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Revista Elas por elas 2017

A revista sobre gênero Elas por Elas foi criada, em 2007, com o objetivo de dar voz às mulheres e incentivar a luta pela emancipação feminina. A revista enfatiza as questões de gênero e todos os temas que perpassam por esse viés. Elas por Elas traz reportagens sobre mulheres que vivenciam histórias de superação e incentivam outras a serem protagonistas das mudanças, num processo de transformação da sociedade. A revista aborda temas políticos, comportamentais, históricos, culturais, ambientais, literatura, educação, entre outros, para reflexão sobre a história de luta de mulheres que vivem realidades diversas.

A revista sobre gênero Elas por Elas foi criada, em 2007, com o objetivo de dar voz às mulheres e incentivar a luta pela emancipação feminina. A revista enfatiza as questões de gênero e todos os temas que perpassam por esse viés. Elas por Elas traz reportagens sobre mulheres que vivenciam histórias de superação e incentivam outras a serem protagonistas das mudanças, num processo de transformação da sociedade. A revista aborda temas políticos, comportamentais, históricos, culturais, ambientais, literatura, educação, entre outros, para reflexão sobre a história de luta de mulheres que vivem realidades diversas.

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Ocupação:<br />

substantivo<br />

feminino<br />

O protagonismo das mulheres nas ocupações<br />

estudantis contra os ataques à educação<br />

Longe de casa<br />

Refugiadas buscam reconstruir<br />

suas vidas no Brasil<br />

Da lama à luta<br />

Mulheres atingidas <strong>por</strong> um dos maiores<br />

crimes socioambientais do país reescrevem<br />

uma nova história de vida


A resistência<br />

das mulheres<br />

<strong>2017</strong> será destaque na história do Brasil<br />

como um ano de intensas lutas<br />

O Dia Internacional da Mulher foi<br />

marcado <strong>por</strong> manifestações em todo<br />

o mundo. No Brasil, o movimento #8M<br />

Eu Paro tornou-se um marco nos atos<br />

de resistência contra o golpe jurídico,<br />

parlamentar, midiático e misógino,<br />

ocorrido no país em 2016. Mulheres<br />

combativas gritaram “Fora Temer” de<br />

canto a canto do Brasil. <strong>Elas</strong> também<br />

foram protagonistas nas ocupações estudantis<br />

contra a reforma do Ensino<br />

Médio e os ataques à educação. Estiveram<br />

à frente da maior greve geral já<br />

realizada no país, que aconteceu no<br />

centenário da histórica greve de 1917,<br />

quando as mulheres também tiveram<br />

um im<strong>por</strong>tante papel. Neste ano também<br />

comemoramos os 100 anos da<br />

Revolução Russa, deflagrada a partir<br />

de protestos de mulheres em uma indústria<br />

têxtil, que trouxe, junto a outros<br />

inúmeros direitos dos trabalhadores,<br />

muitas conquistas feministas.<br />

Se ao longo da história, a trajetória<br />

de luta das mulheres mostra a sua capacidade<br />

de resistência, agora, mais<br />

que nunca, é preciso encher-se de co-<br />

ragem e lutar como uma mulher para<br />

barrar os retrocessos políticos e sociais.<br />

Assim como fizeram as senadoras<br />

que ocuparam a mesa do Senado<br />

para tentar barrar a votação da reforma<br />

trabalhista.<br />

A elite que serve ao capital quer<br />

enfraquecer a luta coletiva, atacando<br />

os sindicatos e os movimentos sociais<br />

que ocupam as ruas e resistem às investidas<br />

neoliberais.<br />

Com o governo Temer, medidas<br />

como o congelamento dos recursos<br />

para áreas da saúde e educação, assim<br />

como a terceirização irrestrita de serviços,<br />

a reforma trabalhista e o retrocesso<br />

nas políticas para as mulheres<br />

já causaram um grande atraso social,<br />

político e econômico.<br />

É im<strong>por</strong>tante frisar que a retirada<br />

de direitos e políticas retrógradas aumentam<br />

a desigualdade de gênero. Portanto,<br />

precisamos exigir a retomada<br />

das propostas que visam à superação<br />

das desigualdades relacionadas às mulheres<br />

na educação, saúde, trabalho,<br />

cultura e es<strong>por</strong>te. E só um governo<br />

com um programa progressista e eleito<br />

democraticamente pelo voto pode fazer<br />

isso. Portanto, que ecoe, além do Fora<br />

Temer, o grito p<strong>elas</strong> Diretas já!<br />

É nesse contexto que lançamos a<br />

10ª edição da revista <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong>.<br />

Agradecemos a colaboração de todas e<br />

todos que contribuem, ano a ano, para<br />

que essa publicação seja um im<strong>por</strong>tante<br />

instrumento do Sindicato dos<br />

Professores do Estado de Minas Gerais<br />

e possa incentivar as reflexões e lutas<br />

pela eliminação de todas as formas<br />

de discriminação de gênero, raça,<br />

etnia e classe.<br />

Essa edição da <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> traz<br />

várias pautas instigantes para que possamos<br />

aprofundar o debate nas questões<br />

de gênero. Continuaremos a lutar<br />

<strong>por</strong> ações e políticas que promovam<br />

avanços nas pautas de igualdade de<br />

gênero, raça, etnia e classe. A força<br />

está na unidade, mobilização e luta!<br />

Boa leitura!<br />

Valéria Morato<br />

Presidenta do Sinpro Minas<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

3


ESPECIAL<br />

<strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong>: 10 anos<br />

<strong>Revista</strong> se consolida como um espaço<br />

de debate qualificado sobre gênero<br />

Pág 6<br />

CAPA<br />

Ocupação:<br />

substantivo<br />

feminino<br />

O protagonismo das<br />

mulheres nas ocupações<br />

estudantis contra os<br />

ataques à educação<br />

Pág 30<br />

HOMENAGEM<br />

Comenda Clara Zetikin<br />

Honraria do Sinpro Minas à<br />

mulheres de luta<br />

ARTIGO<br />

O hiato de gênero no<br />

desempenho em<br />

Matemática: o caso<br />

de Belo Horizonte<br />

Pág 38<br />

MEIO AMBIENTE<br />

Da lama à luta<br />

Mulheres atingidas <strong>por</strong> um<br />

dos maiores crimes socioambientais<br />

do país reescrevem uma nova<br />

história de vida<br />

Pág 12<br />

DIREITOS HUMANOS<br />

Longe de casa<br />

Refugiadas buscam reconstruir<br />

suas vidas no Brasil<br />

POLÍTICA<br />

Golpe misógino<br />

Retirada de direitos e<br />

políticas retrógradas aumentam<br />

a desigualdade de gênero<br />

Pág 52<br />

Pág 16<br />

Pág 42<br />

ARTIGO<br />

Violência de gênero<br />

contra as mulheres:<br />

os desafios do cuidado<br />

Pág 60<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


RACISMO<br />

A solidão sentida na pele<br />

Afetividade e relacionamentos interraciais<br />

na pauta do feminismo negro<br />

COMPORTAMENTO<br />

Pelo direito de<br />

envelhecer dignamente<br />

Mulheres ressignificam o<br />

envelhecimento feminino<br />

ARTIGO<br />

Carmen Miranda,<br />

novas representações<br />

e narrativas na<br />

contem<strong>por</strong>aneidade<br />

Pág 106<br />

PERFIL<br />

Elza Soares: uma mulher<br />

do fim do mundo<br />

Pág 110<br />

Pág 64<br />

Pág 86<br />

MEMÓRIA<br />

Gilse Cosenza deixa<br />

legado de resistência<br />

FEMINISMO<br />

Quem tem medo da<br />

linguagem não-sexista?<br />

Manual mostra como a linguagem<br />

pode reforçar ou combater<br />

estereótipos de gênero<br />

GENERO<br />

Pela visibilidade lésbica<br />

<strong>Elas</strong> querem ocupar os espaços na<br />

sociedade para reivindicar respeito<br />

e o fim da lesbofobia<br />

Pág 96<br />

CULTURA<br />

As minas do hip hop<br />

<strong>Elas</strong> ocupam cada vez mais<br />

espaço na cena urbana e protestam<br />

contra o machismo<br />

Pág 116<br />

Pág 74<br />

POUCAS E BOAS<br />

INTERNET<br />

Pág 120<br />

ARTIGO<br />

Aborto:uma<br />

questão além do<br />

bem e do mal<br />

Pág 82<br />

Pág 100<br />

LIVROS<br />

FILMES<br />

RETRATO<br />

Pág 121<br />

Pág 122<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


Departamento de Comunicação do Sinpro Minas: comunicacao@sinprominas.org.br<br />

Diretores responsáveis: Aerton Silva, Clarice Barreto e Gilson Reis;<br />

Editora/Jornalista responsável: Débora Junqueira (MG05150JP);<br />

Redação: Carina Santos (MG13115JP), Cecília Alvim (MG09287JP),<br />

Denilson Cajazeiro (MG09943JP), e Nanci Alves (MG003152JP;<br />

Projeto gráfico e Diagramação: Mark Florest;<br />

Revisão: Aerton Silva<br />

Foto capa: Rovena Rosa - Agência Brasil<br />

Conselho Editorial: Antonieta Mateus, Clarice Barreto, Lavínia Rodrigues, Maria Izabel Bebela Ramos,<br />

Marilda Silva, Liliani Salum Moreira, Luliane Linhares, Soraya Abuid, Terezinha Avelar e Valéria Morato.<br />

Impressão: EGL-Editores Gráficos Ltda - Tiragem: 2.000:<br />

Distribuição gratuita: Circulação dirigida<br />

REVISTA ELAS POR ELAS<br />

PUBLICAÇÃO DO DEPARTAMENTO DE<br />

COMUNICAÇÃO DO SINPRO MINAS<br />

ANO XI - Nº 10 - AGOSTO DE <strong>2017</strong><br />

ACESSE AS EDIÇÕES ANTERIORES EM<br />

www.sinprominas.org.br<br />

<strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>elas</strong> - nº 9<br />

Diretoria Gestão 2016/2020<br />

Adelmo Rodrigues de Oliveira, Aerton de Paulo Silva, Albanito Vaz Júnior, Alessandra Cristina Rosa, Alexandre Durann<br />

Matos, Alina Machado Moreira, Altamir Fernandes de Sousa, Ângela Maria da Silva Gomes, Ângelo Filomeno Palhares Leite,<br />

Antonieta Shirlene Mateus, Antônio Marcos das Chagas, Aparecida Gregório Evangelista da Paixão, Arnaldo Oliveira Júnior,<br />

Beatriz Claret Torres, Braulio Pereira dos Santos, Bruno Burgarelli Albergaria Kneipp, Camillo Rodrigues Júnior, Carla Fenícia<br />

de Oliveira, Carlos Afonso de Faria Lopes, Carlos Magno Machado, Carlos Roberto Schutte Junior, Carolina Azevedo<br />

Moreira, Cecilia Maria Vieira Abrahão, Celina Alves Padilha Arêas, Cid Indalécio Moreira Alves, Clarice Barreto Linhares,<br />

Claudia Nunes dos Santos Silva, Clédio Matos de Carvalho, Clovis Alves Caldas Filho, Décio Braga de Souza, Diogo Oliveira,<br />

Edson de Oliveira Lima, Edson de Paula Lima, Eduardo Arreguy Campos, Eliana Assunção Franco Codignole, Fábio dos<br />

Santos Pereira, Fabio Marinho dos Santos, Fátima Amaral Ramalho, Fernando Dias da Silva, Fernando Lucio Correia, Filipe<br />

Luis dos Santos, Francine Fernandes Cruz, Franz Lima Petrucelli, Geraldo Fabio Alves de Souza, Gilson Luiz Reis, Gisele<br />

Andrea Satrapa Oliveira, Grace Marisa Miranda de Paula, Guilherme Caixeta Borges, Haida Viviane Palhano Arantes,<br />

Handerson Correa Gomes, Heber Paulino Pena, Hélcia Amélia de Menezes Quintão Simplício, Helena Vicentina Flores, Heleno<br />

Célio Soares, Henrique Moreira de Toledo Salles, Hermes Honório da Costa, Hugo Gonçalves Soares, Humberto de Castro<br />

Passarelli, Idelmino Ronivon da Silva, Inez Grigolo Silva, Isabela Maria Oliveira Catrinck, Jaderson Teixeira, Jaqueline<br />

Rodrigues Gouveia Gomes, Jefferson Costa Guimarães, João Francisco dos Santos, Jones Righi de Campos, José Carlos<br />

Padilha Arêas, Josiana Pacheco da Silva Martins, Josiane Soares Amaral Garcia, Juvenal Lima Gomes, Kelly Angelina dos<br />

Reis Oliveira, Kenya de Jesus Sodre, Leila Lucia Gusmão de Abreu, Leonardo Alves Rocha, Lilian Aparecida Ferreira de Melo,<br />

Liliani Salum Alves Moreira, Luiz Antonio da Silva, Luiz Carlos da Silva, Luiz Claudio Martins Silva, Luliana de Castro Linhares,<br />

Marco Antonio Ramos, Marcos Antonio de Oliveira, Marcos Gennari Mariano, Marcos Paulo da Silva, Marcos Vinícius Araújo,<br />

Maria Célia Silva Gonçalves, Maria Cristina Teixeira do Vale, Maria da Conceição Miranda, Maria da Glória Moyle Dias, Maria<br />

Elisa Magalhães Barbosa, Maria Luiza de Castro, Mariana Helena Moreira Nascimento, Marilda Silva, Marilia Ferreira Lopes,<br />

Mario Roberto Martins de Souza Silva Braga, Marta Betânia Pereira Pimenta, Mateus Júlio de Freitas, Messias Simão<br />

Telecesqui, Miguel Jose de Souza, Miriam Fátima dos Santos, Moises Arimateia Matos, Mônica Junqueira Cardoso Lacerda,<br />

Nalbar Alves Rocha, Nelson Luiz Ribeiro Da Silva, Newton Pereira de Souza, Orlando Pereira Coelho Filho, Paola Notari<br />

Pasqualini, Patricia de Oliveira Costa, Petrus Ferreira Ricetto, Pitágoras Santana Fernandes, Ricardo de Albuquerque<br />

Guimarães, Robson Jorge de Araújo, Rockefeller Clementino da Silva, Rodrigo Rodrigues Ferreira, Rodrigo Souza de Brito,<br />

Rogerio Helvídio Lopes Rosa, Rossana Abbiati Spacek, Rozana Maris Silva Faro, Sandra Lúcia Magri, Sandra Maria Nogueira<br />

Vieira, Sebastião Geraldo de Araújo, Silvio Rodrigo de Moura Rocha, Simone Esterlina de Almeida Miranda, Siomara Barbosa<br />

Candian Iatarola, Sirlane Zebral Oliveira, Sirley Trindade Vilela Lewis, Tarcisio Fonseca da Silva, Telma Patrícia de Moraes<br />

Santos, Teodoro José Eustáquio de Oliveira, Terezinha Lúcia de Avelar, Thais Claudia D’Afonseca da Silva, Uldelton Paixão<br />

Espírito Santo, Umbelina Angélica Fernandes, Valéria Peres Morato Gonçalves, Vera Cruz Spyer Rabelo, Vera Lucia Alfredo,<br />

Virgínia Ferreira Ramos e Wellington Teixeira Gomes,<br />

SINDICATO DOS PROFESSORES DO ESTADO DE MINAS GERAIS<br />

SEDE: Rua Jaime Gomes, 198 - Floresta - CEP: 31015.240 - Fone: (31) 3115 3000<br />

Belo Horizonte/MG - www.sinprominas.org.br<br />

SINPRO CERP - Centro de Referência dos Professores da Rede Privada<br />

Rua Tupinambás, 179 - Centro - CEP: 30.120-070 - BH - Fone: (31) 3274 5091<br />

REGIONAIS:<br />

Barbacena: Rua Silva Jardim, 425 - Boa Morte - CEP: 36201-004 - Fone: (32) 3331-0635; Cataguases:<br />

Rua Major Vieira, 300 - sala 04 - Centro - CEP: 36770-060 - Fone: (32) 3422-1485; Coronel Fabriciano:<br />

Rua Moacir D'Ávila, 45 - Bairro dos Professores - CEP: 35170-014 - Fone: (31) 3841-2098; Di vinópolis: Av:<br />

Amazonas, 1.060 - Sidil - CEP: 35500-028 - Fone: (37) 3221-8488; Governador Valadares: Rua Benjamin<br />

Constant, 653 - Térreo - Centro - CEP: 35010-060 - Fone: (33) 3271-2458; Montes Claros: Rua Januária,<br />

672 - Centro - CEP: 39400-077 - Fone: (38) 3221-3973; Paracatu: Rua Olhos D’água, 92 - Centro - CEP:<br />

38600-000 - Fone: (38) 3672-1830; Patos de Minas: Rua José Paulo Amorim, 150 - Guanabara - CEP:<br />

38701-174 - Fone: (34) 3823-8249; Poços de Caldas: Rua Mato Grosso, 275 - Centro, CEP: 37701-006 -<br />

Fone: (35) 3721-6204; Ponte Nova: Av. Dr. Otávio Soares, 41 - salas 326 e 328 - Palmeiras - CEP: 35430-<br />

229 - Fone: (31) 3817-2721; Pouso Alegre: Rua Dom Assis, 241 - Centro - CEP: 37550-000 - Fone: (35) 3423-<br />

3289; Sete Lagoas: Rua Vereador Pedro Maciel, 165 - Nossa Senhora das Graças - CEP: 35700-477 - Fone:<br />

(31) 3772-4591; Teófilo Otoni: Rua Dr. Manoel Esteves, 323 - sala 404 - Centro - CEP: 39800-090 - Fone:<br />

(33) 3523-6913; Uberaba: Rua Alfen Paixão, 105 - Mercês - CEP: 38060-230 - Fone: (34) 3332-7494; Uberlândia:<br />

Rua Olegário Maciel, 1212 - Centro - CEP: 38400-086 - Fone: (34) 3214-3566; Varginha: Av. Doutor<br />

Módena, 261 - Vila Adelaide - CEP: 37010-190 - Fone: (35) 3221-1831.<br />

6 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


POR<br />

Especial<br />

Débora Junqueira<br />

<strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong>:<br />

10 anos<br />

<strong>Revista</strong> se consolida como um espaço de<br />

debate qualificado sobre gênero<br />

Da efervescência de ideias da diretoria<br />

do Sinpro Minas, durante um seminário<br />

de planejamento de início de<br />

gestão, surgiu a iniciativa de editar<br />

uma publicação produzida pelo Sindicato<br />

dos Professores que abordasse<br />

a temática gênero com um viés educativo,<br />

progressista e classista. Em abril<br />

de 2007, nasceu a primeira edição da<br />

revista <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong>, com periodicidade<br />

anual. A revista também passou a fazer<br />

parte das ações do Sinpro Minas pelo<br />

Dia Internacional da Mulher e das lutas<br />

do sindicato em apoio à emancipação<br />

feminina, que vão além desta data histórica.<br />

Para o sindicato, as questões<br />

que envolvem a igualdade de gênero<br />

devem ser pautadas todos os dias.<br />

Em <strong>2017</strong>, a revista <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong><br />

completa 10 anos de existência. Para a<br />

diretoria do Sinpro Minas a revista se<br />

firmou como uma publicação im<strong>por</strong>tante<br />

para divulgar as lutas feministas<br />

e aprofundar o debate sobre as<br />

questões de gênero, cumprindo um<br />

papel educativo.<br />

Nas re<strong>por</strong>tagens da revista, feministas,<br />

especialistas e mulheres anônimas<br />

contam, decifram e pro ble -<br />

matizam temas relacionados às<br />

questões de gênero. <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>elas</strong> mesmas<br />

revelam as suas angústias, alegrias<br />

e lutas formando um rico conteúdo<br />

valorizado <strong>por</strong> uma diagramação<br />

primorosa. Em sua pauta, a revista<br />

sempre aborda temas como educação,<br />

trabalho, política, feminismo, questões<br />

étnico-raciais, violência doméstica,<br />

saúde, beleza, com<strong>por</strong>tamento, arte e<br />

história, com ênfase no protagonismo<br />

das mulheres para superar os desafios<br />

de uma sociedade machista, patriarcal<br />

e capitalista. Com conteúdos que retratam<br />

profundas reflexões sobre<br />

gênero na contem<strong>por</strong>aneidade, a<br />

revista tem o objetivo de incentivar estudos,<br />

debates e inspirações para<br />

atitudes comprometidas com os ideais<br />

de uma sociedade mais justa e igualitária.<br />

Dessa forma, o Sinpro Minas<br />

contribui para disseminar novas<br />

ideias, reflexões e incentivar atitudes<br />

e políticas que têm como objetivo a<br />

emancipação de gênero.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

7


A revista <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> já foi reconhecida<br />

com premiações nacionais de<br />

jornalismo e tornou-se, ao longo dos<br />

anos, um im<strong>por</strong>tante instrumento de<br />

comunicação e de formação não só para<br />

o professorado, mas para toda a sociedade.<br />

Além de ser distribuída em mãos<br />

para os professores e professoras e disponibilizada<br />

em bibliotecas de várias<br />

escolas privadas, a revista circula entre<br />

as entidades representativas de gênero,<br />

mundo político e sindical, nacionalmente,<br />

e até mesmo em eventos fora do país,<br />

sendo distribuída em eventos sobre educação<br />

e trabalho. Em junho de 2015, a<br />

revista foi divulgada em encontro internacional<br />

de comunicadores, realizado<br />

em Nova Yok, promovido pela rede Images<br />

and Voices of Hope (IVOH) que estuda<br />

e incentiva mídias construtivas.<br />

Construção coletiva<br />

Assim como as mulheres que, a<br />

cada dia, constroem a sua história e<br />

vencem desafios, a <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> se<br />

consolida numa caminhada que conta<br />

com a dedicação e a contribuição de<br />

muitas pessoas. Além da equipe de<br />

jornalistas, designer e diretores do Departamento<br />

de Comunicação do Sinpro<br />

Minas, há um conselho editorial composto<br />

<strong>por</strong> diretoras e funcionárias do<br />

Sinpro Minas e convidadas.<br />

“A revista <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> é uma im<strong>por</strong>tante<br />

iniciativa do Sinpro Minas. A publicação<br />

possibilita condições para<br />

que a entidade paute as questões de<br />

gênero de forma sistemática e dê<br />

maior visibilidade para as lutas feministas”,<br />

opina a professora Lavínia<br />

Rosa Rodrigues, ex-diretora do Sinpro<br />

Minas e membro do Conselho Editorial<br />

da revista.<br />

Prêmio Nacional de Jornalismo<br />

Abdias Nascimento – Promovido pela<br />

Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj)<br />

– Re<strong>por</strong>tagens finalistas nas categorias<br />

Mídia Alternativa e Gênero:<br />

2011 - “Os desafios da profissão e da<br />

organização sindical das empregadas<br />

domésticas” - Débora Junqueira.<br />

2012 - “A pobreza no Brasil é feminina,<br />

negra e jovem” - Débora Junqueira - “Estatuto<br />

da Igualdade Racial” - Cecília Alvim<br />

2013 - “Fora das capas de revistas” -<br />

Débora Junqueira<br />

Prêmio Nacional de Jornalismo<br />

sobre Violência de Gênero” – Promovido<br />

pela Rede Feminista de Saúde,<br />

Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos,<br />

de Santa Catarina:<br />

2014 - Menção honrosa - Re<strong>por</strong>tagem<br />

“O parto é da mulher – movimentos<br />

denunciam a violência e propõem mudanças<br />

para promover o parto ativo e<br />

humanizado” - Cecília Alvim<br />

“Na época em que a revista foi criada,<br />

não se discutia gênero como hoje,<br />

no entanto, essa era uma necessidade<br />

para uma instituição classista como o<br />

Sindicato dos Professores. Ainda, havia<br />

a perspectiva do Brasil ter pela primeira<br />

vez uma mulher na Presidência da República,<br />

o que realmente ocorreu em<br />

2010. Ao longo dos anos, a revista ampliou<br />

suas pautas que atingem questões<br />

sociais e políticas e de classe, com uma<br />

abordagem moderna e fontes renomadas.<br />

É o tipo de revista que até os homens<br />

se interessam em ler e discutir<br />

os variados temas propostos. Acredito<br />

que a publicação cumpre aquele ideal<br />

inicial de ver o sindicato contribuindo<br />

para um debate reflexivo e educativo<br />

sobre as questões de gênero”, avalia a<br />

professora Carla Fenícia, diretora do<br />

Sinpro Minas, uma das idealizadoras<br />

da <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong>.<br />

Sempre presente nas lutas feministas,<br />

a deputada federal Jô Moraes<br />

(PCdoB) é uma fonte frequente na revista.<br />

“Acompanho a trajetória da revista<br />

<strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> desde a sua primeira edição.<br />

A revista se destaca <strong>por</strong> trazer não<br />

só a opinião de especialistas, mas <strong>por</strong><br />

abordar os dilemas reais de mulheres<br />

anônimas e guerreiras que superam o<br />

machismo e a desigualdade de gênero<br />

no dia a dia. Como mulher e parlamentar<br />

que atua em defesa das mulheres também<br />

fui fonte da revista <strong>por</strong> várias vezes<br />

e é muito bom poder contribuir com<br />

uma publicação de tanta qualidade e,<br />

ainda, produzida <strong>por</strong> um sindicato tão<br />

atuante como o Sinpro Minas. Considero<br />

merecidas as premiações que a revista<br />

já recebeu e parebenizo a toda equipe<br />

pelo trabalho desenvolvido ao longo<br />

desses anos”, afirma Jô Moraes.<br />

8 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


“A revista foi uma im<strong>por</strong>tante decisão<br />

da direção do Sinpro Minas para dar<br />

uma visão classista sobre as diversidades<br />

sociais, com uma abordagem sobre o<br />

movimento sindical e político que dificilmente<br />

tem espaço em outras publicações.<br />

É fundamental conceber as<br />

questões de gênero como uma questão<br />

de classe”, avalia a diretora do Sinpro<br />

Minas e secretária de formação da Central<br />

dos Trabalhadores e Trabalhadoras<br />

do Brasil (CTB), professora Celina Arêas.<br />

“A <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> é de uma qualidade<br />

editorial magnífica, bem produzida,<br />

bonita, com contéudo muito relevante<br />

que aborda ativismo político, participação<br />

das mulheres no mercado de<br />

trabalho, a inserção da educação no<br />

processo da construção do protagonismo<br />

feminimo. Esse é um mérito<br />

inegável da revista que mantém um<br />

conteúdo crítico de múltiplas dimensões<br />

da vida das mulheres. Ainda mais,<br />

feito <strong>por</strong> um sindicato de professores<br />

que tem em sua maioria mulheres professoras<br />

que podem ter um conteúdo<br />

para discutir em sala de aula ou ter a<br />

qualidade de uma informação baseada<br />

em dados. Eu desejo a <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong><br />

pelo menos mais uns 50 anos de existência,<br />

<strong>por</strong>que precisamos de conteúdos<br />

midiáticos alternativos para as mulheres<br />

e a <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> cobre essa lacuna<br />

que ainda temos no Brasil”, ressalta<br />

a professora Marlise Matos, pesquisadora<br />

do Núcleo de Estudos sobre<br />

a Mulher (Nepem/UFMG).<br />

A militante feminista Bebela Ramos<br />

acredita que fortalecer publicações como<br />

a revista <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> deveria ser atitude<br />

obrigatória dos que anseiam e defendem<br />

a igualdade entre os gêneros. “A revista,<br />

além de visualmente (graficamente) ser<br />

muito bonita, é de um conteúdo atual,<br />

forte e diversificado. O tema educação,<br />

sempre presente nas pautas da revista,<br />

faz de maneira lúcida o im<strong>por</strong>tante elo<br />

entre a maior categoria formada <strong>por</strong><br />

mulheres e sua representação sindical.<br />

Quarenta anos como feminista me legitima<br />

dizer que a revista <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong><br />

é uma publicação que se insere no grupo<br />

dos mais completos exemplares sobre<br />

o assunto, no Brasil”, afirma.<br />

A secretária de Imprensa e Comunicação<br />

da CTB, Raimunda Gomes (Doquinha)<br />

também ressalta a im<strong>por</strong>tância<br />

da revista <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> ser um veículo<br />

de comunicação que aborda questões<br />

gerais do mundo do trabalho, cotidiano<br />

da sociedade, e específicas de gênero,<br />

pela ótica das mulheres. “Nesse momento<br />

de complexidade das relações<br />

políticas, econômicas e sociais p<strong>elas</strong><br />

quais passa a sociedade brasileira, ter<br />

uma publicação como a revista <strong>Elas</strong><br />

<strong>por</strong> <strong>Elas</strong> circulando em todo território<br />

nacional é garantir a disputa ideológica<br />

da comunicação hegemônica com outra<br />

narrativa, mais ampla e democrática e<br />

de luta”, afirma.<br />

Como militante do movimento feminista,<br />

a professora e diretora do Sinpro<br />

Minas, Terezinha Avelar considera<br />

a revista um im<strong>por</strong>tante instrumento<br />

para dialogar com a sociedade sobre as<br />

pautas de gênero. “A revista <strong>Elas</strong> <strong>por</strong><br />

<strong>Elas</strong> é dinâmica, pois os temas sendo<br />

recorrentes, a pauta é abordada com<br />

profundidade e mostra a evolução do<br />

debate que acontece no movimento feminista<br />

sobre as diversas questões que<br />

afetam a sociedade”, comenta. Segundo<br />

ela, quando a revista é distribuída em<br />

eventos, as pessoas elogiam a iniciativa<br />

do Sindicato dos Professores. “As pessoas<br />

sempre destacam a qualidade da revista<br />

e parabenizam o Sinpro Minas”, conta.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

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10 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

11


12 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

Internet


POR<br />

homenagem<br />

Débora Junqueira<br />

Comenda<br />

Clara Zetkin<br />

Honraria do Sinpro Minas à mulheres de luta<br />

Desde 2012, o Sindicato dos Professores<br />

do Estado de Minas Gerais homenageia<br />

com a Comenda Clara Zetkin<br />

mulheres que contribuem para dar visibilidade,<br />

mobilizar e fortalecer a luta<br />

pelos direitos, participação política e<br />

igualdade de gênero, na perspectiva da<br />

conquista de uma sociedade justa e<br />

igualitária. A trajetória da alemã Clara<br />

Zetkin (1857-1933), uma figura histórica<br />

do feminismo <strong>por</strong> sua atuação como<br />

jornalista, professora e militante política,<br />

inspirou a diretoria do sinpro Minas a<br />

escolher o seu nome para a comenda<br />

criada no dia 13 de fevereiro de 2012.<br />

Para a presidenta do Sinpro Minas,<br />

Valéria Morato, é muito im<strong>por</strong>tante<br />

para o Sindicato dos Professores conceder<br />

a Comenda Clara Zetkin para<br />

mulheres valorosas que, nas mais diversas<br />

áreas de atuação, muito contribuem<br />

para uma sociedade mais igualitária<br />

e humana. “Numa sociedade em<br />

que as mulheres ganham salários menores,<br />

possuem tripla jornada de trabalho,<br />

sofrem violência doméstica e<br />

enfrentam uma série de adversidades,<br />

reconhecer os esforços dessas guerreiras<br />

que, além dos desafios diários,<br />

desenvolvem um trabalho de destaque<br />

na sociedade, é uma contribuição do<br />

Sinpro Minas para fortalecer as lutas<br />

pela igualdade de gênero”, afirma.<br />

Como é registrado na história, Clara<br />

Zetkin foi uma notável mulher que dedicou<br />

sua vida à luta pela igualdade de<br />

o<strong>por</strong>tunidades para as mulheres, o direito<br />

ao voto e à libertação da mulher<br />

trabalhadora. Em 1891, fundou a revista<br />

A Igualdade, formada <strong>por</strong> mulheres,<br />

que teve vigência até 1917, e se converteu<br />

no meio de expressão oficial da Internacional<br />

de Mulheres Socialistas. Foi<br />

uma revolucionária que, em 1910, durante<br />

uma conferência internacional<br />

de mulheres socialistas, em Copenhague,<br />

lançou a ideia de um dia internacional<br />

da mulher, o dia 8 de março. No<br />

ano seguinte um milhão de mulheres<br />

foram às ruas, no seu dia, na Europa e<br />

nos Estados Unidos da América.<br />

Em 1920, <strong>por</strong> seu duro trabalho<br />

para convocar um movimento de mulheres<br />

socialistas de diferentes países,<br />

tornou-se presidenta do Movimento<br />

Internacional de Mulheres Socialistas<br />

e deputada do Partido Comunista Alemão.<br />

Por sua disposição em deter o<br />

avanço do nazismo, a elegeram presidenta<br />

da Associação de Solidariedade<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

13


Socorro Vermelho e representante do<br />

Reichstag (Parlamento alemão). Porém,<br />

quando em 1933 Hitler assumiu o poder,<br />

ela teve que se exilar novamente. Nessa<br />

o<strong>por</strong>tunidade, escolheu a União Soviética,<br />

lugar onde passou os últimos<br />

dias de sua vida revolucionária. Morreu<br />

em 20 de junho de 1933, em Moscou,<br />

Rússia, aos 76 anos de idade. Seu corpo<br />

foi enterrado nas muralhas do Kremlin,<br />

ao lado dos heróis da revolução.<br />

A indicação das homenageadas que<br />

recebem a Medalha Clara Zetkin é feita<br />

p<strong>elas</strong> mulheres que compõem o Conselho<br />

Editorial da revista <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong><br />

e referendado pela diretoria do Sinpro<br />

Minas. A professora Lavínia Rosa Rodrigues<br />

(foto) faz parte do Conselho.<br />

Diretora do Sinpro Minas à época, ela<br />

foi a idealizadora da Comenda. Segundo<br />

ela, a escolha do nome da feminista<br />

Clara Zetkin para a Comenda surgiu<br />

na sequência das comemorações pelos<br />

100 anos do Dia Internacional da Mulher,<br />

ocorrido em 2010. “A Comenda<br />

Clara Zetkin reafirma a im<strong>por</strong>tância<br />

da luta que as feministas protagonizaram<br />

no início do século XX <strong>por</strong> mais<br />

direitos e que as mulheres continuam<br />

fazendo até hoje para o avanço da igualdade<br />

de gênero”, afirma.<br />

“Desde a retomada do Sindicato em<br />

1979, as diretorias da entidade sempre<br />

tiveram a tradição de promover homenagens<br />

em datas especiais. O sindicato<br />

também tem um papel ativo nas questões<br />

que envolvem gênero, desde a participação<br />

nos debates da Constituinte,<br />

origem de direitos como licença maternidade<br />

e outros, assim como nas<br />

conferências sobre gênero e lutas feministas.<br />

Desde 2007, fazemos o lançamento<br />

das edições da revista <strong>Elas</strong><br />

<strong>por</strong> <strong>Elas</strong>, tendo a o<strong>por</strong>tunidade de reconhecer<br />

as contribuições de pessoas<br />

de destaque nas lutas pelos direitos das<br />

mulheres. A partir de 2012, a entrega<br />

da Medalha foi incor<strong>por</strong>ada aos eventos<br />

em homenagem às mulheres”, conta.<br />

Para Lavínia, na sociedade de classes<br />

em que vivemos, valorizar a mulher é<br />

fortalecer toda a classe trabalhadora.<br />

“O Sinpro Minas exerce um im<strong>por</strong>tante<br />

papel quando valoriza mulheres de<br />

luta. A Comenda Clara Zetkin é também<br />

uma homenagem à toda categoria docente,<br />

que é majoritariamente feminina”,<br />

ressalta.<br />

Desde a criação da Comenda Clara<br />

Zetkin, mais de 100 mulheres já receberam<br />

a medalha oferecida pelo Sinpro<br />

Minas. Escolhidas entre mulheres dos<br />

mais variados setores da sociedade,<br />

<strong>por</strong> se destacarem nas lutas pelos direitos<br />

das mulheres, em defesa da igualdade<br />

de gênero e com grandes histórias<br />

de superação. São professoras, domésticas,<br />

médicas, motoristas, advogadas,<br />

donas de casa, trabalhadoras do campo<br />

ou da cidade, lésbicas, transgênero,<br />

atrizes, prostitutas, jovens e idosas...<br />

Mulheres que carregam dentro de si e<br />

em suas ações a esperança de um mundo<br />

com mais igualdade de gênero e de<br />

classe e menos opressão.<br />

Homenageadas de 2012 a 2016<br />

2012: Amanda Miranda Cunha de<br />

Moura, Célia de Lélis Moreira, Cleonice<br />

Ramos da Silva, Dalila Andrade Oliveira,<br />

Dorila Piló Veloso, Eliete de Oliveira<br />

Soares, Eni de Faria Sena, Fabrícia<br />

Roza Souza Rodrigues , Graziela da<br />

Costa Moreira Souza, Iara Martins dos<br />

Santos, Jacqueline Cavaca Soares<br />

Pontes, Jovita Levy, Lusia Ribeiro, Marcia<br />

Cristina Gonçalves Braga, Márcia<br />

Luciene Nascimento, Maria Alves de<br />

Souza, Maria Cecília Magalhães Gomes,<br />

Maria da Consolação Rocha, Marta de<br />

Freitas, Renata Adriana Rosa, Sandra<br />

de Fátima Pereira Tosta, Santuza Abras,<br />

Seuza Matos Marques e Sonia Soares<br />

de Oliveira.<br />

Mark Florest<br />

14 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


Mark Florest<br />

2013: Adana Kambeba, Ana Maria<br />

Prestes Rabelo, Andreia da Consolação<br />

Diniz, Antonia Maria da Rocha Montenegro,<br />

Carolina dos Santos de Oliveira,<br />

Daniela Matheus de Vasconcelos, Elaine<br />

de Fátima Ferreira Barros, Elaine Maria<br />

de Miranda, Fátima Silva Risério, Inês<br />

Peixoto, Lea Soutk, Lídia Viber, Mairyara<br />

Barbosa Loureiro Silveira, Márcia<br />

de Cássia Gomes , Márcia Randi, Maria<br />

Bernadeth Teixeira Fazito, Maria Cristina<br />

Leão, Maria de Lourdes Rocha de<br />

Lima, Maria Ester, Maria Nicolina Felga<br />

Soares, Sônia Lansky, Samira Zaidan,<br />

Umbelina Angélica Fernandes.<br />

2014: Célia Martins da Silva, Érica<br />

Coelho, Eva Joana , Eva Maria da Silva,<br />

Ginet Camué Collazo, Ivone Maria de<br />

Oliveira, Jaqueline Morelo, Jurema Beatriz<br />

Figueiredo (Jô do jaqueline), Kátia<br />

Firmino Duarte, Margaret de Freitas<br />

Assis Rocha, Maria de Freitas Chagas,<br />

Maria Helena Diniz, Maria Luiza Kfoury<br />

Pereira, Maria Rita Fenandes de Figueiredo,<br />

Marisa Vieira da Silva – Marisa<br />

Nzinga, Niurka Maren Maren, Nívea<br />

Mônica da Silva, Rogerlan Augusta de<br />

Morais, Shirlene Sabino, Sirley Soares<br />

Soalheiro e Wilma Henriques.<br />

2015: Ângela Maria da Silva Gomes,<br />

Anne Carolina de Morais, Beatriz da<br />

Silva Cerqueira, Dora Alves, Eli Izabel<br />

Rodrigues Santana , Evangelina Castilho<br />

Duarte, Gracinha Horta, Íris Maria da<br />

Costa Amâncio Kamwa, Ivone Maria<br />

Vieira Santos, Márcia Mendonça, Maria<br />

do Socorro - Jô Moraes, Milta Ferreira<br />

de Aguiar, Mônica Aguiar, Pollyana do<br />

Amaral Ferreira, Sandra Regina Goulart<br />

Almeida, Sara Aparecida da Costa, Sula<br />

Kyriacos Mavrudis.<br />

2016: Ana Isabel Lemos, Conceição<br />

Rosière, Daniela Fernandes Alves , Daniele<br />

Caldas , Eliete Sandra Moura Rodrigues,<br />

Elizabeth Fleury, Eulália Regina<br />

Pires de Freitas Mendes , Geysa Maria<br />

Emilia Lima Moreira, Ísis Medeiros,<br />

Janaina da Mata , Júnia Roman Carvalho,<br />

Kleide Ventura de Souza, Laurelle<br />

Carvalho de Araújo , Libernina Andrade,<br />

Maria de Fátima Diniz Ribas, Maria<br />

do Rosário Bento , Maria Nazaret Teles<br />

Silva , Maria Tereza dos Santos, Nardeli<br />

da Conceição Silva e Sandra Margareth<br />

Silvestrini de Souza.;<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

15


Bárbara Dias


POR<br />

POLÍTICA<br />

Nanci Alves<br />

Golpe<br />

misógino<br />

Retirada de direitos e políticas retrógradas<br />

aumentam a desigualdade de gênero<br />

Logo após a aprovação do pedido<br />

inconstitucional de impeachment da<br />

presidenta Dilma Rousseff, o governo<br />

ilegítimo de Michel Temer publicou<br />

Medida Provisória (nº 726), no Diário<br />

Oficial da União (12/05/2016), que extinguiu<br />

o Ministério das Mulheres, da<br />

Igualdade Racial, da Juventude e dos<br />

Direitos Humanos, a Secretaria Especial<br />

de Políticas de Promoção da Igualdade<br />

Racial (Seppir) e o Conselho<br />

Nacional de Promoção da Igualdade<br />

Racial (CNPIR), sendo absorvidos pelo<br />

recém-criado Ministério da Justiça e<br />

da Cidadania. Ao com<strong>por</strong> seu primeiro<br />

ministério, Michel Temer também excluiu<br />

as mulheres – que não ficavam<br />

de fora de ministérios desde a ditadura,<br />

no governo de Ernesto Geisel<br />

(1974/1979). Seu gabinete foi formado<br />

exclusivamente <strong>por</strong> homens (brancos),<br />

diferente do de Dilma Rousseff que<br />

contou com 14 ministras.<br />

Estes fatos já seriam suficientes para<br />

avaliar que retirar a presidenta do poder<br />

era apenas o primeiro passo para acabar<br />

com os direitos do povo brasileiro, em<br />

especial os mais pobres, negros, indígenas,<br />

idosos e mulheres e enfraquecer<br />

os movimentos sociais e sindical. Essas<br />

primeiras medidas foram vistas <strong>por</strong> várias<br />

lideranças como uma manifestação<br />

de discriminação e de promoção da desigualdade<br />

de gênero.<br />

E, logo a seguir, começam a ser implementadas<br />

políticas que visam retirar<br />

direitos fundamentais, garantidos pela<br />

Constituição e <strong>por</strong> outras leis como a<br />

Consolidação das Leis de Trabalho<br />

(CLT), Estatuto do Idoso, do Indígena,<br />

etc. Portanto, com um governo e um<br />

congresso misógino, o Brasil caminha<br />

de volta a um passado sombrio e apresenta<br />

uma cruel realidade em que a<br />

desigualdade é tratada com naturali-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

17


Denilson Cajazeiro<br />

reformas trabalhista e previdenciária,<br />

além da proposta aprovada de terceirização<br />

geral. “Um governo machista<br />

e patriarcal”, reforça.<br />

Marlise Matos destaca a terceirização<br />

irrestrita do trabalho como um dos<br />

mais graves problemas que vai afetar<br />

as mulheres no mercado de trabalho.<br />

“Tínhamos acabado de aprovar, no governo<br />

Dilma, uma segunda abolição da<br />

escravidão com a PEC das Empregadas<br />

Domésticas, em que se estabelece direitos<br />

para a categoria que mais envolve<br />

mulheres no mundo do trabalho – infelizmente<br />

ainda muito feminilizado<br />

no Brasil. E aí, logo na sequência, quando<br />

conseguimos inserir uma massa<br />

enorme de mulheres na formalização<br />

dos direitos trabalhistas vai haver uma<br />

flexibilização destes direitos? E <strong>elas</strong> serão<br />

a ponta mais frágil deste sistema,<br />

como outras trabalhadoras do setor informal,<br />

pois serão brutalmente atingidas<br />

<strong>por</strong> perdas de direitos significativos<br />

como descanso semanal remunerado,<br />

férias, 13º salário, ascensão e planejamento<br />

de carreira. E claro, as mais vulneráveis<br />

são as negras, pobres e as trabalhadoras<br />

rurais”, destaca.<br />

dade e a ausência feminina nos espaços<br />

de poder passa a ser política de governo.<br />

Uma clara destruição de políticas<br />

públicas, implementadas principalmente<br />

nos governos Lula e Dilma, em<br />

defesa das mulheres, dos afro-descendentes,<br />

dos indígenas, quilombolas, da<br />

população LGBT, etc.<br />

Democracia em risco<br />

Para diversas lideranças de movimentos<br />

feministas, sociais e sindicais,<br />

a democracia no Brasil está abalada,<br />

pois ao afetar drasticamente direitos<br />

conquistados com muita luta (inclusive<br />

com prisão e/ou morte de muitos/as<br />

trabalhadores/as), o governo desestabiliza<br />

o princípio fundamental da democracia<br />

que é o exercício da cidadania.<br />

Na avaliação da coordenadora do<br />

Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre<br />

a Mulher da UFMG (NEPEM), Marlise<br />

Matos (foto), o golpe foi contra a democracia<br />

e, especialmente, contra todas<br />

as mulheres, pois é um golpe misógino<br />

– primeiro, contra a primeira mulher<br />

que chegou à presidência deste país e,<br />

depois, contra todas nós, a partir das<br />

“<br />

O golpe foi contra a<br />

democracia e, especialmente,<br />

contra todas<br />

as mulheres”<br />

18 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


Para implementar todas essas mudanças<br />

retrógradas, este governo tem<br />

como sustentação um Congresso Nacional<br />

extremamente conservador que<br />

atende aos interesses de bancadas religiosas,<br />

da bala e ruralista. Na avaliação<br />

do presidente nacional da Rede pelo<br />

Constitucionalismo Democrático Latino-Americano,<br />

José Luiz Quadros<br />

de Magalhães (foto), a presença da exdeputada<br />

Fátima Pelaes (PMDB-AP) na<br />

Secretaria das Mulheres reafirma a<br />

visão conservadora no trato das questões<br />

referentes aos direitos das mulheres<br />

e aos direitos de diversidade em<br />

geral. “A deputada já se manifestou diversas<br />

vezes sobre a proibição do<br />

aborto em qualquer situação, incluindo<br />

as situações previstas em nossa legislação,<br />

há muito tempo, como <strong>por</strong> exemplo<br />

na gravidez decorrente de estupro<br />

e no risco de vida da gestante, e, ainda,<br />

na gestação de feto anencefálico, já admitido<br />

pelo STF”, afirma.<br />

José Luiz Quadros de Magalhães,<br />

que é também professor de Direito<br />

Constitucional na UFMG, afirma que<br />

a retirada de direitos é sempre uma<br />

violência. Ele destaca a inconstitucionalidade<br />

das várias medidas e propostas<br />

do governo ilegítimo de Michel Temer.<br />

“Além de igualar a idade de aposentadoria<br />

para homens e mulheres e retirar<br />

a pensão de milhares de viúvas, medidas<br />

como o congelamento de gastos<br />

com Previdência, Saúde, Educação, durante<br />

20 anos é uma medida de uma<br />

crueldade e irresponsabilidade atroz,<br />

além, de claro, absolutamente inconstitucional.<br />

A Constituição Federal estabelece<br />

limites ao poder de reforma<br />

da Constituição, chamado de Poder<br />

Constituinte Derivado. O artigo 6º, parágrafo<br />

4º incisos I a IV, proíbe a deliberação<br />

de emendas tendentes a abolir<br />

os direitos individuais e suas garantias,<br />

a democracia, a separação de poderes<br />

e o federalismo. Uma emenda que congela<br />

os gastos com direitos sociais compromete<br />

o exercício destes direitos,<br />

que são garantia de exercício dos direitos<br />

individuais”, afirma.<br />

Segundo o professor, a partir do<br />

princípio da indivisibilidade dos direitos<br />

fundamentais, podemos afirmar que<br />

não há liberdade sem dignidade. “Para<br />

que as pessoas possam exercer os seus<br />

direitos individuais e políticos de liberdade,<br />

é necessário que sejam garantidos<br />

meios para o seu exercício, e<br />

estes meios são os direitos sociais e<br />

econômicos. De forma bem clara: ninguém<br />

é livre passando fome, doente,<br />

desempregado e sem educação e moradia.<br />

Este governo e esta maioria parlamentar<br />

conservadora são um aten -<br />

tado à democracia e aos direitos humanos”,<br />

ressalta.<br />

Os vários golpes dados contra a<br />

classe trabalhadora, <strong>por</strong> meio de leis e<br />

medidas provisórias que desrespeitam<br />

a própria Constituição Federal, mudam<br />

a perspectiva de melhorias na vida de<br />

todo o povo, especialmente das mulheres.<br />

Na avaliação da presidenta da<br />

Raphael Armando Calixto<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

19


União Brasileira de Mulheres (UBM) e<br />

integrante do Conselho Nacional dos<br />

Direitos das Mulheres, Lúcia Rincon,<br />

as conquistas avançam em períodos<br />

democráticos e este golpe institucional,<br />

jurídico, parlamentar e midiático se<br />

caracteriza pela falta de consulta ao<br />

povo, <strong>por</strong> autoritarismo. E, em regimes<br />

de governos autoritários, as conquistas<br />

não avançam e, pior, podem trazer ou<br />

reforçar outros problemas.<br />

Medidas de retirada de direitos podem<br />

ser um estímulo a atitudes de discriminação<br />

contra a mulher. Para Lúcia<br />

Rincon, o autoritarismo, o conservadorismo<br />

e a concepção de uma sociedade<br />

hierárquica, sustentada <strong>por</strong> forças<br />

policiais, respalda o patriarcado e a<br />

ideia, ainda majoritária na sociedade,<br />

de que as mulheres são objetos do<br />

poder dos homens e que devem se submeter<br />

e não havendo submissão, a violência<br />

está justificada. “Não temos dúvida<br />

de que as políticas que acolhiam<br />

a mulher vítima de violência e divulgavam<br />

os seus direitos e possibilidade<br />

enquanto ser humano vão desaparecer<br />

facilitando a manutenção e intensificação<br />

da violência”, ressalta.<br />

Nos movimentos sociais a luta contra<br />

as medidas do governo é forte, mas<br />

existe um sentimento de impotência,<br />

já que grande parcela do legislativo e<br />

do judiciário participam do golpe. Muitos<br />

acreditam que existe o risco de enfraquecer<br />

o movimento feminista, as<br />

associações, grupos e movimentos que<br />

lutam pela igualdade de gênero. Na<br />

avaliação de Lúcia Rincon, “podemos<br />

ter perdas de engajamento político e<br />

de atendimento às organizações sociais<br />

e ao movimento feminista – que vinha<br />

atuando como parceiro do Estado na<br />

mobilização das mulheres, dos povos,<br />

dos setores que lutam pela igualdade<br />

Paulo Pinto<br />

20 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


de gênero”. Ela alerta para o fato de<br />

que os movimentos sociais sofrem,<br />

desde o golpe, pressão de rua, agressões<br />

via mídias sociais, etc. Um fato triste e<br />

que demarca essa realidade foram as<br />

manifestações feitas, pelos setores e<br />

organizações de direita e que respaldaram<br />

o golpe, na ocasião da morte<br />

de dona Marisa, esposa do Lula. Um<br />

total desrespeito.”<br />

Além da discriminação, a mulher<br />

sofrerá violência patrimonial com as<br />

medidas do governo Temer. É o que<br />

afirma a senadora Vanessa Grazziotin<br />

-PCdoB-AM (foto) ao se referir à reforma<br />

da Previdência que retira direitos<br />

antigos como idade menor do que a<br />

do homem para se aposentar, e a pensão<br />

das milhares de viúvas que já contam<br />

com uma aposentadoria, em geral, de<br />

um salário mínimo. “A gente pode e<br />

deve considerar esta retirada de direitos<br />

como uma forma de violência política.<br />

No caso, uma violência patrimonial,<br />

como aquela a que a Lei Maria da Penha<br />

se refere, só que o agressor é o próprio<br />

Estado”, afirma.<br />

Internet<br />

“<br />

A gente pode e<br />

deve considerar<br />

esta retirada de<br />

direitos como uma<br />

forma de violência<br />

política”<br />

Na avaliação da senadora, que é<br />

também procuradora da Mulher no<br />

Senado, o Brasil tem hoje um Congresso<br />

bastante conservador, com<br />

uma pauta dirigida a desconstruir o<br />

que o movimento de mulheres alcançou<br />

com muita luta desde a redemocratização,<br />

ainda na década de 1980.<br />

“As ações da Procuradoria Especial da<br />

Mulher no Senado procuram aproximar<br />

as parlamentares da bancada feminina<br />

das mulheres em cada cidade<br />

e em cada estado, buscando apoio nas<br />

entidades sindicais, nos movimentos<br />

organizados para resistir e mesmo impedir<br />

a perda de direitos”, afirma.<br />

Por trás do golpe<br />

O presidente nacional da Rede pelo<br />

Constitucionalismo Democrático Latino-Americano,<br />

José Luiz Quadros de<br />

Magalhães, chama a atenção para o fato<br />

de que o governo Temer desempenha<br />

um papel no jogo internacional de<br />

poder. “Assim como na Argentina e a<br />

maioria parlamentar de direita na Venezuela,<br />

assistimos a um desmonte dos<br />

direitos sociais, dos direitos de diversidade<br />

e a entrega das riquezas, mais uma<br />

vez, às empresas poderosas do Norte.<br />

Este governo veio para isso: entregar<br />

nossas riquezas, manter a colonialidade<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

21


Lidyane Ponciano<br />

nos interessa – eles o atacam sob o<br />

nome de 'ideologia de gênero'. Esses<br />

conflitos os conservadores, golpistas<br />

acham que são inventados p<strong>elas</strong> feministas!”,<br />

desabafa.<br />

Ameaça à profissão<br />

docente<br />

Para atender aos interesses do capital,<br />

o governo aprovou a reforma trabalhista<br />

em julho deste ano. Como<br />

alerta a presidenta do Sindicato dos<br />

Professores do Estado de Minas Gerais<br />

(Sinpro Minas), Valéria Morato (foto),<br />

o ataque aos/as trabalhadores/as é uma<br />

marca evidente do capitalismo. “Essa<br />

reforma desmonta a CLT e a Justiça do<br />

Trabalho. Uma das mudanças é permitir<br />

que gestantes e lactantes trabalhem em<br />

condições insalubres”, afirma.<br />

Valéria Morato afirma que tentam<br />

implantar no Brasil uma grande virada<br />

econômica e ideológica, “em que os<br />

do ser, do saber e do poder. A ideologia<br />

neoliberal, reciclada, sempre culpou o<br />

indivíduo pela sua miséria. Para esta<br />

ideologia de direita, o problema não é o<br />

sistema econômico político e social, o<br />

problema é com o indivíduo. Isso naturaliza<br />

a desigualdade e fortalece o ridículo<br />

argumento do mérito, em um<br />

mundo onde apenas oito homens possuem<br />

a mesma riqueza que 3,6 bilhões<br />

de pessoas que compõem a metade<br />

mais pobre do mundo”, diz.<br />

Segundo Quadros, sustentar esta<br />

insanidade talvez seja mais ridículo<br />

do que, quando no lugar do “mérito”,<br />

existia o argumento do “sangue azul”<br />

dos nobres. Expressiva parte do nosso<br />

Congresso conservador acredita nesta<br />

absurda história da “meritocracia” e<br />

sustentam que pessoas podem deter<br />

bilhões em propriedades enquanto bilhões<br />

não possuem nada. Esta ideologia<br />

é diariamente posta na cabeça das pessoas<br />

pela TV, pelo cinema, especialmente<br />

norte-americano, pelos jornais<br />

e revistas. Inclusive, os mesmos parlamentares<br />

acreditam que suas fortunas<br />

decorrem do seu mérito”, afirma.<br />

A senadora Vanessa Grazziotin também<br />

repudia a narrativa de incentivo<br />

à visão liberal de que a riqueza é uma<br />

recompensa para o 'mérito'. “Isso é<br />

muito antigo: a defesa de uma suposta<br />

'meritocracia', como justificativa dos<br />

privilégios existentes. Acho que é im<strong>por</strong>tante<br />

refletir que há um tipo de<br />

conflito que estes golpistas não acham<br />

'natural' de jeito nenhum, e que muito<br />

“<br />

A reforma trabalhista<br />

permitirá<br />

que gestantes e<br />

lactantes trabalhem<br />

em condições<br />

insalubres”<br />

22 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


trabalhadores arcam com a responsabilidade<br />

<strong>por</strong> suas aposentadorias e<br />

pensões, buscando a previdência privada,<br />

assim como fazem com a saúde<br />

e educação privada”. Por isso, segundo<br />

Valéria Morato, o governo vem com<br />

esta ofensiva contra a organização<br />

dos/as trabalhadores/as. “Isso tudo<br />

tem reflexos nas negociações coletivas.<br />

O ataque ao financiamento do<br />

movimento sindical é essencialmente<br />

o ataque à luta coletiva, que é a luta<br />

que resiste e que pressiona. E <strong>por</strong> isso,<br />

em 2016, sem nenhum alarde, mas<br />

com tudo em mente, o Congresso<br />

Nacional reduziu em 50% o orçamento<br />

de custeio da Justiça do Trabalho, tornando-a<br />

mais morosa, dificultando o<br />

acesso dos/as trabalhadores/as. A<br />

ideia central do golpe é essa: menos<br />

estado, menos governo, mais empenho<br />

individual, cada um <strong>por</strong> si,<br />

mercado para tudo. Resistiremos e<br />

lutaremos”, ressalta.<br />

Já o desmonte da Previdência prejudicará<br />

todo/a trabalhador/a, principalmente<br />

os/as professores/as que hoje<br />

têm regime especial. A realidade atual<br />

em que a professora se aposenta aos<br />

25 de contribuição e o professor, aos<br />

30 anos, acaba. “Se passar a proposta<br />

de 49 anos de contribuição ininterrupta,<br />

ninguém se aposentará. Imagina<br />

o que é uma professora da educação<br />

infantil estar em sala de aula aos 65<br />

anos de idade?”, questiona Valéria Morato.<br />

Ela ressalta que a reforma trabalhista<br />

vai impactar a profissão docente.<br />

“Com ela, o contrato <strong>por</strong> tempo determinado<br />

passa de 90 dias para 9 meses.<br />

Ora, 9 meses é exatamente o período<br />

letivo. É o fim dos direitos dos educadores.<br />

Para os donos de escolas privadas,<br />

melhor contratar <strong>por</strong> tempo determinado<br />

do que com carteira assinada<br />

e com os direitos garantidos pela CLT,<br />

como é hoje. É um desmonte também<br />

da educação que começou com a reforma<br />

da educação básica e a terceirização”,<br />

afirma.<br />

O secretário de Previdência, Aposentados<br />

e Pensionistas da CTB Nacional<br />

(Central dos Trabalhadores e<br />

Trabalhadoras do Brasil), Pascoal Carneiro,<br />

afirma que o desmonte da Previdência<br />

tem o objetivo de estimular a<br />

previdência privada. “Esta é a vontade<br />

dos banqueiros que têm acordos com<br />

o governo golpista. Daí veio a a escolha<br />

do secretário da Previdência, ou seja,<br />

ligado à inicitiva privada, para decretar<br />

o fim da Previdência que, diferente do<br />

que nos querem fazer acreditar, nunca<br />

foi deficitária”, diz.<br />

Pacote de maldades<br />

“As reformas trabalhista e previdenciária<br />

são um pacote de maldades contra<br />

a soberania nacional, o povo brasileiro.<br />

Tudo que está dentro é negativo, principalmente<br />

para as mulheres do campo”.<br />

É o que afirma a diretora de finanças<br />

da Federação dos Trabalhadores na<br />

Agricultura do Estado de Minas Gerais<br />

(Fetaemg) Maria Rita Fernandes de Figueiredo.<br />

“Falta de consideração humana<br />

subir o teto da idade mínima. Todos<br />

começam muito cedo no campo, ajudando<br />

os pais. E a mulher, além da roça,<br />

tem a casa. Ela se levanta antes de todo<br />

mundo e, desde pequena, aprende a<br />

cuidar da horta, das criações, da casa,<br />

da comida, da saúde de todos, dos irmãos<br />

Mark Florest<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

23


Mark Florest<br />

menores (depois, cuida dos filhos) e<br />

ainda trabalha na roça. Nós, pequenos<br />

agricultores, enfrentamos todo tipo de<br />

situação: bichos peçonhentos e outros,<br />

chuva, sol, sereno, poeira, etc. Muitas<br />

vezes a gente roda até 70 quilômetros<br />

para colocar nosso produto no mercado.<br />

Toda uma engenharia de luta diária e<br />

que a mulher está ali. Se a mudança for<br />

feita como estão divulgando, a trabalhadora<br />

rural não conseguirá mais se<br />

aposentar”, afirma.<br />

Sobre a ameaça de desvincular o<br />

reajuste da aposentadoria ao reajuste<br />

do salário mínimo, Maria Rita afirma<br />

que será um impacto enorme no campo<br />

e na economia de todo o país, pois a<br />

aposentadoria será cada vez menor.<br />

“Este dinheiro é distribuído com muita<br />

gente. O aposentado no campo investe<br />

em sua propriedade, ajuda filhos, netos<br />

com material de escola, trans<strong>por</strong>te.<br />

Uma rede de desenvolvimento im<strong>por</strong>tante<br />

para a sociedade. Aposentadoria<br />

é o maior benefício de garantia de direito<br />

e de justiça social, de distribuição<br />

de renda, geração de emprego, da cidadania<br />

das mulheres”, afirma.<br />

A trabalhadora rural acrescenta que<br />

mexer na CLT é também gravíssimo.<br />

Salário, jornada de 8 horas e férias são<br />

direitos conquistados há anos, com<br />

muita luta. Mexer na jornada de trabalho<br />

deveria ser para reduzi-la e não<br />

aumentá-la. Aumentar a jornada no<br />

campo é impossível, é escravidão. Nem<br />

máquina su<strong>por</strong>ta uma carga de 10 ou<br />

12 horas, quanto mais o ser humano!<br />

Se o patrão vai ganhar mais lucro, sabemos<br />

que o trabalhador vai correr<br />

mais risco de morte, doenças físicas e<br />

emocionais, além de mutilações. Se o<br />

governo pensa em fazer reformas, deveria<br />

fazer reforma agrária e demarcação<br />

das terras indígenas, no lugar<br />

24 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


de entregar as terras de divisas do<br />

nosso país para empresas estrangeiras,<br />

como está fazendo”, protesta.<br />

A falta de demarcação de terras indígenas,<br />

agravada nesse governo, também<br />

resulta em mais problemas para<br />

as mulheres. É o que afirma a coordenadora<br />

da Associação das Guerreiras<br />

Indígenas de Rondônia (AGIR), Maria<br />

Leonice Tupari, do povo Tupari (RO).<br />

“Os governos anterirores fizeram pouco.<br />

Poderiam ter avançado, mas sabemos<br />

que o Congresso também impedia.<br />

Infelizmente, o governo Temer veio<br />

para derrubar tudo. As reformas afetam<br />

a todos no país, mas sofremos ainda<br />

mais com a questão da falta de demarcação<br />

de nossas terras. Principalmente<br />

nós, mulheres, somos afetadas diretamente.<br />

Hoje a maioria das liderenças<br />

que estão na luta pela retomada da<br />

terra para os povos indígenas que foram<br />

expulsos de seus territórios, é mulher.<br />

Muitas perdem a vida nesta luta. Além<br />

disso, os fazendeiros, madeireiros e<br />

garimpeiros estão dentro de nosso território.<br />

Como enfrentá-los, se não tem<br />

Nanci Alves<br />

“<br />

As reformas afetam<br />

a todos no país, mas<br />

sofremos ainda mais<br />

com a questão da falta<br />

de demarcação de<br />

nossas terras.”<br />

mulher à frente deste tipo de negócio?<br />

Um governo sem política de demarcação<br />

ajuda aumentar a violência. Não<br />

só a luta pela terra, mas a presença do<br />

não indígena. Um impacto muito grande<br />

na nossa cultura, pois eles trazem<br />

doenças, drogas, prostituição, aliciam<br />

nosso povo, etc”, alerta.<br />

Maria Leonice Tupari (foto), que<br />

é também multiplicadora do projeto<br />

Vozes das Mulheres Indígenas (parceria<br />

com a ONU Mulheres), reforça que,<br />

“mais do que nunca, é hora de união<br />

entre todos: indígenas, movimento social,<br />

quilombolas, etc. Nós, mulheres,<br />

vamos para as ruas gritar que estamos<br />

vivas e que vamos lutar sempre”, afirma.<br />

Caminhos para a<br />

resistência<br />

A resistência é também o caminho<br />

apontado pela presidenta nacional da<br />

Unegro (União de Negros pela Igualdade),<br />

Ângela Guimarães. Ela afirma<br />

que o conjunto de retrocessos apresentados<br />

pelo governo golpista é mais<br />

feroz do que os oito anos da época neoliberal<br />

de Fernando Henrique Cardoso.<br />

“Temer e sua quadrilha estão correndo<br />

para fazer a entrega das nossas riquezas.<br />

A praticamente dissolução da Secretaria<br />

de Políticas para as Mulheres,<br />

a falta de uma política nacional de<br />

apoio à mulher em situação de violência<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

25


impacta, diretamente, na vida das mulheres<br />

negras. Temos que lembrar que<br />

nestes últimos anos aumentou em 54%<br />

a violência doméstica sobre as mulheres<br />

negras. Além disso, o crescimento do<br />

desemprego e da violência pela atuação<br />

da polícia e das forças armadas nas<br />

ruas tem vitimado sobretudo a população<br />

negra. Quando não vitima diretamente<br />

a mulher negra, vitima seus<br />

filhos, netos, sobrinhos, impactando<br />

na sua vida e de sua família”, afirma.<br />

Ângela Guimarães (foto) destaca<br />

ainda as graves consequências da PEC<br />

55/2016 (que congela <strong>por</strong> 20 anos os<br />

investimentos na saúde e na educação)<br />

para a mulher negra. “A gente fica sem<br />

perspectivas de presente e de futuro<br />

com este governo. A mulher negra é a<br />

base da pirâmide social, é quem está<br />

no subsolo em relação ao desenvolvimento.<br />

Mas situações adversas vimos<br />

enfrentando desde que o primeiro navio<br />

negreiro a<strong>por</strong>ta aqui, no Brasil; nunca<br />

Nanci Alves<br />

desistimos de lutar. Vamos vencer o<br />

período do facismo, com muita luta e<br />

organização nos movimentos, nas ruas,<br />

nas redes, contra a retirada de direitos.<br />

Precisamos rufar nossos tambores contra<br />

as reformas da Previdência e trabalhista<br />

que querem nos ver trabalhando<br />

sem direito a férias, descanso<br />

remunerado, a curtir a família e até<br />

sem a aposentadoria. Contra o retorno<br />

à escravidão, as mulheres negras seguem<br />

em marcha”, afirma.<br />

Como já denunciado <strong>por</strong> muitos<br />

movimentos feministas, a reforma da<br />

Previdência pode representar uma elitização<br />

e masculinização dos benefícios<br />

previdenciários, voltando a refletir a<br />

extrema desigualdade do mercado de<br />

trabalho. Mesmo com toda luta dos<br />

movimentos, o salário das mulheres,<br />

no Brasil, de acordo com um estudo<br />

feito <strong>por</strong> um grupo de trabalho no Instituto<br />

de Pesquisa Econômica Aplicada<br />

(Ipea), e divulgado em feveiro de <strong>2017</strong>,<br />

corresponde a 70% do recebido pelos<br />

homens, em média. E as mulheres têm<br />

uma jornada semanal de 55 horas, enquanto<br />

os homens, 47 horas. Um estudo<br />

do Fórum Econômico Mundial, publicado<br />

em 2015, aponta que o mundo alcançará<br />

a igualdade de gênero no mercado<br />

de trabalho somente em 2095.<br />

Neste estudo, o Brasil está na posição<br />

124, entre 142 países, no ranking de<br />

igualdade de salários <strong>por</strong> gênero. Baseado<br />

nestes dados, fica claro que a<br />

desculpa do governo de que igualar a<br />

idade para aposentadoria tem sido uma<br />

tendência no mundo moderno é sem<br />

sentido, pois está baseada em países<br />

ricos, longe da nossa realidade.<br />

Isso sem levar em consideração, a<br />

vida dentro de casa. A mulher foi para<br />

a vida pública, mas em geral, o homem<br />

não assumiu sua parcela no trabalho<br />

26 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


doméstico – casa e filhos. O Instituto<br />

de Pesquisa Econômica Aplicada<br />

(Ipea) constatou que, enquanto as mulheres<br />

gastam, em média, 26,6 horas<br />

semanais com serviços de casa, os homens<br />

gastam 10,5 horas. Portanto, o<br />

governo não poderia desconsiderar<br />

que o tempo menor de aposentadoria<br />

para a mulher existia como forma de<br />

compensar estas desigualdades que<br />

ainda persistem.<br />

Quais caminhos precisam ser feitos<br />

pela sociedade para defender a retomada<br />

de direitos, em especial da<br />

mulher mais pobre e negra? Esta é a<br />

pergunta que todas as pessoas precisam<br />

se fazer diariamente. Para o presidente<br />

nacional da Rede pelo<br />

Constitucionalismo Democrático Latino-Americano,<br />

José Luiz Quadros de<br />

Magalhães, é urgente entender o que<br />

está acontecendo para partirmos para<br />

pequenas e diárias ações transformadoras.<br />

“A compreensão é o primeiro<br />

passo para acabar com aquilo que sustenta<br />

o sistema: a crença no próprio<br />

sistema. Enquanto acreditarmos no<br />

capitalismo, na sua inevitabilidade, e<br />

logo, na impossibilidade de derrotá-lo,<br />

ele continuará liquidando vidas”,<br />

afirma. “O caminho é a organização<br />

social; a resistência e o combate às políticas<br />

de concentração de riqueza, de<br />

eliminação de direitos e de subordinação<br />

aos interesses econômicos das<br />

grandes cor<strong>por</strong>ações que dominam o<br />

governo e o Congresso brasileiro. As<br />

micro-revoluções diárias em todas as<br />

cidades e bairros e formação de redes<br />

cada vez maiores em todo o mundo<br />

podem vencer este macro poder aparentemente<br />

indestrutível”, diz.<br />

Para a diretora de finanças da Fetaemg,<br />

Maria Rita Figueiredo (foto),<br />

mais do que nunca é hora de resistir.<br />

“Estamos convocando trabalhadores/as<br />

de todos os lugares, cidades pequenas e<br />

grandes, o campo. O mal que está aí vai<br />

atingir todas as categorias. É preciso<br />

união de forças para fazermos a mudança<br />

necessária para a garantia da manutenção<br />

dos direitos já conquistados. Deveríamos<br />

estar lutando para avançar e,<br />

hoje, temos que lutar para assegurar o<br />

que que já tínhamos”, finaliza.<br />

A luta organizada <strong>por</strong> meio dos sindicatos,<br />

organizações feministas, progressistas,<br />

salas de aula, também é o<br />

que defende a presidenta da UBM,<br />

Lúcia Rincon. “Uma luta que vá para<br />

as ruas, que se contraponha nos parlamentos,<br />

que façamos a consciência<br />

política no cotidiano, em todos os espaços,<br />

discutindo com as pessoas a<br />

im<strong>por</strong>tância de uma sociedade democrática<br />

para construir uma vida em<br />

condições de igualdade para homens<br />

e mulheres garantindo, assim, a emancipação<br />

humana.;<br />

Mark Florest<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

27


Rovena Rosa - Agência Brasil


POR<br />

Educação<br />

Carina Santos<br />

Ocupação:<br />

substantivo<br />

feminino<br />

O protagonismo das mulheres nas ocupações<br />

estudantis contra os ataques à educação<br />

No último ano, uma das mais fortes<br />

reações ao golpe contra a presidenta<br />

Dilma Rousseff foi a onda de ocupações<br />

de escolas que se espalhou <strong>por</strong> todo<br />

país em defesa da educação e contra<br />

retrocessos políticos. E na crista dessa<br />

onda, foram as mulheres que protagonizaram<br />

o movimento que deixou marcas<br />

na história brasileira.<br />

Para abordar esse tema, marquei<br />

com minha entrevistada numa praça.<br />

Fiquei observando todas aqu<strong>elas</strong> pessoas,<br />

tentando adivinhar quem seria a<br />

jovem que eu ainda só conhecia virtualmente.<br />

Sentei em um dos bancos<br />

pensando sobre a im<strong>por</strong>tância dessa<br />

re<strong>por</strong>tagem. De repente se aproxima<br />

uma menina negra, de roupas largas e<br />

mochila nas costas. Nos apresentamos.<br />

Reparei o piercing no nariz dela, pensando<br />

que eu ainda quero ter coragem<br />

de colocar um. Começamos a prosa.<br />

Eu, com o dobro da idade dela, sentia<br />

que naquela tarde era ela quem tinha<br />

muito a me ensinar.<br />

Girlene Boato, estudante secundarista<br />

e diretora da União Colegial de<br />

Minas Gerais - UCMG, é uma entre<br />

tantas mulheres que assumiram a linha<br />

de frente das ocupações das escolas,<br />

movimento que se espalhou <strong>por</strong> todo<br />

o Brasil no ano passado, logo após o<br />

governo ilegítimo de Michel Temer ter<br />

assumido a Presidência e anunciado<br />

uma série de medidas que atacam diretamente<br />

a educação, como o projeto<br />

da Escola sem partido, a reforma do<br />

Ensino Médio e a PEC 55. Em Minas<br />

Gerais foram mais de 150 escolas ocupadas<br />

e em todo Brasil, mais de 1000.<br />

A estudante conta que quando começou<br />

a ver tantas mulherese LGBT (Lésbicas,<br />

Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais<br />

e Transgêneros) participando do movimento,<br />

pensou: eu tenho que fazer<br />

parte disso. “Primeiro <strong>por</strong>que isso vai<br />

fazer parte da minha história, da história<br />

do meu país. E a ocupação era<br />

um espaço em que eu me sentia bem,<br />

me sentia livre, me sentia igual a todo<br />

mundo. Lá a gente debatia sobre ho-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

29


Carina Santos<br />

mofobia, sobre machismo, sobre o feminismo<br />

emancipacionista, lá eu me<br />

sentia abraçada”, recorda.<br />

Girlene (foto) conta que grande<br />

parte das ocupações foi puxada <strong>por</strong><br />

mulheres e <strong>por</strong> pessoas LGBT. Hoje,<br />

se assume como lésbica e destaca que<br />

esse protagonismo reflete a realidade<br />

das pessoas que sempre sentiram na<br />

pele a opressão. “Antes disso eu não<br />

tinha consciência dessas coisas, não<br />

sabia sobre o machismo, me considerava<br />

hétero. Eu era tudo que não sou<br />

agora. Com minha aproximação do<br />

movimento estudantil, das ocupações,<br />

eu vi que precisava mudar o meu jeito,<br />

mudar o que eu era, pra poder mudar<br />

a sociedade”, afirma.<br />

E as ocupações deixaram mesmo<br />

essa prova de uma construção subjetiva<br />

e ao mesmo tempo política, característica<br />

aliada a um protagonismo feminino.<br />

Girlene, que no ano passado<br />

estudava no Estadual Central, em Belo<br />

Horizonte, conta que lá também as<br />

mulheres estavam à frente. Com três<br />

lideranças femininas consecutivas no<br />

grêmio estudantil, foi criada uma relação<br />

de respeito devido ao pulso firme<br />

na construção do movimento. Sobre a<br />

divisão de tarefas, a estudante conta<br />

que as mulheres não estavam só na<br />

cozinha, contrariando às máximas machistas<br />

que apontam esse lugar como<br />

único e exclusivo do sexo feminino. “A<br />

gente tava era puxando assembleia geral,<br />

fazendo diálogo com a direção. Era<br />

todo mundo fazendo tudo. No Estadual<br />

Central mesmo, quem ficava na cozinha<br />

era um homem. Ele que estava ligado<br />

nas coisas que estavam faltando, como<br />

que era melhor preparar a comida”,<br />

diz. Uma geração experimentando uma<br />

sociedade tão sonhada. Os olhos de<br />

Girlene brilhavam enquanto contava<br />

30 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


orgulhosa que o espaço da ocupação<br />

foi de empoderamento para muitas<br />

mulheres. “A gente tinha debate sobre<br />

a cultura do estupro, <strong>por</strong> exemplo, em<br />

que meninas participavam e falavam<br />

sobre situações de abuso que sofreram.<br />

Foi muito bonito ver que as mulheres<br />

estão se libertando”, refletiu.<br />

As cadeiras não eram enfileiradas<br />

e as disciplinas comunicavam com o<br />

que a realidade apontava para as(os)<br />

estudantes. Um <strong>por</strong>tal de novos conhecimentos<br />

e conversas que deram<br />

um banho no modelo muitas vezes autoritário<br />

que a escola reproduz. Girlene<br />

conta que havia muitas rodas de conversa<br />

e, na maioria d<strong>elas</strong>, mulheres<br />

eram chamadas para mediar ou palestrar.<br />

“A gente tinha consciência que<br />

não podia manter essa lógica de que<br />

só homens falam sobre certos assuntos”,<br />

ressaltou. Na diversidade de atividades,<br />

também eram as mulheres que muitas<br />

vezes estavam à frente para cantar rap<br />

ou recitar poesia.<br />

"Além de pobre<br />

A gente é preto<br />

E suspeito de ter construído o<br />

Brasil<br />

Pra hoje o Temer governar?<br />

Será que matam a gente com<br />

medo da gente cobrar?<br />

O resultado do trabalho do proletário<br />

tá no bolso do Bolsonaro<br />

Tá na conta do patrão<br />

Ninguém morre <strong>por</strong> causa do<br />

baseado<br />

A gente morre baseado na<br />

lógica do capital<br />

E eles morrem de medo da<br />

revolução.”<br />

Os versos são trecho da poesia “Trago<br />

verdades”, da estudante Bruna Helena<br />

(foto), mais uma que estava na trincheira<br />

do movimento em Minas Gerais.<br />

Sua poesia também dialoga com a essência<br />

das ocupações, que fizeram dos<br />

pátios espaços de encontros, saraus,<br />

trocas culturais que se misturavam com<br />

as análises políticas. Ela, como presidenta<br />

da União Brasileira dos Estudantes<br />

Secundaristas (UBES), teve a o<strong>por</strong>tunidade<br />

de conhecer diversas escolas<br />

ocupadas e também reafirma a força<br />

da participação das mulheres. “Não sei<br />

exatamente o <strong>por</strong>quê. Parece que a<br />

gente já nasce com mais disposição<br />

para a luta, saca? Por exemplo, você<br />

passa em uma sala de aula chamando<br />

para alguma atividade, <strong>por</strong> exemplo um<br />

debate sobre a reforma do Ensino Médio,<br />

de dez pessoas que se interessam em<br />

participar daquilo, sete são mulheres.<br />

Eu acho que tem a ver com a força da<br />

gente e <strong>por</strong>que somos mais oprimidas<br />

nos espaços. Eu acho que a gente tende<br />

a se rebelar mais quando a gente é mais<br />

oprimida”, destaca.<br />

Bruna conta que o feminismo estava<br />

presente nas ocupações de uma forma<br />

teórica, com a realização de diversos<br />

debates, e também na forma como<br />

muitas mulheres passaram a se identificar<br />

como feministas, trazendo isso<br />

para as ações cotidianas.<br />

Por mais que as ocupações tenham<br />

representado uma potente experiência<br />

de desconstrução de padrões e fortalecimento<br />

do feminismo, é inegável<br />

Carina Santos<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

31


que o machismo também estava ali<br />

presente, assim como em todos os espaços,<br />

já que a sociedade patriarcal<br />

ainda cultiva a erva daninha da opressão<br />

de gênero.<br />

Bruna conta que o machismo era<br />

sim perceptível. Como exemplo, compartilhou<br />

a experiência de uma ocupação<br />

na zona oeste de Belo Horizonte,<br />

composta só <strong>por</strong> mulheres e homens<br />

gays. A estudante diz que sempre escutavam<br />

com relação a essa escola:<br />

"Nossa, vocês dormem aqui sozinhas?”<br />

ou então “como que o pai de vocês<br />

deixa esse tanto de menina aqui na<br />

escola?”, questionamentos que não<br />

eram comuns em escolas com muitos<br />

homens. "Parece que as pessoas tinham<br />

a impressão que as meninas estavam<br />

mais inseguras. E <strong>elas</strong> sempre diziam:<br />

“a gente sabe se proteger”. Mas infelizmente<br />

a gente passou <strong>por</strong> várias situações<br />

nessa escola em específico em<br />

que a segurança das meninas ficava<br />

mesmo ameaçada e <strong>elas</strong> mesmas já<br />

passaram a sentir mais medo", relata.<br />

A estudante também detalha que a<br />

igualdade de tarefas foi uma conquista,<br />

pois muitos homens queriam realizar<br />

atividades que foram culturalmente<br />

construídas como sendo de homens,<br />

no caso da segurança, <strong>por</strong> exemplo.<br />

"E na escola rola um machismo institucional<br />

também. Geralmente, o diretor<br />

tem mais dificuldade de respeitar uma<br />

liderança quando ela é mulher", destaca.<br />

Bruna reflete que isso é consequência<br />

de uma construção histórica, já<br />

que é tão difícil a legitimidade de uma<br />

liderança mulher. "É diferente eu dizer<br />

"sou a Bruna, presidenta da UBES" ao<br />

invés de dizer "sou o Bruno, presidente<br />

da UBES". As pessoas duvidam muito<br />

das mulheres e <strong>por</strong> isso eu acho que é<br />

mais difícil", comenta.<br />

Girlene também concorda que havia<br />

manifestação de machismo nos espaços.<br />

Segundo ela, já aconteceu de um<br />

rapaz falar mal de uma menina <strong>por</strong>que<br />

ela não quis ficar com ele. “Aí nós chamamos<br />

ele e falamos: cara, você tá errado,<br />

vamos conversar aqui. O que a<br />

gente tá errando aqui na ocupação? É<br />

preciso fazer mais debates sobre a<br />

pauta feminista?", recorda.<br />

O processo de vivência e de trocas<br />

certamente aflorou as contradições,<br />

mas também permitiu um espaço em<br />

que essas opressões fossem debatidas.<br />

Segundo Girlene, havia um entendimento<br />

de que o machismo é um problema<br />

social, já que somos todas(os)<br />

criadas(os) nesse modelo que além de<br />

machista, é racista e homofóbico. Por<br />

isso a ideia era desconstruir para construir<br />

de novo. "Nosso intuito não era<br />

crucificar, nem condenar ninguém.<br />

Nosso intuito era mesmo a desconstrução",<br />

reafirma.<br />

Para Bruna, a resistência exige<br />

mais das mulheres. "Os homens sempre<br />

foram os protagonistas do movimento<br />

estudantil e agora as mulheres<br />

estão vindo com tudo, arrebentando a<br />

banca e não teve como segurar. E<br />

“<br />

agora as mulheres<br />

estão vindo com<br />

tudo, arrebentando<br />

a banca”<br />

agora a gente impõe esse respeito que<br />

deixaram de dar pra gente há muito<br />

tempo", pontua.<br />

Girlene enfatiza também a im<strong>por</strong>tância<br />

de seguir construindo a luta feminista<br />

em todos os espaços possíveis,<br />

ampliando assim as possibilidades de<br />

uma consciência anti-machista. "Tem<br />

uma frase que eu gosto muito que diz<br />

que “sozinho a gente pode até ir mais<br />

rápido, mas com a companhia de alguém<br />

a gente vai mais longe.” Por isso<br />

é im<strong>por</strong>tante que os homens também<br />

32 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


Rovena Rosa - Agência Brasil<br />

Meninas foram protagonistas nas ocupações estudantis<br />

estejam presentes sim nos debates feministas,<br />

<strong>por</strong>que quem vai estar sendo<br />

desconstruído ali são eles", defende.<br />

Um protagonismo<br />

que viralizou<br />

"A minha pergunta inicial é: de<br />

quem é a escola? A quem a escola pertence?".<br />

Essas foram as primeiras<br />

palavras da estudante secundarista<br />

Ana Júlia Ribeiro quando discursou<br />

na Assembleia Legislativa do Paraná,<br />

em outubro do ano passado. Ela<br />

estava lá para falar sobre a legitimidade<br />

das ocupações, em um momento<br />

em que a grande mídia e os setores<br />

conservadores atacavam ferozmente o<br />

movimento.<br />

O discurso de Ana Júlia durou cerca<br />

de dez minutos e foi um marco na luta<br />

em defesa da educação. Era uma fala<br />

humana, sem medo de demonstrar<br />

que ali as palavras saíam do coração.<br />

O choro e o nervosismo logo deram<br />

lugar para um olhar firme e uma postura<br />

de quem sentia a im<strong>por</strong>tância de<br />

estar naquela tribuna, geralmente ocupada<br />

<strong>por</strong> homens brancos. Durante<br />

sua fala, Ana Júlia lembrava que a reforma<br />

do Ensino Médio não era a única<br />

reivindicação do movimento: “Tem<br />

também a chamada Lei da Mordaça<br />

ou Escola Sem Partido. É uma afronta:<br />

uma ‘escola sem partido’ é uma escola<br />

sem senso crítico, é uma escola racista,<br />

é uma escola homofóbica. É falar para<br />

os estudantes que querem formar um<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

33


Internet<br />

está. O que me inspirou, afinal, foi o<br />

sonho de ter uma educação pública, de<br />

qualidade", afirma. A estudante também<br />

destaca que as mulheres eram a<br />

linha de frente no movimento do Paraná,<br />

estado que teve mais ocupações<br />

no Brasil, mais de 800. "Acho que as<br />

mulheres se envolveram mais <strong>por</strong><br />

sempre estar em uma situação de desigualdade<br />

e nunca serem protagonistas,<br />

mas agora a situação muda um<br />

pouco e isso é im<strong>por</strong>tante. Também<br />

acho que essa sede revolucionária vem<br />

muito da mulher, do feminismo", comenta.<br />

Ana relata que a pauta feminista<br />

também estava muito presente<br />

na sua escola e que uma das regras era<br />

respeitar as mulheres, sem reproduzir<br />

atitudes machistas. "O feminismo estava<br />

ali nas questões debatidas: uma<br />

educação mais libertadora, uma educação<br />

que previna esses problemas<br />

que temos como o machismo, racismo,<br />

desigualdades", completa.<br />

Sobre o histórico dia do discurso<br />

na Assembleia, Ana Júlia (foto) conta<br />

que estava extremamente nervosa, que<br />

não sabia como falaria. "Claro que eu<br />

exército de não-pensantes, que só ouve<br />

e baixa a cabeça, e não somos isso. Em<br />

pleno 2016 querem nos colocar um<br />

projeto desse? Isso nos insulta, nos<br />

humilha e diz que não temos capacidade<br />

de pensar <strong>por</strong> nós próprios, mas<br />

não vamos baixar a cabeça.”<br />

Rapidamente o vídeo viralizou nas<br />

redes sociais. O impacto desse discurso<br />

ajudou a traduzir amplamente o protagonismo<br />

feminino nas escolas espalhadas<br />

pelo país. É como se naquela<br />

tribuna fosse possível ver todas as adolescentes<br />

demonstrando o poder de<br />

uma geração que está disposta a transformar<br />

o curso da história.<br />

Ana Júlia foi entrevistada em diversos<br />

meios de comunicação e, claro,<br />

também atacada pelos mesmos conservadores<br />

que atacam as ocupações.<br />

Mas após aquele discurso, sua voz continua<br />

ecoando <strong>por</strong> aí, inspirando e<br />

emocionando muita gente.<br />

A estudante conta que a inspiração<br />

ao entrar para o movimento das ocupas,<br />

como ela intimamente se refere às<br />

ocupações, foi em ver todos se envolverem<br />

<strong>por</strong> um objetivo bem claro, que<br />

era a luta contra a reforma do Ensino<br />

Médio e a PEC 55. "A gente já vive em<br />

uma situação de educação precarizada<br />

e não queria ver isso pior do que já<br />

“<br />

A gente já vive em<br />

uma situação de educação<br />

precarizada e<br />

não queria ver isso<br />

pior do que já está”<br />

34 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


me vi coagida no meio daquele tanto<br />

de homens, não só <strong>por</strong> serem homens,<br />

mas também <strong>por</strong> estarem ocupando<br />

cargo de poder e <strong>por</strong>que eu sabia que<br />

eu era minoria ali dentro. Eu sabia que<br />

as pessoas não iam concordar com o<br />

que eu ia falar. Eu sabia que o que eu ia<br />

falar ia ser repudiado. Mas meu sentimento<br />

depois foi inexplicável. É um<br />

acúmulo de tanta coisa que nem eu<br />

sei", relata.<br />

A estudante reconhece que o papel<br />

da sua geração na atual conjuntura é<br />

extremamente im<strong>por</strong>tante. "A mulher<br />

tá se colocando mais, não tem mais<br />

essa coisa de ter que ficar em casa,<br />

casar e ter filhos. A gente ainda tem<br />

muito o que fazer, tem muito adolescente<br />

homem machista. Então é<br />

muito im<strong>por</strong>tante cada atitude dentro<br />

da escola, de contestar cada ação<br />

opressora", afirma.<br />

Mídia Ninja<br />

Um golpe contra<br />

as mulheres<br />

A forma como a experiência de cada<br />

uma dessas mulheres que ocuparam<br />

as escolas se relaciona com o contexto<br />

político brasileiro contribui muito para<br />

entender de onde vem a semente desse<br />

protagonismo.<br />

Lúcia Rincon, coordenadora-geral<br />

da União Brasileira de Mulheres (UBM),<br />

analisa que as ocupações foram uma<br />

reação em defesa de uma educação de<br />

qualidade e que isso tem relação direta<br />

com a luta pela igualdade de gênero.<br />

Segundo ela, as estatísticas apontam<br />

uma presença cada vez maior das mulheres<br />

em diferentes tipos de profissão<br />

e a reforma do ensino médio ameaça a<br />

continuidade desse avanço. "É uma reforma<br />

que limita a colocação futura<br />

no mercado de trabalho, além de comprometer<br />

escolhas que tenham como<br />

base disciplinas que serão eliminadas,<br />

como História, <strong>por</strong> exemplo", reflete.<br />

Para Lúcia, é im<strong>por</strong>tante lembrar<br />

que para ocupar os mesmos espaços<br />

e ganhar o mesmo salário, as mulheres<br />

precisam ter oito anos a mais de estudo<br />

que os homens. "Então a ocupação das<br />

escolas nasce de uma rebeldia, em<br />

uma perspectiva de vida e de realização<br />

social colocada pela juventude", analisa.<br />

Outro fato é que a chamada "primavera<br />

feminista" nas ocupações foi também<br />

uma resposta a um golpe dado à<br />

primeira presidenta eleita no Brasil.<br />

Para a estudante Bruna Helena, o governo<br />

de Michel Temer foi fruto de um<br />

golpe machista e misógino. "Já vivemos<br />

em um país em que é mais difícil<br />

para as mulheres. E esse governo começou<br />

de uma forma machista e assustadora",<br />

destaca Bruna.<br />

Girlene também lamenta o impacto<br />

desse golpe para a vida das mulheres.<br />

Segundo ela, se a população deu um<br />

passo atrás no governo golpista, as mulheres<br />

deram dois, três ou mais. A estudante<br />

diz que percebeu que o golpe<br />

era mais um ataque às mulheres <strong>por</strong><br />

deslegitimar a única presidenta mulher<br />

que tivemos. "Eu me senti atacada com<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

35


o golpe e não vou silenciar mais. E outras<br />

mulheres sentiram isso, mas não<br />

vamos ficar na defensiva. E a nossa<br />

forma de atacar não é como a deles.<br />

Nossa forma é construindo ocupações,<br />

despertando consciências", ressalta.<br />

Ocupar e resistir<br />

- o aprendizado que fica<br />

Se o governo ilegítimo de Temer<br />

focou em medidas contra o povo brasileiro,<br />

as sementes deixadas pelo movimento<br />

das ocupações fortalecem e<br />

inspiram resistência. As escolas voltaram<br />

com suas carteiras enfileiradas<br />

e o futuro é incerto para a educação<br />

pública e de qualidade.<br />

Girlene lamenta que as medidas<br />

contra a educação tenham sido aprovadas,<br />

como a reforma do Ensino<br />

Médio e a PEC 55, mas também fala<br />

sobre sua esperança: "Agora eu entro<br />

na sala de aula e penso: agora eu sou o<br />

que eu sempre quis ser, mesmo ainda<br />

vivendo nessa mesma sociedade.<br />

Trago um sentimento de continuar lutando<br />

para que outras mulheres sintam<br />

isso também. Sem falar na alegria<br />

de ser reconhecida <strong>por</strong> ter ajudado a<br />

construir a ocupação. Estamos nos<br />

dando as mãos pra continuar desconstruindo<br />

e fazendo um mundo melhor<br />

pra todo mundo", reflete.<br />

A voz da estudante de Curitiba Ana<br />

Júlia também ecoou esperança ao falar<br />

sobre o que as ocupações deixaram<br />

como aprendizado. "A ocupa me ensinou<br />

a trabalhar em conjunto, me ensinou<br />

que as coisas têm que ser feitas em<br />

grupo, me ensinou que nós podemos<br />

alcançar uma educação pública, de<br />

qualidade, me ensinou a prestar mais<br />

atenção nas coisas, a ver um lado político<br />

em tudo. Coisa mais maravilhosa<br />

do mundo foi ocupar a escola", recorda.<br />

Bruna também reconhece o legado<br />

das ocupações na construção de uma<br />

sociedade menos desigual e menos<br />

machista. "As gerações passadas lutaram<br />

pela libertação das mulheres e<br />

agora a gente vive uma geração em que<br />

as mulheres já se sentem mais livres,<br />

pelo menos as meninas que são feministas.<br />

Eu diria que a gente tá rejuvenescendo<br />

o debate e isso é im<strong>por</strong>tantíssimo",<br />

conclui.<br />

Começando a escrever esta re<strong>por</strong>tagem,<br />

<strong>por</strong> várias vezes, quase me referia<br />

às estudantes entrevistadas como meninas,<br />

assim como normalmente são<br />

chamadas as adolescentes. Mas o tempo<br />

desse trabalho foi suficiente para perceber<br />

que ser mulher, independente<br />

da idade, brota junto com a força e com<br />

a desconstrução diária de uma sociedade<br />

tão opressora. “Não se nasce mulher,<br />

torna-se mulher”. A famosa frase de Simone<br />

de Beauvoir é dedicada a essas<br />

milhares de estudantes, que se tornaram<br />

ainda mais mulheres na luta em defesa<br />

de uma educação libertadora.;<br />

“<br />

As gerações passadas<br />

lutaram pela libertação<br />

das mulheres<br />

e agora a gente<br />

vive uma geração em<br />

que as mulheres já se<br />

sentem mais livres<br />

36 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


Mídia Ninja<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

37


POR<br />

ARTIGO<br />

Viviene Adriana Xavier<br />

O hiato de gênero no<br />

desempenho em Matemática:<br />

o caso de Belo Horizonte<br />

38 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


“<br />

Durante cerca de<br />

450 anos, o trato de<br />

gênero na educação<br />

brasileira favoreceu<br />

os homens.”<br />

As mulheres lutaram e, <strong>por</strong>tanto,<br />

acumularam ao longo de séculos conquistas<br />

históricas. No campo educacional,<br />

a respeito da equidade entre<br />

homens e mulheres, existem diferenças<br />

expressivas entre a escolaridade das<br />

mulheres e dos homens brasileiros.<br />

No século 19, nós, mulheres, ainda buscávamos<br />

acesso à educação e, hoje, somos<br />

maioria nas universidades e possuímos<br />

maior nível de escolaridade do<br />

que os homens.<br />

Durante cerca de 450 anos, o trato<br />

de gênero na educação brasileira favoreceu<br />

os homens. Mas, na segunda<br />

metade do século XX, houve uma reversão<br />

e as mulheres ultrapassaram<br />

seus congêneres masculinos em termos<br />

de anos médios de escolaridade. Na<br />

década de 1960, os homens tinham escolaridade<br />

média de 1,9 ano e as mulheres<br />

1,7 ano. Já na década de 2000,<br />

as mulheres chegaram a 5,5 anos e os<br />

homens não passaram de 5,1 anos. 1<br />

Do ensino fundamental ao superior,<br />

no que concerne ao acesso, à permanência,<br />

à frequência escolar, à média<br />

de anos de estudos e a outros aspectos,<br />

a virada do hiato de gênero 2 foi favorável<br />

às mulheres. Contudo, paradoxalmente,<br />

quando comparadas com os homens<br />

nos resultados do desempenho em Matemática,<br />

nota-se uma inversão a favor<br />

destes. Essa relação convida-nos a refletir<br />

sobre as relações de gênero e o<br />

desempenho em Matemática.<br />

A opção teórica feita foi <strong>por</strong> definir<br />

o conceito de gênero 3 como elemento<br />

constitutivo das relações sociais, baseado<br />

em diferenças percebidas entre<br />

os sexos e como sendo um modo de<br />

significar relações de poder. O conceito<br />

de gênero é aqui compreendido enquanto<br />

categoria analítica, vendo como<br />

as identidades são construídas historicamente<br />

através dos discursos e como<br />

diferentes sentidos são atribuídos à<br />

diferença sexual.<br />

A Organização para Cooperação e<br />

Desenvolvimento Econômico (OCDE,<br />

2016) com base em dados do Programa<br />

Internacional de Avaliação de Alunos<br />

(Pisa), indica que meninas possuem<br />

melhor desempenho em Leitura e os<br />

meninos possuem performance superior<br />

em Matemática. O relatório mostra<br />

que em todos os países os meninos<br />

superam as meninas na prova de Matemática<br />

e que a diferença é de oito<br />

pontos a mais para eles.<br />

O público alvo desse Programa são<br />

jovens de 15 anos que vivem em 65 países.<br />

Quanto às possíveis causas das diferenças<br />

de desempenho, o relatório<br />

aponta que <strong>elas</strong> podem ser atribuídas<br />

menos à capacidade e mais às diferenças<br />

de autoconfiança de homens e mulheres<br />

durante o processo de aprendizagem.<br />

Estas diferenças também foram<br />

encontradas na realidade brasileira,<br />

tendo o relatório da OCDE apontado<br />

uma distância de 15 pontos nos resultados<br />

de desempenho nas provas do<br />

PISA, em que os meninos alcançaram<br />

385 pontos e as meninas, 370.<br />

Todavia, devido à extensão do território<br />

brasileiro e às disparidades sociais<br />

e econômicas encontradas, torna-se<br />

necessário realizar investigações<br />

que interroguem estes resultados e<br />

possam alargar a discussão. Neste sentido,<br />

o objetivo deste estudo foi o de<br />

mapear e comparar as escolas públicas<br />

estaduais de ensino fundamental em<br />

Belo Horizonte quanto ao hiato de gênero,<br />

em relação ao desempenho em<br />

Matemática, a partir dos resultados da<br />

Prova Brasil.<br />

Este estudo utilizou os microdados<br />

produzidos pelo Sistema de Avaliação<br />

da Educação Básica (Saeb), especificamente<br />

a Prova Brasil, de 2005, 2007,<br />

2009, 2011, 2013 e 2015. Ao longo das<br />

seis edições foram encontradas 121 escolas<br />

públicas estaduais que realizaram<br />

consecutivamente de 2005 a 2015 as<br />

avaliações da Prova Brasil, <strong>por</strong>tanto foram<br />

estas unidades escolares alvo desse<br />

estudo. A análise do desempenho em<br />

Matemática, a partir dos dados da Prova<br />

Brasil indica que do 5º para o 9º ano<br />

existe uma diferença crescente do hiato<br />

de gênero 4 , sendo assim o 9º foi anteposto<br />

referência neste estudo.<br />

Com esses dados foram construídas<br />

trajetórias para buscar compreender<br />

o hiato de gênero no desempenho<br />

em Matemática. Ao longo das seis edições<br />

a trajetória das médias de meninos<br />

e meninas indica que os meninos<br />

ao longo das seis edições invariavelmente<br />

obtiveram desempenho superior<br />

ao das meninas. Conforme<br />

demonstrado no gráfico.<br />

Tanto as meninas quanto os meninos,<br />

entre as edições de 2005 a 2013,<br />

possuíram trajetória crescente, com<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

39


TRAJETÓRIA DAS MÉDIAS DE DESEMPENHO EM MATEMÁTICA DE MENINOS E MENINAS<br />

EDIÇÃO PROVA BRASIL 2005 A 2015<br />

260,0635<br />

261,6183<br />

265<br />

254,5247<br />

253,4177<br />

254,5920<br />

246,7871<br />

247,0762<br />

249,8255<br />

252,4688<br />

251,0908<br />

248,8121<br />

243,8459<br />

240<br />

2005 2007 2009 2011 2013 2015<br />

Fonte: elaboração própria com dados da Prova Brasil 2005 a 2015<br />

destaque para este último. Na edição<br />

de 2013, ambos os sexos tiveram decréscimo<br />

na média de desempenho,<br />

contudo, comparativamente, os meninos<br />

caíram de 261,6 para 253,4 perfazendo<br />

uma queda de 8 pontos, já as meninas<br />

tiveram uma queda de 1 ponto. Na edição<br />

de 2015, os meninos registram uma média<br />

com uma pequena elevação quando<br />

comparada ao ano anterior, já as meninas<br />

possuem uma média menor do que<br />

a registrada em 2013 saíram de 251,0<br />

para 248,8 em 2015.<br />

No entanto, para que possamos verificar<br />

o hiato de gênero no desempenho<br />

em Matemática entre meninos e<br />

meninas ao longo das edições da Prova<br />

Brasil de modo mais apurado, este estudo<br />

realizou uma observação da trajetória<br />

das escolas.<br />

Nas seis edições, as 121 escolas tiveram<br />

suas trajetórias classificadas em<br />

seis tipos, como consta na Tabela ao<br />

lado. Ao longo das edições, 30 escolas<br />

foram identidades sem dados em uma<br />

ou mais edições da Prova Brasil, <strong>por</strong>tanto<br />

não foram consideradas nesta<br />

análise visto que o interesse era a trajetória<br />

ao longo do período.<br />

As escolas que possuem uma trajetória<br />

considerada “consistentemente<br />

positiva” são as que, ao longo das seis<br />

edições da Prova Brasil, apresentaram<br />

uma diferença no desempenho em Matemática<br />

favorável aos meninos. A trajetória<br />

que possui a maior incidência<br />

é a “Negativa em uma edição”, registrada<br />

em 34% das escolas analisadas, o que<br />

significa dizer que nessas escolas os<br />

meninos, em apenas uma das edições,<br />

tiveram desempenho inferior ao das<br />

meninas. Por outro lado, as escolas<br />

em que as trajetórias foram no maior<br />

número de vezes negativas para os meninos<br />

foram classificadas como “Negativa<br />

em quatro edições”, perfazendo<br />

apenas 7% do total das unidades escolares<br />

analisadas.<br />

TRAJETÓRIA DAS ESCOLAS<br />

PÚBLICAS ESTADUAIS DE BELO<br />

HORIZONTE QUANTO À DIFERENÇA<br />

NO DESEMPENHO EM<br />

MATEMÁTICA ENTRE MENINOS<br />

E MENINAS - 2005 A 2015<br />

Trajetória<br />

Total<br />

Consistentemente<br />

positiva 9%<br />

Diferença negativa<br />

em uma edição 34%<br />

Diferença negativa<br />

em duas edições 31%<br />

Diferença negativa em<br />

três edições 19%<br />

Diferença negativa em<br />

quatro edições 7%<br />

Total 100<br />

Fonte: elaboração própria com dados da<br />

Prova Brasil 2005 a 2015<br />

40 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


Ao analisarmos essa diferença <strong>por</strong><br />

unidade escolar observamos que nenhuma<br />

das escolas apresenta uma tendência<br />

de queda consistente da diferença.<br />

Ao longo das edições analisadas,<br />

todas as escolas apresentam oscilações<br />

de quedas e aumentos das diferenças<br />

entre meninos e meninas. Um aspecto<br />

interessante que poderá ser analisado<br />

em estudos futuros é o efeito de fatores<br />

sociais e escolares no desempenho<br />

desses alunos relacionando o hiato de<br />

gênero a outros indicadores sociais das<br />

escolas analisadas.<br />

As escolas com trajetória “Constantemente<br />

positiva” e “Negativa em<br />

quatro edições” são de especial interesse,<br />

<strong>por</strong>que se espera possivelmente<br />

encontrar nestas escolas um número<br />

de evidências quanto às características<br />

que possam levar a uma maior ou menor<br />

igualdade de gênero no desempenho<br />

em Matemática.<br />

Mapear o hiato de gênero no desempenho<br />

em Matemática constitui-se como<br />

um elemento para compreender como<br />

essa diferença no desempenho de gêneros<br />

guarda uma relação im<strong>por</strong>tante<br />

com a proeminência da Matemática na<br />

“<br />

Diferença no desempenho<br />

em Matemática<br />

entre gêneros<br />

possui relação<br />

com os arranjos<br />

sociais.”<br />

atualidade dentro e fora do espaço escolar,<br />

bem como o sucesso em Matemática<br />

é socialmente aceito como uma<br />

expressão de desenvolvimento do pensamento<br />

lógico e racional.<br />

Para Walkerdine a diferença desse<br />

desempenho de meninos e meninas<br />

possui relação com a maneira como<br />

ambos internalizam e naturalizam seus<br />

papéis sociais, enfatizam que expectativas<br />

relacionadas a funções sociais<br />

supostas, típicas de meninos e meninas,<br />

desempenham papel im<strong>por</strong>tante no<br />

processo social de construção de diferenças<br />

de desempenho em Matemática.<br />

Nessa perspectiva a diferença no<br />

desempenho em Matemática entre gêneros<br />

não está pautada em capacidades<br />

cognitivistas, sua base possui relação<br />

com os arranjos sociais. Uma outra interpretação<br />

possível seria a perspectiva<br />

cognitiva: Souza e Fonseca a criticam<br />

<strong>por</strong> considerar que essa visão corrobora<br />

com a ideia de que as mulheres possuem<br />

desempenho inferior ao dos homens<br />

em Matemática, <strong>por</strong>que possuem habilidades<br />

menores no desenvolvimento<br />

do pensamento lógico e matemático.<br />

O hiato de gênero no desempenho<br />

em Matemática precisa ser compreendido<br />

em um contexto o processo de<br />

socialização dos sujeitos que frequentam<br />

os bancos escolares não estão isentos<br />

de relações desiguais construídas<br />

socialmente entre homens e mulheres,<br />

em uma sociedade que historicamente<br />

tem favorecido os homens.<br />

Contudo, isto não significaria dizer<br />

que o que acontece no espaço escolar<br />

não possua o efeito de atenuar ou acentuar<br />

essas desigualdades. Especialmente<br />

ao refletirmos sobre a prática dos docentes,<br />

sujeitos que estão na linha de<br />

frente do processo educacional que ao<br />

desempenharem sua função, carregam<br />

todos os valores e crenças a respeito<br />

dos papéis de gênero em que podem,<br />

<strong>por</strong> consequência, reforçar ou romper<br />

expectativas quanto a esses papéis.;<br />

1 - ROSEMBERG, F.; MADSEN, N. Educação formal,<br />

mulheres e gênero no Brasil Contem<strong>por</strong>âneo. In:<br />

O Progresso das Mulheres no Brasil 2003–2010 /<br />

Organização: Leila Linhares Barsted, Jacqueline<br />

Pitanguy – Rio de Janeiro: CEPIA; Brasília: ONU<br />

Mulheres, 2011.<br />

2 - Segundo Rosemberg e Madsen (2011) no Brasil,<br />

a expressão consagrada tem sido hiato de gênero<br />

apesar de, conceitualmente, ser mais apropriada<br />

á expressão hiato de sexo <strong>por</strong> lidar com variáveis<br />

que buscam captar o sexo biológico entre as duas<br />

opções de resposta, seu oposto, e o desejável,<br />

seria a paridade de o<strong>por</strong>tunidades.<br />

3 - SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de<br />

análise histórica. Educação e Realidade. Porto<br />

Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995.<br />

LOURO, G. L. Educação e Gênero: a escola e a produção<br />

do feminino e do masculino. In: Reestruturação<br />

Curricular: teoria e pratica no cotidiano escolar.<br />

Petrópolis: Vozes, 1995.<br />

4 - ALVES, M. T. G.; SOARES, J.F.; XAVIER, F.P. Desigualdades<br />

Educacionais no Ensino Fundamental<br />

de 2005 a 2013: hiato entre grupos sociais. <strong>Revista</strong><br />

Brasileira de Sociologia, vol. 04, n. 07, jan. / jun.<br />

2016. Disponível em: . Acesso<br />

em 04 abril <strong>2017</strong><br />

5 - WALKERDINE, V. Ciência, Razão e a Mente Feminina.<br />

In: <strong>Revista</strong> Educação & Realidade, Porto<br />

Alegre, v. 32, n.1, p. 07-24, jan. / jun. 2007.<br />

6 - SOUZA, M.C.R.F.; FONSECA, M.C.F.R. Relações<br />

de gênero, Educação Matemática e discurso: enunciados<br />

sobre mulheres, homens e matemática.<br />

Belo Horizonte, autêntica, 2010.<br />

Viviene Adriana Xavier - Mestranda em<br />

Educação pela FaE/UFMG<br />

vivieneadriana@gmail.com<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

41


DIREITOS HUMANOS<br />

POR<br />

Débora Junqueira<br />

Longe<br />

de casa<br />

Refugiadas buscam reconstruir suas vidas no Brasil<br />

Para salvar suas vidas ou preservar<br />

direitos fundamentais como a liberdade,<br />

milhares de pessoas saem dos<br />

lugares em que pertencem para buscar<br />

refúgio, mesmo que esse deslocamento<br />

signifique muito sofrimento ou até<br />

mesmo risco de morte. Ao longo da<br />

história, conflitos, guerras e até mesmo<br />

desastres climáticos provocaram o deslocamento<br />

de pessoas pelo mundo<br />

numa corrente migratória que fez a<br />

humanidade ser o que é. Mas, atualmente,<br />

o problema dos grupos de re-<br />

fugiados tornou-se um fenômeno bastante<br />

preocupante em vários aspectos<br />

como a gravidade dos conflitos internos<br />

em diversos países que envolvem a<br />

geopolítica mundial, pela questão dos<br />

desrespeitos aos direitos humanos e<br />

pelo impacto da presença dos refugiados<br />

nas nações que os recebem.<br />

A questão dos/as refugiados/as ganhou<br />

grande repercussão na mídia<br />

quando passou a afetar o continente<br />

Europeu. Nos notíciários, chocam as<br />

cenas de pessoas que buscam sair de<br />

seus países a qualquer custo em embarcações<br />

lotadas e <strong>por</strong>ões de navios.<br />

Muitas mortas no mar ou presas em<br />

campos de refugiados dependendo de<br />

ajuda humanitária. Segundo dados de<br />

2015 da ONU, pelo menos 870 mil pessoas<br />

cruzaram o Mediterrâneo – vindas<br />

da Turquia ou de países no norte da<br />

África – e pelo menos 2.800 não concluíram<br />

as travessias.<br />

Certamente a cena mais marcante<br />

dos últimos tempos foi a do corpo de<br />

um menino sírio de três anos boiando<br />

42 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


Istock<br />

numa praia turca. O pai do menino foi<br />

o único sobrevivente da família, e voltou<br />

à Síria para enterrar os dois filhos e a<br />

esposa. A imagem correu o mundo,<br />

virou polêmica se devia ou não ter sido<br />

mostrada, mas de alguma forma chamou<br />

a atenção para o sofrimento de crianças,<br />

mulheres e famílias inteiras que sofrem<br />

as consequências de problemas políticos<br />

e/ou religiosos em seus países, na maioria<br />

das vezes agravados pelo intervencionismo<br />

imperialista.<br />

“<br />

“A batalha que se<br />

trava na Síria é <strong>por</strong><br />

uma nova ordem<br />

mundial...<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

43


“<br />

É comum as<br />

mulheres deixarem<br />

o país com<br />

as crianças.”<br />

Victor Moriyama<br />

O principal motivo da chegada de<br />

pessoas refugiadas ao continente<br />

europeu são os conflitos na África e no<br />

Oriente Médio, principalmente na<br />

Síria, que desde 2011 já deixou mais de<br />

400 mil mortos, 4,9 milhões de refugiados,<br />

mais de 6,3 milhões de<br />

deslocados internos e suas principais<br />

cidades em ruínas, sendo a maior<br />

crise de refugiados que o mundo já<br />

testemunhou. “A batalha que se trava<br />

na Síria é <strong>por</strong> uma nova ordem mundial<br />

— Não nos iludamos: o que<br />

estamos presenciando no Oriente<br />

Médio e na Síria em particular é a consolidação<br />

na prática do que vimos<br />

chamando de um novo mundo, multipolar<br />

e não mais unipolar, até hoje sob<br />

a égide e o comando dos Estados Unidos”,<br />

explica Lejeune Mirhan —<br />

sociólogo, escritor e arabista.<br />

Segundo Lejeune, ao contrário<br />

do que se noticia, não há uma guerra<br />

civil na Síria e sim países como Arábia<br />

Saudita, Catar e Turquia, com apoio<br />

dos EUA, atuando para derrubar o<br />

governo de Bashar al-Assad, que é<br />

anti-imperialista e a favor da Palestina.<br />

“A imprensa se refere a ele como<br />

ditador, mas ele está no poder há<br />

onze anos e há dois anos foi reeleito<br />

com a maioria dos votos. Sua popularidade<br />

é alta, acima de 83%”, explica.<br />

O sociólogo conta que na cidade de<br />

Allepo, três mil indústrias foram desmontadas<br />

pelos terroristas que, segundo<br />

ele, não são rebeldes e sim<br />

mercenários. “São grupos que recebem<br />

altos soldos para morrer na Síria.<br />

Eles também cometem abuso sexual<br />

contra as mulheres sírias.”, relata.<br />

Segundo ele, é comum as mulheres<br />

deixarem o país com as crianças em<br />

embarcações perigosas para a Europa<br />

e seus maridos ficarem.<br />

44 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


Vidas<br />

refugiadas<br />

Segundo o relatório “Mulher Sozinha<br />

– a Luta pela Sobrevivência das<br />

Refugiadas Sírias”, divulgado em 2014<br />

pelo Alto Comissariado das Nações<br />

Unidas para Refugiados (ACNUR), mulheres<br />

e crianças eram quase 80% dos<br />

2,8 milhões de sírios que já haviam<br />

sido registrados como refugiados. Na<br />

Síria, uma em cada quatro famílias de<br />

refugiados é chefiada <strong>por</strong> uma mulher.<br />

Conforme o relatório da organização<br />

não-governamental Anistia Internacional,<br />

publicado em janeiro de 2016,<br />

mulheres e meninas são vítimas de<br />

violência, ataques, exploração e assédio<br />

sexual em todas as etapas da jornada<br />

da Turquia até a Grécia e, depois, cruzando<br />

os Bálcãs. O destino d<strong>elas</strong>, assim<br />

como da maioria dos que buscam asilo<br />

na Europa, é a Alemanha. “Muitas disseram<br />

que em quase todos os países<br />

pelos quais passaram, viveram abusos<br />

físicos e exploração financeira, foram<br />

assediadas e pressionadas a ter relações<br />

sexuais com traficantes de pessoas,<br />

agentes de segurança e outros refugiados”,<br />

detalha o relatório. A falta de infraestrutura<br />

adequada também coloca<br />

as mulheres em risco. Num centro de<br />

recepção de refugiados na Alemanha,<br />

não havia banheiro e chuveiro femininos,<br />

e as mulheres eram obrigadas a<br />

dividir as instalações com homens.<br />

A situação de violência contra as<br />

mulheres refugiadas é mais um dos<br />

graves aspectos dessa tragédia de terríveis<br />

pro<strong>por</strong>ções que impõe desafios<br />

para toda a humanidade. “Quem mais<br />

sofre numa guerra e sobre quem a<br />

gente nunca fala são as mulheres. São<br />

<strong>elas</strong> que perdem os filhos, que sofrem<br />

o reflexo da perseguição ao marido,<br />

que ficam vulneráveis ao estupro e outras<br />

formas de violência e são <strong>elas</strong> que<br />

ficam invisibilizadas”, ressalta a advogada<br />

Gabriela Cunha Ferraz, coordenadora<br />

do CLADEM/Brasil (Comitê da<br />

América Latina e Caribe para a Defesa<br />

dos Direitos das Mulheres). Pensando<br />

nessas mulheres, Gabriela idealizou<br />

junto com o fotojornalista Victor Moriyama<br />

o projeto Vidas Refugiadas, que<br />

busca dar visibilidade e voz às mulheres<br />

que pedem refúgio e vivem hoje no<br />

Brasil. O projeto, que tem o apoio da<br />

Agência da ONU para Refugiados (AC-<br />

NUR) e da Organização Internacional<br />

do Trabalho (OIT), também inclui uma<br />

exposição de fotografias itinerante.<br />

Segundo Gabriela, em territórios<br />

que experimentam situações de guerra<br />

e conflito armado, as mulheres são<br />

sempre as que sofrem as mais graves<br />

violações “Como exposição da sua casa,<br />

da sua família e do seu próprio corpo<br />

Istock<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

45


que, não raramente, passa a ser mera<br />

moeda de troca no conflito. A objetificação<br />

dessas mulheres passa, muitas<br />

vezes, desapercebida p<strong>elas</strong> autoridades<br />

internacionais e poucas providências<br />

são tomadas para garantir a manutenção<br />

da sua dignidade. Em busca de salvar<br />

sua própria vida, essa mulher precisa<br />

fugir e é levada a tomar decisões<br />

duras, envolvendo a manutenção da<br />

sua liberdade, o futuro dos filhos e a<br />

preservação da sua família”. (Leia a entrevista<br />

completa)<br />

“<br />

Essa mulher<br />

precisa fugir e é<br />

levada a tomar<br />

decisões duras.”<br />

Victor Moryyama<br />

“Refugiada não<br />

é terrorista”<br />

A professora síria Mayada (foto) é<br />

uma das oito mulheres do projeto Vidas<br />

Refugiadas. Ela era diretora de Departamento<br />

na Universidade de Damasco,<br />

na Síria. 50 anos, casada e mãe de dois<br />

adolescentes, é refugiada reconhecida<br />

pelo Governo Brasileiro desde 2014.<br />

Conforme depoimento para o site do<br />

projeto (disponível em www.vidasrefugiadas.com.br),<br />

a motivação que acelerou<br />

a fuga da família de Mayada da<br />

Siria foi o brutal assassinato de um<br />

professor de educação física da Universidade<br />

de Damasco, à queima roupa,<br />

na saída do trabalho e na frente dos<br />

estudantes. Logo depois desse triste<br />

episódio, no dia em que sua filha mais<br />

velha prestaria vestibular, <strong>elas</strong> presenciaram,<br />

uma sequência de corpos mortos,<br />

expostos, ao longo da estrada. No<br />

caminho, a jovem teve uma crise nervosa<br />

e não conseguiu concluir sua prova.<br />

Sem enxergar outra possibilidade,<br />

a família da Mayada simplesmente<br />

fechou a <strong>por</strong>ta da casa e foi embora,<br />

deixando todos os seus pertences e<br />

bens materiais para trás. A única certeza<br />

do momento era que precisavam<br />

salvar suas vidas e queriam se manter<br />

o mais longe possível daquele cenário<br />

de guerra e constante instabilidade.<br />

Assim, em 2013, os quatro chegaram<br />

em São Paulo, onde foram informados<br />

que sua casa, em Damasco, havia sido<br />

bombardeada e completamente destruída.<br />

Hoje, tentam reerguer sua vida,<br />

aprender um novo idioma, ingressar<br />

em uma Universidade e trabalhar. “A<br />

refugiada não é terrorista. Queremos<br />

trabalhar e viver como seres humanos”,<br />

afirma em seu depoimento para<br />

o site do projeto.<br />

46 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


“O Brasil me escolheu”<br />

Outra mulher refugiada no Brasil<br />

acolhida pelo Projeto Vidas Refugiadas<br />

é Sylvie (foto), vinda da República Democrática<br />

do Congo (RDC), advogada,<br />

34 anos, casada e mãe de 4 filhos. É<br />

refugiada reconhecida pelo Governo<br />

Brasileiro desde 2014. Ao ser perguntada<br />

sobre como havia escolhido o<br />

Brasil para viver, ela disse: “o Brasil é<br />

que me escolheu” e contou sobre como<br />

saiu às pressas do Congo. Ela embarcou<br />

clandestinamente em um navio, salva<br />

pela solidariedade da tripulação. Na<br />

fuga, não houve tempo para recuperar<br />

sua filha mais velha, que estava na escola<br />

e ficou sob os cuidados da sua<br />

mãe. Por não ver a luz do sol, nunca<br />

soube dizer quantos dias durou sua<br />

viagem. Ao desembarcar, Silvye não<br />

foi informada do local onde estava e<br />

não podia imaginar que havia cruzado<br />

o Oceano Atlântico. Perplexa em razão<br />

da quantidade de pessoas brancas que<br />

viu na rua e desorientada <strong>por</strong> não poder<br />

se comunicar em francês, descobriu<br />

que havia chegado ao Brasil. Sem ter<br />

outra opção, Silvye dormiu dois dias<br />

na rua, com seus filhos, até encontrar<br />

um compatriota que a encaminhou<br />

para pedir ajuda em uma organização<br />

não governamental do centro de São<br />

Paulo. Segundo ela, a maior dificuldade,<br />

além da falta de dinheiro, foi a língua.<br />

Sylvie era casada com um militante<br />

político, quando recebeu, pelo telefone,<br />

a notícia da prisão arbitrária do marido,<br />

soube que precisava fugir do país <strong>por</strong>que,<br />

a partir daquele momento, toda<br />

sua família havia sido colocada em real<br />

perigo de vida. Já no Brasil, conseguiu<br />

reunir toda a família e teve mais um<br />

filho. “Estava sendo atendida em uma<br />

ONG, quando ouvi falarem o nome do<br />

meu marido. Nos reencontramos e,<br />

hoje, vivemos juntos com nossos filhos.<br />

Foi um milagre!”.<br />

A República Democrática do Congo<br />

(RDC) vive intensas conturbações políticas<br />

desde o início do seu processo<br />

de independência da Bélgica, em 1960.<br />

Chacinas, estupros de mulheres e os<br />

sequestros de crianças tornaram-se<br />

armas de guerra no Congo. É o maior<br />

e mais sangrento conflito desde a 2ª<br />

Guerra, sendo considerado o holocausto<br />

africano. A região leste da RDC se mantém<br />

ativa numa guerra que já dura três<br />

décadas, envolvendo milícias armadas,<br />

diferentes grupos étnicos e o exército<br />

dos países fronteiriços.<br />

De acordo com o Comitê Nacional<br />

para os Refugiados (Conare), o Brasil<br />

possuia, até abril de 2016, 8.863 refugiados<br />

reconhecidos, de 79 nacionalidades<br />

distintas (28,2% deles são mulheres)<br />

– incluindo refugiados reassentados.<br />

Os principais grupos são compostos<br />

<strong>por</strong> nacionais da Síria (2.298),<br />

Angola (1.420) e Colômbia (1.100). Re-<br />

Victor Moryyama<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

47


Istock<br />

pública Democrática do Congo (968) e<br />

Palestina (376). Isso sem contar populações<br />

em situação análoga ao refúgio,<br />

como os haitianos, vítimas de desastres<br />

naturais e da pobreza.<br />

O número total de solicitações de<br />

refúgio aumentou mais de 2.868% entre<br />

2010 e 2015 (de 966 solicitações em<br />

2010 para 28.670 em 2015). Em setembro<br />

de 2013, o Conare publicou a Resolução<br />

nº.17, que autorizou as missões diplomáticas<br />

brasileiras a emitir visto especial<br />

a pessoas afetadas pelo conflito na Síria,<br />

diante do quadro de graves violações<br />

de direitos humanos. Em 21 de setembro<br />

de 2015, a resolução teve sua duração<br />

prorrogada <strong>por</strong> mais dois anos.<br />

Com a mudança para o governo ilegítimo<br />

de Michel Temer, ainda não há<br />

uma definição concreta da política de<br />

acolhida dos/as refugiados/as. O Brasil<br />

está aberto para receber os/as refugiados/as,<br />

mas não oferece estrutura necessária.<br />

Responsabilidade que acaba<br />

na mão de organizações não-governamentais.<br />

O Instituto de Reintegração<br />

do Refugiado – Brasil (Adus), ONG que<br />

atua em São Paulo e Curitiba, tem projetos<br />

com aulas de <strong>por</strong>tuguês, inserção<br />

no mercado de trabalho, acompanhamento<br />

individual e acolhimento do/a<br />

refugiado/a considerando suas diversas<br />

necessidades, saúde mental, orientação<br />

jurídica, cultura e empreendedorismo.<br />

Segundo Carla Mustafa, diretora de<br />

Relações com Refugiados do Adus, o<br />

processo de adaptação envolve diversos<br />

fatores culturais, socioeconômicos, religiosos,<br />

psicológicos e jurídicos. “Questões<br />

como documentação, moradia,<br />

saúde, educação e emprego estão entre<br />

as maiores dificuldades enfrentadas<br />

pelos/as refugiados/as que tentam se<br />

integrar no país. Aprender a língua<br />

<strong>por</strong>tuguesa é um desafio que o/a refu-<br />

48 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


“<br />

A violência nas mais<br />

diversas formas é<br />

um dos fatores que<br />

motiva a solicitação<br />

de refúgio.”<br />

Victor Moryyama<br />

giado/a precisa ultrapassar para poder<br />

se inserir na sociedade e ter mais o<strong>por</strong>tunidades.<br />

Além disso, a discriminação,<br />

o racismo, a xenofobia e a intolerância<br />

religiosa também são obstáculos para<br />

a integração”, esclarece.<br />

Para Carla, as mulheres refugiadas<br />

enfrentam problemas não apenas p<strong>elas</strong><br />

diferenças culturais, mas <strong>por</strong>que a discriminação<br />

de gênero também é algo<br />

presente na sociedade brasileira. Quanto<br />

às mulheres, segundo ela, a violência<br />

nas mais diversas formas é um dos fatores<br />

que motiva a solicitação de refúgio,<br />

pois, juridicamente, só pode ser considerado<br />

refugiado quem sofre ou teme<br />

sofrer algum tipo de perseguição em<br />

razão de raça, religião, nacionalidade,<br />

grupo social, opiniões políticas ou graves<br />

violações de direitos humanos. “Refugiado<br />

é alguém forçado a sair de seu<br />

país <strong>por</strong> motivos de perseguição que<br />

busca proteção jurídica em outro país<br />

para garantir sua sobrevivência. Por<br />

esta razão, refúgio é um instituto internacional<br />

de proteção de direitos humanos<br />

reconhecido <strong>por</strong> 147 países, incluindo<br />

o Brasil. Já num contexto diverso,<br />

migrante é aquele que busca a<br />

mobilidade <strong>por</strong> vontade própria motivada<br />

<strong>por</strong> fatores econômicos, profissionais,<br />

pessoais, entre outros, mas não<br />

<strong>por</strong>que é perseguido ou corre risco de<br />

vida. Partindo-se desta premissa, a saída<br />

do país de origem do/a refugiado/a é<br />

algo inevitável, independentemente das<br />

condições socioeconômicas”, explica.<br />

O Brasil é signatário dos principais<br />

tratados internacionais de direitos humanos<br />

e é parte da Convenção das Nações<br />

Unidas de 1951 sobre o Estatuto<br />

dos Refugiados e do seu Protocolo de<br />

1967. O país promulgou, em julho de<br />

1997, a sua lei de refúgio (nº 9.474/97),<br />

contemplando os principais instrumentos<br />

regionais e internacionais sobre<br />

o tema. A lei adota a definição ampliada<br />

de refugiado, estabelecida na Declaração<br />

de Cartagena de 1984, que considera<br />

a “violação generalizada de direitos<br />

humanos” como uma das causas de<br />

reconhecimento da condição de refugiado.<br />

Em maio de 2002, o país ratificou<br />

a Convenção das Nações Unidas de<br />

1954 sobre o Estatuto dos Apátridas<br />

(pessoas que não possuem nacionalidade<br />

ou cidadania legal) e, em outubro<br />

de 2007, iniciou seu processo de adesão<br />

à Convenção da ONU de 1961 para a<br />

Redução dos Casos de Apatridia.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

49


ENTREVISTA<br />

Gabriela Ferraz<br />

Arquivo pessoal<br />

“Refugiadas<br />

herdam a<br />

invisibilidade<br />

da mulher<br />

brasileira”<br />

O que é o Projeto Vidas Refugiadas<br />

e qual a motivação para a sua<br />

criação?<br />

O Projeto Vidas Refugiadas nasceu da<br />

necessidade de colocarmos as mulheres<br />

no centro da problemática do refúgio.<br />

Sempre que falamos em deslocamento<br />

de pessoas, evidenciamos a presença<br />

majoritária dos homens. Porém, no<br />

Brasil, as mulheres refugiadas já somam<br />

30% nas estatísticas e esse universo<br />

precisa ser visibilizado desde a perspectiva<br />

da garantia dos direitos da mulher<br />

e seu processo de integração. O<br />

projeto começou a ser desenhado em<br />

encontros femininos que fazíamos para<br />

conversar e trocar experiências. A<br />

partir desses encontros, decidimos que<br />

deveríamos contar algumas histórias<br />

no intuito de sensibilizar a sociedade<br />

brasileira para o tema da mulher refugiada.<br />

E, com base neste objetivo, percebemos<br />

que a fotografia seria um<br />

lindo veículo para transmitir a mensagem<br />

da tolerância e do respeito.<br />

Por que o recorte de gênero?<br />

Como disse, as mulheres refugiadas<br />

acabam herdando a invisibilidade da<br />

mulher brasileira. O deslocamento forçado<br />

é sempre um drama, mas, no<br />

caso das mulheres, a situação piora. É<br />

a mulher que perde os filhos e os maridos<br />

nos combates. É a mulher que<br />

sofre as mais bárbaras violações de direitos<br />

humanos, incluindo violações<br />

ao seu próprio corpo, no país de origem,<br />

no trânsito e no país de acolhida. Precisamos<br />

ser vigilantes <strong>por</strong>que o Brasil<br />

ainda não viveu uma ruptura do seu<br />

machismo estrutural e isso reflete diretamente<br />

nas políticas públicas de<br />

atenção às mulheres refugiadas. Nós<br />

queremos falar de gênero <strong>por</strong>que essas<br />

mulheres, além de serem exemplos de<br />

vida, têm muito para falar.<br />

50 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


Quem são as mulheres refugiadas e<br />

o que <strong>elas</strong> relatam sobre os dramas<br />

vividos em seus países ?<br />

As mulheres refugiadas sao guerreiras.<br />

Mulheres que atravessaram oceanos,<br />

continentes, em busca de salvar suas<br />

vidas e a dos seus filhos. Mulheres que<br />

sentiram medo — como todas nós, e<br />

precisaram se deslocar deixando sua<br />

vida e sua história para trás. Cada mulher<br />

do projeto tem uma história diferente<br />

de perseguição. Algumas d<strong>elas</strong><br />

fugiram de casamentos forçados, outras<br />

de situações de violência generalizada<br />

como acontece na Síria ou no Congo,<br />

outras <strong>por</strong> questões políticas e, ainda,<br />

<strong>por</strong> razões religiosas. Todas viveram<br />

situações absurdas de violência e, hoje,<br />

tentam recomeçar a vida da forma que<br />

a vida se apresenta.<br />

Como você evidencia os preconceitos<br />

<strong>por</strong> que passam as refugiadas? Ocorre<br />

somente pelo fato de serem mulheres<br />

ou também <strong>por</strong> questões culturais<br />

e religiosas?<br />

O grande problema não são as questões<br />

culturais ou religiosas. O problema do<br />

Brasil é o racismo e o machismo que<br />

estão entranhados na nossa sociedade<br />

e no seio das nossas instituições. O<br />

país não viveu sua ruptura e, com isso,<br />

segue repetindo os mesmos padrões<br />

de com<strong>por</strong>tamento que leva à desigualdade,<br />

à segregação e a diversas formas<br />

de violência. As refugiadas são,<br />

em sua maioria, negras e, <strong>por</strong> isso, sofrem<br />

duplamente. Não podemos falar<br />

em integraçao de refugiados sem falar<br />

em racismo.<br />

Por que essas pessoas escolheram o<br />

Brasil para viver?<br />

Quando falamos em refúgio, não falamos<br />

em escolha. Diferente de um imigrante<br />

— que consegue fazer um planejamento<br />

mínimo, antes de se deslocar, a refugiada<br />

é aquela que precisou sair do seu país<br />

de origem levando muito pouco, ou quase<br />

nada, na bagagem. A refugiada vai<br />

chegar aonde conseguir ir e, de preferência,<br />

o mais longe possível do seu<br />

país de origem. O Brasil passou a ser<br />

uma possibilidade de rota quando a Europa<br />

passou a fechar suas fronteiras.<br />

As pessoas seguem se deslocando, o<br />

número de guerras aumenta e as estatísticas<br />

se agravam. Se uma parte do<br />

mundo fecha os olhos para o problema,<br />

outra parte vai precisar acolher essa<br />

população de forma mais intensa. Apesar<br />

de não ser uma escolha propriamente<br />

dita, todas as refugiadas sempre<br />

narram que o Brasil se tornou uma opção<br />

<strong>por</strong> não haver histórico de guerra.<br />

Como você avalia as políticas públicas<br />

para a integração dos refugiados<br />

no Brasil?<br />

As políticas públicas de integração de<br />

refugiados são claramente insuficientes.<br />

No ano de 2015 e começo de 2016, conseguimos<br />

avançar em algumas pautas<br />

que favoreceram a integração de pessoas<br />

em deslocamento no nosso país<br />

como, <strong>por</strong> exemplo, o acesso às universidades<br />

e ao Pronatec. Porém, hoje,<br />

posso dizer que estamos retrocedendo<br />

no pouco que avançamos. As políticas<br />

estão paralisadas e não acompanham<br />

o dinamismo do fluxo de pessoas. Hoje,<br />

um solicitante de refúgio aguarda, em<br />

média, 3 a 4 anos, apenas para receber<br />

seu documento <strong>por</strong>que o Ministério<br />

da Justiça não designa um orçamento<br />

digno e uma equipe capacitada e dedicada<br />

à análise destes casos. Atualmente,<br />

o processo de refúgio nao é uma pauta<br />

levada a sério no Brasil. Veja bem! Eu<br />

estou falando apenas do direito fundamental<br />

a receber uma identificação,<br />

sem entrar na disputa dos direitos sociais<br />

e econômicos que, diga-se de passagem,<br />

também devem ser integralmente<br />

assegurados. Infelizmente, ainda<br />

não saimos do estágio da proteção aos<br />

refugiados e, <strong>por</strong> isso, não conseguimos<br />

avançar nas políticas de integração<br />

que, na lógica natural, deveriam ser<br />

um passo posterior.<br />

Quais os efeitos desse projeto para<br />

as mulheres que vocês deram voz?<br />

Há algum relato de reconstrução da<br />

vida ou identidade?<br />

Cada mulher tem a sua dificuldade.<br />

Aos poucos vamos conseguindo avançar,<br />

mas o processo é lento e sofrido.<br />

O primeiro passo é obter a documentação<br />

de refugiada no Brasil. Das 8 mulheres<br />

do projeto, ainda temos duas<br />

que ainda não receberam um posicionamento<br />

do Ministério da Justiça e<br />

aguardam decisão. Outro passo é tentar<br />

garantir o equilíbrio emocional dessas<br />

mulheres, através de atendimentos de<br />

saúde mental que são oferecidos <strong>por</strong><br />

amigos voluntários que se solidarizam<br />

com a causa. Outra fase é tentar aproximar<br />

as famílias que, durante a fuga,<br />

se perderam. Neste sentido, no ano<br />

passado conseguimos trazer a filha de<br />

uma d<strong>elas</strong> ao Brasil e, hoje, lutamos<br />

para conseguir os vistos para os filhos<br />

da nigeriana Nckechinyere Jonathan.<br />

O processo de se readaptar em um<br />

novo país é penoso, mas, aos poucos,<br />

<strong>elas</strong> estão conseguindo vencer <strong>por</strong> si<br />

próprias e se estabelecer enquanto<br />

mulheres, profissionais e mães.;<br />

Gabriela Ferraz - Advogada, militante, mestra em<br />

Direitos Humanos pela Universidade de Estrasburgo,<br />

coordenadora nacional do Comitê Latino Americano<br />

para Defesa do Direito da Mulher CLADEM/Brasil e<br />

realizadora do Projeto Vidas Refugiadas.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

51


Carina Santos<br />

“<br />

A tragédia<br />

ainda não<br />

terminou”<br />

52 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


MEIO AMBIENTE<br />

POR<br />

Carina Santos<br />

Da lama<br />

à luta<br />

Mulheres atingidas <strong>por</strong> um dos maiores crimes<br />

socioambientais do país reescrevem uma nova história de vida<br />

Após atravessar mais de 140 quilômetros,<br />

eu e o motorista Samuel saímos<br />

de Belo Horizonte e chegamos a Barra<br />

Longa, município próximo a<br />

Mariana/MG, uma das tantas comunidades<br />

atingidas pelo “tsunami” de<br />

lama, em novembro de 2015. Era um<br />

sábado ensolarado e já na entrada da<br />

cidade as moradoras Simone e Odete<br />

nos esperavam. O sol forte iluminava<br />

essas mulheres e o sorriso em cada<br />

rosto. Senti que para <strong>elas</strong> era uma missão<br />

estar ali, abertas a contar uma história,<br />

ainda tão escamoteada pela grande<br />

mídia: o rompimento das barragens<br />

da mineradora Samarco e suas acionistas<br />

Vale e BHP Billiton é considerado<br />

um dos maiores crimes socioambientais<br />

da história e suas marcas ainda<br />

estão presentes em milhares de vidas<br />

impactadas pela tragédia.<br />

Nos abraçamos e eu disse o quanto<br />

a cidade me parecia bonita. Simone<br />

logo nos disse: “Acho que a primeira<br />

coisa que vocês precisam ver é o que a<br />

Samarco fez com aquela lama toda.<br />

Isso a Globo não mostra.” Quase dois<br />

anos depois do crime, nos deparamos<br />

com grandes montes de lama de rejeitos.<br />

O cheiro, a cor, a poeira e os grandes<br />

caminhões circulando deixaram a<br />

certeza de que a tragédia ainda não<br />

terminou. Parecia cenário, mas era<br />

real. A lama ainda assombra a vida<br />

dessas pessoas. Simone e Odete contaram<br />

que a Samarco fez de tudo para<br />

limpar o centro da cidade, para passar<br />

uma imagem de que tudo estava resolvido.<br />

“O que eles fizeram foi trazer a<br />

lama pra cá, que é a região mais vulnerável<br />

da cidade. Então os mais pobres<br />

têm que sofrer com essa lama?”, questiona<br />

Odete. O espaço é o Parque de<br />

Exposições do município, uma área<br />

grande onde se realizavam eventos.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

53


Com a saúde da filha afetada, Simone luta <strong>por</strong> indenizações.<br />

Carina Santos<br />

disse que desde que levaram a lama<br />

para lá, as(os) moradoras(es) perderam<br />

a liberdade que tinham no lugar, sobretudo<br />

as mulheres, já que majoritariamente<br />

são homens de outras cidades<br />

que trabalham para a Samarco. Por<br />

fim, Ana Paula desabafa que a única<br />

coisa que a empresa propõe é pagar<br />

um aluguel para as pessoas do local.<br />

“Não quero me separar das outras famílias.<br />

Aqui a gente vive como comunidade,<br />

sempre tínhamos encontro neste<br />

espaço. Meu filho jogava bola aqui<br />

com outros meninos. Não quero me<br />

separar das pessoas daqui”, afirmou.<br />

Ana Paula não quis tirar fotos e respeitei.<br />

Mas a imagem dessa mulher<br />

era marcante. Um lindo rosto negro,<br />

aquele olhar profundo quando olhava<br />

o entorno do seu lugar, uma voz de<br />

calmaria e de força. Quantas memórias<br />

de Ana Paula e daquela gente a lama<br />

da Samarco ainda soterra? Qual o sabor<br />

daqu<strong>elas</strong> verduras desde que a poeira<br />

invadiu o lar dessa família? O que é<br />

ser mulher neste cenário em que a<br />

tragédia é revivida a cada instante?<br />

Em torno vivem famílias, que hoje<br />

convivem a poucos metros dos rejeitos<br />

e de tudo que eles trazem. Onde havia<br />

festas, encontros, futebol e alegria,<br />

agora é depósito de lama.<br />

Passamos em frente a uma das casas<br />

e uma mulher estava ali sentada. Seu<br />

olhar estava distante, em direção ao<br />

varal cheio de roupas estendidas. “Ana<br />

Paula, quer falar com a repórter? Vem<br />

dizer das coisas que vocês estão passando<br />

aqui!”, gritou Simone. Ela se demonstrando<br />

um pouco tímida desceu<br />

o terreiro e só aceitou falar. Não queria<br />

filmagem, nem fotografia. Disse que tinha<br />

muita roupa no varal <strong>por</strong>que só<br />

pode lavar aos sábados, quando os funcionários<br />

da Samarco não estão trabalhando<br />

ali. Durante a semana, segundo<br />

ela, é tanta poeira subindo que não vale<br />

a pena. Suja tudo de novo. Em pouco<br />

tempo de conversa, Ana Paula Santos<br />

contou que como dona de casa seu serviço<br />

tem triplicado. “Preciso limpar a<br />

casa várias vezes, é muita poeira que<br />

fica aqui”, afirmou. A grande horta que<br />

ela cultiva na entrada da casa também<br />

pega toda essa poeira, mas é uma produção<br />

necessária para a subsistência<br />

da família. “Eu não sou reconhecida<br />

pela Samarco como atingida, então não<br />

recebo nada. Preciso da horta para colher<br />

parte do alimentos, como eu já<br />

fazia antes”, conta. Ana Paula também<br />

No fundo no quintal<br />

Saindo de perto de toda aquela<br />

lama, Odete nos convidou à sua casa.<br />

Na entrada, estava sua mãe Dona Francisca<br />

e o pai, Seu João, observando a<br />

rua em uma cadeira de balanço. Lado<br />

a lado. Cada um com seus 88 anos, há<br />

mais de 60 anos casados. Dona Francisca<br />

logo começou a me contar que na<br />

região tinha muita capivara e que é<br />

uma carne muito gostosa. Também<br />

me disse que depois de tanta lama na<br />

cidade ela teve uma alergia muito forte<br />

e que seu corpo coçava muito. “Tive<br />

que cuidar com a erva de bicho, você<br />

54 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


conhece? A gente tá vivendo igual<br />

índio para sarar das coisas”, contou<br />

com um sorriso. Descendo para conhecer<br />

o quintal da casa, Odete me<br />

contou que depois da tragédia seus<br />

pais passaram <strong>por</strong> uma confusão mental<br />

muito grande, de ansiedade, desespero.<br />

Ainda hoje Odete precisa estar<br />

atenta aos cuidados deles, além de cuidar<br />

das suas próprias angústias deixadas<br />

com o crime da Samarco.<br />

O Rio do Carmo, um dos formadores<br />

do Rio Doce, passa no fundo do<br />

quintal de Odete. Enquanto víamos a<br />

água turva descendo, ela se lembrava<br />

que ali eles sempre faziam churrasco<br />

e pescavam aos finais de semana, os<br />

netos brincavam na beira da água e a<br />

alegria era garantida. Retrato comum<br />

em um lugar onde o rio faz parte da<br />

construção histórica e afetiva de quem<br />

mora ali. Assim como no fundo do<br />

quintal de Odete, em vários outros<br />

quintais o rio era vivo, como um membro<br />

da família. Rio do alimento, do<br />

lazer, da limpeza, da relação com a natureza.<br />

O rio está morto e em cada<br />

casa se sente um clima de adeus.<br />

Quando perguntei do quintal, os<br />

olhos dela brilhavam olhando para<br />

aquele pedaço de terra ainda cheio de<br />

minério: “Aqui eu plantava tanta coisa.<br />

Tinha minha horta, acerola, inhame,<br />

quiabo, chuchu, graviola e até lichia”,<br />

detalhou. Disse-me que está tentando<br />

plantar de novo, mas que nessa terra<br />

ela sabe que as plantas não vão vingar.<br />

Indignada, mostrou-me um ramo do<br />

pezinho de laranja, ainda pequeno e<br />

aparentemente sem força. “Tá vendo<br />

as folhas enferrujadas? Essa terra adoece<br />

as plantas”, disse.<br />

Odete também revelou que antes da<br />

tragédia ela já passava <strong>por</strong> um princípio<br />

de depressão. Depois daquele novembro<br />

“<br />

Essa terra<br />

adoece as<br />

plantas”<br />

Carina Santos<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

55


de 2015, a doença se agravou e hoje ela<br />

toma mais do dobro de remédios para<br />

dar conta. “É muito difícil conviver com<br />

isso. Me dá muita tristeza não ter a<br />

vida que a gente tinha aqui antes. Eu tô<br />

tendo que ter muita força para seguir”,<br />

lamentou. Nota-se a tristeza, mas a cada<br />

instante com essas mulheres eu percebia<br />

também a esperança. A caminhada sob<br />

um sol forte mostrava-me o quanto <strong>elas</strong><br />

representam muitas das atingidas que<br />

estão na luta <strong>por</strong> seus direitos e <strong>por</strong><br />

suas memórias.<br />

Carina Santos<br />

Bordando resistências<br />

Passando pelo centro da cidade,<br />

um faixa estendida na sacada da varanda<br />

dizia: “Indignação! Casa de 1923,<br />

tombada pelo patrimônio. Descaso da<br />

Samarco.” A casa é da artesã Maria<br />

Aparecida Lanna (foto), mais conhecida<br />

como Pice. Ela nos recebeu e mostrou<br />

as trincas nas paredes, provocadas<br />

pelo alto fluxo de caminhões e uso de<br />

maquinaria na região. Contando sobre<br />

o dia da tragédia, Pice relatou que a<br />

lama invadiu seu quintal e emocionada<br />

disse que é muito triste reviver essa<br />

cena. O acontecido impactou seu trabalho<br />

como bordadeira e também o<br />

trabalho que ela desenvolvia com mulheres<br />

de outras comunidades próximas.<br />

“O trabalho teve que parar <strong>por</strong>que<br />

não tinha como <strong>elas</strong> atravessarem a<br />

ponte para chegar aqui. Foi um impacto<br />

muito grande. Eu ficava desesperada<br />

sem saber o que ia acontecer”, relata.<br />

Pice também conta que depois da tragédia<br />

a Samarco colocou tapumes em<br />

torno das casas e não era possível conversar<br />

com os vizinhos, com as pessoas<br />

com quem sempre houve uma relação<br />

próxima, já que o centro da cidade<br />

virou um canteiro de obras, repleto de<br />

pessoas desconhecidas. Emocionada,<br />

lembrou de como esses dias pós-tragédia<br />

foram traumáticos.<br />

Assim como as demais mulheres,<br />

Pice traz no olhar a indignação e tristeza<br />

com tudo que ocorreu e ainda<br />

ocorre. Mas foi nesta casa, junto também<br />

à Simone e Odete, que eu descobri<br />

a força histórica que as mulheres de<br />

Barra Longa carregam. “Aqui em Barra<br />

Longa as mulheres aprenderam a ser<br />

muito independentes. São poucas as<br />

mulheres que deixam de fazer alguma<br />

coisa <strong>por</strong> causa do marido. Eu não conheço.<br />

Se você quer fazer alguma coisa<br />

na cidade, procura as mulheres. Toda<br />

ação que tem aqui são as mulheres<br />

que tomam a frente e os homens respeitam”,<br />

ressaltou. <strong>Elas</strong> afirmaram que<br />

o bordado acabou construindo uma<br />

independência e protagonismo na vida<br />

das mulheres, já que sempre estavam<br />

reunidas, além de fortalecer a própria<br />

geração de renda e romper com a dependência<br />

financeira.<br />

Sobre a arte do bordado, Pice, que<br />

já tem seu trabalho reconhecido internacionalmente,<br />

disse que sempre<br />

foi influenciada p<strong>elas</strong> histórias da própria<br />

cidade. As paisagens, versos e frases<br />

que remetem à atmosfera do lugar<br />

são fontes de inspiração. E para ela,<br />

seguirá sendo. A tragédia deixou marcas,<br />

mas não vai abalar seu trabalho.<br />

“A lama não vai chegar ao meu bordado.<br />

Vou continuar bordando as coisas boas<br />

da nossa cidade”, enfatizou.<br />

56 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


As mãos dessas mulheres agora<br />

também bordam resistências. O<br />

tempo muitas vezes dividido entre os<br />

afazeres de casa e o artesanato, hoje é<br />

um tempo que se concilia com a mobilização<br />

em busca de direitos. Seguindo<br />

a caminhada pela cidade, conhecemos<br />

Marta Rôla Mol (foto), professora<br />

aposentada, que fortalece a trincheira<br />

das mulheres impactadas. Conta que<br />

começou a participar das reuniões organizadas<br />

pelo Movimento de Atingidos<br />

e Atingidas <strong>por</strong> Barragens (MAB)<br />

<strong>por</strong> querer mudar a situação da cidade,<br />

ajudando também outras pessoas que<br />

foram mais impactadas. O MAB ampliou<br />

a luta na cidade e ela afirma que<br />

a maioria das pessoas que hoje participam<br />

ativamente da comissão local é<br />

formada <strong>por</strong> mulheres. “Homem tem<br />

mais dificuldade de conciliar as coisas,<br />

fala que tá cansado depois do trabalho,<br />

que tem outras coisas para fazer. Aí a<br />

gente assume mesmo”, comenta.<br />

E a teoria de Marta foi mesmo se demonstrando<br />

real. Algumas casas à<br />

frente, Simone apresentou-me à dona<br />

Eva, mais uma mulher que borda resistência<br />

frente às ações da Samarco. Eva<br />

Helena, dona de casa, perdeu tudo com<br />

a chegada da lama. Segundo ela, não<br />

houve tempo de salvar nada. Debruçada<br />

sobre a janela antiga, contou que<br />

mora nessa casa alugada e que é difícil<br />

se acostumar. “A gente fica com o emocional<br />

abalado. Tenho muita saudade<br />

de onde eu vivia, de como eu vivia”, afirmou.<br />

Mais tristeza transformada em<br />

força. Eva participa ativamente das reuniões<br />

<strong>por</strong>que quer ter sua casa reconstruída.<br />

Quando eu me preparava para<br />

fotografá-la, vejo se aproximando uma<br />

menina de olhos grandes e sorriso<br />

largo. Era sua neta Larissa, de 14 anos.<br />

E confirmando mais uma vez a teoria<br />

de Marta, Larissa também já participa<br />

da mobilização local e conta da sua alegria<br />

em frequentar as reuniões e participar<br />

das ações do comitê das/os<br />

atingidas/os. “Eu gosto demais de participar,<br />

de saber mais sobre as coisas<br />

que estão acontecendo. Também tenho<br />

saudade da minha casa e quero voltar<br />

“<br />

pra lá,” ressaltou. A casa de Eva e Larissa<br />

ainda está sendo reconstruída<br />

pela Samarco, mas <strong>elas</strong> demonstram o<br />

incômodo com relação à demora, lembrando<br />

que a tragédia já vai completar<br />

dois anos. Tempo demais para a saudade,<br />

certamente ausente nas contas e<br />

planilhas da mineradora.<br />

Companheira me ajuda, que eu não posso andar só.<br />

Eu sozinha ando bem, mas com você ando melhor"<br />

Carina Santos<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

57


Eva e a neta Larissa participam das mobilizações contra a Samarco.<br />

O sol que ardia durante o dia agora<br />

já era suave. O dia se despedia. O pôr<br />

do sol coloria o rio sujo e, em meio a<br />

tanta revolta, aquela luz alaranjada das<br />

cinco trazia esperança e alegria. A parada<br />

final seria na casa da Simone, anfitriã<br />

com quem comecei as primeiras<br />

conversas, ainda <strong>por</strong> telefone. Chegando<br />

à sua rua, senti o mesmo cheiro<br />

forte de onde a lama está depositada.<br />

Ela me contou que a Samarco está<br />

usando os rejeitos para calçar as ruas<br />

da cidade, como uma forma de “recompensar”<br />

os males. Mas os males só<br />

têm se multiplicado. Simone contou<br />

que sua filha Sofia, de dois anos, tem<br />

tido problemas respiratórios sérios<br />

desde que essas obras começaram.<br />

Buscou os atestados médicos em que<br />

estava relatado que as complicações<br />

pulmonares eram recorrentes da inalação<br />

de substâncias como o minério.<br />

“Foi uma luta cuidar do tratamento da<br />

minha filha e a Samarco não me reconhece<br />

como afetada. Não recebo nem<br />

um real deles”, afirmou.<br />

Simone também relata que a tragédia<br />

impactou seu emocional, sua<br />

casa em si não foi afetada pela lama,<br />

mas dos seus familiares sim. Além dos<br />

objetos que se foram, também muita<br />

memória. “Na casa da minha vó tínhamos<br />

fotos de tantos momentos, da nossa<br />

história, tudo se perdeu. Minha família<br />

sempre tão unida hoje quase não<br />

se encontra todo mundo. Os que foram<br />

afetados a Samarco mandou para outros<br />

lugares. Foi uma separação”, lamenta.<br />

Para ela, a questão psicológica é muito<br />

marcante e gera preocupação. “Eu nunca<br />

achei que teria que tomar remédio<br />

controlado na vida. Depois de tudo que<br />

aconteceu, eu tive sim que tomar. Ficava<br />

muito ansiosa, triste, foi difícil lidar<br />

com aquilo.”<br />

Enquanto Simone contava-me sobre<br />

os impactos, Sofia pedia o colo da<br />

mãe.Amamentando a filha, disse-me<br />

o quanto quer continuar lutando <strong>por</strong><br />

seus direitos e pelos direitos das pessoas<br />

que sofreram com essa tragédia.<br />

“A Samarco é uma criminosa, nós temos<br />

que seguir mobilizadas nesta luta, as<br />

coisas não podem ficar assim como<br />

eles querem.”<br />

A professora reforçou a preocupação<br />

com as mulheres afetadas. Segundo ela,<br />

os casos de alcoolismo aumentaram e<br />

isso repercute em mais casos de violência<br />

doméstica. Além disso, enfatiza<br />

que com o grande número de homens<br />

que trabalham para a Samarco na cidade,<br />

os casos de assédio contra as mulheres<br />

têm aumentado. Para ela, a sobrecarga<br />

também é visível. “Nós mulheres, já estamos<br />

neste lugar do cuidado. Com<br />

tudo isso, ficamos mais atentas com a<br />

família, com os filhos”, afirma.<br />

Simone Silva, professora de Artes<br />

e Odete Cassiano, dona de casa. Duas<br />

mães, trabalhadoras que fizeram da<br />

tristeza, luta e hoje integram o MAB,<br />

conscientizando e ajudando intensamente<br />

na mobilização da comunidade.<br />

Já anoitecendo e me despedindo, per-<br />

58 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


cebi que de fato o dia foi uma missão<br />

para essas mulheres, compromisso de<br />

revelar que o crime da Samarco não<br />

pode ser só resumido a números. É<br />

um crime contra memórias, sentimentos,<br />

intimidades e cotidianos. Um crime<br />

que não deve ser só relembrado em<br />

datas específicas. Ele está presente a<br />

cada instante, em cada olhar.<br />

Essas mulheres dedicaram todo<br />

um dia para compartilhar suas histórias<br />

e dar voz a outras mulheres que<br />

também assumem essa batalha contra<br />

a tirania da mineradora Samarco e de<br />

toda a tragédia que continua escorrendo<br />

com a lama ao longo de todo o<br />

Rio Doce. E assim como <strong>elas</strong>, milhares<br />

de mulheres que vivem a dor de um rio<br />

morto, encontram forças para reconstruir<br />

uma história de protagonismo e<br />

igualdade.<br />

“Dossiê mulheres na lama e luta”<br />

Em maio deste ano, as jornalistas<br />

Isis Medeiros e Agatha Azevedo<br />

escreveram para a rede Jornalistas<br />

Livres o “Dossiê mulheres na<br />

lama e na luta”, que demonstra o<br />

quanto as mulheres seguem sendo<br />

as mais afetadas pela tragédia.<br />

De uma forma geral, os impactos<br />

já começam com a construção das<br />

barragens. O texto revela que “segundo<br />

o Movimento dos Atingidos<br />

<strong>por</strong> Barragens (MAB), existem relatos<br />

de norte a sul do país que mostram<br />

problemas como perda dos trabalhos<br />

geradores de renda, desagregação<br />

da comunidade, aumento da prostituição<br />

e da violência e diversos outros<br />

impactos particularmente graves<br />

para as mulheres. A mesma constatação<br />

apareceu em 2010 em um relatório<br />

do Conselho de Defesa dos<br />

Direitos da Pessoa Humana [atual<br />

Conselho Nacional de Direitos Humanos]<br />

sobre violações de direitos<br />

na construção de barragens: ‘As mulheres<br />

são atingidas de forma particularmente<br />

grave e encontram maiores<br />

obstáculos para recomposição<br />

de seus meios e modos de vida’, diz<br />

o documento.”<br />

Além de já sofrerem com a construção<br />

de barragens, milhares de<br />

mulheres ao longo da Bacia do Rio<br />

Doce hoje continuam sofrendo com o<br />

rompimento da barragem de Fundão.<br />

Entre tantos casos de violação às mulheres,<br />

o dossiê destaca a política patriarcal<br />

da Samarco e de outras empresas<br />

envolvidas com relação ao gerenciamento<br />

das indenizações. O texto<br />

destaca:<br />

“O promotor Guilherme Meneghin<br />

conta que somente no município de<br />

Mariana, 345 cartões de compensação<br />

foram distribuídos às famílias atingidas<br />

em Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo.<br />

Destes, ele calcula que em 20% dos<br />

casos a Samarco “agiu com irresponsabilidade,<br />

repassando o cartão e a<br />

chefia da família para o homem, ao<br />

contrário do que recomendamos”. Letícia<br />

Oliveira, membro da coordenação<br />

estadual do MAB (Movimento dos Atingidos<br />

<strong>por</strong> Barragens) em Minas Gerais,<br />

reforça a situação de desigualdade. “As<br />

mulheres foram as mais atingidas, muitas<br />

passaram a ser dependentes dos<br />

maridos, pois os cartões com verba de<br />

manutenção são destinados ao chefe<br />

da família, desconsiderando a mulher.”<br />

As jornalistas listaram no dossiê<br />

algumas das principais violações contra<br />

as mulheres ocorridas com a tragédia:<br />

Caso de aborto: Grávida sofre<br />

aborto durante avalanche de lama,<br />

e ele não foi considerado uma morte<br />

ou sequer relacionado com o rompimento<br />

da barragem<br />

Água contaminada, relatos de<br />

doenças, coceiras, alergias de pele<br />

e respiratórias, dores de estômago,<br />

de cabeça, infecção no útero. (As<br />

mulheres têm mais essa preocupação<br />

com os filhos).<br />

Cartão entregue aos homens<br />

— não reconhecimento das mulheres<br />

no processo indenizatório. Além<br />

de inúmeras outras ainda não reconhecidas<br />

como atingidas pela mineradora.<br />

Em Barra longa (MG): aumento<br />

do número de homens trabalhando<br />

dentro da cidade, nos espaços<br />

onde antes as mulheres tinham<br />

maior liberdade de circulação. Casos<br />

de estupro, aumento da violência<br />

contra as mulheres e da prostituição<br />

foram relatados nos municípios<br />

onde se concentram os trabalhadores<br />

das obras de contenção da<br />

Samarco/ Vale / BHP.<br />

Violação da privacidade e<br />

intimidade: meninas e mulheres<br />

que tiveram que usar peças íntimas<br />

doadas.;<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

59


Istock<br />

POR<br />

ARTIGO<br />

Mariana Hasse<br />

Violência de gênero<br />

contra as mulheres: os<br />

desafios do cuidado integral<br />

60 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


A violência de gênero distingue um<br />

tipo de opressão e de crueldade construída<br />

nas relações interpessoais que<br />

é reproduzida no cotidiano. Esse tipo<br />

de violência, apesar de dizer respeito<br />

a todas as pessoas, incide, principalmente,<br />

sobre as mulheres.<br />

Desde os anos 1960, os movimentos<br />

feministas vêm denunciando a violência<br />

contra as mulheres como uma violação<br />

grave de direitos humanos. Com isso,<br />

lentamente, algo que até então era tratado<br />

apenas como sendo da esfera privada,<br />

passou a ser discutido publicamente,<br />

e assumido como um problema<br />

do Estado. Essa difusão garantiu ao<br />

tema da violência, considerado um<br />

grave problema de saúde pública, uma<br />

conotação política.<br />

No Brasil, pesquisas indicam que 4<br />

em cada 10 mulheres já passaram <strong>por</strong><br />

um episódio de violência — em grande<br />

parte das vezes, perpetrada pelo seu<br />

próprio parceiro. Relatório com dados<br />

sobre os homicídios no país mostra<br />

que a cada duas horas uma mulher<br />

morre, 80% das vezes agredida pelo<br />

atual ou ex-companheiro. A pro<strong>por</strong>ção<br />

de mulheres assassinadas pelo<br />

parceiro é 7 vezes maior do que a<br />

pro<strong>por</strong>ção de homens assassinados<br />

<strong>por</strong> suas companheiras.<br />

O número de homicídios de mulheres<br />

– crime tipificado como ‘feminicídio’ 1<br />

– aumentou 17,2% no Brasil na última<br />

década, quase o dobro do aumento de<br />

assassinatos de homens no mesmo período.<br />

A maioria dessas mulheres vivem<br />

situações crônicas e acabam morrendo<br />

em decorrência de episódios de violência<br />

previsíveis e evitáveis.<br />

Nas últimas décadas, muito se avançou<br />

no enfrentamento do problema.<br />

O principal marco desse processo é a<br />

Lei 11.340 em 2006, resultado de muitos<br />

“<br />

Mais da metade<br />

das mulheres em<br />

situação de violência<br />

procuram <strong>por</strong><br />

ajuda.”<br />

anos de luta dos movimentos feministas.<br />

Conhecida como ‘Lei Maria da Penha’,<br />

ela tipifica a violência doméstica<br />

contra as mulheres, oferece penas mais<br />

duras aos agressores e maior proteção<br />

judicial e policial às mulheres em situação<br />

de violência.<br />

No bojo da maior produção de conhecimento<br />

científico sobre o tema,<br />

surgiram conselhos da condição feminina<br />

e de direitos da mulher, assim<br />

como coordenadorias das mulheres<br />

em diversos municípios. Nesse período,<br />

também se desenvolveram diversos<br />

serviços que atendem mulheres em situação<br />

de violência.<br />

Por ter incor<strong>por</strong>ado a demanda<br />

feminista <strong>por</strong> um atendimento em<br />

rede, a Lei Maria da Penha prevê que<br />

as mulheres tenham acesso a serviços<br />

que funcionem de maneira articulada<br />

uns com os outros. Busca-se com isso,<br />

garantir o acesso a um cuidado integral,<br />

ou seja, que identifique e cuide<br />

dos diversos aspectos que geram e<br />

resultam da violência.<br />

Devido à complexidade do fenômeno,<br />

não é possível que apenas um serviço<br />

e/ou setor atenda a tais necessidades<br />

de forma integral. Por isso, a<br />

atuação em rede se constitui como<br />

uma das estratégias mais relevantes<br />

para lidar com uma questão multifacetada<br />

como essa.<br />

Portanto, para enfrentar situações<br />

de violência é fundamental que haja<br />

uma atuação articulada entre serviços<br />

de saúde (unidades de saúde, hospitais),<br />

da assistência social (CREAS, casas abrigo),<br />

de segurança pública (Delegacias<br />

de Defesa da Mulher, IML), do sistema<br />

de justiça (defensorias públicas, fóruns)<br />

e da educação (escolas). É a partir do<br />

apoio oferecido <strong>por</strong> essa rede que as<br />

mulheres em situação de violência poderão<br />

enfrentar a problemática vivida.<br />

Apesar de bastante relevante, essa<br />

estratégia é desafiadora uma vez que<br />

a qualidade do cuidado oferecido, especialmente<br />

no que se refere ao encorajamento,<br />

informações precisas, não<br />

julgamento e respeito às decisões da<br />

mulher, ainda precisa melhorar em<br />

todos os setores.<br />

Ao contrário do que se acredita,<br />

mais da metade das mulheres em situação<br />

de violência procuram <strong>por</strong> ajuda.<br />

Porém, como as suas necessidades ultrapassam<br />

o que é oferecido pelos serviços<br />

aos quais <strong>elas</strong> têm acesso, muitas<br />

acabam desistindo desse processo.<br />

Estudos mostram que o que é oferecido<br />

<strong>por</strong> muitos desses serviços não<br />

favorece a emancipação das mulheres,<br />

pois há poucas ações além das abordagens<br />

individuais. Dessa forma, perde-se<br />

a dimensão de que, como a origem<br />

da violência tem origens sociais, o seu<br />

enfrentamento também precisa abordar<br />

os aspectos envolvidos em sua<br />

(re)produção.<br />

Em tais serviços muitas práticas<br />

também são cercadas de preconceitos<br />

de gênero que prejudicam as condições<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

61


de acolhimento, escuta e diálogo que<br />

poderiam ser estabelecidos entre profissionais<br />

e mulheres. Padrões tradicionais<br />

sobre o papel das mulheres (cuidadoras,<br />

responsáveis, amáveis) e dos<br />

homens (provedores, agressivos) são<br />

multiplicados sem problematização.<br />

Ademais, processos de trabalho burocráticos,<br />

fragmentados e destituídos<br />

de sentido dificultam que as relações<br />

de trabalho gerem transformações.<br />

Além disso, a cultura da prevenção<br />

da violência ainda é escassa no Brasil.<br />

Como não se cuida da origem do problema<br />

os serviços ficam sobrecarregados<br />

e a qualidade do cuidado oferecido<br />

diminui.<br />

Nesse contexto, muitos serviços<br />

acabam reproduzindo a lógica da violência<br />

através de dominação e cerceamento<br />

das mulheres. Como a absorção<br />

das demandas dos movimentos sociais<br />

depende de muitas disputas éticas e<br />

políticas, as mudanças ocorrem de forma<br />

lenta e cíclica.<br />

O isolamento e fragmentação dos<br />

serviços e sua consequente sobrecarga,<br />

geram nos profissionais sentimentos<br />

de im<strong>por</strong>tância e desamparo diante<br />

dos complexos casos de violência. Alienados<br />

de seu trabalho e tomados <strong>por</strong><br />

preconceitos, os profissionais encontram<br />

muita dificuldade em atuar de<br />

forma articulada.<br />

Divulgação Governo RS<br />

Por isso, apesar da grande quantidade<br />

de serviços existentes, muitas<br />

mulheres ainda não conseguem encontrar<br />

a ajuda que necessitam para<br />

lidar com o problema da violência.<br />

Os esforços das mulheres na busca<br />

<strong>por</strong> ajuda serão mais efetivos quanto<br />

melhor forem as respostas encontradas.<br />

Por isso, a qualidade do cuidado recebido<br />

é fundamental – encorajamento,<br />

informações precisas, não julgamento<br />

e respeito às decisões da mulher contribuem<br />

para a continuidade da rota<br />

de cuidado, enquanto o descaso, a burocracia<br />

e a dificuldade de acesso são<br />

grandes inibidores.<br />

A violência, como negação da condição<br />

de sujeito das mulheres, alijando-as<br />

de seus referenciais de linguagem,<br />

lugar e sentido social de si e de suas<br />

possibilidades só pode ser enfrentada<br />

a partir de uma construção coletiva,<br />

partilhada entre as mulheres e os próprios<br />

trabalhadores.;<br />

1 - O feminicídio – ou femicídio - se refere às<br />

mortes de mulheres decorrentes de conflitos de<br />

gênero, ou seja, pelo simples fato de serem mulheres.<br />

Estes crimes geralmente decorrem de situações<br />

de abusos domiciliares, ameaças ou intimidação,<br />

violência sexual ou situações de desigualdade de<br />

poder com o homem.<br />

Mariana Hasse - Psicóloga sanitarista, professora<br />

da Faculdade de Medicina da Universidade Federal<br />

de Uberlândia.<br />

62 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

63


Mark Florest<br />

“<br />

“Tenho com quem<br />

transar, mas não tenho<br />

com quem me<br />

relacionar. Sem ter<br />

um namorado, me<br />

vejo no lugar de uso.<br />

Antes, pensava que<br />

isso era um problema<br />

meu, talvez <strong>por</strong>que<br />

o meu cabelo<br />

não fosse bonito…”


POR<br />

RACISMO<br />

Débora Junqueira<br />

A solidão<br />

sentida na pele<br />

Afetividade e relacionamentos interraciais na<br />

pauta do feminismo negro<br />

“Tenho com quem transar, mas não<br />

tenho com quem me relacionar. Sem<br />

ter um namorado, me vejo no lugar de<br />

uso. Antes, pensava que isso era um<br />

problema meu, talvez <strong>por</strong>que o meu<br />

cabelo não fosse bonito...”. Esse depoimento<br />

é da enfermeira e educadora<br />

Nath Sol (foto) que diz sentir na pele<br />

o peso do olhar social sobre as mulheres<br />

negras. “Hoje tenho a consciência de<br />

que o problema de solidão das mulheres<br />

negras ocorre em função de um contexto<br />

histórico e acredito que isso somente<br />

poderá mudar com as próximas<br />

gerações se esse assunto, que é uma<br />

ferida profunda, for debatido com toda<br />

a sociedade”, afirma.<br />

Nath, 31 anos, conta que diante da<br />

dificuldade em compreender o motivo<br />

de não conseguir parceiros para relacionamentos<br />

afetivos mais duradoros,<br />

passou a fazer psicoterapia e a participar<br />

de conversas sobre o feminismo<br />

negro. “Os homens querem transar<br />

com a mulher negra que carrrega consigo<br />

o estereótipo de gostosa e boa de<br />

cama. No entanto, para um relacionamento<br />

sério, eles não costumam se interessar<br />

tanto. Esse racismo tem a ver<br />

com os resquícios da escravidão. A menina<br />

branca com o mesmo poder aquisitivo<br />

que eu é vista como mais rica e<br />

os homens, quando estão em um patamar<br />

social maior escolhem uma mulher<br />

loira para se relacionar, como sinal<br />

de status. A mulher negra só é escolhida<br />

no final da festa”, desabafa.<br />

“Consigo expressar sobre a minha<br />

solidão na internet. Participo de um<br />

grupo no Facebook (fechado) só com<br />

mulheres negras que discutem esse<br />

tema e expressam suas angústias, abusos<br />

e casos de rejeição. Ser mal recebida<br />

numa loja <strong>por</strong> ser negra não é fácil. O<br />

grupo é uma tentativa de acolhimento”,<br />

conta, citando que há outros grupos<br />

na internet como o Afrodengo e o Pretinder,<br />

que focam na paquera virtual<br />

entre pessoas negras.<br />

O Censo de 2010 revelou que as<br />

mulheres negras são as que menos se<br />

casam, sendo a maioria na categoria<br />

de “celibato definitivo”, ou seja, que<br />

nunca tiveram um cônjuge. Uma análise<br />

de dados do Censo de 1960-1980, feita<br />

pela pesquisadora Elza Berquió, já constatava<br />

esse fenômeno. No texto Nupcialidade<br />

da população negra no Brasil<br />

(nº 11/1987), do Núcleo de Estudos de<br />

População (NEPO/ Unicamp) a autora<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

65


elata que, em relação à união, as mulheres<br />

brancas são aqu<strong>elas</strong> que mais<br />

se casam se comparada com as mulheres<br />

negras (pretas e pardas), sendo<br />

as negras a maioria entre as mulheres<br />

solteiras, viúvas e separadas. Outro aspecto<br />

im<strong>por</strong>tante encontrado na pesquisa<br />

revelou que as mulheres negras<br />

são as que se casam (uniões consensuais)<br />

mais tardiamente e com menor<br />

intensidade se comparado às mulheres<br />

brancas, aos homens brancos e negros.<br />

O que confirma, segundo a autora, um<br />

alto índice de celibato entre as pretas<br />

e pardas, mesmo havendo um excesso<br />

de homens no grupo racial negro. Berquió<br />

atribui este fator ao excesso de<br />

mulheres no grupo racial branco, mas<br />

tal argumento torna-se insuficiente<br />

para se entender as preferências afetivas<br />

na opinião da pesquisadora Ana<br />

Cláudia Lemos, autora da tese de doutorado<br />

em Ciências Sociais (disponível<br />

em https://goo.gl/DcQWaC) Branca<br />

para casar, mulata para f..., negra para<br />

trabalhar: escolhas afetivas e significados<br />

de solidão entre mulheres negras<br />

em Salvador, Bahia.<br />

Coletivo Amapoa<br />

Construção social<br />

Na tese são citados diversos dados<br />

e argumentos que comprovam a existência<br />

de um fenômeno social que envolve<br />

os relacionamentos interraciais.<br />

“Em relação aos relacionamentos interraciais,<br />

as pesquisas citadas pela<br />

autora demonstravam que a miscigenação<br />

tem sido mais realizada <strong>por</strong><br />

parte dos homens negros com parceiras<br />

brancas ou com mulheres de pele clara<br />

do que ao contrário, ou seja, as negras<br />

quando se casam, casam-se dentro do<br />

seu próprio grupo racial. Outro elemento<br />

im<strong>por</strong>tante encontrado é de<br />

que as escolhas matrimoniais entre os<br />

grupos raciais diferenciados dar-seiam<br />

conforme o status social. Homens<br />

negros têm preferência <strong>por</strong> se casar<br />

com mulheres brancas cujo status social<br />

é inferior ao seu, ou seja, homens<br />

negros que adquiriram algum tipo de<br />

prestígio social, econômico ou educacional<br />

casavam-se com mulheres brancas<br />

pobres, com baixo grau de instrução”,<br />

explica a autora.<br />

“Os ditos populares 'branca para<br />

casar, mulata para f.... e negra para trabalhar',<br />

que foram evocados e legitimados<br />

na obra freyreana [Casa Grande<br />

& Senzala, de Gilberto Freyre], funcionam<br />

como elementos estruturantes<br />

das práticas sociais e afetivas dos indivíduos.<br />

Tanto assim que a miscigenação<br />

brasileira é uma prática cultural<br />

que se realiza muito mais pela preferência<br />

afetivo-conjugal de homens negros<br />

<strong>por</strong> mulheres brancas, do que ao<br />

contrário, como atestam alguns estudos,<br />

o que contraria o modelo freyreano<br />

de uma democratização das<br />

relações sexual–raciais no Brasil.<br />

Como foi visto, para alguns autores, a<br />

miscigenação foi uma violência física<br />

66 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


e simbólica, característica da ordem<br />

escravocrata”, conclui Lemos.<br />

Ana Cláudia Lemos afirma que as<br />

mulheres negras investigadas nos estudos<br />

tentaram burlar a solidão, isto é,<br />

a ausência de parceiros, atribuindolhes<br />

significações produzidas numa<br />

rede de emaranhados de categorias que<br />

denotam maneiras de pensar e de negociar<br />

às suas escolhas, na busca <strong>por</strong><br />

outros caminhos e novos espaços sociais.<br />

“Esses espaços se materializaram no<br />

trabalho, na família, na política, na comunidade,<br />

no bairro, na escola, no sindicato,<br />

na religião; produziram novas<br />

redes de relações sociais, redefinindoas,<br />

quebrando tabus, lutando contra a<br />

opressão, politizando os seus corpos<br />

<strong>por</strong> meio de novos contextos”, diz.<br />

Divulgação<br />

Nem bela, nem recatada<br />

“As mulheres negras têm dificuldades<br />

de formar um lar e encontrar<br />

um amor”, afirma a professora Johanna<br />

Monagreda, pesquisadora no Núcleo<br />

de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher<br />

(Nepem/ UFMG). “Por mais que pareça<br />

“<br />

Construíram-se<br />

estereótipos como<br />

se o corpo da mulher<br />

negra fosse público,<br />

de fácil acesso.”<br />

banal, amar é uma parte constitutiva<br />

do ser, mas com todos os estereótipos<br />

que há sobre a mulher negra é muito<br />

mais difícil pra ela encontrar um parceiro,<br />

se casar e formar um lar. Existe<br />

um conjunto de ideias sobre a mulher<br />

negra, construídos na escravidão, como<br />

parte da estratégia de dominação. Construíram-se<br />

estereótipos como se o corpo<br />

da mulher negra fosse público, de<br />

fácil acesso. A mulher negra não é considerada<br />

bela, nem recatada, nem do<br />

lar. Então <strong>elas</strong> sofrem <strong>por</strong> serem consideradas<br />

pessoas de um corpo fácil,<br />

como se você não precisasse se comprometer”,<br />

analisa. Para combater isso,<br />

Johanna acredita que, como os espaços<br />

de ignorância são preenchidos com<br />

preconceitos e estereótipos, <strong>por</strong>tanto,<br />

“é necessário reconhecer a problemática<br />

com uma conversa franca sem a<br />

negação desses estereótipos”.<br />

Para a feminista e mestra em filosofia,<br />

Djamila Ribeiro (foto), a concepção<br />

racista da sociedade faz com<br />

que as mulheres negras sejam rejeitadas.<br />

No depoimento em vídeo (TV Boitempo<br />

– junho/16) sobre relações interraciais<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

67


Marcha das Mulheres Negras contra o racismo e a violência, 2015<br />

e a solidão da mulher, ela discute a delicada<br />

questão das relações interraciais<br />

da perspectiva do feminismo negro.<br />

Djamila explica que existe um processo<br />

histórico que desumaniza a mulher negra<br />

e a coloca como um sujeito que não<br />

é digno de ser amado e, ainda, que as<br />

mulheres negras não querem ser vistas<br />

somente como parceiras sexuais. Sobre<br />

os relacionamentos interraciais, ela<br />

acredita que existe uma construção social<br />

e que esse tema não pode ser discutido<br />

no campo individual.<br />

“Desde o período colonial, a mulher<br />

negra é objetificada e ultrassexualizada.<br />

A miscigenação brasileira<br />

é fruto de estupro dessas mulheres.<br />

Ao mesmo tempo, a mulher branca é<br />

colocada como a bonita, o padrão de<br />

beleza e a que merece ser amada. O<br />

homem negro absorve os valores<br />

dessa sociedade e os internaliza como<br />

verdade, <strong>por</strong>tanto, vai achar que estar<br />

com uma mulher branca vai dar a ele<br />

um certo status. Ninguém pode dizer<br />

que as pessoas não podem se amar e<br />

se relacionar. A gente não está falando<br />

do indivíduo e sim que existe<br />

uma estrutura que faz com que as<br />

mulheres negras sejam preteridas.<br />

Quando você tem um grupo tão<br />

grande que não se casa, então o problema<br />

não é individual. É um problema<br />

estrutural. O gosto é<br />

construído, <strong>por</strong>tanto existe um sujeito<br />

que é construído para ser amado<br />

e o que não é. Não queremos impedir<br />

os relacionamentos interraciais. Às<br />

vezes, a reação de uma mulher negra<br />

quando vê um homem negro com<br />

uma mulher branca pode ser entendida<br />

como raiva, de certa forma, <strong>elas</strong><br />

sentem uma rejeição. É preciso entender<br />

que existe uma construção social<br />

em cima disso e de forma alguma<br />

68 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


a gente pode discutir isso no campo<br />

do indivíduo”, explica a feminista.<br />

No artigo “Por que as mulheres negras<br />

são minoria no mercado matrimonial”,<br />

publicado no site Geledés em<br />

21/05/2015, a autora Clarice Fortunato<br />

Araújo, pesquisadora da Universidade<br />

Federal de Santa Catarina – UFSC, cita<br />

várias fontes para ampliar a discussão<br />

sobre o tema dos relacionamentos interraciais.<br />

Para ela, a oficialização da<br />

união é im<strong>por</strong>tante, não apenas <strong>por</strong><br />

questões afetivas, mas, principalmente,<br />

<strong>por</strong> questões legais, como planejamento<br />

familiar, divisões de bens,<br />

Lula Marques<br />

entre outros. Ainda que a mulher, para<br />

ser feliz, não tenha que, necessariamente,<br />

se casar dentro dos padrões tradicionais,<br />

quando ela faz esta opção, a<br />

cor da sua pele não deveria ser uma<br />

desvantagem nesse processo.<br />

“A reflexão mais im<strong>por</strong>tante que<br />

fica é que a mulher negra precisa se libertar<br />

e celebrar essa liberdade, entendendo<br />

que são bonitas, atraentes,<br />

fortes, inteligentes e poderosas, mas<br />

esse poder e força estão intrinsecamente<br />

ligados ao fato de ser mulher<br />

negra. E, como mulheres, merecem<br />

ser amadas e respeitadas, independentemente<br />

da sua cor. Enfim, a mulher<br />

negra, que se sente no dilema de<br />

ser preterida, não tem que passar <strong>por</strong><br />

um processo de embranquecimento<br />

para ser aceita. O que precisa urgentemente<br />

mudar é a cultura, pois esta não<br />

representa um povo e suas diversidades.<br />

Um país tão grande, plural e com<br />

realidades tão distintas não deve ser<br />

compreendido em um padrão colonialista,<br />

escravocrata e arcaico”, opina.<br />

“<br />

A mulher<br />

negra precisa<br />

se libertar. e<br />

celebrar essa<br />

liberdade”<br />

Feminismo<br />

negro:<br />

visibilidade<br />

para a<br />

opressão de<br />

gênero e raça<br />

A discussão sobre os relacionamentos<br />

interraciais se soma às mais diversas<br />

pautas do feminismo negro. Movimento<br />

social protagonizado <strong>por</strong> mulheres negras<br />

para dar visibilidade às suas causas<br />

e reivindicar seus direitos.<br />

No Brasil, o Feminismo Negro iniciou-se<br />

na década de 1970, a partir de<br />

uma forte demanda das mulheres negras<br />

feministas. Como descreve a escritora<br />

Jarid Arraes no artigo “Feminismo<br />

Negro: sobre minorias dentro<br />

da minoria” (publicado no site da <strong>Revista</strong><br />

Fórum), o movimento negro tinha<br />

sua face sexista, as relações de gênero<br />

funcionavam como fortes repressoras<br />

da autonomia feminina e impediam<br />

que as ativistas negras ocupassem posições<br />

de igualdade junto aos homens<br />

negros; <strong>por</strong> outro lado, o movimento<br />

feminista tinha sua face racista, preterindo<br />

as discussões de recorte racial<br />

e privilegiando as pautas que contemplavam<br />

somente as mulheres brancas.<br />

Segundo ela, as necessidades das mulheres<br />

negras são muito peculiares e<br />

sem que seja feita uma profunda análise<br />

do racismo brasileiro, é impossível<br />

atender às urgências do grupo.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

69


“O problema da mulher negra se encontrava<br />

na falta de representação pelos<br />

movimentos sociais hegemônicos. Enquanto<br />

as mulheres brancas buscavam<br />

equiparar direitos civis com os homens<br />

brancos, mulheres negras carregavam<br />

nas costas o peso da escravatura, ainda<br />

relegadas à posição de subordinadas;<br />

<strong>por</strong>ém, essa subordinação não se limitava<br />

à figura masculina, pois a mulher<br />

negra também estava em posição servil<br />

perante a mulher branca. A partir dessa<br />

percepção, a conscientização a respeito<br />

das diferenças femininas foi ganhando<br />

cada vez mais corpo. Grandes nomes<br />

da militância feminina negra foram fazendo<br />

história, a exemplo de Lélia Gonzalez<br />

e Sueli Carneiro. A atenção e a<br />

produção de conteúdos foram dedicadas<br />

a discussões de raça e classe, buscando<br />

romper uma zona de conforto que o<br />

ativismo feminista branco cultivava, especialmente<br />

aquele que limitava sua<br />

ótica aos problemas das mulheres de<br />

boa condição financeira e acesso à educação”,<br />

analisa Jarid.<br />

A pesquisadora e membro do programa<br />

Ações Afirmativas da UFMG,<br />

Vanda Lúcia Praxedes, explica que, a<br />

partir da década de 80, houve uma organização<br />

mais sistemática dos grupos<br />

de mulheres negras. Ela considera um<br />

dos marcos do feminismo negro, o III<br />

Encontro Feminista Latino-Americano<br />

e do Caribe, realizado em Bertioga-SP,<br />

em 1985, quando as mulheres negras<br />

questionaram o papel da questão racial<br />

e começaram a enfatizar a im<strong>por</strong>tância<br />

de pensar essa temática com a questão<br />

de gênero. Em 1988, houve avanços<br />

com a constituinte no Brasil e depois<br />

com a III Conferência Mundial contra<br />

o Racismo, a Discriminação Racial, a<br />

Xenofobia e formas Conexas de Intolerância<br />

(Durban, 2001).<br />

“O feminismo negro traz para o movimento<br />

feminista um grande questionamento<br />

que eu chamo de deslocamento<br />

teórico epistemológico, trazendo<br />

o conceito de intersecionalidade. Não<br />

se pode pensar a primazia de uma<br />

opressão sobre a outra. A interseção<br />

entre gênero e raça é fundamental para<br />

compreender a diferença entre as mulheres.<br />

Há vários elementos que diferenciam<br />

as mulheres negras e brancas.<br />

Do ponto de vista do trabalho a trajetória<br />

d<strong>elas</strong> é muito diferente. As negras<br />

são mais desrespeitadas e desvalorizadas<br />

se observadas as condições objetivas<br />

de existência. Na educação, <strong>por</strong><br />

exemplo no ensino superior, as condições<br />

das professoras negras e brancas<br />

são diferenciadas. A negra sofre com<br />

o racismo institucional, com dificuldade<br />

de acesso aos cargos de chefia”, explica.<br />

Para Natália Alves, militante feminista<br />

e pesquisadora da UFMG, o feminismo<br />

negro traz uma visibilidade fundamental<br />

para a opressão de gênero e<br />

racial. “Na década de 60, a partir da segunda<br />

onda do feminismo, as mulheres<br />

negras que participavam desse movimento<br />

disseram: somos todas mulheres,<br />

mas a questão de raça, renda e classe é<br />

uma diferença entre nós”, ressalta. A<br />

feminista lembra que muitas mulheres<br />

usaram o emprego de outras mulheres,<br />

como no serviço doméstico onde há<br />

predominância de mulheres negras e<br />

pobres, para poder se emancipar.<br />

Marcelo Casal/AgBrasil<br />

70 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


O peso da cor nas estatísticas<br />

Mercado de trabalho<br />

Enquanto mulheres brancas lutam<br />

para que seus salários sejam equiparados<br />

aos salários dos homens<br />

brancos, as mulheres negras recebem<br />

ainda menos (- 40%). Outra<br />

face perversa do racismo atrelado<br />

ao sexismo é a jornada tripla de<br />

trabalho. As trabalhadoras se distanciam<br />

de seus lares e filhos para<br />

que possam prover sustento, muitas<br />

vezes cuidando dos filhos das<br />

mulheres com melhor condição<br />

financeira, e, <strong>por</strong> não possuírem<br />

os recursos, não podem contratar<br />

alguém para prestar assistência<br />

às crianças e fazer manutenção<br />

em suas próprias casas. As creches<br />

não atendem à demanda e<br />

as funções das mulheres pobres<br />

se acumulam.<br />

Educação<br />

Conforme o censo do ensino superior,<br />

há um entrada majoritária<br />

de mulheres em relação aos homens<br />

no ensino superior, mas permanece<br />

uma diferença de entrada<br />

de mulheres brancas e negras,<br />

que são minoria. Na universidade<br />

há um número pequeno de professoras<br />

negras, mesmo com muitas<br />

mulheres professoras.<br />

Aborto e direitos<br />

reprodutivos<br />

No Brasil, o aborto é legal e gratuito<br />

somente se a gravidez for<br />

gerada <strong>por</strong> um estupro, causar<br />

risco de morte para a mãe ou no<br />

caso do feto ser anencéfalo. Apesar<br />

disso, mulheres negras e pobres<br />

encontram resistência do<br />

sistema de saúde, sendo coagidas<br />

<strong>por</strong> equipes médicas e <strong>por</strong> religiosos<br />

de suas comunidades. Por<br />

não contarem com su<strong>por</strong>te e não<br />

terem recursos financeiros que<br />

paguem clínicas particulares, muitas<br />

dessas mulheres jamais conseguem<br />

realizar o aborto. Por causa<br />

das complicações geradas <strong>por</strong><br />

abortos clandestinos, as mulheres<br />

“<br />

As negras são<br />

mais de 60% das<br />

vítimas de feminicídio,<br />

exatamente<br />

<strong>por</strong>que<br />

não contam com<br />

assistência adequada<br />

e estão<br />

mais vulneráveis<br />

aos abusos<br />

das próprias autoridades.<br />

negras morrem em números altíssimos<br />

e também estão mais<br />

vulneráveis ao indiciamento criminal,<br />

caso sobrevivam.<br />

Violência doméstica<br />

e sexual<br />

Os homicídios de mulheres negras<br />

aumentaram 54% em dez anos no<br />

Brasil. Em contraposição, no mesmo<br />

período, de 2003 a 2013, o número<br />

de assassinatos de mulheres<br />

brancas caiu 9,8%. Esses dados<br />

fazem parte do Mapa da Violência<br />

2015: Homicídios de Mulheres no<br />

Brasil, um estudo da Faculdade<br />

Latino-Americana de Ciências Sociais.<br />

As negras são mais de 60%<br />

das vítimas de feminicídio, exatamente<br />

<strong>por</strong>que não contam com<br />

assistência adequada e estão mais<br />

vulneráveis aos abusos das próprias<br />

autoridades.<br />

Padrão de beleza<br />

e mídia<br />

Cabelos lisos e loiros, narizes finos,<br />

bochechas rosadas, olhos azuis<br />

e axilas claras são alguns exemplos<br />

de como a estética ocidental<br />

celebra características brancas<br />

como melhores e mais b<strong>elas</strong>. Por<br />

causa dessa padronização, atrizes<br />

negras são minoria absoluta e<br />

quase nunca são convidadas para<br />

estrelarem na televisão.<br />

Fontes: IBGE, IPEA e OIT. Artigo de Jarid Arraes:<br />

Feminismo Negro: sobre minorias dentro da minoria<br />

(<strong>Revista</strong> Fórum)<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

71


Racismo e<br />

sexismo não<br />

escolhem<br />

lugar<br />

Mark Florest<br />

A professora Ângela Gomes (foto)<br />

lembra que uma das primeiras bandeiras<br />

do movimento feminista negro<br />

foi a melhoria das condições de trabalho<br />

das empregadas domésticas. “Não<br />

há como a gente fazer um feminismo<br />

que coloque nas ruas e no mercado de<br />

trabalho as mulheres, tendo uma segunda<br />

mulher escravizada dentro de<br />

casa”, sentencia.<br />

Ela lembra, ainda, de outras lutas<br />

como a do fim da exigência da “boa<br />

aparência” na seleção de trabalho. “Esse<br />

quesito representava uma estética racista<br />

em um país que enaltece a aparência<br />

de pele clara e cabelo pra baixo<br />

e nariz fino”, explica. Em 1978, o movimento<br />

negro unificado conseguiu que<br />

o racismo fosse considerado um crime<br />

inafiançável.<br />

Ângela ressalta que, no mercado de<br />

trabalho, as mulheres negras ganham<br />

40% menos que as brancas nas mesmas<br />

condições e com curso superior. “Quantas<br />

chefes ou médicas negras você já<br />

teve na vida? Sexismo de mercado,<br />

simbólico, continua considerando que<br />

as mulheres negras são escravas e não<br />

que foram escravizadas. E pensam que<br />

o lugar dela é só no trabalho doméstico,<br />

com um salário inferior”, afirma.<br />

“Hoje as mulheres negras, principalmente<br />

do ponto de vista político,<br />

estão mais organizadas em fóruns e<br />

articulações, assim como no movimento<br />

negro unificado, que é um dos primeiros<br />

movimentos contra o racismo<br />

e o capitalismo e que evidencia que o<br />

Brasil tem uma ferida aberta e uma<br />

dívida histórica com os negros desse<br />

país oriundos da África”, afirma.<br />

Conforme afirma o sociólogo Carlos<br />

Hasenbalg, pesquisador argentino<br />

nas áreas de relações raciais, estratificação<br />

social e mobilidade social, há<br />

um legado escravista como <strong>por</strong> exemplo<br />

o analfabetismo maciço e a concetração<br />

demográfica dos escravos, no<br />

entanto, isso não é um fator determinante<br />

para a subordinação social dos<br />

negros. Ele afirma serem o racismo e a<br />

discriminação social os fatores principais<br />

para tal subordinação. Para o<br />

autor, a discriminação e o preconceito<br />

têm uma relação funcional com a preservação<br />

dos privilégios (ganhos materiais<br />

e simbólicos) que os brancos<br />

obtêm da desqualificação competitiva<br />

dos não brancos.<br />

A realidade é que a organização das<br />

mulheres negras tem conseguido unir<br />

as lutas contra o racismo e o sexismo<br />

com o objetivo de dar visibilidade às<br />

questões de etnia e gênero. Dentro de<br />

um contexto onde o capitalismo restringe<br />

grandes mudanças para a redução<br />

das desigualdades, esse movimento<br />

é fundamental para avanços<br />

civilizatórios.;<br />

72 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


Aqui você ouve, durante 24 horas, música de<br />

qualidade e fica em sintonia com temas atuais sobre<br />

educação, trabalho, política, cidadania, meio ambiente,<br />

cultura e pautas sociais. Um espaço com muita<br />

participação dos professores.<br />

www.sinprominas.org.br/radio-sinpro/<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

73


Internet


POR<br />

FEMINISMO<br />

Débora Junqueira<br />

Quem tem medo<br />

da linguagem<br />

não-sexista?<br />

Manual mostra como a linguagem pode reforçar<br />

ou combater estereótipos de gênero<br />

Como expressar uma linguagem<br />

que não reproduza o machismo da sociedade?<br />

A partir dessa preocupação<br />

é possível constatar a grafia de “x” ,“@”<br />

ou “a/o” para representar as letras que<br />

marcam os gêneros feminino e masculino<br />

em alguns textos escritos. Na<br />

expressão oral, o machismo, que costuma<br />

transparecer em frases cotidianas,<br />

também pode ser combatido com expressões<br />

que tiram o gênero feminino<br />

da invisibilidade.<br />

A discussão sobre esse tema não é<br />

nova no universo feminista, mas o uso<br />

de alternativas para quebrar os preconceitos<br />

de gênero a partir da linguagem<br />

não-sexista ainda gera polêmica<br />

e desconforto. Um exemplo foi quando<br />

Dilma Rousseff tomou posse e pediu<br />

para ser chamada de presidenta. Alguns<br />

veículos da mídia se recusaram a usar<br />

o termo e a criticaram, dizendo que<br />

era coisa de feminista, mesmo com<br />

linguistas explicando que o uso estava<br />

correto. A palavra “presidenta“ foi dicionarizada<br />

desde 1812 e é mais antiga<br />

e tradicional em <strong>por</strong>tuguês que a forma<br />

neutra “a presidente“, apenas dicionarizada<br />

a partir de 1940.<br />

No Sinpro Minas, também logo após<br />

a atual presidenta Valéria Morato tomar<br />

posse e enviar uma comunicado <strong>por</strong><br />

e-mail, assinando como “presidenta”,<br />

um sindicalizado retornou o e-mail<br />

questionando o uso do termo. O Sinpro<br />

Minas, assim como outras entidades<br />

sindicais do país, utilizam a linguagem<br />

não-sexista com o objetivo de dar visibilidade<br />

às questões de gênero.<br />

O Sinpro é filiado à Central dos Trabalhadores<br />

e Trabalhadoras do Brasil<br />

(CTB). A única central sindical brasileira<br />

que expõe no próprio nome a<br />

afirmação de gênero. “A linguagem<br />

pode ser usada para reforçar padrões<br />

de com<strong>por</strong>tamento tipicamente patriarcais<br />

dentro de uma sociedade em<br />

sua maioria composta <strong>por</strong> mulheres,<br />

ou para libertar as mulheres, explicitando<br />

suas diferenças. Neste sentido,<br />

aconteceu o debate sobre o nome da<br />

Central quando a entidade estava para<br />

ser criada. Foi im<strong>por</strong>tante incluir essa<br />

questão para mostrar que a trabalha-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

75


dora não estaria só na condição de representada,<br />

mas, sim de protagonista”,<br />

afirma Ivânia Pereira da Silva, secretária<br />

de gênero da CTB.<br />

Segundo ela, a Central, além de<br />

afirmar sua identidade de classe, também<br />

reafirma o seu compromisso com<br />

a emancipação feminina no rumo à<br />

igualdade de gênero. “No início, incluir<br />

‘trabalhadora’ no nome da Central<br />

causou estranheza e resistência. Alguns<br />

até falaram que a entidade não<br />

‘decolaria’ <strong>por</strong>que o nome era muito<br />

grande, mas a CTB completou seus<br />

dez anos de fundação, cumprindo um<br />

papel relevante e propulsor da unidade<br />

da classe trabalhadora para o enfrentamento<br />

ao Capital e às ameaças<br />

antidemocráticas. E conquistamos espaços<br />

im<strong>por</strong>tantes como uma titularidade<br />

do Conselho Nacional dos<br />

Direitos da Mulher”, afirma.<br />

Segundo Ana Maria Colling (foto),<br />

doutora em História do Brasil, organizadora<br />

do Dicionário Crítico de Gênero<br />

(UFGD, 2015), um dos campos privilegiados<br />

de luta <strong>por</strong> igualdade e de difícil<br />

mudança na relação de poder entre os<br />

sexos, construído historicamente, é o<br />

campo da linguagem, que ocupa um<br />

lugar central na resistência às mudanças.<br />

“Falar de 'eles' é falar de eles e<br />

<strong>elas</strong>, mas falar de '<strong>elas</strong>' jamais é falar<br />

de eles e <strong>elas</strong>”, opina a pesquisadora<br />

no artigo “Substituição de marcadores<br />

de gênero na linguagem escrita busca<br />

diminuir preconceitos”, publicado no<br />

Jornal Zero Hora (03/10/15).<br />

No artigo, a autora cita que no colégio<br />

Pedro II do Rio de janeiro, o “x”<br />

no lugar das letras “a” e “o” já está presente<br />

nos avisos institucionais em murais<br />

e cabeçalhos de provas. Demanda<br />

que partiu do grêmio estudantil com a<br />

Arquivo pessoal<br />

aceitação de alguns professores que<br />

incor<strong>por</strong>aram as mudanças em suas<br />

provas. “Tenho clareza que o “x” e a<br />

“@” não irão modificar as relações de<br />

poder entre os sexos e nem irão acabar<br />

de vez com a desqualificação de um<br />

em relação ao outro. Mas tenho a esperança<br />

de que o uso da linguagem<br />

não-sexista possa contribuir como um<br />

alerta para a desigualdade. Saber que<br />

existe um eu e que existe um outro,<br />

que pode ser de gênero diferente do<br />

meu, já é um primeiro passo” conclui.<br />

Estudos sobre o tema têm mostrado<br />

que a linguagem pode ser utilizada<br />

para reforçar estereótipos impostos<br />

culturalmente. A linguagem sexista,<br />

utilizada de forma irrestrita, impõenos<br />

que o masculino (homem) é empregado<br />

como norma, ficando o feminino<br />

(mulheres) incluído como referência<br />

ao discurso masculinizado. Diante<br />

da im<strong>por</strong>tância da linguagem como<br />

terreno para marcar a equidade de gênero<br />

fica a pergunta. Como colocar em<br />

prática um tipo de linguagem que recuse<br />

o masculino como um termo neutro<br />

para substituir o feminino?<br />

Manual da linguagem<br />

não-sexista<br />

Editado pelo Governo do Rio Grande<br />

do Sul e Secretaria Especial para as<br />

Mulheres, em 2014, o “Manual para o<br />

uso não sexista da linguagem - O que<br />

bem se diz bem se entende” traz inúmeras<br />

dicas de como fazer isso e traz<br />

o entendimento de que a linguagem é<br />

um dos agentes de socialização de gênero<br />

mais im<strong>por</strong>tantes ao moldar nosso<br />

pensamento e transmitir uma discriminação<br />

<strong>por</strong> motivo de sexo. O Manual<br />

afirma que a língua tem um valor sim-<br />

76 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


ólico enorme, pois o que não se nomeia<br />

não existe, e durante muito tempo,<br />

ao utilizar uma linguagem androcêntrica<br />

e sexista, as mulheres não existiram<br />

e foram discriminadas.<br />

“Foi nos ensinado que a única opção<br />

é ver o mundo com olhos masculinos,<br />

mas essa opção oculta os olhos femininos.<br />

Não é, <strong>por</strong>tanto, incorreto, ou<br />

uma repetição, nomear em masculino<br />

e feminino, isso não supõe uma duplicação<br />

da linguagem posto que, como<br />

afirmam Carmen Alario et alii, duplicar<br />

é fazer uma cópia igual a outra e esse<br />

não é o caso. É simplesmente um ato<br />

de justiça, de direitos, de liberdade. É<br />

necessário nomear as mulheres, torná-las<br />

visíveis como protagonistas de<br />

suas vidas e não vê-las apenas no papel<br />

de subordinadas ou humilhadas. É necessária<br />

uma mudança no uso atual<br />

da linguagem de forma que apresente<br />

Ivânia (esquerda) em evento com a participação do presidente<br />

da CTB (Adilson Araújo)<br />

Arquivo pessoal<br />

“<br />

É necessário<br />

nomear as mulheres,<br />

torná-las visíveis<br />

como protagonistas<br />

de suas vidas”<br />

equitativamente as mulheres e os homens.<br />

E para isso, qualquer língua, ao<br />

estar em contínua mudança, oferece<br />

inúmeras possibilidades”, resume a<br />

apresentação do manual, elaborado a<br />

partir do Manual da Red de Educación<br />

Popular Entre Mujeres de Latinoamérica<br />

y Caribe – REPEM-LAC.<br />

Conforme define o documento, na<br />

atualidade não existe qualquer sociedade<br />

no mundo onde mulheres e homens<br />

recebam um tratamento equitativo, pois<br />

se constata uma discriminação generalizada<br />

para <strong>elas</strong> em todos os âmbitos<br />

da sociedade. Essa discriminação, sustentada<br />

unicamente no fato de ter nascido<br />

com um determinado sexo (mulher),<br />

atravessa categorias sociais como<br />

o nível socioeconômico, a idade ou a<br />

etnia à que se pertença e se transmite<br />

<strong>por</strong> meio de formas mais ou menos<br />

sutis que impregnam nossa vida.<br />

Linguagem como<br />

construção social<br />

A avaliação é que uma das formas<br />

mais sutis de transmitir essa discriminação<br />

é através da língua, que não<br />

só reflete, mas também transmite e<br />

reforça os estereótipos e papéis considerados<br />

adequados para mulheres e<br />

homens em uma sociedade. O Manual<br />

traz algumas frases cotidianas que demonstram<br />

isso. Quem nunca escutou<br />

“mulher no volante, perigo constante”,<br />

“os filhos são o que suas mães fizeram<br />

deles”, “em briga de marido e mulher<br />

não se mete a colher” e “mulher não<br />

fica velha, fica loira”. “Existe um uso<br />

sexista da língua na expressão oral e<br />

escrita (nas conversações informais e<br />

nos documentos oficiais) que transmite<br />

e reforça as relações assimétricas, hierárquicas<br />

e não equitativas que se dão<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

77


entre os sexos em cada sociedade e<br />

que é utilizado em todos os seus âmbitos.<br />

Mas a linguagem não é algo natural<br />

e sim uma construção social e<br />

histórica, que varia de uma cultura<br />

para outra, que se aprende e que se<br />

ensina, que forma nossa maneira de<br />

pensar e de perceber a realidade, o<br />

mundo que nos rodeia e o que é mais<br />

im<strong>por</strong>tante: pode ser modificada”, destaca<br />

o Manual.<br />

Segundo a pesquisadora Teresa<br />

Meana, citada no “Manual para o uso<br />

não sexista da linguagem”, o androcentrismo<br />

é o enfoque nas pesquisas e estudos<br />

de uma única perspectiva: a do<br />

sexo masculino. Supõe, segundo esta<br />

autora, “considerar os homens como o<br />

centro e a medida de todas as coisas. Os<br />

homens são considerados, assim, os<br />

sujeitos de referência e as mulheres<br />

seres dependentes e subordinados a<br />

eles”. Esse androcentrismo se manifesta<br />

graças à desigualdade na ordem<br />

das palavras, no conteúdo semântico<br />

de certos vocábulos ou no uso do masculino<br />

como genérico para ambos os<br />

sexos. Fazendo referência a isso, é preciso<br />

assinalar que o que não se nomeia<br />

não existe e utilizar o masculino como<br />

genérico tornou invisível a presença<br />

das mulheres na história, na vida cotidiana,<br />

no mundo. Basta analisar frases<br />

como: “Os homens lutaram na revolução<br />

francesa <strong>por</strong> um mundo mais justo,<br />

marcado pela liberdade, igualdade e<br />

fraternidade”. E as mulheres? Onde<br />

ficam nessa luta? Não nos enganemos:<br />

quando se utiliza o genérico está se<br />

pensando nos homens e não é certo<br />

que ele inclua as mulheres. A esse respeito,<br />

Teresa Meana diz que “não sabemos<br />

se atrás da palavra homem se está<br />

pretendendo englobar as mulheres. Se<br />

for assim, <strong>elas</strong> ficam invisíveis e se não<br />

for assim, ficam excluídas”.<br />

Outro aspecto que merece reflexão,<br />

são as zombarias, piadas e depreciações<br />

da proposta sobre a linguagem nãosexista.<br />

No texto, os autores lembram<br />

que há quem se dedique a fazer brincadeiras<br />

como: “Os empregados e as<br />

empregadas, baianos e baianas, estão<br />

insatisfeitos e insatisfeitas, <strong>por</strong> serem<br />

convidados e convidadas, e inclusive<br />

obrigados e obrigadas, a declarar-se<br />

católicos e católicas”. Ou alguma autoridade<br />

que, querendo ser engraçado<br />

ou parecer feminista, ao fazer seu discurso<br />

diz que vai falar em feminino e<br />

fala de si mesmo como se fosse mulher.<br />

Evidentemente, quando o Senhor presidente<br />

se refere a si mesmo dizendo<br />

“eu estou surpreendida” o que produz<br />

são risos e um desprezo pelo tema que<br />

não corresponde de maneira alguma<br />

com o respeito às pessoas, sua diferença<br />

e seus direitos”.<br />

O Manual destaca que o que se pretende<br />

ao promover um uso não-sexista<br />

da linguagem, não é que se inverta o<br />

uso do masculino pelo feminino. “Nenhuma<br />

feminista quer im<strong>por</strong> aos homens<br />

a invisibilidade, a desvalorização<br />

ou a discriminação que as mulheres<br />

têm sofrido. Trata-se simplesmente de<br />

promover uma linguagem adequada à<br />

realidade sem negar qualquer pessoa”.<br />

Internet<br />

Cristina Kirchner, Michelle Bachelet e Dilma Rousseff, mulheres<br />

no cargo de presidenta na América Latina.<br />

78 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


Mudanças sugeridas<br />

pelo Manual para o uso não<br />

sexista da linguagem<br />

IFG<br />

• Não usar o feminino para a questão<br />

privada ou que denote posse das mulheres:<br />

“a mulher do Pedro”; “deu a mão de<br />

sua filha”. As pessoas não se possuem,<br />

explica.<br />

• Não usar frases estereotipadas que consolidem<br />

papéis tradicionais: “a galinha<br />

protege seus pintinhos”; “se queria<br />

trabalhar, <strong>por</strong> que teve filhos?”<br />

• Não usar o masculino como universal:<br />

“o mundo é dos homens”; “a origem do<br />

homem”; “os jovens de hoje”.<br />

• Não manifestar fórmulas de tratamento<br />

que implicam inferioridade, menosprezo<br />

ou desvalorização: “Médicos e enfermeiras<br />

que deixam seu lar para ajudar<br />

as pessoas no Haiti”<br />

• Evitar o silêncio que é a invisibilidade e<br />

deixar de usar supostos genéricos que<br />

são masculinos.<br />

“Serviços ao cidadão, Direitos do Cidadão,<br />

Direitos do Consumidor”.<br />

“Os estudiosos acreditam que, uma<br />

vez que o homem da Idade da Pedra<br />

ainda...”<br />

• Não incorrer em estereotipia e/ou<br />

saltos semânticos começando a falar em<br />

masculino como se fosse genérico e continuar<br />

com uma frase que se refere só ao<br />

masculino.<br />

“O gaúcho gosta de churrasco, chimarrão,<br />

fandango, trago e mulher”.<br />

“Os indígenas que trabalham a terra<br />

contam com a ajuda das mulheres<br />

da comunidade”.<br />

A explicação é que as coisas nomeadas<br />

pela língua possuem um gênero<br />

gramatical que não tem relação alguma<br />

com o sexo das pessoas. Assim, as palavras<br />

lua, casa, serra têm gênero feminino<br />

e as palavras lar, mato, planeta<br />

são masculinas. Inclusive há palavras<br />

que se podem usar no masculino e feminino<br />

indistintamente como rádio,<br />

atleta, fã. Também é óbvio que as palavras<br />

que denominam mulheres e homens<br />

têm coincidência entre gênero<br />

gramatical e o sexo das pessoas às quais<br />

nomeia: professora, camponesa, cidadã,<br />

meninas - o gênero feminino coincide<br />

com o sexo da pessoa nomeada.<br />

O documento conclui que se há palavras<br />

adequadas para nomear cada<br />

pessoa, usar o masculino para nomear<br />

as mulheres é, no mínimo, ocultar a<br />

realidade. “Mas, além disso, há que<br />

dizer às pessoas que resistem a falar<br />

com propriedade, e preferem o costume<br />

e o uso tradicional da língua que, segundo<br />

as regras gramaticais, tampouco<br />

é correto utilizar o masculino para se<br />

referir ao feminino. Há toda uma série<br />

de matizes, opções e exceções que formam<br />

parte da gramática normativa<br />

para que a linguagem seja precisa e<br />

adequada, isto é, clara, transparente,<br />

não discriminatória e inclusiva. Não<br />

podemos argumentar a favor do uso<br />

do masculino como neutro ou genérico,<br />

primeiro <strong>por</strong>que não existem substantivos<br />

neutros para as pessoas. E segundo,<br />

e mais im<strong>por</strong>tante, <strong>por</strong>que manter<br />

em uso qualquer forma irreal de<br />

representação do mundo, da vida cotidiana<br />

e das pessoas, é tendenciosa e<br />

prejudicial para o conjunto da sociedade,<br />

uma vez que constrói no imaginário<br />

coletivo ideias e imagens falsas<br />

do seu entorno”.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

79


Genéricos reais são:<br />

Em lugar de:<br />

Os meninos<br />

Os homens<br />

Os cidadãos<br />

Os trabalhadores<br />

Os professores<br />

Os eleitores<br />

Os jovens<br />

Os homens<br />

Redação excludente<br />

Os indígenas terão crédito<br />

Os jovens que desejam estudar<br />

Os interessados em participar<br />

Os maiores de idade receberão uma<br />

Os meninos terão atenção médica<br />

Utilizar:<br />

As crianças / A infância<br />

A população / O povo<br />

A cidadania<br />

O pessoal<br />

O professorado / O corpo docente<br />

O eleitorado<br />

A juventude<br />

A humanidade<br />

Redação inclusiva<br />

A população indígena terá crédito<br />

A juventude que deseja estudar<br />

As pessoas interessadas em<br />

participar<br />

As pessoas maiores receberão uma<br />

As crianças terão atenção médica,<br />

ou as meninas e os meninos terão<br />

atenção médica<br />

Recomendações de<br />

uso da linguagem<br />

não-sexista<br />

– Não usar formas sexistas<br />

ou androcêntricas. Tornar<br />

visíveis as mulheres e, <strong>por</strong>tanto,<br />

não usar o masculino<br />

como genérico (o masculino<br />

é masculino, não é<br />

genérico).<br />

– Quando se fizer uma oferta<br />

de emprego deve aparecer<br />

o feminino e o masculino.<br />

Preferentemente, como<br />

uma ação positiva,<br />

colocar sempre primeiro<br />

o feminino e depois o<br />

masculino.<br />

– Enquanto a linguagem<br />

continuar carregada de estereótipos,<br />

não convém dissimular<br />

a visibilidade das<br />

mulheres. Por isso é im<strong>por</strong>tante<br />

evitar as barras diagonais:<br />

“oferece-se trabalho a<br />

costureira/o”. Não se devem<br />

usar parênteses “buscamos<br />

um(a) advogado(a)”.<br />

Nesse mesmo sentido é<br />

preciso eliminar os símbolos<br />

que não são legíveis ou<br />

que não é verdadeiramente<br />

representação do feminino:<br />

querid@s amig@s ou todxs<br />

juntxs.<br />

Fonte: Manual para uso não sexista<br />

da linguagem -<br />

www.spm.rs.gov.br<br />

80 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


OUTUBRO ROSA AINDA ESTÁ LONGE,<br />

MAS NUNCA É CEDO<br />

Essa luta é de todas e todos<br />

CUIDE-SE, AME-SE!<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

81


POR<br />

ARTIGO<br />

Véronique Durand<br />

Aborto:<br />

uma questão<br />

além do<br />

bem<br />

e do<br />

mal


O aborto é definido como a interrupção,<br />

antes do termo, do processo<br />

de gestação, ou seja do desenvolvimento<br />

que começa com a concepção pela fecundação<br />

de um óvulo <strong>por</strong> um espermatozoide,<br />

formando assim um ovo<br />

que continua pelo crescimento do embrião<br />

e depois do feto e que finaliza,<br />

no termo, pelo nascimento de um novo<br />

indivíduo da espécie.<br />

Nasci na França, em 1958. Em 1974,<br />

a então ministra da saúde, Simone Veil,<br />

foi encarregada pelo Presidente da República<br />

de pro<strong>por</strong> um projeto de lei<br />

para descriminalizar o aborto. Os debates<br />

na Assembleia Legislativa duraram<br />

três dias e duas noites; foram muito<br />

tempestuosos; ela foi agredida verbalmente<br />

durante todo o tempo, mas não<br />

se ausentou, nem respondeu aos ataques.<br />

Terminou a fala dizendo: “quero<br />

compartilhar uma convicção de mulher.<br />

Peço desculpas <strong>por</strong> fazê-lo frente a essa<br />

Assembleia quase exclusivamente composta<br />

<strong>por</strong> homens: nenhuma mulher<br />

recorre ao aborto com alegria no coração.<br />

Basta ouvir as mulheres...”<br />

Então cresci com essa ideia de direito<br />

adquirido, no campo da saúde e<br />

da saúde reprodutiva, e considero a<br />

Interrupção Voluntária de Gravidez<br />

um direito da mulher. Até descobrir<br />

que, em vários países, é crime. Nenhuma<br />

mulher pensa em abortar. O aborto<br />

é a solução última quando não se tem<br />

outra solução. É a resposta a uma gravidez<br />

impossível.<br />

Falamos de aborto a risco quando<br />

a gravidez é interrompida <strong>por</strong> pessoas<br />

que não têm competências necessárias<br />

ou quando o aborto é praticado num<br />

ambiente onde as normas médicas mínimas<br />

não são aplicadas. Esses abortos<br />

a risco dizem respeito a uma mulher<br />

sobre duas. (OMS)<br />

Aconteceriam 20 milhões de abortos<br />

a riscos a cada ano, no mundo. É muito<br />

difícil medir a mortalidade como consequência<br />

de um aborto ilegal. 97% deles<br />

seriam em países em desenvolvimento<br />

(World Health Organization, 2004).<br />

No Brasil, mais de 2.000 mulheres<br />

abortam todos os dias. A legislação<br />

que criminaliza o procedimento é do<br />

Código Penal de 1940, e é incompatível<br />

com o direito de igualdade de gênero<br />

garantido às mulheres na Constituição<br />

de 1988. Hoje, abortar é crime.<br />

O que diz a lei?<br />

O decreto lei 2848/40 declara no<br />

artigo 140: A mulher grávida que der<br />

consentimento ao aborto praticado <strong>por</strong><br />

terceiro ou que, <strong>por</strong> fato próprio ou<br />

alheio, se fizer abortar, é punida com<br />

pena de prisão até 3 anos.<br />

Toda mulher cuja gravidez não foi<br />

desejada e que não pode ter acesso ao<br />

aborto seguro encontra-se exposta ao<br />

risco. As mulheres pobres têm uma<br />

probabilidade maior de sofrer um<br />

“<br />

No Brasil, mais<br />

de 2.000 mulheres<br />

abortam todos<br />

os dias.”<br />

aborto a risco do que as que têm como<br />

pagar. Além disso, o aborto é praticado<br />

em um estágio tardio da gravidez,<br />

assim a pro<strong>por</strong>ção de óbito e de traumas<br />

aumenta.<br />

Na maioria dos casos, as mulheres<br />

sem renda, confrontadas a uma gravidez<br />

não desejada, provocam <strong>elas</strong> mesmas<br />

o próprio aborto ou consultam<br />

uma pessoa que não tem formação<br />

médica, colocando assim a sua saúde<br />

em perigo e aumentando o risco de<br />

internação <strong>por</strong> causa das complicações.<br />

O fato de poder recorrer a um aborto<br />

seguro e com preço razoável terá também<br />

consequências sobre a situação<br />

financeira dessas mulheres e/ou da<br />

sua família e pode ser considerado<br />

como um eixo de luta contra a pobreza.<br />

Os riscos associados aos abortos<br />

têm a ver com o caráter legal desse<br />

ato: assim, segundo a OMS, nos países<br />

em desenvolvimento, o risco de mortalidade<br />

depois de um aborto é de 4 a<br />

6 óbitos para 100.000 casos de abortos<br />

legais e de 100 a 1000 para 100.000<br />

casos de abortos ilegais (WHO, 2004).<br />

O aborto é uma resposta a uma gravidez<br />

“não prevista” ou “não desejada”.<br />

Trata-se então de compreender <strong>por</strong>que<br />

essa gravidez é percebida dessa forma e<br />

<strong>por</strong>que a mulher deseja interrompê-la.<br />

São muito raras as situações em<br />

que as mulheres que desejam uma gravidez<br />

abortam; a não ser que sejam<br />

obrigadas pelo autor dessa gravidez<br />

ou no caso de políticas governamentais<br />

que incitam a limitar a descendência.<br />

Os motivos mais frequentemente mencionados<br />

no caso de aborto provocado<br />

são a necessidade de espaçar no tempo<br />

ou limitar os nascimentos, depois vêm<br />

as dificuldades econômicas e as razões<br />

ligadas à escolaridade ou ao trabalho.<br />

Outro motivo são as dificuldades na<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

83


Métodos e<br />

riscos do aborto<br />

clandestino<br />

Os abortos clandestinos são<br />

realizados fora do ambiente<br />

médico, com métodos da Idade<br />

Média:<br />

° uso de produtos químicos;<br />

° perfuração do ovo com agulhas<br />

ou objetos cortantes;<br />

° absorção de plantas;<br />

° tomada de grandes quantidades<br />

de remédios;<br />

° chutes na barriga e exercícios<br />

físicos violentos;<br />

° na América Latina em geral e<br />

no Brasil em particular usase<br />

o misoprostol, remédio destinado<br />

inicialmente para tratar<br />

úlcera. O risco desse remédio<br />

é que a pessoa toma em casa,<br />

sozinha e podem acontecer<br />

complicações.<br />

Esses métodos arriscados<br />

frequentemente trazem<br />

relação de casal ou para fazer aceitar<br />

complicações, tais como:<br />

uma gravidez, entre outras coisas <strong>por</strong><br />

° infecções;<br />

causa da idade da jovem.<br />

° septicemia;<br />

Acontece também, no caso de ausência<br />

ou fracasso da contracepção, o<br />

° hemorragias;<br />

medo das reações parentais ou familiais,<br />

em relação a uma gravidez con-<br />

° esterilidade posterior;<br />

° rasgo das paredes do útero; siderada como inaceitável (moças solteiras<br />

ou que supostamente não deveriam<br />

ter relações sexuais), e os pro-<br />

° morte.<br />

blemas relacionais (desentendimento,<br />

negação de paternidade, parceiros ocasionais,<br />

gravidez adúltera) explicam<br />

algumas interrupções de gravidez. A<br />

ausência de contracepção pode ser explicada<br />

pelo fato de que as mulheres<br />

não pensavam ser expostas ao risco<br />

de gravidez ou não imaginavam ter relações<br />

sexuais. O uso de uma contracepção<br />

contínua pode parecer supérfluo<br />

às mulheres que têm uma sexualidade<br />

irregular. A contracepção com o uso<br />

84 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


de preservativo é uma solução para essas<br />

mulheres, mas é difícil, principalmente<br />

para as jovens, im<strong>por</strong> o uso<br />

desse tipo de prevenção. É fundamental<br />

não esquecer que lidar com as questões<br />

de sexualidade é lidar com o íntimo e<br />

que, apesar de programas de informação,<br />

de prevenção, essas relações fogem<br />

do “razoável”.<br />

Quando eu trabalhava com adolescentes<br />

grávidas em Recife, as meninas<br />

José Cruz - ABR<br />

sempre falavam que não tinham preservativos<br />

com <strong>elas</strong>, com medo do rapaz<br />

achar que ela “só pensa em transar”.<br />

<strong>Elas</strong> são confrontadas à dificuldade na<br />

negociação de uma prevenção das suas<br />

relações sexuais, principalmente no<br />

caso de parceiros mais velhos. Os meninos,<br />

questionados da mesma forma<br />

sobre a sexualidade, falavam que “o<br />

problema é da menina... Ela que pode<br />

engravidar... Ela que tem que se prevenir”.<br />

Sem falar dos rapazes que recusam<br />

o uso do preservativo.<br />

A questão da sexualidade vai muito<br />

além do ato sexual; tem a ver com a<br />

identidade, com os com<strong>por</strong>tamentos<br />

esperados <strong>por</strong> jovens mulheres e homens;<br />

com o desejo da menina de se<br />

sentir desejada; com o medo de dizer<br />

não e ser rejeitada, com o prazer nem<br />

sempre. Relações sexuais, além da gravidez,<br />

podem trazer doenças para quem<br />

não se previne.<br />

Recorrer ao aborto clandestino é<br />

revelador de vários outros problemas<br />

aos quais as mulheres estão confrontadas.<br />

Dessa forma, os direitos reprodutivos<br />

das mulheres assim como foram<br />

definidos na Conferência do Cairo<br />

e que enfatizam a possibilidade de<br />

levar uma sexualidade sem risco e de<br />

decidir livremente o momento para<br />

ter os seus filhos não estão sendo respeitados.<br />

Além dos benefícios em termos<br />

de saúde pública, essas leis devem<br />

ser revisitadas para respeitar os direitos<br />

das mulheres a controlar a fecundidade<br />

e se beneficiar de uma melhor saúde<br />

reprodutiva.<br />

Uma gravidez não prevista representa,<br />

na maioria dos casos, para essas<br />

jovens, o medo de rejeição familiar, do<br />

parceiro ou da sociedade, e também<br />

implica abandono da escola além de<br />

comprometer os projetos de vida: o<br />

adiamento da primeira maternidade<br />

pelo aborto é uma boa ilustração disso.<br />

A falta de autonomia de decisão, mas<br />

também de autonomia financeira, as<br />

constrangem a recorrer a métodos baratos<br />

de aborto que apresentam riscos<br />

para a própria saúde.<br />

Sugerimos para evitar os abortos,<br />

uma educação sexual de qualidade, a<br />

prevenção das gravidezes indesejadas<br />

graças à contracepção eficiente, incluindo<br />

a pílula “do dia seguinte” e o<br />

acesso ao aborto seguro e legal.<br />

Para abrir o debate, diria que as<br />

leis que negam o aborto legalizado são<br />

o reflexo de uma decisão moral e religiosa;<br />

não se trata de decisão tomada<br />

do ponto de vista médico nem dos direitos<br />

da mulher. Na realidade, são as<br />

mulheres pobres, privadas de assistência,<br />

de informação, de acesso à<br />

saúde que sofrem esse efeito perverso.<br />

A questão está sendo colocada em termos<br />

religiosos, do bem e do mal, enquanto<br />

o debate precisa acontecer num<br />

contexto laico, ético, de saúde pública,<br />

que garanta os direitos das pessoas.;<br />

Véronique Durand – É doutora em Antropologia,<br />

mestre em Literatura e Cultura Comparada e<br />

mestre em Etnologia. Professora, pesquisadora e<br />

militante. Seu trabalho é voltado para a reflexão e<br />

atuação sobre relações de gênero, desigualdade e<br />

violência.<br />

veronique.marie.durand@gmail.com<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

85


Internet


COMPORTAMENTO<br />

POR<br />

Cecília Alvim<br />

Pelo direito<br />

de envelhecer<br />

dignamente<br />

Mulheres ressignificam o envelhecimento feminino<br />

Envelhecemos... Envelhecendo todas<br />

estamos. Assim como o fim é certo,<br />

o passar do tempo também é. Não há<br />

escolha, mas há caminhos. Envelhecer<br />

pode ser uma experiência de sofrimento<br />

pela perda da juventude, mas<br />

também pode ser uma experiência de<br />

alegria pelo reencontro consigo mesma<br />

e com sonhos esquecidos tempos atrás.<br />

Se recriar, se ressignificar para experimentar<br />

um outro tempo da vida, é<br />

caminhar para uma maturidade saudável,<br />

caminho possível para a antropóloga<br />

Mirian Goldenberg, pesquisadora<br />

e escritora do livro A bela velhice, inspirado<br />

nos escritos de Simone de Beauvoir.<br />

“Chamei de “bela velhice” essa forma<br />

de experimentar o processo de envelhecimento.<br />

Afinal, quem disse que<br />

não existe liberdade, felicidade e beleza<br />

nesta fase da vida?”, reflete Goldenberg.<br />

No entanto, a história e a realidade<br />

mostram que envelhecer não é um processo<br />

tão simples nas sociedades contem<strong>por</strong>âneas.<br />

A filósofa francesa,<br />

Simone de Beauvoir (foto), em sua<br />

obra A Velhice, publicada em 1970, aborda<br />

o envelhecimento como um processo<br />

não apenas biológico, mas cultural. Ela<br />

critica a marginalização vivida pelos<br />

idosos no mundo desenvolvido, traça<br />

um panorama do envelhecimento como<br />

uma fase difícil da vida, mas também<br />

desafia os leitores a mudar essa visão,<br />

ao destacar que a essência das pessoas<br />

não muda com a idade. "Dentro de mim,<br />

está a Outra − isto é, a pessoa que sou<br />

vista de fora − que é velha: e essa Outra<br />

sou eu", disse a filósofa.<br />

Beauvoir, Goldenberg e tantas outras<br />

mulheres falam de um momento da<br />

vida que gera muitos receios e angústias.<br />

Os padrões de beleza impostos pela sociedade<br />

da imagem em que vivemos,<br />

ditam que não é bonito envelhecer, e<br />

que bom mesmo é aprender a driblar<br />

os efeitos do tempo. Para isso, existem<br />

tinturas, cosméticos, cirurgias plásticas,<br />

botox, e mil e um tratamentos para<br />

rugas e para disfarçar as mudanças no<br />

corpo. Isso faz com que <strong>elas</strong>, muitas<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

87


vezes, para serem aceitas e reconhecidas<br />

se submetam aos ditames da moda,<br />

dando continuidade a um ciclo de aprisionamento<br />

da mulher ao longo da vida,<br />

reflexo de uma cultura machista que<br />

impregna todos os tempos do viver.<br />

“A sociedade é menos tolerante com<br />

o envelhecimento feminino. Um exemplo<br />

disso é que os homens podem ter<br />

cabelos grisalhos e serem vistos como<br />

charmosos. Já as mulheres passam a<br />

ser vistas como desleixadas. Tem que<br />

ser corajosa para optar <strong>por</strong> deixá-los<br />

grisalhos”, afirma Antonieta Shirlene,<br />

professora e diretora do Departamento<br />

de Professores Aposentados do Sinpro<br />

Minas (Deasinpro). Ela conta que passou<br />

alguns dias sem pintar os cabelos,<br />

e ouviu vários comentários. “De 15 pessoas<br />

que falaram sobre isso comigo,<br />

nenhuma valorizou os meus cabelos<br />

brancos. Todas queriam de alguma<br />

forma me incentivar a tingi-los”.<br />

Sob a ótica do capital<br />

Para Catarina Brandão, jornalista e<br />

feminista que mora em Brasília, a obsessão<br />

feminina pela juventude eterna<br />

só mostra o quanto o valor social da<br />

mulher ainda está atrelado à sua capacidade<br />

de seduzir e reproduzir. “E a capacidade<br />

de seduzir declina brutalmente<br />

depois que perdemos a de reproduzir,<br />

independente do tempo que consigamos<br />

manter a fachada de juventude. Jovens<br />

ou “velhas”, o fato é que estamos sob<br />

permanente controle.”<br />

Esse controle diz também de outra<br />

realidade. Como para o sistema capitalista,<br />

vale quem produz, as mulheres<br />

que já trabalharam muito e então passam<br />

a experimentar outros sentidos<br />

para a vida na velhice, passam a parecer<br />

invisíveis aos olhos de uma sociedade<br />

de consumo e de aparências, assim<br />

como outros grupos da sociedade que<br />

são colocados à margem desse sistema.<br />

“Os mitos e estereótipos que caracterizam<br />

a velhice como dependente,<br />

como sinônimo de sofrimento e ausência<br />

de beleza física, estão aos poucos<br />

sendo reinterpretados. O capitalista já<br />

percebeu que não é estratégico reproduzir<br />

tais mitos e estereótipos. A velhice<br />

é fonte de possibilidades<br />

mercadológicas e, nesse sentido, é<br />

fonte de realização da mais-valia. A rotação<br />

do capital e a renovação dos seus<br />

ciclos no processo produtivo dependem,<br />

além da exploração de força de<br />

trabalho na esfera produtiva, do consumo<br />

das mercadorias”, afirma Aniele<br />

Zanardo Pinholato, pesquisadora falecida<br />

em 2014, em sua dissertação de<br />

Mestrado pela UFES.<br />

Para o professor José Eustáquio<br />

Diniz Alvez, doutor em Demografia, o<br />

Brasil está passando <strong>por</strong> uma grande<br />

mudança na estrutura etária, com um<br />

recorte acentuado de gênero. A cada<br />

ano cresce o número de pessoas com<br />

mais de 60 anos de idade no país.<br />

No ano 2000, havia 14,2 milhões de<br />

idosos (8,1% da população). No ano<br />

2040, o número de pessoas idosas de -<br />

ve chegar a 54,2 milhões, alcançando<br />

23,6% da população total do Brasil,<br />

segundo estimativas da Divisão de<br />

População da ONU.<br />

Ele destaca também o crescimento<br />

da pro<strong>por</strong>ção de mulheres na população<br />

idosa. Em 1980, a quantidade de homens<br />

acima de 60 anos era de 3,64 milhões,<br />

para 4 milhões de mulheres. A estimativa<br />

da ONU para 2040 aponta um número<br />

de 23,99 milhões de homens e<br />

30,19 milhões de mulheres, uma diferença<br />

de 6,2 milhões de mulheres em<br />

88 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


elação à população idosa masculina.<br />

Este processo é conhecido como “feminização<br />

do envelhecimento”.<br />

“Um dos desafios desse processo é<br />

possibilitar a participação das mulheres<br />

idosas no convívio social, evitando o<br />

isolamento e fortalecendo a autoestima<br />

e a autonomia feminina. A sociedade<br />

brasileira precisa saber aproveitar o<br />

potencial dessas mulheres, que possuem<br />

altos níveis educacionais e ricas<br />

experiências de trabalho e de vida”,<br />

aponta José Eustáquio.<br />

Falar desse tema parece ainda ser<br />

tabu, ou ao menos um grande desafio.<br />

Miriam Fátima dos Santos (fot0),<br />

professora e diretora do Deasinpro,<br />

afirma que a sociedade cria expressões<br />

como terceira idade, melhor idade,<br />

feliz idade, com a intenção de amenizar<br />

e de tentar tornar mais leve essa fase<br />

da vida, mas não é isso o que acontece.<br />

“São termos que acentuam a dificuldade<br />

da sociedade lidar com o envelhecimento<br />

como realmente é. Mas sabemos<br />

que é possível viver um tempo de senescência,<br />

de envelhecimento natural<br />

com dignidade, que é diferente da senilidade,<br />

em que a pessoa se entrega à<br />

tristeza e ao adoecimento”, diz Miriam.<br />

Para Antonieta Shirlene (foto), a<br />

forma de envelhecer tem a ver com valores<br />

e visões muito pessoais. “Não há<br />

uma idade cronológica tão precisa. Depende<br />

de uma decisão que a pessoa vai<br />

tomar a partir de um certo momento<br />

da vida, de como vai encarar o futuro a<br />

partir dali”.<br />

Já Luliana de Castro Linhares<br />

(foto), também professora e diretora<br />

do Deasinpro, diz que “na medida em<br />

que você vai envelhecendo, as pessoas<br />

passam a te ver pela aparência, pela<br />

embalagem, e não vêem mais quem<br />

você realmente é, sua essência que não<br />

muda com o tempo”. Mas ela demonstra<br />

sua satisfação em ter alcançado essa<br />

etapa da vida, e de seguir em frente<br />

realizando a vida e os sonhos. “Envelhecer<br />

é prêmio, sem comprar bilhete<br />

de loteria. Me inveje, <strong>por</strong>que eu cheguei<br />

até aqui. Tô chegando e tô indo”.<br />

Essas e outras mulheres demonstram<br />

que a visão de envelhecimento<br />

vem mudando ao longo do tempo. “Há<br />

pouco tempo atrás, a mulher ia envelhecendo<br />

e passava a ser vista como<br />

Fotos: Mark Florest<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

89


Cecília Fernandes, de BH, em ensaio fotográfico aos 100 anos.<br />

uma senhorinha, com roupa antiga,<br />

voltada só para a família, e, muitas<br />

vezes com um pensamento de que a<br />

vida já acabou. Mas o lugar da velhice<br />

mudou. As velhices agora são muitas.<br />

O melhor é aceitar a idade, o seu<br />

tempo”, diz Miriam.<br />

Para essas professoras aposentadas,<br />

há uma grande mudança no processo<br />

de envelhecimento feminino, que <strong>elas</strong><br />

dizem perceber mais claramente da<br />

década de 1980 até hoje, com a ascensão<br />

em grande escala das mulheres ao mercado<br />

de trabalho, que trouxe mais autonomia<br />

a <strong>elas</strong>; com as mudanças culturais,<br />

inclusive no modo das mulheres<br />

mais velhas se vestirem, viverem suas<br />

escolhas e sua sexualidade; na aceitação<br />

social disso, com o aumento da expectativa<br />

de vida, devido aos cuidados com<br />

a saúde; e no progressivo aumento da<br />

participação das mulheres na vida social<br />

e política do país.<br />

Alvos de uma<br />

sociedade machista<br />

Um símbolo forte dessa mudança<br />

foi a eleição da presidenta Dilma Rousseff<br />

em 2010, aos 63 anos de idade,<br />

com quase 56 milhões de votos. “Ela<br />

não ficou dentro de casa, mas ocupou<br />

espaços públicos, até ser eleita para o<br />

mais alto cargo da sociedade quando<br />

se tornou presidenta do Brasil. Ela é<br />

um exemplo para mim. Simboliza essa<br />

nova teoria do envelhecimento, de uma<br />

Ivna Sá para Mulheres<br />

mulher incansável, que superou inúmeros<br />

desafios e, apesar de tudo, não<br />

se entrega”, destaca Miriam.<br />

Para ela, o golpe contra Dilma em<br />

2016 foi um golpe contra todas as mulheres.<br />

“Alcançamos o mercado de trabalho,<br />

vencemos adversidades, mas ainda<br />

somos alvo de uma sociedade machista<br />

e preconceituosa com as mulheres<br />

e com o envelhecimento feminino”.<br />

Ao envelhecerem, às mulheres passam<br />

a ser negados uma série de direitos.<br />

Embora o Estatuto do Idoso, que completa<br />

14 anos de existência em <strong>2017</strong>,<br />

determine que o “envelhecimento é<br />

um direito personalíssimo e a sua proteção<br />

um direito social” a ser assegurado<br />

pelo Estado, o que se vê na realidade<br />

é o descumprimento dessa assertiva,<br />

já que grande parte da população<br />

idosa enfrenta o abandono e várias<br />

barreiras para viver bem nos dias atuais,<br />

especialmente os(as) mais pobres.<br />

Sancionado pelo ex-presidente Lula<br />

em 2003, o Estatuto do Idoso prevê que<br />

é “obrigação do Estado, garantir à pessoa<br />

idosa a proteção à vida e à saúde, mediante<br />

efetivação de políticas sociais públicas<br />

que permitam um envelhecimento<br />

saudável e em condições de dignidade”.<br />

Para Antonieta Shirlene, o Estatuto trouxe<br />

ganhos também para as mulheres.<br />

“Temos uma legislação que nos assegura<br />

direitos e a que podemos recorrer”.<br />

Em seu discurso no dia da sanção<br />

do Estatuto, Lula disse que esse instrumento<br />

de cidadania precisaria da<br />

adesão de toda a sociedade para se<br />

transformar, de fato, em direitos na<br />

vida das pessoas idosas.<br />

“A partir de hoje, a dignidade do<br />

idoso passa a ser um compromisso civilizatório<br />

do povo brasileiro. É possível,<br />

sim, viver, amar, sorrir e criar com<br />

dez, vinte, cinqüenta, oitenta, cem<br />

90 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


anos. Porque o que nos separa da felicidade<br />

não é o tempo vivido, mas justamente<br />

o oposto: a espoliação do tempo<br />

de viver. Esse é o desafio de todas<br />

as idades, <strong>por</strong>tanto, um desafio de<br />

todos nós. A espoliação mais perversa<br />

de um ser humano é aquela que rouba<br />

do adulto o tempo de usufruir do seu<br />

trabalho com justiça e subtrai do idoso<br />

o tempo da serenidade e da fruição da<br />

experiência acumulada, na convivência<br />

com os seus. Quando não o relega ao<br />

abandono e ao esquecimento”, destacou<br />

o ex-presidente.<br />

Mark Florest<br />

Golpe: negação de direitos<br />

Após um ciclo de conquistas sociais,<br />

vividas durante os governos de Lula e<br />

Dilma, que beneficiaram o conjunto da<br />

população, e também os idosos e as<br />

mulheres, estamos diante de um tempo<br />

de retrocessos. As medidas do governo<br />

ilegítimo de Michel Temer ameaçam<br />

“<br />

A reforma da<br />

Previdência afeta<br />

especialmente<br />

as mulheres.”<br />

os direitos da população em geral e, de<br />

forma direta, as políticas sociais voltadas<br />

para a pessoa idosa, implementadas<br />

nos governos anteriores. “O processo<br />

de envelhecimento com dignidade foi<br />

privilegiado nas gestões Lula e Dilma”,<br />

afirma Antonieta Shirlene.<br />

Com a aprovação da PEC 55 no fim<br />

de 2016, o corte de recursos para a<br />

saúde e para a educação, coloca em<br />

risco também a seguridade social, que<br />

assiste a milhares de idosos, em especial<br />

os mais pobres. Outra grave medida é<br />

a reforma da Previdência, em curso<br />

no Congresso Nacional, que ameaça o<br />

direito de milhões de brasileiros e brasileiras<br />

de terem uma aposentadoria<br />

digna agora e no futuro. E afeta especialmente<br />

as mulheres, pela proposta<br />

de aumento da idade e do tempo de<br />

contribuição, medida que desconsidera<br />

toda a imensa colaboração das mulheres<br />

na criação dos filhos e da família e<br />

na manutenção das tarefas domésticas,<br />

ainda muito relegadas a <strong>elas</strong>. Além da<br />

reforma trabalhista, que representa<br />

grandes prejuízos para as mulheres<br />

trabalhadoras ao longo da vida.<br />

A reforma da Previdência faz parte<br />

também da política neoliberal vigente<br />

de gerar lucros para os grandes grupos<br />

econômicos, pois propaga o déficit e o<br />

fim da Previdência pública ao mesmo<br />

tempo que empurra boa parte da sociedade<br />

para planos de previdência<br />

privada. Assim, tudo indica que pessoas<br />

idosas serão incentivadas a comprar<br />

planos de aposentadoria privada, e<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

91


Arquivo pessoal<br />

das lutas pelos direitos das professoras<br />

do setor privado de ensino. A organização<br />

das professoras aposentadas é im<strong>por</strong>tante<br />

<strong>por</strong>que nossa categoria é majoritariamente<br />

feminina e também está<br />

envelhecendo”, afirmam as diretoras.<br />

aqu<strong>elas</strong> que não têm recursos para pagar,<br />

que representam a maior parte da<br />

sociedade, ficarão sujeitas a uma velhice<br />

sem direitos e sem dignidade.<br />

“Na lista de tantos direitos que ainda<br />

nos faltam, precisamos incluir também<br />

o direito de envelhecer impunemente”,<br />

afirma a jornalista Catarina Brandão.<br />

Resistência<br />

das trabalhadoras<br />

Para fazer frente a essas medidas,<br />

as trabalhadoras aposentadas também<br />

estão em luta pela democracia e <strong>por</strong><br />

seus direitos. “A união de todos para<br />

barrar os retrocessos nos direitos sociais,<br />

trabalhistas e previdenciários, o<br />

que vai atingir a qualidade de vida das<br />

pessoas, é consenso entre as diretoras<br />

do Departamento de Professores Aposentados<br />

do Sinpro Minas, Antonieta,<br />

Miriam e Luliana.<br />

Fundado em 30 de agosto de 2002,<br />

o Deasinpro promove a integração das<br />

professoras e professores aposentados<br />

em torno de ações e lutas. Em seus 15<br />

anos de existência, realizou vários debates,<br />

cursos e atividades culturais,<br />

educacionais e de lazer para essa im<strong>por</strong>tante<br />

parte da categoria docente.<br />

“Fomos impactadas p<strong>elas</strong> ideias feministas<br />

da década de 60, pelos movimentos<br />

de trabalhadores que se fortaleceram<br />

da década de 80 em diante,<br />

pelo sindicalismo classista do qual fazemos<br />

parte, e participamos ativamente<br />

Por uma vida ativa<br />

Romper com os estigmas relacionados<br />

ao envelhecimento e vislumbrar<br />

outras possibilidades de vida é como<br />

recriar o próprio mundo, a partir de<br />

outros valores, como a valorização da<br />

diversidade, da beleza verdadeira e de<br />

saberes próprios a cada idade.<br />

“É um tempo de conviver e conversar<br />

não só com os pares de idade, mas<br />

com todas as pessoas; criar alternativas<br />

saudáveis para viver; realizar projetos<br />

e sonhos; de voltar a fazer coisas<br />

que você gostava e ficaram esquecidas<br />

com o tempo; de fazer boas leituras”,<br />

dizem as professoras aposentadas a<br />

respeito das escolhas que têm feito em<br />

suas vidas.<br />

A antropóloga Mirian Goldenberg<br />

(foto) é também professora da Universidade<br />

Federal do Rio de Janeiro, e autora<br />

de vários livros, entre eles A Bela Velhice,<br />

Coroas, Corpo, Envelhecimento e Felicidade<br />

e Velho é Lindo!. Desde 2007, realiza<br />

uma pesquisa intitulada Corpo, Envelhecimento<br />

e Felicidade, com 1.700 homens<br />

e mulheres moradores da cidade<br />

do Rio de Janeiro. Seu foco de análise<br />

são as representações, as expectativas<br />

e os medos associados à velhice.<br />

Em artigo na Folha, Goldenberg comenta<br />

que as mulheres com mais de<br />

60 anos que foram entrevistadas destacaram<br />

que, “com a maturidade, puderam<br />

se libertar das obrigações familiares<br />

e sociais para investir tempo,<br />

92 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


energia e dinheiro em seus projetos<br />

de vida. Muitas resolveram fazer coisas<br />

que sempre quiseram e não puderam<br />

<strong>por</strong>que não tinham tempo para si mesmas:<br />

estudar, cantar, dançar, viajar,<br />

sair com as amigas − e inúmeros outros<br />

projetos de vida”.<br />

Para Antonieta Shirlene, a jornada<br />

tripla e a contribuição financeira da<br />

mulher trabalhadora no sustento da<br />

família dificulta a realização de vários<br />

projetos ao longo da vida. “Muitas<br />

vezes, a mulher ao se aposentar continua<br />

a auxiliar os familiares com seus<br />

recursos. É comum um filho ou um<br />

neto precisar de apoio ou de ajuda financeira,<br />

e ela novamente abrir mão<br />

de realizar coisas para si. Temos que<br />

estar atentas para não descuidarmos<br />

de nós mesmas nessa fase”.<br />

Para Goldenberg, boa parte das<br />

mulheres passa a vivenciar a velhice<br />

como um tempo de mais liberdade. “O<br />

homem não passa <strong>por</strong> essa ruptura,<br />

<strong>por</strong>que ele sempre foi livre. Então ele<br />

entende mais como uma continuidade”.<br />

Enquanto <strong>elas</strong> passam a valorizar<br />

mais a vida livre e as amizades, eles<br />

passam a dar maior valor à família durante<br />

a velhice.<br />

Istock<br />

Sonhos adormecidos<br />

A professora Miriam Fátima conta<br />

que, depois que se aposentou, optou<br />

<strong>por</strong> manter atividades variadas, como<br />

estudos, trabalhos, atividades artísticas<br />

e políticas. “Uma alternativa saudável<br />

para mim foi resgatar os trabalhos manuais,<br />

que eu aprendi há muito tempo.<br />

Eu estou bordando uma colcha junto<br />

com outras mulheres que será uma homenagem<br />

a uma mulher que admiramos,<br />

e eu estou numa felicidade com isso”.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

93


Internet<br />

Uma vida com<br />

propósitos<br />

Senhora de 74 anos<br />

costurou e levou<br />

vestidos para<br />

crianças na África<br />

É nessa tem<strong>por</strong>ada da vida que algumas<br />

mulheres conseguem dedicar<br />

algum tempo e recursos, frutos do trabalho<br />

anterior, para realizar sonhos<br />

adormecidos. Luliana decidiu fazer viagens<br />

com um cunho histórico para visitar<br />

lugares que ela conhecia somente<br />

através dos livros, fotos e aulas de história,<br />

disciplina que lecionou <strong>por</strong> vários<br />

anos. Esteve no sul da Espanha e da<br />

França para conhecer a história viva<br />

daqueles lugares às margens do mar<br />

Mediterrâneo. “Me emocionei em cada<br />

lugar, pois em tudo eu via aquilo que<br />

eu ensinava aos alunos em sala de aula.<br />

Agora eu quero ver com meus olhos o<br />

que eu li e ensinei sobre Constantinopla”.<br />

Antonieta conta, entusiasmada, que<br />

também decidiu tirar da gaveta um antigo<br />

projeto. Ela participou da Brigada<br />

Internacional 1º de maio em Cuba, onde<br />

realizou trabalho voluntário e conheceu<br />

a realidade e a cultura do país. “Foi uma<br />

experiência única participar desse movimento<br />

de solidariedade ao povo cubano.<br />

Esse projeto estava na minha programação<br />

há uns 10 anos e só agora<br />

consegui realizá-lo. Deixei tudo <strong>por</strong> uns<br />

dias, as responsabilidades, a casa, o namorado,<br />

o filho. Já trabalhei o suficiente<br />

para me dedicar a esse sonho. E agora<br />

tive condições e maturidade para aproveitar<br />

melhor essa experiência”.<br />

Desenvolver projetos é o que dá sustentabilidade<br />

à vida nessa idade, e que<br />

contribui para uma visão de envelhecimento<br />

mais justa. “Sinto que já estou<br />

devolvendo minha sabedoria para os<br />

netos, compartilhando com eles o que<br />

aprendi da vida”, diz Miriam Fátima.<br />

“Hoje eu valorizo a ousadia e a insubordinação,<br />

como valores que eu<br />

cultivei ao longo da vida, que me possibilitaram<br />

alcançar a autonomia com<br />

que vivo até hoje. O plano que meu pai<br />

tinha para mim não era tão ousado<br />

quanto aquilo que me tornei. E olho<br />

para minha netinha de um ano e meio<br />

e digo: − Viva. Realize. Seja insubordinada”,<br />

relata Luliana, emocionada.<br />

Costurar vestidos para meninas da<br />

África. Essa ideia que surgiu pequena<br />

se tornou um feito grandioso. Edmea<br />

Pires Murta sonhou em fazer e enviar<br />

1000 vestidinhos para o continente<br />

africano, mas ao conversar com um<br />

amigo, descobriu que ela mesma poderia<br />

ir até lá entregar o resultado de<br />

suas tecituras.<br />

Durante um ano, ganhou o apoio<br />

de diversas pessoas e, junto com outras<br />

mulheres, costurou mais de 2 mil peças<br />

de roupa, que foi pessoalmente entregar<br />

para centenas de crianças de Guiné<br />

Bissau em outubro de 2016. Na companhia<br />

do amigo padre e de uma religiosa,<br />

viajou durante horas, visitou localidades<br />

e viu de perto o sofrimento<br />

do povo guineense e a alegria de meninos<br />

e meninas que receberam as<br />

roupas e o carinho que ela levou nas<br />

malas, caixas e no coração. “Foi um<br />

sonho realizado”, relata. Mesmo assim,<br />

ela diz que queria ter levado mais doações.<br />

“O que levamos foi um grãozinho<br />

de areia para um caminhão de necessidades.<br />

Vimos escolas que estavam<br />

há 3 meses sem merenda para seus<br />

alunos. É uma realidade muito triste,<br />

mas é um povo lindo!”<br />

Edmea tem 74 anos e é uma mulher<br />

cheia de dons e de simpatia. Criou 5<br />

filhos, dois deles com deficiência, e<br />

hoje convive também com os netos e<br />

94 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


com a comunidade. É um retrato dessa<br />

tendência das mulheres envelhecerem<br />

e continuarem sonhando e realizando<br />

ações que beneficiam também a coletividade.<br />

Antes do projeto que a levou<br />

à África, ela já costurava e ensinava<br />

outras pessoas a costurar e desenvolver<br />

atividades manuais. Em sua casa no<br />

bairro Copacabana, em Belo Horizonte,<br />

ela tem um cômodo onde é possível<br />

ver fitas, botões, panos, retalhos, tintas<br />

e outros itens que enchem de cor e<br />

vida seu quintal.<br />

Entre o quartinho de costura e sua<br />

casa, há um amplo pátio onde um grande<br />

número de pessoas se reúne algumas<br />

vezes na semana para realizar atividades<br />

físicas e encontros que promovem<br />

a saúde e o bem-estar, especialmente<br />

de mulheres idosas. Como não havia<br />

espaço para isso no centro de saúde,<br />

que fica nas proximidades, ela ofereceu<br />

a sua casa, e assim, muitas mulheres<br />

se beneficiam do seu espaço criativo e<br />

cheio de alegria. Para todo lado, se vê<br />

pinturas suas, flores e plantas, que Edmeia<br />

cultiva com ternura.<br />

Cerca de 80 pessoas frequentam as<br />

atividades que acontecem em sua casa,<br />

entre <strong>elas</strong> a ginástica terapêutica chinesa<br />

Lian Gong, exercícios da Academia<br />

da Cidade, e o grupo da Terceira Idade,<br />

que se reúne para fazer trabalhos manuais<br />

e conviver. “Chegam muitas mulheres<br />

desanimadas, tristes, que vivem<br />

só tomando remédio. Com as atividades<br />

que fazem, saem daqui rindo, felizes,<br />

e com isso melhoram até a saúde”.<br />

Mesmo realizando tudo isso, Edmea<br />

não pára e continua a acolher as pessoas<br />

e a desenvolver novas ideias. Já está<br />

arrecadando e costurando roupas de<br />

cama para destinar em breve a um<br />

hospital carente de recursos no Vale<br />

do Jequitinhonha.<br />

Questionada sobre como encara a<br />

passagem do tempo, ela diz que não<br />

fica reclamando das dificuldades e que<br />

vive “rindo e inventando”. “Eu estou<br />

achando a velhice uma fase muito boa.<br />

É quando a gente pára pra ver as coisas.<br />

O passado machuca muito. Então, para<br />

que olhar para o passado? Vamos viver<br />

o dia de hoje, o presente”.;<br />

Joel Júnior<br />

Edmea Murta visitou Guiné Bissau, na África, onde distribuiu roupas para crianças.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

95


Paulo Pinto


POR<br />

GÊNERO<br />

Denilson Cajazeiro<br />

Pela visibilidade<br />

lésbica<br />

<strong>Elas</strong> querem ocupar os espaços na sociedade para<br />

reivindicar respeito e o fim da lesbofobia<br />

Um relatório sobre a violência homofóbica<br />

no Brasil, produzido pela Secretaria<br />

de Direitos Humanos da<br />

Presidência da República, mostrou<br />

que as mulheres lésbicas aparecem<br />

entre as principais vítimas nas denúncias<br />

feitas aos órgãos oficiais. Os casos<br />

mais comuns foram, na ordem, de violência<br />

psicológica, discriminação e<br />

violência física. O levantamento mostra<br />

que, mesmo com o aumento das<br />

denúncias, a realidade ainda é assustadora.<br />

Em espaços públicos ou privados,<br />

a chamada lesbofobia persiste<br />

como um grave problema social no<br />

país, e a falta de políticas públicas<br />

mais efetivas para combater essa violência<br />

provoca um quadro de restrições<br />

de direitos humanos.<br />

Para muitos especialistas, a visibilidade<br />

é uma das principais formas de<br />

gerar avanços em relação ao tema.<br />

Quanto maior for a projeção do assunto<br />

na sociedade, de forma não estereotipada,<br />

menor será a barreira do preconceito<br />

e da discriminação. “A invisibilidade<br />

da orientação sexual lésbica<br />

é algo que acho grave e que pode surgir<br />

da forma mais sutil naquele conhecido<br />

questionamento: 'mas você nunca sentiu<br />

desejo <strong>por</strong> um homem?', no qual o<br />

interlocutor não a enxerga como uma<br />

lésbica e sim como uma mulher bissexual,<br />

no máximo. Falar de visibilidade<br />

lésbica, a meu ver, não é só falar que<br />

<strong>elas</strong> existem. É afirmar que <strong>elas</strong> existem<br />

e que são detentoras de direitos, os<br />

quais devem ser respeitados e protegidos.<br />

É respeitar a sua orientação sexual,<br />

seu corpo, seu espaço, sua voz”,<br />

defende a advogada e militante Ticiane<br />

Figueiredo, em publicação no “Blogueiras<br />

Feministas”.<br />

Segundo ela, as mulheres lésbicas<br />

desafiam cotidianamente a lógica patriarcal,<br />

heteronormativa e capitalista<br />

da sociedade atual, e as várias formas<br />

de violência que <strong>elas</strong> sofrem são uma<br />

resposta a essa postura que exercem<br />

cotidianamente. Uma tentativa de apagar<br />

a identidade d<strong>elas</strong>, pontua a advogada.<br />

“De todas as formas de apagar a<br />

identidade lésbica, o 'estupro corretivo'<br />

se mostra o mais odioso, <strong>por</strong>que consiste<br />

em uma prática criminosa na qual<br />

o agressor acredita que poderá mudar<br />

a orientação sexual da lésbica através<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

97


da violência sexual. Isso <strong>por</strong>que, para<br />

eles, ao praticarem tal ato, <strong>elas</strong> vão<br />

'aprender a gostar de homem'. O que<br />

não poderia ser mais desprezível e desumano”,<br />

afirma Ticiane Figueiredo.<br />

Muitas vezes, esse cenário de invisibilidade<br />

e os casos de violência começam<br />

no ambiente familiar, quando<br />

pais ou outros parentes não aceitam a<br />

orientação sexual da filha e se recusam<br />

a discutir o assunto e a reconhecer<br />

seus direitos. “Dentro de casa essas<br />

mulheres estão expostas ao controle<br />

de sua sexualidade. Então, uma mulher<br />

lésbica sofre cárcere em casa para que<br />

não possa se relacionar”, denuncia a<br />

advogada feminista e militante Rute<br />

Alonso, em entrevista publicada no<br />

site da Agência Patrícia Galvão, em que<br />

reflete, entre outros temas, sobre o papel<br />

da mídia ao noticiar casos de violência.<br />

“Uma coisa im<strong>por</strong>tante é que a<br />

violência seja divulgada em sua complexidade,<br />

e não apenas como algo para<br />

impressionar a população. A mídia<br />

deve pensar qual será o efeito de uma<br />

informação que é veiculada de forma<br />

<strong>por</strong> vezes rasa, reforçando o senso comum,<br />

os estereótipos, o que está posto<br />

na sociedade como se fosse o adequado”,<br />

pondera a advogada.<br />

Outra iniciativa considerada fundamental<br />

é a discussão do tema no ambiente<br />

escolar. O debate sobre o assunto<br />

em sala de aula enfrenta forte resistência<br />

de grupos conservadores na sociedade,<br />

inclusive da atual gestão do Ministério<br />

da Educação (MEC). Para se ter uma<br />

ideia, a equipe atual, sob o comando do<br />

ministro Mendonça Filho (DEM), indicado<br />

pelo governo Temer, cortou a homofobia<br />

da lista de preconceitos que<br />

devem ser combatidos com a educação,<br />

ao divulgar o texto da Base Nacional<br />

Comum Curricular – documento com<br />

uma orientação dos conteúdos a serem<br />

adotados nas escolas públicas e particulares<br />

brasileiras. As expressões “identidade<br />

de gênero” e “orientação sexual”<br />

foram extraídas da versão entregue ao<br />

Conselho Nacional de Educação. Uma<br />

medida que, para pesquisadores do<br />

tema, pode ajudar a aumentar os índices<br />

de abandono escolar, pelo fato de os jovens<br />

homossexuais não se sentirem<br />

bem no interior das escolas. “Temos<br />

um índice que não é divulgado para a<br />

sociedade que é o adoecimento e o suicídio<br />

das adolescentes, <strong>por</strong> não estarem<br />

confortáveis com os papéis moldados<br />

pela sociedade”, afirma a ativista e educadora<br />

social Jozeli Rosa.<br />

Apesar da pressão dos grupos conversadores,<br />

ela avalia que a abordagem<br />

do assunto na escola tende a se tornar<br />

inevitável, como uma demanda da própria<br />

juventude. “Eu acho que os jovens<br />

estão com a cabeça muito mais aberta<br />

para compreender e respeitar, e às vezes<br />

muitos professores não acompanham<br />

isso. Nao entendem. A gente<br />

percebe que muitas vezes a comunidade<br />

escolar não consegue acompanhar<br />

esses avanços”, opina Jozeli Rosa, para<br />

quem o diálogo é o primeiro passo para<br />

acabar com a lesbofobia e com outros<br />

tipos de preconceito. “Não se dialoga<br />

com crianças e adolescentes os direitos<br />

sexuais enquanto direitos humanos.<br />

Por mais que as pessoas digam que<br />

hoje não há mais tabu sobre a sexualidade,<br />

percebemos o preconceito diariamente.<br />

Mas temos tido avanços,<br />

apesar de pequenos, que são resultado<br />

de muita resistência e luta dos movimentos<br />

sociais e das mulheres lésbicas.<br />

Há alguns anos jamais estaríamos tendo<br />

esse diálogo aqui. O que pedimos é<br />

respeito e direito, e a escola precisa<br />

fazer isso”.<br />

Mercado de trabalho<br />

Uma recente iniciativa para ampliar<br />

a visibilidade das lésbicas surgiu<br />

no Rio de Janeiro. Após uma conversa<br />

numa rede social, um grupo de amigas<br />

decidiu criar o “Indique uma Sapa”,<br />

uma rede de solidariedade para ajudálas<br />

a conseguir vagas no mercado de<br />

trabalho e a oferecer serviços de profissionais<br />

liberais, como advogadas,<br />

jornalistas, ilustradoras, tatuadoras,<br />

entre outras. “O objetivo do grupo é<br />

criar uma economia solidária e uma<br />

98 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


Paulo Pinto<br />

rede de afeto entre sapatonas. Porque<br />

percebemos que muitas de nós estão<br />

desempregadas <strong>por</strong> causa do preconceito”,<br />

explica Ana Claudino, uma das<br />

criadoras do grupo, que funciona no<br />

facebook e pelo site do coletivo “Sapa<br />

Roxa” (https://goo.gl/Z6rWTQ). Até o<br />

momento, mais de duas mil mulheres<br />

estão cadastradas.<br />

“A maioria dos altos cargos dentro<br />

das empresas é ocupada <strong>por</strong> homens<br />

cis, (O termo cis refere-se concordância<br />

entre a identidade de gênero de um<br />

indivíduo com sexo biológico) brancos<br />

e heterossexuais. Numa entrevista de<br />

emprego, <strong>por</strong> exemplo, se uma mulher<br />

falar que é lésbica ou mesmo que se<br />

perceba a sua sexualidade e performance<br />

de gênero, a probabilidade dela<br />

não ser contratada na empresa é alta.<br />

Muitas entrevistas de trabalho perguntam<br />

até a religião da pessoa e se<br />

ela namora ou não. Tudo isso são estratégias<br />

para manter o preconceito”,<br />

critica Ana Claudino, que revela já ter<br />

sofrido discriminação em uma entrevista<br />

de emprego. “A entrevistadora,<br />

quando viu que eu sou negra e lésbica,<br />

alegou que eu estava mentindo sobre<br />

meu currículo. Meu currículo estava<br />

bom para a vaga até ela olhar para<br />

mim. Também não fui efetivada numa<br />

empresa após a supervisora descobrir<br />

que eu sou lésbica”, afirma. Enquanto<br />

as políticas públicas não saem do papel<br />

e o debate sobre a lesbofobia não ganha<br />

o devido alcance na sociedade, <strong>elas</strong> seguem<br />

na batalha cotidiana <strong>por</strong> respeito<br />

e visibilidade. “Estamos na resistência<br />

constante para demarcar território e<br />

exigir uma sociedade mais humana”,<br />

pontua Jozeli Rosa.;<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

99


Mark Florest<br />

“<br />

Percebi que <strong>por</strong> meio<br />

do vestuário eu dava<br />

voz às mulheres do<br />

hip hop. A gente tem<br />

de lembrar que tratase<br />

de uma moda machista,<br />

desde o início,<br />

em 1973”.<br />

Lorena, estilista e empreendedora


POR<br />

CULTURA<br />

Denilson Cajazeiro<br />

As minas<br />

do hip hop<br />

<strong>Elas</strong> ocupam cada vez mais espaço na cena urbana<br />

e protestam contra o machismo<br />

A cena do hip hop já não é mais a<br />

mesma. Nas pistas, palcos, duelos de<br />

rappers ou nos grafites espalhados pelos<br />

muros das cidades, é fácil perceber<br />

que as mulheres estão cada vez mais<br />

presentes. Entre uma rima e outra,<br />

<strong>elas</strong> travam uma batalha diária pela<br />

visibilidade e contra o machismo, em<br />

uma cultura urbana ainda marcada<br />

pela forte presença masculina.<br />

“Para lidar com o machismo, você<br />

tem de chutar a <strong>por</strong>ta, entrar e mostrar<br />

eficiência”, define a produtora cultural<br />

Soraia Silva, mais conhecida como Totty,<br />

responsável <strong>por</strong> organizar grandes eventos<br />

de hip hop na capital. O primeiro<br />

deles foi em 2003, que reuniu mais de<br />

quatro mil pessoas em uma praça no<br />

Vale do Jatobá, na região do Barreiro,<br />

em Belo Horizonte. “Tenho certeza que,<br />

se algo desse errado naquele dia, a culpa<br />

seria minha, pois era a única mulher<br />

na produção”, conta Totty.<br />

Para a rapper mineira Ohana Santana,<br />

a participação d<strong>elas</strong> no movimento<br />

tem sido cada vez maior, em<br />

razão da crescente consciência das<br />

mulheres. “Estamos cada vez mais nos<br />

entendendo e conseguindo trabalhar<br />

nossa imagem dentro dessa cultura,<br />

que é machista. Tem sido um pouco<br />

mais fácil, <strong>por</strong>que temos tomado a<br />

frente”, afirma Ohana, que revela já ter<br />

enfrentado situações de preconceito,<br />

como ser convidada <strong>por</strong> um rapper<br />

para cantar somente um refrão ou escutar<br />

de um homem o pedido para engrossar<br />

a voz e usar roupa larga, antes<br />

de uma apresentação. “Ser feminina<br />

era algo que não podia no hip hop”.<br />

O primeiro contato de Ohana com<br />

o movimento começou em 2007, quando<br />

decidiu usar o cabelo de forma natural,<br />

sem alisá-lo, e foi buscar referências<br />

na cultura negra. “Comecei a me enxergar<br />

de outra maneira, fora desse<br />

lugar da mídia eurocêntrica”. Um ano<br />

depois, ela participou do duelo de MCs<br />

que ocorre semanalmente debaixo do<br />

viaduto Santa Tereza, no centro de Belo<br />

Horizonte, e desde então passou a frequentar<br />

os eventos. “Hip hop pra mim<br />

é estilo de vida", define a rapper.<br />

Nascido no subúrbio de Nova Iorque,<br />

em meados da década de 70, o hip hop<br />

surgiu como forma de denúncia das<br />

desigualdades. Nos guetos, os jovens<br />

versavam sobre o racismo, a pobreza,<br />

a violência e outras carências sociais.<br />

Há um bom tempo que a cultura já ga-<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

101


nhou projeção para fora das periferias,<br />

mas os problemas persistem nesses<br />

espaços. "O hip hop veio do espaço periférico<br />

e significa resistência. Hoje há<br />

um movimento de mercado que tenta<br />

capturá-lo. Há muitas pessoas dentro<br />

da cultura sem qualquer perspectiva<br />

da realidade. Todos têm o direito de<br />

curtir, mas eu não danço <strong>por</strong>que é modinha.<br />

Direciono minha luta para a<br />

mulher negra, o jovem dentro da quebrada",<br />

destaca a educadora social Sheila<br />

Santana Bacelar.<br />

Em oficinas e grupos que lidera, ela<br />

utiliza a dança para despertar a consciência<br />

e provocar reflexões sobre<br />

temas como violência e sexualidade. A<br />

intenção é aproveitar os movimentos<br />

cor<strong>por</strong>ais para mudar os olhares sobre<br />

o feminino. "O nosso corpo, que o<br />

tempo todo é sexualizado na sociedade,<br />

está aqui para dizer algo, passar<br />

uma mensagem. Não é fácil uma mulher<br />

subir no palco e não ser vista<br />

como frágil ou um corpo sexual.<br />

Temos de nos fortalecer para estar lá.<br />

Dizer que não somos um alvo a ser<br />

buscado. É trampo, velho", revela<br />

Sheila, que há 15 anos se dedica profissionalmente<br />

à dança como forma de se<br />

expressar na sociedade.<br />

Ela considera que, mesmo com o<br />

avanço das mulheres, atuar na cena<br />

do hip hop ainda é algo difícil. Até<br />

2013, <strong>por</strong> exemplo, ela se vestia nos<br />

"rolês" como os homens, para não ser<br />

Carolina Ayala<br />

ignorada. "Hoje não faço isso. Tenho<br />

outro ponto de vista, que se baseia na<br />

resistência de ser mulher; me reconheço<br />

como mulher negra e me considero<br />

uma pessoa que faz o mesmo<br />

que os caras. Mas mesmo assim ainda<br />

hoje é uma cultura machista. Não me<br />

sinto representada e acolhida nos rolês<br />

que os caras fazem", afirma.<br />

E foi justamente <strong>por</strong> meio da moda<br />

que Lorena dos Santos decidiu atuar.<br />

Estilista e empreendedora, ela fundou<br />

a marca "Lolita às avessas", especializada<br />

em produzir roupas para as mulheres<br />

do movimento. "As poucas mulheres<br />

que tinham acesso ao hip hop<br />

precisavam se fantasiar de homem<br />

para incomodar um pouco menos os<br />

caras que estavam nessa cena. Ou seja,<br />

<strong>elas</strong> não podiam se externar. Tinham<br />

de vestir boné, calça larga, tênis, blusão,<br />

casaco. Com muito custo <strong>elas</strong> conseguiam<br />

colocar brinco e batom. Isso foi<br />

muito forte, principalmente nas décadas<br />

de 70 e 80. Na década de 90, houve<br />

uma mudança nisso, um grito de liberdade,<br />

que para mim se relaciona<br />

com o feminismo. E aí vamos percebendo<br />

uma evolução, e as mulheres<br />

passam a usar brincos, saias, pulseiras.<br />

Hoje, se ela usar uma peça masculina<br />

é <strong>por</strong>que gosta e não <strong>por</strong> imposição".<br />

A relação dela com o hip hop começou<br />

em 2002, depois de participar de<br />

um evento de rap. "Sempre transitei<br />

pela blackmusic, mas quando vi<br />

aquela tribo, a estética daqu<strong>elas</strong> pessoas,<br />

aquilo mexeu comigo", revela Lorena,<br />

cuja primeira referência estética<br />

veio da avó materna, Elza Lima. "Ela<br />

sempre foi muito criativa para se vestir",<br />

relembra Lorena, que também é<br />

formada em moda e figurino. Nos desfiles<br />

e ensaios fotográficos das coleções<br />

que lança, ela faz questão de<br />

102 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


colocar em cena mulheres comuns, e<br />

não modelos. A última coleção, <strong>por</strong><br />

exemplo, foi batizada de "Protagonistas"<br />

e reuniu mulheres com forte atuação<br />

nas comunidades em que moram.<br />

"A moda cria essa possibilidade de<br />

mostrar que a beleza não é só eurocêntrica.<br />

Trazemos a diversidade para<br />

vestir os corpos da mulher periférica,<br />

e sempre vi a moda como uma o<strong>por</strong>tunidade<br />

de me comunicar e protestar,<br />

de falar coisas que as pessoas não querem<br />

falar", afirma a estilista.<br />

Mark Florest<br />

Resistência estética<br />

Outra expressão artística da cena<br />

hip hop, o grafite ganha cada vez mais<br />

admiradoras e já figura até em exposições<br />

nas grandes galerias do mundo.<br />

Essa forma de manifestação em espaços<br />

públicos ganhou força no Brasil ainda<br />

nos anos 80 e hoje em dia faz parte do<br />

modo de vida de muitas jovens. Tanto<br />

nos Estados Unidos e Europa como<br />

“<br />

Às vezes uma rapper<br />

faz uma música<br />

contra o machismo<br />

e aí um homem diz:<br />

'lá vem vocês falando<br />

disso novamente'.<br />

Estamos falando<br />

<strong>por</strong>que ainda não foi<br />

resolvido”.<br />

Totty, produtora cultural<br />

Totty, muitas vezes, a única mulher na produção de um evento de Hip Hop.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

103


Sheila Bacelar: Não é fácil para uma mulher<br />

subir no palco e ser vista como frágil.<br />

Denilson Cajazeiro<br />

aqui, a atuação das mulheres sempre<br />

foi presente, no entanto foi somente<br />

mais recentemente que o protagonismo<br />

feminino ganhou projeção.<br />

Apesar dos estudos publicados sobre<br />

o tema trazerem referências, em<br />

maioria, à participação masculina, Nicholas<br />

Ganz foi um dos poucos autores<br />

que se ocuparam em retratar a participação<br />

feminina na arte de rua. Em<br />

seu livro “Graffiti Woman”, ele reuniu<br />

128 grafiteiras dos cinco continentes,<br />

sendo que oito são brasileiras. Na pesquisa<br />

“Meninas do grafite: adolescência,<br />

identidade e gênero nas culturas juvenis<br />

contem<strong>por</strong>âneas”, a autora Viviane Magro<br />

analisa as experiências vividas <strong>por</strong><br />

grupos de adolescentes e jovens grafiteiras<br />

em Campinas. Para a pesquisadora,<br />

as experiências educativas não<br />

formais no grafite são estratégias privilegiadas<br />

de desenvolvimento, que as<br />

ajudam a minimizar impactos negativos<br />

da exclusão social e a elaborar vivências<br />

afirmativas de si mesmas, evitando outros<br />

meios como os da criminalidade,<br />

drogas e violência.<br />

Em outro artigo, a pesquisadora da<br />

Universidade Federal da Bahia Margarida<br />

Morena investigou a participação<br />

das mulheres grafiteiras nos espaços<br />

públicos de Salvador. Ela procurou observar<br />

como as artistas construíram a<br />

imagem do feminino nos muros da cidade.<br />

No trabalho, a autora revela a inquietude<br />

diante da falta de reflexões<br />

sobre o tema a partir do conceito de<br />

gênero. “Pouco ou nada se sabe sobre<br />

a presença da mulher, enquanto artista,<br />

grafiteira. Por outro lado, pensar o grafite<br />

sob a perspectiva das teorias de<br />

gênero faz emergir a necessidade de<br />

pensar o lugar da mulher nessa prática,<br />

ao mesmo tempo em que se propõe<br />

uma reflexão paralela sobre a mulher<br />

104<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


no espaço público. Debruçar-me sobre<br />

essas tensões, que apontam a mulher<br />

grafiteira como duplamente transgressora,<br />

já que além do ato de grafitar,<br />

que <strong>por</strong> si só já toma de assalto e intervém<br />

nos espaços públicos, a faz<br />

transitar <strong>por</strong> ambientes naturalizados<br />

como pertencentes do masculino, me<br />

faz vislumbrar a possibilidade de uma<br />

investigação singular que pode resultar<br />

em um trabalho im<strong>por</strong>tante para compreender<br />

os percursos empreendidos<br />

p<strong>elas</strong> mulheres na conquista do espaço<br />

público”, comenta Margarida Morena.<br />

Na avaliação da grafiteira Letícia<br />

Perera, é justamente esse ato de transgressão<br />

<strong>por</strong> <strong>elas</strong> praticado que incomoda<br />

a sociedade. “Por que é tão espantoso<br />

ver uma mulher na cultura<br />

hip hop? Porque a mulher foi criada<br />

para não sair de casa. É estranho para<br />

a sociedade ver uma mulher numa situação<br />

de transgressão, de contestação”,<br />

opina Perera, também formada em artes<br />

visuais. Desde que começou a grafitar,<br />

em 2003, ela conta que já enfrentou<br />

inúmeras situações de preconceito<br />

de gênero. Em uma d<strong>elas</strong>, um homem<br />

passou de carro e gritou: ‘vai lavar vasilha,<br />

mulher!’. “Tenho certeza de que<br />

se fosse um cara ninguém passaria e<br />

diria para ele lavar banheiro. Felizmente<br />

isso tem mudado. Não me sinto menor<br />

quando faço uma pintura com um homem.<br />

A mulher em geral lida muito<br />

com isto, com a questão de ter de<br />

provar sua capacidade. Eles não acreditam<br />

que ela possa ser competente.<br />

Hoje, acho os trabalhos das mulheres<br />

muito mais expressivos. A cena feminina<br />

cresceu muito, inclusive em qualidade”,<br />

destaca Perera, para quem o<br />

hip hop é uma forma de resistência<br />

dos sujeitos que estão na cidade, como<br />

forma de reafirmarem sua existência.<br />

Para a grafiteira Criola (fot0), a<br />

pintura no cenário urbano expressa<br />

uma vontade de mudar a realidade social<br />

e cultural ao seu redor. “Assim como<br />

qualquer mulher em uma sociedade<br />

patriarcal e machista, eu infelizmente<br />

não posso ter a liberdade e direito de<br />

andar a noite sozinha sem correr o<br />

risco de ser violentada, <strong>por</strong> exemplo.<br />

Isso interfere no fato de que eu não<br />

tenho a liberdade de pintar de madrugada,<br />

como a maioria dos homens. Preconceito<br />

todas nós sofremos, todos os<br />

dias. Enquanto o meu corpo não for<br />

respeitado pela sociedade, o preconceito<br />

irá existir diante das mulheres”, desabafa<br />

a artista visual, cujos trabalhos que retratam<br />

as mulheres negras são reconhecidos<br />

em todo o país.<br />

“Pintar mulheres negras nas ruas<br />

é um ato político, mais do que propriamente<br />

estético. É tudo uma questão<br />

de coragem. Chutar a <strong>por</strong>ta e falar: eu<br />

posso! Meu corpo está num lugar público,<br />

mas ele não é público. Eu exijo<br />

respeito. É uma maneira de mostrar o<br />

seu posicionamento para a sociedade.<br />

Eu não quero que os meus descendentes<br />

passem pelo que eu passei. Eu vou<br />

lutar, agora, com as armas que eu tenho<br />

nas minhas mãos, no caso é o spray e<br />

a arte”, avisa Criola.;<br />

Débora Junqueira<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

105


Internet<br />

POR<br />

ARTIGO<br />

Márcia Mendonça<br />

Carmen Miranda, novas<br />

representações e narrativas<br />

na contem<strong>por</strong>aneidade<br />

106<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


No ano em que se comemora o centenário<br />

do primeiro samba gravado no<br />

Brasil – Pelo Telefone, de janeiro de<br />

1917 –, Carmen Miranda, uma das mais<br />

emblemáticas personagens do século<br />

20, merece ser lembrada e redescoberta.<br />

Compreender o fenômeno Carmen<br />

Miranda implica analisar<br />

discursos, narrativas, subjetividades e<br />

a cor<strong>por</strong>eidade.<br />

Sua trajetória como cantora ocorre<br />

na década de 1930. A artista ganhou<br />

fama <strong>por</strong> meio do rádio, inicialmente,<br />

com a música Taí (Pra você gostar de<br />

mim), tornando-se a intérprete mais<br />

famosa da década no país. Como atriz,<br />

atuou em diversos filmes rodados no<br />

Brasil e nos Estados Unidos. Sua imagem<br />

de sucesso no exterior atendia<br />

aos interesses políticos norte-americanos<br />

no período que se compreende<br />

como a Política da Boa Vizinhança.<br />

Dona de um estilo próprio, a artista<br />

reinventou a fantasia da baiana <strong>por</strong><br />

meio de batas, babados, turbantes, bijuterias,<br />

plataformas e balangandãs,<br />

lançando moda, criando o estilo Miranda<br />

Look, que tanto sucesso fez nas<br />

vitrines novaiorquinas. Na cultura brasileira,<br />

a artista foi im<strong>por</strong>tante referência<br />

para o Tropicalismo e até mesmo<br />

para o movimento LGBT (Lésbicas,<br />

Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais<br />

e Transgêneros).<br />

O surgimento da artista ocorre num<br />

contexto em que o governo Vargas, a<br />

partir da década de 1930, dá início à<br />

construção de uma identidade nacional.<br />

Nesse período, vários elementos que<br />

representavam as camadas populares<br />

passam a ser incor<strong>por</strong>ados a essa representação.<br />

Tratava-se de um momento<br />

de tensão em torno de certa<br />

negociação da identidade nacional, tendo<br />

como agentes transformadores o<br />

“<br />

A artista foi<br />

im<strong>por</strong>tante<br />

referência para o<br />

Tropicalismo e até<br />

mesmo para o<br />

movimento<br />

LGBT”<br />

Estado e alguns poucos grupos sociais,<br />

especialmente uma parcela da intelectualidade<br />

e do nascente segmento<br />

urbano. Uma identidade redimensionada<br />

via nascente cultura de massa.<br />

Dona de uma performance singular,<br />

na qual está presente a imagem da mulher<br />

sedutora, da mulher continente,<br />

“inscrita no âmbito da irracionalidade”,<br />

de uma cor<strong>por</strong>eidade extravagante e<br />

sexualizada, a artista introduziu como<br />

elemento de composicão de sua personagem<br />

aspectos da cultura popular,<br />

como <strong>por</strong> exemplo a figura do malandro,<br />

e as utilizou em suas apresentações.<br />

Carmen Miranda se inseria em um<br />

contexto aberto a novas significações.<br />

Ao com<strong>por</strong> sua personagem, Carmen<br />

selecionou determinados elementos<br />

desse traje típico, como o pano da costa,<br />

de origem africana; o Bonfim, lembrando<br />

o candomblé; o rosário de ouro, a Igreja<br />

Católica, além de acrescentar outros<br />

elementos como fios de contas no pescoço,<br />

o abdômen nu, o uso de cores<br />

fortes nas roupas, o turbante com cestas<br />

de frutas. Tratava-se de um símbolo da<br />

“brasilidade”, “síntese” do Brasil, representante<br />

das camadas populares<br />

brasileiras em seu convívio supostamente<br />

harmônico com as elites. A baiana<br />

“branqueada” e “exótica” fora, finalmente,<br />

aceita nos espaços sociais elitizados<br />

do Rio de Janeiro no final da década<br />

de 1930, tornando-se uma coqueluche<br />

nos bailes das elites brasileiras.<br />

Mas a consagração da artista veio a<br />

partir de 1939, quando, após uma apresentação<br />

no Cassino da Urca, um empresário<br />

norte-americano a contrata<br />

para fazer espetáculos na Broadway.<br />

Carmen faz sucesso meteórico, atua<br />

em 14 filmes nos Estados Unidos, torna-se<br />

a representante cultural da Política<br />

da Boa Vizinhança, transforma-se<br />

na Bombshell, e passa a ser o segundo<br />

maior cachê pago nos Estados Unidos.<br />

No entanto, os personagens interpretados<br />

pela atriz nestes filmes traziam,<br />

em sua maioria, representações de uma<br />

América Latina desprovida de racionalidade,<br />

todas perfeitamente adequadas<br />

às diretrizes ideológicas norte-americanas,<br />

além de narrativas marcadas<br />

pela diversidade musical (rumba, mambo,<br />

samba estilizado), pela ideia de uma<br />

América marcada pelo exotismo, <strong>por</strong><br />

paraísos tropicais e pela ausência de<br />

trabalho. A imagem de mulher sedutora,<br />

“mulher continente”, “inscrita no âmbito<br />

da irracionalidade”, dona de uma<br />

cor<strong>por</strong>eidade extravagante e sexualizada,<br />

é explorada à exaustão. Tal imagem<br />

atendia plenamente ao jogo de interesses<br />

norte-americano, sendo o cinema<br />

o veículo imprescindível à consolidação<br />

dos interesses políticos. Como<br />

analisa a professora e pesquisadora<br />

Eneida de Souza:<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

107


A relação amorosa entre a cultura latino-americana<br />

e a do norte começa a<br />

tomar corpo, seja através da figura feminina<br />

representativa da América Latina<br />

e construída pelo imaginário do período,<br />

seja pela edução armada pelo conquistador<br />

do norte no diálogo com a glamourosa<br />

e sexy mulher tropical. Carmen<br />

Miranda ocupa o lugar simbólico desse<br />

diálogo, estampado pelos meios de comunicação<br />

de massa, e contriubi para a<br />

alegorização do território <strong>por</strong> meio da<br />

expressão de uma imagam lúdica e liberada<br />

da mulher.<br />

Internet<br />

Ao exacerbar todos os elementos<br />

de sua composição visual, vistos nos<br />

filmes hollywoodianos, Carmen Miranda<br />

foi tornando-se, com o tempo,<br />

uma figura artificializada, caricata, grotesca,<br />

chegando à bizarrice. Suas performances,<br />

marcadas pelo excesso e<br />

pelo exagero, passaram a ser apropriadas<br />

pelo “colonizador’, com objetivo<br />

de tansformá-la em mais um sub-produto<br />

cultural. A partir da leitura crítica<br />

da música O que é que a baiana tem,<br />

observa-se um jogo de sedução presente<br />

na letra, brincando com a ideia de desnudamento<br />

dos segredos da baiana e<br />

de uma cor<strong>por</strong>eidade erótica, num jogo<br />

de perguntas e respostas, sempre a indagar,<br />

a sugerir que algo está faltando,<br />

como podemos observar no refrão “Mas<br />

o que é que a baiana tem”.<br />

Dona de uma cor<strong>por</strong>eidade e performance<br />

diversificadas, pode-se ainda<br />

pensar em Carmen Miranda numa<br />

perspectiva mais ampla, na qual a cultura<br />

se faz presente. Se entendemos a<br />

cultura como uma linguagem de signos<br />

que acompanha, retrata e simboliza<br />

transformações, ela deve ser pensada<br />

também como reflexo do conjunto de<br />

mudanças e hibridismos que nela estão<br />

presentes. Dentro da cultura, a moda<br />

é um campo no qual a reapropriação e<br />

a ressignificação dos signos presentes<br />

nas vestimentas de Carmen Miranda<br />

se apresentaram de forma intensa, fornecendo<br />

alimento ao imaginário social<br />

brasileiro e internacional, ao mesmo<br />

tempo em que sua figura aglutinou representações<br />

sobre noções de diferença,<br />

alteridade e identidade.<br />

Mas a rica indumentária da artista<br />

ficou, no entanto, restrita, nas décadas<br />

de 1940 e de 1950, às vitrines novaiorquinas,<br />

influenciando a moda de lá, e<br />

suas criações foram assimiladas e/ou<br />

recuperadas no Brasil <strong>por</strong> meio de releituras<br />

e ressignificações a partir da<br />

década de 1980. A permanência da artista<br />

na contem<strong>por</strong>aneidade vem se<br />

perpetuando <strong>por</strong> meio da construção<br />

de novas narrativas e discursos, de estilos<br />

diversos. A originalidade e os elementos<br />

de suas vestimentas passaram<br />

a ser vistos nas coleções das grifes<br />

Prada, Dolce&Gabana, Versace, Farm,<br />

Salinas, Rosa Chá, Salinas, Alexandre<br />

Herchcovitch, Pedro Lourenço, Charlotte<br />

Olympia, entre outras marcas, todas<br />

inspiradas nas criações da artista.<br />

108<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


Nesse sentido, torna-se im<strong>por</strong>tante<br />

compreender como as roupas usadas<br />

<strong>por</strong> Carmen Miranda, tão criticadas e<br />

vistas de forma depreciativa no início<br />

de suas aparições, passaram a ganhar<br />

vigor e notoriedade, influenciando diversas<br />

gerações, estilistas e artistas nacionais<br />

e do pop internacional, atingindo<br />

o estatuto de moda, atraindo nichos<br />

como gays e artistas, possibilitando<br />

uma gama de reapropriações. Poderíamos<br />

dizer que Carmen Miranda foi uma<br />

artista da modernidade, pré-tropicalista,<br />

pré-multimídia, pré-pop, capaz de adaptar-se<br />

a todas as mídias emergentes do<br />

período, do disco ao rádio, do cinema à<br />

TV e ainda presentes na contem<strong>por</strong>aneidade.<br />

Poderíamos ainda dizer que a<br />

artista aparece como uma espécie de<br />

Madonna dos anos de 1930 em apresentações<br />

e performances, e no sentido<br />

de que soube aproveitar como ninguém<br />

todas as linguagens da mídia, influenciando<br />

diversas gerações nos campos<br />

da moda e do com<strong>por</strong>tamento.<br />

Analisar a cor<strong>por</strong>eidade em Carmen<br />

Miranda enquanto um elemento<br />

transgressor e potencializado <strong>por</strong> suas<br />

criações, com repercussões nos dias<br />

atuais, é pensar na transgressão enquanto<br />

um elemento do erotismo.<br />

Como afirma o escritor francês George<br />

Bataille, “o erotismo encontra-se vinculado<br />

à transgressão; a transgressão<br />

faz parte do erotismo”.<br />

Na questão de gênero, pode-se pensar<br />

também na artista como uma criadora<br />

de identidades múltiplas, como,<br />

<strong>por</strong> exemplo, recuperando símbolos diversos<br />

e controversos ligados aos trópicos,<br />

mas também ligados a outras<br />

formas de representação. Um exemplo<br />

disso é a relação que se estabeleceu<br />

entre gays e a artista, com o surgimento<br />

da Banda da Carmen Miranda, em 1984,<br />

no Rio de Janeiro, criada pelo figurinista<br />

Célio Bacellar. Posteriormente, na década<br />

seguinte, e ainda no Rio de Janeiro,<br />

surge outro bloco, o Bloco das Drags.<br />

Como aponta Correa (2011, p. 144):<br />

(...) a indumentária mais usada p<strong>elas</strong><br />

drags queens que incor<strong>por</strong>am Carmen<br />

Miranda é a baiana, pela qual ficou famosa<br />

e cuja estilização extravagante a<br />

aproximava da ideia de brasilidade já<br />

absorvida pelo público norte-americano<br />

(...) com a maquiagem carregada e gestos<br />

elaborados, esse exagero visual tornouse<br />

a referência essencial para as drags,<br />

fenômeno dos anos 90, confirmando a<br />

associação da imagem de Carmen às<br />

manifestações performáticas das comunidades<br />

gays já nos anos 70. O riso,<br />

o deboche, o grotesco e a ironia, usados<br />

em sua performance como atriz, também<br />

fazem parte da construção da persona<br />

Carmen Miranda, símbolo das subculturas<br />

gays (...).<br />

Ao analisar o percurso pelo qual<br />

suas vestimentas, adornos, adereços<br />

colares, braceletes de ouro, de prata<br />

ou de latão, brincos, pencas de balangandãs,<br />

turbantes, sandálias, pulseiras,<br />

anéis com origem estética da cultura<br />

africana tornaram-se, num dado momento<br />

histórico, parte constituidora<br />

de um determinado modo de representação<br />

da identidade da cultura brasileira,<br />

e como, posteriormente, na<br />

contem<strong>por</strong>aneidade, sua imagem forneceu<br />

elementos para a compreensão<br />

de uma identidade múltipla e multirracial;<br />

a tropicalidade, servindo de mediação<br />

discursiva entre duas matrizes<br />

culturais; o gestual e a cor<strong>por</strong>eidade<br />

transgressores de sua figura, dotada<br />

de intensa complexidade, apresentando<br />

sinais da mais radical alteridade (dos<br />

imaginários do corpo, tão presentes<br />

ao longo do século como nos dias<br />

atuais); o estatuto de imagem cult, principalmente<br />

após o cantor Caetano Veloso<br />

a ter saudado como símbolo máximo<br />

do Tropicalismo, no final dos<br />

anos de 1960.<br />

O mito Carmen Miranda é marcado<br />

<strong>por</strong> intensa circularidade e atravessa<br />

décadas. É interessante observar como<br />

os movimentos a partir de uma artista<br />

estilizada, tão ao gosto de segmentos<br />

da elite brasileira, e em seguida apropriada<br />

pelos Estados Unidos, alvo de<br />

críticas <strong>por</strong> parte de nacionalistas brasileiros<br />

de esquerda, levam à retomada<br />

da artista como um mito pelos tropicalistas,<br />

no final dos anos de 1960 até<br />

alcançar o estatuto de cult na contem<strong>por</strong>aneidade.;<br />

Referências bibliográficas:<br />

CORREA, Gustavo Borges. As Várias Faces de<br />

Carmen Miranda: O Caso das Drag Queens no<br />

Carnaval Carioca. In: Seminário Circuitos da Cultura<br />

Popular, Anais Eletrônicos. Rio de Janeiro:<br />

UFRJ/IFCS, 2010. p. 269-287.<br />

SOUZA, Eneida Maria de. Do kitsch ao cult. In: CA-<br />

VALCANTE, Berenice; STARLING, Heloisa Maria<br />

Murgel; EISEMBERG, José (orgs). Decantando a<br />

República: Inventário histórico e político da canção<br />

popular moderna brasileira. Rio de Janeiro:<br />

Nova Fronteira; São Paulo: Fundação Perseu<br />

Abramo. v. 2. p. 76.<br />

Márcia Mendonça – Professora universitária e pesquisadora<br />

- Graduada em História e Comunicação<br />

(Jornalismo). Mestre em Artes Visuais – EBA/ UFMG.<br />

Leciona em programas de graduação e pós-graduação<br />

nas áreas de Cinema, História e Moda.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

109


ATEBEMG


PERFIL<br />

POR<br />

Cecília Alvim<br />

Elza Soares:<br />

uma mulher do fim do mundo<br />

“<br />

Na avenida deixei lá<br />

A pele preta e a minha voz<br />

Na avenida deixei lá<br />

A minha fala, minha opinião<br />

A minha casa, minha solidão<br />

...<br />

Mulher do fim do mundo<br />

Eu sou<br />

Eu vou<br />

Até o fim<br />

Cantar”<br />

Trechos de: Mulher do<br />

fim do mundo<br />

(Romulo Fróes e Alice Coutinho)<br />

Elza nos toca com sua vida e sua<br />

música. Numa entrevista exclusiva à<br />

revista <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong>, essa mulher ímpar<br />

conta sua história e nos inspira com<br />

seu grande coração que já superou inúmeras<br />

adversidades.<br />

Elza Soares nasceu na favela da<br />

Moça Bonita, na capital carioca. Aos<br />

doze anos de idade, <strong>por</strong> ordens do pai,<br />

casou-se com Lourdes Antônio Soares,<br />

conhecido como Alaúrdes, e cerca de<br />

um ano depois deu à luz seu primeiro<br />

filho, João Carlos.<br />

Como tinha o sonho de cantar e<br />

precisava comprar remédios para seu<br />

filho recém-nascido, aos treze anos decidiu<br />

participar do programa de Ary<br />

Barroso na Rádio Tupi, e fez sua primeira<br />

apresentação ao vivo no auditório<br />

da emissora, que era a maior de seu<br />

tempo. Em princípio não foi levada a<br />

sério, <strong>por</strong> seu jeito humilde de falar e<br />

se vestir. O apresentador perguntou,<br />

então, de que planeta ela viera, ao que<br />

respondeu: “Do mesmo planeta seu,<br />

seu Ary. O Planeta Fome”. A partir daquele<br />

momento ninguém mais riu e<br />

Elza cantou Lama, e encantou a todos.<br />

Sua carreira, entretanto, só foi iniciada<br />

alguns anos depois. Antes disso,<br />

trabalhou como lavadeira e como operária<br />

em uma fábrica de sabão. Aos 21<br />

anos, ficou viúva, com filhos para criar.<br />

Porém, seguiu em seu propósito de<br />

vida, que era cantar. Cantou na Orquestra<br />

de Bailes Garan, no Teatro João<br />

Caetano, na tem<strong>por</strong>ada de uma peça<br />

teatral na Argentina, na Rádio Mauá,<br />

na Rádio Tupi e depois trabalhou como<br />

crooner de uma boate carioca.<br />

Seu primeiro disco foi lançado em<br />

1960, pela Odeon, e <strong>por</strong> meio da faixatítulo<br />

“Se acaso você chegasse” alcançou<br />

logo grande sucesso. Já Bossa Negra<br />

foi lançado em 1961. No ano seguinte,<br />

integrou a comitiva de artistas brasileiros<br />

que representaram o país durante<br />

a Copa do Mundo de Futebol, no Chile.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

111


Nesse período, Elza já havia iniciado<br />

um romance com Garrincha, jogador<br />

de destaque na competição e que garantiu<br />

a taça para a seleção brasileira.<br />

Essa relação lhe gerou muita perseguição.<br />

Na época, Garrincha era casado<br />

e Elza foi acusada de ser uma destruidora<br />

de lares, passando a sofrer constantes<br />

ameaças, que não se interromperam<br />

mesmo durante o período em<br />

que a união entre os dois foi oficializada.<br />

Casaram-se em 1968, <strong>por</strong>ém após Elza<br />

ser ameaçada de morte <strong>por</strong> meio de<br />

um bilhete anônimo, em 1970, o casal<br />

resolve sair do país com destino à Itália.<br />

Nesse mesmo ano, lança o aclamado<br />

Elza Pede Passagem e é homenageada<br />

pelo conselho de música popular do<br />

Museu da Imagem e do Som, do Rio<br />

de Janeiro, com o título de Embaixatriz<br />

do Samba.<br />

Entre as décadas de 1960 e 1970, vivenciou<br />

o auge de sua carreira. Desde<br />

o seu primeiro registro fonográfico até<br />

o ano de 1982, lançou em média um<br />

disco <strong>por</strong> ano, alguns deles trazendo<br />

parcerias de sucesso, como exemplo a<br />

que resultou na trilogia Elza, Miltinho<br />

e Samba (1967, 1968 e 1969) e com o baterista<br />

Wilson das Neves (1968). Durante<br />

a década de 1970, realizou, ainda, turnês<br />

pela Europa e pelos Estados Unidos.<br />

Contudo, esse período foi também<br />

marcado pela dor. Seu companheiro,<br />

Garrincha, já enfrentava problemas<br />

com alcoolismo e as tentativas de Elza<br />

de desviá-lo da rota dos bares eram<br />

criticadas pelos amigos do ex-jogador.<br />

Sua mãe morre no ano de 1969 após<br />

um acidente de carro em que sua filha<br />

Sara, Garrincha e ela também saíram<br />

feridos. Acredita-se que Garrincha dirigia<br />

alcoolizado.<br />

No começo dos anos de 1980, após<br />

16 anos de casamento, não su<strong>por</strong>tando<br />

mais a luta contra a doença do marido,<br />

os casos de violência doméstica que<br />

sofria e na busca de proteger o filho,<br />

Garrinchinha, de um ambiente familiar<br />

conturbado, Elza separa-se do<br />

“gênio de pernas tortas”, que falece um<br />

ano depois.<br />

Apenas três anos mais tarde, um<br />

novo acidente de carro marca profundamente<br />

sua vida. Aos nove anos de<br />

idade, morre Garrinchinha, seu filho<br />

caçula. Desnorteada e sentindo a dor<br />

da perda de mais um filho, Elza decide<br />

sair do Brasil, em turnês pela Europa<br />

e pelos Estados Unidos.<br />

Retorna ao Brasil em 1995. Dois<br />

anos depois, lança o álbum Trajetória,<br />

desta vez totalmente dedicado ao samba.<br />

Sua carreira só ganha novo fôlego<br />

na década posterior, após a BBC de<br />

“<br />

Cadê meu celular?<br />

Eu vou ligar pro 180<br />

Vou entregar teu nome<br />

E explicar meu endereço<br />

Aqui você não entra mais<br />

Eu digo que não te<br />

conheço<br />

E jogo água fervendo<br />

Se você se aventurar<br />

Cê vai se arrepender de levantar<br />

a mão pra mim”<br />

Trechos de: Maria da Vila Matilde<br />

(Douglas Germano)<br />

Londres a descrevê-la como “a cantora<br />

do milênio” e a revista Time Out, como<br />

“uma mistura explosiva de Tina Turner<br />

com Célia Cruz”. Em 2002, lança Do<br />

Cóccix até o Pescoço, que conta com<br />

músicas de Caetano Veloso, Chico Buarque,<br />

Jorge Ben Jor e outros grandes<br />

compositores da música popular brasileira.<br />

Por este trabalho, Elza foi indicada<br />

ao Grammy Latino. Em 2007, a<br />

artista interpreta o Hino Nacional Brasileiro<br />

na cerimônia de abertura dos<br />

Jogos Pan-Americanos, sediados no<br />

Rio de Janeiro.<br />

Em 2015, Elza lança seu primeiro<br />

disco de músicas inéditas, A Mulher do<br />

Fim do Mundo, que recebeu o Grammy<br />

Latino no ano seguinte. O espetáculo<br />

traz a cantora sentada em um trono<br />

metálico em meio a um cenário cercado<br />

<strong>por</strong> mil sacos plásticos de lixo. Do<br />

alto das suas seis décadas de carreira,<br />

Elza Soares leva aos palcos uma<br />

"ópera" emocional que retrata as maz<strong>elas</strong><br />

da sociedade. As canções compostas<br />

pelos paulistas José Miguel<br />

Wisnik, Romulo Fróes e Celso Sim<br />

falam sobre sexo, racismo, transsexualidade,<br />

violência doméstica, narcodependência,<br />

crise da água e morte.<br />

Em <strong>2017</strong>, Elza Soares se apresenta<br />

nos principais palcos brasileiros e participa<br />

do prestigiado festival Primavera<br />

Sound, em Barcelona, e do festival NY<br />

Summerstage. “Elza Soares é uma artista<br />

viva, corajosa e, acima de tudo,<br />

não tem medo de nada! Nada é moderno<br />

demais para ela. Nenhuma dissonância<br />

a assusta, nenhuma distorção<br />

a intimida. Com sua fome do novo, se<br />

transforma sempre. É uma das pessoas<br />

mais generosas e humanas que já tive<br />

a o<strong>por</strong>tunidade de conhecer”, afirma<br />

o produtor do espetáculo e baterista<br />

Guilherme Kastrup.<br />

112 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


ENTREVISTA<br />

“Sou<br />

inconformada,<br />

não me<br />

calo”<br />

ATEBEMG<br />

Elza, como foi sua vida de menina?<br />

Como era seu relacionamento com<br />

seus familiares e a comunidade?<br />

Eu vim da comunidade Moça Bonita,<br />

subúrbio do Rio. Tive origem humilde<br />

e desde criança entendi que tinha que<br />

lutar muito para mudar a minha situação.<br />

Como sempre fui muito levada,<br />

nunca me conformei com o pouco. Eu<br />

era o chamego do meu pai, Seu Avelino,<br />

grande homem. Ele trabalhava na pedreira<br />

e minha mãe, Rosária, lavava<br />

roupa para fora. Quando criança meu<br />

sonho era trabalhar para viver uma vida<br />

melhor. Sempre fui muito atrevida e<br />

nunca tive medo de nada. Para mim<br />

não existe NÃO!<br />

Você teve que se casar e foi mãe ainda<br />

menina. Como foi viver uma adolescência<br />

e juventude já com tantos desafios?<br />

Eu era muito menina, não tinha noção<br />

da responsabilidade, para mim era como<br />

brincar de boneca. Me casei cedo <strong>por</strong>que<br />

fui levar almoço para meu pai na pedreira,<br />

no caminho me distraí e fui caçar<br />

louvadeus, encontrei um rapaz, meu pai<br />

me viu saindo do mato com um rapaz e<br />

me obrigou a casar acreditando que algo<br />

havia acontecido entre nós. Somente<br />

mais tarde, quando fiquei viúva que eu<br />

entendi o peso da responsabilidade.<br />

A maternidade para você foi uma experiência<br />

rica, mas difícil pela perda<br />

de quatro dos seus sete filhos. Mas o<br />

que te trouxe de melhor?<br />

Ser mãe é um dom divino. Amo meus<br />

filhos, até hoje são minhas crianças. Foram<br />

os momentos mais lindos da minha<br />

vida. As perdas deles também foram os<br />

piores momentos que já vivi, não desejo<br />

a ninguém. Os desafios me trouxeram<br />

força. Sempre aprendemos algo!<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

113


Quando surgiu o desejo e a o<strong>por</strong>tunidade<br />

de começar a cantar? O que a<br />

música significa para você?<br />

Eu via a Bibina, minha irmã mais velha<br />

que eu, cantar. Ela era cantora lírica,<br />

era a cantora da família, mas morreu<br />

jovem, morreu de amor, época em que<br />

se morria <strong>por</strong> amor. Eu entendi que<br />

tinha uma voz diferente ainda muito<br />

jovem. A necessidade me fez cantora,<br />

<strong>por</strong>que ouvi no rádio que Ary Barroso<br />

dava prêmio em dinheiro para quem<br />

passasse pelo teste do gongo. Como eu<br />

precisava de dinheiro para sustentar<br />

meus filhos, já viúva, fui lá, e o fim da<br />

história todos vocês já sabem... A música<br />

para mim é o remédio da alma!<br />

Como foi conciliar a vida de mãe,<br />

dona de casa e trabalhadora, com o<br />

ofício de cantar?<br />

Sempre fui muito inquieta. Nunca tive<br />

medo de trabalho, nunca tive medo de<br />

nada. Era uma loucura, <strong>por</strong>que além<br />

dos meus filhos, também criei as filhas<br />

do Mané. Era muita criança para dar<br />

conta, mas consegui conciliar tudo!<br />

No mercado de trabalho em geral, a<br />

mulher ganha menos e enfrenta grandes<br />

desafios. Isso se reflete no cenário<br />

musical com as mulheres cantoras e<br />

artistas? Você viveu isso, e ainda “briga<br />

<strong>por</strong> justiça e <strong>por</strong> respeito”, como<br />

diz sua música?<br />

O mercado de trabalho é muito ingrato<br />

com nós, mulheres. Se for negra, pior<br />

ainda!Sou inconformada, não me calo!<br />

Brigo sempre <strong>por</strong> justiça e respeito. E<br />

sigo fazendo a minha arte. Só faço o<br />

que gosto e acredito.<br />

Quais preconceitos e violências sofreu<br />

em sua vida, <strong>por</strong> ser mulher e negra,<br />

que poderia compartilhar conosco?<br />

Porque as mulheres brasileiras são<br />

vítimas de violência e discriminação<br />

ainda hoje?<br />

A primeira vez que vi e sofri preconceito<br />

foi quando fui com minha mãe na casa<br />

de uma família buscar a roupa que<br />

minha mãe lavava para eles, e o <strong>por</strong>teiro<br />

não deixou ela subir pelo elevador social.<br />

Ali eu entendi o que era preconceito!<br />

Nossa sociedade é machista, <strong>por</strong> isso a<br />

mulher ainda sofre com violência e discriminação.<br />

Mas não podemos calar,<br />

denunciar sempre! Denuncie Now! Não<br />

podemos aceitar.<br />

A música “Maria de Vila Matilde” divulga<br />

o Ligue 180 e convoca para o<br />

combate à violência contra a mulher.<br />

Você considera que a música deve ser<br />

um instrumento de conscientização<br />

e resistência à violência e à opressão<br />

de gênero?<br />

Claro. Esse é o papel do artista que questiona<br />

a sociedade em que vive! O artista<br />

tem o poder de conscientizar e alertar.<br />

Como cantora, tento cumprir esse papel.<br />

“A carne mais barata do mercado é a<br />

carne negra”, diz a música “A carne”.<br />

Quais os caminhos para mudar essa<br />

realidade? Você acha que a escola e<br />

as professoras têm um papel im<strong>por</strong>tante<br />

nesse debate?<br />

Se você não mudar, nada muda. Esse é<br />

o primeiro passo para definitivamente<br />

mudar algo que nos incomoda. Educação<br />

é essencial para o povo. O que seria de<br />

todos nós se não existissem os professores?<br />

A música “A carne” também fala sobre<br />

padrões e estereótipos impostos às<br />

mulheres. “E esse país vai deixando<br />

todo mundo preto, e o cabelo esticado”.<br />

O que é beleza pra você?<br />

Beleza é autoestima. É você se sentir<br />

em paz consigo mesma...<br />

Você declarou que votou em Dilma.<br />

Você acha que o impeachment, que<br />

muitos consideram como golpe, teve<br />

a ver com machismo?<br />

Preciso mesmo responder?<br />

Na história recente do país, milhares<br />

de pessoas saíram da condição de miséria<br />

e fome, uma realidade que você<br />

conheceu, não é mesmo? Você considera<br />

que as políticas sociais que mudaram<br />

esse cenário, estão em risco<br />

neste momento?<br />

Estamos vivendo um momento de muita<br />

dificuldade. Está tudo muito estranho,<br />

muito esquisito... Mas tenho muita fé<br />

que conseguiremos nos salvar.<br />

Para você, o que significa ser uma<br />

“mulher do fim do mundo”? Com esse<br />

álbum e outros, você ganhou muitos<br />

prêmios e recebeu reconhecimento<br />

nacional e internacional. O que ainda<br />

almeja alcançar?<br />

A Mulher do Fim do Mundo sou eu e<br />

todas as mulheres que batalham dia<br />

após dia. A Mulher do Fim do Mundo<br />

não se cala, briga <strong>por</strong> sua liberdade e<br />

espaço... Almejo que Deus permita que<br />

eu cante até o fim!<br />

Quais são seus sonhos para as mulheres<br />

e para o país? Como as mulheres<br />

podem ser protagonistas de<br />

uma outra história?<br />

Meu sonho é que todas as mulheres sejam<br />

respeitadas, valorizadas, que conquistem<br />

de uma vez <strong>por</strong> todas sua liberdade<br />

e dignidade. Não precisa se<br />

preocupar em ser protagonista. Viva e<br />

escreva sua história todos os dias quando<br />

abrir a janela da vida!;<br />

114 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


Cineclube Joaquim<br />

Pedro de Andrade<br />

Terças-feiras, às 19 horas<br />

Rua Tupinambás 179, 14º andar, Centro - BH<br />

Informações: 3115-3000 - 3274-5091<br />

sinprominas@sinprominas.org.br<br />

ENTRADA FRANCA<br />

A mostra de cinema do cineclube Joaquim Pedro de Andrade é uma realização mensal<br />

com quatro exibições às terças-feiras, sempre às 19 horas, com debates após as exibições.<br />

As sessões especiais acontecem às 14 horas, quando há demanda do público<br />

específico: escolas, associações, movimentos sociais entre outros segmentos da<br />

sociedade. 40% da programação durante o ano é de filmes brasileiros.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

115


Arquivo Sinpro Minas<br />

“<br />

“A vida vale a<br />

pena se a gente<br />

tiver força de<br />

lutar, alegria<br />

de viver e prazer<br />

de amar”<br />

116 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


POR<br />

MEMÓRIA<br />

Débora Junqueira<br />

Gilse Cosenza<br />

deixa legado de<br />

resistência<br />

Márcia, Ceci, Léa, Tânia, Lia, Cecília.<br />

Independentemente do codinome usado<br />

na clandestinidade, Gilse Westin<br />

Cosenza possuía a coragem de muitas<br />

mulheres em uma só. Uma guerreira<br />

que ficou encantada no dia 28 de maio<br />

de <strong>2017</strong>. “Quem luta, não morre, fica<br />

encantada”, disse na sua última entrevista<br />

à equipe do programa de TV Extra-Classe,<br />

produzido pelo Sinpro Minas,<br />

que foi ao ar pela Rede Minas, em<br />

fevereiro deste ano. Para o Sindicato<br />

dos Professores, a militante política<br />

Gilse Cosenza sempre foi considerada<br />

uma figura especial e recebeu muitas<br />

homenagens em vida. Uma d<strong>elas</strong> foi<br />

na comemoração pelo Dia Internacional<br />

da Mulher, em 2007, quando ganhou<br />

uma singela placa confeccionada em<br />

pedra com alguns dizeres gravados.<br />

Na visita à casa dela para a entrevista,<br />

a placa estava lá em destaque na<br />

estante, entre outras tantas que ela<br />

também recebeu como reconhecimento<br />

<strong>por</strong> sua luta de resistência contra a<br />

ditadura e em defesa dos direitos do<br />

povo brasileiro. Aliás, resistência foi o<br />

nome do programa que deu início à<br />

série de re<strong>por</strong>tagens para destacar pessoas<br />

de luta como essa guerreira. A<br />

escolha de seu nome como entrevistada<br />

foi unanimidade. Afinal, Gilse, desde<br />

a sua militância estudantil contra a ditadura,<br />

lutas na clandestinidade e em<br />

defesa das mulheres, atuação como dirigente<br />

do PCdoB e como membro da<br />

Comissão de Anistiados, sempre foi<br />

um exemplo de mulher coragem.<br />

Já na produção da entrevista, a jornalista<br />

Cecília Alvim, que bateu um<br />

longo papo com a Gilse, ficou impressionada<br />

com as suas histórias de superação.<br />

“Ela me contou sobre o que<br />

passou no período da ditadura, de como<br />

entrou na clandestinidade, de como<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

117


teve que se virar para viver e se esconder<br />

dos militares, de como conseguiu<br />

sobreviver à tortura psicológica a respeito<br />

do paradeiro de sua filha enquanto<br />

estava na prisão, de como criou suas<br />

filhas em diferentes lugares enquanto<br />

prestava um grande serviço à nação<br />

de lutar contra um regime ditatorial e<br />

pela restauração da ordem democrática”,<br />

relata Cecília.<br />

Antes de chegarmos à casa dela,<br />

fiquei pensando que ia encontrar uma<br />

mulher debilitada pelos graves problemas<br />

de saúde que a atingiram nos<br />

últimos anos. No entanto, ela estava<br />

sorridente como sempre, falante e animada<br />

em contar todos os detalhes das<br />

lutas e glórias da sua existência. No<br />

quarto dos fundos, a cama já estava<br />

cheia de álbuns de fotos e livros que<br />

ela nos mostrou, detalhando cada<br />

lugar e momento. Eram tantas histórias<br />

que podíamos ter planejado um<br />

documentário, mas tive a difícil tarefa<br />

de explicar a ela o pouco tempo que<br />

dispúnhamos em um programa de TV<br />

com menos de 30 minutos. E com<br />

humildade e a experiência de quem já<br />

deu muitas entrevistas, ela disse: “eu<br />

vou falando e vocês me interrompam<br />

ou cortam depois”. E realmente o trabalho<br />

de edição da gravação, feito pelo<br />

jornalista Denilson Cajazeiro, não foi<br />

fácil, tamanha a riqueza de seu depoimento.<br />

Mas o resultado foi um belo<br />

programa que pode ser conferido na<br />

TV Sinpro (www.sinprominas.org.br/-<br />

programa-extra-classe).<br />

Militante estudantil contra a ditadura,<br />

Gilse participou de grupos como<br />

o Juventude Estudantil Católica (JEC),<br />

Juventude Universitária Católica (JUC)<br />

e Ação Popular (AP), organização de<br />

combate à ditadura. Era caloura no<br />

curso de Serviço Social, da PUC Minas,<br />

quando veio o golpe. Ao se formar, em<br />

1967, já na clandestinidade, não pôde<br />

colar o grau, com medo de ser pega pela<br />

repressão naqueles anos de chumbo.<br />

Na entrevista ao Programa Extra-<br />

Classe, Gilse também falou sobre a<br />

imagem da mulher na sua época. “Para<br />

ser considerada moça de família, a mulher<br />

deveria aprender prendas domésticas<br />

e ter como objetivo fazer um bom<br />

casamento. Ou seja, aprender a obedecer<br />

ao pai para ser obediente ao marido”,<br />

explicou. Ela contou que teve<br />

que fugir de casa para cursar a universidade.<br />

De lá pra cá, tornou-se feminista<br />

e viveu como uma mulher livre. Um<br />

episódio que mostra a sua coragem e<br />

irreverência aconteceu no Congresso<br />

Nacional há alguns anos. Como só era<br />

permitida entrada de mulheres de saia<br />

e ela estava de calças compridas, não<br />

titubeou, aproveitou que estava com<br />

uma blusa mais comprida, tirou as calças<br />

na frente dos seguranças mesmo e<br />

entrou no prédio. Gilse foi coordenadora<br />

nacional da União Brasileira de<br />

Mulheres (UBM) nos anos 1990.<br />

Segundo ela, durante a ditadura, o<br />

momento mais difícil foi a tortura psicológica<br />

em relação à sua filha Juliana.<br />

Gilse estava presa e era torturada para<br />

delatar companheiros, o que nunca<br />

fez. Chegaram a fazer uma simulação<br />

como se tivessem pegado a filha ainda<br />

bebê, colocando uma banheira rosa<br />

com pedras de gelo e ameaçando fazer<br />

coisas terríveis com a criança. Ela contou<br />

que começou a notar que estavam<br />

demorando muito para trazer a menina<br />

e gritou: “Vocês não pegaram a<br />

minha filha, nem vão pegar.” Depois<br />

disso foi espancada, mas descobriu,<br />

pela raiva dos repressores, que tudo<br />

não passava de um blefe. Mais tarde,<br />

na cadeia, enquanto lia o jornal, descobriu<br />

que a filha Juliana estava bem. O<br />

recado veio na charge do cartunista<br />

Henfil, cunhado de Gilse, que usava os<br />

personagens Fradim e Graúna para<br />

fazer uma crítica velada à ditadura e<br />

enviar notícias aos presos políticos.<br />

“Na luta contra a ditadura, o povo<br />

brasileiro foi vitorioso. Também considero-me<br />

vitoriosa, consegui fazer a<br />

luta na clandestinidade e criar duas<br />

filhas maravilhosas”, disse emocionada.<br />

Anos depois, Gilse estava presente também<br />

nas lutas contra o golpe que retirou<br />

da presidência uma outra mulher de<br />

luta que também resistiu à ditadura,<br />

Dilma Rousseff. Ela orgulhou-se em<br />

dizer que suas filhas e netas também<br />

estavam lutando e ocupando as ruas<br />

neste outro momento da história da<br />

frágil democracia brasileira. Um legado<br />

que, como ela mesma disse, a ditadura<br />

não conseguiu impedir.<br />

Para finalizar, recitou o poema da<br />

amiga e militante Loreta Valadares<br />

“Quando eu me for, se eu me for, vão<br />

até onde eu não fui, caminhos do ilimitado,<br />

a face inédita do futuro, sem<br />

fronteiras, sem inimigos. Encontre os<br />

meios da liberdade, e vão tão longe<br />

quanto possam, limiares de um outro<br />

mundo, sem oprimidos, sem classe. E<br />

quando as novas veredas do socialismo<br />

forem percorridas, lembrem-se<br />

de que fui até o impossível freio, só que<br />

me faltou tempo”. Emocionada, abraçou<br />

a jornalista Carina Santos, que<br />

também fazia a entrevista e produzia<br />

a gravação.<br />

Tantas palavras ditas <strong>por</strong> Gilse com<br />

potencial revolucionário, com tanto<br />

sentimento e verdade, que não serão<br />

esquecidas. Uma história de dor e superação,<br />

de amor ao país e à sua família...<br />

uma história que vai viver para<br />

sempre em nossa memória.;<br />

118 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

119


POUCAS E BOAS<br />

INTERNET<br />

Campanha incentiva produção<br />

de bonecas negras<br />

Rede Mulher e Mídia<br />

http://mulheremidia.org.br/<br />

A população negra representa 53,6%<br />

dos/as brasileiros/as, segundo dados<br />

do IBGE, mas as bonecas não retratam<br />

essa diversidade. Durante uma arrecadação<br />

de brinquedos para doação em<br />

Salvador, três amigas – Ana Marcilio,<br />

Mylene Alves e Raquel Rocha – receberam<br />

bonecas de diversas marcas, variados<br />

tamanhos, mas com uma semelhança:<br />

todas eram brancas. O incômodo<br />

com esse fato virou inspiração para<br />

que criassem a campanha Cadê nossa<br />

boneca?, que tem o apoio da organização<br />

sem fins lucrativos Avante – Educação<br />

e mobilização social.<br />

A fanpage Cadê nossa boneca? possui<br />

mais de 26,7 mil curtidas, centenas<br />

de bonequeiras cadastradas no álbum<br />

Onde achar a sua boneca negra, além<br />

do mapa colaborativo no site, com notificações<br />

sobre lojas e produtoras em<br />

todo o país onde se encontram ou<br />

não bonecas pretas. Atualmente,<br />

somente 3% das lojas virtuais de<br />

brinquedo disponibilizam bonecas<br />

negras, de acordo com uma pesquisa<br />

realizada pela equipe da Campanha.<br />

Visite: Facebook.com/cadenossaboneca<br />

Entranhas<br />

www.entranhas.org<br />

Empoderamento de meninas pelo es<strong>por</strong>te<br />

Na puberdade, em função das pressões<br />

sociais e dos estereótipos de gênero,<br />

a autoestima das meninas tende a cair<br />

duas vezes mais do que a dos meninos, e<br />

49% das meninas abandonam a prática<br />

es<strong>por</strong>tiva, <strong>por</strong>centagem seis vezes maior<br />

em comparação com os meninos. Nessa<br />

fase da vida, os estereótipos de gênero e<br />

a linha que divide o que é considerado<br />

adequado às meninas e aos meninos começa<br />

a ficar muito mais evidente. Enquanto<br />

as meninas são submetidas a um<br />

controle e uma vigilância muito mais severa<br />

sobre seu corpo e sexualidade, há<br />

também uma objetificação muito maior<br />

de seus corpos pela sociedade e p<strong>elas</strong><br />

diversas representações midiáticas.<br />

Diante dessa realidade, a ONU<br />

Mulheres e o Comitê Olímpico Internacional<br />

criaram em 2016 o programa<br />

Uma Vitória Leva à Outra, que tem<br />

como objetivo criar espaços seguros<br />

para que meninas de 10 a 14 anos<br />

possam praticar es<strong>por</strong>tes, se conhecer<br />

melhor e adquirir habilidades para a<br />

vida. O programa acontece no município<br />

do Rio de Janeiro.<br />

As meninas conversam e aprendem<br />

sobre autoestima e liderança;<br />

saúde e direitos sexuais e reprodutivos;<br />

empoderamento e eliminação da violência<br />

contra as mulheres e meninas<br />

e educação financeira.<br />

Visite: www.onumulheres.org.br<br />

Mulher no Cinema<br />

www.mulhernocinema.com<br />

120<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>


LIVROS<br />

FILMES<br />

Mirela e o Dia Internacional da Mulher<br />

Autora: Ana Prestes<br />

Editora: Lacre, 2016<br />

Essa é a história de uma menina de 8 anos que recebe na<br />

escola a tarefa de fazer uma pesquisa sobre o significado do<br />

dia da mulher. Esse episódio aconteceu com a filha da autora.<br />

Ao perceber que na biblioteca da escola da filha não tinha<br />

nada sobre o assunto destinado ao público infantil e tampouco<br />

nas livrarias, resolveu escrever um livro sobre o tema.<br />

Histórias de Ninar para Garotas Rebeldes<br />

Autora: Elena Favilli e Francesca Cavallo<br />

Editora: Vreditoras, <strong>2017</strong><br />

O livro aborda a vida de 100 mulheres extraordinárias do<br />

passado e do presente, ilustradas <strong>por</strong> 60 artistas mulheres<br />

do mundo inteiro. Com textos que remetem ao estilo de<br />

conto de fadas, muitas das histórias começam com o clássico<br />

“Era uma vez”, pois, segundo a própria autora – Favalli –, a<br />

ideia é dar a sensação de um conto de fadas moderno, para<br />

embalar o sono das pequenas antes de dormir<br />

Mulheres, Raça e Classe<br />

Autora: Ângela Davis<br />

Editora: Boitempo, 2016<br />

Dorina - Olhar para o Mundo - O filme<br />

resgata a trajetória de Dorina de Gouvêa<br />

Nowill (1919 - 2010) em sua jornada de<br />

consciência e transformação para os<br />

deficientes visuais. Idealizado pela neta<br />

de Dorina, a atriz Martha Nowill, foi<br />

produzido pela Girafa Filmes, Dezenove<br />

Som e Imagem e Mil Folhas. É o primeiro<br />

documentário brasileiro da HBO com<br />

audiodescrição. Disponível na internet.<br />

Ôrí – A história dos movimentos negros<br />

no Brasil entre 1977 e 1988 é contada<br />

no documentário Ôrí, lançado pela cineasta<br />

e socióloga Raquel Gerber. Tendo<br />

como fio condutor a vida da historiadora<br />

e ativista, Beatriz Nascimento, o filme<br />

traça um panorama social, político e<br />

cultural do país, em busca de uma identidade<br />

que contemple também as populações<br />

negras, e mostrando a im<strong>por</strong>tância<br />

dos quilombos na formação<br />

da nacionalidade.<br />

Nessa obra, Davis analisa as estruturas racistas, sexistas e<br />

classistas que ordenam nossa sociedade, considerando como<br />

essas questões se entrelaçam. A autora traça um poderoso<br />

panorama histórico e crítico das imbricações entre a luta<br />

anticapitalista, a luta feminista, a luta antirracista e a luta<br />

antiescravagista, passando pelos dilemas contem<strong>por</strong>âneos<br />

da mulher.<br />

Para educar crianças feministas – Um manifesto<br />

Autora: Chimamanda Ngozi Adichie<br />

Editora: Companhia das Letras, <strong>2017</strong><br />

O livro traz conselhos simples e precisos de como oferecer<br />

uma formação igualitária a todas as crianças, o que se inicia<br />

pela justa distribuição de tarefas entre pais e mães. Um manifesto<br />

com quinze sugestões de como criar filhos dentro de<br />

uma perspectiva feminista.<br />

Lute como uma Menina - Documentário<br />

sobre o protagonismo feminino no movimento<br />

de secundaristas que abalou<br />

São Paulo em 2015. O ativismo autônomo<br />

dos secundaristas, não ligados a<br />

organizações tradicionais, obrigou o estado<br />

a recuar da imposição de um projeto<br />

de “reorganização” que implicaria<br />

no fechamento de centenas de salas<br />

de aula e levou à queda de um secretário<br />

da Educação. Disponível no Youtube.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />

121


RETRATO<br />

Marcello Casa<br />

Marisa Letícia Lula da Silva<br />

Uma mulher guerreira. Aos 9 anos, já trabalhava<br />

como babá. Aos 13, embalava bombons<br />

numa fábrica de chocolates. Em 1980, já casada<br />

com o ex-presidente Lula, liderou uma<br />

passeata de mulheres em protesto contra<br />

prisões na ditadura. Sempre um esteio para a<br />

família, a ex-primeira dama su<strong>por</strong>tou maledicências<br />

e ataques que envolveram até a sua<br />

morte em 3/02/<strong>2017</strong> em função de um AVC.


A noite não adormece nos olhos das mulheres<br />

A noite não adormece<br />

nos olhos das mulheres<br />

a lua fêmea, semelhante nossa,<br />

em vigília atenta vigia<br />

a nossa memória.<br />

A noite não adormece<br />

nos olhos das mulheres<br />

há mais olhos que sono<br />

onde lágrimas suspensas<br />

virgulam o lapso<br />

de nossas molhadas lembranças.<br />

A noite não adormece<br />

nos olhos das mulheres<br />

vaginas abertas<br />

retêm e expulsam a vida<br />

donde Ainás, Nzingas, Ngambeles<br />

e outras meninas luas<br />

afastam d<strong>elas</strong> e de nós<br />

os nossos cálices de lágrimas.<br />

A noite não adormecerá<br />

jamais nos olhos das fêmeas<br />

pois do nosso sangue-mulher<br />

de nosso líquido lembradiço<br />

em cada gota que jorra<br />

um fio invisível e tônico<br />

pacientemente cose a rede<br />

de nossa milenar resistência.<br />

Conceição Evaristo<br />

(Em memória de Beatriz Nascimento)


AGOSTO <strong>2017</strong><br />

NÚMERO 10

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