempo, algo para<br />

inglês ver.”<br />

como um sujeito com direito à segurança<br />

pública.<br />

“Na concepção militarista de segurança,<br />

a favela é considerada área hostil,<br />

onde todos são inimigos”, afirma Filipe<br />

dos Anjos, conselheiro do Observatório<br />

e secretário-geral da Federação de Favelas<br />

do Estado do Rio de Janeiro. “A<br />

Sindipetro/RJ<br />

política de extermínio sob a filosofia<br />

da guerra é a única opção que o Estado<br />

apresenta para os jovens negros e negras,<br />

pobres e favelados. Uma ação genocida,<br />

racista e fascista”.<br />

O documento também conta com<br />

depoimentos de integrantes das Forças<br />

Armadas que preferiram não ter seus<br />

nomes identificados. Neles, fica estampado<br />

que a intervenção não é vista<br />

com bons olhos nem mesmo dentro<br />

do Exército.<br />

“Alguns militares também não concordam<br />

com a intervenção. Sentemse<br />

ameaçados: nós viramos alvo. É<br />

muito desgastante emocionalmente”,<br />

afirma um deles. Outro continua: “A<br />

intervenção é ineficaz e mentirosa.<br />

Tudo não passa de uma grande perda<br />

de tempo, algo para inglês ver. Não se<br />

sabe quem ganha, e o quê, insistindo<br />

com a intervenção”. O entendimento,<br />

nesses relatos, é de que até mesmo<br />

dentro do Exército, a ação é vista como<br />

uma medida política e não de segurança<br />

pública.<br />

O Observatório da Intervenção<br />

usou de muitos meios alternativos<br />

para compilar todos os dados, <strong>por</strong>que<br />

falta transparência na divulgação dos<br />

números oficiais do governo. “Uma<br />

política de segurança deve ser pública<br />

em todos os seus aspectos, inclusive<br />

em informação”, afirma Pablo Nunes,<br />

coordenador de dados do Observatório.<br />

“Há negativa de informações e<br />

não retorno de solicitações. É o<br />

oposto do que deveria ser uma política<br />

pública. Um regime democrático<br />

pressupõe controle da sociedade<br />

civil”. Ainda segundo o documento divulgado,<br />

apesar dos pedidos, não há<br />

respostas sobre as mais de 600 mortes<br />

decorrentes de ação policial ocorridas<br />

desde fevereiro.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

121


Seis meses depois...<br />

O tempo voa.<br />

A Anistia Internacional do Brasil<br />

vem acompanhando o caso de Marielle<br />

Franco e, praticamente, a cada mês<br />

perto da data do crime, posta em seu<br />

site comunicados públicos com as<br />

ações que vem realizando com o objetivo<br />

de pressionar as autoridades<br />

nacionais e internacionais para descobrirem<br />

e punirem os responsáveis<br />

pelo assassinato de Mariele Franco e<br />

do motorista, Anderson Gomes.<br />

“A sociedade precisa saber quem<br />

matou Marielle e <strong>por</strong> quê. A cada dia<br />

que passa e este caso permanece sem<br />

respostas, o risco e ameaças em torno<br />

dos defensores e defensoras de direitos<br />

humanos aumentam”, diz em um dos<br />

comunicados públicos Jurema Werneck,<br />

diretora-executiva da Anistia<br />

Internacional Brasil. “O Brasil é um<br />

dos países onde mais se mata defensores<br />

de direitos humanos. Só em<br />

2017, foram pelo menos 58 defensores<br />

assassinados. Tais crimes desencorajam<br />

a mobilização, alimentam o medo<br />

e o silêncio na sociedade”, diz a nota.<br />

Em junho, a Anistia Internacional<br />

reivindicou que o Ministério Público<br />

do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ)<br />

criasse uma força-tarefa específica para<br />

o caso e exercesse o controle externo<br />

da atividade policial, monitorando a<br />

atuação da Polícia Civil nas investigações<br />

no sentido de identificar possíveis<br />

negligências, lacunas, descasos, interferências<br />

externas indevidas ou procedimentos<br />

errados ou ações ilegais<br />

que eventualmente estejam acontecendo<br />

ou possam vir a acontecer.<br />

Em julho, indignada com a falta de<br />

vontade das instituições do Sistema<br />

de Justiça Criminal brasileiro em resolver<br />

o caso, a Anistia, <strong>por</strong> meio de<br />

seus diretores, fala sobre a preocupação<br />

com as informações veiculadas pela<br />

imprensa e que permanecem sem qualquer<br />

tipo de esclarecimento, como <strong>por</strong><br />

exemplo, que a munição utilizada pertenceria<br />

a um lote que teria sido vendido<br />

à Polícia Federal; que a arma empregada<br />

seria uma submetralhadora<br />

de uso restrito das forças de segurança;<br />

que submetralhadoras do mesmo modelo<br />

da utilizada teriam desaparecido<br />

do arsenal da Polícia Civil e que câmeras<br />

de vídeo que cobrem o local<br />

exato onde aconteceu o assassinato<br />

teriam sido desligadas na véspera do<br />

crime. A imprensa também divulgou<br />

que o interventor federal na segurança<br />

“O Brasil é um dos<br />

países onde mais<br />

se mata defensores<br />

de direitos<br />

humanos”<br />

pública do Rio de Janeiro, general Walter<br />

Souza Braga Netto, em reunião com<br />

o presidente Michel Temer e o ministro<br />

Raul Jungmann, em maio, teria acertado<br />

um pacto de silêncio sobre o caso.<br />

O objetivo seria preservar o trabalho<br />

da Divisão de Homicídios da Polícia<br />

Civil, responsável pela investigação –<br />

“no entanto, esse silêncio após quatro<br />

meses sugere descompromisso das autoridades<br />

com a solução do caso”, diz<br />

a nota pública da Anistia.<br />

Aos cinco meses do assassinato de<br />

Marielle Franco, em agosto, a Anistia<br />

Internacional entrega ofícios exigindo<br />

respostas para autoridades da Polícia<br />

Civil do Estado e da Secretaria de Segurança<br />

Pública do Estado do Rio de<br />

Janeiro; para a Procuradoria Geral<br />

do Ministério Público do Rio de Janeiro<br />

e a Procuradoria Federal dos Direitos<br />

do Cidadão e para o Ministério da Justiça,<br />

além do Interventor Federal General<br />

Walter Souza Braga Netto. A<br />

Anistia também manifesta grande<br />

preocupação com o significado da falta<br />

de resposta em um período de campanha<br />

eleitoral. “Marielle era defensora<br />

de direitos humanos e vereadora<br />

na segunda maior cidade do país. Sua<br />

execução na vigência de seu mandato<br />

parlamentar significa não só um ataque<br />

aos direitos humanos, mas também<br />

um ataque às instituições democráticas.<br />

Seu assassinato não pode ficar<br />

sem uma resposta adequada. É grave<br />

que se inicie um processo eleitoral<br />

122 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


sem que se descubra quem são os responsáveis<br />

pelo assassinato de uma vereadora<br />

em pleno exercício de seu<br />

mandato e quais foram as motivações.<br />

O início do período de campanha eleitoral<br />

levanta a preocupação de que o<br />

caso seja negligenciado”, disse Jurema<br />

Werneck, diretora executiva da Anistia<br />

Internacional.<br />

Em setembro, além de participar<br />

da 9ª Sessão do Conselho de Direitos<br />

Humanos da ONU, em Genebra, quando<br />

organizações da sociedade civil discutiram<br />

a militarização da segurança<br />

pública e a execução de Marielle, a<br />

Anistia chama a atenção, para o caso<br />

Marielle, <strong>por</strong> meio da arte. No Brasil,<br />

grupos de ativismo de diversos estados<br />

criaram painéis em homenagem a Marielle<br />

e, em Portugal, um im<strong>por</strong>tante<br />

festival de arte urbana, parte do projeto<br />

"Brave Walls", dedicou um mural<br />

à brasileira. O artista <strong>por</strong>tuguês Alexandre<br />

Farto, o Vhils, esculpiu o rosto<br />

de Marielle Franco durante o evento,<br />

no Panorâmico de Monsanto.<br />

Mídia Ninja<br />

“Através da Brave Walls, convidamos<br />

artistas a criarem peças incríveis <strong>por</strong><br />

todo o mundo. Com esta obra de arte<br />

em Portugal queremos dar o máximo<br />

de visibilidade ao caso de Marielle Franco<br />

– não só para celebrar a sua vida<br />

inspiradora e continuar a lutar pelas<br />

causas que lhe eram queridas, mas<br />

também para garantir que os seus assassinos<br />

sejam levados à justiça. É a<br />

arte, de forma pacífica e audível, que<br />

exige justiça e direitos humanos”, afirmou<br />

Pedro Neto, diretor executivo da<br />

Anistia Internacional Portugal. “A expressão<br />

da arte, em todas as suas formas,<br />

é capaz de nos sensibilizar e mobilizar<br />

na luta <strong>por</strong> justiça. Em tempos<br />

sombrios e de retrocessos em todo o<br />

mundo, é fundamental ocuparmos todos<br />

os espaços“, disse Mônica Benício.<br />

A Anistia continuará se mobilizando<br />

globalmente para pressionar <strong>por</strong><br />

respostas para o caso. “O assassinato<br />

de uma vereadora, defensora de direitos<br />

humanos, ativista dos movimentos<br />

LGBTQI+ e das favelas, negra<br />

e lésbica, tem, claramente, a intenção<br />

de silenciar sua voz e de gerar medo e<br />

insegurança. Mas vamos continuar<br />

levantando nossas vozes. Desde que<br />

Marielle foi morta, as pessoas no Brasil<br />

e em todo o mundo, se mobilizaram e<br />

não descansarão até que a verdade<br />

seja conhecida e a justiça seja feita.<br />

Eles tentaram nos calar, mas nós mostramos<br />

que não estamos com medo”,<br />

conclui Jurema Werneck.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

123


± | Edinho Vieira / Gabinetona


Perfil<br />

<strong>por</strong> Nanci Alves<br />

Avelin Buniacá<br />

Poranga kaaruká (boa tarde), assim<br />

Avelin Buniacá começa nossa conversa,<br />

me saldando em Nhengatu. Mãe de<br />

Pietra, de 9 anos, a indígena vive em<br />

Belo Horizonte, onde trabalha como<br />

professora de Sociologia no ensino<br />

médio pelo Estado de Minas Gerais e<br />

também como assessora parlamentar<br />

na Câmara Municipal no projeto Indianiza<br />

BH, um programa de letramento<br />

étnico racial da perspectiva Indígena.<br />

“Temos como objetivo desconstruir<br />

preconceitos e construir<br />

novos paradigmas sobre a cultura, os<br />

saberes e a ancestralidade indígena”,<br />

diz. Delicadeza, disponibilidade, coragem<br />

e sensibilidade são apenas algumas<br />

das virtudes desta guerreira.<br />

Sim, guerreira é a melhor definição<br />

para a jovem cientista social da etnia<br />

Kambiwá, do sertão Pernambucano.<br />

A história de Avelin começou às<br />

margens do rio Moxotó (PE), onde seu<br />

pai (descendente de mãe negra e pai<br />

da etnia Tapuia de Paracatu, Noroeste<br />

de Minas), ao trabalhar para uma obra<br />

de barragem deste rio, conheceu sua<br />

mãe da etnia Kambiwá. “A obra era<br />

para fazer o Poço da Cruz, que viria a<br />

alagar e destruir a casa da minha avó.<br />

Minha mãe trabalhava para os "peões<br />

de obra", lavando, passando e cozinhando.<br />

Assim meus pais se conheceram,<br />

se casaram em Inajá (PE) e fizeram<br />

a nossa família”, conta.<br />

Caçula de três filhas, Avelin nasceu<br />

em 1980. Passou sua infância viajando<br />

com as obras em que o pai trabalhava,<br />

mas sempre mantendo contato com<br />

as avós e preservando as raízes, a cultura<br />

indígena viva. “Meu pai reconstruiu<br />

a casa de minha avó em Ibimirim<br />

(PE). Mas, há 23 anos, nós nos fixamos<br />

em Belo Horizonte, onde moramos<br />

na região do Barreiro. No início,<br />

tivemos alguns choques culturais <strong>por</strong><br />

entendermos tudo muito coletivamente,<br />

o que não era a realidade da<br />

cidade, fazendo com que tivéssemos<br />

muitos prejuízos. A minha forma de<br />

entender as coisas com maior facilidade<br />

de oralidade também me rendeu<br />

prejuízos no ensino médio, já que<br />

quase não copiava a matéria. Mas entendia<br />

de ouvir”, afirma.<br />

Ser uma adolescente indígena em<br />

uma cidade sem memória e que ignora<br />

as ancestralidades que a formam não<br />

foi tranquilo para Avelin: “Essa experiência<br />

foi geradora de solidão, depressão<br />

e abuso de substâncias que amenizem<br />

a dor. Apesar de tudo, gostava<br />

de estudar, mas não tínhamos acesso<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

125


a escolas de qualidade, tampouco às<br />

cotas que, com muito custo, conquistamos<br />

hoje e não podemos abrir mão<br />

jamais”. Diante dessa realidade, Avelin<br />

fez vestibular para História na UFMG,<br />

cursou pouco tempo, optando <strong>por</strong> Psicologia<br />

e, em seguida, <strong>por</strong> Ciências Sociais,<br />

com a qual se identificou rapidamente.<br />

“As ciências sociais faziam<br />

a ligação exata do que eu indagava no<br />

mundo, as falas internas da minha<br />

alma e ancestralidade, minha história<br />

e a nossa, e sugeria respostas, ação,<br />

e não apenas um olhar lacrimoso para<br />

toda nossa dor. Dor essa reacendida<br />

no incêndio do Museu Nacional no dia<br />

2 de setembro, onde nosso sagrado foi<br />

destruído, onde o que tínhamos de<br />

tão poderoso em sermos brasileiros se<br />

foi. Inclusive o acervo indígena perdido<br />

lá me torna inconsolável”, conta Avelin<br />

com o choro embargado. “No Museu<br />

tinha um acervo indígena riquíssimo.<br />

O único dinossauro com nome indígena,<br />

Maxakalissauro, encontrado em<br />

terras maxakali, virou cinzas. Tinha<br />

também um acervo de línguas indígenas<br />

que não têm mais falantes. Tudo<br />

perdido. O que é nosso estava em acervo<br />

de branco, onde poucos frequentam.<br />

Estamos numa cultura que apaga sua<br />

própria história. Um povo sem memória<br />

não luta <strong>por</strong> um futuro melhor.<br />

Estou em luto. Eles não dão conta de<br />

cuidar, nem o que tiram de nós. Queremos<br />

que nos devolvam o direito de<br />

contar nossa própria história, é o nosso<br />

lugar de fala”, desabafa.<br />

A conversa com Avelin foi em 5 de<br />

setembro, data em que se celebra o<br />

Dia Internacional da Mulher Indígena,<br />

uma homenagem a Bartolina Sisa,<br />

da nação Aymara, que enfrentou a colonização<br />

da coroa espanhola e morreu<br />

protegendo seu povo na Bolívia. Ao<br />

contar esta história, Avelin reforça<br />

que a luta pela vida e pelo direito à<br />

terra sempre foi uma realidade dos<br />

povos indígenas, desde a invasão do<br />

país pelo povo não indígena e, hoje,<br />

se tornou uma verdadeira luta feminista.<br />

“Uma batalha pelos nossos vivos<br />

e encantados e <strong>por</strong> nosso território.<br />

Nossa ligação com a Mãe Terra (nossa<br />

grande Mãe) é gigantesca e, <strong>por</strong><br />

isso, hoje, demarcação é uma pauta<br />

que chamamos 'feminismo Indígena'.<br />

Nós atuamos na preservação e cuidados<br />

com a Terra. Na medida em que<br />

vai sendo degradada, nós também vamos<br />

perdendo a vida. Com o golpe<br />

Juliana Afonso | Gabinetona<br />

126 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


dado em uma presidenta, fica claro<br />

nossa analogia de que quanto mais se<br />

degrada a Mãe Terra, mais se degrada<br />

a figura da mulher no país e no mundo<br />

culturalmente, em uma crescente misoginia.<br />

O que fizeram ao Rio Watu<br />

(Rio Doce), sagrado dos parentes Krenak,<br />

é resultado desse descaso com a<br />

Grande Mãe. Mataram um rio e tudo<br />

que ele significava. Nós, indígenas, jamais<br />

mataríamos um rio”, desabafa<br />

novamente com o choro embargado.<br />

Avelin chama a atenção para o<br />

poder das mineradoras. “<strong>Elas</strong> fazem o<br />

que querem no país e nas Minas Gerais,<br />

cujo nome já diz 'Minas'. Deveríamos<br />

ser o Estado das 'Águas Gerais',<br />

mas nossa água está sendo levada para<br />

ex<strong>por</strong>tar minério (mineroduto) e nossos<br />

rios assassinados como foi o crime<br />

em Mariana e aqui, ao nosso lado. Na<br />

retomada indígena na cidade de Brumadinho,<br />

o Rio Paraopeba agoniza<br />

atrás da fachada do Inhotim, museu<br />

que esconde a mineração dos olhos<br />

das pessoas, mas a poluição não dá pra<br />

esconder. Não houve resposta ou solução<br />

para o crime Vale/Samarco e a resposta<br />

virá dos povos indígenas,<br />

originalmente protetores da Mãe<br />

Terra. Por isso, reforço a ajuda à retomada<br />

Naô Xohã, em Brumadinho, para<br />

que possamos preservar o que resta de<br />

mata e os animais, e o Rio Paraopeba.<br />

Chega de Mineração”, afirma. A retomada<br />

está conseguindo reunir em<br />

uma mesma terra dezenas de indígenas<br />

de diversas nações que viviam em<br />

Belo Horizonte e região.<br />

Se a luta pela terra é feminina, também<br />

é preciso destacar a força de cada<br />

indígena chamada, carinhosamente,<br />

<strong>por</strong> Avelin de 'Guerreira'. “Eu gosto<br />

dessa expressão. Assim é a mulher<br />

Kambiwá, uma guerreira que trabalha<br />

muito. É brava, brigona, lutadora e não<br />

fica parada esperando as coisas cairem<br />

do céu. Em toda minha infância, nunca<br />

vi minha avó e minha mãe ficarem de<br />

braços cruzados. A mulher Kambiwá<br />

é respeitada e tem seu lugar dentro de<br />

todas as instâncias da comunidade, inclusive<br />

políticas. Apesar de toda opressão<br />

de gênero, que desde a invasão<br />

acontece e impera”, ressalta.<br />

Desde a colonização, quando houve<br />

massacre de diversos povos indígenas<br />

do país, a situação nunca foi favorável.<br />

A ganância pelo dinheiro sempre destruiu<br />

matas, rios, montanhas e povos<br />

indígenas e quilombolas. Além da colonização<br />

que matou milhares de indígenas,<br />

Avelin nos lembra da ditadura<br />

militar que, além de encarcerar centenas,<br />

matou 8 mil indígenas de diferentes<br />

povos. “Estes nem foram contabilizados.<br />

História silenciada”, afirma<br />

Avelin ao reforçar que hoje o agronegócio<br />

também tenta acabar com o que<br />

restou. “Precisamos, urgentemente,<br />

de demarcação das terras indígenas,<br />

essa é a nossa maior luta. Não existe<br />

BEM VIVER sem o território e os indígenas<br />

que migram para as cidades<br />

têm que ter seus direitos garantidos<br />

e sua cultura respeitada. Atualmente,<br />

“Mataram um rio e<br />

tudo que ele significava.<br />

Nós, indígenas,<br />

jamais mataríamos<br />

um rio”<br />

nós somos uma população de mais de<br />

900 mil pessoas tendo negado os direitos<br />

básicos à saude e à educação,<br />

mas principalmente nos é negado o<br />

direito a ter uma identidade. Existe<br />

um medo no país de ter raízes e também<br />

um medo do outro. Nós indígenas<br />

estamos sempre sendo mitificados,<br />

mas não nos deixam falar de nós mesmos.<br />

Somos negligenciados até em situações<br />

que se presa pela 'igualdade racial'.<br />

Nós não queremos ser iguais,<br />

queremos ser o outro, sim, e essa alteridade<br />

nos é especial e nos faz indígenas<br />

tronco e raiz dessa nação chamada<br />

agora de Brasil”, afirma.<br />

Kuekaturete! (muito obrigada!) Assim<br />

se despede Avelin em nossa conversa,<br />

desejando ver um Brasil que<br />

lute pela retomada da democracia e<br />

da defesa dos direitos dos menos favorecidos<br />

deste país.<br />

Indígenas no Brasil<br />

De acordo com o último censo do IBGE<br />

(Instituto Brasileiro de Economia e<br />

Estatística), em 2010 havia 817.693 indígenas<br />

no Brasil, dos quais 502.783<br />

no meio rural e 315.180 no ambiente urbano.<br />

Em Minas, de acordo com o<br />

Centro de Documentação Eloy Ferreira<br />

da Silva, há 13 etnias pertencentes ao<br />

tronco linguístico Macro-Jê, com cerca<br />

de 15 mil indivíduos aldeados.<br />

Só na capital, segundo o IBGE, há<br />

3.477 membros de alguma etnia indígena.<br />

Em Uberlândia, 926; em Contagem,<br />

810; em Ribeirão das Neves, 677;<br />

em Betim, 498. Já o número de aldeias<br />

costuma variar, <strong>por</strong> conta das<br />

migrações e formação de novas aldeias.<br />

Em todos esses lugares, um dos<br />

grandes problemas enfrentados é o<br />

preconceito.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

127


POUCAS E BOAS<br />

Professora transexual troca<br />

indenização <strong>por</strong> aula a seus agressores<br />

Leopoldo Silva<br />

INTERNET<br />

http://mulheresaudiovisual.com.br/<br />

Um site dedicado ao protagonismo das<br />

mulheres do audiovisual. Uma plataforma<br />

que resgata as referências e contribuições<br />

nas artes, a partir de uma perspectiva<br />

feminista. No site, há disponível uma biblioteca<br />

com nomes e obras de diversas<br />

mulheres que fizeram e fazem história<br />

no Cinema, Rádio & TV e Música.<br />

Fonte: BBC Brasil<br />

A professora de matemática Natalha<br />

Nascimento deu uma aula de cidadania,<br />

em Brasília, em agosto. Dentro de uma<br />

sala do Fórum de Justiça, falou para<br />

40 funcionários de uma pastelaria. O<br />

motivo do encontro foi um processo<br />

judicial movido <strong>por</strong> Natalha contra a<br />

tradicional pastelaria Viçosa, localizada<br />

na rodoviária de Brasília, um dos locais<br />

de maior movimento na capital federal.<br />

Ela sofreu agressões e xingamentos<br />

diários <strong>por</strong> parte de um grupo de funcionários<br />

do estabelecimento. “Eu não<br />

tinha outra alternativa. Para pegar o<br />

ônibus para casa, eu só podia passar<br />

em frente à pastelaria e tinha que aturar<br />

esses xingamentos", lembra.<br />

O caso se agravou quando ela decidiu<br />

conversar, pedindo para que parassem.<br />

Um deles a derrubou no chão<br />

e a agrediu violentamente.<br />

"Fiquei sem reação. Humilhada, só<br />

me perguntava <strong>por</strong> que aquilo acontecera<br />

comigo. Estudei, trabalhei, tentei<br />

ser o melhor que pude, mas o fato de<br />

ser uma mulher transexual me fez construir<br />

toda a minha vida em cima do<br />

medo, desde criança", desabafou.<br />

Durante a conciliação judicial, a<br />

professora abriu mãos dos R$20mil<br />

de indenização pedindo em troca a<br />

chance de dar à equipe da pastelaria<br />

uma aula sobre aspectos biológicos<br />

e com<strong>por</strong>tamentais dos transgêneros,<br />

direitos, violência contra os desiguais<br />

e a im<strong>por</strong>tância de denunciar<br />

atos discriminatórios.<br />

“Foi a ignorância que me fez sofrer<br />

<strong>por</strong> todos esses anos e quero<br />

acabar com ela com a eduçação”,<br />

disse a maranhense de 35 anos.<br />

"Não tem dinheiro no mundo que<br />

valha a minha dignidade e respeito.<br />

Moro na favela mais perigosa do<br />

Distrito Federal e quero transitar livremente<br />

sem ter medo de morrer<br />

ou ser assassinada <strong>por</strong> ser quem<br />

sou", disse. Ela acredita que o único<br />

jeito de viver isso é “pela educação,<br />

que pode transformar uma sociedade<br />

violenta, preconceituosa e<br />

corrupta.”<br />

https://azmina.com.br/<br />

AzMina é uma instituição sem fins lucrativos<br />

cujo objetivo é usar a informação<br />

para combater os diversos tipos de violência<br />

que atingem mulheres brasileiras.<br />

O coletivo realiza consultorias, palestras<br />

e debates para aprofundar a discussão<br />

sobre os direitos da mulher.<br />

https://hysteria.etc.br/<br />

Hysteria é uma plataforma de conteúdo<br />

sonhada, criada e produzida <strong>por</strong> mulheres.<br />

Nasce do desejo de ampliar vozes<br />

<strong>por</strong> meio de vídeos, textos, podcasts e<br />

qualquer outro formato que fortaleça o<br />

protagonismo da mulher.<br />

128 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong>


LIVROS<br />

FILMES<br />

Quem tem medo do feminismo negro?<br />

Autora: Djamila Ribeiro<br />

Editora: Companhia das Letras, <strong>2018</strong><br />

“Quem tem medo do feminismo negro?” reúne um ensaio autobiográfico<br />

inédito e uma seleção de artigos publicados <strong>por</strong><br />

Djamila Ribeiro no blog da revista Carta Capital, entre 2014 e<br />

2017. No texto de abertura, a filósofa e militante recupera memórias<br />

de seus anos de infância e adolescência para discutir<br />

o que chama de “silenciamento”, processo de apagamento da<br />

personalidade <strong>por</strong> que passou e que é um dos muitos resultados perniciosos da<br />

discriminação. Foi apenas no final da adolescência, ao trabalhar na Casa de<br />

Cultura da Mulher Negra, que Djamila entrou em contato com autoras que a<br />

fizeram ter orgulho de suas raízes e não mais querer se manter invisível. Desde<br />

então, o diálogo com autoras como Chimamanda Ngozi Adichie, Bell Hooks, Sueli<br />

Carneiro, Alice Walker, Toni Morrison e Conceição Evaristo é uma constante.<br />

O Processo (<strong>2018</strong>)<br />

Direção: Maria Augusta Ramos<br />

O Processo oferece um olhar pelos<br />

bastidores do julgamento que culminou<br />

no golpe da ex-presidenta Dilma Rousseff<br />

em 31 de agosto de 2016. O filme<br />

testemunha a profunda crise política e<br />

o colapso das instituições democráticas<br />

no país.<br />

Niketche: Uma história de poligamia<br />

Autora: Paulina Chiziane<br />

Editora: Caminho outras margens, 2002<br />

Casada com Tony há 20 anos, Rami descobre que o marido<br />

tem várias mulheres em outras regiões de Moçambique. Paulina<br />

Chiziane, primeira moçambicana a publicar um romance,<br />

combina humor e lirismo neste retrato da cultura moçambicana<br />

tradicional e das relações entre homem e mulher num<br />

país em que a poligamia é um costume arraigado.<br />

A mulher habitada<br />

Autora: Gioconda Belli<br />

Editora: Novela, 1992<br />

América Latina, década de 70. Ditaduras militares impõem<br />

regimes de terror contra os quais grupos de revolucionários<br />

idealistas se rebelam. Uma situação muito parecida com<br />

fatos ocorridos quase 500 anos antes, quando os espanhóis<br />

chegaram à América em busca do ouro, sob pretexto da<br />

evangelização. Conquistadores ferozes que esmagaram e<br />

exterminaram a resistência indígena. Nessas situações extremas,<br />

duas mulheres oprimidas abandonam o tradicional papel submisso que<br />

lhes era reservado pela sociedade e, em nome do amor, engajam-se na luta pela<br />

liberdade. Itzá e Lavínia, duas mulheres separadas <strong>por</strong> quatro séculos e unidas<br />

em um sonho romântico de liberdade. A história da autora Gioconda Belli bem<br />

poderia ser a de qualquer dessas duas mulheres. Libertária, essa escritora nicaraguense,<br />

antes de dedicar-se à literatura, militou na guerrilha sandinista que<br />

derrubou o ditador Somoza. A experiência é a base deste romance de estréia, publicado<br />

em 1992, que narra o entrelaçamento da vida dessas duas heroínas.<br />

A batalha das colheres (2015)<br />

Direção: Fabiana Leite<br />

O filme protagoniza o cotidiano de um<br />

pequeno lugarejo onde a violência contra<br />

a mulher é ainda naturalizada e as políticas<br />

públicas destinadas às mulheres<br />

não alcançam, caracterizando a realidade<br />

de muitos lugares espalhados pelo Brasil,<br />

o que determina a necessidade de as<br />

mulheres construírem alternativas para<br />

fazerem cessar as violências cotidianas.<br />

De cierta manera (1977)<br />

Direção: Sara Gomez<br />

Primeiro longa dirigido <strong>por</strong> uma mulher<br />

em Cuba, De Cierta Manera conta a<br />

história de um casal em Cuba após a<br />

Revolução. Mesclando ficção e documentário,<br />

Sara Gómez apresenta as<br />

contradições e dificuldades desse contexto<br />

na bairro de Miraflores, subúrbio<br />

de Havana.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

129


Retrato<br />

Arquivo pessoal<br />

A professora Heley de Abreu<br />

ficou conhecida no mundo inteiro, no dia 5 de<br />

outubro de 2017, pelo seu ato de heroísmo.<br />

Ela perdeu sua vida para salvar 25 crianças,<br />

no incêndio provocado pelo vigia Damião dos<br />

Santos, em uma creche em Janaúba (MG).<br />

A professora abraçou-se ao vigilante para<br />

impedir que ele continuasse o ataque e retirou<br />

as crianças feridas do local. Familiares e<br />

amigos afirmam que Heley de Abreu era uma<br />

pessoa divertida, solidária e cheia de vida.


Muitas fugiam ao me ver<br />

Muitas fugiam ao me ver<br />

Pensando que eu não percebia<br />

Outras pediam pra ler<br />

Os versos que eu escrevia<br />

Era papel que eu catava<br />

Para custear o meu viver<br />

E no lixo eu encontrava livros para ler<br />

Quantas coisas eu quiz fazer<br />

Fui tolhida pelo preconceito<br />

Se eu extinguir quero renascer<br />

Num país que predomina o preto<br />

Adeus! Adeus, eu vou morrer!<br />

E deixo esses versos ao meu país<br />

Se é que temos o direito de renascer<br />

Quero um lugar, onde o preto é feliz.<br />

Carolina Maria de Jesus, em Antologia pessoal.<br />

(Organização José Carlos Sebe Bom Meihy). Rio<br />

de Janeiro: Editora UFRJ, 1996.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Outubro <strong>2018</strong><br />

131


www.sinprominas.org.br<br />

OUTUBRO <strong>2018</strong><br />

NÚMERO 11

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