Revista Elas por elas 2017
A revista sobre gênero Elas por Elas foi criada, em 2007, com o objetivo de dar voz às mulheres e incentivar a luta pela emancipação feminina. A revista enfatiza as questões de gênero e todos os temas que perpassam por esse viés. Elas por Elas traz reportagens sobre mulheres que vivenciam histórias de superação e incentivam outras a serem protagonistas das mudanças, num processo de transformação da sociedade. A revista aborda temas políticos, comportamentais, históricos, culturais, ambientais, literatura, educação, entre outros, para reflexão sobre a história de luta de mulheres que vivem realidades diversas.
A revista sobre gênero Elas por Elas foi criada, em 2007, com o objetivo de dar voz às mulheres e incentivar a luta pela emancipação feminina. A revista enfatiza as questões de gênero e todos os temas que perpassam por esse viés. Elas por Elas traz reportagens sobre mulheres que vivenciam histórias de superação e incentivam outras a serem protagonistas das mudanças, num processo de transformação da sociedade. A revista aborda temas políticos, comportamentais, históricos, culturais, ambientais, literatura, educação, entre outros, para reflexão sobre a história de luta de mulheres que vivem realidades diversas.
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Ocupação:<br />
substantivo<br />
feminino<br />
O protagonismo das mulheres nas ocupações<br />
estudantis contra os ataques à educação<br />
Longe de casa<br />
Refugiadas buscam reconstruir<br />
suas vidas no Brasil<br />
Da lama à luta<br />
Mulheres atingidas <strong>por</strong> um dos maiores<br />
crimes socioambientais do país reescrevem<br />
uma nova história de vida
A resistência<br />
das mulheres<br />
<strong>2017</strong> será destaque na história do Brasil<br />
como um ano de intensas lutas<br />
O Dia Internacional da Mulher foi<br />
marcado <strong>por</strong> manifestações em todo<br />
o mundo. No Brasil, o movimento #8M<br />
Eu Paro tornou-se um marco nos atos<br />
de resistência contra o golpe jurídico,<br />
parlamentar, midiático e misógino,<br />
ocorrido no país em 2016. Mulheres<br />
combativas gritaram “Fora Temer” de<br />
canto a canto do Brasil. <strong>Elas</strong> também<br />
foram protagonistas nas ocupações estudantis<br />
contra a reforma do Ensino<br />
Médio e os ataques à educação. Estiveram<br />
à frente da maior greve geral já<br />
realizada no país, que aconteceu no<br />
centenário da histórica greve de 1917,<br />
quando as mulheres também tiveram<br />
um im<strong>por</strong>tante papel. Neste ano também<br />
comemoramos os 100 anos da<br />
Revolução Russa, deflagrada a partir<br />
de protestos de mulheres em uma indústria<br />
têxtil, que trouxe, junto a outros<br />
inúmeros direitos dos trabalhadores,<br />
muitas conquistas feministas.<br />
Se ao longo da história, a trajetória<br />
de luta das mulheres mostra a sua capacidade<br />
de resistência, agora, mais<br />
que nunca, é preciso encher-se de co-<br />
ragem e lutar como uma mulher para<br />
barrar os retrocessos políticos e sociais.<br />
Assim como fizeram as senadoras<br />
que ocuparam a mesa do Senado<br />
para tentar barrar a votação da reforma<br />
trabalhista.<br />
A elite que serve ao capital quer<br />
enfraquecer a luta coletiva, atacando<br />
os sindicatos e os movimentos sociais<br />
que ocupam as ruas e resistem às investidas<br />
neoliberais.<br />
Com o governo Temer, medidas<br />
como o congelamento dos recursos<br />
para áreas da saúde e educação, assim<br />
como a terceirização irrestrita de serviços,<br />
a reforma trabalhista e o retrocesso<br />
nas políticas para as mulheres<br />
já causaram um grande atraso social,<br />
político e econômico.<br />
É im<strong>por</strong>tante frisar que a retirada<br />
de direitos e políticas retrógradas aumentam<br />
a desigualdade de gênero. Portanto,<br />
precisamos exigir a retomada<br />
das propostas que visam à superação<br />
das desigualdades relacionadas às mulheres<br />
na educação, saúde, trabalho,<br />
cultura e es<strong>por</strong>te. E só um governo<br />
com um programa progressista e eleito<br />
democraticamente pelo voto pode fazer<br />
isso. Portanto, que ecoe, além do Fora<br />
Temer, o grito p<strong>elas</strong> Diretas já!<br />
É nesse contexto que lançamos a<br />
10ª edição da revista <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong>.<br />
Agradecemos a colaboração de todas e<br />
todos que contribuem, ano a ano, para<br />
que essa publicação seja um im<strong>por</strong>tante<br />
instrumento do Sindicato dos<br />
Professores do Estado de Minas Gerais<br />
e possa incentivar as reflexões e lutas<br />
pela eliminação de todas as formas<br />
de discriminação de gênero, raça,<br />
etnia e classe.<br />
Essa edição da <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> traz<br />
várias pautas instigantes para que possamos<br />
aprofundar o debate nas questões<br />
de gênero. Continuaremos a lutar<br />
<strong>por</strong> ações e políticas que promovam<br />
avanços nas pautas de igualdade de<br />
gênero, raça, etnia e classe. A força<br />
está na unidade, mobilização e luta!<br />
Boa leitura!<br />
Valéria Morato<br />
Presidenta do Sinpro Minas<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
3
ESPECIAL<br />
<strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong>: 10 anos<br />
<strong>Revista</strong> se consolida como um espaço<br />
de debate qualificado sobre gênero<br />
Pág 6<br />
CAPA<br />
Ocupação:<br />
substantivo<br />
feminino<br />
O protagonismo das<br />
mulheres nas ocupações<br />
estudantis contra os<br />
ataques à educação<br />
Pág 30<br />
HOMENAGEM<br />
Comenda Clara Zetikin<br />
Honraria do Sinpro Minas à<br />
mulheres de luta<br />
ARTIGO<br />
O hiato de gênero no<br />
desempenho em<br />
Matemática: o caso<br />
de Belo Horizonte<br />
Pág 38<br />
MEIO AMBIENTE<br />
Da lama à luta<br />
Mulheres atingidas <strong>por</strong> um<br />
dos maiores crimes socioambientais<br />
do país reescrevem uma nova<br />
história de vida<br />
Pág 12<br />
DIREITOS HUMANOS<br />
Longe de casa<br />
Refugiadas buscam reconstruir<br />
suas vidas no Brasil<br />
POLÍTICA<br />
Golpe misógino<br />
Retirada de direitos e<br />
políticas retrógradas aumentam<br />
a desigualdade de gênero<br />
Pág 52<br />
Pág 16<br />
Pág 42<br />
ARTIGO<br />
Violência de gênero<br />
contra as mulheres:<br />
os desafios do cuidado<br />
Pág 60<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
RACISMO<br />
A solidão sentida na pele<br />
Afetividade e relacionamentos interraciais<br />
na pauta do feminismo negro<br />
COMPORTAMENTO<br />
Pelo direito de<br />
envelhecer dignamente<br />
Mulheres ressignificam o<br />
envelhecimento feminino<br />
ARTIGO<br />
Carmen Miranda,<br />
novas representações<br />
e narrativas na<br />
contem<strong>por</strong>aneidade<br />
Pág 106<br />
PERFIL<br />
Elza Soares: uma mulher<br />
do fim do mundo<br />
Pág 110<br />
Pág 64<br />
Pág 86<br />
MEMÓRIA<br />
Gilse Cosenza deixa<br />
legado de resistência<br />
FEMINISMO<br />
Quem tem medo da<br />
linguagem não-sexista?<br />
Manual mostra como a linguagem<br />
pode reforçar ou combater<br />
estereótipos de gênero<br />
GENERO<br />
Pela visibilidade lésbica<br />
<strong>Elas</strong> querem ocupar os espaços na<br />
sociedade para reivindicar respeito<br />
e o fim da lesbofobia<br />
Pág 96<br />
CULTURA<br />
As minas do hip hop<br />
<strong>Elas</strong> ocupam cada vez mais<br />
espaço na cena urbana e protestam<br />
contra o machismo<br />
Pág 116<br />
Pág 74<br />
POUCAS E BOAS<br />
INTERNET<br />
Pág 120<br />
ARTIGO<br />
Aborto:uma<br />
questão além do<br />
bem e do mal<br />
Pág 82<br />
Pág 100<br />
LIVROS<br />
FILMES<br />
RETRATO<br />
Pág 121<br />
Pág 122<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
Departamento de Comunicação do Sinpro Minas: comunicacao@sinprominas.org.br<br />
Diretores responsáveis: Aerton Silva, Clarice Barreto e Gilson Reis;<br />
Editora/Jornalista responsável: Débora Junqueira (MG05150JP);<br />
Redação: Carina Santos (MG13115JP), Cecília Alvim (MG09287JP),<br />
Denilson Cajazeiro (MG09943JP), e Nanci Alves (MG003152JP;<br />
Projeto gráfico e Diagramação: Mark Florest;<br />
Revisão: Aerton Silva<br />
Foto capa: Rovena Rosa - Agência Brasil<br />
Conselho Editorial: Antonieta Mateus, Clarice Barreto, Lavínia Rodrigues, Maria Izabel Bebela Ramos,<br />
Marilda Silva, Liliani Salum Moreira, Luliane Linhares, Soraya Abuid, Terezinha Avelar e Valéria Morato.<br />
Impressão: EGL-Editores Gráficos Ltda - Tiragem: 2.000:<br />
Distribuição gratuita: Circulação dirigida<br />
REVISTA ELAS POR ELAS<br />
PUBLICAÇÃO DO DEPARTAMENTO DE<br />
COMUNICAÇÃO DO SINPRO MINAS<br />
ANO XI - Nº 10 - AGOSTO DE <strong>2017</strong><br />
ACESSE AS EDIÇÕES ANTERIORES EM<br />
www.sinprominas.org.br<br />
<strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>elas</strong> - nº 9<br />
Diretoria Gestão 2016/2020<br />
Adelmo Rodrigues de Oliveira, Aerton de Paulo Silva, Albanito Vaz Júnior, Alessandra Cristina Rosa, Alexandre Durann<br />
Matos, Alina Machado Moreira, Altamir Fernandes de Sousa, Ângela Maria da Silva Gomes, Ângelo Filomeno Palhares Leite,<br />
Antonieta Shirlene Mateus, Antônio Marcos das Chagas, Aparecida Gregório Evangelista da Paixão, Arnaldo Oliveira Júnior,<br />
Beatriz Claret Torres, Braulio Pereira dos Santos, Bruno Burgarelli Albergaria Kneipp, Camillo Rodrigues Júnior, Carla Fenícia<br />
de Oliveira, Carlos Afonso de Faria Lopes, Carlos Magno Machado, Carlos Roberto Schutte Junior, Carolina Azevedo<br />
Moreira, Cecilia Maria Vieira Abrahão, Celina Alves Padilha Arêas, Cid Indalécio Moreira Alves, Clarice Barreto Linhares,<br />
Claudia Nunes dos Santos Silva, Clédio Matos de Carvalho, Clovis Alves Caldas Filho, Décio Braga de Souza, Diogo Oliveira,<br />
Edson de Oliveira Lima, Edson de Paula Lima, Eduardo Arreguy Campos, Eliana Assunção Franco Codignole, Fábio dos<br />
Santos Pereira, Fabio Marinho dos Santos, Fátima Amaral Ramalho, Fernando Dias da Silva, Fernando Lucio Correia, Filipe<br />
Luis dos Santos, Francine Fernandes Cruz, Franz Lima Petrucelli, Geraldo Fabio Alves de Souza, Gilson Luiz Reis, Gisele<br />
Andrea Satrapa Oliveira, Grace Marisa Miranda de Paula, Guilherme Caixeta Borges, Haida Viviane Palhano Arantes,<br />
Handerson Correa Gomes, Heber Paulino Pena, Hélcia Amélia de Menezes Quintão Simplício, Helena Vicentina Flores, Heleno<br />
Célio Soares, Henrique Moreira de Toledo Salles, Hermes Honório da Costa, Hugo Gonçalves Soares, Humberto de Castro<br />
Passarelli, Idelmino Ronivon da Silva, Inez Grigolo Silva, Isabela Maria Oliveira Catrinck, Jaderson Teixeira, Jaqueline<br />
Rodrigues Gouveia Gomes, Jefferson Costa Guimarães, João Francisco dos Santos, Jones Righi de Campos, José Carlos<br />
Padilha Arêas, Josiana Pacheco da Silva Martins, Josiane Soares Amaral Garcia, Juvenal Lima Gomes, Kelly Angelina dos<br />
Reis Oliveira, Kenya de Jesus Sodre, Leila Lucia Gusmão de Abreu, Leonardo Alves Rocha, Lilian Aparecida Ferreira de Melo,<br />
Liliani Salum Alves Moreira, Luiz Antonio da Silva, Luiz Carlos da Silva, Luiz Claudio Martins Silva, Luliana de Castro Linhares,<br />
Marco Antonio Ramos, Marcos Antonio de Oliveira, Marcos Gennari Mariano, Marcos Paulo da Silva, Marcos Vinícius Araújo,<br />
Maria Célia Silva Gonçalves, Maria Cristina Teixeira do Vale, Maria da Conceição Miranda, Maria da Glória Moyle Dias, Maria<br />
Elisa Magalhães Barbosa, Maria Luiza de Castro, Mariana Helena Moreira Nascimento, Marilda Silva, Marilia Ferreira Lopes,<br />
Mario Roberto Martins de Souza Silva Braga, Marta Betânia Pereira Pimenta, Mateus Júlio de Freitas, Messias Simão<br />
Telecesqui, Miguel Jose de Souza, Miriam Fátima dos Santos, Moises Arimateia Matos, Mônica Junqueira Cardoso Lacerda,<br />
Nalbar Alves Rocha, Nelson Luiz Ribeiro Da Silva, Newton Pereira de Souza, Orlando Pereira Coelho Filho, Paola Notari<br />
Pasqualini, Patricia de Oliveira Costa, Petrus Ferreira Ricetto, Pitágoras Santana Fernandes, Ricardo de Albuquerque<br />
Guimarães, Robson Jorge de Araújo, Rockefeller Clementino da Silva, Rodrigo Rodrigues Ferreira, Rodrigo Souza de Brito,<br />
Rogerio Helvídio Lopes Rosa, Rossana Abbiati Spacek, Rozana Maris Silva Faro, Sandra Lúcia Magri, Sandra Maria Nogueira<br />
Vieira, Sebastião Geraldo de Araújo, Silvio Rodrigo de Moura Rocha, Simone Esterlina de Almeida Miranda, Siomara Barbosa<br />
Candian Iatarola, Sirlane Zebral Oliveira, Sirley Trindade Vilela Lewis, Tarcisio Fonseca da Silva, Telma Patrícia de Moraes<br />
Santos, Teodoro José Eustáquio de Oliveira, Terezinha Lúcia de Avelar, Thais Claudia D’Afonseca da Silva, Uldelton Paixão<br />
Espírito Santo, Umbelina Angélica Fernandes, Valéria Peres Morato Gonçalves, Vera Cruz Spyer Rabelo, Vera Lucia Alfredo,<br />
Virgínia Ferreira Ramos e Wellington Teixeira Gomes,<br />
SINDICATO DOS PROFESSORES DO ESTADO DE MINAS GERAIS<br />
SEDE: Rua Jaime Gomes, 198 - Floresta - CEP: 31015.240 - Fone: (31) 3115 3000<br />
Belo Horizonte/MG - www.sinprominas.org.br<br />
SINPRO CERP - Centro de Referência dos Professores da Rede Privada<br />
Rua Tupinambás, 179 - Centro - CEP: 30.120-070 - BH - Fone: (31) 3274 5091<br />
REGIONAIS:<br />
Barbacena: Rua Silva Jardim, 425 - Boa Morte - CEP: 36201-004 - Fone: (32) 3331-0635; Cataguases:<br />
Rua Major Vieira, 300 - sala 04 - Centro - CEP: 36770-060 - Fone: (32) 3422-1485; Coronel Fabriciano:<br />
Rua Moacir D'Ávila, 45 - Bairro dos Professores - CEP: 35170-014 - Fone: (31) 3841-2098; Di vinópolis: Av:<br />
Amazonas, 1.060 - Sidil - CEP: 35500-028 - Fone: (37) 3221-8488; Governador Valadares: Rua Benjamin<br />
Constant, 653 - Térreo - Centro - CEP: 35010-060 - Fone: (33) 3271-2458; Montes Claros: Rua Januária,<br />
672 - Centro - CEP: 39400-077 - Fone: (38) 3221-3973; Paracatu: Rua Olhos D’água, 92 - Centro - CEP:<br />
38600-000 - Fone: (38) 3672-1830; Patos de Minas: Rua José Paulo Amorim, 150 - Guanabara - CEP:<br />
38701-174 - Fone: (34) 3823-8249; Poços de Caldas: Rua Mato Grosso, 275 - Centro, CEP: 37701-006 -<br />
Fone: (35) 3721-6204; Ponte Nova: Av. Dr. Otávio Soares, 41 - salas 326 e 328 - Palmeiras - CEP: 35430-<br />
229 - Fone: (31) 3817-2721; Pouso Alegre: Rua Dom Assis, 241 - Centro - CEP: 37550-000 - Fone: (35) 3423-<br />
3289; Sete Lagoas: Rua Vereador Pedro Maciel, 165 - Nossa Senhora das Graças - CEP: 35700-477 - Fone:<br />
(31) 3772-4591; Teófilo Otoni: Rua Dr. Manoel Esteves, 323 - sala 404 - Centro - CEP: 39800-090 - Fone:<br />
(33) 3523-6913; Uberaba: Rua Alfen Paixão, 105 - Mercês - CEP: 38060-230 - Fone: (34) 3332-7494; Uberlândia:<br />
Rua Olegário Maciel, 1212 - Centro - CEP: 38400-086 - Fone: (34) 3214-3566; Varginha: Av. Doutor<br />
Módena, 261 - Vila Adelaide - CEP: 37010-190 - Fone: (35) 3221-1831.<br />
6 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
POR<br />
Especial<br />
Débora Junqueira<br />
<strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong>:<br />
10 anos<br />
<strong>Revista</strong> se consolida como um espaço de<br />
debate qualificado sobre gênero<br />
Da efervescência de ideias da diretoria<br />
do Sinpro Minas, durante um seminário<br />
de planejamento de início de<br />
gestão, surgiu a iniciativa de editar<br />
uma publicação produzida pelo Sindicato<br />
dos Professores que abordasse<br />
a temática gênero com um viés educativo,<br />
progressista e classista. Em abril<br />
de 2007, nasceu a primeira edição da<br />
revista <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong>, com periodicidade<br />
anual. A revista também passou a fazer<br />
parte das ações do Sinpro Minas pelo<br />
Dia Internacional da Mulher e das lutas<br />
do sindicato em apoio à emancipação<br />
feminina, que vão além desta data histórica.<br />
Para o sindicato, as questões<br />
que envolvem a igualdade de gênero<br />
devem ser pautadas todos os dias.<br />
Em <strong>2017</strong>, a revista <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong><br />
completa 10 anos de existência. Para a<br />
diretoria do Sinpro Minas a revista se<br />
firmou como uma publicação im<strong>por</strong>tante<br />
para divulgar as lutas feministas<br />
e aprofundar o debate sobre as<br />
questões de gênero, cumprindo um<br />
papel educativo.<br />
Nas re<strong>por</strong>tagens da revista, feministas,<br />
especialistas e mulheres anônimas<br />
contam, decifram e pro ble -<br />
matizam temas relacionados às<br />
questões de gênero. <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>elas</strong> mesmas<br />
revelam as suas angústias, alegrias<br />
e lutas formando um rico conteúdo<br />
valorizado <strong>por</strong> uma diagramação<br />
primorosa. Em sua pauta, a revista<br />
sempre aborda temas como educação,<br />
trabalho, política, feminismo, questões<br />
étnico-raciais, violência doméstica,<br />
saúde, beleza, com<strong>por</strong>tamento, arte e<br />
história, com ênfase no protagonismo<br />
das mulheres para superar os desafios<br />
de uma sociedade machista, patriarcal<br />
e capitalista. Com conteúdos que retratam<br />
profundas reflexões sobre<br />
gênero na contem<strong>por</strong>aneidade, a<br />
revista tem o objetivo de incentivar estudos,<br />
debates e inspirações para<br />
atitudes comprometidas com os ideais<br />
de uma sociedade mais justa e igualitária.<br />
Dessa forma, o Sinpro Minas<br />
contribui para disseminar novas<br />
ideias, reflexões e incentivar atitudes<br />
e políticas que têm como objetivo a<br />
emancipação de gênero.<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
7
A revista <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> já foi reconhecida<br />
com premiações nacionais de<br />
jornalismo e tornou-se, ao longo dos<br />
anos, um im<strong>por</strong>tante instrumento de<br />
comunicação e de formação não só para<br />
o professorado, mas para toda a sociedade.<br />
Além de ser distribuída em mãos<br />
para os professores e professoras e disponibilizada<br />
em bibliotecas de várias<br />
escolas privadas, a revista circula entre<br />
as entidades representativas de gênero,<br />
mundo político e sindical, nacionalmente,<br />
e até mesmo em eventos fora do país,<br />
sendo distribuída em eventos sobre educação<br />
e trabalho. Em junho de 2015, a<br />
revista foi divulgada em encontro internacional<br />
de comunicadores, realizado<br />
em Nova Yok, promovido pela rede Images<br />
and Voices of Hope (IVOH) que estuda<br />
e incentiva mídias construtivas.<br />
Construção coletiva<br />
Assim como as mulheres que, a<br />
cada dia, constroem a sua história e<br />
vencem desafios, a <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> se<br />
consolida numa caminhada que conta<br />
com a dedicação e a contribuição de<br />
muitas pessoas. Além da equipe de<br />
jornalistas, designer e diretores do Departamento<br />
de Comunicação do Sinpro<br />
Minas, há um conselho editorial composto<br />
<strong>por</strong> diretoras e funcionárias do<br />
Sinpro Minas e convidadas.<br />
“A revista <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> é uma im<strong>por</strong>tante<br />
iniciativa do Sinpro Minas. A publicação<br />
possibilita condições para<br />
que a entidade paute as questões de<br />
gênero de forma sistemática e dê<br />
maior visibilidade para as lutas feministas”,<br />
opina a professora Lavínia<br />
Rosa Rodrigues, ex-diretora do Sinpro<br />
Minas e membro do Conselho Editorial<br />
da revista.<br />
Prêmio Nacional de Jornalismo<br />
Abdias Nascimento – Promovido pela<br />
Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj)<br />
– Re<strong>por</strong>tagens finalistas nas categorias<br />
Mídia Alternativa e Gênero:<br />
2011 - “Os desafios da profissão e da<br />
organização sindical das empregadas<br />
domésticas” - Débora Junqueira.<br />
2012 - “A pobreza no Brasil é feminina,<br />
negra e jovem” - Débora Junqueira - “Estatuto<br />
da Igualdade Racial” - Cecília Alvim<br />
2013 - “Fora das capas de revistas” -<br />
Débora Junqueira<br />
Prêmio Nacional de Jornalismo<br />
sobre Violência de Gênero” – Promovido<br />
pela Rede Feminista de Saúde,<br />
Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos,<br />
de Santa Catarina:<br />
2014 - Menção honrosa - Re<strong>por</strong>tagem<br />
“O parto é da mulher – movimentos<br />
denunciam a violência e propõem mudanças<br />
para promover o parto ativo e<br />
humanizado” - Cecília Alvim<br />
“Na época em que a revista foi criada,<br />
não se discutia gênero como hoje,<br />
no entanto, essa era uma necessidade<br />
para uma instituição classista como o<br />
Sindicato dos Professores. Ainda, havia<br />
a perspectiva do Brasil ter pela primeira<br />
vez uma mulher na Presidência da República,<br />
o que realmente ocorreu em<br />
2010. Ao longo dos anos, a revista ampliou<br />
suas pautas que atingem questões<br />
sociais e políticas e de classe, com uma<br />
abordagem moderna e fontes renomadas.<br />
É o tipo de revista que até os homens<br />
se interessam em ler e discutir<br />
os variados temas propostos. Acredito<br />
que a publicação cumpre aquele ideal<br />
inicial de ver o sindicato contribuindo<br />
para um debate reflexivo e educativo<br />
sobre as questões de gênero”, avalia a<br />
professora Carla Fenícia, diretora do<br />
Sinpro Minas, uma das idealizadoras<br />
da <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong>.<br />
Sempre presente nas lutas feministas,<br />
a deputada federal Jô Moraes<br />
(PCdoB) é uma fonte frequente na revista.<br />
“Acompanho a trajetória da revista<br />
<strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> desde a sua primeira edição.<br />
A revista se destaca <strong>por</strong> trazer não<br />
só a opinião de especialistas, mas <strong>por</strong><br />
abordar os dilemas reais de mulheres<br />
anônimas e guerreiras que superam o<br />
machismo e a desigualdade de gênero<br />
no dia a dia. Como mulher e parlamentar<br />
que atua em defesa das mulheres também<br />
fui fonte da revista <strong>por</strong> várias vezes<br />
e é muito bom poder contribuir com<br />
uma publicação de tanta qualidade e,<br />
ainda, produzida <strong>por</strong> um sindicato tão<br />
atuante como o Sinpro Minas. Considero<br />
merecidas as premiações que a revista<br />
já recebeu e parebenizo a toda equipe<br />
pelo trabalho desenvolvido ao longo<br />
desses anos”, afirma Jô Moraes.<br />
8 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
“A revista foi uma im<strong>por</strong>tante decisão<br />
da direção do Sinpro Minas para dar<br />
uma visão classista sobre as diversidades<br />
sociais, com uma abordagem sobre o<br />
movimento sindical e político que dificilmente<br />
tem espaço em outras publicações.<br />
É fundamental conceber as<br />
questões de gênero como uma questão<br />
de classe”, avalia a diretora do Sinpro<br />
Minas e secretária de formação da Central<br />
dos Trabalhadores e Trabalhadoras<br />
do Brasil (CTB), professora Celina Arêas.<br />
“A <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> é de uma qualidade<br />
editorial magnífica, bem produzida,<br />
bonita, com contéudo muito relevante<br />
que aborda ativismo político, participação<br />
das mulheres no mercado de<br />
trabalho, a inserção da educação no<br />
processo da construção do protagonismo<br />
feminimo. Esse é um mérito<br />
inegável da revista que mantém um<br />
conteúdo crítico de múltiplas dimensões<br />
da vida das mulheres. Ainda mais,<br />
feito <strong>por</strong> um sindicato de professores<br />
que tem em sua maioria mulheres professoras<br />
que podem ter um conteúdo<br />
para discutir em sala de aula ou ter a<br />
qualidade de uma informação baseada<br />
em dados. Eu desejo a <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong><br />
pelo menos mais uns 50 anos de existência,<br />
<strong>por</strong>que precisamos de conteúdos<br />
midiáticos alternativos para as mulheres<br />
e a <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> cobre essa lacuna<br />
que ainda temos no Brasil”, ressalta<br />
a professora Marlise Matos, pesquisadora<br />
do Núcleo de Estudos sobre<br />
a Mulher (Nepem/UFMG).<br />
A militante feminista Bebela Ramos<br />
acredita que fortalecer publicações como<br />
a revista <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> deveria ser atitude<br />
obrigatória dos que anseiam e defendem<br />
a igualdade entre os gêneros. “A revista,<br />
além de visualmente (graficamente) ser<br />
muito bonita, é de um conteúdo atual,<br />
forte e diversificado. O tema educação,<br />
sempre presente nas pautas da revista,<br />
faz de maneira lúcida o im<strong>por</strong>tante elo<br />
entre a maior categoria formada <strong>por</strong><br />
mulheres e sua representação sindical.<br />
Quarenta anos como feminista me legitima<br />
dizer que a revista <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong><br />
é uma publicação que se insere no grupo<br />
dos mais completos exemplares sobre<br />
o assunto, no Brasil”, afirma.<br />
A secretária de Imprensa e Comunicação<br />
da CTB, Raimunda Gomes (Doquinha)<br />
também ressalta a im<strong>por</strong>tância<br />
da revista <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> ser um veículo<br />
de comunicação que aborda questões<br />
gerais do mundo do trabalho, cotidiano<br />
da sociedade, e específicas de gênero,<br />
pela ótica das mulheres. “Nesse momento<br />
de complexidade das relações<br />
políticas, econômicas e sociais p<strong>elas</strong><br />
quais passa a sociedade brasileira, ter<br />
uma publicação como a revista <strong>Elas</strong><br />
<strong>por</strong> <strong>Elas</strong> circulando em todo território<br />
nacional é garantir a disputa ideológica<br />
da comunicação hegemônica com outra<br />
narrativa, mais ampla e democrática e<br />
de luta”, afirma.<br />
Como militante do movimento feminista,<br />
a professora e diretora do Sinpro<br />
Minas, Terezinha Avelar considera<br />
a revista um im<strong>por</strong>tante instrumento<br />
para dialogar com a sociedade sobre as<br />
pautas de gênero. “A revista <strong>Elas</strong> <strong>por</strong><br />
<strong>Elas</strong> é dinâmica, pois os temas sendo<br />
recorrentes, a pauta é abordada com<br />
profundidade e mostra a evolução do<br />
debate que acontece no movimento feminista<br />
sobre as diversas questões que<br />
afetam a sociedade”, comenta. Segundo<br />
ela, quando a revista é distribuída em<br />
eventos, as pessoas elogiam a iniciativa<br />
do Sindicato dos Professores. “As pessoas<br />
sempre destacam a qualidade da revista<br />
e parabenizam o Sinpro Minas”, conta.<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
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10 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
11
12 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
Internet
POR<br />
homenagem<br />
Débora Junqueira<br />
Comenda<br />
Clara Zetkin<br />
Honraria do Sinpro Minas à mulheres de luta<br />
Desde 2012, o Sindicato dos Professores<br />
do Estado de Minas Gerais homenageia<br />
com a Comenda Clara Zetkin<br />
mulheres que contribuem para dar visibilidade,<br />
mobilizar e fortalecer a luta<br />
pelos direitos, participação política e<br />
igualdade de gênero, na perspectiva da<br />
conquista de uma sociedade justa e<br />
igualitária. A trajetória da alemã Clara<br />
Zetkin (1857-1933), uma figura histórica<br />
do feminismo <strong>por</strong> sua atuação como<br />
jornalista, professora e militante política,<br />
inspirou a diretoria do sinpro Minas a<br />
escolher o seu nome para a comenda<br />
criada no dia 13 de fevereiro de 2012.<br />
Para a presidenta do Sinpro Minas,<br />
Valéria Morato, é muito im<strong>por</strong>tante<br />
para o Sindicato dos Professores conceder<br />
a Comenda Clara Zetkin para<br />
mulheres valorosas que, nas mais diversas<br />
áreas de atuação, muito contribuem<br />
para uma sociedade mais igualitária<br />
e humana. “Numa sociedade em<br />
que as mulheres ganham salários menores,<br />
possuem tripla jornada de trabalho,<br />
sofrem violência doméstica e<br />
enfrentam uma série de adversidades,<br />
reconhecer os esforços dessas guerreiras<br />
que, além dos desafios diários,<br />
desenvolvem um trabalho de destaque<br />
na sociedade, é uma contribuição do<br />
Sinpro Minas para fortalecer as lutas<br />
pela igualdade de gênero”, afirma.<br />
Como é registrado na história, Clara<br />
Zetkin foi uma notável mulher que dedicou<br />
sua vida à luta pela igualdade de<br />
o<strong>por</strong>tunidades para as mulheres, o direito<br />
ao voto e à libertação da mulher<br />
trabalhadora. Em 1891, fundou a revista<br />
A Igualdade, formada <strong>por</strong> mulheres,<br />
que teve vigência até 1917, e se converteu<br />
no meio de expressão oficial da Internacional<br />
de Mulheres Socialistas. Foi<br />
uma revolucionária que, em 1910, durante<br />
uma conferência internacional<br />
de mulheres socialistas, em Copenhague,<br />
lançou a ideia de um dia internacional<br />
da mulher, o dia 8 de março. No<br />
ano seguinte um milhão de mulheres<br />
foram às ruas, no seu dia, na Europa e<br />
nos Estados Unidos da América.<br />
Em 1920, <strong>por</strong> seu duro trabalho<br />
para convocar um movimento de mulheres<br />
socialistas de diferentes países,<br />
tornou-se presidenta do Movimento<br />
Internacional de Mulheres Socialistas<br />
e deputada do Partido Comunista Alemão.<br />
Por sua disposição em deter o<br />
avanço do nazismo, a elegeram presidenta<br />
da Associação de Solidariedade<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
13
Socorro Vermelho e representante do<br />
Reichstag (Parlamento alemão). Porém,<br />
quando em 1933 Hitler assumiu o poder,<br />
ela teve que se exilar novamente. Nessa<br />
o<strong>por</strong>tunidade, escolheu a União Soviética,<br />
lugar onde passou os últimos<br />
dias de sua vida revolucionária. Morreu<br />
em 20 de junho de 1933, em Moscou,<br />
Rússia, aos 76 anos de idade. Seu corpo<br />
foi enterrado nas muralhas do Kremlin,<br />
ao lado dos heróis da revolução.<br />
A indicação das homenageadas que<br />
recebem a Medalha Clara Zetkin é feita<br />
p<strong>elas</strong> mulheres que compõem o Conselho<br />
Editorial da revista <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong><br />
e referendado pela diretoria do Sinpro<br />
Minas. A professora Lavínia Rosa Rodrigues<br />
(foto) faz parte do Conselho.<br />
Diretora do Sinpro Minas à época, ela<br />
foi a idealizadora da Comenda. Segundo<br />
ela, a escolha do nome da feminista<br />
Clara Zetkin para a Comenda surgiu<br />
na sequência das comemorações pelos<br />
100 anos do Dia Internacional da Mulher,<br />
ocorrido em 2010. “A Comenda<br />
Clara Zetkin reafirma a im<strong>por</strong>tância<br />
da luta que as feministas protagonizaram<br />
no início do século XX <strong>por</strong> mais<br />
direitos e que as mulheres continuam<br />
fazendo até hoje para o avanço da igualdade<br />
de gênero”, afirma.<br />
“Desde a retomada do Sindicato em<br />
1979, as diretorias da entidade sempre<br />
tiveram a tradição de promover homenagens<br />
em datas especiais. O sindicato<br />
também tem um papel ativo nas questões<br />
que envolvem gênero, desde a participação<br />
nos debates da Constituinte,<br />
origem de direitos como licença maternidade<br />
e outros, assim como nas<br />
conferências sobre gênero e lutas feministas.<br />
Desde 2007, fazemos o lançamento<br />
das edições da revista <strong>Elas</strong><br />
<strong>por</strong> <strong>Elas</strong>, tendo a o<strong>por</strong>tunidade de reconhecer<br />
as contribuições de pessoas<br />
de destaque nas lutas pelos direitos das<br />
mulheres. A partir de 2012, a entrega<br />
da Medalha foi incor<strong>por</strong>ada aos eventos<br />
em homenagem às mulheres”, conta.<br />
Para Lavínia, na sociedade de classes<br />
em que vivemos, valorizar a mulher é<br />
fortalecer toda a classe trabalhadora.<br />
“O Sinpro Minas exerce um im<strong>por</strong>tante<br />
papel quando valoriza mulheres de<br />
luta. A Comenda Clara Zetkin é também<br />
uma homenagem à toda categoria docente,<br />
que é majoritariamente feminina”,<br />
ressalta.<br />
Desde a criação da Comenda Clara<br />
Zetkin, mais de 100 mulheres já receberam<br />
a medalha oferecida pelo Sinpro<br />
Minas. Escolhidas entre mulheres dos<br />
mais variados setores da sociedade,<br />
<strong>por</strong> se destacarem nas lutas pelos direitos<br />
das mulheres, em defesa da igualdade<br />
de gênero e com grandes histórias<br />
de superação. São professoras, domésticas,<br />
médicas, motoristas, advogadas,<br />
donas de casa, trabalhadoras do campo<br />
ou da cidade, lésbicas, transgênero,<br />
atrizes, prostitutas, jovens e idosas...<br />
Mulheres que carregam dentro de si e<br />
em suas ações a esperança de um mundo<br />
com mais igualdade de gênero e de<br />
classe e menos opressão.<br />
Homenageadas de 2012 a 2016<br />
2012: Amanda Miranda Cunha de<br />
Moura, Célia de Lélis Moreira, Cleonice<br />
Ramos da Silva, Dalila Andrade Oliveira,<br />
Dorila Piló Veloso, Eliete de Oliveira<br />
Soares, Eni de Faria Sena, Fabrícia<br />
Roza Souza Rodrigues , Graziela da<br />
Costa Moreira Souza, Iara Martins dos<br />
Santos, Jacqueline Cavaca Soares<br />
Pontes, Jovita Levy, Lusia Ribeiro, Marcia<br />
Cristina Gonçalves Braga, Márcia<br />
Luciene Nascimento, Maria Alves de<br />
Souza, Maria Cecília Magalhães Gomes,<br />
Maria da Consolação Rocha, Marta de<br />
Freitas, Renata Adriana Rosa, Sandra<br />
de Fátima Pereira Tosta, Santuza Abras,<br />
Seuza Matos Marques e Sonia Soares<br />
de Oliveira.<br />
Mark Florest<br />
14 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
Mark Florest<br />
2013: Adana Kambeba, Ana Maria<br />
Prestes Rabelo, Andreia da Consolação<br />
Diniz, Antonia Maria da Rocha Montenegro,<br />
Carolina dos Santos de Oliveira,<br />
Daniela Matheus de Vasconcelos, Elaine<br />
de Fátima Ferreira Barros, Elaine Maria<br />
de Miranda, Fátima Silva Risério, Inês<br />
Peixoto, Lea Soutk, Lídia Viber, Mairyara<br />
Barbosa Loureiro Silveira, Márcia<br />
de Cássia Gomes , Márcia Randi, Maria<br />
Bernadeth Teixeira Fazito, Maria Cristina<br />
Leão, Maria de Lourdes Rocha de<br />
Lima, Maria Ester, Maria Nicolina Felga<br />
Soares, Sônia Lansky, Samira Zaidan,<br />
Umbelina Angélica Fernandes.<br />
2014: Célia Martins da Silva, Érica<br />
Coelho, Eva Joana , Eva Maria da Silva,<br />
Ginet Camué Collazo, Ivone Maria de<br />
Oliveira, Jaqueline Morelo, Jurema Beatriz<br />
Figueiredo (Jô do jaqueline), Kátia<br />
Firmino Duarte, Margaret de Freitas<br />
Assis Rocha, Maria de Freitas Chagas,<br />
Maria Helena Diniz, Maria Luiza Kfoury<br />
Pereira, Maria Rita Fenandes de Figueiredo,<br />
Marisa Vieira da Silva – Marisa<br />
Nzinga, Niurka Maren Maren, Nívea<br />
Mônica da Silva, Rogerlan Augusta de<br />
Morais, Shirlene Sabino, Sirley Soares<br />
Soalheiro e Wilma Henriques.<br />
2015: Ângela Maria da Silva Gomes,<br />
Anne Carolina de Morais, Beatriz da<br />
Silva Cerqueira, Dora Alves, Eli Izabel<br />
Rodrigues Santana , Evangelina Castilho<br />
Duarte, Gracinha Horta, Íris Maria da<br />
Costa Amâncio Kamwa, Ivone Maria<br />
Vieira Santos, Márcia Mendonça, Maria<br />
do Socorro - Jô Moraes, Milta Ferreira<br />
de Aguiar, Mônica Aguiar, Pollyana do<br />
Amaral Ferreira, Sandra Regina Goulart<br />
Almeida, Sara Aparecida da Costa, Sula<br />
Kyriacos Mavrudis.<br />
2016: Ana Isabel Lemos, Conceição<br />
Rosière, Daniela Fernandes Alves , Daniele<br />
Caldas , Eliete Sandra Moura Rodrigues,<br />
Elizabeth Fleury, Eulália Regina<br />
Pires de Freitas Mendes , Geysa Maria<br />
Emilia Lima Moreira, Ísis Medeiros,<br />
Janaina da Mata , Júnia Roman Carvalho,<br />
Kleide Ventura de Souza, Laurelle<br />
Carvalho de Araújo , Libernina Andrade,<br />
Maria de Fátima Diniz Ribas, Maria<br />
do Rosário Bento , Maria Nazaret Teles<br />
Silva , Maria Tereza dos Santos, Nardeli<br />
da Conceição Silva e Sandra Margareth<br />
Silvestrini de Souza.;<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
15
Bárbara Dias
POR<br />
POLÍTICA<br />
Nanci Alves<br />
Golpe<br />
misógino<br />
Retirada de direitos e políticas retrógradas<br />
aumentam a desigualdade de gênero<br />
Logo após a aprovação do pedido<br />
inconstitucional de impeachment da<br />
presidenta Dilma Rousseff, o governo<br />
ilegítimo de Michel Temer publicou<br />
Medida Provisória (nº 726), no Diário<br />
Oficial da União (12/05/2016), que extinguiu<br />
o Ministério das Mulheres, da<br />
Igualdade Racial, da Juventude e dos<br />
Direitos Humanos, a Secretaria Especial<br />
de Políticas de Promoção da Igualdade<br />
Racial (Seppir) e o Conselho<br />
Nacional de Promoção da Igualdade<br />
Racial (CNPIR), sendo absorvidos pelo<br />
recém-criado Ministério da Justiça e<br />
da Cidadania. Ao com<strong>por</strong> seu primeiro<br />
ministério, Michel Temer também excluiu<br />
as mulheres – que não ficavam<br />
de fora de ministérios desde a ditadura,<br />
no governo de Ernesto Geisel<br />
(1974/1979). Seu gabinete foi formado<br />
exclusivamente <strong>por</strong> homens (brancos),<br />
diferente do de Dilma Rousseff que<br />
contou com 14 ministras.<br />
Estes fatos já seriam suficientes para<br />
avaliar que retirar a presidenta do poder<br />
era apenas o primeiro passo para acabar<br />
com os direitos do povo brasileiro, em<br />
especial os mais pobres, negros, indígenas,<br />
idosos e mulheres e enfraquecer<br />
os movimentos sociais e sindical. Essas<br />
primeiras medidas foram vistas <strong>por</strong> várias<br />
lideranças como uma manifestação<br />
de discriminação e de promoção da desigualdade<br />
de gênero.<br />
E, logo a seguir, começam a ser implementadas<br />
políticas que visam retirar<br />
direitos fundamentais, garantidos pela<br />
Constituição e <strong>por</strong> outras leis como a<br />
Consolidação das Leis de Trabalho<br />
(CLT), Estatuto do Idoso, do Indígena,<br />
etc. Portanto, com um governo e um<br />
congresso misógino, o Brasil caminha<br />
de volta a um passado sombrio e apresenta<br />
uma cruel realidade em que a<br />
desigualdade é tratada com naturali-<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
17
Denilson Cajazeiro<br />
reformas trabalhista e previdenciária,<br />
além da proposta aprovada de terceirização<br />
geral. “Um governo machista<br />
e patriarcal”, reforça.<br />
Marlise Matos destaca a terceirização<br />
irrestrita do trabalho como um dos<br />
mais graves problemas que vai afetar<br />
as mulheres no mercado de trabalho.<br />
“Tínhamos acabado de aprovar, no governo<br />
Dilma, uma segunda abolição da<br />
escravidão com a PEC das Empregadas<br />
Domésticas, em que se estabelece direitos<br />
para a categoria que mais envolve<br />
mulheres no mundo do trabalho – infelizmente<br />
ainda muito feminilizado<br />
no Brasil. E aí, logo na sequência, quando<br />
conseguimos inserir uma massa<br />
enorme de mulheres na formalização<br />
dos direitos trabalhistas vai haver uma<br />
flexibilização destes direitos? E <strong>elas</strong> serão<br />
a ponta mais frágil deste sistema,<br />
como outras trabalhadoras do setor informal,<br />
pois serão brutalmente atingidas<br />
<strong>por</strong> perdas de direitos significativos<br />
como descanso semanal remunerado,<br />
férias, 13º salário, ascensão e planejamento<br />
de carreira. E claro, as mais vulneráveis<br />
são as negras, pobres e as trabalhadoras<br />
rurais”, destaca.<br />
dade e a ausência feminina nos espaços<br />
de poder passa a ser política de governo.<br />
Uma clara destruição de políticas<br />
públicas, implementadas principalmente<br />
nos governos Lula e Dilma, em<br />
defesa das mulheres, dos afro-descendentes,<br />
dos indígenas, quilombolas, da<br />
população LGBT, etc.<br />
Democracia em risco<br />
Para diversas lideranças de movimentos<br />
feministas, sociais e sindicais,<br />
a democracia no Brasil está abalada,<br />
pois ao afetar drasticamente direitos<br />
conquistados com muita luta (inclusive<br />
com prisão e/ou morte de muitos/as<br />
trabalhadores/as), o governo desestabiliza<br />
o princípio fundamental da democracia<br />
que é o exercício da cidadania.<br />
Na avaliação da coordenadora do<br />
Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre<br />
a Mulher da UFMG (NEPEM), Marlise<br />
Matos (foto), o golpe foi contra a democracia<br />
e, especialmente, contra todas<br />
as mulheres, pois é um golpe misógino<br />
– primeiro, contra a primeira mulher<br />
que chegou à presidência deste país e,<br />
depois, contra todas nós, a partir das<br />
“<br />
O golpe foi contra a<br />
democracia e, especialmente,<br />
contra todas<br />
as mulheres”<br />
18 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
Para implementar todas essas mudanças<br />
retrógradas, este governo tem<br />
como sustentação um Congresso Nacional<br />
extremamente conservador que<br />
atende aos interesses de bancadas religiosas,<br />
da bala e ruralista. Na avaliação<br />
do presidente nacional da Rede pelo<br />
Constitucionalismo Democrático Latino-Americano,<br />
José Luiz Quadros<br />
de Magalhães (foto), a presença da exdeputada<br />
Fátima Pelaes (PMDB-AP) na<br />
Secretaria das Mulheres reafirma a<br />
visão conservadora no trato das questões<br />
referentes aos direitos das mulheres<br />
e aos direitos de diversidade em<br />
geral. “A deputada já se manifestou diversas<br />
vezes sobre a proibição do<br />
aborto em qualquer situação, incluindo<br />
as situações previstas em nossa legislação,<br />
há muito tempo, como <strong>por</strong> exemplo<br />
na gravidez decorrente de estupro<br />
e no risco de vida da gestante, e, ainda,<br />
na gestação de feto anencefálico, já admitido<br />
pelo STF”, afirma.<br />
José Luiz Quadros de Magalhães,<br />
que é também professor de Direito<br />
Constitucional na UFMG, afirma que<br />
a retirada de direitos é sempre uma<br />
violência. Ele destaca a inconstitucionalidade<br />
das várias medidas e propostas<br />
do governo ilegítimo de Michel Temer.<br />
“Além de igualar a idade de aposentadoria<br />
para homens e mulheres e retirar<br />
a pensão de milhares de viúvas, medidas<br />
como o congelamento de gastos<br />
com Previdência, Saúde, Educação, durante<br />
20 anos é uma medida de uma<br />
crueldade e irresponsabilidade atroz,<br />
além, de claro, absolutamente inconstitucional.<br />
A Constituição Federal estabelece<br />
limites ao poder de reforma<br />
da Constituição, chamado de Poder<br />
Constituinte Derivado. O artigo 6º, parágrafo<br />
4º incisos I a IV, proíbe a deliberação<br />
de emendas tendentes a abolir<br />
os direitos individuais e suas garantias,<br />
a democracia, a separação de poderes<br />
e o federalismo. Uma emenda que congela<br />
os gastos com direitos sociais compromete<br />
o exercício destes direitos,<br />
que são garantia de exercício dos direitos<br />
individuais”, afirma.<br />
Segundo o professor, a partir do<br />
princípio da indivisibilidade dos direitos<br />
fundamentais, podemos afirmar que<br />
não há liberdade sem dignidade. “Para<br />
que as pessoas possam exercer os seus<br />
direitos individuais e políticos de liberdade,<br />
é necessário que sejam garantidos<br />
meios para o seu exercício, e<br />
estes meios são os direitos sociais e<br />
econômicos. De forma bem clara: ninguém<br />
é livre passando fome, doente,<br />
desempregado e sem educação e moradia.<br />
Este governo e esta maioria parlamentar<br />
conservadora são um aten -<br />
tado à democracia e aos direitos humanos”,<br />
ressalta.<br />
Os vários golpes dados contra a<br />
classe trabalhadora, <strong>por</strong> meio de leis e<br />
medidas provisórias que desrespeitam<br />
a própria Constituição Federal, mudam<br />
a perspectiva de melhorias na vida de<br />
todo o povo, especialmente das mulheres.<br />
Na avaliação da presidenta da<br />
Raphael Armando Calixto<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
19
União Brasileira de Mulheres (UBM) e<br />
integrante do Conselho Nacional dos<br />
Direitos das Mulheres, Lúcia Rincon,<br />
as conquistas avançam em períodos<br />
democráticos e este golpe institucional,<br />
jurídico, parlamentar e midiático se<br />
caracteriza pela falta de consulta ao<br />
povo, <strong>por</strong> autoritarismo. E, em regimes<br />
de governos autoritários, as conquistas<br />
não avançam e, pior, podem trazer ou<br />
reforçar outros problemas.<br />
Medidas de retirada de direitos podem<br />
ser um estímulo a atitudes de discriminação<br />
contra a mulher. Para Lúcia<br />
Rincon, o autoritarismo, o conservadorismo<br />
e a concepção de uma sociedade<br />
hierárquica, sustentada <strong>por</strong> forças<br />
policiais, respalda o patriarcado e a<br />
ideia, ainda majoritária na sociedade,<br />
de que as mulheres são objetos do<br />
poder dos homens e que devem se submeter<br />
e não havendo submissão, a violência<br />
está justificada. “Não temos dúvida<br />
de que as políticas que acolhiam<br />
a mulher vítima de violência e divulgavam<br />
os seus direitos e possibilidade<br />
enquanto ser humano vão desaparecer<br />
facilitando a manutenção e intensificação<br />
da violência”, ressalta.<br />
Nos movimentos sociais a luta contra<br />
as medidas do governo é forte, mas<br />
existe um sentimento de impotência,<br />
já que grande parcela do legislativo e<br />
do judiciário participam do golpe. Muitos<br />
acreditam que existe o risco de enfraquecer<br />
o movimento feminista, as<br />
associações, grupos e movimentos que<br />
lutam pela igualdade de gênero. Na<br />
avaliação de Lúcia Rincon, “podemos<br />
ter perdas de engajamento político e<br />
de atendimento às organizações sociais<br />
e ao movimento feminista – que vinha<br />
atuando como parceiro do Estado na<br />
mobilização das mulheres, dos povos,<br />
dos setores que lutam pela igualdade<br />
Paulo Pinto<br />
20 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
de gênero”. Ela alerta para o fato de<br />
que os movimentos sociais sofrem,<br />
desde o golpe, pressão de rua, agressões<br />
via mídias sociais, etc. Um fato triste e<br />
que demarca essa realidade foram as<br />
manifestações feitas, pelos setores e<br />
organizações de direita e que respaldaram<br />
o golpe, na ocasião da morte<br />
de dona Marisa, esposa do Lula. Um<br />
total desrespeito.”<br />
Além da discriminação, a mulher<br />
sofrerá violência patrimonial com as<br />
medidas do governo Temer. É o que<br />
afirma a senadora Vanessa Grazziotin<br />
-PCdoB-AM (foto) ao se referir à reforma<br />
da Previdência que retira direitos<br />
antigos como idade menor do que a<br />
do homem para se aposentar, e a pensão<br />
das milhares de viúvas que já contam<br />
com uma aposentadoria, em geral, de<br />
um salário mínimo. “A gente pode e<br />
deve considerar esta retirada de direitos<br />
como uma forma de violência política.<br />
No caso, uma violência patrimonial,<br />
como aquela a que a Lei Maria da Penha<br />
se refere, só que o agressor é o próprio<br />
Estado”, afirma.<br />
Internet<br />
“<br />
A gente pode e<br />
deve considerar<br />
esta retirada de<br />
direitos como uma<br />
forma de violência<br />
política”<br />
Na avaliação da senadora, que é<br />
também procuradora da Mulher no<br />
Senado, o Brasil tem hoje um Congresso<br />
bastante conservador, com<br />
uma pauta dirigida a desconstruir o<br />
que o movimento de mulheres alcançou<br />
com muita luta desde a redemocratização,<br />
ainda na década de 1980.<br />
“As ações da Procuradoria Especial da<br />
Mulher no Senado procuram aproximar<br />
as parlamentares da bancada feminina<br />
das mulheres em cada cidade<br />
e em cada estado, buscando apoio nas<br />
entidades sindicais, nos movimentos<br />
organizados para resistir e mesmo impedir<br />
a perda de direitos”, afirma.<br />
Por trás do golpe<br />
O presidente nacional da Rede pelo<br />
Constitucionalismo Democrático Latino-Americano,<br />
José Luiz Quadros de<br />
Magalhães, chama a atenção para o fato<br />
de que o governo Temer desempenha<br />
um papel no jogo internacional de<br />
poder. “Assim como na Argentina e a<br />
maioria parlamentar de direita na Venezuela,<br />
assistimos a um desmonte dos<br />
direitos sociais, dos direitos de diversidade<br />
e a entrega das riquezas, mais uma<br />
vez, às empresas poderosas do Norte.<br />
Este governo veio para isso: entregar<br />
nossas riquezas, manter a colonialidade<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
21
Lidyane Ponciano<br />
nos interessa – eles o atacam sob o<br />
nome de 'ideologia de gênero'. Esses<br />
conflitos os conservadores, golpistas<br />
acham que são inventados p<strong>elas</strong> feministas!”,<br />
desabafa.<br />
Ameaça à profissão<br />
docente<br />
Para atender aos interesses do capital,<br />
o governo aprovou a reforma trabalhista<br />
em julho deste ano. Como<br />
alerta a presidenta do Sindicato dos<br />
Professores do Estado de Minas Gerais<br />
(Sinpro Minas), Valéria Morato (foto),<br />
o ataque aos/as trabalhadores/as é uma<br />
marca evidente do capitalismo. “Essa<br />
reforma desmonta a CLT e a Justiça do<br />
Trabalho. Uma das mudanças é permitir<br />
que gestantes e lactantes trabalhem em<br />
condições insalubres”, afirma.<br />
Valéria Morato afirma que tentam<br />
implantar no Brasil uma grande virada<br />
econômica e ideológica, “em que os<br />
do ser, do saber e do poder. A ideologia<br />
neoliberal, reciclada, sempre culpou o<br />
indivíduo pela sua miséria. Para esta<br />
ideologia de direita, o problema não é o<br />
sistema econômico político e social, o<br />
problema é com o indivíduo. Isso naturaliza<br />
a desigualdade e fortalece o ridículo<br />
argumento do mérito, em um<br />
mundo onde apenas oito homens possuem<br />
a mesma riqueza que 3,6 bilhões<br />
de pessoas que compõem a metade<br />
mais pobre do mundo”, diz.<br />
Segundo Quadros, sustentar esta<br />
insanidade talvez seja mais ridículo<br />
do que, quando no lugar do “mérito”,<br />
existia o argumento do “sangue azul”<br />
dos nobres. Expressiva parte do nosso<br />
Congresso conservador acredita nesta<br />
absurda história da “meritocracia” e<br />
sustentam que pessoas podem deter<br />
bilhões em propriedades enquanto bilhões<br />
não possuem nada. Esta ideologia<br />
é diariamente posta na cabeça das pessoas<br />
pela TV, pelo cinema, especialmente<br />
norte-americano, pelos jornais<br />
e revistas. Inclusive, os mesmos parlamentares<br />
acreditam que suas fortunas<br />
decorrem do seu mérito”, afirma.<br />
A senadora Vanessa Grazziotin também<br />
repudia a narrativa de incentivo<br />
à visão liberal de que a riqueza é uma<br />
recompensa para o 'mérito'. “Isso é<br />
muito antigo: a defesa de uma suposta<br />
'meritocracia', como justificativa dos<br />
privilégios existentes. Acho que é im<strong>por</strong>tante<br />
refletir que há um tipo de<br />
conflito que estes golpistas não acham<br />
'natural' de jeito nenhum, e que muito<br />
“<br />
A reforma trabalhista<br />
permitirá<br />
que gestantes e<br />
lactantes trabalhem<br />
em condições<br />
insalubres”<br />
22 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
trabalhadores arcam com a responsabilidade<br />
<strong>por</strong> suas aposentadorias e<br />
pensões, buscando a previdência privada,<br />
assim como fazem com a saúde<br />
e educação privada”. Por isso, segundo<br />
Valéria Morato, o governo vem com<br />
esta ofensiva contra a organização<br />
dos/as trabalhadores/as. “Isso tudo<br />
tem reflexos nas negociações coletivas.<br />
O ataque ao financiamento do<br />
movimento sindical é essencialmente<br />
o ataque à luta coletiva, que é a luta<br />
que resiste e que pressiona. E <strong>por</strong> isso,<br />
em 2016, sem nenhum alarde, mas<br />
com tudo em mente, o Congresso<br />
Nacional reduziu em 50% o orçamento<br />
de custeio da Justiça do Trabalho, tornando-a<br />
mais morosa, dificultando o<br />
acesso dos/as trabalhadores/as. A<br />
ideia central do golpe é essa: menos<br />
estado, menos governo, mais empenho<br />
individual, cada um <strong>por</strong> si,<br />
mercado para tudo. Resistiremos e<br />
lutaremos”, ressalta.<br />
Já o desmonte da Previdência prejudicará<br />
todo/a trabalhador/a, principalmente<br />
os/as professores/as que hoje<br />
têm regime especial. A realidade atual<br />
em que a professora se aposenta aos<br />
25 de contribuição e o professor, aos<br />
30 anos, acaba. “Se passar a proposta<br />
de 49 anos de contribuição ininterrupta,<br />
ninguém se aposentará. Imagina<br />
o que é uma professora da educação<br />
infantil estar em sala de aula aos 65<br />
anos de idade?”, questiona Valéria Morato.<br />
Ela ressalta que a reforma trabalhista<br />
vai impactar a profissão docente.<br />
“Com ela, o contrato <strong>por</strong> tempo determinado<br />
passa de 90 dias para 9 meses.<br />
Ora, 9 meses é exatamente o período<br />
letivo. É o fim dos direitos dos educadores.<br />
Para os donos de escolas privadas,<br />
melhor contratar <strong>por</strong> tempo determinado<br />
do que com carteira assinada<br />
e com os direitos garantidos pela CLT,<br />
como é hoje. É um desmonte também<br />
da educação que começou com a reforma<br />
da educação básica e a terceirização”,<br />
afirma.<br />
O secretário de Previdência, Aposentados<br />
e Pensionistas da CTB Nacional<br />
(Central dos Trabalhadores e<br />
Trabalhadoras do Brasil), Pascoal Carneiro,<br />
afirma que o desmonte da Previdência<br />
tem o objetivo de estimular a<br />
previdência privada. “Esta é a vontade<br />
dos banqueiros que têm acordos com<br />
o governo golpista. Daí veio a a escolha<br />
do secretário da Previdência, ou seja,<br />
ligado à inicitiva privada, para decretar<br />
o fim da Previdência que, diferente do<br />
que nos querem fazer acreditar, nunca<br />
foi deficitária”, diz.<br />
Pacote de maldades<br />
“As reformas trabalhista e previdenciária<br />
são um pacote de maldades contra<br />
a soberania nacional, o povo brasileiro.<br />
Tudo que está dentro é negativo, principalmente<br />
para as mulheres do campo”.<br />
É o que afirma a diretora de finanças<br />
da Federação dos Trabalhadores na<br />
Agricultura do Estado de Minas Gerais<br />
(Fetaemg) Maria Rita Fernandes de Figueiredo.<br />
“Falta de consideração humana<br />
subir o teto da idade mínima. Todos<br />
começam muito cedo no campo, ajudando<br />
os pais. E a mulher, além da roça,<br />
tem a casa. Ela se levanta antes de todo<br />
mundo e, desde pequena, aprende a<br />
cuidar da horta, das criações, da casa,<br />
da comida, da saúde de todos, dos irmãos<br />
Mark Florest<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
23
Mark Florest<br />
menores (depois, cuida dos filhos) e<br />
ainda trabalha na roça. Nós, pequenos<br />
agricultores, enfrentamos todo tipo de<br />
situação: bichos peçonhentos e outros,<br />
chuva, sol, sereno, poeira, etc. Muitas<br />
vezes a gente roda até 70 quilômetros<br />
para colocar nosso produto no mercado.<br />
Toda uma engenharia de luta diária e<br />
que a mulher está ali. Se a mudança for<br />
feita como estão divulgando, a trabalhadora<br />
rural não conseguirá mais se<br />
aposentar”, afirma.<br />
Sobre a ameaça de desvincular o<br />
reajuste da aposentadoria ao reajuste<br />
do salário mínimo, Maria Rita afirma<br />
que será um impacto enorme no campo<br />
e na economia de todo o país, pois a<br />
aposentadoria será cada vez menor.<br />
“Este dinheiro é distribuído com muita<br />
gente. O aposentado no campo investe<br />
em sua propriedade, ajuda filhos, netos<br />
com material de escola, trans<strong>por</strong>te.<br />
Uma rede de desenvolvimento im<strong>por</strong>tante<br />
para a sociedade. Aposentadoria<br />
é o maior benefício de garantia de direito<br />
e de justiça social, de distribuição<br />
de renda, geração de emprego, da cidadania<br />
das mulheres”, afirma.<br />
A trabalhadora rural acrescenta que<br />
mexer na CLT é também gravíssimo.<br />
Salário, jornada de 8 horas e férias são<br />
direitos conquistados há anos, com<br />
muita luta. Mexer na jornada de trabalho<br />
deveria ser para reduzi-la e não<br />
aumentá-la. Aumentar a jornada no<br />
campo é impossível, é escravidão. Nem<br />
máquina su<strong>por</strong>ta uma carga de 10 ou<br />
12 horas, quanto mais o ser humano!<br />
Se o patrão vai ganhar mais lucro, sabemos<br />
que o trabalhador vai correr<br />
mais risco de morte, doenças físicas e<br />
emocionais, além de mutilações. Se o<br />
governo pensa em fazer reformas, deveria<br />
fazer reforma agrária e demarcação<br />
das terras indígenas, no lugar<br />
24 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
de entregar as terras de divisas do<br />
nosso país para empresas estrangeiras,<br />
como está fazendo”, protesta.<br />
A falta de demarcação de terras indígenas,<br />
agravada nesse governo, também<br />
resulta em mais problemas para<br />
as mulheres. É o que afirma a coordenadora<br />
da Associação das Guerreiras<br />
Indígenas de Rondônia (AGIR), Maria<br />
Leonice Tupari, do povo Tupari (RO).<br />
“Os governos anterirores fizeram pouco.<br />
Poderiam ter avançado, mas sabemos<br />
que o Congresso também impedia.<br />
Infelizmente, o governo Temer veio<br />
para derrubar tudo. As reformas afetam<br />
a todos no país, mas sofremos ainda<br />
mais com a questão da falta de demarcação<br />
de nossas terras. Principalmente<br />
nós, mulheres, somos afetadas diretamente.<br />
Hoje a maioria das liderenças<br />
que estão na luta pela retomada da<br />
terra para os povos indígenas que foram<br />
expulsos de seus territórios, é mulher.<br />
Muitas perdem a vida nesta luta. Além<br />
disso, os fazendeiros, madeireiros e<br />
garimpeiros estão dentro de nosso território.<br />
Como enfrentá-los, se não tem<br />
Nanci Alves<br />
“<br />
As reformas afetam<br />
a todos no país, mas<br />
sofremos ainda mais<br />
com a questão da falta<br />
de demarcação de<br />
nossas terras.”<br />
mulher à frente deste tipo de negócio?<br />
Um governo sem política de demarcação<br />
ajuda aumentar a violência. Não<br />
só a luta pela terra, mas a presença do<br />
não indígena. Um impacto muito grande<br />
na nossa cultura, pois eles trazem<br />
doenças, drogas, prostituição, aliciam<br />
nosso povo, etc”, alerta.<br />
Maria Leonice Tupari (foto), que<br />
é também multiplicadora do projeto<br />
Vozes das Mulheres Indígenas (parceria<br />
com a ONU Mulheres), reforça que,<br />
“mais do que nunca, é hora de união<br />
entre todos: indígenas, movimento social,<br />
quilombolas, etc. Nós, mulheres,<br />
vamos para as ruas gritar que estamos<br />
vivas e que vamos lutar sempre”, afirma.<br />
Caminhos para a<br />
resistência<br />
A resistência é também o caminho<br />
apontado pela presidenta nacional da<br />
Unegro (União de Negros pela Igualdade),<br />
Ângela Guimarães. Ela afirma<br />
que o conjunto de retrocessos apresentados<br />
pelo governo golpista é mais<br />
feroz do que os oito anos da época neoliberal<br />
de Fernando Henrique Cardoso.<br />
“Temer e sua quadrilha estão correndo<br />
para fazer a entrega das nossas riquezas.<br />
A praticamente dissolução da Secretaria<br />
de Políticas para as Mulheres,<br />
a falta de uma política nacional de<br />
apoio à mulher em situação de violência<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
25
impacta, diretamente, na vida das mulheres<br />
negras. Temos que lembrar que<br />
nestes últimos anos aumentou em 54%<br />
a violência doméstica sobre as mulheres<br />
negras. Além disso, o crescimento do<br />
desemprego e da violência pela atuação<br />
da polícia e das forças armadas nas<br />
ruas tem vitimado sobretudo a população<br />
negra. Quando não vitima diretamente<br />
a mulher negra, vitima seus<br />
filhos, netos, sobrinhos, impactando<br />
na sua vida e de sua família”, afirma.<br />
Ângela Guimarães (foto) destaca<br />
ainda as graves consequências da PEC<br />
55/2016 (que congela <strong>por</strong> 20 anos os<br />
investimentos na saúde e na educação)<br />
para a mulher negra. “A gente fica sem<br />
perspectivas de presente e de futuro<br />
com este governo. A mulher negra é a<br />
base da pirâmide social, é quem está<br />
no subsolo em relação ao desenvolvimento.<br />
Mas situações adversas vimos<br />
enfrentando desde que o primeiro navio<br />
negreiro a<strong>por</strong>ta aqui, no Brasil; nunca<br />
Nanci Alves<br />
desistimos de lutar. Vamos vencer o<br />
período do facismo, com muita luta e<br />
organização nos movimentos, nas ruas,<br />
nas redes, contra a retirada de direitos.<br />
Precisamos rufar nossos tambores contra<br />
as reformas da Previdência e trabalhista<br />
que querem nos ver trabalhando<br />
sem direito a férias, descanso<br />
remunerado, a curtir a família e até<br />
sem a aposentadoria. Contra o retorno<br />
à escravidão, as mulheres negras seguem<br />
em marcha”, afirma.<br />
Como já denunciado <strong>por</strong> muitos<br />
movimentos feministas, a reforma da<br />
Previdência pode representar uma elitização<br />
e masculinização dos benefícios<br />
previdenciários, voltando a refletir a<br />
extrema desigualdade do mercado de<br />
trabalho. Mesmo com toda luta dos<br />
movimentos, o salário das mulheres,<br />
no Brasil, de acordo com um estudo<br />
feito <strong>por</strong> um grupo de trabalho no Instituto<br />
de Pesquisa Econômica Aplicada<br />
(Ipea), e divulgado em feveiro de <strong>2017</strong>,<br />
corresponde a 70% do recebido pelos<br />
homens, em média. E as mulheres têm<br />
uma jornada semanal de 55 horas, enquanto<br />
os homens, 47 horas. Um estudo<br />
do Fórum Econômico Mundial, publicado<br />
em 2015, aponta que o mundo alcançará<br />
a igualdade de gênero no mercado<br />
de trabalho somente em 2095.<br />
Neste estudo, o Brasil está na posição<br />
124, entre 142 países, no ranking de<br />
igualdade de salários <strong>por</strong> gênero. Baseado<br />
nestes dados, fica claro que a<br />
desculpa do governo de que igualar a<br />
idade para aposentadoria tem sido uma<br />
tendência no mundo moderno é sem<br />
sentido, pois está baseada em países<br />
ricos, longe da nossa realidade.<br />
Isso sem levar em consideração, a<br />
vida dentro de casa. A mulher foi para<br />
a vida pública, mas em geral, o homem<br />
não assumiu sua parcela no trabalho<br />
26 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
doméstico – casa e filhos. O Instituto<br />
de Pesquisa Econômica Aplicada<br />
(Ipea) constatou que, enquanto as mulheres<br />
gastam, em média, 26,6 horas<br />
semanais com serviços de casa, os homens<br />
gastam 10,5 horas. Portanto, o<br />
governo não poderia desconsiderar<br />
que o tempo menor de aposentadoria<br />
para a mulher existia como forma de<br />
compensar estas desigualdades que<br />
ainda persistem.<br />
Quais caminhos precisam ser feitos<br />
pela sociedade para defender a retomada<br />
de direitos, em especial da<br />
mulher mais pobre e negra? Esta é a<br />
pergunta que todas as pessoas precisam<br />
se fazer diariamente. Para o presidente<br />
nacional da Rede pelo<br />
Constitucionalismo Democrático Latino-Americano,<br />
José Luiz Quadros de<br />
Magalhães, é urgente entender o que<br />
está acontecendo para partirmos para<br />
pequenas e diárias ações transformadoras.<br />
“A compreensão é o primeiro<br />
passo para acabar com aquilo que sustenta<br />
o sistema: a crença no próprio<br />
sistema. Enquanto acreditarmos no<br />
capitalismo, na sua inevitabilidade, e<br />
logo, na impossibilidade de derrotá-lo,<br />
ele continuará liquidando vidas”,<br />
afirma. “O caminho é a organização<br />
social; a resistência e o combate às políticas<br />
de concentração de riqueza, de<br />
eliminação de direitos e de subordinação<br />
aos interesses econômicos das<br />
grandes cor<strong>por</strong>ações que dominam o<br />
governo e o Congresso brasileiro. As<br />
micro-revoluções diárias em todas as<br />
cidades e bairros e formação de redes<br />
cada vez maiores em todo o mundo<br />
podem vencer este macro poder aparentemente<br />
indestrutível”, diz.<br />
Para a diretora de finanças da Fetaemg,<br />
Maria Rita Figueiredo (foto),<br />
mais do que nunca é hora de resistir.<br />
“Estamos convocando trabalhadores/as<br />
de todos os lugares, cidades pequenas e<br />
grandes, o campo. O mal que está aí vai<br />
atingir todas as categorias. É preciso<br />
união de forças para fazermos a mudança<br />
necessária para a garantia da manutenção<br />
dos direitos já conquistados. Deveríamos<br />
estar lutando para avançar e,<br />
hoje, temos que lutar para assegurar o<br />
que que já tínhamos”, finaliza.<br />
A luta organizada <strong>por</strong> meio dos sindicatos,<br />
organizações feministas, progressistas,<br />
salas de aula, também é o<br />
que defende a presidenta da UBM,<br />
Lúcia Rincon. “Uma luta que vá para<br />
as ruas, que se contraponha nos parlamentos,<br />
que façamos a consciência<br />
política no cotidiano, em todos os espaços,<br />
discutindo com as pessoas a<br />
im<strong>por</strong>tância de uma sociedade democrática<br />
para construir uma vida em<br />
condições de igualdade para homens<br />
e mulheres garantindo, assim, a emancipação<br />
humana.;<br />
Mark Florest<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
27
Rovena Rosa - Agência Brasil
POR<br />
Educação<br />
Carina Santos<br />
Ocupação:<br />
substantivo<br />
feminino<br />
O protagonismo das mulheres nas ocupações<br />
estudantis contra os ataques à educação<br />
No último ano, uma das mais fortes<br />
reações ao golpe contra a presidenta<br />
Dilma Rousseff foi a onda de ocupações<br />
de escolas que se espalhou <strong>por</strong> todo<br />
país em defesa da educação e contra<br />
retrocessos políticos. E na crista dessa<br />
onda, foram as mulheres que protagonizaram<br />
o movimento que deixou marcas<br />
na história brasileira.<br />
Para abordar esse tema, marquei<br />
com minha entrevistada numa praça.<br />
Fiquei observando todas aqu<strong>elas</strong> pessoas,<br />
tentando adivinhar quem seria a<br />
jovem que eu ainda só conhecia virtualmente.<br />
Sentei em um dos bancos<br />
pensando sobre a im<strong>por</strong>tância dessa<br />
re<strong>por</strong>tagem. De repente se aproxima<br />
uma menina negra, de roupas largas e<br />
mochila nas costas. Nos apresentamos.<br />
Reparei o piercing no nariz dela, pensando<br />
que eu ainda quero ter coragem<br />
de colocar um. Começamos a prosa.<br />
Eu, com o dobro da idade dela, sentia<br />
que naquela tarde era ela quem tinha<br />
muito a me ensinar.<br />
Girlene Boato, estudante secundarista<br />
e diretora da União Colegial de<br />
Minas Gerais - UCMG, é uma entre<br />
tantas mulheres que assumiram a linha<br />
de frente das ocupações das escolas,<br />
movimento que se espalhou <strong>por</strong> todo<br />
o Brasil no ano passado, logo após o<br />
governo ilegítimo de Michel Temer ter<br />
assumido a Presidência e anunciado<br />
uma série de medidas que atacam diretamente<br />
a educação, como o projeto<br />
da Escola sem partido, a reforma do<br />
Ensino Médio e a PEC 55. Em Minas<br />
Gerais foram mais de 150 escolas ocupadas<br />
e em todo Brasil, mais de 1000.<br />
A estudante conta que quando começou<br />
a ver tantas mulherese LGBT (Lésbicas,<br />
Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais<br />
e Transgêneros) participando do movimento,<br />
pensou: eu tenho que fazer<br />
parte disso. “Primeiro <strong>por</strong>que isso vai<br />
fazer parte da minha história, da história<br />
do meu país. E a ocupação era<br />
um espaço em que eu me sentia bem,<br />
me sentia livre, me sentia igual a todo<br />
mundo. Lá a gente debatia sobre ho-<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
29
Carina Santos<br />
mofobia, sobre machismo, sobre o feminismo<br />
emancipacionista, lá eu me<br />
sentia abraçada”, recorda.<br />
Girlene (foto) conta que grande<br />
parte das ocupações foi puxada <strong>por</strong><br />
mulheres e <strong>por</strong> pessoas LGBT. Hoje,<br />
se assume como lésbica e destaca que<br />
esse protagonismo reflete a realidade<br />
das pessoas que sempre sentiram na<br />
pele a opressão. “Antes disso eu não<br />
tinha consciência dessas coisas, não<br />
sabia sobre o machismo, me considerava<br />
hétero. Eu era tudo que não sou<br />
agora. Com minha aproximação do<br />
movimento estudantil, das ocupações,<br />
eu vi que precisava mudar o meu jeito,<br />
mudar o que eu era, pra poder mudar<br />
a sociedade”, afirma.<br />
E as ocupações deixaram mesmo<br />
essa prova de uma construção subjetiva<br />
e ao mesmo tempo política, característica<br />
aliada a um protagonismo feminino.<br />
Girlene, que no ano passado<br />
estudava no Estadual Central, em Belo<br />
Horizonte, conta que lá também as<br />
mulheres estavam à frente. Com três<br />
lideranças femininas consecutivas no<br />
grêmio estudantil, foi criada uma relação<br />
de respeito devido ao pulso firme<br />
na construção do movimento. Sobre a<br />
divisão de tarefas, a estudante conta<br />
que as mulheres não estavam só na<br />
cozinha, contrariando às máximas machistas<br />
que apontam esse lugar como<br />
único e exclusivo do sexo feminino. “A<br />
gente tava era puxando assembleia geral,<br />
fazendo diálogo com a direção. Era<br />
todo mundo fazendo tudo. No Estadual<br />
Central mesmo, quem ficava na cozinha<br />
era um homem. Ele que estava ligado<br />
nas coisas que estavam faltando, como<br />
que era melhor preparar a comida”,<br />
diz. Uma geração experimentando uma<br />
sociedade tão sonhada. Os olhos de<br />
Girlene brilhavam enquanto contava<br />
30 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
orgulhosa que o espaço da ocupação<br />
foi de empoderamento para muitas<br />
mulheres. “A gente tinha debate sobre<br />
a cultura do estupro, <strong>por</strong> exemplo, em<br />
que meninas participavam e falavam<br />
sobre situações de abuso que sofreram.<br />
Foi muito bonito ver que as mulheres<br />
estão se libertando”, refletiu.<br />
As cadeiras não eram enfileiradas<br />
e as disciplinas comunicavam com o<br />
que a realidade apontava para as(os)<br />
estudantes. Um <strong>por</strong>tal de novos conhecimentos<br />
e conversas que deram<br />
um banho no modelo muitas vezes autoritário<br />
que a escola reproduz. Girlene<br />
conta que havia muitas rodas de conversa<br />
e, na maioria d<strong>elas</strong>, mulheres<br />
eram chamadas para mediar ou palestrar.<br />
“A gente tinha consciência que<br />
não podia manter essa lógica de que<br />
só homens falam sobre certos assuntos”,<br />
ressaltou. Na diversidade de atividades,<br />
também eram as mulheres que muitas<br />
vezes estavam à frente para cantar rap<br />
ou recitar poesia.<br />
"Além de pobre<br />
A gente é preto<br />
E suspeito de ter construído o<br />
Brasil<br />
Pra hoje o Temer governar?<br />
Será que matam a gente com<br />
medo da gente cobrar?<br />
O resultado do trabalho do proletário<br />
tá no bolso do Bolsonaro<br />
Tá na conta do patrão<br />
Ninguém morre <strong>por</strong> causa do<br />
baseado<br />
A gente morre baseado na<br />
lógica do capital<br />
E eles morrem de medo da<br />
revolução.”<br />
Os versos são trecho da poesia “Trago<br />
verdades”, da estudante Bruna Helena<br />
(foto), mais uma que estava na trincheira<br />
do movimento em Minas Gerais.<br />
Sua poesia também dialoga com a essência<br />
das ocupações, que fizeram dos<br />
pátios espaços de encontros, saraus,<br />
trocas culturais que se misturavam com<br />
as análises políticas. Ela, como presidenta<br />
da União Brasileira dos Estudantes<br />
Secundaristas (UBES), teve a o<strong>por</strong>tunidade<br />
de conhecer diversas escolas<br />
ocupadas e também reafirma a força<br />
da participação das mulheres. “Não sei<br />
exatamente o <strong>por</strong>quê. Parece que a<br />
gente já nasce com mais disposição<br />
para a luta, saca? Por exemplo, você<br />
passa em uma sala de aula chamando<br />
para alguma atividade, <strong>por</strong> exemplo um<br />
debate sobre a reforma do Ensino Médio,<br />
de dez pessoas que se interessam em<br />
participar daquilo, sete são mulheres.<br />
Eu acho que tem a ver com a força da<br />
gente e <strong>por</strong>que somos mais oprimidas<br />
nos espaços. Eu acho que a gente tende<br />
a se rebelar mais quando a gente é mais<br />
oprimida”, destaca.<br />
Bruna conta que o feminismo estava<br />
presente nas ocupações de uma forma<br />
teórica, com a realização de diversos<br />
debates, e também na forma como<br />
muitas mulheres passaram a se identificar<br />
como feministas, trazendo isso<br />
para as ações cotidianas.<br />
Por mais que as ocupações tenham<br />
representado uma potente experiência<br />
de desconstrução de padrões e fortalecimento<br />
do feminismo, é inegável<br />
Carina Santos<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
31
que o machismo também estava ali<br />
presente, assim como em todos os espaços,<br />
já que a sociedade patriarcal<br />
ainda cultiva a erva daninha da opressão<br />
de gênero.<br />
Bruna conta que o machismo era<br />
sim perceptível. Como exemplo, compartilhou<br />
a experiência de uma ocupação<br />
na zona oeste de Belo Horizonte,<br />
composta só <strong>por</strong> mulheres e homens<br />
gays. A estudante diz que sempre escutavam<br />
com relação a essa escola:<br />
"Nossa, vocês dormem aqui sozinhas?”<br />
ou então “como que o pai de vocês<br />
deixa esse tanto de menina aqui na<br />
escola?”, questionamentos que não<br />
eram comuns em escolas com muitos<br />
homens. "Parece que as pessoas tinham<br />
a impressão que as meninas estavam<br />
mais inseguras. E <strong>elas</strong> sempre diziam:<br />
“a gente sabe se proteger”. Mas infelizmente<br />
a gente passou <strong>por</strong> várias situações<br />
nessa escola em específico em<br />
que a segurança das meninas ficava<br />
mesmo ameaçada e <strong>elas</strong> mesmas já<br />
passaram a sentir mais medo", relata.<br />
A estudante também detalha que a<br />
igualdade de tarefas foi uma conquista,<br />
pois muitos homens queriam realizar<br />
atividades que foram culturalmente<br />
construídas como sendo de homens,<br />
no caso da segurança, <strong>por</strong> exemplo.<br />
"E na escola rola um machismo institucional<br />
também. Geralmente, o diretor<br />
tem mais dificuldade de respeitar uma<br />
liderança quando ela é mulher", destaca.<br />
Bruna reflete que isso é consequência<br />
de uma construção histórica, já<br />
que é tão difícil a legitimidade de uma<br />
liderança mulher. "É diferente eu dizer<br />
"sou a Bruna, presidenta da UBES" ao<br />
invés de dizer "sou o Bruno, presidente<br />
da UBES". As pessoas duvidam muito<br />
das mulheres e <strong>por</strong> isso eu acho que é<br />
mais difícil", comenta.<br />
Girlene também concorda que havia<br />
manifestação de machismo nos espaços.<br />
Segundo ela, já aconteceu de um<br />
rapaz falar mal de uma menina <strong>por</strong>que<br />
ela não quis ficar com ele. “Aí nós chamamos<br />
ele e falamos: cara, você tá errado,<br />
vamos conversar aqui. O que a<br />
gente tá errando aqui na ocupação? É<br />
preciso fazer mais debates sobre a<br />
pauta feminista?", recorda.<br />
O processo de vivência e de trocas<br />
certamente aflorou as contradições,<br />
mas também permitiu um espaço em<br />
que essas opressões fossem debatidas.<br />
Segundo Girlene, havia um entendimento<br />
de que o machismo é um problema<br />
social, já que somos todas(os)<br />
criadas(os) nesse modelo que além de<br />
machista, é racista e homofóbico. Por<br />
isso a ideia era desconstruir para construir<br />
de novo. "Nosso intuito não era<br />
crucificar, nem condenar ninguém.<br />
Nosso intuito era mesmo a desconstrução",<br />
reafirma.<br />
Para Bruna, a resistência exige<br />
mais das mulheres. "Os homens sempre<br />
foram os protagonistas do movimento<br />
estudantil e agora as mulheres<br />
estão vindo com tudo, arrebentando a<br />
banca e não teve como segurar. E<br />
“<br />
agora as mulheres<br />
estão vindo com<br />
tudo, arrebentando<br />
a banca”<br />
agora a gente impõe esse respeito que<br />
deixaram de dar pra gente há muito<br />
tempo", pontua.<br />
Girlene enfatiza também a im<strong>por</strong>tância<br />
de seguir construindo a luta feminista<br />
em todos os espaços possíveis,<br />
ampliando assim as possibilidades de<br />
uma consciência anti-machista. "Tem<br />
uma frase que eu gosto muito que diz<br />
que “sozinho a gente pode até ir mais<br />
rápido, mas com a companhia de alguém<br />
a gente vai mais longe.” Por isso<br />
é im<strong>por</strong>tante que os homens também<br />
32 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
Rovena Rosa - Agência Brasil<br />
Meninas foram protagonistas nas ocupações estudantis<br />
estejam presentes sim nos debates feministas,<br />
<strong>por</strong>que quem vai estar sendo<br />
desconstruído ali são eles", defende.<br />
Um protagonismo<br />
que viralizou<br />
"A minha pergunta inicial é: de<br />
quem é a escola? A quem a escola pertence?".<br />
Essas foram as primeiras<br />
palavras da estudante secundarista<br />
Ana Júlia Ribeiro quando discursou<br />
na Assembleia Legislativa do Paraná,<br />
em outubro do ano passado. Ela<br />
estava lá para falar sobre a legitimidade<br />
das ocupações, em um momento<br />
em que a grande mídia e os setores<br />
conservadores atacavam ferozmente o<br />
movimento.<br />
O discurso de Ana Júlia durou cerca<br />
de dez minutos e foi um marco na luta<br />
em defesa da educação. Era uma fala<br />
humana, sem medo de demonstrar<br />
que ali as palavras saíam do coração.<br />
O choro e o nervosismo logo deram<br />
lugar para um olhar firme e uma postura<br />
de quem sentia a im<strong>por</strong>tância de<br />
estar naquela tribuna, geralmente ocupada<br />
<strong>por</strong> homens brancos. Durante<br />
sua fala, Ana Júlia lembrava que a reforma<br />
do Ensino Médio não era a única<br />
reivindicação do movimento: “Tem<br />
também a chamada Lei da Mordaça<br />
ou Escola Sem Partido. É uma afronta:<br />
uma ‘escola sem partido’ é uma escola<br />
sem senso crítico, é uma escola racista,<br />
é uma escola homofóbica. É falar para<br />
os estudantes que querem formar um<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
33
Internet<br />
está. O que me inspirou, afinal, foi o<br />
sonho de ter uma educação pública, de<br />
qualidade", afirma. A estudante também<br />
destaca que as mulheres eram a<br />
linha de frente no movimento do Paraná,<br />
estado que teve mais ocupações<br />
no Brasil, mais de 800. "Acho que as<br />
mulheres se envolveram mais <strong>por</strong><br />
sempre estar em uma situação de desigualdade<br />
e nunca serem protagonistas,<br />
mas agora a situação muda um<br />
pouco e isso é im<strong>por</strong>tante. Também<br />
acho que essa sede revolucionária vem<br />
muito da mulher, do feminismo", comenta.<br />
Ana relata que a pauta feminista<br />
também estava muito presente<br />
na sua escola e que uma das regras era<br />
respeitar as mulheres, sem reproduzir<br />
atitudes machistas. "O feminismo estava<br />
ali nas questões debatidas: uma<br />
educação mais libertadora, uma educação<br />
que previna esses problemas<br />
que temos como o machismo, racismo,<br />
desigualdades", completa.<br />
Sobre o histórico dia do discurso<br />
na Assembleia, Ana Júlia (foto) conta<br />
que estava extremamente nervosa, que<br />
não sabia como falaria. "Claro que eu<br />
exército de não-pensantes, que só ouve<br />
e baixa a cabeça, e não somos isso. Em<br />
pleno 2016 querem nos colocar um<br />
projeto desse? Isso nos insulta, nos<br />
humilha e diz que não temos capacidade<br />
de pensar <strong>por</strong> nós próprios, mas<br />
não vamos baixar a cabeça.”<br />
Rapidamente o vídeo viralizou nas<br />
redes sociais. O impacto desse discurso<br />
ajudou a traduzir amplamente o protagonismo<br />
feminino nas escolas espalhadas<br />
pelo país. É como se naquela<br />
tribuna fosse possível ver todas as adolescentes<br />
demonstrando o poder de<br />
uma geração que está disposta a transformar<br />
o curso da história.<br />
Ana Júlia foi entrevistada em diversos<br />
meios de comunicação e, claro,<br />
também atacada pelos mesmos conservadores<br />
que atacam as ocupações.<br />
Mas após aquele discurso, sua voz continua<br />
ecoando <strong>por</strong> aí, inspirando e<br />
emocionando muita gente.<br />
A estudante conta que a inspiração<br />
ao entrar para o movimento das ocupas,<br />
como ela intimamente se refere às<br />
ocupações, foi em ver todos se envolverem<br />
<strong>por</strong> um objetivo bem claro, que<br />
era a luta contra a reforma do Ensino<br />
Médio e a PEC 55. "A gente já vive em<br />
uma situação de educação precarizada<br />
e não queria ver isso pior do que já<br />
“<br />
A gente já vive em<br />
uma situação de educação<br />
precarizada e<br />
não queria ver isso<br />
pior do que já está”<br />
34 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
me vi coagida no meio daquele tanto<br />
de homens, não só <strong>por</strong> serem homens,<br />
mas também <strong>por</strong> estarem ocupando<br />
cargo de poder e <strong>por</strong>que eu sabia que<br />
eu era minoria ali dentro. Eu sabia que<br />
as pessoas não iam concordar com o<br />
que eu ia falar. Eu sabia que o que eu ia<br />
falar ia ser repudiado. Mas meu sentimento<br />
depois foi inexplicável. É um<br />
acúmulo de tanta coisa que nem eu<br />
sei", relata.<br />
A estudante reconhece que o papel<br />
da sua geração na atual conjuntura é<br />
extremamente im<strong>por</strong>tante. "A mulher<br />
tá se colocando mais, não tem mais<br />
essa coisa de ter que ficar em casa,<br />
casar e ter filhos. A gente ainda tem<br />
muito o que fazer, tem muito adolescente<br />
homem machista. Então é<br />
muito im<strong>por</strong>tante cada atitude dentro<br />
da escola, de contestar cada ação<br />
opressora", afirma.<br />
Mídia Ninja<br />
Um golpe contra<br />
as mulheres<br />
A forma como a experiência de cada<br />
uma dessas mulheres que ocuparam<br />
as escolas se relaciona com o contexto<br />
político brasileiro contribui muito para<br />
entender de onde vem a semente desse<br />
protagonismo.<br />
Lúcia Rincon, coordenadora-geral<br />
da União Brasileira de Mulheres (UBM),<br />
analisa que as ocupações foram uma<br />
reação em defesa de uma educação de<br />
qualidade e que isso tem relação direta<br />
com a luta pela igualdade de gênero.<br />
Segundo ela, as estatísticas apontam<br />
uma presença cada vez maior das mulheres<br />
em diferentes tipos de profissão<br />
e a reforma do ensino médio ameaça a<br />
continuidade desse avanço. "É uma reforma<br />
que limita a colocação futura<br />
no mercado de trabalho, além de comprometer<br />
escolhas que tenham como<br />
base disciplinas que serão eliminadas,<br />
como História, <strong>por</strong> exemplo", reflete.<br />
Para Lúcia, é im<strong>por</strong>tante lembrar<br />
que para ocupar os mesmos espaços<br />
e ganhar o mesmo salário, as mulheres<br />
precisam ter oito anos a mais de estudo<br />
que os homens. "Então a ocupação das<br />
escolas nasce de uma rebeldia, em<br />
uma perspectiva de vida e de realização<br />
social colocada pela juventude", analisa.<br />
Outro fato é que a chamada "primavera<br />
feminista" nas ocupações foi também<br />
uma resposta a um golpe dado à<br />
primeira presidenta eleita no Brasil.<br />
Para a estudante Bruna Helena, o governo<br />
de Michel Temer foi fruto de um<br />
golpe machista e misógino. "Já vivemos<br />
em um país em que é mais difícil<br />
para as mulheres. E esse governo começou<br />
de uma forma machista e assustadora",<br />
destaca Bruna.<br />
Girlene também lamenta o impacto<br />
desse golpe para a vida das mulheres.<br />
Segundo ela, se a população deu um<br />
passo atrás no governo golpista, as mulheres<br />
deram dois, três ou mais. A estudante<br />
diz que percebeu que o golpe<br />
era mais um ataque às mulheres <strong>por</strong><br />
deslegitimar a única presidenta mulher<br />
que tivemos. "Eu me senti atacada com<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
35
o golpe e não vou silenciar mais. E outras<br />
mulheres sentiram isso, mas não<br />
vamos ficar na defensiva. E a nossa<br />
forma de atacar não é como a deles.<br />
Nossa forma é construindo ocupações,<br />
despertando consciências", ressalta.<br />
Ocupar e resistir<br />
- o aprendizado que fica<br />
Se o governo ilegítimo de Temer<br />
focou em medidas contra o povo brasileiro,<br />
as sementes deixadas pelo movimento<br />
das ocupações fortalecem e<br />
inspiram resistência. As escolas voltaram<br />
com suas carteiras enfileiradas<br />
e o futuro é incerto para a educação<br />
pública e de qualidade.<br />
Girlene lamenta que as medidas<br />
contra a educação tenham sido aprovadas,<br />
como a reforma do Ensino<br />
Médio e a PEC 55, mas também fala<br />
sobre sua esperança: "Agora eu entro<br />
na sala de aula e penso: agora eu sou o<br />
que eu sempre quis ser, mesmo ainda<br />
vivendo nessa mesma sociedade.<br />
Trago um sentimento de continuar lutando<br />
para que outras mulheres sintam<br />
isso também. Sem falar na alegria<br />
de ser reconhecida <strong>por</strong> ter ajudado a<br />
construir a ocupação. Estamos nos<br />
dando as mãos pra continuar desconstruindo<br />
e fazendo um mundo melhor<br />
pra todo mundo", reflete.<br />
A voz da estudante de Curitiba Ana<br />
Júlia também ecoou esperança ao falar<br />
sobre o que as ocupações deixaram<br />
como aprendizado. "A ocupa me ensinou<br />
a trabalhar em conjunto, me ensinou<br />
que as coisas têm que ser feitas em<br />
grupo, me ensinou que nós podemos<br />
alcançar uma educação pública, de<br />
qualidade, me ensinou a prestar mais<br />
atenção nas coisas, a ver um lado político<br />
em tudo. Coisa mais maravilhosa<br />
do mundo foi ocupar a escola", recorda.<br />
Bruna também reconhece o legado<br />
das ocupações na construção de uma<br />
sociedade menos desigual e menos<br />
machista. "As gerações passadas lutaram<br />
pela libertação das mulheres e<br />
agora a gente vive uma geração em que<br />
as mulheres já se sentem mais livres,<br />
pelo menos as meninas que são feministas.<br />
Eu diria que a gente tá rejuvenescendo<br />
o debate e isso é im<strong>por</strong>tantíssimo",<br />
conclui.<br />
Começando a escrever esta re<strong>por</strong>tagem,<br />
<strong>por</strong> várias vezes, quase me referia<br />
às estudantes entrevistadas como meninas,<br />
assim como normalmente são<br />
chamadas as adolescentes. Mas o tempo<br />
desse trabalho foi suficiente para perceber<br />
que ser mulher, independente<br />
da idade, brota junto com a força e com<br />
a desconstrução diária de uma sociedade<br />
tão opressora. “Não se nasce mulher,<br />
torna-se mulher”. A famosa frase de Simone<br />
de Beauvoir é dedicada a essas<br />
milhares de estudantes, que se tornaram<br />
ainda mais mulheres na luta em defesa<br />
de uma educação libertadora.;<br />
“<br />
As gerações passadas<br />
lutaram pela libertação<br />
das mulheres<br />
e agora a gente<br />
vive uma geração em<br />
que as mulheres já se<br />
sentem mais livres<br />
36 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
Mídia Ninja<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
37
POR<br />
ARTIGO<br />
Viviene Adriana Xavier<br />
O hiato de gênero no<br />
desempenho em Matemática:<br />
o caso de Belo Horizonte<br />
38 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
“<br />
Durante cerca de<br />
450 anos, o trato de<br />
gênero na educação<br />
brasileira favoreceu<br />
os homens.”<br />
As mulheres lutaram e, <strong>por</strong>tanto,<br />
acumularam ao longo de séculos conquistas<br />
históricas. No campo educacional,<br />
a respeito da equidade entre<br />
homens e mulheres, existem diferenças<br />
expressivas entre a escolaridade das<br />
mulheres e dos homens brasileiros.<br />
No século 19, nós, mulheres, ainda buscávamos<br />
acesso à educação e, hoje, somos<br />
maioria nas universidades e possuímos<br />
maior nível de escolaridade do<br />
que os homens.<br />
Durante cerca de 450 anos, o trato<br />
de gênero na educação brasileira favoreceu<br />
os homens. Mas, na segunda<br />
metade do século XX, houve uma reversão<br />
e as mulheres ultrapassaram<br />
seus congêneres masculinos em termos<br />
de anos médios de escolaridade. Na<br />
década de 1960, os homens tinham escolaridade<br />
média de 1,9 ano e as mulheres<br />
1,7 ano. Já na década de 2000,<br />
as mulheres chegaram a 5,5 anos e os<br />
homens não passaram de 5,1 anos. 1<br />
Do ensino fundamental ao superior,<br />
no que concerne ao acesso, à permanência,<br />
à frequência escolar, à média<br />
de anos de estudos e a outros aspectos,<br />
a virada do hiato de gênero 2 foi favorável<br />
às mulheres. Contudo, paradoxalmente,<br />
quando comparadas com os homens<br />
nos resultados do desempenho em Matemática,<br />
nota-se uma inversão a favor<br />
destes. Essa relação convida-nos a refletir<br />
sobre as relações de gênero e o<br />
desempenho em Matemática.<br />
A opção teórica feita foi <strong>por</strong> definir<br />
o conceito de gênero 3 como elemento<br />
constitutivo das relações sociais, baseado<br />
em diferenças percebidas entre<br />
os sexos e como sendo um modo de<br />
significar relações de poder. O conceito<br />
de gênero é aqui compreendido enquanto<br />
categoria analítica, vendo como<br />
as identidades são construídas historicamente<br />
através dos discursos e como<br />
diferentes sentidos são atribuídos à<br />
diferença sexual.<br />
A Organização para Cooperação e<br />
Desenvolvimento Econômico (OCDE,<br />
2016) com base em dados do Programa<br />
Internacional de Avaliação de Alunos<br />
(Pisa), indica que meninas possuem<br />
melhor desempenho em Leitura e os<br />
meninos possuem performance superior<br />
em Matemática. O relatório mostra<br />
que em todos os países os meninos<br />
superam as meninas na prova de Matemática<br />
e que a diferença é de oito<br />
pontos a mais para eles.<br />
O público alvo desse Programa são<br />
jovens de 15 anos que vivem em 65 países.<br />
Quanto às possíveis causas das diferenças<br />
de desempenho, o relatório<br />
aponta que <strong>elas</strong> podem ser atribuídas<br />
menos à capacidade e mais às diferenças<br />
de autoconfiança de homens e mulheres<br />
durante o processo de aprendizagem.<br />
Estas diferenças também foram<br />
encontradas na realidade brasileira,<br />
tendo o relatório da OCDE apontado<br />
uma distância de 15 pontos nos resultados<br />
de desempenho nas provas do<br />
PISA, em que os meninos alcançaram<br />
385 pontos e as meninas, 370.<br />
Todavia, devido à extensão do território<br />
brasileiro e às disparidades sociais<br />
e econômicas encontradas, torna-se<br />
necessário realizar investigações<br />
que interroguem estes resultados e<br />
possam alargar a discussão. Neste sentido,<br />
o objetivo deste estudo foi o de<br />
mapear e comparar as escolas públicas<br />
estaduais de ensino fundamental em<br />
Belo Horizonte quanto ao hiato de gênero,<br />
em relação ao desempenho em<br />
Matemática, a partir dos resultados da<br />
Prova Brasil.<br />
Este estudo utilizou os microdados<br />
produzidos pelo Sistema de Avaliação<br />
da Educação Básica (Saeb), especificamente<br />
a Prova Brasil, de 2005, 2007,<br />
2009, 2011, 2013 e 2015. Ao longo das<br />
seis edições foram encontradas 121 escolas<br />
públicas estaduais que realizaram<br />
consecutivamente de 2005 a 2015 as<br />
avaliações da Prova Brasil, <strong>por</strong>tanto foram<br />
estas unidades escolares alvo desse<br />
estudo. A análise do desempenho em<br />
Matemática, a partir dos dados da Prova<br />
Brasil indica que do 5º para o 9º ano<br />
existe uma diferença crescente do hiato<br />
de gênero 4 , sendo assim o 9º foi anteposto<br />
referência neste estudo.<br />
Com esses dados foram construídas<br />
trajetórias para buscar compreender<br />
o hiato de gênero no desempenho<br />
em Matemática. Ao longo das seis edições<br />
a trajetória das médias de meninos<br />
e meninas indica que os meninos<br />
ao longo das seis edições invariavelmente<br />
obtiveram desempenho superior<br />
ao das meninas. Conforme<br />
demonstrado no gráfico.<br />
Tanto as meninas quanto os meninos,<br />
entre as edições de 2005 a 2013,<br />
possuíram trajetória crescente, com<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
39
TRAJETÓRIA DAS MÉDIAS DE DESEMPENHO EM MATEMÁTICA DE MENINOS E MENINAS<br />
EDIÇÃO PROVA BRASIL 2005 A 2015<br />
260,0635<br />
261,6183<br />
265<br />
254,5247<br />
253,4177<br />
254,5920<br />
246,7871<br />
247,0762<br />
249,8255<br />
252,4688<br />
251,0908<br />
248,8121<br />
243,8459<br />
240<br />
2005 2007 2009 2011 2013 2015<br />
Fonte: elaboração própria com dados da Prova Brasil 2005 a 2015<br />
destaque para este último. Na edição<br />
de 2013, ambos os sexos tiveram decréscimo<br />
na média de desempenho,<br />
contudo, comparativamente, os meninos<br />
caíram de 261,6 para 253,4 perfazendo<br />
uma queda de 8 pontos, já as meninas<br />
tiveram uma queda de 1 ponto. Na edição<br />
de 2015, os meninos registram uma média<br />
com uma pequena elevação quando<br />
comparada ao ano anterior, já as meninas<br />
possuem uma média menor do que<br />
a registrada em 2013 saíram de 251,0<br />
para 248,8 em 2015.<br />
No entanto, para que possamos verificar<br />
o hiato de gênero no desempenho<br />
em Matemática entre meninos e<br />
meninas ao longo das edições da Prova<br />
Brasil de modo mais apurado, este estudo<br />
realizou uma observação da trajetória<br />
das escolas.<br />
Nas seis edições, as 121 escolas tiveram<br />
suas trajetórias classificadas em<br />
seis tipos, como consta na Tabela ao<br />
lado. Ao longo das edições, 30 escolas<br />
foram identidades sem dados em uma<br />
ou mais edições da Prova Brasil, <strong>por</strong>tanto<br />
não foram consideradas nesta<br />
análise visto que o interesse era a trajetória<br />
ao longo do período.<br />
As escolas que possuem uma trajetória<br />
considerada “consistentemente<br />
positiva” são as que, ao longo das seis<br />
edições da Prova Brasil, apresentaram<br />
uma diferença no desempenho em Matemática<br />
favorável aos meninos. A trajetória<br />
que possui a maior incidência<br />
é a “Negativa em uma edição”, registrada<br />
em 34% das escolas analisadas, o que<br />
significa dizer que nessas escolas os<br />
meninos, em apenas uma das edições,<br />
tiveram desempenho inferior ao das<br />
meninas. Por outro lado, as escolas<br />
em que as trajetórias foram no maior<br />
número de vezes negativas para os meninos<br />
foram classificadas como “Negativa<br />
em quatro edições”, perfazendo<br />
apenas 7% do total das unidades escolares<br />
analisadas.<br />
TRAJETÓRIA DAS ESCOLAS<br />
PÚBLICAS ESTADUAIS DE BELO<br />
HORIZONTE QUANTO À DIFERENÇA<br />
NO DESEMPENHO EM<br />
MATEMÁTICA ENTRE MENINOS<br />
E MENINAS - 2005 A 2015<br />
Trajetória<br />
Total<br />
Consistentemente<br />
positiva 9%<br />
Diferença negativa<br />
em uma edição 34%<br />
Diferença negativa<br />
em duas edições 31%<br />
Diferença negativa em<br />
três edições 19%<br />
Diferença negativa em<br />
quatro edições 7%<br />
Total 100<br />
Fonte: elaboração própria com dados da<br />
Prova Brasil 2005 a 2015<br />
40 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
Ao analisarmos essa diferença <strong>por</strong><br />
unidade escolar observamos que nenhuma<br />
das escolas apresenta uma tendência<br />
de queda consistente da diferença.<br />
Ao longo das edições analisadas,<br />
todas as escolas apresentam oscilações<br />
de quedas e aumentos das diferenças<br />
entre meninos e meninas. Um aspecto<br />
interessante que poderá ser analisado<br />
em estudos futuros é o efeito de fatores<br />
sociais e escolares no desempenho<br />
desses alunos relacionando o hiato de<br />
gênero a outros indicadores sociais das<br />
escolas analisadas.<br />
As escolas com trajetória “Constantemente<br />
positiva” e “Negativa em<br />
quatro edições” são de especial interesse,<br />
<strong>por</strong>que se espera possivelmente<br />
encontrar nestas escolas um número<br />
de evidências quanto às características<br />
que possam levar a uma maior ou menor<br />
igualdade de gênero no desempenho<br />
em Matemática.<br />
Mapear o hiato de gênero no desempenho<br />
em Matemática constitui-se como<br />
um elemento para compreender como<br />
essa diferença no desempenho de gêneros<br />
guarda uma relação im<strong>por</strong>tante<br />
com a proeminência da Matemática na<br />
“<br />
Diferença no desempenho<br />
em Matemática<br />
entre gêneros<br />
possui relação<br />
com os arranjos<br />
sociais.”<br />
atualidade dentro e fora do espaço escolar,<br />
bem como o sucesso em Matemática<br />
é socialmente aceito como uma<br />
expressão de desenvolvimento do pensamento<br />
lógico e racional.<br />
Para Walkerdine a diferença desse<br />
desempenho de meninos e meninas<br />
possui relação com a maneira como<br />
ambos internalizam e naturalizam seus<br />
papéis sociais, enfatizam que expectativas<br />
relacionadas a funções sociais<br />
supostas, típicas de meninos e meninas,<br />
desempenham papel im<strong>por</strong>tante no<br />
processo social de construção de diferenças<br />
de desempenho em Matemática.<br />
Nessa perspectiva a diferença no<br />
desempenho em Matemática entre gêneros<br />
não está pautada em capacidades<br />
cognitivistas, sua base possui relação<br />
com os arranjos sociais. Uma outra interpretação<br />
possível seria a perspectiva<br />
cognitiva: Souza e Fonseca a criticam<br />
<strong>por</strong> considerar que essa visão corrobora<br />
com a ideia de que as mulheres possuem<br />
desempenho inferior ao dos homens<br />
em Matemática, <strong>por</strong>que possuem habilidades<br />
menores no desenvolvimento<br />
do pensamento lógico e matemático.<br />
O hiato de gênero no desempenho<br />
em Matemática precisa ser compreendido<br />
em um contexto o processo de<br />
socialização dos sujeitos que frequentam<br />
os bancos escolares não estão isentos<br />
de relações desiguais construídas<br />
socialmente entre homens e mulheres,<br />
em uma sociedade que historicamente<br />
tem favorecido os homens.<br />
Contudo, isto não significaria dizer<br />
que o que acontece no espaço escolar<br />
não possua o efeito de atenuar ou acentuar<br />
essas desigualdades. Especialmente<br />
ao refletirmos sobre a prática dos docentes,<br />
sujeitos que estão na linha de<br />
frente do processo educacional que ao<br />
desempenharem sua função, carregam<br />
todos os valores e crenças a respeito<br />
dos papéis de gênero em que podem,<br />
<strong>por</strong> consequência, reforçar ou romper<br />
expectativas quanto a esses papéis.;<br />
1 - ROSEMBERG, F.; MADSEN, N. Educação formal,<br />
mulheres e gênero no Brasil Contem<strong>por</strong>âneo. In:<br />
O Progresso das Mulheres no Brasil 2003–2010 /<br />
Organização: Leila Linhares Barsted, Jacqueline<br />
Pitanguy – Rio de Janeiro: CEPIA; Brasília: ONU<br />
Mulheres, 2011.<br />
2 - Segundo Rosemberg e Madsen (2011) no Brasil,<br />
a expressão consagrada tem sido hiato de gênero<br />
apesar de, conceitualmente, ser mais apropriada<br />
á expressão hiato de sexo <strong>por</strong> lidar com variáveis<br />
que buscam captar o sexo biológico entre as duas<br />
opções de resposta, seu oposto, e o desejável,<br />
seria a paridade de o<strong>por</strong>tunidades.<br />
3 - SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de<br />
análise histórica. Educação e Realidade. Porto<br />
Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995.<br />
LOURO, G. L. Educação e Gênero: a escola e a produção<br />
do feminino e do masculino. In: Reestruturação<br />
Curricular: teoria e pratica no cotidiano escolar.<br />
Petrópolis: Vozes, 1995.<br />
4 - ALVES, M. T. G.; SOARES, J.F.; XAVIER, F.P. Desigualdades<br />
Educacionais no Ensino Fundamental<br />
de 2005 a 2013: hiato entre grupos sociais. <strong>Revista</strong><br />
Brasileira de Sociologia, vol. 04, n. 07, jan. / jun.<br />
2016. Disponível em: . Acesso<br />
em 04 abril <strong>2017</strong><br />
5 - WALKERDINE, V. Ciência, Razão e a Mente Feminina.<br />
In: <strong>Revista</strong> Educação & Realidade, Porto<br />
Alegre, v. 32, n.1, p. 07-24, jan. / jun. 2007.<br />
6 - SOUZA, M.C.R.F.; FONSECA, M.C.F.R. Relações<br />
de gênero, Educação Matemática e discurso: enunciados<br />
sobre mulheres, homens e matemática.<br />
Belo Horizonte, autêntica, 2010.<br />
Viviene Adriana Xavier - Mestranda em<br />
Educação pela FaE/UFMG<br />
vivieneadriana@gmail.com<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
41
DIREITOS HUMANOS<br />
POR<br />
Débora Junqueira<br />
Longe<br />
de casa<br />
Refugiadas buscam reconstruir suas vidas no Brasil<br />
Para salvar suas vidas ou preservar<br />
direitos fundamentais como a liberdade,<br />
milhares de pessoas saem dos<br />
lugares em que pertencem para buscar<br />
refúgio, mesmo que esse deslocamento<br />
signifique muito sofrimento ou até<br />
mesmo risco de morte. Ao longo da<br />
história, conflitos, guerras e até mesmo<br />
desastres climáticos provocaram o deslocamento<br />
de pessoas pelo mundo<br />
numa corrente migratória que fez a<br />
humanidade ser o que é. Mas, atualmente,<br />
o problema dos grupos de re-<br />
fugiados tornou-se um fenômeno bastante<br />
preocupante em vários aspectos<br />
como a gravidade dos conflitos internos<br />
em diversos países que envolvem a<br />
geopolítica mundial, pela questão dos<br />
desrespeitos aos direitos humanos e<br />
pelo impacto da presença dos refugiados<br />
nas nações que os recebem.<br />
A questão dos/as refugiados/as ganhou<br />
grande repercussão na mídia<br />
quando passou a afetar o continente<br />
Europeu. Nos notíciários, chocam as<br />
cenas de pessoas que buscam sair de<br />
seus países a qualquer custo em embarcações<br />
lotadas e <strong>por</strong>ões de navios.<br />
Muitas mortas no mar ou presas em<br />
campos de refugiados dependendo de<br />
ajuda humanitária. Segundo dados de<br />
2015 da ONU, pelo menos 870 mil pessoas<br />
cruzaram o Mediterrâneo – vindas<br />
da Turquia ou de países no norte da<br />
África – e pelo menos 2.800 não concluíram<br />
as travessias.<br />
Certamente a cena mais marcante<br />
dos últimos tempos foi a do corpo de<br />
um menino sírio de três anos boiando<br />
42 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
Istock<br />
numa praia turca. O pai do menino foi<br />
o único sobrevivente da família, e voltou<br />
à Síria para enterrar os dois filhos e a<br />
esposa. A imagem correu o mundo,<br />
virou polêmica se devia ou não ter sido<br />
mostrada, mas de alguma forma chamou<br />
a atenção para o sofrimento de crianças,<br />
mulheres e famílias inteiras que sofrem<br />
as consequências de problemas políticos<br />
e/ou religiosos em seus países, na maioria<br />
das vezes agravados pelo intervencionismo<br />
imperialista.<br />
“<br />
“A batalha que se<br />
trava na Síria é <strong>por</strong><br />
uma nova ordem<br />
mundial...<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
43
“<br />
É comum as<br />
mulheres deixarem<br />
o país com<br />
as crianças.”<br />
Victor Moriyama<br />
O principal motivo da chegada de<br />
pessoas refugiadas ao continente<br />
europeu são os conflitos na África e no<br />
Oriente Médio, principalmente na<br />
Síria, que desde 2011 já deixou mais de<br />
400 mil mortos, 4,9 milhões de refugiados,<br />
mais de 6,3 milhões de<br />
deslocados internos e suas principais<br />
cidades em ruínas, sendo a maior<br />
crise de refugiados que o mundo já<br />
testemunhou. “A batalha que se trava<br />
na Síria é <strong>por</strong> uma nova ordem mundial<br />
— Não nos iludamos: o que<br />
estamos presenciando no Oriente<br />
Médio e na Síria em particular é a consolidação<br />
na prática do que vimos<br />
chamando de um novo mundo, multipolar<br />
e não mais unipolar, até hoje sob<br />
a égide e o comando dos Estados Unidos”,<br />
explica Lejeune Mirhan —<br />
sociólogo, escritor e arabista.<br />
Segundo Lejeune, ao contrário<br />
do que se noticia, não há uma guerra<br />
civil na Síria e sim países como Arábia<br />
Saudita, Catar e Turquia, com apoio<br />
dos EUA, atuando para derrubar o<br />
governo de Bashar al-Assad, que é<br />
anti-imperialista e a favor da Palestina.<br />
“A imprensa se refere a ele como<br />
ditador, mas ele está no poder há<br />
onze anos e há dois anos foi reeleito<br />
com a maioria dos votos. Sua popularidade<br />
é alta, acima de 83%”, explica.<br />
O sociólogo conta que na cidade de<br />
Allepo, três mil indústrias foram desmontadas<br />
pelos terroristas que, segundo<br />
ele, não são rebeldes e sim<br />
mercenários. “São grupos que recebem<br />
altos soldos para morrer na Síria.<br />
Eles também cometem abuso sexual<br />
contra as mulheres sírias.”, relata.<br />
Segundo ele, é comum as mulheres<br />
deixarem o país com as crianças em<br />
embarcações perigosas para a Europa<br />
e seus maridos ficarem.<br />
44 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
Vidas<br />
refugiadas<br />
Segundo o relatório “Mulher Sozinha<br />
– a Luta pela Sobrevivência das<br />
Refugiadas Sírias”, divulgado em 2014<br />
pelo Alto Comissariado das Nações<br />
Unidas para Refugiados (ACNUR), mulheres<br />
e crianças eram quase 80% dos<br />
2,8 milhões de sírios que já haviam<br />
sido registrados como refugiados. Na<br />
Síria, uma em cada quatro famílias de<br />
refugiados é chefiada <strong>por</strong> uma mulher.<br />
Conforme o relatório da organização<br />
não-governamental Anistia Internacional,<br />
publicado em janeiro de 2016,<br />
mulheres e meninas são vítimas de<br />
violência, ataques, exploração e assédio<br />
sexual em todas as etapas da jornada<br />
da Turquia até a Grécia e, depois, cruzando<br />
os Bálcãs. O destino d<strong>elas</strong>, assim<br />
como da maioria dos que buscam asilo<br />
na Europa, é a Alemanha. “Muitas disseram<br />
que em quase todos os países<br />
pelos quais passaram, viveram abusos<br />
físicos e exploração financeira, foram<br />
assediadas e pressionadas a ter relações<br />
sexuais com traficantes de pessoas,<br />
agentes de segurança e outros refugiados”,<br />
detalha o relatório. A falta de infraestrutura<br />
adequada também coloca<br />
as mulheres em risco. Num centro de<br />
recepção de refugiados na Alemanha,<br />
não havia banheiro e chuveiro femininos,<br />
e as mulheres eram obrigadas a<br />
dividir as instalações com homens.<br />
A situação de violência contra as<br />
mulheres refugiadas é mais um dos<br />
graves aspectos dessa tragédia de terríveis<br />
pro<strong>por</strong>ções que impõe desafios<br />
para toda a humanidade. “Quem mais<br />
sofre numa guerra e sobre quem a<br />
gente nunca fala são as mulheres. São<br />
<strong>elas</strong> que perdem os filhos, que sofrem<br />
o reflexo da perseguição ao marido,<br />
que ficam vulneráveis ao estupro e outras<br />
formas de violência e são <strong>elas</strong> que<br />
ficam invisibilizadas”, ressalta a advogada<br />
Gabriela Cunha Ferraz, coordenadora<br />
do CLADEM/Brasil (Comitê da<br />
América Latina e Caribe para a Defesa<br />
dos Direitos das Mulheres). Pensando<br />
nessas mulheres, Gabriela idealizou<br />
junto com o fotojornalista Victor Moriyama<br />
o projeto Vidas Refugiadas, que<br />
busca dar visibilidade e voz às mulheres<br />
que pedem refúgio e vivem hoje no<br />
Brasil. O projeto, que tem o apoio da<br />
Agência da ONU para Refugiados (AC-<br />
NUR) e da Organização Internacional<br />
do Trabalho (OIT), também inclui uma<br />
exposição de fotografias itinerante.<br />
Segundo Gabriela, em territórios<br />
que experimentam situações de guerra<br />
e conflito armado, as mulheres são<br />
sempre as que sofrem as mais graves<br />
violações “Como exposição da sua casa,<br />
da sua família e do seu próprio corpo<br />
Istock<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
45
que, não raramente, passa a ser mera<br />
moeda de troca no conflito. A objetificação<br />
dessas mulheres passa, muitas<br />
vezes, desapercebida p<strong>elas</strong> autoridades<br />
internacionais e poucas providências<br />
são tomadas para garantir a manutenção<br />
da sua dignidade. Em busca de salvar<br />
sua própria vida, essa mulher precisa<br />
fugir e é levada a tomar decisões<br />
duras, envolvendo a manutenção da<br />
sua liberdade, o futuro dos filhos e a<br />
preservação da sua família”. (Leia a entrevista<br />
completa)<br />
“<br />
Essa mulher<br />
precisa fugir e é<br />
levada a tomar<br />
decisões duras.”<br />
Victor Moryyama<br />
“Refugiada não<br />
é terrorista”<br />
A professora síria Mayada (foto) é<br />
uma das oito mulheres do projeto Vidas<br />
Refugiadas. Ela era diretora de Departamento<br />
na Universidade de Damasco,<br />
na Síria. 50 anos, casada e mãe de dois<br />
adolescentes, é refugiada reconhecida<br />
pelo Governo Brasileiro desde 2014.<br />
Conforme depoimento para o site do<br />
projeto (disponível em www.vidasrefugiadas.com.br),<br />
a motivação que acelerou<br />
a fuga da família de Mayada da<br />
Siria foi o brutal assassinato de um<br />
professor de educação física da Universidade<br />
de Damasco, à queima roupa,<br />
na saída do trabalho e na frente dos<br />
estudantes. Logo depois desse triste<br />
episódio, no dia em que sua filha mais<br />
velha prestaria vestibular, <strong>elas</strong> presenciaram,<br />
uma sequência de corpos mortos,<br />
expostos, ao longo da estrada. No<br />
caminho, a jovem teve uma crise nervosa<br />
e não conseguiu concluir sua prova.<br />
Sem enxergar outra possibilidade,<br />
a família da Mayada simplesmente<br />
fechou a <strong>por</strong>ta da casa e foi embora,<br />
deixando todos os seus pertences e<br />
bens materiais para trás. A única certeza<br />
do momento era que precisavam<br />
salvar suas vidas e queriam se manter<br />
o mais longe possível daquele cenário<br />
de guerra e constante instabilidade.<br />
Assim, em 2013, os quatro chegaram<br />
em São Paulo, onde foram informados<br />
que sua casa, em Damasco, havia sido<br />
bombardeada e completamente destruída.<br />
Hoje, tentam reerguer sua vida,<br />
aprender um novo idioma, ingressar<br />
em uma Universidade e trabalhar. “A<br />
refugiada não é terrorista. Queremos<br />
trabalhar e viver como seres humanos”,<br />
afirma em seu depoimento para<br />
o site do projeto.<br />
46 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
“O Brasil me escolheu”<br />
Outra mulher refugiada no Brasil<br />
acolhida pelo Projeto Vidas Refugiadas<br />
é Sylvie (foto), vinda da República Democrática<br />
do Congo (RDC), advogada,<br />
34 anos, casada e mãe de 4 filhos. É<br />
refugiada reconhecida pelo Governo<br />
Brasileiro desde 2014. Ao ser perguntada<br />
sobre como havia escolhido o<br />
Brasil para viver, ela disse: “o Brasil é<br />
que me escolheu” e contou sobre como<br />
saiu às pressas do Congo. Ela embarcou<br />
clandestinamente em um navio, salva<br />
pela solidariedade da tripulação. Na<br />
fuga, não houve tempo para recuperar<br />
sua filha mais velha, que estava na escola<br />
e ficou sob os cuidados da sua<br />
mãe. Por não ver a luz do sol, nunca<br />
soube dizer quantos dias durou sua<br />
viagem. Ao desembarcar, Silvye não<br />
foi informada do local onde estava e<br />
não podia imaginar que havia cruzado<br />
o Oceano Atlântico. Perplexa em razão<br />
da quantidade de pessoas brancas que<br />
viu na rua e desorientada <strong>por</strong> não poder<br />
se comunicar em francês, descobriu<br />
que havia chegado ao Brasil. Sem ter<br />
outra opção, Silvye dormiu dois dias<br />
na rua, com seus filhos, até encontrar<br />
um compatriota que a encaminhou<br />
para pedir ajuda em uma organização<br />
não governamental do centro de São<br />
Paulo. Segundo ela, a maior dificuldade,<br />
além da falta de dinheiro, foi a língua.<br />
Sylvie era casada com um militante<br />
político, quando recebeu, pelo telefone,<br />
a notícia da prisão arbitrária do marido,<br />
soube que precisava fugir do país <strong>por</strong>que,<br />
a partir daquele momento, toda<br />
sua família havia sido colocada em real<br />
perigo de vida. Já no Brasil, conseguiu<br />
reunir toda a família e teve mais um<br />
filho. “Estava sendo atendida em uma<br />
ONG, quando ouvi falarem o nome do<br />
meu marido. Nos reencontramos e,<br />
hoje, vivemos juntos com nossos filhos.<br />
Foi um milagre!”.<br />
A República Democrática do Congo<br />
(RDC) vive intensas conturbações políticas<br />
desde o início do seu processo<br />
de independência da Bélgica, em 1960.<br />
Chacinas, estupros de mulheres e os<br />
sequestros de crianças tornaram-se<br />
armas de guerra no Congo. É o maior<br />
e mais sangrento conflito desde a 2ª<br />
Guerra, sendo considerado o holocausto<br />
africano. A região leste da RDC se mantém<br />
ativa numa guerra que já dura três<br />
décadas, envolvendo milícias armadas,<br />
diferentes grupos étnicos e o exército<br />
dos países fronteiriços.<br />
De acordo com o Comitê Nacional<br />
para os Refugiados (Conare), o Brasil<br />
possuia, até abril de 2016, 8.863 refugiados<br />
reconhecidos, de 79 nacionalidades<br />
distintas (28,2% deles são mulheres)<br />
– incluindo refugiados reassentados.<br />
Os principais grupos são compostos<br />
<strong>por</strong> nacionais da Síria (2.298),<br />
Angola (1.420) e Colômbia (1.100). Re-<br />
Victor Moryyama<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
47
Istock<br />
pública Democrática do Congo (968) e<br />
Palestina (376). Isso sem contar populações<br />
em situação análoga ao refúgio,<br />
como os haitianos, vítimas de desastres<br />
naturais e da pobreza.<br />
O número total de solicitações de<br />
refúgio aumentou mais de 2.868% entre<br />
2010 e 2015 (de 966 solicitações em<br />
2010 para 28.670 em 2015). Em setembro<br />
de 2013, o Conare publicou a Resolução<br />
nº.17, que autorizou as missões diplomáticas<br />
brasileiras a emitir visto especial<br />
a pessoas afetadas pelo conflito na Síria,<br />
diante do quadro de graves violações<br />
de direitos humanos. Em 21 de setembro<br />
de 2015, a resolução teve sua duração<br />
prorrogada <strong>por</strong> mais dois anos.<br />
Com a mudança para o governo ilegítimo<br />
de Michel Temer, ainda não há<br />
uma definição concreta da política de<br />
acolhida dos/as refugiados/as. O Brasil<br />
está aberto para receber os/as refugiados/as,<br />
mas não oferece estrutura necessária.<br />
Responsabilidade que acaba<br />
na mão de organizações não-governamentais.<br />
O Instituto de Reintegração<br />
do Refugiado – Brasil (Adus), ONG que<br />
atua em São Paulo e Curitiba, tem projetos<br />
com aulas de <strong>por</strong>tuguês, inserção<br />
no mercado de trabalho, acompanhamento<br />
individual e acolhimento do/a<br />
refugiado/a considerando suas diversas<br />
necessidades, saúde mental, orientação<br />
jurídica, cultura e empreendedorismo.<br />
Segundo Carla Mustafa, diretora de<br />
Relações com Refugiados do Adus, o<br />
processo de adaptação envolve diversos<br />
fatores culturais, socioeconômicos, religiosos,<br />
psicológicos e jurídicos. “Questões<br />
como documentação, moradia,<br />
saúde, educação e emprego estão entre<br />
as maiores dificuldades enfrentadas<br />
pelos/as refugiados/as que tentam se<br />
integrar no país. Aprender a língua<br />
<strong>por</strong>tuguesa é um desafio que o/a refu-<br />
48 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
“<br />
A violência nas mais<br />
diversas formas é<br />
um dos fatores que<br />
motiva a solicitação<br />
de refúgio.”<br />
Victor Moryyama<br />
giado/a precisa ultrapassar para poder<br />
se inserir na sociedade e ter mais o<strong>por</strong>tunidades.<br />
Além disso, a discriminação,<br />
o racismo, a xenofobia e a intolerância<br />
religiosa também são obstáculos para<br />
a integração”, esclarece.<br />
Para Carla, as mulheres refugiadas<br />
enfrentam problemas não apenas p<strong>elas</strong><br />
diferenças culturais, mas <strong>por</strong>que a discriminação<br />
de gênero também é algo<br />
presente na sociedade brasileira. Quanto<br />
às mulheres, segundo ela, a violência<br />
nas mais diversas formas é um dos fatores<br />
que motiva a solicitação de refúgio,<br />
pois, juridicamente, só pode ser considerado<br />
refugiado quem sofre ou teme<br />
sofrer algum tipo de perseguição em<br />
razão de raça, religião, nacionalidade,<br />
grupo social, opiniões políticas ou graves<br />
violações de direitos humanos. “Refugiado<br />
é alguém forçado a sair de seu<br />
país <strong>por</strong> motivos de perseguição que<br />
busca proteção jurídica em outro país<br />
para garantir sua sobrevivência. Por<br />
esta razão, refúgio é um instituto internacional<br />
de proteção de direitos humanos<br />
reconhecido <strong>por</strong> 147 países, incluindo<br />
o Brasil. Já num contexto diverso,<br />
migrante é aquele que busca a<br />
mobilidade <strong>por</strong> vontade própria motivada<br />
<strong>por</strong> fatores econômicos, profissionais,<br />
pessoais, entre outros, mas não<br />
<strong>por</strong>que é perseguido ou corre risco de<br />
vida. Partindo-se desta premissa, a saída<br />
do país de origem do/a refugiado/a é<br />
algo inevitável, independentemente das<br />
condições socioeconômicas”, explica.<br />
O Brasil é signatário dos principais<br />
tratados internacionais de direitos humanos<br />
e é parte da Convenção das Nações<br />
Unidas de 1951 sobre o Estatuto<br />
dos Refugiados e do seu Protocolo de<br />
1967. O país promulgou, em julho de<br />
1997, a sua lei de refúgio (nº 9.474/97),<br />
contemplando os principais instrumentos<br />
regionais e internacionais sobre<br />
o tema. A lei adota a definição ampliada<br />
de refugiado, estabelecida na Declaração<br />
de Cartagena de 1984, que considera<br />
a “violação generalizada de direitos<br />
humanos” como uma das causas de<br />
reconhecimento da condição de refugiado.<br />
Em maio de 2002, o país ratificou<br />
a Convenção das Nações Unidas de<br />
1954 sobre o Estatuto dos Apátridas<br />
(pessoas que não possuem nacionalidade<br />
ou cidadania legal) e, em outubro<br />
de 2007, iniciou seu processo de adesão<br />
à Convenção da ONU de 1961 para a<br />
Redução dos Casos de Apatridia.<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
49
ENTREVISTA<br />
Gabriela Ferraz<br />
Arquivo pessoal<br />
“Refugiadas<br />
herdam a<br />
invisibilidade<br />
da mulher<br />
brasileira”<br />
O que é o Projeto Vidas Refugiadas<br />
e qual a motivação para a sua<br />
criação?<br />
O Projeto Vidas Refugiadas nasceu da<br />
necessidade de colocarmos as mulheres<br />
no centro da problemática do refúgio.<br />
Sempre que falamos em deslocamento<br />
de pessoas, evidenciamos a presença<br />
majoritária dos homens. Porém, no<br />
Brasil, as mulheres refugiadas já somam<br />
30% nas estatísticas e esse universo<br />
precisa ser visibilizado desde a perspectiva<br />
da garantia dos direitos da mulher<br />
e seu processo de integração. O<br />
projeto começou a ser desenhado em<br />
encontros femininos que fazíamos para<br />
conversar e trocar experiências. A<br />
partir desses encontros, decidimos que<br />
deveríamos contar algumas histórias<br />
no intuito de sensibilizar a sociedade<br />
brasileira para o tema da mulher refugiada.<br />
E, com base neste objetivo, percebemos<br />
que a fotografia seria um<br />
lindo veículo para transmitir a mensagem<br />
da tolerância e do respeito.<br />
Por que o recorte de gênero?<br />
Como disse, as mulheres refugiadas<br />
acabam herdando a invisibilidade da<br />
mulher brasileira. O deslocamento forçado<br />
é sempre um drama, mas, no<br />
caso das mulheres, a situação piora. É<br />
a mulher que perde os filhos e os maridos<br />
nos combates. É a mulher que<br />
sofre as mais bárbaras violações de direitos<br />
humanos, incluindo violações<br />
ao seu próprio corpo, no país de origem,<br />
no trânsito e no país de acolhida. Precisamos<br />
ser vigilantes <strong>por</strong>que o Brasil<br />
ainda não viveu uma ruptura do seu<br />
machismo estrutural e isso reflete diretamente<br />
nas políticas públicas de<br />
atenção às mulheres refugiadas. Nós<br />
queremos falar de gênero <strong>por</strong>que essas<br />
mulheres, além de serem exemplos de<br />
vida, têm muito para falar.<br />
50 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
Quem são as mulheres refugiadas e<br />
o que <strong>elas</strong> relatam sobre os dramas<br />
vividos em seus países ?<br />
As mulheres refugiadas sao guerreiras.<br />
Mulheres que atravessaram oceanos,<br />
continentes, em busca de salvar suas<br />
vidas e a dos seus filhos. Mulheres que<br />
sentiram medo — como todas nós, e<br />
precisaram se deslocar deixando sua<br />
vida e sua história para trás. Cada mulher<br />
do projeto tem uma história diferente<br />
de perseguição. Algumas d<strong>elas</strong><br />
fugiram de casamentos forçados, outras<br />
de situações de violência generalizada<br />
como acontece na Síria ou no Congo,<br />
outras <strong>por</strong> questões políticas e, ainda,<br />
<strong>por</strong> razões religiosas. Todas viveram<br />
situações absurdas de violência e, hoje,<br />
tentam recomeçar a vida da forma que<br />
a vida se apresenta.<br />
Como você evidencia os preconceitos<br />
<strong>por</strong> que passam as refugiadas? Ocorre<br />
somente pelo fato de serem mulheres<br />
ou também <strong>por</strong> questões culturais<br />
e religiosas?<br />
O grande problema não são as questões<br />
culturais ou religiosas. O problema do<br />
Brasil é o racismo e o machismo que<br />
estão entranhados na nossa sociedade<br />
e no seio das nossas instituições. O<br />
país não viveu sua ruptura e, com isso,<br />
segue repetindo os mesmos padrões<br />
de com<strong>por</strong>tamento que leva à desigualdade,<br />
à segregação e a diversas formas<br />
de violência. As refugiadas são,<br />
em sua maioria, negras e, <strong>por</strong> isso, sofrem<br />
duplamente. Não podemos falar<br />
em integraçao de refugiados sem falar<br />
em racismo.<br />
Por que essas pessoas escolheram o<br />
Brasil para viver?<br />
Quando falamos em refúgio, não falamos<br />
em escolha. Diferente de um imigrante<br />
— que consegue fazer um planejamento<br />
mínimo, antes de se deslocar, a refugiada<br />
é aquela que precisou sair do seu país<br />
de origem levando muito pouco, ou quase<br />
nada, na bagagem. A refugiada vai<br />
chegar aonde conseguir ir e, de preferência,<br />
o mais longe possível do seu<br />
país de origem. O Brasil passou a ser<br />
uma possibilidade de rota quando a Europa<br />
passou a fechar suas fronteiras.<br />
As pessoas seguem se deslocando, o<br />
número de guerras aumenta e as estatísticas<br />
se agravam. Se uma parte do<br />
mundo fecha os olhos para o problema,<br />
outra parte vai precisar acolher essa<br />
população de forma mais intensa. Apesar<br />
de não ser uma escolha propriamente<br />
dita, todas as refugiadas sempre<br />
narram que o Brasil se tornou uma opção<br />
<strong>por</strong> não haver histórico de guerra.<br />
Como você avalia as políticas públicas<br />
para a integração dos refugiados<br />
no Brasil?<br />
As políticas públicas de integração de<br />
refugiados são claramente insuficientes.<br />
No ano de 2015 e começo de 2016, conseguimos<br />
avançar em algumas pautas<br />
que favoreceram a integração de pessoas<br />
em deslocamento no nosso país<br />
como, <strong>por</strong> exemplo, o acesso às universidades<br />
e ao Pronatec. Porém, hoje,<br />
posso dizer que estamos retrocedendo<br />
no pouco que avançamos. As políticas<br />
estão paralisadas e não acompanham<br />
o dinamismo do fluxo de pessoas. Hoje,<br />
um solicitante de refúgio aguarda, em<br />
média, 3 a 4 anos, apenas para receber<br />
seu documento <strong>por</strong>que o Ministério<br />
da Justiça não designa um orçamento<br />
digno e uma equipe capacitada e dedicada<br />
à análise destes casos. Atualmente,<br />
o processo de refúgio nao é uma pauta<br />
levada a sério no Brasil. Veja bem! Eu<br />
estou falando apenas do direito fundamental<br />
a receber uma identificação,<br />
sem entrar na disputa dos direitos sociais<br />
e econômicos que, diga-se de passagem,<br />
também devem ser integralmente<br />
assegurados. Infelizmente, ainda<br />
não saimos do estágio da proteção aos<br />
refugiados e, <strong>por</strong> isso, não conseguimos<br />
avançar nas políticas de integração<br />
que, na lógica natural, deveriam ser<br />
um passo posterior.<br />
Quais os efeitos desse projeto para<br />
as mulheres que vocês deram voz?<br />
Há algum relato de reconstrução da<br />
vida ou identidade?<br />
Cada mulher tem a sua dificuldade.<br />
Aos poucos vamos conseguindo avançar,<br />
mas o processo é lento e sofrido.<br />
O primeiro passo é obter a documentação<br />
de refugiada no Brasil. Das 8 mulheres<br />
do projeto, ainda temos duas<br />
que ainda não receberam um posicionamento<br />
do Ministério da Justiça e<br />
aguardam decisão. Outro passo é tentar<br />
garantir o equilíbrio emocional dessas<br />
mulheres, através de atendimentos de<br />
saúde mental que são oferecidos <strong>por</strong><br />
amigos voluntários que se solidarizam<br />
com a causa. Outra fase é tentar aproximar<br />
as famílias que, durante a fuga,<br />
se perderam. Neste sentido, no ano<br />
passado conseguimos trazer a filha de<br />
uma d<strong>elas</strong> ao Brasil e, hoje, lutamos<br />
para conseguir os vistos para os filhos<br />
da nigeriana Nckechinyere Jonathan.<br />
O processo de se readaptar em um<br />
novo país é penoso, mas, aos poucos,<br />
<strong>elas</strong> estão conseguindo vencer <strong>por</strong> si<br />
próprias e se estabelecer enquanto<br />
mulheres, profissionais e mães.;<br />
Gabriela Ferraz - Advogada, militante, mestra em<br />
Direitos Humanos pela Universidade de Estrasburgo,<br />
coordenadora nacional do Comitê Latino Americano<br />
para Defesa do Direito da Mulher CLADEM/Brasil e<br />
realizadora do Projeto Vidas Refugiadas.<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
51
Carina Santos<br />
“<br />
A tragédia<br />
ainda não<br />
terminou”<br />
52 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
MEIO AMBIENTE<br />
POR<br />
Carina Santos<br />
Da lama<br />
à luta<br />
Mulheres atingidas <strong>por</strong> um dos maiores crimes<br />
socioambientais do país reescrevem uma nova história de vida<br />
Após atravessar mais de 140 quilômetros,<br />
eu e o motorista Samuel saímos<br />
de Belo Horizonte e chegamos a Barra<br />
Longa, município próximo a<br />
Mariana/MG, uma das tantas comunidades<br />
atingidas pelo “tsunami” de<br />
lama, em novembro de 2015. Era um<br />
sábado ensolarado e já na entrada da<br />
cidade as moradoras Simone e Odete<br />
nos esperavam. O sol forte iluminava<br />
essas mulheres e o sorriso em cada<br />
rosto. Senti que para <strong>elas</strong> era uma missão<br />
estar ali, abertas a contar uma história,<br />
ainda tão escamoteada pela grande<br />
mídia: o rompimento das barragens<br />
da mineradora Samarco e suas acionistas<br />
Vale e BHP Billiton é considerado<br />
um dos maiores crimes socioambientais<br />
da história e suas marcas ainda<br />
estão presentes em milhares de vidas<br />
impactadas pela tragédia.<br />
Nos abraçamos e eu disse o quanto<br />
a cidade me parecia bonita. Simone<br />
logo nos disse: “Acho que a primeira<br />
coisa que vocês precisam ver é o que a<br />
Samarco fez com aquela lama toda.<br />
Isso a Globo não mostra.” Quase dois<br />
anos depois do crime, nos deparamos<br />
com grandes montes de lama de rejeitos.<br />
O cheiro, a cor, a poeira e os grandes<br />
caminhões circulando deixaram a<br />
certeza de que a tragédia ainda não<br />
terminou. Parecia cenário, mas era<br />
real. A lama ainda assombra a vida<br />
dessas pessoas. Simone e Odete contaram<br />
que a Samarco fez de tudo para<br />
limpar o centro da cidade, para passar<br />
uma imagem de que tudo estava resolvido.<br />
“O que eles fizeram foi trazer a<br />
lama pra cá, que é a região mais vulnerável<br />
da cidade. Então os mais pobres<br />
têm que sofrer com essa lama?”, questiona<br />
Odete. O espaço é o Parque de<br />
Exposições do município, uma área<br />
grande onde se realizavam eventos.<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
53
Com a saúde da filha afetada, Simone luta <strong>por</strong> indenizações.<br />
Carina Santos<br />
disse que desde que levaram a lama<br />
para lá, as(os) moradoras(es) perderam<br />
a liberdade que tinham no lugar, sobretudo<br />
as mulheres, já que majoritariamente<br />
são homens de outras cidades<br />
que trabalham para a Samarco. Por<br />
fim, Ana Paula desabafa que a única<br />
coisa que a empresa propõe é pagar<br />
um aluguel para as pessoas do local.<br />
“Não quero me separar das outras famílias.<br />
Aqui a gente vive como comunidade,<br />
sempre tínhamos encontro neste<br />
espaço. Meu filho jogava bola aqui<br />
com outros meninos. Não quero me<br />
separar das pessoas daqui”, afirmou.<br />
Ana Paula não quis tirar fotos e respeitei.<br />
Mas a imagem dessa mulher<br />
era marcante. Um lindo rosto negro,<br />
aquele olhar profundo quando olhava<br />
o entorno do seu lugar, uma voz de<br />
calmaria e de força. Quantas memórias<br />
de Ana Paula e daquela gente a lama<br />
da Samarco ainda soterra? Qual o sabor<br />
daqu<strong>elas</strong> verduras desde que a poeira<br />
invadiu o lar dessa família? O que é<br />
ser mulher neste cenário em que a<br />
tragédia é revivida a cada instante?<br />
Em torno vivem famílias, que hoje<br />
convivem a poucos metros dos rejeitos<br />
e de tudo que eles trazem. Onde havia<br />
festas, encontros, futebol e alegria,<br />
agora é depósito de lama.<br />
Passamos em frente a uma das casas<br />
e uma mulher estava ali sentada. Seu<br />
olhar estava distante, em direção ao<br />
varal cheio de roupas estendidas. “Ana<br />
Paula, quer falar com a repórter? Vem<br />
dizer das coisas que vocês estão passando<br />
aqui!”, gritou Simone. Ela se demonstrando<br />
um pouco tímida desceu<br />
o terreiro e só aceitou falar. Não queria<br />
filmagem, nem fotografia. Disse que tinha<br />
muita roupa no varal <strong>por</strong>que só<br />
pode lavar aos sábados, quando os funcionários<br />
da Samarco não estão trabalhando<br />
ali. Durante a semana, segundo<br />
ela, é tanta poeira subindo que não vale<br />
a pena. Suja tudo de novo. Em pouco<br />
tempo de conversa, Ana Paula Santos<br />
contou que como dona de casa seu serviço<br />
tem triplicado. “Preciso limpar a<br />
casa várias vezes, é muita poeira que<br />
fica aqui”, afirmou. A grande horta que<br />
ela cultiva na entrada da casa também<br />
pega toda essa poeira, mas é uma produção<br />
necessária para a subsistência<br />
da família. “Eu não sou reconhecida<br />
pela Samarco como atingida, então não<br />
recebo nada. Preciso da horta para colher<br />
parte do alimentos, como eu já<br />
fazia antes”, conta. Ana Paula também<br />
No fundo no quintal<br />
Saindo de perto de toda aquela<br />
lama, Odete nos convidou à sua casa.<br />
Na entrada, estava sua mãe Dona Francisca<br />
e o pai, Seu João, observando a<br />
rua em uma cadeira de balanço. Lado<br />
a lado. Cada um com seus 88 anos, há<br />
mais de 60 anos casados. Dona Francisca<br />
logo começou a me contar que na<br />
região tinha muita capivara e que é<br />
uma carne muito gostosa. Também<br />
me disse que depois de tanta lama na<br />
cidade ela teve uma alergia muito forte<br />
e que seu corpo coçava muito. “Tive<br />
que cuidar com a erva de bicho, você<br />
54 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
conhece? A gente tá vivendo igual<br />
índio para sarar das coisas”, contou<br />
com um sorriso. Descendo para conhecer<br />
o quintal da casa, Odete me<br />
contou que depois da tragédia seus<br />
pais passaram <strong>por</strong> uma confusão mental<br />
muito grande, de ansiedade, desespero.<br />
Ainda hoje Odete precisa estar<br />
atenta aos cuidados deles, além de cuidar<br />
das suas próprias angústias deixadas<br />
com o crime da Samarco.<br />
O Rio do Carmo, um dos formadores<br />
do Rio Doce, passa no fundo do<br />
quintal de Odete. Enquanto víamos a<br />
água turva descendo, ela se lembrava<br />
que ali eles sempre faziam churrasco<br />
e pescavam aos finais de semana, os<br />
netos brincavam na beira da água e a<br />
alegria era garantida. Retrato comum<br />
em um lugar onde o rio faz parte da<br />
construção histórica e afetiva de quem<br />
mora ali. Assim como no fundo do<br />
quintal de Odete, em vários outros<br />
quintais o rio era vivo, como um membro<br />
da família. Rio do alimento, do<br />
lazer, da limpeza, da relação com a natureza.<br />
O rio está morto e em cada<br />
casa se sente um clima de adeus.<br />
Quando perguntei do quintal, os<br />
olhos dela brilhavam olhando para<br />
aquele pedaço de terra ainda cheio de<br />
minério: “Aqui eu plantava tanta coisa.<br />
Tinha minha horta, acerola, inhame,<br />
quiabo, chuchu, graviola e até lichia”,<br />
detalhou. Disse-me que está tentando<br />
plantar de novo, mas que nessa terra<br />
ela sabe que as plantas não vão vingar.<br />
Indignada, mostrou-me um ramo do<br />
pezinho de laranja, ainda pequeno e<br />
aparentemente sem força. “Tá vendo<br />
as folhas enferrujadas? Essa terra adoece<br />
as plantas”, disse.<br />
Odete também revelou que antes da<br />
tragédia ela já passava <strong>por</strong> um princípio<br />
de depressão. Depois daquele novembro<br />
“<br />
Essa terra<br />
adoece as<br />
plantas”<br />
Carina Santos<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
55
de 2015, a doença se agravou e hoje ela<br />
toma mais do dobro de remédios para<br />
dar conta. “É muito difícil conviver com<br />
isso. Me dá muita tristeza não ter a<br />
vida que a gente tinha aqui antes. Eu tô<br />
tendo que ter muita força para seguir”,<br />
lamentou. Nota-se a tristeza, mas a cada<br />
instante com essas mulheres eu percebia<br />
também a esperança. A caminhada sob<br />
um sol forte mostrava-me o quanto <strong>elas</strong><br />
representam muitas das atingidas que<br />
estão na luta <strong>por</strong> seus direitos e <strong>por</strong><br />
suas memórias.<br />
Carina Santos<br />
Bordando resistências<br />
Passando pelo centro da cidade,<br />
um faixa estendida na sacada da varanda<br />
dizia: “Indignação! Casa de 1923,<br />
tombada pelo patrimônio. Descaso da<br />
Samarco.” A casa é da artesã Maria<br />
Aparecida Lanna (foto), mais conhecida<br />
como Pice. Ela nos recebeu e mostrou<br />
as trincas nas paredes, provocadas<br />
pelo alto fluxo de caminhões e uso de<br />
maquinaria na região. Contando sobre<br />
o dia da tragédia, Pice relatou que a<br />
lama invadiu seu quintal e emocionada<br />
disse que é muito triste reviver essa<br />
cena. O acontecido impactou seu trabalho<br />
como bordadeira e também o<br />
trabalho que ela desenvolvia com mulheres<br />
de outras comunidades próximas.<br />
“O trabalho teve que parar <strong>por</strong>que<br />
não tinha como <strong>elas</strong> atravessarem a<br />
ponte para chegar aqui. Foi um impacto<br />
muito grande. Eu ficava desesperada<br />
sem saber o que ia acontecer”, relata.<br />
Pice também conta que depois da tragédia<br />
a Samarco colocou tapumes em<br />
torno das casas e não era possível conversar<br />
com os vizinhos, com as pessoas<br />
com quem sempre houve uma relação<br />
próxima, já que o centro da cidade<br />
virou um canteiro de obras, repleto de<br />
pessoas desconhecidas. Emocionada,<br />
lembrou de como esses dias pós-tragédia<br />
foram traumáticos.<br />
Assim como as demais mulheres,<br />
Pice traz no olhar a indignação e tristeza<br />
com tudo que ocorreu e ainda<br />
ocorre. Mas foi nesta casa, junto também<br />
à Simone e Odete, que eu descobri<br />
a força histórica que as mulheres de<br />
Barra Longa carregam. “Aqui em Barra<br />
Longa as mulheres aprenderam a ser<br />
muito independentes. São poucas as<br />
mulheres que deixam de fazer alguma<br />
coisa <strong>por</strong> causa do marido. Eu não conheço.<br />
Se você quer fazer alguma coisa<br />
na cidade, procura as mulheres. Toda<br />
ação que tem aqui são as mulheres<br />
que tomam a frente e os homens respeitam”,<br />
ressaltou. <strong>Elas</strong> afirmaram que<br />
o bordado acabou construindo uma<br />
independência e protagonismo na vida<br />
das mulheres, já que sempre estavam<br />
reunidas, além de fortalecer a própria<br />
geração de renda e romper com a dependência<br />
financeira.<br />
Sobre a arte do bordado, Pice, que<br />
já tem seu trabalho reconhecido internacionalmente,<br />
disse que sempre<br />
foi influenciada p<strong>elas</strong> histórias da própria<br />
cidade. As paisagens, versos e frases<br />
que remetem à atmosfera do lugar<br />
são fontes de inspiração. E para ela,<br />
seguirá sendo. A tragédia deixou marcas,<br />
mas não vai abalar seu trabalho.<br />
“A lama não vai chegar ao meu bordado.<br />
Vou continuar bordando as coisas boas<br />
da nossa cidade”, enfatizou.<br />
56 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
As mãos dessas mulheres agora<br />
também bordam resistências. O<br />
tempo muitas vezes dividido entre os<br />
afazeres de casa e o artesanato, hoje é<br />
um tempo que se concilia com a mobilização<br />
em busca de direitos. Seguindo<br />
a caminhada pela cidade, conhecemos<br />
Marta Rôla Mol (foto), professora<br />
aposentada, que fortalece a trincheira<br />
das mulheres impactadas. Conta que<br />
começou a participar das reuniões organizadas<br />
pelo Movimento de Atingidos<br />
e Atingidas <strong>por</strong> Barragens (MAB)<br />
<strong>por</strong> querer mudar a situação da cidade,<br />
ajudando também outras pessoas que<br />
foram mais impactadas. O MAB ampliou<br />
a luta na cidade e ela afirma que<br />
a maioria das pessoas que hoje participam<br />
ativamente da comissão local é<br />
formada <strong>por</strong> mulheres. “Homem tem<br />
mais dificuldade de conciliar as coisas,<br />
fala que tá cansado depois do trabalho,<br />
que tem outras coisas para fazer. Aí a<br />
gente assume mesmo”, comenta.<br />
E a teoria de Marta foi mesmo se demonstrando<br />
real. Algumas casas à<br />
frente, Simone apresentou-me à dona<br />
Eva, mais uma mulher que borda resistência<br />
frente às ações da Samarco. Eva<br />
Helena, dona de casa, perdeu tudo com<br />
a chegada da lama. Segundo ela, não<br />
houve tempo de salvar nada. Debruçada<br />
sobre a janela antiga, contou que<br />
mora nessa casa alugada e que é difícil<br />
se acostumar. “A gente fica com o emocional<br />
abalado. Tenho muita saudade<br />
de onde eu vivia, de como eu vivia”, afirmou.<br />
Mais tristeza transformada em<br />
força. Eva participa ativamente das reuniões<br />
<strong>por</strong>que quer ter sua casa reconstruída.<br />
Quando eu me preparava para<br />
fotografá-la, vejo se aproximando uma<br />
menina de olhos grandes e sorriso<br />
largo. Era sua neta Larissa, de 14 anos.<br />
E confirmando mais uma vez a teoria<br />
de Marta, Larissa também já participa<br />
da mobilização local e conta da sua alegria<br />
em frequentar as reuniões e participar<br />
das ações do comitê das/os<br />
atingidas/os. “Eu gosto demais de participar,<br />
de saber mais sobre as coisas<br />
que estão acontecendo. Também tenho<br />
saudade da minha casa e quero voltar<br />
“<br />
pra lá,” ressaltou. A casa de Eva e Larissa<br />
ainda está sendo reconstruída<br />
pela Samarco, mas <strong>elas</strong> demonstram o<br />
incômodo com relação à demora, lembrando<br />
que a tragédia já vai completar<br />
dois anos. Tempo demais para a saudade,<br />
certamente ausente nas contas e<br />
planilhas da mineradora.<br />
Companheira me ajuda, que eu não posso andar só.<br />
Eu sozinha ando bem, mas com você ando melhor"<br />
Carina Santos<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
57
Eva e a neta Larissa participam das mobilizações contra a Samarco.<br />
O sol que ardia durante o dia agora<br />
já era suave. O dia se despedia. O pôr<br />
do sol coloria o rio sujo e, em meio a<br />
tanta revolta, aquela luz alaranjada das<br />
cinco trazia esperança e alegria. A parada<br />
final seria na casa da Simone, anfitriã<br />
com quem comecei as primeiras<br />
conversas, ainda <strong>por</strong> telefone. Chegando<br />
à sua rua, senti o mesmo cheiro<br />
forte de onde a lama está depositada.<br />
Ela me contou que a Samarco está<br />
usando os rejeitos para calçar as ruas<br />
da cidade, como uma forma de “recompensar”<br />
os males. Mas os males só<br />
têm se multiplicado. Simone contou<br />
que sua filha Sofia, de dois anos, tem<br />
tido problemas respiratórios sérios<br />
desde que essas obras começaram.<br />
Buscou os atestados médicos em que<br />
estava relatado que as complicações<br />
pulmonares eram recorrentes da inalação<br />
de substâncias como o minério.<br />
“Foi uma luta cuidar do tratamento da<br />
minha filha e a Samarco não me reconhece<br />
como afetada. Não recebo nem<br />
um real deles”, afirmou.<br />
Simone também relata que a tragédia<br />
impactou seu emocional, sua<br />
casa em si não foi afetada pela lama,<br />
mas dos seus familiares sim. Além dos<br />
objetos que se foram, também muita<br />
memória. “Na casa da minha vó tínhamos<br />
fotos de tantos momentos, da nossa<br />
história, tudo se perdeu. Minha família<br />
sempre tão unida hoje quase não<br />
se encontra todo mundo. Os que foram<br />
afetados a Samarco mandou para outros<br />
lugares. Foi uma separação”, lamenta.<br />
Para ela, a questão psicológica é muito<br />
marcante e gera preocupação. “Eu nunca<br />
achei que teria que tomar remédio<br />
controlado na vida. Depois de tudo que<br />
aconteceu, eu tive sim que tomar. Ficava<br />
muito ansiosa, triste, foi difícil lidar<br />
com aquilo.”<br />
Enquanto Simone contava-me sobre<br />
os impactos, Sofia pedia o colo da<br />
mãe.Amamentando a filha, disse-me<br />
o quanto quer continuar lutando <strong>por</strong><br />
seus direitos e pelos direitos das pessoas<br />
que sofreram com essa tragédia.<br />
“A Samarco é uma criminosa, nós temos<br />
que seguir mobilizadas nesta luta, as<br />
coisas não podem ficar assim como<br />
eles querem.”<br />
A professora reforçou a preocupação<br />
com as mulheres afetadas. Segundo ela,<br />
os casos de alcoolismo aumentaram e<br />
isso repercute em mais casos de violência<br />
doméstica. Além disso, enfatiza<br />
que com o grande número de homens<br />
que trabalham para a Samarco na cidade,<br />
os casos de assédio contra as mulheres<br />
têm aumentado. Para ela, a sobrecarga<br />
também é visível. “Nós mulheres, já estamos<br />
neste lugar do cuidado. Com<br />
tudo isso, ficamos mais atentas com a<br />
família, com os filhos”, afirma.<br />
Simone Silva, professora de Artes<br />
e Odete Cassiano, dona de casa. Duas<br />
mães, trabalhadoras que fizeram da<br />
tristeza, luta e hoje integram o MAB,<br />
conscientizando e ajudando intensamente<br />
na mobilização da comunidade.<br />
Já anoitecendo e me despedindo, per-<br />
58 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
cebi que de fato o dia foi uma missão<br />
para essas mulheres, compromisso de<br />
revelar que o crime da Samarco não<br />
pode ser só resumido a números. É<br />
um crime contra memórias, sentimentos,<br />
intimidades e cotidianos. Um crime<br />
que não deve ser só relembrado em<br />
datas específicas. Ele está presente a<br />
cada instante, em cada olhar.<br />
Essas mulheres dedicaram todo<br />
um dia para compartilhar suas histórias<br />
e dar voz a outras mulheres que<br />
também assumem essa batalha contra<br />
a tirania da mineradora Samarco e de<br />
toda a tragédia que continua escorrendo<br />
com a lama ao longo de todo o<br />
Rio Doce. E assim como <strong>elas</strong>, milhares<br />
de mulheres que vivem a dor de um rio<br />
morto, encontram forças para reconstruir<br />
uma história de protagonismo e<br />
igualdade.<br />
“Dossiê mulheres na lama e luta”<br />
Em maio deste ano, as jornalistas<br />
Isis Medeiros e Agatha Azevedo<br />
escreveram para a rede Jornalistas<br />
Livres o “Dossiê mulheres na<br />
lama e na luta”, que demonstra o<br />
quanto as mulheres seguem sendo<br />
as mais afetadas pela tragédia.<br />
De uma forma geral, os impactos<br />
já começam com a construção das<br />
barragens. O texto revela que “segundo<br />
o Movimento dos Atingidos<br />
<strong>por</strong> Barragens (MAB), existem relatos<br />
de norte a sul do país que mostram<br />
problemas como perda dos trabalhos<br />
geradores de renda, desagregação<br />
da comunidade, aumento da prostituição<br />
e da violência e diversos outros<br />
impactos particularmente graves<br />
para as mulheres. A mesma constatação<br />
apareceu em 2010 em um relatório<br />
do Conselho de Defesa dos<br />
Direitos da Pessoa Humana [atual<br />
Conselho Nacional de Direitos Humanos]<br />
sobre violações de direitos<br />
na construção de barragens: ‘As mulheres<br />
são atingidas de forma particularmente<br />
grave e encontram maiores<br />
obstáculos para recomposição<br />
de seus meios e modos de vida’, diz<br />
o documento.”<br />
Além de já sofrerem com a construção<br />
de barragens, milhares de<br />
mulheres ao longo da Bacia do Rio<br />
Doce hoje continuam sofrendo com o<br />
rompimento da barragem de Fundão.<br />
Entre tantos casos de violação às mulheres,<br />
o dossiê destaca a política patriarcal<br />
da Samarco e de outras empresas<br />
envolvidas com relação ao gerenciamento<br />
das indenizações. O texto<br />
destaca:<br />
“O promotor Guilherme Meneghin<br />
conta que somente no município de<br />
Mariana, 345 cartões de compensação<br />
foram distribuídos às famílias atingidas<br />
em Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo.<br />
Destes, ele calcula que em 20% dos<br />
casos a Samarco “agiu com irresponsabilidade,<br />
repassando o cartão e a<br />
chefia da família para o homem, ao<br />
contrário do que recomendamos”. Letícia<br />
Oliveira, membro da coordenação<br />
estadual do MAB (Movimento dos Atingidos<br />
<strong>por</strong> Barragens) em Minas Gerais,<br />
reforça a situação de desigualdade. “As<br />
mulheres foram as mais atingidas, muitas<br />
passaram a ser dependentes dos<br />
maridos, pois os cartões com verba de<br />
manutenção são destinados ao chefe<br />
da família, desconsiderando a mulher.”<br />
As jornalistas listaram no dossiê<br />
algumas das principais violações contra<br />
as mulheres ocorridas com a tragédia:<br />
Caso de aborto: Grávida sofre<br />
aborto durante avalanche de lama,<br />
e ele não foi considerado uma morte<br />
ou sequer relacionado com o rompimento<br />
da barragem<br />
Água contaminada, relatos de<br />
doenças, coceiras, alergias de pele<br />
e respiratórias, dores de estômago,<br />
de cabeça, infecção no útero. (As<br />
mulheres têm mais essa preocupação<br />
com os filhos).<br />
Cartão entregue aos homens<br />
— não reconhecimento das mulheres<br />
no processo indenizatório. Além<br />
de inúmeras outras ainda não reconhecidas<br />
como atingidas pela mineradora.<br />
Em Barra longa (MG): aumento<br />
do número de homens trabalhando<br />
dentro da cidade, nos espaços<br />
onde antes as mulheres tinham<br />
maior liberdade de circulação. Casos<br />
de estupro, aumento da violência<br />
contra as mulheres e da prostituição<br />
foram relatados nos municípios<br />
onde se concentram os trabalhadores<br />
das obras de contenção da<br />
Samarco/ Vale / BHP.<br />
Violação da privacidade e<br />
intimidade: meninas e mulheres<br />
que tiveram que usar peças íntimas<br />
doadas.;<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
59
Istock<br />
POR<br />
ARTIGO<br />
Mariana Hasse<br />
Violência de gênero<br />
contra as mulheres: os<br />
desafios do cuidado integral<br />
60 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
A violência de gênero distingue um<br />
tipo de opressão e de crueldade construída<br />
nas relações interpessoais que<br />
é reproduzida no cotidiano. Esse tipo<br />
de violência, apesar de dizer respeito<br />
a todas as pessoas, incide, principalmente,<br />
sobre as mulheres.<br />
Desde os anos 1960, os movimentos<br />
feministas vêm denunciando a violência<br />
contra as mulheres como uma violação<br />
grave de direitos humanos. Com isso,<br />
lentamente, algo que até então era tratado<br />
apenas como sendo da esfera privada,<br />
passou a ser discutido publicamente,<br />
e assumido como um problema<br />
do Estado. Essa difusão garantiu ao<br />
tema da violência, considerado um<br />
grave problema de saúde pública, uma<br />
conotação política.<br />
No Brasil, pesquisas indicam que 4<br />
em cada 10 mulheres já passaram <strong>por</strong><br />
um episódio de violência — em grande<br />
parte das vezes, perpetrada pelo seu<br />
próprio parceiro. Relatório com dados<br />
sobre os homicídios no país mostra<br />
que a cada duas horas uma mulher<br />
morre, 80% das vezes agredida pelo<br />
atual ou ex-companheiro. A pro<strong>por</strong>ção<br />
de mulheres assassinadas pelo<br />
parceiro é 7 vezes maior do que a<br />
pro<strong>por</strong>ção de homens assassinados<br />
<strong>por</strong> suas companheiras.<br />
O número de homicídios de mulheres<br />
– crime tipificado como ‘feminicídio’ 1<br />
– aumentou 17,2% no Brasil na última<br />
década, quase o dobro do aumento de<br />
assassinatos de homens no mesmo período.<br />
A maioria dessas mulheres vivem<br />
situações crônicas e acabam morrendo<br />
em decorrência de episódios de violência<br />
previsíveis e evitáveis.<br />
Nas últimas décadas, muito se avançou<br />
no enfrentamento do problema.<br />
O principal marco desse processo é a<br />
Lei 11.340 em 2006, resultado de muitos<br />
“<br />
Mais da metade<br />
das mulheres em<br />
situação de violência<br />
procuram <strong>por</strong><br />
ajuda.”<br />
anos de luta dos movimentos feministas.<br />
Conhecida como ‘Lei Maria da Penha’,<br />
ela tipifica a violência doméstica<br />
contra as mulheres, oferece penas mais<br />
duras aos agressores e maior proteção<br />
judicial e policial às mulheres em situação<br />
de violência.<br />
No bojo da maior produção de conhecimento<br />
científico sobre o tema,<br />
surgiram conselhos da condição feminina<br />
e de direitos da mulher, assim<br />
como coordenadorias das mulheres<br />
em diversos municípios. Nesse período,<br />
também se desenvolveram diversos<br />
serviços que atendem mulheres em situação<br />
de violência.<br />
Por ter incor<strong>por</strong>ado a demanda<br />
feminista <strong>por</strong> um atendimento em<br />
rede, a Lei Maria da Penha prevê que<br />
as mulheres tenham acesso a serviços<br />
que funcionem de maneira articulada<br />
uns com os outros. Busca-se com isso,<br />
garantir o acesso a um cuidado integral,<br />
ou seja, que identifique e cuide<br />
dos diversos aspectos que geram e<br />
resultam da violência.<br />
Devido à complexidade do fenômeno,<br />
não é possível que apenas um serviço<br />
e/ou setor atenda a tais necessidades<br />
de forma integral. Por isso, a<br />
atuação em rede se constitui como<br />
uma das estratégias mais relevantes<br />
para lidar com uma questão multifacetada<br />
como essa.<br />
Portanto, para enfrentar situações<br />
de violência é fundamental que haja<br />
uma atuação articulada entre serviços<br />
de saúde (unidades de saúde, hospitais),<br />
da assistência social (CREAS, casas abrigo),<br />
de segurança pública (Delegacias<br />
de Defesa da Mulher, IML), do sistema<br />
de justiça (defensorias públicas, fóruns)<br />
e da educação (escolas). É a partir do<br />
apoio oferecido <strong>por</strong> essa rede que as<br />
mulheres em situação de violência poderão<br />
enfrentar a problemática vivida.<br />
Apesar de bastante relevante, essa<br />
estratégia é desafiadora uma vez que<br />
a qualidade do cuidado oferecido, especialmente<br />
no que se refere ao encorajamento,<br />
informações precisas, não<br />
julgamento e respeito às decisões da<br />
mulher, ainda precisa melhorar em<br />
todos os setores.<br />
Ao contrário do que se acredita,<br />
mais da metade das mulheres em situação<br />
de violência procuram <strong>por</strong> ajuda.<br />
Porém, como as suas necessidades ultrapassam<br />
o que é oferecido pelos serviços<br />
aos quais <strong>elas</strong> têm acesso, muitas<br />
acabam desistindo desse processo.<br />
Estudos mostram que o que é oferecido<br />
<strong>por</strong> muitos desses serviços não<br />
favorece a emancipação das mulheres,<br />
pois há poucas ações além das abordagens<br />
individuais. Dessa forma, perde-se<br />
a dimensão de que, como a origem<br />
da violência tem origens sociais, o seu<br />
enfrentamento também precisa abordar<br />
os aspectos envolvidos em sua<br />
(re)produção.<br />
Em tais serviços muitas práticas<br />
também são cercadas de preconceitos<br />
de gênero que prejudicam as condições<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
61
de acolhimento, escuta e diálogo que<br />
poderiam ser estabelecidos entre profissionais<br />
e mulheres. Padrões tradicionais<br />
sobre o papel das mulheres (cuidadoras,<br />
responsáveis, amáveis) e dos<br />
homens (provedores, agressivos) são<br />
multiplicados sem problematização.<br />
Ademais, processos de trabalho burocráticos,<br />
fragmentados e destituídos<br />
de sentido dificultam que as relações<br />
de trabalho gerem transformações.<br />
Além disso, a cultura da prevenção<br />
da violência ainda é escassa no Brasil.<br />
Como não se cuida da origem do problema<br />
os serviços ficam sobrecarregados<br />
e a qualidade do cuidado oferecido<br />
diminui.<br />
Nesse contexto, muitos serviços<br />
acabam reproduzindo a lógica da violência<br />
através de dominação e cerceamento<br />
das mulheres. Como a absorção<br />
das demandas dos movimentos sociais<br />
depende de muitas disputas éticas e<br />
políticas, as mudanças ocorrem de forma<br />
lenta e cíclica.<br />
O isolamento e fragmentação dos<br />
serviços e sua consequente sobrecarga,<br />
geram nos profissionais sentimentos<br />
de im<strong>por</strong>tância e desamparo diante<br />
dos complexos casos de violência. Alienados<br />
de seu trabalho e tomados <strong>por</strong><br />
preconceitos, os profissionais encontram<br />
muita dificuldade em atuar de<br />
forma articulada.<br />
Divulgação Governo RS<br />
Por isso, apesar da grande quantidade<br />
de serviços existentes, muitas<br />
mulheres ainda não conseguem encontrar<br />
a ajuda que necessitam para<br />
lidar com o problema da violência.<br />
Os esforços das mulheres na busca<br />
<strong>por</strong> ajuda serão mais efetivos quanto<br />
melhor forem as respostas encontradas.<br />
Por isso, a qualidade do cuidado recebido<br />
é fundamental – encorajamento,<br />
informações precisas, não julgamento<br />
e respeito às decisões da mulher contribuem<br />
para a continuidade da rota<br />
de cuidado, enquanto o descaso, a burocracia<br />
e a dificuldade de acesso são<br />
grandes inibidores.<br />
A violência, como negação da condição<br />
de sujeito das mulheres, alijando-as<br />
de seus referenciais de linguagem,<br />
lugar e sentido social de si e de suas<br />
possibilidades só pode ser enfrentada<br />
a partir de uma construção coletiva,<br />
partilhada entre as mulheres e os próprios<br />
trabalhadores.;<br />
1 - O feminicídio – ou femicídio - se refere às<br />
mortes de mulheres decorrentes de conflitos de<br />
gênero, ou seja, pelo simples fato de serem mulheres.<br />
Estes crimes geralmente decorrem de situações<br />
de abusos domiciliares, ameaças ou intimidação,<br />
violência sexual ou situações de desigualdade de<br />
poder com o homem.<br />
Mariana Hasse - Psicóloga sanitarista, professora<br />
da Faculdade de Medicina da Universidade Federal<br />
de Uberlândia.<br />
62 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
63
Mark Florest<br />
“<br />
“Tenho com quem<br />
transar, mas não tenho<br />
com quem me<br />
relacionar. Sem ter<br />
um namorado, me<br />
vejo no lugar de uso.<br />
Antes, pensava que<br />
isso era um problema<br />
meu, talvez <strong>por</strong>que<br />
o meu cabelo<br />
não fosse bonito…”
POR<br />
RACISMO<br />
Débora Junqueira<br />
A solidão<br />
sentida na pele<br />
Afetividade e relacionamentos interraciais na<br />
pauta do feminismo negro<br />
“Tenho com quem transar, mas não<br />
tenho com quem me relacionar. Sem<br />
ter um namorado, me vejo no lugar de<br />
uso. Antes, pensava que isso era um<br />
problema meu, talvez <strong>por</strong>que o meu<br />
cabelo não fosse bonito...”. Esse depoimento<br />
é da enfermeira e educadora<br />
Nath Sol (foto) que diz sentir na pele<br />
o peso do olhar social sobre as mulheres<br />
negras. “Hoje tenho a consciência de<br />
que o problema de solidão das mulheres<br />
negras ocorre em função de um contexto<br />
histórico e acredito que isso somente<br />
poderá mudar com as próximas<br />
gerações se esse assunto, que é uma<br />
ferida profunda, for debatido com toda<br />
a sociedade”, afirma.<br />
Nath, 31 anos, conta que diante da<br />
dificuldade em compreender o motivo<br />
de não conseguir parceiros para relacionamentos<br />
afetivos mais duradoros,<br />
passou a fazer psicoterapia e a participar<br />
de conversas sobre o feminismo<br />
negro. “Os homens querem transar<br />
com a mulher negra que carrrega consigo<br />
o estereótipo de gostosa e boa de<br />
cama. No entanto, para um relacionamento<br />
sério, eles não costumam se interessar<br />
tanto. Esse racismo tem a ver<br />
com os resquícios da escravidão. A menina<br />
branca com o mesmo poder aquisitivo<br />
que eu é vista como mais rica e<br />
os homens, quando estão em um patamar<br />
social maior escolhem uma mulher<br />
loira para se relacionar, como sinal<br />
de status. A mulher negra só é escolhida<br />
no final da festa”, desabafa.<br />
“Consigo expressar sobre a minha<br />
solidão na internet. Participo de um<br />
grupo no Facebook (fechado) só com<br />
mulheres negras que discutem esse<br />
tema e expressam suas angústias, abusos<br />
e casos de rejeição. Ser mal recebida<br />
numa loja <strong>por</strong> ser negra não é fácil. O<br />
grupo é uma tentativa de acolhimento”,<br />
conta, citando que há outros grupos<br />
na internet como o Afrodengo e o Pretinder,<br />
que focam na paquera virtual<br />
entre pessoas negras.<br />
O Censo de 2010 revelou que as<br />
mulheres negras são as que menos se<br />
casam, sendo a maioria na categoria<br />
de “celibato definitivo”, ou seja, que<br />
nunca tiveram um cônjuge. Uma análise<br />
de dados do Censo de 1960-1980, feita<br />
pela pesquisadora Elza Berquió, já constatava<br />
esse fenômeno. No texto Nupcialidade<br />
da população negra no Brasil<br />
(nº 11/1987), do Núcleo de Estudos de<br />
População (NEPO/ Unicamp) a autora<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
65
elata que, em relação à união, as mulheres<br />
brancas são aqu<strong>elas</strong> que mais<br />
se casam se comparada com as mulheres<br />
negras (pretas e pardas), sendo<br />
as negras a maioria entre as mulheres<br />
solteiras, viúvas e separadas. Outro aspecto<br />
im<strong>por</strong>tante encontrado na pesquisa<br />
revelou que as mulheres negras<br />
são as que se casam (uniões consensuais)<br />
mais tardiamente e com menor<br />
intensidade se comparado às mulheres<br />
brancas, aos homens brancos e negros.<br />
O que confirma, segundo a autora, um<br />
alto índice de celibato entre as pretas<br />
e pardas, mesmo havendo um excesso<br />
de homens no grupo racial negro. Berquió<br />
atribui este fator ao excesso de<br />
mulheres no grupo racial branco, mas<br />
tal argumento torna-se insuficiente<br />
para se entender as preferências afetivas<br />
na opinião da pesquisadora Ana<br />
Cláudia Lemos, autora da tese de doutorado<br />
em Ciências Sociais (disponível<br />
em https://goo.gl/DcQWaC) Branca<br />
para casar, mulata para f..., negra para<br />
trabalhar: escolhas afetivas e significados<br />
de solidão entre mulheres negras<br />
em Salvador, Bahia.<br />
Coletivo Amapoa<br />
Construção social<br />
Na tese são citados diversos dados<br />
e argumentos que comprovam a existência<br />
de um fenômeno social que envolve<br />
os relacionamentos interraciais.<br />
“Em relação aos relacionamentos interraciais,<br />
as pesquisas citadas pela<br />
autora demonstravam que a miscigenação<br />
tem sido mais realizada <strong>por</strong><br />
parte dos homens negros com parceiras<br />
brancas ou com mulheres de pele clara<br />
do que ao contrário, ou seja, as negras<br />
quando se casam, casam-se dentro do<br />
seu próprio grupo racial. Outro elemento<br />
im<strong>por</strong>tante encontrado é de<br />
que as escolhas matrimoniais entre os<br />
grupos raciais diferenciados dar-seiam<br />
conforme o status social. Homens<br />
negros têm preferência <strong>por</strong> se casar<br />
com mulheres brancas cujo status social<br />
é inferior ao seu, ou seja, homens<br />
negros que adquiriram algum tipo de<br />
prestígio social, econômico ou educacional<br />
casavam-se com mulheres brancas<br />
pobres, com baixo grau de instrução”,<br />
explica a autora.<br />
“Os ditos populares 'branca para<br />
casar, mulata para f.... e negra para trabalhar',<br />
que foram evocados e legitimados<br />
na obra freyreana [Casa Grande<br />
& Senzala, de Gilberto Freyre], funcionam<br />
como elementos estruturantes<br />
das práticas sociais e afetivas dos indivíduos.<br />
Tanto assim que a miscigenação<br />
brasileira é uma prática cultural<br />
que se realiza muito mais pela preferência<br />
afetivo-conjugal de homens negros<br />
<strong>por</strong> mulheres brancas, do que ao<br />
contrário, como atestam alguns estudos,<br />
o que contraria o modelo freyreano<br />
de uma democratização das<br />
relações sexual–raciais no Brasil.<br />
Como foi visto, para alguns autores, a<br />
miscigenação foi uma violência física<br />
66 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
e simbólica, característica da ordem<br />
escravocrata”, conclui Lemos.<br />
Ana Cláudia Lemos afirma que as<br />
mulheres negras investigadas nos estudos<br />
tentaram burlar a solidão, isto é,<br />
a ausência de parceiros, atribuindolhes<br />
significações produzidas numa<br />
rede de emaranhados de categorias que<br />
denotam maneiras de pensar e de negociar<br />
às suas escolhas, na busca <strong>por</strong><br />
outros caminhos e novos espaços sociais.<br />
“Esses espaços se materializaram no<br />
trabalho, na família, na política, na comunidade,<br />
no bairro, na escola, no sindicato,<br />
na religião; produziram novas<br />
redes de relações sociais, redefinindoas,<br />
quebrando tabus, lutando contra a<br />
opressão, politizando os seus corpos<br />
<strong>por</strong> meio de novos contextos”, diz.<br />
Divulgação<br />
Nem bela, nem recatada<br />
“As mulheres negras têm dificuldades<br />
de formar um lar e encontrar<br />
um amor”, afirma a professora Johanna<br />
Monagreda, pesquisadora no Núcleo<br />
de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher<br />
(Nepem/ UFMG). “Por mais que pareça<br />
“<br />
Construíram-se<br />
estereótipos como<br />
se o corpo da mulher<br />
negra fosse público,<br />
de fácil acesso.”<br />
banal, amar é uma parte constitutiva<br />
do ser, mas com todos os estereótipos<br />
que há sobre a mulher negra é muito<br />
mais difícil pra ela encontrar um parceiro,<br />
se casar e formar um lar. Existe<br />
um conjunto de ideias sobre a mulher<br />
negra, construídos na escravidão, como<br />
parte da estratégia de dominação. Construíram-se<br />
estereótipos como se o corpo<br />
da mulher negra fosse público, de<br />
fácil acesso. A mulher negra não é considerada<br />
bela, nem recatada, nem do<br />
lar. Então <strong>elas</strong> sofrem <strong>por</strong> serem consideradas<br />
pessoas de um corpo fácil,<br />
como se você não precisasse se comprometer”,<br />
analisa. Para combater isso,<br />
Johanna acredita que, como os espaços<br />
de ignorância são preenchidos com<br />
preconceitos e estereótipos, <strong>por</strong>tanto,<br />
“é necessário reconhecer a problemática<br />
com uma conversa franca sem a<br />
negação desses estereótipos”.<br />
Para a feminista e mestra em filosofia,<br />
Djamila Ribeiro (foto), a concepção<br />
racista da sociedade faz com<br />
que as mulheres negras sejam rejeitadas.<br />
No depoimento em vídeo (TV Boitempo<br />
– junho/16) sobre relações interraciais<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
67
Marcha das Mulheres Negras contra o racismo e a violência, 2015<br />
e a solidão da mulher, ela discute a delicada<br />
questão das relações interraciais<br />
da perspectiva do feminismo negro.<br />
Djamila explica que existe um processo<br />
histórico que desumaniza a mulher negra<br />
e a coloca como um sujeito que não<br />
é digno de ser amado e, ainda, que as<br />
mulheres negras não querem ser vistas<br />
somente como parceiras sexuais. Sobre<br />
os relacionamentos interraciais, ela<br />
acredita que existe uma construção social<br />
e que esse tema não pode ser discutido<br />
no campo individual.<br />
“Desde o período colonial, a mulher<br />
negra é objetificada e ultrassexualizada.<br />
A miscigenação brasileira<br />
é fruto de estupro dessas mulheres.<br />
Ao mesmo tempo, a mulher branca é<br />
colocada como a bonita, o padrão de<br />
beleza e a que merece ser amada. O<br />
homem negro absorve os valores<br />
dessa sociedade e os internaliza como<br />
verdade, <strong>por</strong>tanto, vai achar que estar<br />
com uma mulher branca vai dar a ele<br />
um certo status. Ninguém pode dizer<br />
que as pessoas não podem se amar e<br />
se relacionar. A gente não está falando<br />
do indivíduo e sim que existe<br />
uma estrutura que faz com que as<br />
mulheres negras sejam preteridas.<br />
Quando você tem um grupo tão<br />
grande que não se casa, então o problema<br />
não é individual. É um problema<br />
estrutural. O gosto é<br />
construído, <strong>por</strong>tanto existe um sujeito<br />
que é construído para ser amado<br />
e o que não é. Não queremos impedir<br />
os relacionamentos interraciais. Às<br />
vezes, a reação de uma mulher negra<br />
quando vê um homem negro com<br />
uma mulher branca pode ser entendida<br />
como raiva, de certa forma, <strong>elas</strong><br />
sentem uma rejeição. É preciso entender<br />
que existe uma construção social<br />
em cima disso e de forma alguma<br />
68 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
a gente pode discutir isso no campo<br />
do indivíduo”, explica a feminista.<br />
No artigo “Por que as mulheres negras<br />
são minoria no mercado matrimonial”,<br />
publicado no site Geledés em<br />
21/05/2015, a autora Clarice Fortunato<br />
Araújo, pesquisadora da Universidade<br />
Federal de Santa Catarina – UFSC, cita<br />
várias fontes para ampliar a discussão<br />
sobre o tema dos relacionamentos interraciais.<br />
Para ela, a oficialização da<br />
união é im<strong>por</strong>tante, não apenas <strong>por</strong><br />
questões afetivas, mas, principalmente,<br />
<strong>por</strong> questões legais, como planejamento<br />
familiar, divisões de bens,<br />
Lula Marques<br />
entre outros. Ainda que a mulher, para<br />
ser feliz, não tenha que, necessariamente,<br />
se casar dentro dos padrões tradicionais,<br />
quando ela faz esta opção, a<br />
cor da sua pele não deveria ser uma<br />
desvantagem nesse processo.<br />
“A reflexão mais im<strong>por</strong>tante que<br />
fica é que a mulher negra precisa se libertar<br />
e celebrar essa liberdade, entendendo<br />
que são bonitas, atraentes,<br />
fortes, inteligentes e poderosas, mas<br />
esse poder e força estão intrinsecamente<br />
ligados ao fato de ser mulher<br />
negra. E, como mulheres, merecem<br />
ser amadas e respeitadas, independentemente<br />
da sua cor. Enfim, a mulher<br />
negra, que se sente no dilema de<br />
ser preterida, não tem que passar <strong>por</strong><br />
um processo de embranquecimento<br />
para ser aceita. O que precisa urgentemente<br />
mudar é a cultura, pois esta não<br />
representa um povo e suas diversidades.<br />
Um país tão grande, plural e com<br />
realidades tão distintas não deve ser<br />
compreendido em um padrão colonialista,<br />
escravocrata e arcaico”, opina.<br />
“<br />
A mulher<br />
negra precisa<br />
se libertar. e<br />
celebrar essa<br />
liberdade”<br />
Feminismo<br />
negro:<br />
visibilidade<br />
para a<br />
opressão de<br />
gênero e raça<br />
A discussão sobre os relacionamentos<br />
interraciais se soma às mais diversas<br />
pautas do feminismo negro. Movimento<br />
social protagonizado <strong>por</strong> mulheres negras<br />
para dar visibilidade às suas causas<br />
e reivindicar seus direitos.<br />
No Brasil, o Feminismo Negro iniciou-se<br />
na década de 1970, a partir de<br />
uma forte demanda das mulheres negras<br />
feministas. Como descreve a escritora<br />
Jarid Arraes no artigo “Feminismo<br />
Negro: sobre minorias dentro<br />
da minoria” (publicado no site da <strong>Revista</strong><br />
Fórum), o movimento negro tinha<br />
sua face sexista, as relações de gênero<br />
funcionavam como fortes repressoras<br />
da autonomia feminina e impediam<br />
que as ativistas negras ocupassem posições<br />
de igualdade junto aos homens<br />
negros; <strong>por</strong> outro lado, o movimento<br />
feminista tinha sua face racista, preterindo<br />
as discussões de recorte racial<br />
e privilegiando as pautas que contemplavam<br />
somente as mulheres brancas.<br />
Segundo ela, as necessidades das mulheres<br />
negras são muito peculiares e<br />
sem que seja feita uma profunda análise<br />
do racismo brasileiro, é impossível<br />
atender às urgências do grupo.<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
69
“O problema da mulher negra se encontrava<br />
na falta de representação pelos<br />
movimentos sociais hegemônicos. Enquanto<br />
as mulheres brancas buscavam<br />
equiparar direitos civis com os homens<br />
brancos, mulheres negras carregavam<br />
nas costas o peso da escravatura, ainda<br />
relegadas à posição de subordinadas;<br />
<strong>por</strong>ém, essa subordinação não se limitava<br />
à figura masculina, pois a mulher<br />
negra também estava em posição servil<br />
perante a mulher branca. A partir dessa<br />
percepção, a conscientização a respeito<br />
das diferenças femininas foi ganhando<br />
cada vez mais corpo. Grandes nomes<br />
da militância feminina negra foram fazendo<br />
história, a exemplo de Lélia Gonzalez<br />
e Sueli Carneiro. A atenção e a<br />
produção de conteúdos foram dedicadas<br />
a discussões de raça e classe, buscando<br />
romper uma zona de conforto que o<br />
ativismo feminista branco cultivava, especialmente<br />
aquele que limitava sua<br />
ótica aos problemas das mulheres de<br />
boa condição financeira e acesso à educação”,<br />
analisa Jarid.<br />
A pesquisadora e membro do programa<br />
Ações Afirmativas da UFMG,<br />
Vanda Lúcia Praxedes, explica que, a<br />
partir da década de 80, houve uma organização<br />
mais sistemática dos grupos<br />
de mulheres negras. Ela considera um<br />
dos marcos do feminismo negro, o III<br />
Encontro Feminista Latino-Americano<br />
e do Caribe, realizado em Bertioga-SP,<br />
em 1985, quando as mulheres negras<br />
questionaram o papel da questão racial<br />
e começaram a enfatizar a im<strong>por</strong>tância<br />
de pensar essa temática com a questão<br />
de gênero. Em 1988, houve avanços<br />
com a constituinte no Brasil e depois<br />
com a III Conferência Mundial contra<br />
o Racismo, a Discriminação Racial, a<br />
Xenofobia e formas Conexas de Intolerância<br />
(Durban, 2001).<br />
“O feminismo negro traz para o movimento<br />
feminista um grande questionamento<br />
que eu chamo de deslocamento<br />
teórico epistemológico, trazendo<br />
o conceito de intersecionalidade. Não<br />
se pode pensar a primazia de uma<br />
opressão sobre a outra. A interseção<br />
entre gênero e raça é fundamental para<br />
compreender a diferença entre as mulheres.<br />
Há vários elementos que diferenciam<br />
as mulheres negras e brancas.<br />
Do ponto de vista do trabalho a trajetória<br />
d<strong>elas</strong> é muito diferente. As negras<br />
são mais desrespeitadas e desvalorizadas<br />
se observadas as condições objetivas<br />
de existência. Na educação, <strong>por</strong><br />
exemplo no ensino superior, as condições<br />
das professoras negras e brancas<br />
são diferenciadas. A negra sofre com<br />
o racismo institucional, com dificuldade<br />
de acesso aos cargos de chefia”, explica.<br />
Para Natália Alves, militante feminista<br />
e pesquisadora da UFMG, o feminismo<br />
negro traz uma visibilidade fundamental<br />
para a opressão de gênero e<br />
racial. “Na década de 60, a partir da segunda<br />
onda do feminismo, as mulheres<br />
negras que participavam desse movimento<br />
disseram: somos todas mulheres,<br />
mas a questão de raça, renda e classe é<br />
uma diferença entre nós”, ressalta. A<br />
feminista lembra que muitas mulheres<br />
usaram o emprego de outras mulheres,<br />
como no serviço doméstico onde há<br />
predominância de mulheres negras e<br />
pobres, para poder se emancipar.<br />
Marcelo Casal/AgBrasil<br />
70 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
O peso da cor nas estatísticas<br />
Mercado de trabalho<br />
Enquanto mulheres brancas lutam<br />
para que seus salários sejam equiparados<br />
aos salários dos homens<br />
brancos, as mulheres negras recebem<br />
ainda menos (- 40%). Outra<br />
face perversa do racismo atrelado<br />
ao sexismo é a jornada tripla de<br />
trabalho. As trabalhadoras se distanciam<br />
de seus lares e filhos para<br />
que possam prover sustento, muitas<br />
vezes cuidando dos filhos das<br />
mulheres com melhor condição<br />
financeira, e, <strong>por</strong> não possuírem<br />
os recursos, não podem contratar<br />
alguém para prestar assistência<br />
às crianças e fazer manutenção<br />
em suas próprias casas. As creches<br />
não atendem à demanda e<br />
as funções das mulheres pobres<br />
se acumulam.<br />
Educação<br />
Conforme o censo do ensino superior,<br />
há um entrada majoritária<br />
de mulheres em relação aos homens<br />
no ensino superior, mas permanece<br />
uma diferença de entrada<br />
de mulheres brancas e negras,<br />
que são minoria. Na universidade<br />
há um número pequeno de professoras<br />
negras, mesmo com muitas<br />
mulheres professoras.<br />
Aborto e direitos<br />
reprodutivos<br />
No Brasil, o aborto é legal e gratuito<br />
somente se a gravidez for<br />
gerada <strong>por</strong> um estupro, causar<br />
risco de morte para a mãe ou no<br />
caso do feto ser anencéfalo. Apesar<br />
disso, mulheres negras e pobres<br />
encontram resistência do<br />
sistema de saúde, sendo coagidas<br />
<strong>por</strong> equipes médicas e <strong>por</strong> religiosos<br />
de suas comunidades. Por<br />
não contarem com su<strong>por</strong>te e não<br />
terem recursos financeiros que<br />
paguem clínicas particulares, muitas<br />
dessas mulheres jamais conseguem<br />
realizar o aborto. Por causa<br />
das complicações geradas <strong>por</strong><br />
abortos clandestinos, as mulheres<br />
“<br />
As negras são<br />
mais de 60% das<br />
vítimas de feminicídio,<br />
exatamente<br />
<strong>por</strong>que<br />
não contam com<br />
assistência adequada<br />
e estão<br />
mais vulneráveis<br />
aos abusos<br />
das próprias autoridades.<br />
negras morrem em números altíssimos<br />
e também estão mais<br />
vulneráveis ao indiciamento criminal,<br />
caso sobrevivam.<br />
Violência doméstica<br />
e sexual<br />
Os homicídios de mulheres negras<br />
aumentaram 54% em dez anos no<br />
Brasil. Em contraposição, no mesmo<br />
período, de 2003 a 2013, o número<br />
de assassinatos de mulheres<br />
brancas caiu 9,8%. Esses dados<br />
fazem parte do Mapa da Violência<br />
2015: Homicídios de Mulheres no<br />
Brasil, um estudo da Faculdade<br />
Latino-Americana de Ciências Sociais.<br />
As negras são mais de 60%<br />
das vítimas de feminicídio, exatamente<br />
<strong>por</strong>que não contam com<br />
assistência adequada e estão mais<br />
vulneráveis aos abusos das próprias<br />
autoridades.<br />
Padrão de beleza<br />
e mídia<br />
Cabelos lisos e loiros, narizes finos,<br />
bochechas rosadas, olhos azuis<br />
e axilas claras são alguns exemplos<br />
de como a estética ocidental<br />
celebra características brancas<br />
como melhores e mais b<strong>elas</strong>. Por<br />
causa dessa padronização, atrizes<br />
negras são minoria absoluta e<br />
quase nunca são convidadas para<br />
estrelarem na televisão.<br />
Fontes: IBGE, IPEA e OIT. Artigo de Jarid Arraes:<br />
Feminismo Negro: sobre minorias dentro da minoria<br />
(<strong>Revista</strong> Fórum)<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
71
Racismo e<br />
sexismo não<br />
escolhem<br />
lugar<br />
Mark Florest<br />
A professora Ângela Gomes (foto)<br />
lembra que uma das primeiras bandeiras<br />
do movimento feminista negro<br />
foi a melhoria das condições de trabalho<br />
das empregadas domésticas. “Não<br />
há como a gente fazer um feminismo<br />
que coloque nas ruas e no mercado de<br />
trabalho as mulheres, tendo uma segunda<br />
mulher escravizada dentro de<br />
casa”, sentencia.<br />
Ela lembra, ainda, de outras lutas<br />
como a do fim da exigência da “boa<br />
aparência” na seleção de trabalho. “Esse<br />
quesito representava uma estética racista<br />
em um país que enaltece a aparência<br />
de pele clara e cabelo pra baixo<br />
e nariz fino”, explica. Em 1978, o movimento<br />
negro unificado conseguiu que<br />
o racismo fosse considerado um crime<br />
inafiançável.<br />
Ângela ressalta que, no mercado de<br />
trabalho, as mulheres negras ganham<br />
40% menos que as brancas nas mesmas<br />
condições e com curso superior. “Quantas<br />
chefes ou médicas negras você já<br />
teve na vida? Sexismo de mercado,<br />
simbólico, continua considerando que<br />
as mulheres negras são escravas e não<br />
que foram escravizadas. E pensam que<br />
o lugar dela é só no trabalho doméstico,<br />
com um salário inferior”, afirma.<br />
“Hoje as mulheres negras, principalmente<br />
do ponto de vista político,<br />
estão mais organizadas em fóruns e<br />
articulações, assim como no movimento<br />
negro unificado, que é um dos primeiros<br />
movimentos contra o racismo<br />
e o capitalismo e que evidencia que o<br />
Brasil tem uma ferida aberta e uma<br />
dívida histórica com os negros desse<br />
país oriundos da África”, afirma.<br />
Conforme afirma o sociólogo Carlos<br />
Hasenbalg, pesquisador argentino<br />
nas áreas de relações raciais, estratificação<br />
social e mobilidade social, há<br />
um legado escravista como <strong>por</strong> exemplo<br />
o analfabetismo maciço e a concetração<br />
demográfica dos escravos, no<br />
entanto, isso não é um fator determinante<br />
para a subordinação social dos<br />
negros. Ele afirma serem o racismo e a<br />
discriminação social os fatores principais<br />
para tal subordinação. Para o<br />
autor, a discriminação e o preconceito<br />
têm uma relação funcional com a preservação<br />
dos privilégios (ganhos materiais<br />
e simbólicos) que os brancos<br />
obtêm da desqualificação competitiva<br />
dos não brancos.<br />
A realidade é que a organização das<br />
mulheres negras tem conseguido unir<br />
as lutas contra o racismo e o sexismo<br />
com o objetivo de dar visibilidade às<br />
questões de etnia e gênero. Dentro de<br />
um contexto onde o capitalismo restringe<br />
grandes mudanças para a redução<br />
das desigualdades, esse movimento<br />
é fundamental para avanços<br />
civilizatórios.;<br />
72 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
Aqui você ouve, durante 24 horas, música de<br />
qualidade e fica em sintonia com temas atuais sobre<br />
educação, trabalho, política, cidadania, meio ambiente,<br />
cultura e pautas sociais. Um espaço com muita<br />
participação dos professores.<br />
www.sinprominas.org.br/radio-sinpro/<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
73
Internet
POR<br />
FEMINISMO<br />
Débora Junqueira<br />
Quem tem medo<br />
da linguagem<br />
não-sexista?<br />
Manual mostra como a linguagem pode reforçar<br />
ou combater estereótipos de gênero<br />
Como expressar uma linguagem<br />
que não reproduza o machismo da sociedade?<br />
A partir dessa preocupação<br />
é possível constatar a grafia de “x” ,“@”<br />
ou “a/o” para representar as letras que<br />
marcam os gêneros feminino e masculino<br />
em alguns textos escritos. Na<br />
expressão oral, o machismo, que costuma<br />
transparecer em frases cotidianas,<br />
também pode ser combatido com expressões<br />
que tiram o gênero feminino<br />
da invisibilidade.<br />
A discussão sobre esse tema não é<br />
nova no universo feminista, mas o uso<br />
de alternativas para quebrar os preconceitos<br />
de gênero a partir da linguagem<br />
não-sexista ainda gera polêmica<br />
e desconforto. Um exemplo foi quando<br />
Dilma Rousseff tomou posse e pediu<br />
para ser chamada de presidenta. Alguns<br />
veículos da mídia se recusaram a usar<br />
o termo e a criticaram, dizendo que<br />
era coisa de feminista, mesmo com<br />
linguistas explicando que o uso estava<br />
correto. A palavra “presidenta“ foi dicionarizada<br />
desde 1812 e é mais antiga<br />
e tradicional em <strong>por</strong>tuguês que a forma<br />
neutra “a presidente“, apenas dicionarizada<br />
a partir de 1940.<br />
No Sinpro Minas, também logo após<br />
a atual presidenta Valéria Morato tomar<br />
posse e enviar uma comunicado <strong>por</strong><br />
e-mail, assinando como “presidenta”,<br />
um sindicalizado retornou o e-mail<br />
questionando o uso do termo. O Sinpro<br />
Minas, assim como outras entidades<br />
sindicais do país, utilizam a linguagem<br />
não-sexista com o objetivo de dar visibilidade<br />
às questões de gênero.<br />
O Sinpro é filiado à Central dos Trabalhadores<br />
e Trabalhadoras do Brasil<br />
(CTB). A única central sindical brasileira<br />
que expõe no próprio nome a<br />
afirmação de gênero. “A linguagem<br />
pode ser usada para reforçar padrões<br />
de com<strong>por</strong>tamento tipicamente patriarcais<br />
dentro de uma sociedade em<br />
sua maioria composta <strong>por</strong> mulheres,<br />
ou para libertar as mulheres, explicitando<br />
suas diferenças. Neste sentido,<br />
aconteceu o debate sobre o nome da<br />
Central quando a entidade estava para<br />
ser criada. Foi im<strong>por</strong>tante incluir essa<br />
questão para mostrar que a trabalha-<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
75
dora não estaria só na condição de representada,<br />
mas, sim de protagonista”,<br />
afirma Ivânia Pereira da Silva, secretária<br />
de gênero da CTB.<br />
Segundo ela, a Central, além de<br />
afirmar sua identidade de classe, também<br />
reafirma o seu compromisso com<br />
a emancipação feminina no rumo à<br />
igualdade de gênero. “No início, incluir<br />
‘trabalhadora’ no nome da Central<br />
causou estranheza e resistência. Alguns<br />
até falaram que a entidade não<br />
‘decolaria’ <strong>por</strong>que o nome era muito<br />
grande, mas a CTB completou seus<br />
dez anos de fundação, cumprindo um<br />
papel relevante e propulsor da unidade<br />
da classe trabalhadora para o enfrentamento<br />
ao Capital e às ameaças<br />
antidemocráticas. E conquistamos espaços<br />
im<strong>por</strong>tantes como uma titularidade<br />
do Conselho Nacional dos<br />
Direitos da Mulher”, afirma.<br />
Segundo Ana Maria Colling (foto),<br />
doutora em História do Brasil, organizadora<br />
do Dicionário Crítico de Gênero<br />
(UFGD, 2015), um dos campos privilegiados<br />
de luta <strong>por</strong> igualdade e de difícil<br />
mudança na relação de poder entre os<br />
sexos, construído historicamente, é o<br />
campo da linguagem, que ocupa um<br />
lugar central na resistência às mudanças.<br />
“Falar de 'eles' é falar de eles e<br />
<strong>elas</strong>, mas falar de '<strong>elas</strong>' jamais é falar<br />
de eles e <strong>elas</strong>”, opina a pesquisadora<br />
no artigo “Substituição de marcadores<br />
de gênero na linguagem escrita busca<br />
diminuir preconceitos”, publicado no<br />
Jornal Zero Hora (03/10/15).<br />
No artigo, a autora cita que no colégio<br />
Pedro II do Rio de janeiro, o “x”<br />
no lugar das letras “a” e “o” já está presente<br />
nos avisos institucionais em murais<br />
e cabeçalhos de provas. Demanda<br />
que partiu do grêmio estudantil com a<br />
Arquivo pessoal<br />
aceitação de alguns professores que<br />
incor<strong>por</strong>aram as mudanças em suas<br />
provas. “Tenho clareza que o “x” e a<br />
“@” não irão modificar as relações de<br />
poder entre os sexos e nem irão acabar<br />
de vez com a desqualificação de um<br />
em relação ao outro. Mas tenho a esperança<br />
de que o uso da linguagem<br />
não-sexista possa contribuir como um<br />
alerta para a desigualdade. Saber que<br />
existe um eu e que existe um outro,<br />
que pode ser de gênero diferente do<br />
meu, já é um primeiro passo” conclui.<br />
Estudos sobre o tema têm mostrado<br />
que a linguagem pode ser utilizada<br />
para reforçar estereótipos impostos<br />
culturalmente. A linguagem sexista,<br />
utilizada de forma irrestrita, impõenos<br />
que o masculino (homem) é empregado<br />
como norma, ficando o feminino<br />
(mulheres) incluído como referência<br />
ao discurso masculinizado. Diante<br />
da im<strong>por</strong>tância da linguagem como<br />
terreno para marcar a equidade de gênero<br />
fica a pergunta. Como colocar em<br />
prática um tipo de linguagem que recuse<br />
o masculino como um termo neutro<br />
para substituir o feminino?<br />
Manual da linguagem<br />
não-sexista<br />
Editado pelo Governo do Rio Grande<br />
do Sul e Secretaria Especial para as<br />
Mulheres, em 2014, o “Manual para o<br />
uso não sexista da linguagem - O que<br />
bem se diz bem se entende” traz inúmeras<br />
dicas de como fazer isso e traz<br />
o entendimento de que a linguagem é<br />
um dos agentes de socialização de gênero<br />
mais im<strong>por</strong>tantes ao moldar nosso<br />
pensamento e transmitir uma discriminação<br />
<strong>por</strong> motivo de sexo. O Manual<br />
afirma que a língua tem um valor sim-<br />
76 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
ólico enorme, pois o que não se nomeia<br />
não existe, e durante muito tempo,<br />
ao utilizar uma linguagem androcêntrica<br />
e sexista, as mulheres não existiram<br />
e foram discriminadas.<br />
“Foi nos ensinado que a única opção<br />
é ver o mundo com olhos masculinos,<br />
mas essa opção oculta os olhos femininos.<br />
Não é, <strong>por</strong>tanto, incorreto, ou<br />
uma repetição, nomear em masculino<br />
e feminino, isso não supõe uma duplicação<br />
da linguagem posto que, como<br />
afirmam Carmen Alario et alii, duplicar<br />
é fazer uma cópia igual a outra e esse<br />
não é o caso. É simplesmente um ato<br />
de justiça, de direitos, de liberdade. É<br />
necessário nomear as mulheres, torná-las<br />
visíveis como protagonistas de<br />
suas vidas e não vê-las apenas no papel<br />
de subordinadas ou humilhadas. É necessária<br />
uma mudança no uso atual<br />
da linguagem de forma que apresente<br />
Ivânia (esquerda) em evento com a participação do presidente<br />
da CTB (Adilson Araújo)<br />
Arquivo pessoal<br />
“<br />
É necessário<br />
nomear as mulheres,<br />
torná-las visíveis<br />
como protagonistas<br />
de suas vidas”<br />
equitativamente as mulheres e os homens.<br />
E para isso, qualquer língua, ao<br />
estar em contínua mudança, oferece<br />
inúmeras possibilidades”, resume a<br />
apresentação do manual, elaborado a<br />
partir do Manual da Red de Educación<br />
Popular Entre Mujeres de Latinoamérica<br />
y Caribe – REPEM-LAC.<br />
Conforme define o documento, na<br />
atualidade não existe qualquer sociedade<br />
no mundo onde mulheres e homens<br />
recebam um tratamento equitativo, pois<br />
se constata uma discriminação generalizada<br />
para <strong>elas</strong> em todos os âmbitos<br />
da sociedade. Essa discriminação, sustentada<br />
unicamente no fato de ter nascido<br />
com um determinado sexo (mulher),<br />
atravessa categorias sociais como<br />
o nível socioeconômico, a idade ou a<br />
etnia à que se pertença e se transmite<br />
<strong>por</strong> meio de formas mais ou menos<br />
sutis que impregnam nossa vida.<br />
Linguagem como<br />
construção social<br />
A avaliação é que uma das formas<br />
mais sutis de transmitir essa discriminação<br />
é através da língua, que não<br />
só reflete, mas também transmite e<br />
reforça os estereótipos e papéis considerados<br />
adequados para mulheres e<br />
homens em uma sociedade. O Manual<br />
traz algumas frases cotidianas que demonstram<br />
isso. Quem nunca escutou<br />
“mulher no volante, perigo constante”,<br />
“os filhos são o que suas mães fizeram<br />
deles”, “em briga de marido e mulher<br />
não se mete a colher” e “mulher não<br />
fica velha, fica loira”. “Existe um uso<br />
sexista da língua na expressão oral e<br />
escrita (nas conversações informais e<br />
nos documentos oficiais) que transmite<br />
e reforça as relações assimétricas, hierárquicas<br />
e não equitativas que se dão<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
77
entre os sexos em cada sociedade e<br />
que é utilizado em todos os seus âmbitos.<br />
Mas a linguagem não é algo natural<br />
e sim uma construção social e<br />
histórica, que varia de uma cultura<br />
para outra, que se aprende e que se<br />
ensina, que forma nossa maneira de<br />
pensar e de perceber a realidade, o<br />
mundo que nos rodeia e o que é mais<br />
im<strong>por</strong>tante: pode ser modificada”, destaca<br />
o Manual.<br />
Segundo a pesquisadora Teresa<br />
Meana, citada no “Manual para o uso<br />
não sexista da linguagem”, o androcentrismo<br />
é o enfoque nas pesquisas e estudos<br />
de uma única perspectiva: a do<br />
sexo masculino. Supõe, segundo esta<br />
autora, “considerar os homens como o<br />
centro e a medida de todas as coisas. Os<br />
homens são considerados, assim, os<br />
sujeitos de referência e as mulheres<br />
seres dependentes e subordinados a<br />
eles”. Esse androcentrismo se manifesta<br />
graças à desigualdade na ordem<br />
das palavras, no conteúdo semântico<br />
de certos vocábulos ou no uso do masculino<br />
como genérico para ambos os<br />
sexos. Fazendo referência a isso, é preciso<br />
assinalar que o que não se nomeia<br />
não existe e utilizar o masculino como<br />
genérico tornou invisível a presença<br />
das mulheres na história, na vida cotidiana,<br />
no mundo. Basta analisar frases<br />
como: “Os homens lutaram na revolução<br />
francesa <strong>por</strong> um mundo mais justo,<br />
marcado pela liberdade, igualdade e<br />
fraternidade”. E as mulheres? Onde<br />
ficam nessa luta? Não nos enganemos:<br />
quando se utiliza o genérico está se<br />
pensando nos homens e não é certo<br />
que ele inclua as mulheres. A esse respeito,<br />
Teresa Meana diz que “não sabemos<br />
se atrás da palavra homem se está<br />
pretendendo englobar as mulheres. Se<br />
for assim, <strong>elas</strong> ficam invisíveis e se não<br />
for assim, ficam excluídas”.<br />
Outro aspecto que merece reflexão,<br />
são as zombarias, piadas e depreciações<br />
da proposta sobre a linguagem nãosexista.<br />
No texto, os autores lembram<br />
que há quem se dedique a fazer brincadeiras<br />
como: “Os empregados e as<br />
empregadas, baianos e baianas, estão<br />
insatisfeitos e insatisfeitas, <strong>por</strong> serem<br />
convidados e convidadas, e inclusive<br />
obrigados e obrigadas, a declarar-se<br />
católicos e católicas”. Ou alguma autoridade<br />
que, querendo ser engraçado<br />
ou parecer feminista, ao fazer seu discurso<br />
diz que vai falar em feminino e<br />
fala de si mesmo como se fosse mulher.<br />
Evidentemente, quando o Senhor presidente<br />
se refere a si mesmo dizendo<br />
“eu estou surpreendida” o que produz<br />
são risos e um desprezo pelo tema que<br />
não corresponde de maneira alguma<br />
com o respeito às pessoas, sua diferença<br />
e seus direitos”.<br />
O Manual destaca que o que se pretende<br />
ao promover um uso não-sexista<br />
da linguagem, não é que se inverta o<br />
uso do masculino pelo feminino. “Nenhuma<br />
feminista quer im<strong>por</strong> aos homens<br />
a invisibilidade, a desvalorização<br />
ou a discriminação que as mulheres<br />
têm sofrido. Trata-se simplesmente de<br />
promover uma linguagem adequada à<br />
realidade sem negar qualquer pessoa”.<br />
Internet<br />
Cristina Kirchner, Michelle Bachelet e Dilma Rousseff, mulheres<br />
no cargo de presidenta na América Latina.<br />
78 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
Mudanças sugeridas<br />
pelo Manual para o uso não<br />
sexista da linguagem<br />
IFG<br />
• Não usar o feminino para a questão<br />
privada ou que denote posse das mulheres:<br />
“a mulher do Pedro”; “deu a mão de<br />
sua filha”. As pessoas não se possuem,<br />
explica.<br />
• Não usar frases estereotipadas que consolidem<br />
papéis tradicionais: “a galinha<br />
protege seus pintinhos”; “se queria<br />
trabalhar, <strong>por</strong> que teve filhos?”<br />
• Não usar o masculino como universal:<br />
“o mundo é dos homens”; “a origem do<br />
homem”; “os jovens de hoje”.<br />
• Não manifestar fórmulas de tratamento<br />
que implicam inferioridade, menosprezo<br />
ou desvalorização: “Médicos e enfermeiras<br />
que deixam seu lar para ajudar<br />
as pessoas no Haiti”<br />
• Evitar o silêncio que é a invisibilidade e<br />
deixar de usar supostos genéricos que<br />
são masculinos.<br />
“Serviços ao cidadão, Direitos do Cidadão,<br />
Direitos do Consumidor”.<br />
“Os estudiosos acreditam que, uma<br />
vez que o homem da Idade da Pedra<br />
ainda...”<br />
• Não incorrer em estereotipia e/ou<br />
saltos semânticos começando a falar em<br />
masculino como se fosse genérico e continuar<br />
com uma frase que se refere só ao<br />
masculino.<br />
“O gaúcho gosta de churrasco, chimarrão,<br />
fandango, trago e mulher”.<br />
“Os indígenas que trabalham a terra<br />
contam com a ajuda das mulheres<br />
da comunidade”.<br />
A explicação é que as coisas nomeadas<br />
pela língua possuem um gênero<br />
gramatical que não tem relação alguma<br />
com o sexo das pessoas. Assim, as palavras<br />
lua, casa, serra têm gênero feminino<br />
e as palavras lar, mato, planeta<br />
são masculinas. Inclusive há palavras<br />
que se podem usar no masculino e feminino<br />
indistintamente como rádio,<br />
atleta, fã. Também é óbvio que as palavras<br />
que denominam mulheres e homens<br />
têm coincidência entre gênero<br />
gramatical e o sexo das pessoas às quais<br />
nomeia: professora, camponesa, cidadã,<br />
meninas - o gênero feminino coincide<br />
com o sexo da pessoa nomeada.<br />
O documento conclui que se há palavras<br />
adequadas para nomear cada<br />
pessoa, usar o masculino para nomear<br />
as mulheres é, no mínimo, ocultar a<br />
realidade. “Mas, além disso, há que<br />
dizer às pessoas que resistem a falar<br />
com propriedade, e preferem o costume<br />
e o uso tradicional da língua que, segundo<br />
as regras gramaticais, tampouco<br />
é correto utilizar o masculino para se<br />
referir ao feminino. Há toda uma série<br />
de matizes, opções e exceções que formam<br />
parte da gramática normativa<br />
para que a linguagem seja precisa e<br />
adequada, isto é, clara, transparente,<br />
não discriminatória e inclusiva. Não<br />
podemos argumentar a favor do uso<br />
do masculino como neutro ou genérico,<br />
primeiro <strong>por</strong>que não existem substantivos<br />
neutros para as pessoas. E segundo,<br />
e mais im<strong>por</strong>tante, <strong>por</strong>que manter<br />
em uso qualquer forma irreal de<br />
representação do mundo, da vida cotidiana<br />
e das pessoas, é tendenciosa e<br />
prejudicial para o conjunto da sociedade,<br />
uma vez que constrói no imaginário<br />
coletivo ideias e imagens falsas<br />
do seu entorno”.<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
79
Genéricos reais são:<br />
Em lugar de:<br />
Os meninos<br />
Os homens<br />
Os cidadãos<br />
Os trabalhadores<br />
Os professores<br />
Os eleitores<br />
Os jovens<br />
Os homens<br />
Redação excludente<br />
Os indígenas terão crédito<br />
Os jovens que desejam estudar<br />
Os interessados em participar<br />
Os maiores de idade receberão uma<br />
Os meninos terão atenção médica<br />
Utilizar:<br />
As crianças / A infância<br />
A população / O povo<br />
A cidadania<br />
O pessoal<br />
O professorado / O corpo docente<br />
O eleitorado<br />
A juventude<br />
A humanidade<br />
Redação inclusiva<br />
A população indígena terá crédito<br />
A juventude que deseja estudar<br />
As pessoas interessadas em<br />
participar<br />
As pessoas maiores receberão uma<br />
As crianças terão atenção médica,<br />
ou as meninas e os meninos terão<br />
atenção médica<br />
Recomendações de<br />
uso da linguagem<br />
não-sexista<br />
– Não usar formas sexistas<br />
ou androcêntricas. Tornar<br />
visíveis as mulheres e, <strong>por</strong>tanto,<br />
não usar o masculino<br />
como genérico (o masculino<br />
é masculino, não é<br />
genérico).<br />
– Quando se fizer uma oferta<br />
de emprego deve aparecer<br />
o feminino e o masculino.<br />
Preferentemente, como<br />
uma ação positiva,<br />
colocar sempre primeiro<br />
o feminino e depois o<br />
masculino.<br />
– Enquanto a linguagem<br />
continuar carregada de estereótipos,<br />
não convém dissimular<br />
a visibilidade das<br />
mulheres. Por isso é im<strong>por</strong>tante<br />
evitar as barras diagonais:<br />
“oferece-se trabalho a<br />
costureira/o”. Não se devem<br />
usar parênteses “buscamos<br />
um(a) advogado(a)”.<br />
Nesse mesmo sentido é<br />
preciso eliminar os símbolos<br />
que não são legíveis ou<br />
que não é verdadeiramente<br />
representação do feminino:<br />
querid@s amig@s ou todxs<br />
juntxs.<br />
Fonte: Manual para uso não sexista<br />
da linguagem -<br />
www.spm.rs.gov.br<br />
80 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
OUTUBRO ROSA AINDA ESTÁ LONGE,<br />
MAS NUNCA É CEDO<br />
Essa luta é de todas e todos<br />
CUIDE-SE, AME-SE!<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
81
POR<br />
ARTIGO<br />
Véronique Durand<br />
Aborto:<br />
uma questão<br />
além do<br />
bem<br />
e do<br />
mal
O aborto é definido como a interrupção,<br />
antes do termo, do processo<br />
de gestação, ou seja do desenvolvimento<br />
que começa com a concepção pela fecundação<br />
de um óvulo <strong>por</strong> um espermatozoide,<br />
formando assim um ovo<br />
que continua pelo crescimento do embrião<br />
e depois do feto e que finaliza,<br />
no termo, pelo nascimento de um novo<br />
indivíduo da espécie.<br />
Nasci na França, em 1958. Em 1974,<br />
a então ministra da saúde, Simone Veil,<br />
foi encarregada pelo Presidente da República<br />
de pro<strong>por</strong> um projeto de lei<br />
para descriminalizar o aborto. Os debates<br />
na Assembleia Legislativa duraram<br />
três dias e duas noites; foram muito<br />
tempestuosos; ela foi agredida verbalmente<br />
durante todo o tempo, mas não<br />
se ausentou, nem respondeu aos ataques.<br />
Terminou a fala dizendo: “quero<br />
compartilhar uma convicção de mulher.<br />
Peço desculpas <strong>por</strong> fazê-lo frente a essa<br />
Assembleia quase exclusivamente composta<br />
<strong>por</strong> homens: nenhuma mulher<br />
recorre ao aborto com alegria no coração.<br />
Basta ouvir as mulheres...”<br />
Então cresci com essa ideia de direito<br />
adquirido, no campo da saúde e<br />
da saúde reprodutiva, e considero a<br />
Interrupção Voluntária de Gravidez<br />
um direito da mulher. Até descobrir<br />
que, em vários países, é crime. Nenhuma<br />
mulher pensa em abortar. O aborto<br />
é a solução última quando não se tem<br />
outra solução. É a resposta a uma gravidez<br />
impossível.<br />
Falamos de aborto a risco quando<br />
a gravidez é interrompida <strong>por</strong> pessoas<br />
que não têm competências necessárias<br />
ou quando o aborto é praticado num<br />
ambiente onde as normas médicas mínimas<br />
não são aplicadas. Esses abortos<br />
a risco dizem respeito a uma mulher<br />
sobre duas. (OMS)<br />
Aconteceriam 20 milhões de abortos<br />
a riscos a cada ano, no mundo. É muito<br />
difícil medir a mortalidade como consequência<br />
de um aborto ilegal. 97% deles<br />
seriam em países em desenvolvimento<br />
(World Health Organization, 2004).<br />
No Brasil, mais de 2.000 mulheres<br />
abortam todos os dias. A legislação<br />
que criminaliza o procedimento é do<br />
Código Penal de 1940, e é incompatível<br />
com o direito de igualdade de gênero<br />
garantido às mulheres na Constituição<br />
de 1988. Hoje, abortar é crime.<br />
O que diz a lei?<br />
O decreto lei 2848/40 declara no<br />
artigo 140: A mulher grávida que der<br />
consentimento ao aborto praticado <strong>por</strong><br />
terceiro ou que, <strong>por</strong> fato próprio ou<br />
alheio, se fizer abortar, é punida com<br />
pena de prisão até 3 anos.<br />
Toda mulher cuja gravidez não foi<br />
desejada e que não pode ter acesso ao<br />
aborto seguro encontra-se exposta ao<br />
risco. As mulheres pobres têm uma<br />
probabilidade maior de sofrer um<br />
“<br />
No Brasil, mais<br />
de 2.000 mulheres<br />
abortam todos<br />
os dias.”<br />
aborto a risco do que as que têm como<br />
pagar. Além disso, o aborto é praticado<br />
em um estágio tardio da gravidez,<br />
assim a pro<strong>por</strong>ção de óbito e de traumas<br />
aumenta.<br />
Na maioria dos casos, as mulheres<br />
sem renda, confrontadas a uma gravidez<br />
não desejada, provocam <strong>elas</strong> mesmas<br />
o próprio aborto ou consultam<br />
uma pessoa que não tem formação<br />
médica, colocando assim a sua saúde<br />
em perigo e aumentando o risco de<br />
internação <strong>por</strong> causa das complicações.<br />
O fato de poder recorrer a um aborto<br />
seguro e com preço razoável terá também<br />
consequências sobre a situação<br />
financeira dessas mulheres e/ou da<br />
sua família e pode ser considerado<br />
como um eixo de luta contra a pobreza.<br />
Os riscos associados aos abortos<br />
têm a ver com o caráter legal desse<br />
ato: assim, segundo a OMS, nos países<br />
em desenvolvimento, o risco de mortalidade<br />
depois de um aborto é de 4 a<br />
6 óbitos para 100.000 casos de abortos<br />
legais e de 100 a 1000 para 100.000<br />
casos de abortos ilegais (WHO, 2004).<br />
O aborto é uma resposta a uma gravidez<br />
“não prevista” ou “não desejada”.<br />
Trata-se então de compreender <strong>por</strong>que<br />
essa gravidez é percebida dessa forma e<br />
<strong>por</strong>que a mulher deseja interrompê-la.<br />
São muito raras as situações em<br />
que as mulheres que desejam uma gravidez<br />
abortam; a não ser que sejam<br />
obrigadas pelo autor dessa gravidez<br />
ou no caso de políticas governamentais<br />
que incitam a limitar a descendência.<br />
Os motivos mais frequentemente mencionados<br />
no caso de aborto provocado<br />
são a necessidade de espaçar no tempo<br />
ou limitar os nascimentos, depois vêm<br />
as dificuldades econômicas e as razões<br />
ligadas à escolaridade ou ao trabalho.<br />
Outro motivo são as dificuldades na<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
83
Métodos e<br />
riscos do aborto<br />
clandestino<br />
Os abortos clandestinos são<br />
realizados fora do ambiente<br />
médico, com métodos da Idade<br />
Média:<br />
° uso de produtos químicos;<br />
° perfuração do ovo com agulhas<br />
ou objetos cortantes;<br />
° absorção de plantas;<br />
° tomada de grandes quantidades<br />
de remédios;<br />
° chutes na barriga e exercícios<br />
físicos violentos;<br />
° na América Latina em geral e<br />
no Brasil em particular usase<br />
o misoprostol, remédio destinado<br />
inicialmente para tratar<br />
úlcera. O risco desse remédio<br />
é que a pessoa toma em casa,<br />
sozinha e podem acontecer<br />
complicações.<br />
Esses métodos arriscados<br />
frequentemente trazem<br />
relação de casal ou para fazer aceitar<br />
complicações, tais como:<br />
uma gravidez, entre outras coisas <strong>por</strong><br />
° infecções;<br />
causa da idade da jovem.<br />
° septicemia;<br />
Acontece também, no caso de ausência<br />
ou fracasso da contracepção, o<br />
° hemorragias;<br />
medo das reações parentais ou familiais,<br />
em relação a uma gravidez con-<br />
° esterilidade posterior;<br />
° rasgo das paredes do útero; siderada como inaceitável (moças solteiras<br />
ou que supostamente não deveriam<br />
ter relações sexuais), e os pro-<br />
° morte.<br />
blemas relacionais (desentendimento,<br />
negação de paternidade, parceiros ocasionais,<br />
gravidez adúltera) explicam<br />
algumas interrupções de gravidez. A<br />
ausência de contracepção pode ser explicada<br />
pelo fato de que as mulheres<br />
não pensavam ser expostas ao risco<br />
de gravidez ou não imaginavam ter relações<br />
sexuais. O uso de uma contracepção<br />
contínua pode parecer supérfluo<br />
às mulheres que têm uma sexualidade<br />
irregular. A contracepção com o uso<br />
84 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
de preservativo é uma solução para essas<br />
mulheres, mas é difícil, principalmente<br />
para as jovens, im<strong>por</strong> o uso<br />
desse tipo de prevenção. É fundamental<br />
não esquecer que lidar com as questões<br />
de sexualidade é lidar com o íntimo e<br />
que, apesar de programas de informação,<br />
de prevenção, essas relações fogem<br />
do “razoável”.<br />
Quando eu trabalhava com adolescentes<br />
grávidas em Recife, as meninas<br />
José Cruz - ABR<br />
sempre falavam que não tinham preservativos<br />
com <strong>elas</strong>, com medo do rapaz<br />
achar que ela “só pensa em transar”.<br />
<strong>Elas</strong> são confrontadas à dificuldade na<br />
negociação de uma prevenção das suas<br />
relações sexuais, principalmente no<br />
caso de parceiros mais velhos. Os meninos,<br />
questionados da mesma forma<br />
sobre a sexualidade, falavam que “o<br />
problema é da menina... Ela que pode<br />
engravidar... Ela que tem que se prevenir”.<br />
Sem falar dos rapazes que recusam<br />
o uso do preservativo.<br />
A questão da sexualidade vai muito<br />
além do ato sexual; tem a ver com a<br />
identidade, com os com<strong>por</strong>tamentos<br />
esperados <strong>por</strong> jovens mulheres e homens;<br />
com o desejo da menina de se<br />
sentir desejada; com o medo de dizer<br />
não e ser rejeitada, com o prazer nem<br />
sempre. Relações sexuais, além da gravidez,<br />
podem trazer doenças para quem<br />
não se previne.<br />
Recorrer ao aborto clandestino é<br />
revelador de vários outros problemas<br />
aos quais as mulheres estão confrontadas.<br />
Dessa forma, os direitos reprodutivos<br />
das mulheres assim como foram<br />
definidos na Conferência do Cairo<br />
e que enfatizam a possibilidade de<br />
levar uma sexualidade sem risco e de<br />
decidir livremente o momento para<br />
ter os seus filhos não estão sendo respeitados.<br />
Além dos benefícios em termos<br />
de saúde pública, essas leis devem<br />
ser revisitadas para respeitar os direitos<br />
das mulheres a controlar a fecundidade<br />
e se beneficiar de uma melhor saúde<br />
reprodutiva.<br />
Uma gravidez não prevista representa,<br />
na maioria dos casos, para essas<br />
jovens, o medo de rejeição familiar, do<br />
parceiro ou da sociedade, e também<br />
implica abandono da escola além de<br />
comprometer os projetos de vida: o<br />
adiamento da primeira maternidade<br />
pelo aborto é uma boa ilustração disso.<br />
A falta de autonomia de decisão, mas<br />
também de autonomia financeira, as<br />
constrangem a recorrer a métodos baratos<br />
de aborto que apresentam riscos<br />
para a própria saúde.<br />
Sugerimos para evitar os abortos,<br />
uma educação sexual de qualidade, a<br />
prevenção das gravidezes indesejadas<br />
graças à contracepção eficiente, incluindo<br />
a pílula “do dia seguinte” e o<br />
acesso ao aborto seguro e legal.<br />
Para abrir o debate, diria que as<br />
leis que negam o aborto legalizado são<br />
o reflexo de uma decisão moral e religiosa;<br />
não se trata de decisão tomada<br />
do ponto de vista médico nem dos direitos<br />
da mulher. Na realidade, são as<br />
mulheres pobres, privadas de assistência,<br />
de informação, de acesso à<br />
saúde que sofrem esse efeito perverso.<br />
A questão está sendo colocada em termos<br />
religiosos, do bem e do mal, enquanto<br />
o debate precisa acontecer num<br />
contexto laico, ético, de saúde pública,<br />
que garanta os direitos das pessoas.;<br />
Véronique Durand – É doutora em Antropologia,<br />
mestre em Literatura e Cultura Comparada e<br />
mestre em Etnologia. Professora, pesquisadora e<br />
militante. Seu trabalho é voltado para a reflexão e<br />
atuação sobre relações de gênero, desigualdade e<br />
violência.<br />
veronique.marie.durand@gmail.com<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
85
Internet
COMPORTAMENTO<br />
POR<br />
Cecília Alvim<br />
Pelo direito<br />
de envelhecer<br />
dignamente<br />
Mulheres ressignificam o envelhecimento feminino<br />
Envelhecemos... Envelhecendo todas<br />
estamos. Assim como o fim é certo,<br />
o passar do tempo também é. Não há<br />
escolha, mas há caminhos. Envelhecer<br />
pode ser uma experiência de sofrimento<br />
pela perda da juventude, mas<br />
também pode ser uma experiência de<br />
alegria pelo reencontro consigo mesma<br />
e com sonhos esquecidos tempos atrás.<br />
Se recriar, se ressignificar para experimentar<br />
um outro tempo da vida, é<br />
caminhar para uma maturidade saudável,<br />
caminho possível para a antropóloga<br />
Mirian Goldenberg, pesquisadora<br />
e escritora do livro A bela velhice, inspirado<br />
nos escritos de Simone de Beauvoir.<br />
“Chamei de “bela velhice” essa forma<br />
de experimentar o processo de envelhecimento.<br />
Afinal, quem disse que<br />
não existe liberdade, felicidade e beleza<br />
nesta fase da vida?”, reflete Goldenberg.<br />
No entanto, a história e a realidade<br />
mostram que envelhecer não é um processo<br />
tão simples nas sociedades contem<strong>por</strong>âneas.<br />
A filósofa francesa,<br />
Simone de Beauvoir (foto), em sua<br />
obra A Velhice, publicada em 1970, aborda<br />
o envelhecimento como um processo<br />
não apenas biológico, mas cultural. Ela<br />
critica a marginalização vivida pelos<br />
idosos no mundo desenvolvido, traça<br />
um panorama do envelhecimento como<br />
uma fase difícil da vida, mas também<br />
desafia os leitores a mudar essa visão,<br />
ao destacar que a essência das pessoas<br />
não muda com a idade. "Dentro de mim,<br />
está a Outra − isto é, a pessoa que sou<br />
vista de fora − que é velha: e essa Outra<br />
sou eu", disse a filósofa.<br />
Beauvoir, Goldenberg e tantas outras<br />
mulheres falam de um momento da<br />
vida que gera muitos receios e angústias.<br />
Os padrões de beleza impostos pela sociedade<br />
da imagem em que vivemos,<br />
ditam que não é bonito envelhecer, e<br />
que bom mesmo é aprender a driblar<br />
os efeitos do tempo. Para isso, existem<br />
tinturas, cosméticos, cirurgias plásticas,<br />
botox, e mil e um tratamentos para<br />
rugas e para disfarçar as mudanças no<br />
corpo. Isso faz com que <strong>elas</strong>, muitas<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
87
vezes, para serem aceitas e reconhecidas<br />
se submetam aos ditames da moda,<br />
dando continuidade a um ciclo de aprisionamento<br />
da mulher ao longo da vida,<br />
reflexo de uma cultura machista que<br />
impregna todos os tempos do viver.<br />
“A sociedade é menos tolerante com<br />
o envelhecimento feminino. Um exemplo<br />
disso é que os homens podem ter<br />
cabelos grisalhos e serem vistos como<br />
charmosos. Já as mulheres passam a<br />
ser vistas como desleixadas. Tem que<br />
ser corajosa para optar <strong>por</strong> deixá-los<br />
grisalhos”, afirma Antonieta Shirlene,<br />
professora e diretora do Departamento<br />
de Professores Aposentados do Sinpro<br />
Minas (Deasinpro). Ela conta que passou<br />
alguns dias sem pintar os cabelos,<br />
e ouviu vários comentários. “De 15 pessoas<br />
que falaram sobre isso comigo,<br />
nenhuma valorizou os meus cabelos<br />
brancos. Todas queriam de alguma<br />
forma me incentivar a tingi-los”.<br />
Sob a ótica do capital<br />
Para Catarina Brandão, jornalista e<br />
feminista que mora em Brasília, a obsessão<br />
feminina pela juventude eterna<br />
só mostra o quanto o valor social da<br />
mulher ainda está atrelado à sua capacidade<br />
de seduzir e reproduzir. “E a capacidade<br />
de seduzir declina brutalmente<br />
depois que perdemos a de reproduzir,<br />
independente do tempo que consigamos<br />
manter a fachada de juventude. Jovens<br />
ou “velhas”, o fato é que estamos sob<br />
permanente controle.”<br />
Esse controle diz também de outra<br />
realidade. Como para o sistema capitalista,<br />
vale quem produz, as mulheres<br />
que já trabalharam muito e então passam<br />
a experimentar outros sentidos<br />
para a vida na velhice, passam a parecer<br />
invisíveis aos olhos de uma sociedade<br />
de consumo e de aparências, assim<br />
como outros grupos da sociedade que<br />
são colocados à margem desse sistema.<br />
“Os mitos e estereótipos que caracterizam<br />
a velhice como dependente,<br />
como sinônimo de sofrimento e ausência<br />
de beleza física, estão aos poucos<br />
sendo reinterpretados. O capitalista já<br />
percebeu que não é estratégico reproduzir<br />
tais mitos e estereótipos. A velhice<br />
é fonte de possibilidades<br />
mercadológicas e, nesse sentido, é<br />
fonte de realização da mais-valia. A rotação<br />
do capital e a renovação dos seus<br />
ciclos no processo produtivo dependem,<br />
além da exploração de força de<br />
trabalho na esfera produtiva, do consumo<br />
das mercadorias”, afirma Aniele<br />
Zanardo Pinholato, pesquisadora falecida<br />
em 2014, em sua dissertação de<br />
Mestrado pela UFES.<br />
Para o professor José Eustáquio<br />
Diniz Alvez, doutor em Demografia, o<br />
Brasil está passando <strong>por</strong> uma grande<br />
mudança na estrutura etária, com um<br />
recorte acentuado de gênero. A cada<br />
ano cresce o número de pessoas com<br />
mais de 60 anos de idade no país.<br />
No ano 2000, havia 14,2 milhões de<br />
idosos (8,1% da população). No ano<br />
2040, o número de pessoas idosas de -<br />
ve chegar a 54,2 milhões, alcançando<br />
23,6% da população total do Brasil,<br />
segundo estimativas da Divisão de<br />
População da ONU.<br />
Ele destaca também o crescimento<br />
da pro<strong>por</strong>ção de mulheres na população<br />
idosa. Em 1980, a quantidade de homens<br />
acima de 60 anos era de 3,64 milhões,<br />
para 4 milhões de mulheres. A estimativa<br />
da ONU para 2040 aponta um número<br />
de 23,99 milhões de homens e<br />
30,19 milhões de mulheres, uma diferença<br />
de 6,2 milhões de mulheres em<br />
88 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
elação à população idosa masculina.<br />
Este processo é conhecido como “feminização<br />
do envelhecimento”.<br />
“Um dos desafios desse processo é<br />
possibilitar a participação das mulheres<br />
idosas no convívio social, evitando o<br />
isolamento e fortalecendo a autoestima<br />
e a autonomia feminina. A sociedade<br />
brasileira precisa saber aproveitar o<br />
potencial dessas mulheres, que possuem<br />
altos níveis educacionais e ricas<br />
experiências de trabalho e de vida”,<br />
aponta José Eustáquio.<br />
Falar desse tema parece ainda ser<br />
tabu, ou ao menos um grande desafio.<br />
Miriam Fátima dos Santos (fot0),<br />
professora e diretora do Deasinpro,<br />
afirma que a sociedade cria expressões<br />
como terceira idade, melhor idade,<br />
feliz idade, com a intenção de amenizar<br />
e de tentar tornar mais leve essa fase<br />
da vida, mas não é isso o que acontece.<br />
“São termos que acentuam a dificuldade<br />
da sociedade lidar com o envelhecimento<br />
como realmente é. Mas sabemos<br />
que é possível viver um tempo de senescência,<br />
de envelhecimento natural<br />
com dignidade, que é diferente da senilidade,<br />
em que a pessoa se entrega à<br />
tristeza e ao adoecimento”, diz Miriam.<br />
Para Antonieta Shirlene (foto), a<br />
forma de envelhecer tem a ver com valores<br />
e visões muito pessoais. “Não há<br />
uma idade cronológica tão precisa. Depende<br />
de uma decisão que a pessoa vai<br />
tomar a partir de um certo momento<br />
da vida, de como vai encarar o futuro a<br />
partir dali”.<br />
Já Luliana de Castro Linhares<br />
(foto), também professora e diretora<br />
do Deasinpro, diz que “na medida em<br />
que você vai envelhecendo, as pessoas<br />
passam a te ver pela aparência, pela<br />
embalagem, e não vêem mais quem<br />
você realmente é, sua essência que não<br />
muda com o tempo”. Mas ela demonstra<br />
sua satisfação em ter alcançado essa<br />
etapa da vida, e de seguir em frente<br />
realizando a vida e os sonhos. “Envelhecer<br />
é prêmio, sem comprar bilhete<br />
de loteria. Me inveje, <strong>por</strong>que eu cheguei<br />
até aqui. Tô chegando e tô indo”.<br />
Essas e outras mulheres demonstram<br />
que a visão de envelhecimento<br />
vem mudando ao longo do tempo. “Há<br />
pouco tempo atrás, a mulher ia envelhecendo<br />
e passava a ser vista como<br />
Fotos: Mark Florest<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
89
Cecília Fernandes, de BH, em ensaio fotográfico aos 100 anos.<br />
uma senhorinha, com roupa antiga,<br />
voltada só para a família, e, muitas<br />
vezes com um pensamento de que a<br />
vida já acabou. Mas o lugar da velhice<br />
mudou. As velhices agora são muitas.<br />
O melhor é aceitar a idade, o seu<br />
tempo”, diz Miriam.<br />
Para essas professoras aposentadas,<br />
há uma grande mudança no processo<br />
de envelhecimento feminino, que <strong>elas</strong><br />
dizem perceber mais claramente da<br />
década de 1980 até hoje, com a ascensão<br />
em grande escala das mulheres ao mercado<br />
de trabalho, que trouxe mais autonomia<br />
a <strong>elas</strong>; com as mudanças culturais,<br />
inclusive no modo das mulheres<br />
mais velhas se vestirem, viverem suas<br />
escolhas e sua sexualidade; na aceitação<br />
social disso, com o aumento da expectativa<br />
de vida, devido aos cuidados com<br />
a saúde; e no progressivo aumento da<br />
participação das mulheres na vida social<br />
e política do país.<br />
Alvos de uma<br />
sociedade machista<br />
Um símbolo forte dessa mudança<br />
foi a eleição da presidenta Dilma Rousseff<br />
em 2010, aos 63 anos de idade,<br />
com quase 56 milhões de votos. “Ela<br />
não ficou dentro de casa, mas ocupou<br />
espaços públicos, até ser eleita para o<br />
mais alto cargo da sociedade quando<br />
se tornou presidenta do Brasil. Ela é<br />
um exemplo para mim. Simboliza essa<br />
nova teoria do envelhecimento, de uma<br />
Ivna Sá para Mulheres<br />
mulher incansável, que superou inúmeros<br />
desafios e, apesar de tudo, não<br />
se entrega”, destaca Miriam.<br />
Para ela, o golpe contra Dilma em<br />
2016 foi um golpe contra todas as mulheres.<br />
“Alcançamos o mercado de trabalho,<br />
vencemos adversidades, mas ainda<br />
somos alvo de uma sociedade machista<br />
e preconceituosa com as mulheres<br />
e com o envelhecimento feminino”.<br />
Ao envelhecerem, às mulheres passam<br />
a ser negados uma série de direitos.<br />
Embora o Estatuto do Idoso, que completa<br />
14 anos de existência em <strong>2017</strong>,<br />
determine que o “envelhecimento é<br />
um direito personalíssimo e a sua proteção<br />
um direito social” a ser assegurado<br />
pelo Estado, o que se vê na realidade<br />
é o descumprimento dessa assertiva,<br />
já que grande parte da população<br />
idosa enfrenta o abandono e várias<br />
barreiras para viver bem nos dias atuais,<br />
especialmente os(as) mais pobres.<br />
Sancionado pelo ex-presidente Lula<br />
em 2003, o Estatuto do Idoso prevê que<br />
é “obrigação do Estado, garantir à pessoa<br />
idosa a proteção à vida e à saúde, mediante<br />
efetivação de políticas sociais públicas<br />
que permitam um envelhecimento<br />
saudável e em condições de dignidade”.<br />
Para Antonieta Shirlene, o Estatuto trouxe<br />
ganhos também para as mulheres.<br />
“Temos uma legislação que nos assegura<br />
direitos e a que podemos recorrer”.<br />
Em seu discurso no dia da sanção<br />
do Estatuto, Lula disse que esse instrumento<br />
de cidadania precisaria da<br />
adesão de toda a sociedade para se<br />
transformar, de fato, em direitos na<br />
vida das pessoas idosas.<br />
“A partir de hoje, a dignidade do<br />
idoso passa a ser um compromisso civilizatório<br />
do povo brasileiro. É possível,<br />
sim, viver, amar, sorrir e criar com<br />
dez, vinte, cinqüenta, oitenta, cem<br />
90 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
anos. Porque o que nos separa da felicidade<br />
não é o tempo vivido, mas justamente<br />
o oposto: a espoliação do tempo<br />
de viver. Esse é o desafio de todas<br />
as idades, <strong>por</strong>tanto, um desafio de<br />
todos nós. A espoliação mais perversa<br />
de um ser humano é aquela que rouba<br />
do adulto o tempo de usufruir do seu<br />
trabalho com justiça e subtrai do idoso<br />
o tempo da serenidade e da fruição da<br />
experiência acumulada, na convivência<br />
com os seus. Quando não o relega ao<br />
abandono e ao esquecimento”, destacou<br />
o ex-presidente.<br />
Mark Florest<br />
Golpe: negação de direitos<br />
Após um ciclo de conquistas sociais,<br />
vividas durante os governos de Lula e<br />
Dilma, que beneficiaram o conjunto da<br />
população, e também os idosos e as<br />
mulheres, estamos diante de um tempo<br />
de retrocessos. As medidas do governo<br />
ilegítimo de Michel Temer ameaçam<br />
“<br />
A reforma da<br />
Previdência afeta<br />
especialmente<br />
as mulheres.”<br />
os direitos da população em geral e, de<br />
forma direta, as políticas sociais voltadas<br />
para a pessoa idosa, implementadas<br />
nos governos anteriores. “O processo<br />
de envelhecimento com dignidade foi<br />
privilegiado nas gestões Lula e Dilma”,<br />
afirma Antonieta Shirlene.<br />
Com a aprovação da PEC 55 no fim<br />
de 2016, o corte de recursos para a<br />
saúde e para a educação, coloca em<br />
risco também a seguridade social, que<br />
assiste a milhares de idosos, em especial<br />
os mais pobres. Outra grave medida é<br />
a reforma da Previdência, em curso<br />
no Congresso Nacional, que ameaça o<br />
direito de milhões de brasileiros e brasileiras<br />
de terem uma aposentadoria<br />
digna agora e no futuro. E afeta especialmente<br />
as mulheres, pela proposta<br />
de aumento da idade e do tempo de<br />
contribuição, medida que desconsidera<br />
toda a imensa colaboração das mulheres<br />
na criação dos filhos e da família e<br />
na manutenção das tarefas domésticas,<br />
ainda muito relegadas a <strong>elas</strong>. Além da<br />
reforma trabalhista, que representa<br />
grandes prejuízos para as mulheres<br />
trabalhadoras ao longo da vida.<br />
A reforma da Previdência faz parte<br />
também da política neoliberal vigente<br />
de gerar lucros para os grandes grupos<br />
econômicos, pois propaga o déficit e o<br />
fim da Previdência pública ao mesmo<br />
tempo que empurra boa parte da sociedade<br />
para planos de previdência<br />
privada. Assim, tudo indica que pessoas<br />
idosas serão incentivadas a comprar<br />
planos de aposentadoria privada, e<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
91
Arquivo pessoal<br />
das lutas pelos direitos das professoras<br />
do setor privado de ensino. A organização<br />
das professoras aposentadas é im<strong>por</strong>tante<br />
<strong>por</strong>que nossa categoria é majoritariamente<br />
feminina e também está<br />
envelhecendo”, afirmam as diretoras.<br />
aqu<strong>elas</strong> que não têm recursos para pagar,<br />
que representam a maior parte da<br />
sociedade, ficarão sujeitas a uma velhice<br />
sem direitos e sem dignidade.<br />
“Na lista de tantos direitos que ainda<br />
nos faltam, precisamos incluir também<br />
o direito de envelhecer impunemente”,<br />
afirma a jornalista Catarina Brandão.<br />
Resistência<br />
das trabalhadoras<br />
Para fazer frente a essas medidas,<br />
as trabalhadoras aposentadas também<br />
estão em luta pela democracia e <strong>por</strong><br />
seus direitos. “A união de todos para<br />
barrar os retrocessos nos direitos sociais,<br />
trabalhistas e previdenciários, o<br />
que vai atingir a qualidade de vida das<br />
pessoas, é consenso entre as diretoras<br />
do Departamento de Professores Aposentados<br />
do Sinpro Minas, Antonieta,<br />
Miriam e Luliana.<br />
Fundado em 30 de agosto de 2002,<br />
o Deasinpro promove a integração das<br />
professoras e professores aposentados<br />
em torno de ações e lutas. Em seus 15<br />
anos de existência, realizou vários debates,<br />
cursos e atividades culturais,<br />
educacionais e de lazer para essa im<strong>por</strong>tante<br />
parte da categoria docente.<br />
“Fomos impactadas p<strong>elas</strong> ideias feministas<br />
da década de 60, pelos movimentos<br />
de trabalhadores que se fortaleceram<br />
da década de 80 em diante,<br />
pelo sindicalismo classista do qual fazemos<br />
parte, e participamos ativamente<br />
Por uma vida ativa<br />
Romper com os estigmas relacionados<br />
ao envelhecimento e vislumbrar<br />
outras possibilidades de vida é como<br />
recriar o próprio mundo, a partir de<br />
outros valores, como a valorização da<br />
diversidade, da beleza verdadeira e de<br />
saberes próprios a cada idade.<br />
“É um tempo de conviver e conversar<br />
não só com os pares de idade, mas<br />
com todas as pessoas; criar alternativas<br />
saudáveis para viver; realizar projetos<br />
e sonhos; de voltar a fazer coisas<br />
que você gostava e ficaram esquecidas<br />
com o tempo; de fazer boas leituras”,<br />
dizem as professoras aposentadas a<br />
respeito das escolhas que têm feito em<br />
suas vidas.<br />
A antropóloga Mirian Goldenberg<br />
(foto) é também professora da Universidade<br />
Federal do Rio de Janeiro, e autora<br />
de vários livros, entre eles A Bela Velhice,<br />
Coroas, Corpo, Envelhecimento e Felicidade<br />
e Velho é Lindo!. Desde 2007, realiza<br />
uma pesquisa intitulada Corpo, Envelhecimento<br />
e Felicidade, com 1.700 homens<br />
e mulheres moradores da cidade<br />
do Rio de Janeiro. Seu foco de análise<br />
são as representações, as expectativas<br />
e os medos associados à velhice.<br />
Em artigo na Folha, Goldenberg comenta<br />
que as mulheres com mais de<br />
60 anos que foram entrevistadas destacaram<br />
que, “com a maturidade, puderam<br />
se libertar das obrigações familiares<br />
e sociais para investir tempo,<br />
92 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
energia e dinheiro em seus projetos<br />
de vida. Muitas resolveram fazer coisas<br />
que sempre quiseram e não puderam<br />
<strong>por</strong>que não tinham tempo para si mesmas:<br />
estudar, cantar, dançar, viajar,<br />
sair com as amigas − e inúmeros outros<br />
projetos de vida”.<br />
Para Antonieta Shirlene, a jornada<br />
tripla e a contribuição financeira da<br />
mulher trabalhadora no sustento da<br />
família dificulta a realização de vários<br />
projetos ao longo da vida. “Muitas<br />
vezes, a mulher ao se aposentar continua<br />
a auxiliar os familiares com seus<br />
recursos. É comum um filho ou um<br />
neto precisar de apoio ou de ajuda financeira,<br />
e ela novamente abrir mão<br />
de realizar coisas para si. Temos que<br />
estar atentas para não descuidarmos<br />
de nós mesmas nessa fase”.<br />
Para Goldenberg, boa parte das<br />
mulheres passa a vivenciar a velhice<br />
como um tempo de mais liberdade. “O<br />
homem não passa <strong>por</strong> essa ruptura,<br />
<strong>por</strong>que ele sempre foi livre. Então ele<br />
entende mais como uma continuidade”.<br />
Enquanto <strong>elas</strong> passam a valorizar<br />
mais a vida livre e as amizades, eles<br />
passam a dar maior valor à família durante<br />
a velhice.<br />
Istock<br />
Sonhos adormecidos<br />
A professora Miriam Fátima conta<br />
que, depois que se aposentou, optou<br />
<strong>por</strong> manter atividades variadas, como<br />
estudos, trabalhos, atividades artísticas<br />
e políticas. “Uma alternativa saudável<br />
para mim foi resgatar os trabalhos manuais,<br />
que eu aprendi há muito tempo.<br />
Eu estou bordando uma colcha junto<br />
com outras mulheres que será uma homenagem<br />
a uma mulher que admiramos,<br />
e eu estou numa felicidade com isso”.<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
93
Internet<br />
Uma vida com<br />
propósitos<br />
Senhora de 74 anos<br />
costurou e levou<br />
vestidos para<br />
crianças na África<br />
É nessa tem<strong>por</strong>ada da vida que algumas<br />
mulheres conseguem dedicar<br />
algum tempo e recursos, frutos do trabalho<br />
anterior, para realizar sonhos<br />
adormecidos. Luliana decidiu fazer viagens<br />
com um cunho histórico para visitar<br />
lugares que ela conhecia somente<br />
através dos livros, fotos e aulas de história,<br />
disciplina que lecionou <strong>por</strong> vários<br />
anos. Esteve no sul da Espanha e da<br />
França para conhecer a história viva<br />
daqueles lugares às margens do mar<br />
Mediterrâneo. “Me emocionei em cada<br />
lugar, pois em tudo eu via aquilo que<br />
eu ensinava aos alunos em sala de aula.<br />
Agora eu quero ver com meus olhos o<br />
que eu li e ensinei sobre Constantinopla”.<br />
Antonieta conta, entusiasmada, que<br />
também decidiu tirar da gaveta um antigo<br />
projeto. Ela participou da Brigada<br />
Internacional 1º de maio em Cuba, onde<br />
realizou trabalho voluntário e conheceu<br />
a realidade e a cultura do país. “Foi uma<br />
experiência única participar desse movimento<br />
de solidariedade ao povo cubano.<br />
Esse projeto estava na minha programação<br />
há uns 10 anos e só agora<br />
consegui realizá-lo. Deixei tudo <strong>por</strong> uns<br />
dias, as responsabilidades, a casa, o namorado,<br />
o filho. Já trabalhei o suficiente<br />
para me dedicar a esse sonho. E agora<br />
tive condições e maturidade para aproveitar<br />
melhor essa experiência”.<br />
Desenvolver projetos é o que dá sustentabilidade<br />
à vida nessa idade, e que<br />
contribui para uma visão de envelhecimento<br />
mais justa. “Sinto que já estou<br />
devolvendo minha sabedoria para os<br />
netos, compartilhando com eles o que<br />
aprendi da vida”, diz Miriam Fátima.<br />
“Hoje eu valorizo a ousadia e a insubordinação,<br />
como valores que eu<br />
cultivei ao longo da vida, que me possibilitaram<br />
alcançar a autonomia com<br />
que vivo até hoje. O plano que meu pai<br />
tinha para mim não era tão ousado<br />
quanto aquilo que me tornei. E olho<br />
para minha netinha de um ano e meio<br />
e digo: − Viva. Realize. Seja insubordinada”,<br />
relata Luliana, emocionada.<br />
Costurar vestidos para meninas da<br />
África. Essa ideia que surgiu pequena<br />
se tornou um feito grandioso. Edmea<br />
Pires Murta sonhou em fazer e enviar<br />
1000 vestidinhos para o continente<br />
africano, mas ao conversar com um<br />
amigo, descobriu que ela mesma poderia<br />
ir até lá entregar o resultado de<br />
suas tecituras.<br />
Durante um ano, ganhou o apoio<br />
de diversas pessoas e, junto com outras<br />
mulheres, costurou mais de 2 mil peças<br />
de roupa, que foi pessoalmente entregar<br />
para centenas de crianças de Guiné<br />
Bissau em outubro de 2016. Na companhia<br />
do amigo padre e de uma religiosa,<br />
viajou durante horas, visitou localidades<br />
e viu de perto o sofrimento<br />
do povo guineense e a alegria de meninos<br />
e meninas que receberam as<br />
roupas e o carinho que ela levou nas<br />
malas, caixas e no coração. “Foi um<br />
sonho realizado”, relata. Mesmo assim,<br />
ela diz que queria ter levado mais doações.<br />
“O que levamos foi um grãozinho<br />
de areia para um caminhão de necessidades.<br />
Vimos escolas que estavam<br />
há 3 meses sem merenda para seus<br />
alunos. É uma realidade muito triste,<br />
mas é um povo lindo!”<br />
Edmea tem 74 anos e é uma mulher<br />
cheia de dons e de simpatia. Criou 5<br />
filhos, dois deles com deficiência, e<br />
hoje convive também com os netos e<br />
94 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
com a comunidade. É um retrato dessa<br />
tendência das mulheres envelhecerem<br />
e continuarem sonhando e realizando<br />
ações que beneficiam também a coletividade.<br />
Antes do projeto que a levou<br />
à África, ela já costurava e ensinava<br />
outras pessoas a costurar e desenvolver<br />
atividades manuais. Em sua casa no<br />
bairro Copacabana, em Belo Horizonte,<br />
ela tem um cômodo onde é possível<br />
ver fitas, botões, panos, retalhos, tintas<br />
e outros itens que enchem de cor e<br />
vida seu quintal.<br />
Entre o quartinho de costura e sua<br />
casa, há um amplo pátio onde um grande<br />
número de pessoas se reúne algumas<br />
vezes na semana para realizar atividades<br />
físicas e encontros que promovem<br />
a saúde e o bem-estar, especialmente<br />
de mulheres idosas. Como não havia<br />
espaço para isso no centro de saúde,<br />
que fica nas proximidades, ela ofereceu<br />
a sua casa, e assim, muitas mulheres<br />
se beneficiam do seu espaço criativo e<br />
cheio de alegria. Para todo lado, se vê<br />
pinturas suas, flores e plantas, que Edmeia<br />
cultiva com ternura.<br />
Cerca de 80 pessoas frequentam as<br />
atividades que acontecem em sua casa,<br />
entre <strong>elas</strong> a ginástica terapêutica chinesa<br />
Lian Gong, exercícios da Academia<br />
da Cidade, e o grupo da Terceira Idade,<br />
que se reúne para fazer trabalhos manuais<br />
e conviver. “Chegam muitas mulheres<br />
desanimadas, tristes, que vivem<br />
só tomando remédio. Com as atividades<br />
que fazem, saem daqui rindo, felizes,<br />
e com isso melhoram até a saúde”.<br />
Mesmo realizando tudo isso, Edmea<br />
não pára e continua a acolher as pessoas<br />
e a desenvolver novas ideias. Já está<br />
arrecadando e costurando roupas de<br />
cama para destinar em breve a um<br />
hospital carente de recursos no Vale<br />
do Jequitinhonha.<br />
Questionada sobre como encara a<br />
passagem do tempo, ela diz que não<br />
fica reclamando das dificuldades e que<br />
vive “rindo e inventando”. “Eu estou<br />
achando a velhice uma fase muito boa.<br />
É quando a gente pára pra ver as coisas.<br />
O passado machuca muito. Então, para<br />
que olhar para o passado? Vamos viver<br />
o dia de hoje, o presente”.;<br />
Joel Júnior<br />
Edmea Murta visitou Guiné Bissau, na África, onde distribuiu roupas para crianças.<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
95
Paulo Pinto
POR<br />
GÊNERO<br />
Denilson Cajazeiro<br />
Pela visibilidade<br />
lésbica<br />
<strong>Elas</strong> querem ocupar os espaços na sociedade para<br />
reivindicar respeito e o fim da lesbofobia<br />
Um relatório sobre a violência homofóbica<br />
no Brasil, produzido pela Secretaria<br />
de Direitos Humanos da<br />
Presidência da República, mostrou<br />
que as mulheres lésbicas aparecem<br />
entre as principais vítimas nas denúncias<br />
feitas aos órgãos oficiais. Os casos<br />
mais comuns foram, na ordem, de violência<br />
psicológica, discriminação e<br />
violência física. O levantamento mostra<br />
que, mesmo com o aumento das<br />
denúncias, a realidade ainda é assustadora.<br />
Em espaços públicos ou privados,<br />
a chamada lesbofobia persiste<br />
como um grave problema social no<br />
país, e a falta de políticas públicas<br />
mais efetivas para combater essa violência<br />
provoca um quadro de restrições<br />
de direitos humanos.<br />
Para muitos especialistas, a visibilidade<br />
é uma das principais formas de<br />
gerar avanços em relação ao tema.<br />
Quanto maior for a projeção do assunto<br />
na sociedade, de forma não estereotipada,<br />
menor será a barreira do preconceito<br />
e da discriminação. “A invisibilidade<br />
da orientação sexual lésbica<br />
é algo que acho grave e que pode surgir<br />
da forma mais sutil naquele conhecido<br />
questionamento: 'mas você nunca sentiu<br />
desejo <strong>por</strong> um homem?', no qual o<br />
interlocutor não a enxerga como uma<br />
lésbica e sim como uma mulher bissexual,<br />
no máximo. Falar de visibilidade<br />
lésbica, a meu ver, não é só falar que<br />
<strong>elas</strong> existem. É afirmar que <strong>elas</strong> existem<br />
e que são detentoras de direitos, os<br />
quais devem ser respeitados e protegidos.<br />
É respeitar a sua orientação sexual,<br />
seu corpo, seu espaço, sua voz”,<br />
defende a advogada e militante Ticiane<br />
Figueiredo, em publicação no “Blogueiras<br />
Feministas”.<br />
Segundo ela, as mulheres lésbicas<br />
desafiam cotidianamente a lógica patriarcal,<br />
heteronormativa e capitalista<br />
da sociedade atual, e as várias formas<br />
de violência que <strong>elas</strong> sofrem são uma<br />
resposta a essa postura que exercem<br />
cotidianamente. Uma tentativa de apagar<br />
a identidade d<strong>elas</strong>, pontua a advogada.<br />
“De todas as formas de apagar a<br />
identidade lésbica, o 'estupro corretivo'<br />
se mostra o mais odioso, <strong>por</strong>que consiste<br />
em uma prática criminosa na qual<br />
o agressor acredita que poderá mudar<br />
a orientação sexual da lésbica através<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
97
da violência sexual. Isso <strong>por</strong>que, para<br />
eles, ao praticarem tal ato, <strong>elas</strong> vão<br />
'aprender a gostar de homem'. O que<br />
não poderia ser mais desprezível e desumano”,<br />
afirma Ticiane Figueiredo.<br />
Muitas vezes, esse cenário de invisibilidade<br />
e os casos de violência começam<br />
no ambiente familiar, quando<br />
pais ou outros parentes não aceitam a<br />
orientação sexual da filha e se recusam<br />
a discutir o assunto e a reconhecer<br />
seus direitos. “Dentro de casa essas<br />
mulheres estão expostas ao controle<br />
de sua sexualidade. Então, uma mulher<br />
lésbica sofre cárcere em casa para que<br />
não possa se relacionar”, denuncia a<br />
advogada feminista e militante Rute<br />
Alonso, em entrevista publicada no<br />
site da Agência Patrícia Galvão, em que<br />
reflete, entre outros temas, sobre o papel<br />
da mídia ao noticiar casos de violência.<br />
“Uma coisa im<strong>por</strong>tante é que a<br />
violência seja divulgada em sua complexidade,<br />
e não apenas como algo para<br />
impressionar a população. A mídia<br />
deve pensar qual será o efeito de uma<br />
informação que é veiculada de forma<br />
<strong>por</strong> vezes rasa, reforçando o senso comum,<br />
os estereótipos, o que está posto<br />
na sociedade como se fosse o adequado”,<br />
pondera a advogada.<br />
Outra iniciativa considerada fundamental<br />
é a discussão do tema no ambiente<br />
escolar. O debate sobre o assunto<br />
em sala de aula enfrenta forte resistência<br />
de grupos conservadores na sociedade,<br />
inclusive da atual gestão do Ministério<br />
da Educação (MEC). Para se ter uma<br />
ideia, a equipe atual, sob o comando do<br />
ministro Mendonça Filho (DEM), indicado<br />
pelo governo Temer, cortou a homofobia<br />
da lista de preconceitos que<br />
devem ser combatidos com a educação,<br />
ao divulgar o texto da Base Nacional<br />
Comum Curricular – documento com<br />
uma orientação dos conteúdos a serem<br />
adotados nas escolas públicas e particulares<br />
brasileiras. As expressões “identidade<br />
de gênero” e “orientação sexual”<br />
foram extraídas da versão entregue ao<br />
Conselho Nacional de Educação. Uma<br />
medida que, para pesquisadores do<br />
tema, pode ajudar a aumentar os índices<br />
de abandono escolar, pelo fato de os jovens<br />
homossexuais não se sentirem<br />
bem no interior das escolas. “Temos<br />
um índice que não é divulgado para a<br />
sociedade que é o adoecimento e o suicídio<br />
das adolescentes, <strong>por</strong> não estarem<br />
confortáveis com os papéis moldados<br />
pela sociedade”, afirma a ativista e educadora<br />
social Jozeli Rosa.<br />
Apesar da pressão dos grupos conversadores,<br />
ela avalia que a abordagem<br />
do assunto na escola tende a se tornar<br />
inevitável, como uma demanda da própria<br />
juventude. “Eu acho que os jovens<br />
estão com a cabeça muito mais aberta<br />
para compreender e respeitar, e às vezes<br />
muitos professores não acompanham<br />
isso. Nao entendem. A gente<br />
percebe que muitas vezes a comunidade<br />
escolar não consegue acompanhar<br />
esses avanços”, opina Jozeli Rosa, para<br />
quem o diálogo é o primeiro passo para<br />
acabar com a lesbofobia e com outros<br />
tipos de preconceito. “Não se dialoga<br />
com crianças e adolescentes os direitos<br />
sexuais enquanto direitos humanos.<br />
Por mais que as pessoas digam que<br />
hoje não há mais tabu sobre a sexualidade,<br />
percebemos o preconceito diariamente.<br />
Mas temos tido avanços,<br />
apesar de pequenos, que são resultado<br />
de muita resistência e luta dos movimentos<br />
sociais e das mulheres lésbicas.<br />
Há alguns anos jamais estaríamos tendo<br />
esse diálogo aqui. O que pedimos é<br />
respeito e direito, e a escola precisa<br />
fazer isso”.<br />
Mercado de trabalho<br />
Uma recente iniciativa para ampliar<br />
a visibilidade das lésbicas surgiu<br />
no Rio de Janeiro. Após uma conversa<br />
numa rede social, um grupo de amigas<br />
decidiu criar o “Indique uma Sapa”,<br />
uma rede de solidariedade para ajudálas<br />
a conseguir vagas no mercado de<br />
trabalho e a oferecer serviços de profissionais<br />
liberais, como advogadas,<br />
jornalistas, ilustradoras, tatuadoras,<br />
entre outras. “O objetivo do grupo é<br />
criar uma economia solidária e uma<br />
98 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
Paulo Pinto<br />
rede de afeto entre sapatonas. Porque<br />
percebemos que muitas de nós estão<br />
desempregadas <strong>por</strong> causa do preconceito”,<br />
explica Ana Claudino, uma das<br />
criadoras do grupo, que funciona no<br />
facebook e pelo site do coletivo “Sapa<br />
Roxa” (https://goo.gl/Z6rWTQ). Até o<br />
momento, mais de duas mil mulheres<br />
estão cadastradas.<br />
“A maioria dos altos cargos dentro<br />
das empresas é ocupada <strong>por</strong> homens<br />
cis, (O termo cis refere-se concordância<br />
entre a identidade de gênero de um<br />
indivíduo com sexo biológico) brancos<br />
e heterossexuais. Numa entrevista de<br />
emprego, <strong>por</strong> exemplo, se uma mulher<br />
falar que é lésbica ou mesmo que se<br />
perceba a sua sexualidade e performance<br />
de gênero, a probabilidade dela<br />
não ser contratada na empresa é alta.<br />
Muitas entrevistas de trabalho perguntam<br />
até a religião da pessoa e se<br />
ela namora ou não. Tudo isso são estratégias<br />
para manter o preconceito”,<br />
critica Ana Claudino, que revela já ter<br />
sofrido discriminação em uma entrevista<br />
de emprego. “A entrevistadora,<br />
quando viu que eu sou negra e lésbica,<br />
alegou que eu estava mentindo sobre<br />
meu currículo. Meu currículo estava<br />
bom para a vaga até ela olhar para<br />
mim. Também não fui efetivada numa<br />
empresa após a supervisora descobrir<br />
que eu sou lésbica”, afirma. Enquanto<br />
as políticas públicas não saem do papel<br />
e o debate sobre a lesbofobia não ganha<br />
o devido alcance na sociedade, <strong>elas</strong> seguem<br />
na batalha cotidiana <strong>por</strong> respeito<br />
e visibilidade. “Estamos na resistência<br />
constante para demarcar território e<br />
exigir uma sociedade mais humana”,<br />
pontua Jozeli Rosa.;<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
99
Mark Florest<br />
“<br />
Percebi que <strong>por</strong> meio<br />
do vestuário eu dava<br />
voz às mulheres do<br />
hip hop. A gente tem<br />
de lembrar que tratase<br />
de uma moda machista,<br />
desde o início,<br />
em 1973”.<br />
Lorena, estilista e empreendedora
POR<br />
CULTURA<br />
Denilson Cajazeiro<br />
As minas<br />
do hip hop<br />
<strong>Elas</strong> ocupam cada vez mais espaço na cena urbana<br />
e protestam contra o machismo<br />
A cena do hip hop já não é mais a<br />
mesma. Nas pistas, palcos, duelos de<br />
rappers ou nos grafites espalhados pelos<br />
muros das cidades, é fácil perceber<br />
que as mulheres estão cada vez mais<br />
presentes. Entre uma rima e outra,<br />
<strong>elas</strong> travam uma batalha diária pela<br />
visibilidade e contra o machismo, em<br />
uma cultura urbana ainda marcada<br />
pela forte presença masculina.<br />
“Para lidar com o machismo, você<br />
tem de chutar a <strong>por</strong>ta, entrar e mostrar<br />
eficiência”, define a produtora cultural<br />
Soraia Silva, mais conhecida como Totty,<br />
responsável <strong>por</strong> organizar grandes eventos<br />
de hip hop na capital. O primeiro<br />
deles foi em 2003, que reuniu mais de<br />
quatro mil pessoas em uma praça no<br />
Vale do Jatobá, na região do Barreiro,<br />
em Belo Horizonte. “Tenho certeza que,<br />
se algo desse errado naquele dia, a culpa<br />
seria minha, pois era a única mulher<br />
na produção”, conta Totty.<br />
Para a rapper mineira Ohana Santana,<br />
a participação d<strong>elas</strong> no movimento<br />
tem sido cada vez maior, em<br />
razão da crescente consciência das<br />
mulheres. “Estamos cada vez mais nos<br />
entendendo e conseguindo trabalhar<br />
nossa imagem dentro dessa cultura,<br />
que é machista. Tem sido um pouco<br />
mais fácil, <strong>por</strong>que temos tomado a<br />
frente”, afirma Ohana, que revela já ter<br />
enfrentado situações de preconceito,<br />
como ser convidada <strong>por</strong> um rapper<br />
para cantar somente um refrão ou escutar<br />
de um homem o pedido para engrossar<br />
a voz e usar roupa larga, antes<br />
de uma apresentação. “Ser feminina<br />
era algo que não podia no hip hop”.<br />
O primeiro contato de Ohana com<br />
o movimento começou em 2007, quando<br />
decidiu usar o cabelo de forma natural,<br />
sem alisá-lo, e foi buscar referências<br />
na cultura negra. “Comecei a me enxergar<br />
de outra maneira, fora desse<br />
lugar da mídia eurocêntrica”. Um ano<br />
depois, ela participou do duelo de MCs<br />
que ocorre semanalmente debaixo do<br />
viaduto Santa Tereza, no centro de Belo<br />
Horizonte, e desde então passou a frequentar<br />
os eventos. “Hip hop pra mim<br />
é estilo de vida", define a rapper.<br />
Nascido no subúrbio de Nova Iorque,<br />
em meados da década de 70, o hip hop<br />
surgiu como forma de denúncia das<br />
desigualdades. Nos guetos, os jovens<br />
versavam sobre o racismo, a pobreza,<br />
a violência e outras carências sociais.<br />
Há um bom tempo que a cultura já ga-<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
101
nhou projeção para fora das periferias,<br />
mas os problemas persistem nesses<br />
espaços. "O hip hop veio do espaço periférico<br />
e significa resistência. Hoje há<br />
um movimento de mercado que tenta<br />
capturá-lo. Há muitas pessoas dentro<br />
da cultura sem qualquer perspectiva<br />
da realidade. Todos têm o direito de<br />
curtir, mas eu não danço <strong>por</strong>que é modinha.<br />
Direciono minha luta para a<br />
mulher negra, o jovem dentro da quebrada",<br />
destaca a educadora social Sheila<br />
Santana Bacelar.<br />
Em oficinas e grupos que lidera, ela<br />
utiliza a dança para despertar a consciência<br />
e provocar reflexões sobre<br />
temas como violência e sexualidade. A<br />
intenção é aproveitar os movimentos<br />
cor<strong>por</strong>ais para mudar os olhares sobre<br />
o feminino. "O nosso corpo, que o<br />
tempo todo é sexualizado na sociedade,<br />
está aqui para dizer algo, passar<br />
uma mensagem. Não é fácil uma mulher<br />
subir no palco e não ser vista<br />
como frágil ou um corpo sexual.<br />
Temos de nos fortalecer para estar lá.<br />
Dizer que não somos um alvo a ser<br />
buscado. É trampo, velho", revela<br />
Sheila, que há 15 anos se dedica profissionalmente<br />
à dança como forma de se<br />
expressar na sociedade.<br />
Ela considera que, mesmo com o<br />
avanço das mulheres, atuar na cena<br />
do hip hop ainda é algo difícil. Até<br />
2013, <strong>por</strong> exemplo, ela se vestia nos<br />
"rolês" como os homens, para não ser<br />
Carolina Ayala<br />
ignorada. "Hoje não faço isso. Tenho<br />
outro ponto de vista, que se baseia na<br />
resistência de ser mulher; me reconheço<br />
como mulher negra e me considero<br />
uma pessoa que faz o mesmo<br />
que os caras. Mas mesmo assim ainda<br />
hoje é uma cultura machista. Não me<br />
sinto representada e acolhida nos rolês<br />
que os caras fazem", afirma.<br />
E foi justamente <strong>por</strong> meio da moda<br />
que Lorena dos Santos decidiu atuar.<br />
Estilista e empreendedora, ela fundou<br />
a marca "Lolita às avessas", especializada<br />
em produzir roupas para as mulheres<br />
do movimento. "As poucas mulheres<br />
que tinham acesso ao hip hop<br />
precisavam se fantasiar de homem<br />
para incomodar um pouco menos os<br />
caras que estavam nessa cena. Ou seja,<br />
<strong>elas</strong> não podiam se externar. Tinham<br />
de vestir boné, calça larga, tênis, blusão,<br />
casaco. Com muito custo <strong>elas</strong> conseguiam<br />
colocar brinco e batom. Isso foi<br />
muito forte, principalmente nas décadas<br />
de 70 e 80. Na década de 90, houve<br />
uma mudança nisso, um grito de liberdade,<br />
que para mim se relaciona<br />
com o feminismo. E aí vamos percebendo<br />
uma evolução, e as mulheres<br />
passam a usar brincos, saias, pulseiras.<br />
Hoje, se ela usar uma peça masculina<br />
é <strong>por</strong>que gosta e não <strong>por</strong> imposição".<br />
A relação dela com o hip hop começou<br />
em 2002, depois de participar de<br />
um evento de rap. "Sempre transitei<br />
pela blackmusic, mas quando vi<br />
aquela tribo, a estética daqu<strong>elas</strong> pessoas,<br />
aquilo mexeu comigo", revela Lorena,<br />
cuja primeira referência estética<br />
veio da avó materna, Elza Lima. "Ela<br />
sempre foi muito criativa para se vestir",<br />
relembra Lorena, que também é<br />
formada em moda e figurino. Nos desfiles<br />
e ensaios fotográficos das coleções<br />
que lança, ela faz questão de<br />
102 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
colocar em cena mulheres comuns, e<br />
não modelos. A última coleção, <strong>por</strong><br />
exemplo, foi batizada de "Protagonistas"<br />
e reuniu mulheres com forte atuação<br />
nas comunidades em que moram.<br />
"A moda cria essa possibilidade de<br />
mostrar que a beleza não é só eurocêntrica.<br />
Trazemos a diversidade para<br />
vestir os corpos da mulher periférica,<br />
e sempre vi a moda como uma o<strong>por</strong>tunidade<br />
de me comunicar e protestar,<br />
de falar coisas que as pessoas não querem<br />
falar", afirma a estilista.<br />
Mark Florest<br />
Resistência estética<br />
Outra expressão artística da cena<br />
hip hop, o grafite ganha cada vez mais<br />
admiradoras e já figura até em exposições<br />
nas grandes galerias do mundo.<br />
Essa forma de manifestação em espaços<br />
públicos ganhou força no Brasil ainda<br />
nos anos 80 e hoje em dia faz parte do<br />
modo de vida de muitas jovens. Tanto<br />
nos Estados Unidos e Europa como<br />
“<br />
Às vezes uma rapper<br />
faz uma música<br />
contra o machismo<br />
e aí um homem diz:<br />
'lá vem vocês falando<br />
disso novamente'.<br />
Estamos falando<br />
<strong>por</strong>que ainda não foi<br />
resolvido”.<br />
Totty, produtora cultural<br />
Totty, muitas vezes, a única mulher na produção de um evento de Hip Hop.<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
103
Sheila Bacelar: Não é fácil para uma mulher<br />
subir no palco e ser vista como frágil.<br />
Denilson Cajazeiro<br />
aqui, a atuação das mulheres sempre<br />
foi presente, no entanto foi somente<br />
mais recentemente que o protagonismo<br />
feminino ganhou projeção.<br />
Apesar dos estudos publicados sobre<br />
o tema trazerem referências, em<br />
maioria, à participação masculina, Nicholas<br />
Ganz foi um dos poucos autores<br />
que se ocuparam em retratar a participação<br />
feminina na arte de rua. Em<br />
seu livro “Graffiti Woman”, ele reuniu<br />
128 grafiteiras dos cinco continentes,<br />
sendo que oito são brasileiras. Na pesquisa<br />
“Meninas do grafite: adolescência,<br />
identidade e gênero nas culturas juvenis<br />
contem<strong>por</strong>âneas”, a autora Viviane Magro<br />
analisa as experiências vividas <strong>por</strong><br />
grupos de adolescentes e jovens grafiteiras<br />
em Campinas. Para a pesquisadora,<br />
as experiências educativas não<br />
formais no grafite são estratégias privilegiadas<br />
de desenvolvimento, que as<br />
ajudam a minimizar impactos negativos<br />
da exclusão social e a elaborar vivências<br />
afirmativas de si mesmas, evitando outros<br />
meios como os da criminalidade,<br />
drogas e violência.<br />
Em outro artigo, a pesquisadora da<br />
Universidade Federal da Bahia Margarida<br />
Morena investigou a participação<br />
das mulheres grafiteiras nos espaços<br />
públicos de Salvador. Ela procurou observar<br />
como as artistas construíram a<br />
imagem do feminino nos muros da cidade.<br />
No trabalho, a autora revela a inquietude<br />
diante da falta de reflexões<br />
sobre o tema a partir do conceito de<br />
gênero. “Pouco ou nada se sabe sobre<br />
a presença da mulher, enquanto artista,<br />
grafiteira. Por outro lado, pensar o grafite<br />
sob a perspectiva das teorias de<br />
gênero faz emergir a necessidade de<br />
pensar o lugar da mulher nessa prática,<br />
ao mesmo tempo em que se propõe<br />
uma reflexão paralela sobre a mulher<br />
104<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
no espaço público. Debruçar-me sobre<br />
essas tensões, que apontam a mulher<br />
grafiteira como duplamente transgressora,<br />
já que além do ato de grafitar,<br />
que <strong>por</strong> si só já toma de assalto e intervém<br />
nos espaços públicos, a faz<br />
transitar <strong>por</strong> ambientes naturalizados<br />
como pertencentes do masculino, me<br />
faz vislumbrar a possibilidade de uma<br />
investigação singular que pode resultar<br />
em um trabalho im<strong>por</strong>tante para compreender<br />
os percursos empreendidos<br />
p<strong>elas</strong> mulheres na conquista do espaço<br />
público”, comenta Margarida Morena.<br />
Na avaliação da grafiteira Letícia<br />
Perera, é justamente esse ato de transgressão<br />
<strong>por</strong> <strong>elas</strong> praticado que incomoda<br />
a sociedade. “Por que é tão espantoso<br />
ver uma mulher na cultura<br />
hip hop? Porque a mulher foi criada<br />
para não sair de casa. É estranho para<br />
a sociedade ver uma mulher numa situação<br />
de transgressão, de contestação”,<br />
opina Perera, também formada em artes<br />
visuais. Desde que começou a grafitar,<br />
em 2003, ela conta que já enfrentou<br />
inúmeras situações de preconceito<br />
de gênero. Em uma d<strong>elas</strong>, um homem<br />
passou de carro e gritou: ‘vai lavar vasilha,<br />
mulher!’. “Tenho certeza de que<br />
se fosse um cara ninguém passaria e<br />
diria para ele lavar banheiro. Felizmente<br />
isso tem mudado. Não me sinto menor<br />
quando faço uma pintura com um homem.<br />
A mulher em geral lida muito<br />
com isto, com a questão de ter de<br />
provar sua capacidade. Eles não acreditam<br />
que ela possa ser competente.<br />
Hoje, acho os trabalhos das mulheres<br />
muito mais expressivos. A cena feminina<br />
cresceu muito, inclusive em qualidade”,<br />
destaca Perera, para quem o<br />
hip hop é uma forma de resistência<br />
dos sujeitos que estão na cidade, como<br />
forma de reafirmarem sua existência.<br />
Para a grafiteira Criola (fot0), a<br />
pintura no cenário urbano expressa<br />
uma vontade de mudar a realidade social<br />
e cultural ao seu redor. “Assim como<br />
qualquer mulher em uma sociedade<br />
patriarcal e machista, eu infelizmente<br />
não posso ter a liberdade e direito de<br />
andar a noite sozinha sem correr o<br />
risco de ser violentada, <strong>por</strong> exemplo.<br />
Isso interfere no fato de que eu não<br />
tenho a liberdade de pintar de madrugada,<br />
como a maioria dos homens. Preconceito<br />
todas nós sofremos, todos os<br />
dias. Enquanto o meu corpo não for<br />
respeitado pela sociedade, o preconceito<br />
irá existir diante das mulheres”, desabafa<br />
a artista visual, cujos trabalhos que retratam<br />
as mulheres negras são reconhecidos<br />
em todo o país.<br />
“Pintar mulheres negras nas ruas<br />
é um ato político, mais do que propriamente<br />
estético. É tudo uma questão<br />
de coragem. Chutar a <strong>por</strong>ta e falar: eu<br />
posso! Meu corpo está num lugar público,<br />
mas ele não é público. Eu exijo<br />
respeito. É uma maneira de mostrar o<br />
seu posicionamento para a sociedade.<br />
Eu não quero que os meus descendentes<br />
passem pelo que eu passei. Eu vou<br />
lutar, agora, com as armas que eu tenho<br />
nas minhas mãos, no caso é o spray e<br />
a arte”, avisa Criola.;<br />
Débora Junqueira<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
105
Internet<br />
POR<br />
ARTIGO<br />
Márcia Mendonça<br />
Carmen Miranda, novas<br />
representações e narrativas<br />
na contem<strong>por</strong>aneidade<br />
106<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
No ano em que se comemora o centenário<br />
do primeiro samba gravado no<br />
Brasil – Pelo Telefone, de janeiro de<br />
1917 –, Carmen Miranda, uma das mais<br />
emblemáticas personagens do século<br />
20, merece ser lembrada e redescoberta.<br />
Compreender o fenômeno Carmen<br />
Miranda implica analisar<br />
discursos, narrativas, subjetividades e<br />
a cor<strong>por</strong>eidade.<br />
Sua trajetória como cantora ocorre<br />
na década de 1930. A artista ganhou<br />
fama <strong>por</strong> meio do rádio, inicialmente,<br />
com a música Taí (Pra você gostar de<br />
mim), tornando-se a intérprete mais<br />
famosa da década no país. Como atriz,<br />
atuou em diversos filmes rodados no<br />
Brasil e nos Estados Unidos. Sua imagem<br />
de sucesso no exterior atendia<br />
aos interesses políticos norte-americanos<br />
no período que se compreende<br />
como a Política da Boa Vizinhança.<br />
Dona de um estilo próprio, a artista<br />
reinventou a fantasia da baiana <strong>por</strong><br />
meio de batas, babados, turbantes, bijuterias,<br />
plataformas e balangandãs,<br />
lançando moda, criando o estilo Miranda<br />
Look, que tanto sucesso fez nas<br />
vitrines novaiorquinas. Na cultura brasileira,<br />
a artista foi im<strong>por</strong>tante referência<br />
para o Tropicalismo e até mesmo<br />
para o movimento LGBT (Lésbicas,<br />
Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais<br />
e Transgêneros).<br />
O surgimento da artista ocorre num<br />
contexto em que o governo Vargas, a<br />
partir da década de 1930, dá início à<br />
construção de uma identidade nacional.<br />
Nesse período, vários elementos que<br />
representavam as camadas populares<br />
passam a ser incor<strong>por</strong>ados a essa representação.<br />
Tratava-se de um momento<br />
de tensão em torno de certa<br />
negociação da identidade nacional, tendo<br />
como agentes transformadores o<br />
“<br />
A artista foi<br />
im<strong>por</strong>tante<br />
referência para o<br />
Tropicalismo e até<br />
mesmo para o<br />
movimento<br />
LGBT”<br />
Estado e alguns poucos grupos sociais,<br />
especialmente uma parcela da intelectualidade<br />
e do nascente segmento<br />
urbano. Uma identidade redimensionada<br />
via nascente cultura de massa.<br />
Dona de uma performance singular,<br />
na qual está presente a imagem da mulher<br />
sedutora, da mulher continente,<br />
“inscrita no âmbito da irracionalidade”,<br />
de uma cor<strong>por</strong>eidade extravagante e<br />
sexualizada, a artista introduziu como<br />
elemento de composicão de sua personagem<br />
aspectos da cultura popular,<br />
como <strong>por</strong> exemplo a figura do malandro,<br />
e as utilizou em suas apresentações.<br />
Carmen Miranda se inseria em um<br />
contexto aberto a novas significações.<br />
Ao com<strong>por</strong> sua personagem, Carmen<br />
selecionou determinados elementos<br />
desse traje típico, como o pano da costa,<br />
de origem africana; o Bonfim, lembrando<br />
o candomblé; o rosário de ouro, a Igreja<br />
Católica, além de acrescentar outros<br />
elementos como fios de contas no pescoço,<br />
o abdômen nu, o uso de cores<br />
fortes nas roupas, o turbante com cestas<br />
de frutas. Tratava-se de um símbolo da<br />
“brasilidade”, “síntese” do Brasil, representante<br />
das camadas populares<br />
brasileiras em seu convívio supostamente<br />
harmônico com as elites. A baiana<br />
“branqueada” e “exótica” fora, finalmente,<br />
aceita nos espaços sociais elitizados<br />
do Rio de Janeiro no final da década<br />
de 1930, tornando-se uma coqueluche<br />
nos bailes das elites brasileiras.<br />
Mas a consagração da artista veio a<br />
partir de 1939, quando, após uma apresentação<br />
no Cassino da Urca, um empresário<br />
norte-americano a contrata<br />
para fazer espetáculos na Broadway.<br />
Carmen faz sucesso meteórico, atua<br />
em 14 filmes nos Estados Unidos, torna-se<br />
a representante cultural da Política<br />
da Boa Vizinhança, transforma-se<br />
na Bombshell, e passa a ser o segundo<br />
maior cachê pago nos Estados Unidos.<br />
No entanto, os personagens interpretados<br />
pela atriz nestes filmes traziam,<br />
em sua maioria, representações de uma<br />
América Latina desprovida de racionalidade,<br />
todas perfeitamente adequadas<br />
às diretrizes ideológicas norte-americanas,<br />
além de narrativas marcadas<br />
pela diversidade musical (rumba, mambo,<br />
samba estilizado), pela ideia de uma<br />
América marcada pelo exotismo, <strong>por</strong><br />
paraísos tropicais e pela ausência de<br />
trabalho. A imagem de mulher sedutora,<br />
“mulher continente”, “inscrita no âmbito<br />
da irracionalidade”, dona de uma<br />
cor<strong>por</strong>eidade extravagante e sexualizada,<br />
é explorada à exaustão. Tal imagem<br />
atendia plenamente ao jogo de interesses<br />
norte-americano, sendo o cinema<br />
o veículo imprescindível à consolidação<br />
dos interesses políticos. Como<br />
analisa a professora e pesquisadora<br />
Eneida de Souza:<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
107
A relação amorosa entre a cultura latino-americana<br />
e a do norte começa a<br />
tomar corpo, seja através da figura feminina<br />
representativa da América Latina<br />
e construída pelo imaginário do período,<br />
seja pela edução armada pelo conquistador<br />
do norte no diálogo com a glamourosa<br />
e sexy mulher tropical. Carmen<br />
Miranda ocupa o lugar simbólico desse<br />
diálogo, estampado pelos meios de comunicação<br />
de massa, e contriubi para a<br />
alegorização do território <strong>por</strong> meio da<br />
expressão de uma imagam lúdica e liberada<br />
da mulher.<br />
Internet<br />
Ao exacerbar todos os elementos<br />
de sua composição visual, vistos nos<br />
filmes hollywoodianos, Carmen Miranda<br />
foi tornando-se, com o tempo,<br />
uma figura artificializada, caricata, grotesca,<br />
chegando à bizarrice. Suas performances,<br />
marcadas pelo excesso e<br />
pelo exagero, passaram a ser apropriadas<br />
pelo “colonizador’, com objetivo<br />
de tansformá-la em mais um sub-produto<br />
cultural. A partir da leitura crítica<br />
da música O que é que a baiana tem,<br />
observa-se um jogo de sedução presente<br />
na letra, brincando com a ideia de desnudamento<br />
dos segredos da baiana e<br />
de uma cor<strong>por</strong>eidade erótica, num jogo<br />
de perguntas e respostas, sempre a indagar,<br />
a sugerir que algo está faltando,<br />
como podemos observar no refrão “Mas<br />
o que é que a baiana tem”.<br />
Dona de uma cor<strong>por</strong>eidade e performance<br />
diversificadas, pode-se ainda<br />
pensar em Carmen Miranda numa<br />
perspectiva mais ampla, na qual a cultura<br />
se faz presente. Se entendemos a<br />
cultura como uma linguagem de signos<br />
que acompanha, retrata e simboliza<br />
transformações, ela deve ser pensada<br />
também como reflexo do conjunto de<br />
mudanças e hibridismos que nela estão<br />
presentes. Dentro da cultura, a moda<br />
é um campo no qual a reapropriação e<br />
a ressignificação dos signos presentes<br />
nas vestimentas de Carmen Miranda<br />
se apresentaram de forma intensa, fornecendo<br />
alimento ao imaginário social<br />
brasileiro e internacional, ao mesmo<br />
tempo em que sua figura aglutinou representações<br />
sobre noções de diferença,<br />
alteridade e identidade.<br />
Mas a rica indumentária da artista<br />
ficou, no entanto, restrita, nas décadas<br />
de 1940 e de 1950, às vitrines novaiorquinas,<br />
influenciando a moda de lá, e<br />
suas criações foram assimiladas e/ou<br />
recuperadas no Brasil <strong>por</strong> meio de releituras<br />
e ressignificações a partir da<br />
década de 1980. A permanência da artista<br />
na contem<strong>por</strong>aneidade vem se<br />
perpetuando <strong>por</strong> meio da construção<br />
de novas narrativas e discursos, de estilos<br />
diversos. A originalidade e os elementos<br />
de suas vestimentas passaram<br />
a ser vistos nas coleções das grifes<br />
Prada, Dolce&Gabana, Versace, Farm,<br />
Salinas, Rosa Chá, Salinas, Alexandre<br />
Herchcovitch, Pedro Lourenço, Charlotte<br />
Olympia, entre outras marcas, todas<br />
inspiradas nas criações da artista.<br />
108<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
Nesse sentido, torna-se im<strong>por</strong>tante<br />
compreender como as roupas usadas<br />
<strong>por</strong> Carmen Miranda, tão criticadas e<br />
vistas de forma depreciativa no início<br />
de suas aparições, passaram a ganhar<br />
vigor e notoriedade, influenciando diversas<br />
gerações, estilistas e artistas nacionais<br />
e do pop internacional, atingindo<br />
o estatuto de moda, atraindo nichos<br />
como gays e artistas, possibilitando<br />
uma gama de reapropriações. Poderíamos<br />
dizer que Carmen Miranda foi uma<br />
artista da modernidade, pré-tropicalista,<br />
pré-multimídia, pré-pop, capaz de adaptar-se<br />
a todas as mídias emergentes do<br />
período, do disco ao rádio, do cinema à<br />
TV e ainda presentes na contem<strong>por</strong>aneidade.<br />
Poderíamos ainda dizer que a<br />
artista aparece como uma espécie de<br />
Madonna dos anos de 1930 em apresentações<br />
e performances, e no sentido<br />
de que soube aproveitar como ninguém<br />
todas as linguagens da mídia, influenciando<br />
diversas gerações nos campos<br />
da moda e do com<strong>por</strong>tamento.<br />
Analisar a cor<strong>por</strong>eidade em Carmen<br />
Miranda enquanto um elemento<br />
transgressor e potencializado <strong>por</strong> suas<br />
criações, com repercussões nos dias<br />
atuais, é pensar na transgressão enquanto<br />
um elemento do erotismo.<br />
Como afirma o escritor francês George<br />
Bataille, “o erotismo encontra-se vinculado<br />
à transgressão; a transgressão<br />
faz parte do erotismo”.<br />
Na questão de gênero, pode-se pensar<br />
também na artista como uma criadora<br />
de identidades múltiplas, como,<br />
<strong>por</strong> exemplo, recuperando símbolos diversos<br />
e controversos ligados aos trópicos,<br />
mas também ligados a outras<br />
formas de representação. Um exemplo<br />
disso é a relação que se estabeleceu<br />
entre gays e a artista, com o surgimento<br />
da Banda da Carmen Miranda, em 1984,<br />
no Rio de Janeiro, criada pelo figurinista<br />
Célio Bacellar. Posteriormente, na década<br />
seguinte, e ainda no Rio de Janeiro,<br />
surge outro bloco, o Bloco das Drags.<br />
Como aponta Correa (2011, p. 144):<br />
(...) a indumentária mais usada p<strong>elas</strong><br />
drags queens que incor<strong>por</strong>am Carmen<br />
Miranda é a baiana, pela qual ficou famosa<br />
e cuja estilização extravagante a<br />
aproximava da ideia de brasilidade já<br />
absorvida pelo público norte-americano<br />
(...) com a maquiagem carregada e gestos<br />
elaborados, esse exagero visual tornouse<br />
a referência essencial para as drags,<br />
fenômeno dos anos 90, confirmando a<br />
associação da imagem de Carmen às<br />
manifestações performáticas das comunidades<br />
gays já nos anos 70. O riso,<br />
o deboche, o grotesco e a ironia, usados<br />
em sua performance como atriz, também<br />
fazem parte da construção da persona<br />
Carmen Miranda, símbolo das subculturas<br />
gays (...).<br />
Ao analisar o percurso pelo qual<br />
suas vestimentas, adornos, adereços<br />
colares, braceletes de ouro, de prata<br />
ou de latão, brincos, pencas de balangandãs,<br />
turbantes, sandálias, pulseiras,<br />
anéis com origem estética da cultura<br />
africana tornaram-se, num dado momento<br />
histórico, parte constituidora<br />
de um determinado modo de representação<br />
da identidade da cultura brasileira,<br />
e como, posteriormente, na<br />
contem<strong>por</strong>aneidade, sua imagem forneceu<br />
elementos para a compreensão<br />
de uma identidade múltipla e multirracial;<br />
a tropicalidade, servindo de mediação<br />
discursiva entre duas matrizes<br />
culturais; o gestual e a cor<strong>por</strong>eidade<br />
transgressores de sua figura, dotada<br />
de intensa complexidade, apresentando<br />
sinais da mais radical alteridade (dos<br />
imaginários do corpo, tão presentes<br />
ao longo do século como nos dias<br />
atuais); o estatuto de imagem cult, principalmente<br />
após o cantor Caetano Veloso<br />
a ter saudado como símbolo máximo<br />
do Tropicalismo, no final dos<br />
anos de 1960.<br />
O mito Carmen Miranda é marcado<br />
<strong>por</strong> intensa circularidade e atravessa<br />
décadas. É interessante observar como<br />
os movimentos a partir de uma artista<br />
estilizada, tão ao gosto de segmentos<br />
da elite brasileira, e em seguida apropriada<br />
pelos Estados Unidos, alvo de<br />
críticas <strong>por</strong> parte de nacionalistas brasileiros<br />
de esquerda, levam à retomada<br />
da artista como um mito pelos tropicalistas,<br />
no final dos anos de 1960 até<br />
alcançar o estatuto de cult na contem<strong>por</strong>aneidade.;<br />
Referências bibliográficas:<br />
CORREA, Gustavo Borges. As Várias Faces de<br />
Carmen Miranda: O Caso das Drag Queens no<br />
Carnaval Carioca. In: Seminário Circuitos da Cultura<br />
Popular, Anais Eletrônicos. Rio de Janeiro:<br />
UFRJ/IFCS, 2010. p. 269-287.<br />
SOUZA, Eneida Maria de. Do kitsch ao cult. In: CA-<br />
VALCANTE, Berenice; STARLING, Heloisa Maria<br />
Murgel; EISEMBERG, José (orgs). Decantando a<br />
República: Inventário histórico e político da canção<br />
popular moderna brasileira. Rio de Janeiro:<br />
Nova Fronteira; São Paulo: Fundação Perseu<br />
Abramo. v. 2. p. 76.<br />
Márcia Mendonça – Professora universitária e pesquisadora<br />
- Graduada em História e Comunicação<br />
(Jornalismo). Mestre em Artes Visuais – EBA/ UFMG.<br />
Leciona em programas de graduação e pós-graduação<br />
nas áreas de Cinema, História e Moda.<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
109
ATEBEMG
PERFIL<br />
POR<br />
Cecília Alvim<br />
Elza Soares:<br />
uma mulher do fim do mundo<br />
“<br />
Na avenida deixei lá<br />
A pele preta e a minha voz<br />
Na avenida deixei lá<br />
A minha fala, minha opinião<br />
A minha casa, minha solidão<br />
...<br />
Mulher do fim do mundo<br />
Eu sou<br />
Eu vou<br />
Até o fim<br />
Cantar”<br />
Trechos de: Mulher do<br />
fim do mundo<br />
(Romulo Fróes e Alice Coutinho)<br />
Elza nos toca com sua vida e sua<br />
música. Numa entrevista exclusiva à<br />
revista <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong>, essa mulher ímpar<br />
conta sua história e nos inspira com<br />
seu grande coração que já superou inúmeras<br />
adversidades.<br />
Elza Soares nasceu na favela da<br />
Moça Bonita, na capital carioca. Aos<br />
doze anos de idade, <strong>por</strong> ordens do pai,<br />
casou-se com Lourdes Antônio Soares,<br />
conhecido como Alaúrdes, e cerca de<br />
um ano depois deu à luz seu primeiro<br />
filho, João Carlos.<br />
Como tinha o sonho de cantar e<br />
precisava comprar remédios para seu<br />
filho recém-nascido, aos treze anos decidiu<br />
participar do programa de Ary<br />
Barroso na Rádio Tupi, e fez sua primeira<br />
apresentação ao vivo no auditório<br />
da emissora, que era a maior de seu<br />
tempo. Em princípio não foi levada a<br />
sério, <strong>por</strong> seu jeito humilde de falar e<br />
se vestir. O apresentador perguntou,<br />
então, de que planeta ela viera, ao que<br />
respondeu: “Do mesmo planeta seu,<br />
seu Ary. O Planeta Fome”. A partir daquele<br />
momento ninguém mais riu e<br />
Elza cantou Lama, e encantou a todos.<br />
Sua carreira, entretanto, só foi iniciada<br />
alguns anos depois. Antes disso,<br />
trabalhou como lavadeira e como operária<br />
em uma fábrica de sabão. Aos 21<br />
anos, ficou viúva, com filhos para criar.<br />
Porém, seguiu em seu propósito de<br />
vida, que era cantar. Cantou na Orquestra<br />
de Bailes Garan, no Teatro João<br />
Caetano, na tem<strong>por</strong>ada de uma peça<br />
teatral na Argentina, na Rádio Mauá,<br />
na Rádio Tupi e depois trabalhou como<br />
crooner de uma boate carioca.<br />
Seu primeiro disco foi lançado em<br />
1960, pela Odeon, e <strong>por</strong> meio da faixatítulo<br />
“Se acaso você chegasse” alcançou<br />
logo grande sucesso. Já Bossa Negra<br />
foi lançado em 1961. No ano seguinte,<br />
integrou a comitiva de artistas brasileiros<br />
que representaram o país durante<br />
a Copa do Mundo de Futebol, no Chile.<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
111
Nesse período, Elza já havia iniciado<br />
um romance com Garrincha, jogador<br />
de destaque na competição e que garantiu<br />
a taça para a seleção brasileira.<br />
Essa relação lhe gerou muita perseguição.<br />
Na época, Garrincha era casado<br />
e Elza foi acusada de ser uma destruidora<br />
de lares, passando a sofrer constantes<br />
ameaças, que não se interromperam<br />
mesmo durante o período em<br />
que a união entre os dois foi oficializada.<br />
Casaram-se em 1968, <strong>por</strong>ém após Elza<br />
ser ameaçada de morte <strong>por</strong> meio de<br />
um bilhete anônimo, em 1970, o casal<br />
resolve sair do país com destino à Itália.<br />
Nesse mesmo ano, lança o aclamado<br />
Elza Pede Passagem e é homenageada<br />
pelo conselho de música popular do<br />
Museu da Imagem e do Som, do Rio<br />
de Janeiro, com o título de Embaixatriz<br />
do Samba.<br />
Entre as décadas de 1960 e 1970, vivenciou<br />
o auge de sua carreira. Desde<br />
o seu primeiro registro fonográfico até<br />
o ano de 1982, lançou em média um<br />
disco <strong>por</strong> ano, alguns deles trazendo<br />
parcerias de sucesso, como exemplo a<br />
que resultou na trilogia Elza, Miltinho<br />
e Samba (1967, 1968 e 1969) e com o baterista<br />
Wilson das Neves (1968). Durante<br />
a década de 1970, realizou, ainda, turnês<br />
pela Europa e pelos Estados Unidos.<br />
Contudo, esse período foi também<br />
marcado pela dor. Seu companheiro,<br />
Garrincha, já enfrentava problemas<br />
com alcoolismo e as tentativas de Elza<br />
de desviá-lo da rota dos bares eram<br />
criticadas pelos amigos do ex-jogador.<br />
Sua mãe morre no ano de 1969 após<br />
um acidente de carro em que sua filha<br />
Sara, Garrincha e ela também saíram<br />
feridos. Acredita-se que Garrincha dirigia<br />
alcoolizado.<br />
No começo dos anos de 1980, após<br />
16 anos de casamento, não su<strong>por</strong>tando<br />
mais a luta contra a doença do marido,<br />
os casos de violência doméstica que<br />
sofria e na busca de proteger o filho,<br />
Garrinchinha, de um ambiente familiar<br />
conturbado, Elza separa-se do<br />
“gênio de pernas tortas”, que falece um<br />
ano depois.<br />
Apenas três anos mais tarde, um<br />
novo acidente de carro marca profundamente<br />
sua vida. Aos nove anos de<br />
idade, morre Garrinchinha, seu filho<br />
caçula. Desnorteada e sentindo a dor<br />
da perda de mais um filho, Elza decide<br />
sair do Brasil, em turnês pela Europa<br />
e pelos Estados Unidos.<br />
Retorna ao Brasil em 1995. Dois<br />
anos depois, lança o álbum Trajetória,<br />
desta vez totalmente dedicado ao samba.<br />
Sua carreira só ganha novo fôlego<br />
na década posterior, após a BBC de<br />
“<br />
Cadê meu celular?<br />
Eu vou ligar pro 180<br />
Vou entregar teu nome<br />
E explicar meu endereço<br />
Aqui você não entra mais<br />
Eu digo que não te<br />
conheço<br />
E jogo água fervendo<br />
Se você se aventurar<br />
Cê vai se arrepender de levantar<br />
a mão pra mim”<br />
Trechos de: Maria da Vila Matilde<br />
(Douglas Germano)<br />
Londres a descrevê-la como “a cantora<br />
do milênio” e a revista Time Out, como<br />
“uma mistura explosiva de Tina Turner<br />
com Célia Cruz”. Em 2002, lança Do<br />
Cóccix até o Pescoço, que conta com<br />
músicas de Caetano Veloso, Chico Buarque,<br />
Jorge Ben Jor e outros grandes<br />
compositores da música popular brasileira.<br />
Por este trabalho, Elza foi indicada<br />
ao Grammy Latino. Em 2007, a<br />
artista interpreta o Hino Nacional Brasileiro<br />
na cerimônia de abertura dos<br />
Jogos Pan-Americanos, sediados no<br />
Rio de Janeiro.<br />
Em 2015, Elza lança seu primeiro<br />
disco de músicas inéditas, A Mulher do<br />
Fim do Mundo, que recebeu o Grammy<br />
Latino no ano seguinte. O espetáculo<br />
traz a cantora sentada em um trono<br />
metálico em meio a um cenário cercado<br />
<strong>por</strong> mil sacos plásticos de lixo. Do<br />
alto das suas seis décadas de carreira,<br />
Elza Soares leva aos palcos uma<br />
"ópera" emocional que retrata as maz<strong>elas</strong><br />
da sociedade. As canções compostas<br />
pelos paulistas José Miguel<br />
Wisnik, Romulo Fróes e Celso Sim<br />
falam sobre sexo, racismo, transsexualidade,<br />
violência doméstica, narcodependência,<br />
crise da água e morte.<br />
Em <strong>2017</strong>, Elza Soares se apresenta<br />
nos principais palcos brasileiros e participa<br />
do prestigiado festival Primavera<br />
Sound, em Barcelona, e do festival NY<br />
Summerstage. “Elza Soares é uma artista<br />
viva, corajosa e, acima de tudo,<br />
não tem medo de nada! Nada é moderno<br />
demais para ela. Nenhuma dissonância<br />
a assusta, nenhuma distorção<br />
a intimida. Com sua fome do novo, se<br />
transforma sempre. É uma das pessoas<br />
mais generosas e humanas que já tive<br />
a o<strong>por</strong>tunidade de conhecer”, afirma<br />
o produtor do espetáculo e baterista<br />
Guilherme Kastrup.<br />
112 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
ENTREVISTA<br />
“Sou<br />
inconformada,<br />
não me<br />
calo”<br />
ATEBEMG<br />
Elza, como foi sua vida de menina?<br />
Como era seu relacionamento com<br />
seus familiares e a comunidade?<br />
Eu vim da comunidade Moça Bonita,<br />
subúrbio do Rio. Tive origem humilde<br />
e desde criança entendi que tinha que<br />
lutar muito para mudar a minha situação.<br />
Como sempre fui muito levada,<br />
nunca me conformei com o pouco. Eu<br />
era o chamego do meu pai, Seu Avelino,<br />
grande homem. Ele trabalhava na pedreira<br />
e minha mãe, Rosária, lavava<br />
roupa para fora. Quando criança meu<br />
sonho era trabalhar para viver uma vida<br />
melhor. Sempre fui muito atrevida e<br />
nunca tive medo de nada. Para mim<br />
não existe NÃO!<br />
Você teve que se casar e foi mãe ainda<br />
menina. Como foi viver uma adolescência<br />
e juventude já com tantos desafios?<br />
Eu era muito menina, não tinha noção<br />
da responsabilidade, para mim era como<br />
brincar de boneca. Me casei cedo <strong>por</strong>que<br />
fui levar almoço para meu pai na pedreira,<br />
no caminho me distraí e fui caçar<br />
louvadeus, encontrei um rapaz, meu pai<br />
me viu saindo do mato com um rapaz e<br />
me obrigou a casar acreditando que algo<br />
havia acontecido entre nós. Somente<br />
mais tarde, quando fiquei viúva que eu<br />
entendi o peso da responsabilidade.<br />
A maternidade para você foi uma experiência<br />
rica, mas difícil pela perda<br />
de quatro dos seus sete filhos. Mas o<br />
que te trouxe de melhor?<br />
Ser mãe é um dom divino. Amo meus<br />
filhos, até hoje são minhas crianças. Foram<br />
os momentos mais lindos da minha<br />
vida. As perdas deles também foram os<br />
piores momentos que já vivi, não desejo<br />
a ninguém. Os desafios me trouxeram<br />
força. Sempre aprendemos algo!<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
113
Quando surgiu o desejo e a o<strong>por</strong>tunidade<br />
de começar a cantar? O que a<br />
música significa para você?<br />
Eu via a Bibina, minha irmã mais velha<br />
que eu, cantar. Ela era cantora lírica,<br />
era a cantora da família, mas morreu<br />
jovem, morreu de amor, época em que<br />
se morria <strong>por</strong> amor. Eu entendi que<br />
tinha uma voz diferente ainda muito<br />
jovem. A necessidade me fez cantora,<br />
<strong>por</strong>que ouvi no rádio que Ary Barroso<br />
dava prêmio em dinheiro para quem<br />
passasse pelo teste do gongo. Como eu<br />
precisava de dinheiro para sustentar<br />
meus filhos, já viúva, fui lá, e o fim da<br />
história todos vocês já sabem... A música<br />
para mim é o remédio da alma!<br />
Como foi conciliar a vida de mãe,<br />
dona de casa e trabalhadora, com o<br />
ofício de cantar?<br />
Sempre fui muito inquieta. Nunca tive<br />
medo de trabalho, nunca tive medo de<br />
nada. Era uma loucura, <strong>por</strong>que além<br />
dos meus filhos, também criei as filhas<br />
do Mané. Era muita criança para dar<br />
conta, mas consegui conciliar tudo!<br />
No mercado de trabalho em geral, a<br />
mulher ganha menos e enfrenta grandes<br />
desafios. Isso se reflete no cenário<br />
musical com as mulheres cantoras e<br />
artistas? Você viveu isso, e ainda “briga<br />
<strong>por</strong> justiça e <strong>por</strong> respeito”, como<br />
diz sua música?<br />
O mercado de trabalho é muito ingrato<br />
com nós, mulheres. Se for negra, pior<br />
ainda!Sou inconformada, não me calo!<br />
Brigo sempre <strong>por</strong> justiça e respeito. E<br />
sigo fazendo a minha arte. Só faço o<br />
que gosto e acredito.<br />
Quais preconceitos e violências sofreu<br />
em sua vida, <strong>por</strong> ser mulher e negra,<br />
que poderia compartilhar conosco?<br />
Porque as mulheres brasileiras são<br />
vítimas de violência e discriminação<br />
ainda hoje?<br />
A primeira vez que vi e sofri preconceito<br />
foi quando fui com minha mãe na casa<br />
de uma família buscar a roupa que<br />
minha mãe lavava para eles, e o <strong>por</strong>teiro<br />
não deixou ela subir pelo elevador social.<br />
Ali eu entendi o que era preconceito!<br />
Nossa sociedade é machista, <strong>por</strong> isso a<br />
mulher ainda sofre com violência e discriminação.<br />
Mas não podemos calar,<br />
denunciar sempre! Denuncie Now! Não<br />
podemos aceitar.<br />
A música “Maria de Vila Matilde” divulga<br />
o Ligue 180 e convoca para o<br />
combate à violência contra a mulher.<br />
Você considera que a música deve ser<br />
um instrumento de conscientização<br />
e resistência à violência e à opressão<br />
de gênero?<br />
Claro. Esse é o papel do artista que questiona<br />
a sociedade em que vive! O artista<br />
tem o poder de conscientizar e alertar.<br />
Como cantora, tento cumprir esse papel.<br />
“A carne mais barata do mercado é a<br />
carne negra”, diz a música “A carne”.<br />
Quais os caminhos para mudar essa<br />
realidade? Você acha que a escola e<br />
as professoras têm um papel im<strong>por</strong>tante<br />
nesse debate?<br />
Se você não mudar, nada muda. Esse é<br />
o primeiro passo para definitivamente<br />
mudar algo que nos incomoda. Educação<br />
é essencial para o povo. O que seria de<br />
todos nós se não existissem os professores?<br />
A música “A carne” também fala sobre<br />
padrões e estereótipos impostos às<br />
mulheres. “E esse país vai deixando<br />
todo mundo preto, e o cabelo esticado”.<br />
O que é beleza pra você?<br />
Beleza é autoestima. É você se sentir<br />
em paz consigo mesma...<br />
Você declarou que votou em Dilma.<br />
Você acha que o impeachment, que<br />
muitos consideram como golpe, teve<br />
a ver com machismo?<br />
Preciso mesmo responder?<br />
Na história recente do país, milhares<br />
de pessoas saíram da condição de miséria<br />
e fome, uma realidade que você<br />
conheceu, não é mesmo? Você considera<br />
que as políticas sociais que mudaram<br />
esse cenário, estão em risco<br />
neste momento?<br />
Estamos vivendo um momento de muita<br />
dificuldade. Está tudo muito estranho,<br />
muito esquisito... Mas tenho muita fé<br />
que conseguiremos nos salvar.<br />
Para você, o que significa ser uma<br />
“mulher do fim do mundo”? Com esse<br />
álbum e outros, você ganhou muitos<br />
prêmios e recebeu reconhecimento<br />
nacional e internacional. O que ainda<br />
almeja alcançar?<br />
A Mulher do Fim do Mundo sou eu e<br />
todas as mulheres que batalham dia<br />
após dia. A Mulher do Fim do Mundo<br />
não se cala, briga <strong>por</strong> sua liberdade e<br />
espaço... Almejo que Deus permita que<br />
eu cante até o fim!<br />
Quais são seus sonhos para as mulheres<br />
e para o país? Como as mulheres<br />
podem ser protagonistas de<br />
uma outra história?<br />
Meu sonho é que todas as mulheres sejam<br />
respeitadas, valorizadas, que conquistem<br />
de uma vez <strong>por</strong> todas sua liberdade<br />
e dignidade. Não precisa se<br />
preocupar em ser protagonista. Viva e<br />
escreva sua história todos os dias quando<br />
abrir a janela da vida!;<br />
114 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
Cineclube Joaquim<br />
Pedro de Andrade<br />
Terças-feiras, às 19 horas<br />
Rua Tupinambás 179, 14º andar, Centro - BH<br />
Informações: 3115-3000 - 3274-5091<br />
sinprominas@sinprominas.org.br<br />
ENTRADA FRANCA<br />
A mostra de cinema do cineclube Joaquim Pedro de Andrade é uma realização mensal<br />
com quatro exibições às terças-feiras, sempre às 19 horas, com debates após as exibições.<br />
As sessões especiais acontecem às 14 horas, quando há demanda do público<br />
específico: escolas, associações, movimentos sociais entre outros segmentos da<br />
sociedade. 40% da programação durante o ano é de filmes brasileiros.<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
115
Arquivo Sinpro Minas<br />
“<br />
“A vida vale a<br />
pena se a gente<br />
tiver força de<br />
lutar, alegria<br />
de viver e prazer<br />
de amar”<br />
116 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
POR<br />
MEMÓRIA<br />
Débora Junqueira<br />
Gilse Cosenza<br />
deixa legado de<br />
resistência<br />
Márcia, Ceci, Léa, Tânia, Lia, Cecília.<br />
Independentemente do codinome usado<br />
na clandestinidade, Gilse Westin<br />
Cosenza possuía a coragem de muitas<br />
mulheres em uma só. Uma guerreira<br />
que ficou encantada no dia 28 de maio<br />
de <strong>2017</strong>. “Quem luta, não morre, fica<br />
encantada”, disse na sua última entrevista<br />
à equipe do programa de TV Extra-Classe,<br />
produzido pelo Sinpro Minas,<br />
que foi ao ar pela Rede Minas, em<br />
fevereiro deste ano. Para o Sindicato<br />
dos Professores, a militante política<br />
Gilse Cosenza sempre foi considerada<br />
uma figura especial e recebeu muitas<br />
homenagens em vida. Uma d<strong>elas</strong> foi<br />
na comemoração pelo Dia Internacional<br />
da Mulher, em 2007, quando ganhou<br />
uma singela placa confeccionada em<br />
pedra com alguns dizeres gravados.<br />
Na visita à casa dela para a entrevista,<br />
a placa estava lá em destaque na<br />
estante, entre outras tantas que ela<br />
também recebeu como reconhecimento<br />
<strong>por</strong> sua luta de resistência contra a<br />
ditadura e em defesa dos direitos do<br />
povo brasileiro. Aliás, resistência foi o<br />
nome do programa que deu início à<br />
série de re<strong>por</strong>tagens para destacar pessoas<br />
de luta como essa guerreira. A<br />
escolha de seu nome como entrevistada<br />
foi unanimidade. Afinal, Gilse, desde<br />
a sua militância estudantil contra a ditadura,<br />
lutas na clandestinidade e em<br />
defesa das mulheres, atuação como dirigente<br />
do PCdoB e como membro da<br />
Comissão de Anistiados, sempre foi<br />
um exemplo de mulher coragem.<br />
Já na produção da entrevista, a jornalista<br />
Cecília Alvim, que bateu um<br />
longo papo com a Gilse, ficou impressionada<br />
com as suas histórias de superação.<br />
“Ela me contou sobre o que<br />
passou no período da ditadura, de como<br />
entrou na clandestinidade, de como<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
117
teve que se virar para viver e se esconder<br />
dos militares, de como conseguiu<br />
sobreviver à tortura psicológica a respeito<br />
do paradeiro de sua filha enquanto<br />
estava na prisão, de como criou suas<br />
filhas em diferentes lugares enquanto<br />
prestava um grande serviço à nação<br />
de lutar contra um regime ditatorial e<br />
pela restauração da ordem democrática”,<br />
relata Cecília.<br />
Antes de chegarmos à casa dela,<br />
fiquei pensando que ia encontrar uma<br />
mulher debilitada pelos graves problemas<br />
de saúde que a atingiram nos<br />
últimos anos. No entanto, ela estava<br />
sorridente como sempre, falante e animada<br />
em contar todos os detalhes das<br />
lutas e glórias da sua existência. No<br />
quarto dos fundos, a cama já estava<br />
cheia de álbuns de fotos e livros que<br />
ela nos mostrou, detalhando cada<br />
lugar e momento. Eram tantas histórias<br />
que podíamos ter planejado um<br />
documentário, mas tive a difícil tarefa<br />
de explicar a ela o pouco tempo que<br />
dispúnhamos em um programa de TV<br />
com menos de 30 minutos. E com<br />
humildade e a experiência de quem já<br />
deu muitas entrevistas, ela disse: “eu<br />
vou falando e vocês me interrompam<br />
ou cortam depois”. E realmente o trabalho<br />
de edição da gravação, feito pelo<br />
jornalista Denilson Cajazeiro, não foi<br />
fácil, tamanha a riqueza de seu depoimento.<br />
Mas o resultado foi um belo<br />
programa que pode ser conferido na<br />
TV Sinpro (www.sinprominas.org.br/-<br />
programa-extra-classe).<br />
Militante estudantil contra a ditadura,<br />
Gilse participou de grupos como<br />
o Juventude Estudantil Católica (JEC),<br />
Juventude Universitária Católica (JUC)<br />
e Ação Popular (AP), organização de<br />
combate à ditadura. Era caloura no<br />
curso de Serviço Social, da PUC Minas,<br />
quando veio o golpe. Ao se formar, em<br />
1967, já na clandestinidade, não pôde<br />
colar o grau, com medo de ser pega pela<br />
repressão naqueles anos de chumbo.<br />
Na entrevista ao Programa Extra-<br />
Classe, Gilse também falou sobre a<br />
imagem da mulher na sua época. “Para<br />
ser considerada moça de família, a mulher<br />
deveria aprender prendas domésticas<br />
e ter como objetivo fazer um bom<br />
casamento. Ou seja, aprender a obedecer<br />
ao pai para ser obediente ao marido”,<br />
explicou. Ela contou que teve<br />
que fugir de casa para cursar a universidade.<br />
De lá pra cá, tornou-se feminista<br />
e viveu como uma mulher livre. Um<br />
episódio que mostra a sua coragem e<br />
irreverência aconteceu no Congresso<br />
Nacional há alguns anos. Como só era<br />
permitida entrada de mulheres de saia<br />
e ela estava de calças compridas, não<br />
titubeou, aproveitou que estava com<br />
uma blusa mais comprida, tirou as calças<br />
na frente dos seguranças mesmo e<br />
entrou no prédio. Gilse foi coordenadora<br />
nacional da União Brasileira de<br />
Mulheres (UBM) nos anos 1990.<br />
Segundo ela, durante a ditadura, o<br />
momento mais difícil foi a tortura psicológica<br />
em relação à sua filha Juliana.<br />
Gilse estava presa e era torturada para<br />
delatar companheiros, o que nunca<br />
fez. Chegaram a fazer uma simulação<br />
como se tivessem pegado a filha ainda<br />
bebê, colocando uma banheira rosa<br />
com pedras de gelo e ameaçando fazer<br />
coisas terríveis com a criança. Ela contou<br />
que começou a notar que estavam<br />
demorando muito para trazer a menina<br />
e gritou: “Vocês não pegaram a<br />
minha filha, nem vão pegar.” Depois<br />
disso foi espancada, mas descobriu,<br />
pela raiva dos repressores, que tudo<br />
não passava de um blefe. Mais tarde,<br />
na cadeia, enquanto lia o jornal, descobriu<br />
que a filha Juliana estava bem. O<br />
recado veio na charge do cartunista<br />
Henfil, cunhado de Gilse, que usava os<br />
personagens Fradim e Graúna para<br />
fazer uma crítica velada à ditadura e<br />
enviar notícias aos presos políticos.<br />
“Na luta contra a ditadura, o povo<br />
brasileiro foi vitorioso. Também considero-me<br />
vitoriosa, consegui fazer a<br />
luta na clandestinidade e criar duas<br />
filhas maravilhosas”, disse emocionada.<br />
Anos depois, Gilse estava presente também<br />
nas lutas contra o golpe que retirou<br />
da presidência uma outra mulher de<br />
luta que também resistiu à ditadura,<br />
Dilma Rousseff. Ela orgulhou-se em<br />
dizer que suas filhas e netas também<br />
estavam lutando e ocupando as ruas<br />
neste outro momento da história da<br />
frágil democracia brasileira. Um legado<br />
que, como ela mesma disse, a ditadura<br />
não conseguiu impedir.<br />
Para finalizar, recitou o poema da<br />
amiga e militante Loreta Valadares<br />
“Quando eu me for, se eu me for, vão<br />
até onde eu não fui, caminhos do ilimitado,<br />
a face inédita do futuro, sem<br />
fronteiras, sem inimigos. Encontre os<br />
meios da liberdade, e vão tão longe<br />
quanto possam, limiares de um outro<br />
mundo, sem oprimidos, sem classe. E<br />
quando as novas veredas do socialismo<br />
forem percorridas, lembrem-se<br />
de que fui até o impossível freio, só que<br />
me faltou tempo”. Emocionada, abraçou<br />
a jornalista Carina Santos, que<br />
também fazia a entrevista e produzia<br />
a gravação.<br />
Tantas palavras ditas <strong>por</strong> Gilse com<br />
potencial revolucionário, com tanto<br />
sentimento e verdade, que não serão<br />
esquecidas. Uma história de dor e superação,<br />
de amor ao país e à sua família...<br />
uma história que vai viver para<br />
sempre em nossa memória.;<br />
118 <strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
119
POUCAS E BOAS<br />
INTERNET<br />
Campanha incentiva produção<br />
de bonecas negras<br />
Rede Mulher e Mídia<br />
http://mulheremidia.org.br/<br />
A população negra representa 53,6%<br />
dos/as brasileiros/as, segundo dados<br />
do IBGE, mas as bonecas não retratam<br />
essa diversidade. Durante uma arrecadação<br />
de brinquedos para doação em<br />
Salvador, três amigas – Ana Marcilio,<br />
Mylene Alves e Raquel Rocha – receberam<br />
bonecas de diversas marcas, variados<br />
tamanhos, mas com uma semelhança:<br />
todas eram brancas. O incômodo<br />
com esse fato virou inspiração para<br />
que criassem a campanha Cadê nossa<br />
boneca?, que tem o apoio da organização<br />
sem fins lucrativos Avante – Educação<br />
e mobilização social.<br />
A fanpage Cadê nossa boneca? possui<br />
mais de 26,7 mil curtidas, centenas<br />
de bonequeiras cadastradas no álbum<br />
Onde achar a sua boneca negra, além<br />
do mapa colaborativo no site, com notificações<br />
sobre lojas e produtoras em<br />
todo o país onde se encontram ou<br />
não bonecas pretas. Atualmente,<br />
somente 3% das lojas virtuais de<br />
brinquedo disponibilizam bonecas<br />
negras, de acordo com uma pesquisa<br />
realizada pela equipe da Campanha.<br />
Visite: Facebook.com/cadenossaboneca<br />
Entranhas<br />
www.entranhas.org<br />
Empoderamento de meninas pelo es<strong>por</strong>te<br />
Na puberdade, em função das pressões<br />
sociais e dos estereótipos de gênero,<br />
a autoestima das meninas tende a cair<br />
duas vezes mais do que a dos meninos, e<br />
49% das meninas abandonam a prática<br />
es<strong>por</strong>tiva, <strong>por</strong>centagem seis vezes maior<br />
em comparação com os meninos. Nessa<br />
fase da vida, os estereótipos de gênero e<br />
a linha que divide o que é considerado<br />
adequado às meninas e aos meninos começa<br />
a ficar muito mais evidente. Enquanto<br />
as meninas são submetidas a um<br />
controle e uma vigilância muito mais severa<br />
sobre seu corpo e sexualidade, há<br />
também uma objetificação muito maior<br />
de seus corpos pela sociedade e p<strong>elas</strong><br />
diversas representações midiáticas.<br />
Diante dessa realidade, a ONU<br />
Mulheres e o Comitê Olímpico Internacional<br />
criaram em 2016 o programa<br />
Uma Vitória Leva à Outra, que tem<br />
como objetivo criar espaços seguros<br />
para que meninas de 10 a 14 anos<br />
possam praticar es<strong>por</strong>tes, se conhecer<br />
melhor e adquirir habilidades para a<br />
vida. O programa acontece no município<br />
do Rio de Janeiro.<br />
As meninas conversam e aprendem<br />
sobre autoestima e liderança;<br />
saúde e direitos sexuais e reprodutivos;<br />
empoderamento e eliminação da violência<br />
contra as mulheres e meninas<br />
e educação financeira.<br />
Visite: www.onumulheres.org.br<br />
Mulher no Cinema<br />
www.mulhernocinema.com<br />
120<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong>
LIVROS<br />
FILMES<br />
Mirela e o Dia Internacional da Mulher<br />
Autora: Ana Prestes<br />
Editora: Lacre, 2016<br />
Essa é a história de uma menina de 8 anos que recebe na<br />
escola a tarefa de fazer uma pesquisa sobre o significado do<br />
dia da mulher. Esse episódio aconteceu com a filha da autora.<br />
Ao perceber que na biblioteca da escola da filha não tinha<br />
nada sobre o assunto destinado ao público infantil e tampouco<br />
nas livrarias, resolveu escrever um livro sobre o tema.<br />
Histórias de Ninar para Garotas Rebeldes<br />
Autora: Elena Favilli e Francesca Cavallo<br />
Editora: Vreditoras, <strong>2017</strong><br />
O livro aborda a vida de 100 mulheres extraordinárias do<br />
passado e do presente, ilustradas <strong>por</strong> 60 artistas mulheres<br />
do mundo inteiro. Com textos que remetem ao estilo de<br />
conto de fadas, muitas das histórias começam com o clássico<br />
“Era uma vez”, pois, segundo a própria autora – Favalli –, a<br />
ideia é dar a sensação de um conto de fadas moderno, para<br />
embalar o sono das pequenas antes de dormir<br />
Mulheres, Raça e Classe<br />
Autora: Ângela Davis<br />
Editora: Boitempo, 2016<br />
Dorina - Olhar para o Mundo - O filme<br />
resgata a trajetória de Dorina de Gouvêa<br />
Nowill (1919 - 2010) em sua jornada de<br />
consciência e transformação para os<br />
deficientes visuais. Idealizado pela neta<br />
de Dorina, a atriz Martha Nowill, foi<br />
produzido pela Girafa Filmes, Dezenove<br />
Som e Imagem e Mil Folhas. É o primeiro<br />
documentário brasileiro da HBO com<br />
audiodescrição. Disponível na internet.<br />
Ôrí – A história dos movimentos negros<br />
no Brasil entre 1977 e 1988 é contada<br />
no documentário Ôrí, lançado pela cineasta<br />
e socióloga Raquel Gerber. Tendo<br />
como fio condutor a vida da historiadora<br />
e ativista, Beatriz Nascimento, o filme<br />
traça um panorama social, político e<br />
cultural do país, em busca de uma identidade<br />
que contemple também as populações<br />
negras, e mostrando a im<strong>por</strong>tância<br />
dos quilombos na formação<br />
da nacionalidade.<br />
Nessa obra, Davis analisa as estruturas racistas, sexistas e<br />
classistas que ordenam nossa sociedade, considerando como<br />
essas questões se entrelaçam. A autora traça um poderoso<br />
panorama histórico e crítico das imbricações entre a luta<br />
anticapitalista, a luta feminista, a luta antirracista e a luta<br />
antiescravagista, passando pelos dilemas contem<strong>por</strong>âneos<br />
da mulher.<br />
Para educar crianças feministas – Um manifesto<br />
Autora: Chimamanda Ngozi Adichie<br />
Editora: Companhia das Letras, <strong>2017</strong><br />
O livro traz conselhos simples e precisos de como oferecer<br />
uma formação igualitária a todas as crianças, o que se inicia<br />
pela justa distribuição de tarefas entre pais e mães. Um manifesto<br />
com quinze sugestões de como criar filhos dentro de<br />
uma perspectiva feminista.<br />
Lute como uma Menina - Documentário<br />
sobre o protagonismo feminino no movimento<br />
de secundaristas que abalou<br />
São Paulo em 2015. O ativismo autônomo<br />
dos secundaristas, não ligados a<br />
organizações tradicionais, obrigou o estado<br />
a recuar da imposição de um projeto<br />
de “reorganização” que implicaria<br />
no fechamento de centenas de salas<br />
de aula e levou à queda de um secretário<br />
da Educação. Disponível no Youtube.<br />
<strong>Revista</strong> <strong>Elas</strong> <strong>por</strong> <strong>Elas</strong> - Agosto <strong>2017</strong><br />
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RETRATO<br />
Marcello Casa<br />
Marisa Letícia Lula da Silva<br />
Uma mulher guerreira. Aos 9 anos, já trabalhava<br />
como babá. Aos 13, embalava bombons<br />
numa fábrica de chocolates. Em 1980, já casada<br />
com o ex-presidente Lula, liderou uma<br />
passeata de mulheres em protesto contra<br />
prisões na ditadura. Sempre um esteio para a<br />
família, a ex-primeira dama su<strong>por</strong>tou maledicências<br />
e ataques que envolveram até a sua<br />
morte em 3/02/<strong>2017</strong> em função de um AVC.
A noite não adormece nos olhos das mulheres<br />
A noite não adormece<br />
nos olhos das mulheres<br />
a lua fêmea, semelhante nossa,<br />
em vigília atenta vigia<br />
a nossa memória.<br />
A noite não adormece<br />
nos olhos das mulheres<br />
há mais olhos que sono<br />
onde lágrimas suspensas<br />
virgulam o lapso<br />
de nossas molhadas lembranças.<br />
A noite não adormece<br />
nos olhos das mulheres<br />
vaginas abertas<br />
retêm e expulsam a vida<br />
donde Ainás, Nzingas, Ngambeles<br />
e outras meninas luas<br />
afastam d<strong>elas</strong> e de nós<br />
os nossos cálices de lágrimas.<br />
A noite não adormecerá<br />
jamais nos olhos das fêmeas<br />
pois do nosso sangue-mulher<br />
de nosso líquido lembradiço<br />
em cada gota que jorra<br />
um fio invisível e tônico<br />
pacientemente cose a rede<br />
de nossa milenar resistência.<br />
Conceição Evaristo<br />
(Em memória de Beatriz Nascimento)
AGOSTO <strong>2017</strong><br />
NÚMERO 10