01.02.2023 Views

INDAGARE_versão online

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

INDAGARE

REVISTA JURÍDICA

2022


INDAGARE

REVISTA JURÍDICA


2


Ficha técnica

Direção “INDAGARE- Revista Jurídica”:

Ana Lira

Bárbara Inês de Matos

Carolina Costa

Catarina Pereira

Diana Gusmão

Helena Antunes

Mateus Vasconcellos

Rita Barreira

Sofia Lucas

Comissão Científica:

Prof. Dra. Anabela Gonçalves

Prof. Dra. Andreia Barbosa

Prof. Dra. Andreia Oliveira

Prof. Dra. Alessandra Silveira

Prof. Dra. Bárbara Bravo

Prof. Dra. Cristina Dias

Prof. Dra. Eva Sónia Moreira

Prof. Dra. Isabel Fonseca

Prof. Dra. Joana Aguiar

3


Prof. Dra. Joana Covelo

Prof. Dra. Maria Assunção Pereira

Prof. Dra. Maria Irene Gomes

Prof. Dra. Rossana Martingo

Prof. Dr. Américo Morais

Prof. Dr. Conde Monteiro

Prof. Dr. Jacob Morais

Prof. Dr. João Vilas Boas Pinto

Prof. Dr. Marco Gonçalves

Prof. Dr. Mário Monte

Prof. Dr. Nuno Oliveira

Prof. Dr. Serafim Froufe

Mestre João Nuno Barros

Mestre Patrícia Borges

Capa e produção gráfica:

Bruna Lima

Isabel Osório

Formatação e edição:

Ana Lira

Carolina Costa

Catarina Pereira

4


Diana Gusmão

Rita Barreira

Sofia Lucas

Editora:

ELSA UMINHO

Escola de Direito da Universidade do Minho, Campus de Gualtar,

Sala 10

4710-057 Braga, Portugal

indagare@elsauminho.pt

Tel: +351 253 601 867

Impressão:

Viana & Dias

ISSN: 2183-8763

A reprodução desta obra, em todo ou em parte, carece do

consentimento da Direção da INDAGARE e dos seus autores.

Braga, 31 de Janeiro de 2023

5


6


ÍNDICE

1. A Proposta De Regulamento Da União Europeia Sobre A

Inteligência Artificial – A Importância De Uma Abordagem

Equilibrada por Dr.ª Gabriela Antunes Araújo;

2. Análise Crítica Da Proposta De Regulamento Sobre Inteligência

Artificial: A Fragilidade Dos Direitos Fundamentais por Filipa

Barros Oliveira Cerqueira

3. Breve Análise À Proposta De Regulamento Da União Europeia

Sobre A Inteligência Artificial por Dr.ª Catarina Silva Lêdo;

4. Inteligência Artificial E (In)Compatibilidade Com Os Direitos

Fundamentais: Implicações Da Covid-19 por Ana Teresa Cruz;

5. Inteligência Artificial E A Decisão Judicial: Sistema De Justiça No

Rumo Certo? por Liliana Valente;

6. Da Proposta De Diretiva Do Parlamento Europeu E Do Conselho

Relativa Ao Dever De Diligência Das Empresas E À

Responsabilidade Empresarial À Proposta De Diretiva Da

Comissão Europeia Relativa Ao Dever De Diligência Das

Empresas Em Matéria De Sustentabilidade por Gabriela

Duarte;

7. Desafios Da Proteção De Dados Em Telessaúde por Dr.ª Ariana

Daniela Fernandes Ribeiro Cunha, Dr.ª Juliana Filipa

7


Marques Lima, Dr.ª Maria Armanda Marinho Rodrigues e

Dr.ª Paula Cristina Moreira Sampaio;

8. Enquadramento Legal Do Acesso Às Técnicas De Procriação

Medicamente Assistidas Em Portugal Por Casais Do Mesmo

Género por Dr.ª Mónica Sofia Maciel Carvalho;

9. O Eventual Direito A Faltar Por Perda Perinatal por Dr.ª Rita

Ferreira da Silva Loureiro e Dr.ª Carla Margarida Esteves

Costa;

10. Violência Obstétrica: Estudo De Caso por Dr.ª Maria Emília

Simões, Dr.ª Mariana Reis e Dr.ª Melanie Antunes;

Essay Competition 21/22:

1. As Problemáticas Da Vida Intra-Uterina por André Azenha

Rijo;

2. Dissertação: A Memória por Rita Pereira Barreira;

3. Preclusão Do Exercício Do Direito De Arrependimento Nos

Contratos Celebrados À Distância Em Caso De Manipulação

Excessiva Do Bem? por Helena Isabel Silva Pereira;

4. O Ensurdecedor Silêncio Do Dito Segredo De Justiça por Eduardo

Botelho Cardoso Rebelo Ferreira;

8


9


10


Nota Introdutória aos textos desenvolvidos com base no

Projeto «Análise crítica da Proposta de Regulamento sobre

Inteligência Artificial», candidato ao Prémio de Iniciação à

Investigação Científica)

Justificava-se uma explicação relativamente à publicação dos

textos que se seguem.

Como é do conhecimento geral, a Universidade do Minho tem

vindo a promover a investigação científica já desde a Licenciatura,

tentando motivar os estudantes a não se deixar ficar pela estrutura

curricular dos cursos, mas começando, desde logo, a

explorar novos horizontes e a desenvolver o seu espírito crítico e

criatividade. Assim, mais uma vez, lançou o Prémio de Iniciação à

Investigação Científica, aprovado pelo Despacho RT-12/2020. Este

Prémio admitia candidaturas de estudantes de Licenciatura que

fossem integrados em Projetos de Investigação em curso nas

Unidades Orgânicas.

A Escola de Direito lançou uma Call para apresentação de

candidaturas, disponibilizando aos seus estudantes – das

Licenciaturas em Direito e em Criminologia e Justiça Criminal –

três temas inseridos em Projetos em curso no nosso Centro

11


de Investigação, o JusGov – Centro de Investigação em Justiça e

Governação.

Os Projetos propostos na Call, que em seguida se

reproduz, foram os seguintes: “

1) «Análise crítica da Proposta de Regulamento sobre

Inteligência Artificial». O projeto consiste em analisar

criticamente os desafios que a IA coloca ao Direito em

variadíssimas áreas, discutindo eventuais soluções e

novas propostas de legislação no domínio da IA. O

objetivo principal será a elaboração de um artigo em

coautoria com a IR e/ou outro membro da equipa de

acompanhamento, a publicar em revista internacional

com peer-review. A investigação será supervisionada pela

Prof.ª Doutora Eva Sónia Moreira da Silva, investigadora

responsável pelo projeto.

2) «eUjust “O Contencioso da União Europeia e a cobrança

transfronteiriça de créditos: compreendendo as soluções

digitais à luz do paradigma da Justiça eletrónica europeia».

O projeto visa analisar o impacto, na boa

administração da justiça, do paradigma da justiça

eletrónica na UE. Para além da sensibilização dos

estudantes para novos paradigmas associados à justiça e

12


que tornam a integração judiciária europeia mais

visível, ao permitir a interação reflexiva entre os juízes

dos vários EM e destes com o TJUE, numa dinâmica

Projectbased learning, o projeto tem por objetivo

detetar, na prática judiciária europeia, pistas de

reflexão concretizadoras das políticas públicas que

conduziram à justiça eletrónica. A investigação será

supervisionada pela Prof.ª Doutora Joana Covelo de

Abreu, investigadora responsável pelo projeto.

3) «Desenvolvimento sustentável e tributação – a abordagem

jurisprudencial». O projeto consiste em identificar os

termos em que a relação entre tributação e

desenvolvimento sustentável é suscetível de ser

estabelecida, procurando se, essencialmente, aferir,

partindo da jurisprudência relevante, se os tributos têm

ou não sido concebidos à luz de uma conceção utilitarista,

que os assuma como instrumentos ao serviço da

concretização do desenvolvimento sustentável. O

objetivo é apresentar a resposta às questões identificadas

num artigo (escrito em coautoria com elemento(s) da

equipa de acompanhamento). A investigação será

13


supervisionada pelo Prof. Doutor João Sérgio

Ribeiro, investigador responsável pelo projeto”.

Ora, quando a Senhora Diretora do JusGov, a Senhora Prof.ª

Doutora Maria Miguel Carvalho, me lançou o desafio de orientar

um estudante de Licenciatura a apresentar uma candidatura ao

Prémio, uma vez que era a IR (Investigadora Responsável) do

Projeto IA & Robótica – Desafios para o Direito do Século XXI, acedi

de muito bom grado, até porque sempre imaginei que seria um

tema de interesse dos estudantes, mas nada me faria imaginar a

adesão espantosa que este teria. Tive a penosa tarefa de ter de

selecionar apenas um estudante de entre os dez (!) que se

candidataram.

Foi muito difícil.

Foi necessário avaliar do mérito e das capacidades de cada um,

pelo que desafiei as dez candidatas a apresentar shortpapers sobre o

tema, após lhes ter fornecido alguma bibliografia base. Os

trabalhos que fizeram – em tempo de avaliação e de exames! –

foi meritório, ao ponto de ser uma injustiça não lhes reconhecer

visibilidade.

14


Assim, lancei às candidatas, que – com grande pena minha –

tive de excluir, um desafio: desenvolver os seus shortpapers para

publicação na Indagare, revista editada pela ELSA-UMinho, a

quem, desde já parabenizo e agradeço por terem acolhido

esta iniciativa.

Os resultados constam das páginas que se seguem. Espero,

sinceramente, que inspirem mais e mais colegas a abraçar a

investigação, a aceitar desafios, porque os vossos contributos, um

dia, poderão ajudar a melhorar o mundo.

As vossas colegas estão de parabéns! Em época de exames, em

estreita colaboração comigo, mostraram do que eram capazes e

deixaram-me muito orgulhosa dos nossos estudantes de

Licenciatura.

Ao ler as páginas que se seguem, tenho a certeza de que

concordarão comigo: valeu a pena o esforço!

Sónia Moreira

15


A PROPOSTA DE REGULAMENTO DA

UNIÃO EUROPEIA SOBRE A

INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL – A

IMPORTÂNCIA DE UMA ABORDAGEM

EQUILIBRADA

Resumo:

A União Europeia almeja a liderança mundial em matéria de

Inteligência Artificial mediante a criação de um quadro jurídico equilibrado que

permita a promoção dos direitos fundamentais e o fomento da inovação

tecnológica.

O presente artigo visa sublinhar a importância de uma abordagem efetivamente

equilibrada na regulamentação do fenómeno disruptivo da Inteligência Artificial,

indagando acerca do cumprimento desse desígnio pela tão esperada Proposta de

Regulamento que estabelece Regras Harmonizadas em Matéria de Inteligência

Artificial.

b

Palavras-chave:

Inteligência Artificial; União Europeia; Direitos Fundamentais;

Mercado Único Digital.

16


Sumário:

1. A Inteligência Artificial: conceito, oportunidades e desafios;

2. A Proposta de Regulamento da União Europeia sobre a Inteligência

Artificial;

2.1. Enquadramento geral e objetivos a atingir;

2.2. A busca pela abordagem equilibrada e a classificação do risco;

2.2.1. «Unacceptable risk AI»;

2.2.2. «High-risk AI»;

2.2.3 «Low-risk AI»;

3. Breves notas conclusivas: uma compatibilização desafiadora, mas

necessária.

17


1. A Inteligência Artificial: conceito, oportunidades e

desafios

O conceito de Inteligência Artificial é comummente

associado às obras literárias e cinematográficas de ficção científica.

Não obstante, independentemente dos cenários que potenciam a

nossa imaginação, a verdade é que as múltiplas aplicações da

Inteligência Artificial se encontram subtilmente presentes no

quotidiano de cada uma e de cada um de nós 1 . Para comprovar a

veracidade desta afirmação, basta que pensemos, a título

exemplificativo, na assistente pessoal ou no corretor ortográfico

do nosso smartphone ou, ainda, nas recomendações de conteúdo

inerentes aos mais variados serviços de streaming – sem as quais,

muito provavelmente, nunca teríamos assistido àquele filme.

O termo, empregue pela primeira vez por John McCarthy,

remonta ao ano de 1955. De acordo com a definição proposta pelo

Professor de Stanford, “[i]t is the science and engineering of

making intelligent machines, especially intelligent computer

programs” 2 . Longas décadas volvidas, as potencialidades da

1 Sobre a presença da Inteligência Artificial no dia a dia das sociedades hodiernas, vide, v.g.,

MOREIRA. Sónia – “Artificial Intelligence: Brief Considerations Regarding the Robot-Judge”. In

E.Tec Yearbook – Governance & Technology. 2184-707X. 2021, p. 299. Disponível em:

www.jusgov.uminho.pt/publicacoes/etec-yearbook-2021-2/

2 McCARTHY, John – What Is Artificial Intelligence?. [Consultado em: 25/06/2022]. Disponível

em: jmc.stanford.edu/artificial-intelligence/.

18


Inteligência Artificial relevaram-se surpreendentes, originando um

conceito de Inteligência Artificial em constante evolução,

inevitavelmente dependente do desenvolvimento tecnológico 3 .

Numa tentativa de aproximação a um conceito que designe

este fenómeno, e de acordo com uma aceção hodierna, a

Inteligência Artificial reconduzir-se-á à capacidade de uma

máquina reproduzir competências que outrora se encontravam

exclusivamente estritas ao Ser Humano e à sua inteligência, como

é o caso do raciocínio, da aprendizagem, do planeamento e da

criatividade. A Inteligência Artificial permite que “(…) os sistemas

técnicos percebam o ambiente que os rodeia, lidem com o que

percebem e resolvam problemas, agindo no sentido de alcançar um

objetivo específico. O computador recebe dados (já preparados ou

recolhidos através dos seus próprios sensores (...)), processa-os e

responde.” 4 .

3 Neste sentido, RAPOSO, Vera Lúcia – “Proposta de Regulamento sobre Inteligência Artificial:

The devil is in the details”. In Privacy and Data Protection Magazine. 2184-920X. N. º003, 2021, p.

11.

4 PARLAMENTO EUROPEU – O que é a Inteligência Artificial e como funciona?. [Consultado

em: 27/06/2022]. Disponível em:

www.europarl.europa.eu/news/pt/headlines/priorities/inteligencia-artificial

naue/20200827STO85804/o-que-e-a-inteligencia-artificial-e-como-funciona.

19


A Inteligência Artificial gera oportunidades e desafios 5 .

Dentre as oportunidades, urge destacar os benefícios decorrentes

para os cidadãos, que se traduzem, designadamente, em melhores

cuidados de saúde, meios de transporte mais seguros ou produtos

e serviços especializados e mais acessíveis; para as empresas, uma

vez que o recurso às novas tecnologias permite o aumento da

produção e a poupança de energia; e para os serviços públicos,

dando-se um claro enfoque ao mote da sustentabilidade (utilização

de transportes públicos mais ecológicos, por exemplo).

Quanto às ameaças, urge sublinhar alguns dos desafios

colocados aos direitos fundamentais e à democracia. Se utilizados

de forma incorreta, inadequada e/ou abusiva, os sistemas de

Inteligência Artificial, sempre que em causa esteja um processo de

tomada de decisão, podem originar resultados arbitrários e

discriminatórios. Por outro lado, estes sistemas podem ser

extremamente violadores do direito à privacidade dos cidadãos,

tendo em conta a intrusão que podem representar determinados

equipamentos, nomeadamente de reconhecimento facial. Isto sem

esquecer as denominadas deepfakes – imagens falsas, mas

5 PARLAMENTO EUROPEU – Inteligência Artificial – Oportunidades e desafios. [Consultado

em: 28/06/2022]. Disponível em:

www.europarl.europa.eu/news/pt/headlines/priorities/inteligencia-artificial

naue/20200918STO87404/inteligencia-artificial-oportunidades-e-desafios.

20


extremamente realistas –, capazes de influenciar o caráter

democrático do processo legislativo.

Com vista a otimizar os benefícios e a encarar, com

firmeza, os desafios, a União Europeia propôs-se a enquadrar

juridicamente os sistemas de Inteligência Artificial, de modo a

garantir uma posição pioneira em termos mundiais.

2. A Proposta de Regulamento da União Europeia sobre a

Inteligência Artificial

2.1. Enquadramento Geral e Objetivos a Atingir

A tão esperada Proposta de Regulamento do Parlamento

Europeu e do Conselho que estabelece Regras Harmonizadas em

Matéria de Inteligência Artificial (Regulamento Inteligência

Artificial) 6 estabelece – ou visa estabelecer – uma abordagem

equilibrada no enquadramento jurídico do fenómeno disruptivo da

Inteligência Artificial no âmbito da União Europeia.

6 Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho que estabelece Regras

Harmonizadas em Matéria de Inteligência Artificial (Regulamento Inteligência Artificial) e altera

determinados atos legislativos da União, COM (2021)206 final, Bruxelas, 21 de abril de 2021.

[Consultado em: 28/06/2022]. Disponível em: EUR-Lex - 52021PC0206 – EN – EUR-Lex

(europa.eu).

21


Perante o contínuo e acelerado desenvolvimento

tecnológico vivenciado nas últimas décadas, que origina novos e

crescentes desafios, Ursula von der Leyen, reconhecendo a

indispensabilidade desse desenvolvimento na promoção do

progresso civilizacional, anunciou nas suas orientações políticas

para 2019-2024, intituladas «Uma União mais ambiciosa» 7 , que a

Comissão apresentaria uma proposta legislativa relativa a uma

abordagem europeia orientada às implicações éticas da Inteligência

Artificial.

Honrando este compromisso político, e dando

cumprimento ao segundo objetivo do Livro Branco sobre a

Inteligência Artificial, que define as opções políticas sobre a forma

de alcançar o duplo objetivo de promover a adoção da Inteligência

Artificial e de abordar os riscos associados a determinadas

utilizações desta tecnologia 8 , o diploma ora proposto visa

impulsionar o Mercado Único Digital através da maximização dos

benefícios dos sistemas de Inteligência Artificial, garantindo, ao

mesmo tempo, um alto nível de proteção dos direitos

7 VON DER LEYEN, Ursula – Orientações Políticas para a próxima Comissão Europeia 2019-

2024. [Consultado em: 28/06/2022]. Disponível em:

ec.europa.eu/info/sites/default/files/political-guidelines next-commission_pt.pdf.

8 COMISSÃO EUROPEIA – Livro Branco sobre a Inteligência Artificial – Uma abordagem

europeia virada para a excelência e a confiança, COM (2020)65 final, Bruxelas, 19 de fevereiro de

20220, p. 1. [Consultado em: 28/06/2022]. Disponível em:

ec.europa.eu/info/sites/default/files/commission-white-paper-artificial

intelligencefeb2020_pt.pdf.

22


fundamentais dos cidadãos.

Neste sentido, consagraram-se quatro objetivos

específicos a alcançar com o primeiro quadro jurídico relativo à

Inteligência Artificial:

⎯ “garantir que os sistemas de IA colocados no mercado

da União e utilizados sejam seguros e respeitem a legislação

em vigor em matéria de direitos fundamentais e valores da

União,

⎯ garantir a segurança jurídica para facilitar os

investimentos e a inovação no domínio da IA,

⎯ melhorar a governação e a aplicação efetiva da legislação

em vigor em matéria de direitos fundamentais e dos requisitos

de segurança aplicáveis aos sistemas de IA,

⎯ facilitar o desenvolvimento de um mercado único para

as aplicações de IA legítimas, seguras e de confiança e evitar a

fragmentação do mercado” 9 .

Para garantir estes objetivos, crê-se que uma abordagem

efetivamente equilibrada, que coloque o Ser Humano no centro da

9 Proposta de Regulamento, cit., p. 3.

23


problemática, permitirá facilitar o investimento económico e a

inovação, mediante a disponibilização de uma Inteligência

Artificial segura, ética e de confiança.

Assim, a Proposta propõe “(…) uma abordagem

regulamentar horizontal equilibrada e proporcionada ao domínio

da inteligência artificial, que se limita aos requisitos mínimos

necessários para dar resposta aos riscos e aos problemas associados

à IA, sem restringir ou prejudicar indevidamente a evolução

tecnológica ou aumentar desproporcionalmente o custo de

colocação no mercado das soluções de IA. A proposta estabelece

um quadro jurídico sólido e flexível” 10 .

2.2. A Busca pela Abordagem Equilibrada e a Classificação

do Risco

À face do exposto, qualquer análise crítica da Proposta da

Comissão terá necessariamente de indagar acerca do cumprimento

da almejada compatibilização entre a tutela jurídica dos direitos

fundamentais, que reclama, neste campo, um corpo normativo

robusto e protetor, e as exigências do Mercado, carecido de uma

10 Idem, p. 3.

24


regulamentação clara e simplificada, que permita à União a

assunção de um papel pioneiro no progresso científico e

tecnológico.

Esta dificuldade de compatibilização advém dos riscos que

os sistemas de Inteligência Artificial inevitavelmente comportam –

que se revelam aos mais diversos níveis e reclamam do Direito uma

adaptação constante – e que a Proposta procura categorizar em

diferentes níveis, sujeitos, por sua vez, a diferentes exigências,

determinadas em função da potencial gravidade dos riscos que

neles se inserem.

Estabelece-se, assim, um modelo de avaliação de risco do

qual emergem três categorias de sistemas de Inteligência Artificial:

«Unacceptable risk AI»; «High-risk AI»; e «Low risk AI».

2.2.1. «Unacceptable Risk AI»

Na categoria «Unacceptable risk AI» proíbem-se os

sistemas de Inteligência Artificial especialmente perigosos em

termos de lesividade dos direitos fundamentais dos cidadãos, mais

propriamente os sistemas de IA que empreguem técnicas que

contornem a consciência das pessoas (cfr. artigo 5.º, n.º 1, alínea

25


a)) ou que explorem vulnerabilidades de grupos específicos (cfr.

artigo 5.º, n.º 1, alínea b)) para distorcer o seu comportamento, que

sejam utilizados para efeitos de avaliação da credibilidade de

pessoas singulares com base no seu comportamento ou nas suas

características e em que a classificação conduza a um tratamento

prejudicial ou desfavorável dessas pessoas (cfr. artigo 5.º, n.º 1,

alínea c)) e, ainda, os sistemas de identificação biométrica à

distância em «tempo real» em espaços acessíveis ao público para

efeitos de manutenção da ordem pública (cfr. artigo 5.º, n.º 1,

alínea d)) 11 .

Estas proibições são, naturalmente, de aplaudir, uma vez

que contendem frontalmente com os valores propugnados pela

União Europeia. No entanto, é de sublinhar que as proibições ora

estabelecidas não se afiguram como absolutas, uma vez que se

estabelecem exceções em nome da prossecução de outros

interesses, nomeadamente para fins de investigação criminal. Neste

sentido, sublinhe-se que, ainda que se compreendam estas

exceções, é recomendável que se adote uma postura de prudência

quanto às mesmas, uma vez que regras flexíveis nesta matéria

podem culminar na utilização de sistemas de IA altamente

intrusivos, capazes de restringir de forma intolerante os direitos

11 Idem, pp. 47-48.

26


fundamentais dos cidadãos. Sublinhe-se que tanto o European Data

Protection Board como o European Data Protection Superviser

consideraram que não deve existir qualquer exceção à proibição da

identificação biométrica remota de indivíduos em espaços

públicos, contrariamente ao disposto no artigo 5.º, n.º 1, alínea d),

da Proposta de Regulamento 12 .

2.2.2. «High-Risk AI»

Na categoria «High-risk AI» enquadram-se os sistemas de

Inteligência Artificial de risco elevado em termos de lesividade dos

direitos fundamentais 13 , como é o caso dos sistemas utilizados na

gestão e no funcionamento de infraestruturas críticas, mais

propriamente no controlo do tráfego rodoviário e das redes de

abastecimento de água, gás, aquecimento e eletricidade, capazes

de colocar em risco “(…) a vida e a saúde das pessoas em larga

escala e provocar perturbações substanciais das atividades sociais e

económicas normais” 14 ; no domínio da educação ou da formação

profissional, “(…) designadamente para determinar o acesso ou a

12 A este respeito, veja-se a opinião conjunta disponível em: edpb.europa.eu/system/files/2021-

10/edpb edps_joint_opinion_ai_regulation_pt.pdf, p. 13. [Consultado em: 28/06/2022].

13 Cfr. artigo 6.º, n.º 2, e Anexo III da Proposta.

14 Proposta de Regulamento, cit., Considerando 34.

27


afetação de pessoas a instituições de ensino e de formação

profissional ou para avaliar testes que as pessoas realizam no

âmbito da sua educação ou como pré-condição para a mesma” 15 ;

nos domínios do emprego, da gestão de trabalhadores e do acesso

ao emprego por conta própria, nomeadamente para efeitos de

recrutamento e seleção (por exemplo, software de triagem de

currículos) 16 ; no acesso a determinados serviços e prestações

essenciais, como é o caso dos empréstimos 17 ; na gestão da

migração, do asilo e do controlo das fronteiras, devido à

vulnerabilidade inerente à situação das pessoas que se encontram

sujeitas a esse mesmo controlo 18 ; na manutenção da ordem

pública, nomeadamente na aplicação de medidas repressivas para

cumprimento da lei, que contendem diretamente com os direitos

fundamentais dos cidadãos (por exemplo, avaliação de provas) 19 ;

e, ainda, na administração da justiça (por exemplo, aplicação da lei

ao caso concreto) e dos processos democráticos 20 .

Os sistemas que se enquadram na categoria «High-risk AI»

são autorizados no Mercado Interno, mas estão sujeitos ao

15 Idem, Considerando 35.

16 Idem, Considerando 36.

17 Idem, Considerando 37.

18 Idem, Considerando 39.

19 Idem, Considerando 38.

20 Idem, Considerando 40.

28


cumprimento de determinados requisitos obrigatórios, previstos

no Capítulo 2 do Título III da Proposta, bem como a uma

avaliação da conformidade ex ante (cfr. artigo 16.º, alínea e), e artigo

19.º), sendo que “[a] classificação de um sistema de IA como de

risco elevado tem como base a finalidade prevista desse sistema,

em conformidade com a atual legislação relativa à segurança dos

produtos” 21 .

Ora, nestes setores, estabelece-se, portanto, uma

regulamentação complexa e exigente. Neste sentido, Vera Lúcia

Raposo alerta para a existência de domínios onde a Proposta “(…)

peca pelo excesso de rigidez, de complexidade regulamentadora e

pela exigência de standards difíceis de atingir na prática”,

sublinhando que “[a]lgumas matérias focadas pela Proposta não só

são altamente regulamentadas, como ademais sujeitas a padrões de

exigência excessivamente rígidos e, eventualmente, impossíveis de

cumprir” 22 . Aponta-se, aqui, a título exemplificativo, o caso do

artigo 10.º, n.º 3, que, em consonância com o Considerando 44,

estabelece que os conjuntos de dados de treino, validação e teste

devem ser isentos de erros. Ora, esta isenção de erros afigura-se

21 Idem, p. 14.

22 RAPOSO, Vera Lúcia, op. cit., p. 16.

29


manifestamente irreal e, assim, impossível de atingir 23 .

Sónia Moreira, por sua vez, considera que, porventura,

seria necessário ir mais além, mormente no que respeita à utilização

dos sistemas de Inteligência Artificial na administração da justiça,

uma vez que reputa como insuficiente a adoção de um

procedimento de avaliação da conformidade baseado num

controlo meramente interno 24 – “(…) we have serious doubts

concerning the sufficiency of the requeriments established for the

use of AI in the judiciary. These are systems that will impact

profoundly the fundamental rights of the citizens. One cannot give

the benefice of the doubt to a partial party (the provider)” –,

propondo, ao invés, a inclusão desses sistemas “(…) in a list of

systems that should be assessed by an impartial third party,

preferably an administrative body, a commission created by each

Member-State to perform this conformity assessment” 25 , de modo

a garantir uma cabal defesa dos direitos fundamentais dos

cidadãos.

23 Neste sentido, SIEMENS – EU’s AI Regulation proposal (21/04/2021) Position &

recommendations, July 2021, p. 6 [Consultado em: 28/06/2022]. Disponível em:

ec.europa.eu/info/law/better-regulation/have your-say/initiatives/12527-Inteligencia-artificial-

Requisitos-eticos-e-legais/F2662941.

24 Cfr. artigo 43.º, n.º 2, da Proposta.

25 MOREIRA, Sónia, op. cit., p. 313.

30


2.2.3. «Low-Risk AI»

Na categoria «Low-risk AI» é possível estabelecer uma

distinção entre os sistemas de risco limitado e os sistemas de risco

mínimo 26 . Os primeiros, que implicam uma maior interação entre

os sistemas de Inteligência Artificial e os utilizadores, como é o

caso dos chatbots, encontram-se sujeitos a obrigações mínimas de

transparência, de modo a garantir a informação necessária à

tomada de decisão por parte dos utilizadores. Os segundos, que

englobam a maioria dos sistemas de Inteligência Artificial já

existentes (como é o caso, por exemplo, dos videojogos e dos

filtros de spam), encontram-se associados à simplicidade e à

gratuitidade, não estando sujeitos a regras adicionais, uma vez que

implicam um risco praticamente nulo para os direitos dos cidadãos.

3. Breves Notas Conclusivas: uma compatibilização

desafiadora, mas necessária

Do exposto se depreende que a compatibilização entre os

desígnios fundamentais desta Proposta é extremamente

26 Neste sentido, e ainda que da Proposta não resulte claramente esta distinção, vide, COMISSÃO

EUROPEIA – Novas Regras para a Inteligência Artificial – Perguntas e Respostas. [Consultado em:

28/06/2022]. Disponível em:

ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/pt/QANDA_21_1683.

31


desafiadora. Como tal, sempre se admitirá a opinião daqueles que

a consideram, em alguns campos, demasiado rígida, atrasando o

desenvolvimento tecnológico do Mercado Único e

impossibilitando a vanguarda da União; e daqueles que a

consideram, noutros campos, porventura demasiado flexível, não

tutelando de forma cabal os direitos inabaláveis dos cidadãos e, em

última instância, a sua Dignidade.

A busca pela abordagem equilibrada não deve, no entanto,

cessar. A construção do futuro digital da Europa depende de uma

abordagem europeia que coloque a tecnologia ao serviço dos

cidadãos e, consequentemente, permita a promoção de uma

sociedade aberta, democrática e sustentável 27 .

Dr.ª Gabriela Antunes Araújo

Licenciada em Direito pela Universidade do Minho

27 Dentre as seis prioridades da Comissão Europeia para 2019-2024, consta, em específico, Uma

Europa preparada para a era digital. V. ec.europa.eu/info/strategy/priorities-2019-2024/europe-fitdigital-age_pt.

[Consultado em: 28/06/2022].

32


ANÁLISE CRÍTICA DA PROPOSTA DE

REGULAMENTO SOBRE

INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: A

FRAGILIDADE DOS DIREITOS

FUNDAMENTAIS

Resumo:

O mundo encontra-se em constante evolução, sendo disso prova a

Inteligência Artificial (IA), que oferece, incontestavelmente, inúmeros

benefícios para a vida em sociedade. Não obstante, acarreta também riscos,

designadamente, quanto aos direitos fundamentais. Neste sentido, surge a

Proposta de Regulamento sobre Inteligência Artificial da União Europeia 28 , que

se propõe conciliar o desenvolvimento de um mercado único para as aplicações

de IA com o respeito pela legislação em vigor relativa a direitos fundamentais e

valores da União.

Desde a segurança jurídica e proteção da confiança à não

discriminação, vários são os direitos fundamentais que poderão resultar

fragilizados em consequência de uma utilização indevida dos sistemas de IA.

Neste sentido, seria pertinente a adoção de medidas jurídicas eficazes, de forma

28

Proposta de Regulamento sobre Inteligência Artificial da União Europeia [Consultada em:

09/05/2022]. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legalcontent/PT/TXT/?uri=CELEX:52021PC0206

.

33


a dar resposta àqueles que, eventualmente, possam ver a sua individualidade

trespassada.

b

Palavras-chave:

discriminação.

Inteligência Artificial; Direitos fundamentais; Segurança jurídica; Não

b

Sumário:

1. Objetivos da Proposta: vantagens e possíveis riscos;

2. Ambiguidade da definição de “Sistema de IA” adotada pela Proposta:

2.1. Implicações ao nível da segurança jurídica e proteção da confiança;

3. Proteção das vítimas de utilizações inadequadas dos sistemas de IA;

4. Notas Conclusivas;

34


1. Objetivos da Proposta: vantagens e possíveis riscos:

A Proposta de Regulamento sobre Inteligência Artificial da

União Europeia pretende harmonizar (1) o desenvolvimento de

um mercado único para as aplicações de Inteligência Artificial e (2)

o respeito pela legislação em vigor relativa a direitos fundamentais

e valores da União. Isto dito, coloca-se a questão de saber se os

dois objetivos preconizados pela Proposta são, efetivamente,

conciliáveis 29 .

Se, por um lado, a IA pode contribuir de forma positiva

para vários setores da vida em sociedade, como sejam as alterações

climáticas, o ambiente, a saúde e a justiça, por outro lado, reputase

necessário averiguar os novos riscos advindos desta evolução

tecnológica, nomeadamente, ao nível dos direitos fundamentais.

Ora, a Proposta em apreço visa desenvolver “um quadro jurídico

29 RAPOSO, Vera Lúcia – “Proposta de Regulamento sobre Inteligência Artificial: The devil is in

the details”. In Privacy and Data Protection Magazine. Lisboa. 2184-920X. N. º 03. 2021, p. 11.

[Consultado em: 09/05/2022]. Disponível em:

https://bo.europeia.pt/content/files/pdpm_003_2.pdf#page=16.

35


para uma IA de confiança” 30 : para isso, propõe-se abordar e regular

tais riscos associados a determinadas utilizações desta tecnologia.

2. Ambiguidade da definição de “Sistema de IA” adotada

pela Proposta:

2.1. Implicações ao nível da segurança jurídica e proteção da

confiança:

De facto, ao longo da Proposta é notável o interesse em

proteger os direitos fundamentais dos cidadãos, sendo certo que

estes podem resultar ameaçados com relativa facilidade, uma vez

que a IA enfrenta desafios como“a opacidade, a complexidade, os

preconceitos [ou enviesamentos], um certo grau de

imprevisibilidade e comportamentos parcialmente autónomos de

determinados sistemas de IA” 31 .

Desde logo, resulta do art.º3.º, al. 1), da Proposta que se

entende por “«Sistema de inteligência artificial», um programa

informático desenvolvido com uma ou várias das técnicas e

30 Como se pode ler na exposição de motivos da Proposta de Regulamento sobre Inteligência

Artificial. Proposta sobre Inteligência Artificial, cit, p. 1.

31 Idem, p. 2.

36


abordagens enumeradas no anexo I, capaz de, tendo em vista um

determinado conjunto de objetivos desenvolvidos por seres

humanos, criar resultados, tais como conteúdos, previsões,

recomendações ou decisões, que influenciam os ambientes com os

quais interage”.

Importa considerar, a este respeito, o Princípio do Estado

de Direito, consagrado no art.º 2.º da Constituição da República

Portuguesa. Como ensina J. J. Gomes Canotilho, tal preceito da

Lei Fundamental tem subjacente o pressuposto material da

juridicidade, o qual pressupõe que “(...) como meio de ordenação

racional, o direito é indissociável da realização da justiça, da

efetivação de valores políticos, económicos, sociais e culturais;

como forma, ele aponta para a necessidade de garantias jurídicoformais

de modo a evitar ações e comportamentos arbitrários e

irregulares de poderes públicos” 32 .

Para esse efeito, o Princípio do Estado de Direito

contempla um subprincípio concretizador relevante: o princípio da

segurança jurídica e proteção da confiança. Parafraseando J. J.

Gomes Canotilho, a segurança jurídica versa sobre elementos

32 CANOTILHO, José Joaquim – “A República Portuguesa e os seus Princípios Estruturantes”. In

Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003, pp. 241-244.

37


objetivos da ordem jurídica, como a garantia de estabilidade

jurídica, segurança de orientação e realização do direito, ao passo

que a proteção da confiança alude às componentes subjetivas da

segurança, nomeadamente a calculabilidade e previsibilidade dos

indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos atos dos poderes

públicos.

Assim, “[a] segurança e a proteção da confiança exigem, no

fundo: (1) fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos

atos do poder; (2) de forma que em relação a eles o cidadão veja

garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos

jurídicos dos seus próprios atos” 33 .

Ora, a definição supramencionada de “Sistema de

inteligência artificial”, adotada pela Proposta, despertou

imediatamente a minha atenção, no sentido de que penso não ser

suficientemente elucidativa e, por outro lado, diria ser um tanto

abrangente 34 . Isto é, não considero que esteja ao alcance de toda e

qualquer pessoa a capacidade de compreender com clareza o que

realmente se entende por “Sistema de inteligência artificial”.

33 CANOTILHO, José Joaquim – “A República Portuguesa e os seus Princípios Estruturantes”, cit.,

p. 257.

34 RAPOSO. Vera Lúcia – “Proposta de Regulamento sobre Inteligência Artificial: The devil is in

the details”, cit., pp. 12 e 13

38


Assim, na medida em que a área em apreço, por si só, é já

caracterizada pela opacidade, complexidade e imprevisibilidade,

sob a minha perspetiva, a Proposta deveria procurar esclarecer, na

medida do possível, aqueles que poderão vir a ser afetados por tais

riscos.

Ademais, leia-se o Considerando 6:

“A definição de «sistema de IA» deve ser

inequívoca, para assegurar a segurança jurídica,

concedendo em simultâneo a flexibilidade suficiente para

se adaptar a futuras evoluções tecnológicas” 35 .

Pois bem, como referido anteriormente, a definição de

“sistema de IA” não parece ser inequívoca, já que denota uma certa

imprecisão – imprecisão essa que poderá colocar em causa a

segurança jurídica, cenário que, aliás, o Considerando em apreço

tenciona acautelar. No entanto, afigura-se-me inconcebível

pretender assegurar uma definição inequívoca e flexível em

simultâneo: o conceito de “inequívoco” pressupõe uma só

interpretação possível, ao passo que o conceito de “flexível” sugere

35 Considerando 6 da Proposta.

39


uma fácil adaptação a diferentes situações. Estaremos perante uma

definição de “sistema de IA” paradoxal?

3. Proteção das vítimas de utilizações inadequadas dos

sistemas de IA

Um outro aspeto relevante prende-se com a tutela das

vítimas de uma utilização indevida dos sistemas de IA. Por ser

direcionado para a abordagem dos riscos associados a

determinadas utilizações deste tipo de tecnologia 36 , o Regulamento

prevê, de forma bastante exaustiva e eficiente, um regime

sancionatório 37 . Nos termos do art.º 71.º “(…) os Estados-

Membros devem estabelecer o regime de sanções, incluindo

coimas, aplicáveis em caso de infração ao presente regulamento e

devem tomar todas as medidas necessárias para garantir que o

mesmo é aplicado correta e eficazmente”.

36 Exposição de motivos da Proposta. Proposta de Regulamento sobre Inteligência Artificial, cit., p.

3.

37 Proposta de Regulamento sobre Inteligência Artificial, cit., pp. 88 (Título X – Confidencialidade

e Sanções).

40


Sucede que, ocorrendo infrações ao Regulamento, é

possível que resultem afetados direitos fundamentais, destacandose,

neste contexto, a discriminação algorítmica.

De acordo com um artigo publicado pela Universidade de

Amsterdão, “[a]n algorithm can be described as «an abstract,

formalised description of a computational procedure»” 38 .

Importa notar que existem riscos associados às decisões

algorítmicas, nomeadamente quando o sistema tem por base

decisões humanas discriminatórias 39 .

Nos EUA é já utilizado o COMPAS (Correctional Offender

Management Profiling for Alternative Sanctions): trata-se de “um sistema

que determina o perfil de um arguido e avalia o Risco de

38 BORGESIUS, Frederik – Discrimination, artificial intelligence, and algorithmic decision-making.

[Consultado em: 25/05/2022]. Disponível em:

https://pure.uva.nl/ws/files/42473478/32226549.pdf.

39 BORGESIUS. Frederik – Strengthening legal protection against discrimination by algorithms and

artificial intelligence. In The International Journal of Human Rights. 1744-053X. V. 24. N. º 10,

2020, p. 1574. [Consultado em: 25/06/2022]. Disponível em:

https://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1080/13642987.2020.1743976?needAccess=true.

41


Reincidência, o Risco de Violência e o Risco de Falta de

Comparência (em tribunal para julgamento)” 40 .

Nestes casos, verificou-se uma maior propensão do

sistema para classificar os réus negros como apresentando um risco

maior de reincidência violenta do que os réus brancos. Além disso,

foi demonstrado que, em termos de reincidência futura, os réus

negros apresentam mais risco em 77%, quando comparados com

os réus brancos 41 . Esta discriminação algorítmica pode decorrer do

facto de o sistema de IA ter sido treinado com dados enviesados,

reproduzindo o padrão que detetou (e que era discriminatório).

Deste modo, apesar de a última palavra impender sobre um juiz

humano, “a verdade é que este tem em consideração o perfil

40 MOREIRA, Sónia – “Artificial Intelligence: Brief considerations regarding the Robot-Judge”, in

Maria Miguel Carvalho/Sónia Moreira (coords.). Governance & Technology - E-Tec Yearbook.

JusGov - Research Centre for Justice and Governance/University of Minho - School of Law. 2021,

p. 302. [Consultado em: 25/06/2022]. Disponível em

https://www.jusgov.uminho.pt/publicacoes/etec-yearbook 2021-2/.

41 LARSON, Jeff, MATTU, Surya, KIRCHNER, Lauren, ANGWIN, Julia – How We Analyzed

the COMPAS Recidivism Algorithm. [Consultado em: 25/06/2022]. Disponível em:

https://www.propublica.org/article/how-we-analyzed-the-compas-recidivism-algorithm.

42


discriminatório do COMPAS, e assim, o risco de uma decisão

discriminatória é muito elevado” 42 .

Isto dito, a Carta dos Direitos Fundamentais da União

Europeia 43 assume um papel preponderante no que concerne à não

discriminação, relevando, designadamente, o art.º 21.º, n.º 1, do

diploma em causa:

“É proibida a discriminação em razão,

designadamente, do sexo, raça, cor ou origem étnica ou

social, características genéticas, língua, religião ou

convicções, opiniões políticas ou outras, pertença a uma

minoria nacional, riqueza, nascimento, deficiência, idade

ou orientação sexual.”.

Assim, da Carta decorre, desde logo, a exigência de

mitigação da discriminação algorítmica, à qual a Proposta de

Regulamento sobre Inteligência Artificial deve atender.

42 MOREIRA, Sónia – “Artificial Intelligence: Brief considerations regarding the Robot-Judge”, cit.,

p. 306.

43 [Consultado em: 25/06/2022]. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal

content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:12016P/TXT&from=FR

.

43


Para mais, uma observação interessante tem que ver com

o facto de que podem ocorrer discriminações de preços, também

potenciadas por decisões algorítmicas. Assim, chamando à colação

o artigo da Universidade de Amsterdão suprarreferido “[o]nline

shops can differentiate the price for identical products based on

information the shop has about a consumer: a practice called

online price differentiation. A shop can recognise website visitors,

for instance through cookies, and categorise them as pricesensitive

or price-insensitive. With price differentiation, shops aim to charge

each consumer the maximum price that he or she is willing to

pay” 44 . Neste particular, tendo em conta que, hoje, uma parte

considerável das compras são efetuadas online, os consumidores

deveriam ter acesso facilitado a este tipo de informação, o que não

sucede.

Assim sendo, na medida em que os direitos fundamentais não

devem ficar desprovidos de proteção, seria razoável e relevante

atender a mecanismos de proteção de vítimas de eventuais

utilizações inadequadas dos sistemas de IA.

44 BORGESIUS, Frederik – Discrimination, artificial intelligence, and algorithmic decision-making.

[Consultado em: 25/06/2022]. Disponível em:

https://pure.uva.nl/ws/files/42473478/32226549.pdf.

44


4. Notas conclusivas

Em conclusão, a Proposta de Regulamento sobre

Inteligência Artificial surge como um importante passo no sentido

de impulsionar o mercado único para as aplicações de IA, evitando

a fragmentação do mercado, sem perder de vista a proteção dos

direitos fundamentais e valores da União 45 . Não obstante, certos

aspetos carecem de concretização, impondo-se a imperiosa

questão de saber como podem as vítimas de uma utilização

imprópria das aplicações de IA fazer valer os seus direitos. Posto

isto, não seria descabido aprofundar um conjunto de medidas

jurídicas neste sentido, para que os direitos fundamentais fossem

efetivamente assegurados.

Relativamente à discriminação algorítmica, uma possível

solução passaria pelo reforço da supervisão humana, no que

respeita às decisões automatizadas, e pela constante verificação e

atualização da base de dados utilizada pelo sistema de inteligência

artificial em causa. Ademais, as decisões tomadas com base em

algoritmos devem ser explicadas de forma clara àqueles que

45 Exposição de motivos da Proposta.

45


possam ver a sua esfera jurídica afetada por elas, de forma a

salvaguardar a segurança jurídica e proteção da confiança 46 .

No que se refere a mecanismos de recomendação ou

previsão – onde se insere a problemática da discriminação de

preços – está em causa o direito à privacidade e proteção de dados.

Uma vez que tais mecanismos atuam com base em dados pessoais,

a informação que as lojas detêm acerca dos consumidores deve ser

jurídica e eticamente regulada. Os dados utilizados devem ter um

propósito que se paute pela ética e pela boa fé, como o de dar a

conhecer ao consumidor os produtos pelos quais,

presumivelmente, ele nutrirá maior interesse: nesse caso, o

consumidor sairá beneficiado por não ter de efetuar uma pesquisa

exaustiva, e a loja, por sua vez, obterá lucro de forma justa. Por

conseguinte, tudo o que, neste âmbito, extravase os limites da ética

e da boa-fé, será já intrusivo. Assim, por exemplo, os dados

pessoais dotados de maior sensibilidade

46 GORZONI, Paula – Inteligência Artificial: Riscos para direitos humanos e possíveis ações, p. 6.

[Consultado em: 28/06/2022]. Disponível em: https://itsrio.org/wpcontent/uploads/2019/03/Paula

Gorzoni.pdf.

46


(como a religião ou a orientação sexual) devem manter-se

intocados, sob pena de resultar violado o direito à privacidade e à

proteção de dados 47 .

Filipa Barros Oliveira Cerqueira

Estudante do 4.º ano da Licenciatura da Universidade do Minho

.

47 GORZONI, Paula – Inteligência Artificial: Riscos para direitos humanos e possíveis ações, cit.,

pp. 3 e 4.

47


BREVE ANÁLISE DA PROPOSTA DE

REGULAMENTO SOBRE

INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

Resumo:

O presente artigo, após uma análise sobre a Proposta de Regulamento

da União Europeia sobre a Inteligência Artificial, visa elencar brevemente os

principais desafios que este documento comporta e aos quais a Comissão

Europeia deve responder perante a realidade, os consumidores, os Estados-

Membros da União Europeia e a coerência e concordância entre os vários

diplomas em vigor e os valores europeus.

b

Palavras-chave:

Inteligência Artificial; Proposta Regulamento da União Europeia;

Desafios; Mercado Digital;

B

48


Sumário:

1. Enquadramento geral entre Inteligência Artificial e a União Europeia;

2. Principais Desafios da Proposta de Regulamento:

2.1. Reconhecimento biométrico e os seus limites;

2.2. Inteligência Artificial e a Proteção de Dados;

2.3. Hierarquização de conceitos indeterminados;

2.4. Os meios de reação e controle;

3. Conclusão;

49


1. Enquadramento geral entre Inteligência Artificial e a

União Europeia:

A Inteligência Artificial (IA), aliada às suas variantes,

consequências, importância e desenvolvimento exponencial, tem

sido um dos temas centrais de debate neste século XXI, pois exige

a total atenção e acompanhamento do Direito. O uso destes

sistemas permite que o ser humano possa descobrir realidades que,

há poucos anos, não seriam possíveis de imaginar. Toda a

abordagem da utilização da IA envolve uma ponderação de

princípios, valores e interesses nacionais e europeus, privados e

públicos. No entanto, o balanceamento entre estes ainda é alvo de

discussão. Se, por um lado, é-nos apresentada a ideal finalidade de

os cidadãos confiarem num mercado orientado pela IA, por outro,

está presente um conjunto de entidades que se pautam pela criação

e uso dessa mesma tecnologia, sujeitos a obrigações num conjunto

de situações.

A proteção dos direitos fundamentais e a regulação do

mercado apresentam disparidades nos Estados Membros (EM)

tendo, a União Europeia (UE), um papel fundamental para o

alcance da segurança jurídica, aceitação de preceitos e

homogeneidade de soluções. Entende-se, pois, num espaço amplo

como o da IA, que os Estados não consigam atingir uma

50


regulamentação sólida neste assunto, muito menos o perspetivem

da mesma forma. Invoca-se, por isso, a soberania digital que a UE

necessita de assegurar e promover para que os particulares confiem

nas instituições, as empresas atuem num mercado seguro e os EM

adotem uma linhagem única de atuação. Por isto mesmo, esta

proposta invoca categorias de risco que envolvem, diretamente, a

sujeição dos provedores da tecnologia a situações de risco dentro,

por exemplo, do meio educacional, do emprego, de fluxos

migratórios, de processos judiciais 48 . Em adição, visa regular que,

sob uma determinada conduta, haja a responsabilização das

entidades públicas que se revelem contra estes propósitos e ideais,

sobretudo, os que embatam nos direitos fundamentais dos

cidadãos e na segurança da União e do Mundo. Mas vários

problemas se revelam.

48 Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho que estabelece regras

harmonizadas em matéria de Inteligência Artificial (Regulamento Inteligência Artificial) e altera

determinados atos legislativos da União, p. 13. [Consultado em: 24-05-2022]. Disponível em:

https://eur- lex.europa.eu/resource.html?uri=cellar: e0649735-a372-11eb-9585-

01aa75ed71a1.0004.02/DOC_1&format=PDF.

51


2. Principais Desafios da Proposta de Regulamento:

2.1. Reconhecimento biométrico e os seus limites:

A crítica principal assenta no sistema de reconhecimento

biométrico 49 – reconhecimento de voz, face, impressão digital,

entre outros – que envolve todo um mecanismo de captura de

aspetos físicos através do uso de câmaras de videovigilância e

sensores. Sendo estes sistemas de identificação considerados de

risco elevado, e subordinados a medidas de atuação rígidas, neste

tópico em concreto, pergunta-se qual o âmbito do consentimento

individual (de cada pessoa e não por autorização de um órgão

judicial ou de alguma entidade independente) para o seu uso e em

que situações. A proposta é pautada por uma imprecisão e

ambiguidade nesta temática, sem referir respostas a uma violação

destes dados que possam ser recolhidos em casos de abuso de

poder e ataques cibernéticos. Em adição, problematiza-se a

eficiência de um possível on- off na utilização e ligação a este sistema

pois, como é este garantido quando depende de uma operação

instalada a priori? Apresenta-se, por isso, uma produção legislativa

não sustentável plenamente.

49 SHIFTER – "Proposta de Lei sobre Inteligência Artificial na EU é inédita e pioneira, mas...”

[Consultado em: 24-05-2022]. Disponível em: https://shifter.pt/2021/04/lei-inteligencia-artificial/.

52


2.2. Inteligência Artificial e a Proteção de Dados:

Ora, outro problema embate com a proteção de dados que

a IA possa violar e o chamamento de várias normas e diplomas

europeus, introduzindo a possibilidade de existirem conflitos.

Além disso, mesmo que o embate entre normas não se concretize,

a conciliação entre estas tem de estar constantemente a ser

analisada ao pormenor 50 .

Traduzir-se-á a obtenção de dados pessoais numa invasão

pessoal ou numa maior objetividade para determinar os limites em

que a IA pode atuar? Quanto ao consentimento, será apenas um

dever ou um ónus jurídico? Apesar de perguntas dispersas que

possam surgir, a verdade é que, noutros instrumentos, como o

RGPD, os cidadãos já se encontram salvaguardados de abusos

decorrentes da utilização de sistemas da IA. Contudo, esta

proteção não se mostrará suficiente ou isenta de abusos em

situações que, à partida, parecem refletir uma boa prática das

exigências destes instrumentos e princípios internacionais. Veja-se,

por exemplo, a polémica de partilha de dados entre a Royal Free

50 RAPOSO, Vera Lúcio – “Proposta de Regulamento sobre Inteligência Artificial: The Devil is in

the Details”. In Privacy and Data Protection Magazine, Online, No3, 2021, pp. 18-19.

53


London NHS Foundation Trust, a DeepMind e a Google e a ação

judicial por parte da Comissão de Informação do Reino Unido 51 .

2.3. Hierarquização de conceitos indeterminados

Uma outra questão a invocar prende-se com as categorias

de risco hierarquizadas na proposta, em concreto, a de risco

mínimo. Ora, esta é caracterizada por ser composta, dentro de

outros exemplos, pela livre utilização dos jogos de vídeo básicos

ou um simples cookie no correio eletrónico, não intervindo o

regulamento nestes casos 52 . Veja-se, no entanto, que a sociedade

tem sido constantemente alvo de burlas, ataques e erros

informáticos com inúmeras consequências, algoritmos de

publicidade enganosa, cookies e termos gerais de aceitação de sites

que envolvem a recolha de imagem e dados, sem que o cidadão se

aperceba do que está a ocorrer ou que está a ser manipulado 53 . Há,

51 POWLES, Julia; HODSON, Hal – Google DeepMind and healthcare in an age of algorithms.

[Consultado em: 22-05-2022]. Disponível em: https://link.springer.com/article/10.1007/s12553-

017-0179-1.

52 EUROPEIA, Comissão – Excelência e Confiança na Inteligência Artificial. [Consultado em: 22-

05-2021]. Disponível em: https://ec.europa.eu/info/strategy/priorities-2019-2024/europe-fitdigital-age/excellence-

trust-artificial-intelligence_pt.

53 SILVA, Joana Luís da – Big Data no comércio eletrónico: utilização de cookies e questões de

privacidade na recolha de dados pessoais. Online. Dissertação de Mestrado. [Consultado em: 22-05-

2021]. Disponível em:

https://recipp.ipp.pt/bitstream/10400.22/17368/1/Joana_Silva_MNE_2020.pdf

54


sim, um potencial risco de vulneração de direitos fundamentais que

necessita, também, de obter uma rede de construção legislativa

sólida, sustentável, segura e fiável. Não esquecer que tal

preocupação não é descabida.

Analisando o exemplo da China, com o seu sistema de

“crédito social” 54 e valorização (ou não) do comportamento dos

cidadãos, há a vigia do mínimo movimento físico e digital. Apesar

de a proposta de regulamento proibir e englobar estas práticas no

âmbito das categorias de risco elevado, a garantia de se executarem

de forma indireta nas de baixo risco é provável e mais fácil de se

manifestar. Um outro exemplo aparece com o desenvolvimento da

DeepMind, empresa que tem como principal objetivo a investigação

e desenvolvimento da IA. Através da experiência, repetição e

fornecimento de dados, usada inicialmente em jogos e analisando

as pontuações e jogadas que são executadas 55 , ou sendo parceira do

sistema de saúde do Reino Unido para a recolha de dados clínicos

dos utentes para futuras doenças, pode esta nova tecnologia

54 FILHO, Demócrito Reinaldo – A proposta regulatória da União Europeia para a inteligência

artificial (2a parte): sistemas de risco inaceitável. [Consultado em: 23-05-2022]. Disponível em:

http://bomdebate.com/a-proposta-regulatoria-da-uniao-europeia-para-a-inteligencia-artificial-2aparte-

sistemas-de-risco-inaceitavel/.

55 PASCANU, Razvan/ WEBER, Theophane/ BATTAGLIA, Peter/ REICHERT, David/

RECANIÈRE, Sébastien, LI, Yazhe – Agents that imagine and plan. Online. [Consultado em 27-

06-2022]. Disponível em: https://www.deepmind.com/blog/agents-that-imagine-and-plan

55


comportar vários erros como a captação de dados mentais

excessivos 56 .

Para além disso, apesar da boa-fé de criar estes tipos de

risco, tentou-se categorizar algo não categorizável, que coexiste e

se interliga, não podendo haver uma separação tão limpa e

inequívoca de conceitos.

2.4. Os meios de reação e controle

Além disso, apesar de a proposta prever uma criação de

Centros de IA para a controlar, são deficitários os mecanismos que

os cidadãos dispõem em caso de violação dos seus direitos. Aliado

a isto, esta tecnologia é programada por humanos e,

consequentemente, pode conter erros 57 . Deste modo, urge a

criação de um meio de denúncia para casos de furto de

informações, tratamento discriminatório 58 , troca de dados, não

56 MORISSE, Tom – DEEPMIND, O LABORATÓRIO STARTUP. Online. [Consultado em: 27-

06-2022]. Disponível em: https://supertoast.pt/2017/04/11/deepmind-o-laboratorio-startup/

57 ROQUE, Andre Vasconcelos. SANTOS, Lucas Braz Rodrigues dos – “Inteligência Artificial na

tomada de decisões judiciais: três premissas básicas”. In Revista Eletrónica de Direito Processual –

REDP. Rio de Janeiro. 1982-7636. 2021, pp.58-78. [Consultado em: 22-05-2022]. Disponível em:

https://www.e- publicacoes.uerj.br/index.php/redp/article/view/53537/36309

58 MATTIUZZO, Marcela. MENDES, Laura Schertel – Discriminação algorítmica: conceito,

fundamento legal e tipologia. In Direito Público. 2236-1766. 90. 2019. [Consultado em: 27-06-2022].

Disponível em: https://portal.idp.emnuvens.com.br/direitopublico/article/view/3766

56


cumprimento das normas por parte dos fornecedores destes

sistemas, entre outros – dados que são inseridos na máquina a

priori num processo de criação de finalidades. A par disto, prevêse

um problema de conflitos entre os órgãos e a sua competência

nesta atividade. Deste modo, a criação de um Comité Europeu de

IA, para a aplicação e promoção de regras, mostra-se deficitário 59 .

Mas, por outro lado, o alargamento da competência deste Comité

como um órgão de fiscalização poderia colocar em causa, por

exemplo, o Ministério da Saúde controlando o que seria o certo ou

o errado, manipulando aquilo que seria a conduta médica, de uma

forma, diga-se, subjetiva, ambígua e imprecisa, tal como o texto da

proposta. Por fim, a dicotomia pessoa-robô ainda está sem

explicação no que concerne à personalidade jurídica

eletrónica/digital 60 e responsabilidade, sem qualquer negligência

humana.

59 CABRAL, Tiago Sérgio – A proposta de Regulamento sobre a Inteligência Artificial na União

Eurpeia: breve análise. In O Contencioso da União europeia e a cobrança transfronteiriça de

créditos: compreendendo as soluções digitais à luz do paradigma da Justiça eletrónica europeia (e-

Justice) – Volume II. Online. Pensamento Sábio – Associação para o conhecimento e inovação

Universidade do Minho, 2021, pp. 129-130. [Consultado em: 27-06-2022]. Disponível em:

https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/73489/3/Contencioso%20da%20Uniao%

20Europeia _eUjust_Vol%20II.pdf

60 NEGRI, Sergio Marcos Carvalho de Ávila; LOPES, Giovana F. Peluso Lopes – “Da

personalidade eletrónica à classificação de riscos na inteligência artificial (IA)”. Online. 2526-0464.

2021, pp. 12-17

57


3. Conclusão

A IA aliada à confiança mostra-se o mote desta proposta

de regulamento, no entanto, com a presença de “proibições

flexíveis” 61 , conceitos gerais e espaços de interpretação arbitrária e

lacunas poderá a sua finalidade ficar aquém do esperado. Não

esquecer que o mercado, em particular o digital, não é plenamente

aberto, nem leal, nem concorrencial a nível prático.

Por esse motivo, dadores destes serviços vão camuflando as suas

intervenções obscuras nestas zonas cinzentas 62 e mal

regulamentadas, dando a aparência de uma atuação em

conformidade com a lei através de promessas irreais 63 e populistas

de um futuro alternativo 64 .

Como a Comissária Europeia para a Concorrência

Margrethe Vestager afirma “[n]o domínio da inteligência artificial,

61 RAPOSO, Vera Lúcio – “Proposta de Regulamento sobre Inteligência Artificial: The Devil is in

the Details”, cit., pp. 14-15

62 ROCHA, Tiago Filipe Morais da – A Era Digital e o Estado de Direito Democrático na União

Europeia. Online. Dissertação de Mestrado. Pp. 24-29. [Consultado em: 28-06-2022]. Disponível

em: https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/131465/2/436195.pdf

63 KAMLOT, Daniel – Propaganda Enganosa e Persuasão Reação do Consumidor e Proposta de

Políticas Públicas. Online. 2013, pp. 84. [Consultado em: 28-06-2022]. Disponível em:

https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/10874/TESE_DanielKamlot_ve

rsaoDEFIN ITIV A.pdf?sequence=1&isAllowed=y

64 DANTAS, Ana Roque – Inovação em Portugal A importância de aprender com o fracasso. In

Sociologia Online. No21. 2019, pp.83-115. [Consultado em: 28-06-2022]. Disponível em:

https://revista.aps.pt/pt/inovacao-em-portugal-a-importancia-de-aprender-com-o-fracasso/

58


a confiança é um imperativo, não um acessório” 65 e enquanto estas

palavras são discutíveis nesta proposta de regulamento, os

trabalhos não finalizaram. Por conseguinte, é importante

congratular o passo dado no mercado mundial competitivo que a

UE vem conquistando com estas iniciativas legislativas como um

marco importante no Direito Digital. Da mesma forma, é

necessária a atenção cuidada e minuciosa na prevenção do

autoritarismo tecnológico, bem como a promoção da ética e

proteção dos direitos fundamentais que a temática envolve e exige.

Dr.ª Catarina Silva Lêdo

Licenciada em Direito pela Universidade do Minho

65 Apud SOUSA, José Ricardo – Comissão propõe novas regras e ações para promover a inteligência

artificial. [Consultado em: 21-05-2022]. Disponível em:

https://europedirectminho.ipca.pt/comissao- propoe-novas-regras-e-acoes-para-promover-ainteligencia-artificial/

59


INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E

(IN)COMPATIBILIDADE COM OS

DIREITOS FUNDAMENTAIS:

IMPLICAÇÕES DA COVID-19:

Resumo:

É inegável que a inteligência artificial (IA) se tem enlaçado nas nossas

vidas, influenciando-nos de uma forma singular, confrontando-nos com

mudanças em variadas áreas. Certo é também que a Covid-19 veio acelerar esta

necessidade de criar espaço para novas soluções numa sociedade mais célere e

eficaz, introduzindo oportunidades em áreas como a saúde, a educação e o

emprego. Mas será que tudo se justifica para que possamos usufruir dessas

vantagens? Não será onerar em demasia o Estado de Direito e os seus

princípios? A Proposta de Regulamento da União Europeia tem em vista uma

abordagem que preserva os direitos fundamentais, no incremento das soluções

baseadas em IA 66 .b

66 Margrethe Vestager, vice-presidente da Comissão Europeia responsável pela Concorrência

afirmou que “no domínio da inteligência artificial, a confiança é um imperativo, não um acessório.

Com esta regulamentação histórica, a UE lidera o desenvolvimento de novas normas mundiais, para

garantir uma inteligência artificial de confiança”. – SOUSA, José Ricardo – “Comissão propõe novas

regras e ações para promover a inteligência artificial”. [Consultado em: 23.04.2022]. Disponível em:

60


Palavras-chave:

Inteligência Artificial; Covid-19; Direitos Fundamentais; Proposta de

Regulamento da União Europeia;

b

Sumário:

1. Breves considerações relativas à Inteligência Artificial e à Proposta de

Regulamento da União Europeia;

2. Implicações da Covid-19 nas técnicas de IA e a (in)compatibilidade com

os Direitos Fundamentais;

• 2.1. Em alguns sistemas de risco elevado;

• 2.2. Eventuais soluções e a Proposta de Regulamento;

3. Notas conclusivas

https://europedirectminho.ipca.pt/comissao-propoe-novas-regras-e-acoes-para-promover-ainteligencia-

artificial/.

61


1. Breves considerações relativas à Inteligência Artificial e à

Proposta de Regulamento da União Europeia:

A IA, definida pelo Dicionário Webster como “[t]he

capability of a machine to imitate intelligent human behavior”, é

um ramo da ciência informática que tem em vista a criação de

máquinas computorizadas, de software. Este pode estar incorporado

num substrato físico, possuindo, assim, também hardware ou não

(reside aqui a diferença entre robot e bot, respetivamente). O

objetivo destes softwares é que possam atuar como seres humanos,

simulando a sua inteligência, capazes na apreensão de informações

e no tratamento das mesmas, podendo dar respostas a inúmeros

problemas, por via de machine learning ou deep learning 67 .

Como é natural, estes mecanismos pressupõem inúmeros

riscos, pelo que surgiu a primeira Proposta de Regulamento do

Parlamento Europeu e do Conselho “que estabelece Regras

harmonizadas em Matéria de Inteligência Artificial (Regulamento

67 A este propósito, v. MOREIRA, Sónia – “Artificial Intelligence: Brief considerations regarding

the Robot-Judge”, in Maria Miguel Carvalho/Sónia Moreira (coords.), Governance & Technology -

E-Tec Yearbook, JusGov - Research Centre for Justice and Governance/University of Minho -

School of Law, 2021, pp. 297-313, disponível em https://www.jusgov.uminho.pt/publicacoes/etecyearbook-2021-2/.

62


Inteligência Artificial) e altera determinados Atos Legislativos da

União 68 , por forma a poder garantir a construção de uma IA na

qual o indivíduo possa depositar a sua confiança. É, assim,

importante a implementação de diretrizes éticas, como a

transparência, a responsabilidade, a segurança, a privacidade e

governação dos dados, a acessibilidade e a sustentabilidade 69 .

Resulta, desde logo, dos primeiros considerandos da Proposta, o

leque de benefícios desta “família de tecnologias” para a sociedade,

em todas as suas indústrias e atividades 70 . A Proposta estrutura-se

de forma a abordar o âmbito da IA (Título I), as áreas onde é

proibida a utilização de IA (Título II), os sistemas de risco elevado

(Título III), sem esquecer as necessidades de transparência e

medidas de apoio à inovação (Títulos IV e V, respetivamente).

68 Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho que estabelece Regras

harmonizadas em Matéria de Inteligência Artificial (Regulamento Inteligência Artificial) e altera

determinados Atos Legislativos da União. [Consultado em 22/06/2022]. Disponível em

https://eur-lex.europa.eu/legal- content/PT/TXT/?uri=CELEX:52021PC0206.

69 Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho que estabelece Regras

harmonizadas em Matéria de Inteligência Artificial (Regulamento Inteligência Artificial) e altera

determinados Atos Legislativos da União. [Consultado em 22/06/2022]. Disponível em

https://eur-lex.europa.eu/legal- content/PT/TXT/?uri=CELEX:52021PC0206.

70 Mais concretamente o Considerando 3.

63


2. Implicações da Covid-19 nas técnicas de IA e a

(in)compatibilidade com os Direitos Fundamentais:

Da pandemia resultaram inúmeras possibilidades de

exploração da IA que se inserem no âmbito dos sistemas de risco

elevado da Proposta, regulados no Título III e especificados no

Anexo III, ex vi do artigo 6.º, n.º 2, da Proposta. É objetivo do

presente artigo dar a conhecer algumas técnicas de IA que surgiram

no seio desses mesmos sistemas, com o contexto pandémico, que

nos vieram mostrar que é uma realidade bem próxima,

problematizando, assim, a eventual continuidade de determinadas

medidas e a sua evolução para técnicas ainda mais avançadas. É

pertinente avaliar que interesses públicos estas medidas

efetivamente asseguram e se estão em consonância com a

segurança, privacidade, imparcialidade e dignidade da pessoa

humana que a Proposta pretende salvaguardar, já que as técnicas

de IA são caracterizadas, não raras vezes, por alguma opacidade.

64


2.1. Em alguns sistemas de risco elevado:

No que diz respeito à área da saúde 71 , indubitável é a

evolução e a importância da IA, desde uma maior precisão e

rapidez no diagnóstico pelos equipamentos tecnológicos, passando

por um melhor acompanhamento e monotorização dos doentes,

até uma maior eficiência no âmbito da farmacologia 72 .

Em concreto, com a pandemia, a comunidade científica

procurou conhecer o vírus e as suas consequências; o uso da IA foi

– e é – fundamental na deteção, resposta, prevenção e recuperação

da doença (assim como de outras, naturalmente). Vejamos, de

seguida, algumas técnicas, a título exemplificativo 73 .

Como forma de prevenção, foi criada a EpiRisk,

plataforma destinada a criar probabilidades de deslocação de

infetados de locais onde existam surtos para outras áreas do

mundo, por via de transporte aéreo. Selecionando um determinado

país no mapa, é- nos dada a informação acerca dos principais

71 Área com inúmeros sistemas de IA identificados pelo artigo 6.o da Proposta como sendo de risco

elevado, e concretizados pelo ponto n.º 5 do Anexo III e pelo artigo 7.º, n.º 1, alínea b), da referida

Proposta.

72 PD PORTUGAL, Redação – “Efeitos da Inteligência Artificial na Medicina”. [Consultado em:

17.06.2022]. Disponível em: https://www.apd.pt/efeitos-da-inteligencia-artificial-na-medicina/.

73 A este respeito, v. artigo: OCDE – “Usando a inteligência artificial para ajudar no combate à

COVID- 19”. [Consultado em: 01.05.2022]. Disponível em:

https://www.oecd.org/coronavirus/policy- responses/usando-a-inteligencia-artificial-para-ajudarno-combate-a-covid-19-a569dd72/.

65


destinos que são apresentados relativamente ao risco de

importação de casos de infeção 74 . Não podemos esquecer, ainda,

as inúmeras aplicações e plataformas criadas em diversos países

para monitorizar e identificar casos de infeção e cadeias de

transmissão, obtendo dados de localização dos cidadãos,

controlando o contacto entre estes, enviando até mensagens de

alerta em caso de infeção próximo. Em Portugal, nasce para esse

efeito a aplicação StayAway Covid, criada pela Direção Geral da

Saúde (DGS), como forma de rastreio digital da doença. Em Itália,

o uso do robot Tommy, durante o surto de Covid-19, 75 foi crucial na

supervisão de cada paciente e recolha de informações a serem

transmitidas à equipa clínica, fazendo com que a mesma reduzisse

o contacto direto com os doentes, reduzindo, assim, o risco de

infeção.

No que concerne às medidas que visam dar resposta,

apostou-se na criação de chatbots para esclarecer dúvidas

relacionadas com a doença. Em Portugal, a ferramenta com base

em algoritmos da UpHill 76 fornece a informação necessária, que

74

PROJECT, Gleam – “EpiRisk”. [Consultado em: 17/06/2022]. Disponível em:

https://epirisk.net/.

75 REUTERS, Agência (Jornal Público) – “Tommy, o «enfermeiro-robot» que ajuda os médicos

italianos a lutar contra a Covid-19”. [Consultado em: 17.06.2022]. Disponível em:

https://www.publico.pt/2020/04/01/fotogaleria/tommy-the-robot-400929.

76 A funcionalidade pode ser testada em UPHILL; DGS – “Autogestão COVID-19/Autogestão de

Condição pós-COVID-19”. [Consultado em: 17/06/2022]. Disponível em:

https://covid19.uphill.pt/.

66


vai sendo atualizada, e de forma credível, para que cada cidadão

entenda a sua situação particular e saiba como agir em

conformidade com a mesma. Este mecanismo veio permitir que as

linhas de atendimento ao utente se vissem mais desimpedidas,

particularmente no que toca a dúvidas que podem, por esta via, ser

esclarecidas, também de forma eficaz, permitindo ainda que os

casos mais graves e que necessitam de uma atenção mais célere a

possam conseguir.

Relativamente às técnicas utilizadas para tratamento e

recuperação, tem imperiosa relevância o uso do mecanismo de

reproposição de medicamentos: são criados algoritmos que usam

gráficos médicos para prever novas ligações entre medicamentos

já no mercado e doenças já existentes, analisando moléculas ativas

contra o coronavírus 77 . Pode isto ser uma alternativa à espera de

uma solução criada originariamente para o tratamento deste vírus,

questão que durante toda a pandemia e até hoje tem sido

investigada pela comunidade científica.

Perante períodos de instabilidade e insegurança, estes

exemplos informam aquilo que é a vantagem da IA neste campo.

A dúvida prende-se em saber qual é o limite, até que ponto obter

77 Assim como nos diz FISZMAN, Marcelo – “Inteligência Artificial na reproposição de drogas

para COVID-19”. [Consultado em: 01.05.2022]. Disponível em:

http://evidenciascovid19.ibict.br/index.php/tag/inteligencia-artificial/.

67


dados confidenciais do cidadão (como nas técnicas de prevenção

supra referidas) não significa desrespeitar o seu direito à vida

privada e familiar e à proteção de dados pessoais (plasmados nos

artigos 7.º e 8.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União

Europeia (CDFUE) e 26.º, n.º 1, da Constituição da República

Portuguesa (CRP)) – no caso das aplicações de rastreio – e até

mesmo a sua liberdade (artigos 6.º CDFUE e 27.º CRP). Em

relação aos métodos de diagnóstico e de tratamento, poderá

garantir-se, veementemente, que o uso combinado de

determinados componentes dos fármacos não seja prejudicial à

saúde ou que os diagnósticos se revelam íntegros? Será isto uma

potencial violação do direito à saúde e à sua proteção (artigos 35.º

CDFUE e 64.º CRP) e até, em ultima ratio, do direito à vida (artigos

2.º CDFUE e 24.º CRP)? Como disposto no considerando 28 da

Proposta, “(...) os sistemas de diagnóstico e sistemas que apoiam

decisões humanas devem produzir resultados exatos e de

confiança”. A verdade é que a informação recolhida sobre os

doentes, nestas plataformas, pode ser utilizada sem ter em conta o

histórico do paciente e o uso de uma máquina poderá conduzir a

68


diversos efeitos prejudiciais, não obstante o facto de os médicos

poderem introduzir dados erróneos na realização desses sistemas 78 .

Quanto aos “enfermeiros-robot”, importa equacionar as

eventuais vantagens de um sistema de saúde em que os doentes

não passam de um mero número num algoritmo vazio, quando são

privados do contacto direto com os profissionais, privilegiando o

sucesso dos resultados. Não será oportuno refletir sobre o impacto

do contacto humano no processo de recuperação do doente?

Com a Covid-19, também o indivíduo teve de se reinventar

na esfera da educação 79 , nomeadamente com a adoção do ensino à

distância. Segundo Alessandra Montini, “[a] educação foi um dos

setores mais atingidos pela pandemia da Covid-19. Com o

fechamento das instituições de ensino, foi preciso transferir as salas

de aula para o mundo digital, o que exigiu um grande esforço das

escolas e educadores” 80 .

78 DN/LUSA, Diário de Notícias – “Há riscos éticos no uso de inteligência artificial na medicina”.

[Consultado em: 17.06.2022]. Disponível em: https://www.dn.pt/sociedade/cientistas-alertampara-riscos-

eticos-de-uso-de-inteligencia-artificial-na-medicina-9187889.html.

79 Área também identificada pelo artigo 6.o da Proposta como sendo de risco elevado,

concretizada pelo ponto n.o 3 do Anexo III, neste caso, a alínea b).

80 MONTINI, Alessandra – “O que a inteligência artificial pode fazer pela educação?”. [Consultado

em: 04.05.2022]. Disponível em: https://infranewstelecom.com.br/o-que-a-inteligencia-artificialpode-fazer-

pela-educacao/.

69


De forma sumária e exemplificativa, podemos apontar

sistemas de avaliação que prescindem de mão humana na correção

de provas, sistemas que detetam as expressões faciais do aluno na

realização dos testes ou durante as aulas 81 ou a criação de bots que

respondem às dúvidas dos estudantes autonomamente 82 .

Mais uma vez, a IA mostrou a sua importância e o seu

valor, pese embora seja legítimo que se questione se não estarão a

ser prejudicados o direito à educação (artigos 14.º CDFUE, 73.oºe

74.º CRP), assim como outros direitos já referidos anteriormente,

como o direito à proteção dos dados pessoais (dos alunos), à sua

privacidade e sobretudo à dignidade (artigos 1.º CDFUE e 1.º

CRP). Naturalmente, a correção de provas não é um exercício

meramente objetivo, há critérios de subjetividade e de criatividade

que, em determinadas circunstâncias, devem ser atendidos e uma

máquina poderá não ser capaz de o fazer. Nem todas as questões

poderão, à partida, ser subsumíveis a um algoritmo. Veja-se o caso

81 Não precisamos de ir muito longe: a plataforma Respondus, aplicada na Universidade do Minho

na realização de testes online.

82 A Staffordshire University, em Inglaterra, criou o “Beacon”, bot que ajuda os estudantes universitários

no seu percurso académico, esclarecendo questões de forma mais rápida. Sobre este tema,

COURTOIS, Jean-Philippe (Microsoft) – “Como a IA está transformando a educação e o

desenvolvimento de habilidades”. [Consultado em: 04/05/2022]. Disponível em:

https://news.microsoft.com/pt-br/como-ia-esta-transformando-educacao-desenvolvimentohabilidades/.

O website deste bot e algumas informações podem ser encontradas em

STAFFORDSHIRE UNIVERSITY – “Beacon - Your digital coach”. [Consultado em:

17/06/2022]. Disponível em: https://www.staffs.ac.uk/students/digital-services/beacon.

70


de alunos com necessidades educativas especiais: não parece viável

que um software tenha a empatia e o cuidado necessários para

acompanhar essas necessidades, se não é formatado para atender a

uma ou outra situação individual.

Será de extrema relevância mencionar que, na perspetiva

do professor, poderá estar inclusive em causa o direito ao trabalho

(artigos 15.º CDFUE, 47.º, n.º 1, e 58.º CRP). Com a pandemia

Covid-19, por volta de um milhão de portugueses passou a

trabalhar remotamente, com o fim de se evitar a propagação do

vírus 83 .

Embora não possamos dizer que o teletrabalho prejudica

diretamente este direito fundamental, pois é certo que não se está

a privar alguém de exercer as suas funções e, consequentemente,

de obter a remuneração do seu trabalho, a verdade é que esta

profissão poderá vir a ser “inutilizada” se forem adotadas

prospetivamente estas medidas, se se chegar à conclusão que é

possível o ensino desprovido de professores e que as novas

tecnologias os podem substituir. É uma questão muito complexa e

que exige uma problematização mais aprofundada.

83 GOMES, Maria Irene – “O Teletrabalho e as Condições de Trabalho: Desafios e Problemas” in

E. Tec Yearbook – Artificial Intelligence & Robots, Braga, 2184-707X, JusGov/University of Minho –

School of Law, 2020, p. 142 (pp. 141-169).

71


O mesmo acontece em relação aos profissionais de saúde,

que, embora hoje nos pareçam imprescindíveis e insubstituíveis, a

verdade é que caminhamos no sentido de, cada vez mais,

podermos abdicar de recursos humanos e utilizar a IA a nosso

favor, não só para efeitos de celeridade e eficácia, mas também para

efeitos de proteção do indivíduo. Note-se que, em

estabelecimentos de saúde, a propagação de doenças e a possível

infeção dos profissionais sempre foi um problema que a Covid-19

apenas veio acentuar.

2.2. Eventuais soluções e a Proposta de Regulamento:

Partindo do Princípio ubi ius, ibi remedium e do Princípio da

Tutela Jurisdicional Efetiva (artigo 20.º CRP), na eventualidade da

violação de um direito, o cidadão tem o direito de se defender, de

aceder aos tribunais para fazer valer os seus direitos individuais.

Assim, toda e qualquer lesão a um bem jurídico deve encontrar

uma resposta no mundo jurídico 84 .

No caso vertente, o exercício de proteção destes direitos

fundamentais deverá ser realizado ex ante – é, aliás, o grande desafio

84 DIAS, Jorge de Figueiredo – Direito Penal, Parte Geral. Tomo I. Questões Fundamentais, A

Doutrina Geral do Crime. 3.a edição. Coimbra: Gestlegal, 2019, p. 130.

72


que a União Europeia se propôs a ultrapassar com a Proposta – até

porque o Direito não pode, nem deve, ter uma função apenas de

reação, mas de antevisão e previsão de eventuais litígios, maxime no

que diz respeito a técnicas que ainda estão em desenvolvimento e

investigação e que são consideradas de risco elevado.

Tendo em conta os riscos suprarreferidos, a Proposta

introduz requisitos destinados aos sistemas de IA em áreas

delicadas como estas, aos fornecedores – que devem assegurar,

desde logo, o cumprimento do disposto no artigo 16.o – bem

como aos utilizadores destes mesmos sistemas, como a

necessidade do estabelecimento de um sistema de gestão de riscos

(artigo 9.º), de uma avaliação prévia à colocação no mercado (artigo

19.º) e a imperiosidade da transparência, da informação aos

utilizadores (artigo 13.º), da cibersegurança e sobretudo da

supervisão humana (artigo 14.º) 85 .

Relevante será, após uma análise profunda de cada uma

destas exigências, saber se as mesmas serão suficientes para

salvaguardar e proteger a esfera jurídica de cada indivíduo; essa

análise deverá ser feita de forma casuística, isto é, atendendo a cada

85 O considerando 48 da Proposta prevê a necessidade de os sistemas de IA de risco elevado serem

desenvolvidos de forma a possibilitar a supervisão humana. A identificação destas medidas deverá

ser realizada numa fase anterior à colocação no mercado.

73


software ou hardware, problematizando todas as questões enunciadas

e procurando obter soluções apropriadas para as mesmas.

Mais do que necessário, é urgente que haja uma

ponderação rigorosa entre a vantagem de uma determinada técnica

de IA e o prejuízo que poderá comportar para o cidadão, sendo

imperativo que essa ponderação seja desejavelmente preventiva e

não meramente reativa.

3. Notas conclusivas:

É certo que o ser humano vive em constante evolução e só

progride quando ultrapassa os seus limites, quando é capaz de criar

e partilhar a sua inteligência com outras realidades. Ao longo dos

séculos, e em diversos ramos da vida social, assistimos a um

crescendo de informações e de tecnologias que fizeram com que,

nos dias de hoje, nos possamos considerar seres verdadeiramente

evoluídos. A verdade é que o Direito é mutável, acompanha esse

caminho de constante progressão e tem uma função criadora de

segurança e de certeza 86 ; mas o Direito é feito de pessoas: não só

pessoas que criem e/ou supervisionem, mas pessoas que o sejam na

86 EWALD HÖRSTER, Heinrich; MOREIRA DA SILVA, Eva Sónia – A Parte Geral do Código

Civil Português. 2.a edição. Coimbra: Almedina, 2019, p. 14.

74


verdadeira aceção da palavra ser. Só sendo é que garantimos que o

outro vive com a sua dignidade, com a sua liberdade, com a sua

privacidade. São bens jurídicos consagrados em inúmeros

diplomas nacionais e supranacionais, mas, acima de tudo, são

valores que nos permitem articular o (necessário) avanço da

Ciência – que não pretendemos prejudicar – com a essência do ser

humano. “Entregar” a pessoa e as suas funções à IA com limites

nem sempre claros e, por vezes, insuficientes para cada sistema de

risco poderá ser deveras perigoso, aspeto que exige uma maior

dedicação normativa a cada uma destas áreas e uma prevenção

rigorosa da violação dos direitos fundamentais que poderá estar

efetivamente em causa.

A Covid-19 veio particularmente mostrar-nos que o futuro

é uma realidade não muito distante e que são possíveis

(imperativas!) mudanças proficientes. Aprofundar a sua

regulamentação é fulcral na garantia do respeito pela

individualidade de cada ser humano, assim como um permanente

“diálogo sério e profícuo entre juristas e cientistas” 87 , a fim de se

alcançar a almejada compatibilização, que entendemos ser

87 IDALGO, Sónia – A Inteligência Artificial no Direito Penal. Coimbra: Almedina, 2020, p. 156.

75


necessária, entre uma sociedade moderna e um cidadão

integralmente respeitado.

Ana Teresa Cruz

Estudante do 3.º ano da Licenciatura em Direito da Universidade do Minho

76


INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E A

DECISÃO JUDICIAL: SISTEMA DE

JUSTIÇA NO RUMO CERTO?

Resumo:

Entre promessas de efetividade, celeridade, segurança jurídica e

economia de recursos surgem propostas de implementação de sistemas de IA

no Direito, mais concretamente, no âmbito do processo de tomada de decisão

nos tribunais. O Juiz-Robot emerge da mudança paradigmática que se opera na

sociedade.

A este respeito emergem duas possibilidades, designadamente, a

aplicação da IA no sistema judiciário externamente, figurando o sistema de IA

como um mero auxiliar do juiz na busca de legislação, jurisprudência ou

doutrina, por exemplo; ou a aplicação interna, onde se pretende substituir a

tomada de decisão do julgador por um algoritmo, criando assim, um “Juiz-

Robot”.

Debruçar-nos-emos sobre alguns problemas que surgem ou poderão

surgir na eventualidade da tomada de decisão pela mão do juiz ser substituída

por um algoritmo. Analisaremos criticamente, neste âmbito, a Proposta de

Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, relativa ao

estabelecimento de regras harmonizadas sobre a inteligência artificial.

77


Palavras-chave:

Fundamentais.

Inteligência Artificial, União Europeia, Juiz-Robot, Direitos

Sumário:

1. Notas Introdutórias;

2. Definição de Inteligência Artificial:

3. Problemas da decisão tomada por um sistema de AI:

2.1. Dificuldade de formalização do raciocínio jurídico;

2.2. O problema de decisão algorítmica: riscos para a não

discriminação;

2.3. Riscos para outros direitos fundamentais: particularmente para o

direito à ação e a um tribunal imparcial (artigo 47.º da Carta de Direitos

Fundamentais da UE);

4. Notas Conclusivas;

78


1. Notas Introdutórias

Inimaginável a Pós-Modernidade sem tecnologia; a

segunda tornou-se uma protagonista na vida do Homem. Verificase

a inevitabilidade de referir a chamada Inteligência Artificial (IA):

uma inteligência que se pretende vir a ser similar à humana,

verificada por mecanismos e software. A sua crescente utilização e

incursão na vida do homem não poupou as preocupações da União

Europeia, que divulgou, pioneiramente, um diploma regulamentar

da IA.

No dia 21 de abril de 2021, a Comissão Europeia

apresentou uma Proposta de Regulamento do Parlamento

Europeu e do Conselho, relativa ao estabelecimento de regras

harmonizadas sobre a Inteligência Artificial (doravante Proposta),

a concretização do compromisso político assumido por Ursula von

der Leyen 88 . Urge a necessidade de regular sobre a mais recente

novidade tecnológica pela expressividade crescente que tem vindo

a apresentar na sociedade. O Judiciário não é exceção: têm-se

88 Proposta de Regulamento Inteligência Artificial. [Consultado em: 9/05/2022]. Disponível em:

https://eurlex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX:52021PC0206.

79


verificado algumas experiências de sistemas inteligentes, tais como,

o COMPAS, o Vítor, a Prometea, entre outros 89 .

A tecnologia é uma presença constante no quotidiano do

homem, à data da pós-modernidade, indissociável, presente nas

mais amplas práticas sociais, desde as mais elementares às mais

complexas. É uma alavanca de desenvolvimento da sociedade

global, bem como uma ferramenta cada vez mais utilizada nas

diversas áreas. O avanço tecnológico observa uma evolução

irreversível a um ritmo alucinante. A evolução tecnológica

apresenta-se fragmentada, na medida em que a cada rutura

paradigmática as novidades são descontínuas 90 , nunca descuidando

os passos anteriores. Estabelece uma estreita afinidade com a

sociedade e as suas particularidades espácio-temporalmente

limitadas, numa recíproca influência. Segundo Thomas Hughes a

capacidade de influência da sociedade no avanço tecnológico é

89 MOREIRA, Sónia - “Artificial Intelligence: Brief Considerations Regarding the Robot-Judge”.

In Governance & Technology - E-Tec Yearbook, JusGov - Research Centre for Justice and

Governance/University of Minho - School of Law, 2021, pp. 301-304. [Consultado em:

29/06/2022] Disponível em: https://www.jusgov.uminho.pt/publicacoes/etec-yearbook-2021-2/.

90 Não é uma ideia consensual. “Herbert Schillere Nicholas Garnham, por exemplo, põem o acento

tónico na continuidade e não na ruptura tecnológica, social e económica”. Cfr. SOUSA, Helena –

“Reflexões/Leituras”. In Comunicação e a Sociedade. E-ISSN: 2183-3575. Vol. 5, 2004, p. 168.

[Consultado em: 15/06/2022]. Disponível em:

https://revistacomsoc.pt/index.php/revistacomsoc/article/view/1248/1230.

80


demarcada por dois conceitos, essencialmente: momentum e reverse

salients. O primeiro é sugestivo da necessidade de emprego de

esforços de forma coletiva com o desígnio de ultrapassar os

obstáculos que impedem o avanço num determinado sistema

tecnológico (o autor refere que seria necessária a ação coletiva para

ultrapassar os obstáculos); a atuação da coletividade pressupõe que

sejam identificados os reverse salients, ou seja, os obstáculos (quem

impediam o desenvolvimento do sistema) convertidos em

problemas superáveis, cuja solução permite um desenvolvimento

efetivo. “Segundo Hughes, provavelmente a maioria das invenções

e desenvolvimentos tecnológicos resulta de esforços para corrigir

os reverse salients” 91 .

É possível identificar no progresso tecnológico quatro eras

ou movimento, “ou seja, épocas na evolução histórico-social do

homem marcadas pelo predomínio de um tipo de tecnologia. O

91 A propósito BENAKOUCHE, Tamara – TECNOLOGIA É SOCIEDADE: CONTRA A

NOÇÃO DE IMPACTO TECNOLÓGICO, p. 7. [Consultado em: 24/06/2022]. Disponível em:

https://pimentalab.milharal.org/files/2013/11/Tamara_Benakouche_Tecnologia_eh_Sociedade.p

df.

81


desenvolvimento tecnológico da humanidade pode ser classificado

em quatro eras: industrial, elétrica, eletrônica e da informação” 92 .

A IA surge no âmbito da era da informação, mais

concretamente a par do desenvolvimento da computação, neste

particular, em mecanismos de software. Segundo Castells o

conceito de tecnologias de informação “inclui um conjunto

convergente de tecnologias em micro-electrónica, computação

(hardware e software), telecomunicações, radiodifusão, optoelectrónica

e até engenharia genética e suas aplicações” 93 .

A IA é a novidade deste novo período de abnegação de

imperativo racionalismo da modernidade, a crença num progresso

linear e verdades absolutas, no qual a solidez e continuidade fora

substituída pela incerteza, esta permanente e irredutível, quer em

relação às pessoas, quer em relação ao mundo e ao modo como

nele se deve viver: a pós-modernidade 94 .

92 MESSA, Ana Flávia e CAMILO, Carlos – “Diretrizes Éticas da Inteligência Artificial”. In E.TEC

YEARBOOK Articial Intelligence & Robots. School of Law of the University of Minho, 2020, p.

3. [Consultado em: 25/06/2022]. Disponível em:

https://www.jusgov.uminho.pt/publicacoes/etec-yearbook-2020-2-2/.

93 SOUSA, Helena – “Reflexões/Leituras”, cit., p. 168.

94 Harvey e Bauman/ SOUZA, Eloisio – “Pós-modernidade nos estudos organizacionais:

equívocos, antagonismos e dilemas”. In Cad. EBAPE.BR. Rio de Janeiro. v. 10, 2012, pp. 271-272.

82


2. Definição de Inteligência Artificial

Têm sido apostadas algumas tentativas para cumprir a

tarefa da definição de IA, que se afigura um tanto ou quanto

complexa. Designadamente, a Autoridade Norueguesa de Proteção

de Dados no relatório “Artificial intelligence and privacy”, de

janeiro de 2018, avança com a seguinte definição: “Artificial

intelligence (AI) is the concept used to describe computer systems

that are able to learn from their own experiences and solve

complex problems in different situations – abilities we previously

thought were unique to mankind. And it is data, in many cases

personal

data, that fuels these systems, enabling them to learn and become

intelligent” 95 .

Até à data da divulgação da Proposta a Comissão Europeia,

em 2018, propunha a seguinte definição: “Artificial intelligence

(AI) refers to systems that display intelligent behaviour by

analysing their environment and taking actions – with some degree

[Consultado em: 24/06/2022]. Disponível em:

https://www.scielo.br/j/cebape/a/TmkfjwXQYCrDrxYznHnM5gr/?format=pdf&lang=pt.

95 Artificial intelligence and privacy report. Datatylsinet, 2018, p. 5. [Consultado em: 25/06/2022].

Disponível em: https://www.datatilsynet.no/globalassets/global/english/ai-and-privacy.pdf.

83


of autonomy – to achieve specific goals” 96 . Esta foi substituída por

uma definição (que decorre da Proposta) - “A inteligência artificial

(IA) é uma família de tecnologias em rápida evolução capaz de

oferecer um vasto conjunto de benefícios económicos e sociais a

todo o leque de indústrias e atividades sociais” 97 - à qual têm vindo

a ser tecidas algumas críticas, como por exemplo, pelo seu carácter

lato e amplo capaz de incluir no quadro regulamentar softwares

que, vulgarmente, não sejam classificados como tal (como sistemas

de IA, entenda-se) 98 .

Simplificando, a IA pode ser definida como a tentativa de

reprodução, em sistemas artificiais, da cognição humana dos seus

mais variados componentes, como a aprendizagem, a memória e o

processo de tomada de decisões. Assim, a missão da Inteligência

Artificial consubstancia-se na descrição com precisão de

96 EUROPEAN COMISSION, Communication from the Commission to the European

Parliament, the European Council, the Council, the European Economic and Social Committee and

the Committee of the Regions on Artificial Intelligence for Europe, Brussels, 25.4.2018 COM (2018)

237 final. [Consultado em: 24/06/2022]. Disponível em: https://eurlex.europa.eu/legalcontent/EN/TXT/?uri=COM%3A2018%3A237%3AFIN

97 Proposta, artigo 3.o, n.o 1.

98 Sobre esta questão consultar RAPOSO, Vera Lúcia – “Draft Regulation on Artificial Intelligence:

The devil is in the details”. In Privacy and Data Protection Magazine - Revista Científica na Área

Jurídica. Lisboa. ISSN: 2184-920X. N.o 03, 2021, p. 12. [Consultado em: 28/06/2022]. Disponível

em: https://bo.europeia.pt/content/files/pdpm_003_2.pdf.

84


habilidades humanas a ponto de conseguir programá-las num

computador. Pelas palavras de John McCarthy, “fazer com que

uma máquina se comporte de maneira que, caso se tratasse de um

ser humano, seria considerada inteligente" 99 .

3. Problemas da decisão tomada por um sistema de AI

3.1. Dificuldade de formalização do raciocínio jurídico

No Direito, a IA é utilizada por meio da estruturação de

algoritmos, os quais se caracterizam como um procedimento

lógico voltado à solução de determinado problema, tendo como

ponto de partida os dados que são fornecidos ao sistema - input -

como, por exemplo, os padrões de factos, os padrões de

documentos, decisões de casos analógicos e os precedentes, e

como ponto de chegada - output - o resultado alcançado. Assim, o

99 OLIVEIRA, Samuel e COSTA, Ramón – “Pode a Máquina Julgar? Considerações sobre o Uso

de Inteligência Artificial no Processo de Decisão Judicial”. In Revista de Argumentação e

Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre. e ISSN: 2526 0103. Vol. 4, no. 2, 2018, p. 24. [Consultado em:

28/06/2022]. Disponível em:

https://www.academia.edu/38733203/PODE_A_M%C3%81QUINA_JULGAR_CONSIDERA

%C3%87%C3%95ES_SOBRE_O_USO_DE_INTELIG%C3%8ANCIA_ARTIFICIAL_NO_P

ROCESSO_DE_DECIS%C3%83O_JUDICIAL.

85


sistema, para que assuma um papel ativo na tomada de decisão 100 ,

carece de estímulos externos que deverão ser providenciados pelo

seu fornecedor. O primeiro problema coloca-se neste particular.

Será este processo compatível com o método jurídico? Não é de se

olvidar a integração do ordenamento jurídico na família jurídica

Civil Law, considerando as especificidades da mesma,

designadamente a opção lógica normativa: o processo dedutivo 101 .

A estreita ligação entre o direito material e o direito processual

opera-se segundo um silogismo judiciário, partindo-se de uma

premissa maior até uma premissa menor, permitindo-se assim o

alcance de uma conclusão 102 . Porém não se traduz num processo

mecânico com uma total expurgação do processo criativo. Este

último pontua em dois momentos essencialmente. À uma, na

interpretação da lei, artigo 9º do Código Civil (CC). Segundo o

número 1 do presente preceito legal, o intérprete deverá socorrer-

100 Em bom rigor é uma escolha e não uma decisão. No nosso entendimento, os sistemas de AI

apenas são capazes de escolha. A decisão é um processo complexo. Os processos complexos não se

desenvolvem mediante mecanicidade, tampouco se contentam apenas com cálculos e memória, pois

exigem uma esfera de decisão que deverá ser tomada. Será um sistema IA capaz de processos

complexos? Cfr. MESSA, Ana Flávia e CAMILO, Carlos – “Diretrizes Éticas da Inteligência

Artificial”, cit., p. 14.

101 CORTÊS, António - Para uma Metodologia Jurídica Integral, p. 40. [Consultado em:

28/06/2022]. Disponível em: file:///C:/Users/USER/Downloads/9875-Artigo-16911-1-10-

20210403.pdf.

102 15 CORTÊS, António - Para uma Metodologia Jurídica Integral, cit., p. 41.

86


se dos elementos literal, histórico, sistemático e teleológico.

Observe-se a margem de apreciação e conformação devolvida ao

julgador que não deverá proceder a uma aplicação "cega" da letra

da lei 103 . À outra, na integração de lacunas, artigo 10º do CC.

Quando confrontado com o vazio legal, o julgador, com recurso à

analogia, poderá criar uma norma ad hoc, na falta de caso análogo,

aplicável somente ao caso concreto, artigo 10º, n.º 3, do CC 104 .

Receamos a incapacidade do exercício racional lógico apto a

relacionar os elementos do caso concreto à generalidade e

abstração da norma, por parte de um sistema de IA, ou seja, a

impossibilidade de subsunção. O mesmo se diga relativamente às

lacunas. Não estamos convictos de que um algoritmo seja capaz de

decidir em conformidade com as exigências do silogismo

judiciário, tal como ele se configura no ordenamento jurídico

português.

Note-se que as próprias técnicas legislativas poderão

obstaculizar a decisão autónoma, ou melhor, esta poderá ser

incompatível com as primeiras. A título exemplificativo, veja-se as

103 MOREIRA, Sónia, “Artificial Intelligence: Brief Considerations Regarding The Robot-Judge”,

cit., p. 304.

104 CAMBINDA, Hernani - A “Integração Constitutiva” do Direito, p. 65. [Consultado em:

28/06/2022]. Disponível em: file:///C:/Users/USER/Downloads/9238-Artigo-15458-1-10-

20200701.pdf.

87


cláusulas gerais e os conceitos indeterminados. Questiona-se, será

o Juiz-Robot capaz de decidir segundo a equidade ou de aplicar

princípios? Não bastaria um “mero arranjo da dogmática

tradicional do Direito Civil” 105 , senão do processo de aplicação da

norma. Afinal a “Justiça é mais do que a mera aplicação da lei” 106 .

3.2 O problema de decisão algorítmica: riscos para a não

discriminação

Os sistemas inteligentes poderão revestir-se de autonomia,

porém diversa da autonomia humana (como demonstraremos

infra), isto é, “capazes de evoluir para além da sua programação,

utilizando machine learning ou mesmo deep learning, tornando-se cada

105 FREITAS, Pedro “Veículos Autónomos e «Inteligentes» Perante Conflito de Interesses: Uma

Visão a Partir do Direito e de Necessidade Jurídico Penal”, in E.TEC YEARBOOK Articial

Intelligence & Robots School of Law of the University of Minho, 2020, p. 56. [Consultado em:

25/06/2022]. Disponível em: https://www.jusgov.uminho.pt/publicacoes/etec-yearbook-2020-2-

2/.

106 MOREIRA, Sónia, “Artificial Intelligence: Brief Considerations Regarding The Robot-Judge”,

cit, p. 298.

88


vez mais aptos a resolver os problemas para os quais foram

criados” 107 .

Caracterizam-se como um procedimento lógico voltado à

solução de determinado problema, tendo como ponto de partida

os dados que são fornecidos ao sistema e como ponto de chegada,

o resultado alcançado, como foi já descrito anteriormente. Assim

a decisão tomada pelo algoritmo, ainda que de forma independente

pelo até aqui disposto, dependerá sempre dos inputs que foram

fornecidos pelo programador 108 . A par dos problemas de

responsabilidade civil que poderão ser suscitados neste particular,

surgem outras preocupações: decisões enviesadas.

Contrariamente à crença coletiva de que os sistemas

baseados em IA são objetivos, imparciais e até neutros, na medida

em que a subjetividade humana é substituída por resultados

imparciais, estes podem refletir preconceitos e vieses humanos.

Segundo Núbia Oliveira, Deilton Brasil e Jamile Diz, as

discriminações algorítmicas devem-se essencialmente a três

107 MOREIRA, Sónia, “Artificial Intelligence: Brief Considerations Regarding The Robot-Judge”,

cit., p. 300.

108 MOREIRA, Sónia, “Artificial Intelligence: Brief Considerations Regarding The Robot-Judge”,

cit., p. 301.

89


fatores 109 : 1) falta de precisão dos sistemas, remetem para as

limitações a nível técnico dos próprios sistemas que impedem

resultados totalmente eficazes; 2) os dados que são inseridos pelos

programadores comportam já as suas preferências pessoais; 3) falta

de diversidade dos programadores.

Há que ter claro que as decisões tomadas nestes conformes

poderão apresentar um duplo vício. À uma, as decisões poderão

ser tendenciosas porque os dados com que são programadas

comportam preferências pessoais do programador, juízos de valor,

opiniões, etc., pelo que, a este nível corre-se o risco de se

perpetuarem padrões sociais discriminatórios 110 . À outra, dados

incorretos ou até incompletos, que geram decisões,

consequentemente incorretas, o que também se revela

problemático, porque, atendendo à pretensão da cientificidade, em

relação ao resultado, poderão ser inquestionadas, despidas de

109 OLIVEIRA, Núbia, BRASIL, Deilton e DIZ, Jamile, “Decisões Automatizadas e Processos

Discriminatório: a Lei Geral de Proteção de Dados brasileira como mecanismo de governança”. In

Privacy and Data Protection Magazine - Revista Científica na Área Jurídica. Lisboa. ISSN: 2184-

920X. N.o 02, 2021, p. 58. [Consultado em: 28/06/2022]. Disponível em:

https://www.europeia.pt/content/files/pdpm_002.pdf.

110 A propósito, o COMPAS (Correctional Offender Management Profiling for Alternative

Sanctions), um sistema de IA utilizado em alguns tribunais norte-americanos corrobora o sentido

da presente afirmação. V. MOREIRA, Sónia, “Artificial Intelligence: Brief Considerations Regarding

The Robot-Judge”, cit., p. 302.

90


qualquer reflexão sobre o funcionamento do algoritmo. Esta

aceitação serena é coibitiva do impulso para a reverter. A diferença

entre dois níveis, reside no facto de no primeiro “a base de dados

utilizada pelo algoritmo está correta, mas o resultado do seu

empego é discriminatório” 111 .

A Proposta é solidária com as presentes preocupações.

Primeiro, em seu Considerando 38, assume a “forma

discriminatória ou incorreta e injusta” com que podem ser

destacadas pessoas por um sistema de IA, bem como podem ser

prejudicados “o exercício de importantes direitos processuais,

como o direito de ação e a um tribunal imparcial, a presunção de

inocência, e o direito de defesa” (dos primeiros trataremos

adiante). Em virtude de tal, considera “apropriado classificar como

de risco elevado 112 um conjunto de sistema de IA”. Reitera-se a

imperatividade de classificarem sistemas de IA “concebidos para a

administração da justiça e os processos democráticos” como de

risco elevado. Ademais, não se negam os “riscos de potenciais

enviesamentos, erros e opacidade”. Para os sistemas de IA de risco

111 CANTALI, Fernanda e ENGELMANN, Wilson, “Do não cognitivismo dos homens ao não

cognitivismo das máquinas: percursos para o uso de decisões judiciais automatizadas”. In Revista

Jurídica Portucalense / Portucalense Law Journal. E-ISSN: 2183-5705. N.o 29, 2021, p.52.

112 O quadro regulamentar sobre IA é baseado no risco e diferencia entre as utilizações que criam:

i) um risco inaceitável, ii) um risco elevado e iii) um risco baixo ou mínimo.

91


elevado, em conformidade com o disposto no Considerando 43 da

Proposta são previstos requisitos exigentes, impondo-se a

necessidade de implementação de um sistema de gestão do risco,

de cumprimento de requisitos relativos à qualidade dos dados

utilizados, disponibilidade de documentação técnica e conservação

de registos, prestação de informação aos utilizadores, supervisão

humana e requisitos de segurança dos sistemas 113 .

Encontramos na Proposta um mecanismo que

aparentemente poderia ultrapassar as decisões autónomas

discriminatórias. Ora vejamos, no artigo 10º, n.º 1, da Proposta,

advoga-se que os sistemas de IA de risco elevado que utilizem

técnicas que envolvam o treino de modelos com dados devem ser

desenvolvidos com base num conjunto de dados de treino,

validação e teste que cumpram os critérios de qualidade referidos

ainda no referido artigo em seus números 2 a 5. Atente-se aos

requisitos previstos no número 3, em particular “conjuntos de

dados de treino, validação e teste devem ser representativos,

isentos de erros e completos” (itálico nosso), ideia antecipada pelo

Considerando 44. Em tese, excluir-se-iam as hipóteses de

enviesamento das decisões tomadas pelos sistemas inteligentes de

forma autónoma e, numa lógica de proporcionalidade direta, as

113 Proposta, artigos 8º, 9º, 10º e 11º.

92


discriminações por elas logradas. No entanto, ficamo-nos pelo

plano teórico, “os especialistas salientam que um conjunto de

dados completamente livre de erros é utópico” 114 .

Vera Lúcia Raposo alerta-nos para a ambiguidade em que

habita a exigência que decorre do presente preceito legal. “Será que

o erro em causa se refere ao conjunto dos dados, à sua classificação,

à forma como o comportamento pretendido é representado, a

todos estes aspectos, ou ainda a outros? Por outro lado, quem

avalia a qualidade dos dados e com que critérios?” 115 . A autora é

acompanhada por Swedsof, quando afirma que “[a]ctors in the

market are already working towards these ideal standards simply

because it makes their models more efficient and effective, but the

ideals are practically unattainable. Even verifying that data is free

of any potential flaw that may affect the model outputs is

oftentimes impossible to do ex ante” 116 .

114 RAPOSO, Vera Lúcia – “Draft Regulation on Artificial Intelligence: The devil is in the details”.

In Privacy and Data Protection Magazine - Revista Científica na Área Jurídica. Lisboa. ISSN: 2184-

920X. N.o 03, 2021, p. 16.

115 RAPOSO, Vera Lúcia, “Draft Regulation on Artificial Intelligence: The devil is in the details”.

In Privacy and Data Protection Magazine - Revista Científica na Área Jurídica. Lisboa. ISSN: 2184-

920X. N.o 03, 2021, cit., p. 17.

116 SWEDSOF – “Comments Regarding the European Commission’s proposal for an Artificial

Intelligence Act”, 2021, p.4. [Consultado em: 24/06/2022]. Disponível em:

93


O Juiz-Robot poderá não proferir uma decisão não

discriminatória, assente no princípio da igualdade, quer na sua

dimensão formal, quer na sua dimensão material, apesar dos

mecanismos que têm vindo a ser apontados na tentativa de resolver

a grande problemática das decisões autónomas inquinadas. Por

enquanto, não será possível compatibilizar este processo decisório,

através de algoritmos e de forma autónoma, entenda-se, com os

desígnios do Princípio Não Discriminação 117 e do Princípio do

Respeito pelos Direitos Fundamentais, previstos na Carta

Europeia de Ética sobre a utilização da Inteligência Artificial nos

Sistemas Judiciais e seu Ambiente 118 , tampouco com o Princípio da

Igualdade, previsto no artigo 7º da Declaração Universal dos

Direitos Humanos 119 , no preâmbulo da Carta dos Direitos

https://www.regeringen.se/49eb04/contentassets/59dff9749d5e4cfa8d51146dd026ff62/swedsoft

.pdf.

117 “[O]s intervenientes públicos ou privados devem garantir que os métodos não reproduzem ou

agravam essa discriminação e que não conduzem a análise ou utilizações determinísticas”. – Carta

Europeia de Ética sobre a utilização da Inteligência Artificial nos Sistemas Judiciais e seu Ambiente.

[Consultado em: 29/06/2022]. Disponível em: https://rm.coe.int/carta-etica-traduzida-paraportugues-revista/168093b7e0.

118 EUROPEAN COMMISSION FOR THE EFFICIENCY OF JUSTICE (CEPEJ) – European

Ethical Charter on the use of Artificial Intelligence in Judicial Systems and their Environment.

[Consultado em: 26/06/2022]. Disponível em: ES250132_PREMS 005419 GBR 2013 charte

ethique CEPEJ WEB A5.pdf (coe.int).

119 Declaração Universal dos Direitos Humanos. [Consultado em: 29/06/2022]. Disponível em:

https://dre.pt/dre/geral/legislacao-relevante/declaracao-universal-direitos-humanos.

94


Fundamentais da União Europeia 120 , e ainda, no ordenamento

jurídico português, no artigo 13.o da Constituição da República

Portuguesa.

3.3 Riscos para outros direitos fundamentais:

particularmente para o direito à ação e a um tribunal

imparcial (artigo 47.º da Carta de Direitos Fundamentais da

UE)

As decisões proferidas pelo Juiz-Robot confrontam-se

com outros problemas também eles ameaçadores de direitos

fundamentais, designadamente, o direito à ação e o direito a um

tribunal imparcial.

Outros dos principais problemas relacionados com a

tomada de decisão mediante o emprego de Inteligência Artificial

refere-se à opacidade do algoritmo, já que, atualmente, existem

algumas situações em que o algoritmo não é revelado, para que se

120 Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. [Consultado em: 29/06/2022]. Disponível

em:

https://eur-lex.europa.eu/legalcontent/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:12016P/TXT&from=FR.

95


conheçam os critérios utilizados na sua programação que o levaram

ao processo decisório 121 .

Apontam-se dois fatores para a ausência de transparência

neste âmbito. Primeiro, o facto de os sistemas inteligentes serem

desenvolvidos por entidades privadas que optam por protegerem

informações sobre os seus algoritmos com amparo na proteção da

propriedade intelectual. Como destaca Jenna Burrel “algorithmic

opacity is a largely intentional form of self-protection by

corporations’ intent on maintaining their trade secrets and

competitive advantage” 122 . Depois, deve-se à própria autonomia

dos sistemas inteligentes, impossibilitando “uma explicação

inteligível sobre o modo de processamento interno da informação

pelos algoritmos treinados com redes neurais artificiais

profundas” 123 . A tecnologia opaca é um desafio à transparência, à

121 ENGELMANN, Alana – “Uso do Algoritmo como Instrumento de Construção da Decisão

Judicial e a Necessidade de Surpervisão do Uso da Tecnologia no Processo de Tomada de Decisões”.

In Revista ANNEP de Direito Processual. Vol 2, No. 1, 2021, p. 8.

122 BURRELL, Jenna. “How the machine ‘thinks’: Understanding opacity in machine learning

algorithms. Big Data & Society”, 2016. [Consultado em: 26/06/2022]. Disponível em:

https://doi.org/10.1177/2053951715622512.

123 MEDEIROS, Natália, “USO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NO PROCESSO DE

TOMADA DE DECISÕES JURISDICIONAIS: Uma análise sob a perspectiva da teoria normativa

da comparticipação”, p. 60. [Consultado em: 26/06/22]. Disponível em:

http://www.biblioteca.pucminas.br/teses/Direito_MedeirosNRFV_1.pdf.

96


qual a Proposta apela 124 inúmeras vezes 125 . Não ficam por aqui os

constrangimentos da black box. No plano jusprocessual revela-se

uma ameaça para o direito à ação, no particular direito de

fundamentação (uma dimensão do primeiro). O direito à ação

encontra-se previsto no artigo 47º da Carta de Direitos

Fundamentais da União Europeia 126 , bem como o artigo 20º da

Constituição da República Portuguesa.

A inacessibilidade ao caminho percorrido pelo sistema de

IA para a obtenção da decisão implica a inobservância da respetiva

fundamentação, pois o software não fundamenta as suas decisões.

Para além de resultar violado o direito à fundamentação resulta

igualmente afetado o direito de recurso 127 , uma vez que sem o

conhecimento do iter cognoscitivo que serve de base a um

124 Considerandos 14, 38, 39, 43, 47, 69 e 70, Artigos 1/d e 13, e Título IV da Proposta.

125 RAPOSO, Vera Lúcia, “Draft Regulation on Artificial Intelligence: The devil is in the details”,

cit., p.16.

126 Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. [Consultado em: 29/06/2022]. Disponível

em:

https://eur-lex.europa.eu/legalcontent/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:12016P/TXT&from=FR.

127 CANOTILHO, Gomes e MOREIRA, Vital, “Constituição da República Portuguesa –

Anotada”, Vol. 1, 2014, p. 181.

97


determinado resultado decisório judicial não é possível recorrer do

ato jurisdicional.

O direito à ação, previsto no artigo 47º da Carta e no nosso

ordenamento jurídico, no artigo 20º da Constituição da República

Portuguesa, pressupõe a tutela efetiva de direitos e interesses

legalmente protegidos por uma decisão de mérito, em tempo

razoável. Tal poderá resultar negativamente afetado se a decisão

judicial fosse proferida por um Juiz-Robot, por diversas

vicissitudes que poderão ser observadas no momento decisório. A

par do até então referido coloca-se em discussão a imparcialidade

da decisão nestas circunstâncias.

O exposto supra, a propósito das decisões algorítmicas

enviesadas, relembra- nos que os dados que servem de base aos

resultados conformam-se com elementos subjetivos, sendo que

estes poderão apresentar-se sob a forma de opções normativas ou

doutrinárias 128 , predileções políticas, enfim, clivagens pessoais

suficientes para converterem um resultado numa decisão parcial.

128 “Os dados (inputs) que alimentam a inteligência artificial são frutos de interpretações humanas

e, portanto, a depender de sua qualidade (...) seria perfeitamente possível obter decisões por demais

subjetivas”, ROQUE, André e SANTOS, Luca, “Inteligência artificial na tomada de decisões

judiciais: três premissas básicas”, Revista Eletrônica de Direito Processual (uerj.br), p. 67.

98


4. Notas conclusivas

A celeridade processual não é imperativa quando estão em

causa direitos fundamentais e, na mira, o sacrifício de

discriminação. A Proposta não se afigura complacente com a

decisão judicial autómata, levada a cabo por sistemas inteligentes,

sem se observar qualquer intervenção humana. Não olvidamos o

papel importante e os benefícios que os sistemas inteligentes

assumem na atualidade, inclusive, no processo judicial. No entanto,

a decisão deverá, por enquanto, ser tomada pelo homem, o único

capaz de uma decisão justa. Afinal esta justiça deve ser humana e

sobretudo humanista.

A timidez e reticência que se vive em Portugal,

designadamente pelas palavras reiteradas de Anabela Pedroso,

secretária de Estado (“[s]erá um humano a decidir” 129 ), é prudente

e a mais acertada. A IA deve auxiliar o homem na tomada de

decisão, mas esta deverá caber exclusivamente ao homem. Caso

[Consultado em: 24/06/2022]. Disponível em: https://www.epublicacoes.uerj.br/index.php/redp/article/view/53537.

129 MANDIM, David - A Inteligência Artificial ao serviço da Justiça. Pode haver um juiz-robô?

[Consultado em: 29/06/2022]. Disponível em: https://www.dn.pt/pais/a-inteligencia-artificial-aoservico-da-justica-pode-haver-um-juiz-robo--11408704.html.

99


contrário tratar-se-ia de um sacrifício violador de pilares do Estado

de Direito Democrático.

Não obstante o auxílio ao longo do processo judicial de

ferramentas inteligentes, a decisão judicial de composição do litígio

não poderá ser deixada à mercê da automação.

Liliana Marcela Soares Valente

Estudante do 3.º ano da Licenciatura da Universidade do Minho

100


DA PROPOSTA DE DIRETIVA DO

PARLAMENTO EUROPEU E DO

CONSELHO RELATIVA AO DEVER DE

DILIGÊNCIA DAS EMPRESAS E À

RESPONSABILIDADE EMPRESARIAL À

PROPOSTA DE DIRETIVA DA

COMISSÃO EUROPEIA RELATIVA AO

DEVER DE DILIGÊNCIA DAS

EMPRESAS EM MATÉRIA DE

SUSTENTABILIDADE

Resumo:

A heterogeneidade das normas voluntárias, criadora de distorções

entre empresas, e o facto de dificilmente produzirem o impacto necessário em

matéria de proteção de direitos humanos, prevenção de danos ambientais e boa

governação empresarial tornam necessária a adoção de legislação que vincule os

Estados-Membros a adotar medidas. Neste sentido, o Parlamento Europeu e o

Conselho apresentaram à Comissão Europeia uma Proposta de Diretiva.

Atendendo às recomendações das duas instituições, a Comissão Europeia

avançou, em fevereiro deste ano, com a Proposta. Uma vez aprovada, as

101


empresas ficam obrigadas a identificar e, se necessário, prevenir, eliminar ou

atenuar impactos adversos nos direitos humanos e no ambiente. Ao mesmo

tempo, os Administradores ficam incumbidos de implementar e supervisionar a

aplicação do dever de diligência na estratégia empresarial. O presente artigo

apresenta e compara, ainda que superficialmente, ambas as Propostas.

b

Palavras-chave:

Empresa, Dever de Diligência, Direitos Humanos, Ambiente, Sustentabilidade,

Boa Governação, Responsabilidade Empresarial.

B

Sumário:

1. A Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa

ao Dever de Diligência das Empresas e à Responsabilidade

Empresarial (2020/2129(INL)):

1.1. Delimitação Subjetiva;

1.2. Delimitação Objetiva;

1.3. Responsabilidade das Empresas;

1.4. Papel dos Administradores;

2. A Proposta de Diretiva da Comissão Europeia relativa ao Dever de

Diligência das Empresas em matéria de Sustentabilidade que altera a

Diretiva (EU) 2019/1937

2.1. Delimitação Subjetiva;

102


2.2. Delimitação Objetiva;

2.3. Responsabilidade das Empresas;

2.4. Papel dos Administradores;

3. Conclusões;

4. Referências;

103


1. A Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do

Conselho relativa ao Dever de Diligência 130 das Empresas e

à Responsabilidade Empresarial (2020/2129(INL))

Em 2020, perante as conclusões do estudo sobre os

requisitos de diligência devida nas cadeias de abastecimento 131 , a

Comissão Europeia comprometeu-se a avançar com uma proposta

legislativa em 2021. No mesmo sentido, em abril de 2020, o

Comissário Europeu para a área da Justiça, Didier Reynders,

anunciou que a União Europeia (doravante UE) planeava

desenvolver uma proposta legislativa que impusesse deveres de

diligência (due diligence) em matéria de direitos humanos e ambiente.

Nesse estudo analisava-se o impacto de quatro opções de

intervenção regulamentar pela UE. Concluiu-se que, entre as

opções analisadas, os impactos da “opção quatro” seriam os mais

130 Deve entender-se por “dever de diligência” “… a obrigação que incumbe a uma empresa de

tomar todas as medidas proporcionadas e adequadas e de envidar todos os esforços ao seu alcance

para evitar efeitos nefastos nos direitos humanos, no ambiente e na boa governação nas suas cadeias

de valor e corrigir esses efeitos negativos sempre que estes ocorram”. Na prática, consiste em “…

identificar, avaliar, prevenir, mitigar, cessar, monitorizar, comunicar, prestar contas, resolver e

corrigir os efeitos negativos potenciais e/ou reais nos direitos humanos … o que inclui o contributo

para as alterações climáticas, e na boa governação decorrentes das suas próprias atividades e nas das

suas relações empresariais na cadeia de valor”.

131 Study on due diligence requirements through the supply chain: final report, encomendado pela Comissão

Europeia. Disponível em:https://data.europa.eu.

104


expressivos. Esta opção pressupõe a adoção de regulamentos que

imponham o dever diligência como um dever legal de cuidado.

Além disso, nota-se que a melhoria da situação sócio-económicoambiental

nos países que acolhem fornecedores de empresas da

UE pode ter um efeito positivo na prossecução dos Objetivos de

Desenvolvimento Sustentável (doravante ODS) 132 . Contudo,

mesmo quando o due diligence é obrigatório, é difícil controlar e

impor o seu cumprimento.

Depois das Nações Unidas estabelecerem a

responsabilidade empresarial em matéria de direitos humanos

através dos Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos

Humanos (doravante PONU 133 ), a UE tem vindo a posicionar-se

pela necessidade de tornar obrigatório o dever de diligência nesta

matéria, nas questões ambientais e de boa governança, reforçando

a tendência mundial voltada para o cumprimento dos critérios

132 Os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) foram aprovados por unanimidade

pelos (193) Estados-membros da ONU, reunidos em Assembleia-Geral.

133 Os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos (PONU ou UNGP’s),

aprovados em 2011, pelo Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas, propuseram aos

Estados-Membros a redação de leis que exigissem das empresas o respeito pelos direitos humanos;

que assegurassem que outras leis e políticas que regem a criação e funcionamento das empresas

comerciais não condicionassem o respeito pelos direitos humanos; fornecessem orientações eficazes

às empresas sobre como respeitar os direitos humanos; entre outros.

105


ESG 134 pelas empresas.

Desta feita, e perante indícios crescentes de violação dos

direitos humanos e de degradação ambiental, o Parlamento

Europeu aprovou 135 , em março de 2021, no âmbito do processo

legislativo de preparação da Diretiva, uma Resolução com

recomendações (de caráter não vinculativo) dirigidas à Comissão

Europeia, no sentido de a levar a apresentar uma proposta

legislativa.

A Proposta de Diretiva tem por objetivo “garantir que as

empresas (…) cumpram o seu dever de respeitar os direitos

humanos, o ambiente e a boa governação e não causem efeitos

negativos, potenciais ou reais, nos direitos humanos, no ambiente

e na boa governação, ou para eles contribuam, (…) e que previnam

e atenuem esses efeitos negativos” 136 .

Estas recomendações surtiram efeito junto da instituição

presidida por Ursula von der Leyen que, em fevereiro de 2022,

134 Environmental, Sustainability and Governance. São um conjunto de critérios de conduta (ambientais,

sociais, governança) que ajudam as empresas a implementar boas práticas nos seus negócios.

135 Tendo em conta o artigo 225.º do TFUE.

136 Cfr. artigo 1.º da Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho. Disponível em:

https://eur lex.europa.eu.

106


aprovou uma Proposta de Diretiva relativa ao dever de diligência

das empresas em matéria de sustentabilidade.

1.1. Delimitação Subjetiva

A Proposta de Diretiva vincula empresas sediadas na UE ou fora

dela. Concretamente:

o Grandes empresas regidas pelo Direito de um Estado-Membro

ou estabelecidas no território da União;

o Pequenas e médias empresas (doravante PME) cotadas em

bolsa e pequenas e médias empresas que operem em setores de

alto risco;

o Grandes empresas e PME cotadas em bolsa e PME que

operem em setores de alto risco, que sejam regidas pelo Direito

de um País Terceiro e não estejam estabelecidas no território

da União, sempre que operem no mercado interno.

1.2. Delimitação Objetiva

Em matéria de dever de diligência, as empresas devem,

nomeadamente:

o Integrar o dever de diligência na sua estratégia (em

107


conformidade com o artigo 4.º):

¨ as empresas têm de cumprir um dever de diligência

efetivo no que diz respeito aos efeitos negativos, reais

ou potenciais, nos direitos humanos, no ambiente e na

boa governação 137 , nas suas operações e relações

empresariais 138 .

o Identificar impactos adversos, potenciais ou reais, nos direitos

humanos, no ambiente e na boa governação suscetíveis de estar

presentes nas suas operações e relações empresariais (em

conformidade com o artigo 4.º):

¨ o as empresas devem empenhar esforços para

identificar e avaliar a gravidade e urgência dos efeitos

potenciais ou reais da sua atuação nos direitos

humanos, no ambiente ou na boa governação; a

137 Para efeitos da Proposta de Diretiva, deve entender-se:

− por “efeito negativo, potencial ou real, nos direitos humanos” qualquer efeito negativo, potencial

ou real, suscetível de prejudicar o pleno usufruto dos direitos humanos por pessoas ou grupos

de pessoas no que respeita aos direitos humanos, incluindo os direitos sociais, laborais e

sindicais;

− por “efeito negativo, potencial ou real, no ambiente” qualquer violação das normas ambientais

internacionalmente reconhecidas e das normas ambientais da União;

− por “efeito negativo, potencial ou real, na boa governação” qualquer efeito negativo, potencial ou

real na boa governação de um país, região ou território.

138 Por “relações empresariais” se compreenda as filiais e as relações comerciais de uma empresa ao

longo da sua cadeia de valor, incluindo fornecedores e subcontratantes, que estejam diretamente

ligadas às operações comerciais, aos produtos ou aos serviços da empresa.

108


natureza e o contexto das suas operações; bem como a

determinar se as suas operações e relações

empresariais causam alguns desses efeitos negativos,

para eles contribuem ou a eles estão diretamente

ligados.

¨ Uma empresa deve concluir que não detetou efeitos

negativos se da identificação dos seus efeitos e da

análise da avaliação dos riscos determinar que as suas

filiais, cadeias de valor, relações empresariais,

subcontratantes e fornecedores diretos exercem o

dever de diligência.

o Adotar e indicar todas as políticas e medidas proporcionadas e

adequadas com vista a fazer cessar, prevenir ou atenuar os

efeitos negativos, potenciais ou reais, nos direitos humanos,

no ambiente ou na boa governação (em conformidade com o

artigo 4.º);

o Definir prioridades, caso não estejam em condições de lidar,

em simultâneo, com todos os efeitos negativos, potenciais ou

reais (em conformidade com o artigo 4.º):

¨ as empresas devem considerar o nível de gravidade,

probabilidade e urgência dos diferentes efeitos

109


negativos, potenciais ou reais, nos direitos humanos,

no ambiente ou na boa governação; a natureza e o

contexto das suas operações, nomeadamente, do

ponto de vista geográfico; o âmbito dos riscos, a sua

escala e o seu eventual caráter irremediável; e, se

necessário, utilizar uma política de definição de

prioridades para a sua gestão.

o Publicar e comunicar a estratégia adotada em matéria de dever

de diligência (em conformidade com o artigo 6.º):

¨ as empresas devem publicar a estratégia (atualizada)

por si adotada em matéria de dever de diligência, ou a

declaração que inclui a avaliação dos riscos e

disponibilizá-la, gratuitamente, em especial, nos seus

websites. De igual modo, devem comunicar a sua

estratégia aos representantes dos seus trabalhadores,

aos sindicatos, às suas relações empresariais, bem

como, a pedido, às autoridades nacionais

competentes 139 .

139 Cada Estado-Membro deve designar uma ou mais autoridades nacionais competentes

responsáveis pela supervisão da aplicação da Diretiva tal como transposta para o Direito nacional.

e pela difusão das boas práticas em matéria de dever de diligência.

110


o Divulgar informações não financeiras e informações sobre a

diversidade (em conformidade com o artigo 7.º):

¨ a Proposta não prejudica as obrigações impostas a

certas empresas pela Diretiva 2013/34/UE 140 , relativas

à inclusão no seu relatório de gestão de uma

demonstração não financeira que inclua uma descrição

das políticas da empresa em relação, no mínimo, às

questões ambientais, sociais e relativas aos

trabalhadores, ao respeito pelos direitos humanos, ao

combate à corrupção e às tentativas de suborno e aos

processos relativos ao dever de diligência aplicados.

o Avaliar e rever a sua estratégia em matéria de dever de

diligência (em conformidade com o artigo 8.º):

¨ as empresas devem controlar a eficácia da sua estratégia

e a aplicação das medidas por si adotadas em matéria

do dever de diligência pelo menos uma vez por ano e,

quando dessa avaliação resultar a necessidade de

140 Diretiva 2013/34/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, relativa

às demonstrações financeiras anuais, às demonstrações financeiras consolidadas e aos relatórios

conexos de certas formas de empresas. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu.

111


revisão, devem revê-la em conformidade 141 .

1.3. Responsabilidade das Empresas

Sempre que uma empresa conclua que está diretamente

relacionada com um efeito adverso, real ou potencial, nos direitos

humanos, ambiente ou boa governação deve cooperar no

correspondente processo de reparação. Além das garantias de que

os danos não se repetirão, a reparação pode assumir a forma de

uma compensação financeira ou não financeira, reintegração,

desculpas públicas, restituição, reabilitação ou contribuição para

uma investigação.

Note-se que o facto de uma empresa propor a reparação

não impede que os lesados intentem ações cíveis nos termos do

Direito nacional. Em especial, a existência de um processo

pendente num mecanismo de reclamação não impede o acesso a

um tribunal. As decisões proferidas pelo mecanismo de reclamação

141 A avaliação e a revisão da estratégia em matéria de dever de diligência devem implicar a discussão

com as partes interessadas.

São “partes interessadas” as pessoas e os grupos de pessoas cujos direitos ou interesses possam ser

afetados pelos efeitos negativos, potenciais ou reais, nos direitos humanos, no ambiente e na boa

governação provocados por uma empresa ou pelas suas relações empresariais, bem como as

organizações cuja finalidade estatutária seja a defesa dos direitos humanos, incluindo os direitos

sociais e laborais, do ambiente e da boa governação (os trabalhadores e os seus representantes, as

comunidades locais, os sindicatos, as organizações da sociedade civil e os acionistas das empresas).

112


devem ser consideradas em tribunal, apesar de não vinculativas.

Resulta do artigo 19.º que o facto de uma empresa respeitar

as suas obrigações em matéria de dever de diligência não a isenta

da eventual responsabilidade em que incorra nos termos do

Direito nacional, com vista à reparação de danos decorrentes de

efeitos negativos, potenciais ou reais, nos direitos humanos,

ambiente ou boa governação que tenham causado ou para os quais

tenham contribuído, por atos ou omissões. Concretamente, as

autoridades nacionais poderão proceder à aplicação de coimas, à

exclusão temporária ou indefinida das empresas dos contratos

públicos, dos auxílios estatais, dos regimes de apoio público,

recorrer à apreensão de mercadorias, ou à aplicação de outras

sanções administrativas.

Assim, os Estados-Membros devem utilizar os regimes de

responsabilidade existentes e, se necessário, introduzir legislação

adicional para garantir que as empresas são responsabilizadas por

danos resultantes de efeitos negativos que elas ou entidades que

controlam tenham causado ou para os quais tenham contribuído.

Contudo, a empresa pode sempre provar que adotou todas as

precauções necessárias para evitar a produção de danos ou que os

danos teriam ocorrido mesmo que tivessem sido adotadas todas as

precauções necessárias.

113


1.4. Papel dos Administradores

Para que o dever de diligência seja integrado na cultura de

uma empresa, os membros dos órgãos de administração, de

direção e de supervisão deverão ser responsáveis pela adoção e

execução das suas estratégias de sustentabilidade e do dever de

diligência. Não obstante, o Parlamento Europeu realça, em

conformidade com os PONU, que o facto de uma empresa aplicar

o dever de diligência não deve automaticamente exonerá-la da

responsabilidade pelos danos que causar ou para os quais

contribuía.

2. A Proposta de Diretiva da Comissão Europeia relativa ao

Dever de Diligência das Empresas em matéria de

Sustentabilidade que altera a Diretiva (EU) 2019/1937 142

Na sequência da Resolução aprovada pelo Parlamento

Europeu, a Comissão Europeia divulgou, a 23 de fevereiro de

2022, a Proposta de Diretiva relativa ao dever de diligência das

142 Diretiva (UE) 2019/1937 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2019,

relativa à proteção das pessoas que denunciam violações ao Direito da União. Disponível em:

https://eur-lex.europa.eu.

114


empresas em matéria de sustentabilidade.

A mesma obriga as empresas a identificar e, se necessário,

prevenir, eliminar ou atenuar os impactos adversos das suas

atividades nos direitos humanos e no ambiente. Ao mesmo tempo,

obriga os seus Administradores a implementar o dever de

diligência na estratégia empresarial e a supervisionar a aplicação

dos processos internos de devida diligência.

A Proposta de Diretiva da Comissão Europeia está sujeita

ao processo legislativo ordinário descrito no artigo 294.º do TFUE,

por remissão do artigo 289.º do TFUE. Caso seja aprovada

conjuntamente pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho, o ato é

adotado.

Uma vez adotada, os Estados-Membros disporão de um

prazo de transposição de dois anos, período em que estão

obrigados a adotar as disposições legislativas, regulamentares e

administrativas adequadas à realização dos fins fixados na Diretiva

(em conformidade com o artigo 288.º do TFUE).

115


2.1. Delimitação Subjetiva

A Proposta da Comissão Europeia dirige-se a:

o Empresas sediadas na UE com dimensão e poder económico

substancial:

¨ empresas que empreguem mais de 500 trabalhadores,

em média, e que tenham tido, no ano financeiro

anterior, um volume de negócios líquido a nível

mundial superior a 150 milhões de euros;

¨ empresas que, por não atingirem esses valores,

cumulativamente, tenham mais de 250 empregados e

um volume de negócios líquido a nível mundial igual

ou superior a 40 milhões de euros no ano financeiro

anterior, desde que pelo menos 50% desse volume

tenha sido gerado num ou mais setores definidos

como setores de elevado impacto 143 ;

143 Segundo o artigo 2.º da Proposta de Diretiva da Comissão Europeia, são setores de elevado

impacto os seguintes:

− fabrico de têxteis, couro e produtos afins (incluindo calçado), e o comércio por grosso de

têxteis, vestuário e calçado;

− agricultura, silvicultura, pesca (incluindo aquicultura), o fabrico de produtos alimentares, e

o comércio por grosso de matérias-primas agrícolas, animais vivos, madeira, alimentos e

116


o Empresas sediadas num País Terceiro que atuem num Estado-

Membro da UE e que:

¨ tenham gerado um volume de negócios líquido de mais

de 150 milhões de euros na União no ano financeiro

anterior; ou

¨ tenham gerado um volume de negócios líquido igual ou

superior a 40 milhões de euros, mas não superior a 150

milhões, na União, no ano financeiro anterior, desde

que pelo menos 50% desse volume tenha sido gerado

num ou mais setores definidos como setores de

elevado impacto.

A Proposta de Diretiva aplica-se, às operações da própria

empresa e das suas filiais, bem como às das empresas com quem

mantenham relações comerciais.

bebidas; − extração de recursos minerais, independentemente do local onde sejam extraídos

(incluindo petróleo bruto, gás natural, carvão, lignite, metais e minérios metálicos, bem como

todos os outros minerais não metálicos e produtos das pedreiras), o fabrico de produtos

metálicos de base, outros produtos minerais não metálicos e produtos metálicos fabricados

(exceto maquinaria e equipamento) e o comércio por grosso de recursos minerais, minerais

básicos e produtos intermédios (incluindo metais e minérios metálicos, materiais de

construção, combustíveis, produtos químicos, entre outros produtos).

Portanto, os que correspondem às orientações setoriais específicas da OCDE em matéria de due

diligence. Consultados em: Sectors (oecd.org).

117


As PME, embora excluídas, podem, enquanto empresas

contratadas ou subcontratadas das (grandes) empresas às quais a

Diretiva se dirige, ser afetadas pelas suas disposições. Assim, a

Proposta de Diretiva prevê que os Estados-Membros criem e

operem plataformas específicas onde as PME possam encontrar

orientação, apoio e informações adicionais sobre a forma mais

eficaz de cumprirem as suas obrigações de due diligence. De igual

modo, os Estados-Membros devem apoiar financeiramente as

PME no cumprimento dessas medidas, e tal apoio deve ser

alargado aos operadores sediados em Países Terceiros 144 .

2.2. Delimitação Objetiva

Na sua estratégia de due diligence, as empresas devem:

o Integrar o dever de diligência na sua estratégia (em

conformidade com o artigo 5.º):

¨ as empresas devem, anualmente, atualizar as suas

políticas internas relativas ao dever de diligência, de

forma a que contenham informação atualizada sobre:

144 Ibid., artigo 14.º.

118


a abordagem que a empresa pretende seguir, a curto e

longo prazo; o código de conduta que inclua as regras

e princípios que devem orientar o comportamento dos

seus trabalhadores e subsidiárias; e os processos

implementados com o objetivo de cumprir o dever de

diligência, incluindo as medidas a tomar para garantir o

cumprimento do código de conduta, bem como as

medidas previstas para garantir a aplicação do mesmo

a todas as empresas com quem mantenham relações

comerciais.

o Identificar impactos adversos, reais ou potenciais, nos

direitos humanos e no ambiente (em conformidade com o

artigo 6.º):

¨ as empresas devem adotar medidas adequadas à

identificação de impactos adversos, reais ou potenciais,

decorrentes das suas operações ou da atuação das suas

filiais e das empresas com as quais mantenham relações

comerciais.

o Prevenir ou mitigar potenciais impactos adversos, reais ou

potenciais (em conformidade com o artigo 7.º):

¨ as empresas devem adotar medidas adequadas a

119


prevenir ou, quando tal não seja possível, atenuar

efeitos adversos nos direitos humanos e no ambiente.

o Fazer cessar ou, na impossibilidade, minimizar os impactos

reais negativos (em conformidade com o artigo 8.º):

¨ em relação aos impactos negativos que não possam

ser prevenidos ou adequadamente atenuados, a

empresa é obrigada a abster-se de estabelecer novas

relações ou de alargar as relações comerciais

existentes que justifiquem esse impacto negativo; a,

sempre que a lei o permita, suspender

temporariamente as relações comerciais com o

parceiro em questão; e a cessar essas relações

comerciais, se o impacto adverso for grave.

o Estabelecer e manter um procedimento de reclamação (em

conformidade com o artigo 9.º):

¨ as empresas devem prever a possibilidade de

pessoas e organizações 145 lhes dirigirem queixas,

145 Devem poder apresentar queixa (artigo 9.º/2): pessoas afetadas ou que tenham motivos

razoáveis para crer que possam ser afetados por um impacto adverso; sindicatos e outros

representantes de indivíduos que trabalhem na cadeia de valor em questão; e organizações da

sociedade civil ativas nas áreas relacionadas com a cadeia de valor em causa.

120


sempre que tenham preocupações legítimas

relativamente a impactos negativos para os direitos

humanos e ambiente, em relação às suas operações

ou às operações das suas filiais e das suas cadeias

de valor.

§ Aos queixosos deve ser reconhecido o

direito a solicitar o acompanhamento da

queixa e de todo o processo e a reunir-se

com os representantes da empresa para

discutir os impactos adversos graves,

potenciais ou reais, que são o objeto da

queixa.

§ Não obstante, os mesmos devem ter a

possibilidade de intentar ações judiciais por

danos, caso considerem que os mesmos

poderiam ter sido evitados através da

adoção de medidas de diligência adequadas.

o Controlar a eficácia da sua estratégia e das medidas

adotadas em matéria do dever de diligência (em

conformidade com o artigo 10.º):

¨ as empresas devem realizar avaliações periódicas

121


das suas próprias operações e medidas, das suas

filiais e, quando relacionadas com as cadeias de

valor da empresa, das suas relações comerciais, de

modo a controlar a eficácia da identificação,

prevenção, mitigação, cessação e minimização da

extensão de impactos adversos nos direitos

humanos e no ambiente.

§ Tais avaliações devem basear-se em

indicadores qualitativos e quantitativos e

devem ser efetuadas, pelo menos, uma vez

por ano, e sempre que existam motivos

razoáveis para crer que possam surgir

riscos significativos da ocorrência desses

impactos. A política de diligência devida

deve ser atualizada de acordo com o

resultado dessas avaliações.

o Reportar publicamente sobre o dever de diligência (em

conformidade com o artigo 11.º):

¨ as empresas que não estejam sujeitas à obrigação de

declaração nos termos artigos 19º-A e 29º-A da

Diretiva 2013/34/EU, devem reportar sobre as

122


matérias abrangidas pela Proposta, através de

publicação de uma declaração anual no seu website.

o Combater as alterações climáticas (em conformidade com

o artigo 15.º): as grandes empresas devem dispor de um

plano que garanta que a sua estratégia empresarial é

compatível com a limitação do aquecimento global a 1,5

°C, em conformidade com o Acordo de Paris.

2.3. Responsabilidade das Empresas

Para os Estados-Membros resulta o dever de assegurar que

as empresas são responsabilizadas por danos decorrentes do

incumprimento das obrigações previstas nos artigos 7.º e 8.º, se

desse incumprimento resultar um dano que deveria ter sido evitado

ou, na impossibilidade, identificado, mitigado, cessado ou

minimizado 146 .

Na avaliação da existência e extensão da responsabilidade

devem ser considerados o empenho da empresa em cumprir

qualquer ação de reparação, quaisquer investimentos e qualquer

146

Ibid., artigo 22.º.

123


apoio específico prestado, bem como qualquer colaboração com

outras entidades para fazer face aos impactos adversos nas suas

cadeias de valor.

Apesar disto, existem casos previstos na lei nos quais a

empresa não será responsabilizada: a Diretiva prevê que os

Estados-Membros devem assegurar que, sempre que uma empresa

tenha adotado as medidas previstas nos artigos 7.º/2, al. b) e 4 e

artigo 8.º/3, al. c) e 5, não será responsável pelos danos causados

por um parceiro indireto com o qual tenha uma relação comercial,

a menos que não fosse razoável, nas circunstâncias do caso,

esperar que as medidas adotadas fossem adequadas para prevenir,

mitigar, pôr termo ou minimizar a extensão do impacto negativo.

A responsabilidade civil por danos de uma empresa

enquadrada nesta exceção não prejudica a responsabilidade civil

das suas filiais ou de quaisquer parceiros comerciais, diretos ou

indiretos, na cadeia de valor. De igual modo, não sai prejudicada a

aplicação de regras nacionais e/ou outras regras da UE que

prevejam situações não previstas pela Diretiva ou que prevejam

uma responsabilidade mais rigorosa.

124


2.4. Papel dos Administradores

A Proposta prevê, nos seus artigos 25.º e 26.º, a

intervenção dos Administradores das empresas, por forma a

garantir o cumprimento do dever de diligência. Os mesmos ficam

obrigados a, nomeadamente, implementar e supervisionar a

aplicação do dever de diligência e a integrá-lo na estratégia da

empresa.

Com efeito, no cumprimento do seu dever de agir no

melhor interesse da empresa, os Administradores devem

considerar as consequências que as suas decisões possam ter em

matéria de sustentabilidade, incluindo, quando aplicável, direitos

humanos, alterações climáticas e consequências ambientais, a

curto, médio e longo prazo.

Também, a remuneração variável associada ao contributo

dos Administradores para a estratégia de diligência da empresa,

bem como para os interesses e a sustentabilidade a longo prazo,

deve considerar o cumprimento das obrigações do plano

empresarial relativas às alterações climáticas.

125


3. Conclusões:

Ainda que mais tarde do que o previsto, a Proposta da

Comissão Europeia é resultado de um debate significativo que veio

alterar a Proposta do Parlamento Europeu e do Conselho em

diversos aspetos. Foquemo-nos no âmbito subjetivo e objetivo das

Propostas, na responsabilidade empresarial e no papel dos

Administradores.

Subjetivamente, talqualmente as recomendações iniciais, a

Proposta da Comissão Europeia dirige-se a empresas sediadas na

UE e em Países Terceiros 147 . No entanto, exclui as PME

(consideradas pela Proposta inicial, se cotadas em bolsa ou se

operassem em setores de elevado impacto). Por isto, já algumas

vozes vieram defender que a legislação vinculasse todas as

empresas e não apenas as grandes empresas.

Quanto ao âmbito objetivo 148 , a Comissão Europeia adota

uma abordagem mais restrita do que o Parlamento Europeu e o

Conselho: inclui os direitos humanos e o ambiente, mas não a "boa

governação”, apesar das numerosas ligações entre corrupção e

147 Cfr. artigo 2.º da Proposta de Diretiva da Comissão Europeia.

148 Ibid., artigos 5.º a 11.º.

126


direitos humanos. Esta ausência talvez se deva à confiança de que

se tornaria assim mais fácil para as empresas cumprir os requisitos

essenciais da Diretiva.

Quanto aos direitos humanos, não é claro quais os direitos

efetivamente abrangidos; e quanto ao ambiente, a Proposta da

Comissão Europeia engloba disposições refletidas nas principais

Convenções internacionais, mas, estranhamente, não inclui nem as

alterações climáticas nem o Acordo de Paris (não obstante o artigo

15.º).

Surpreendentemente, a Comissão Europeia aumentou as

obrigações dos Administradores, impondo como parte do seu

"dever de cuidado" de agir no melhor interesse da empresa, que

os Conselhos de Administração das grandes empresas sediadas na

UE tomem em consideração os direitos humanos, as alterações

climáticas e o impacto ambiental das suas decisões, a curto, médio

e longo prazo 149 .

Na essência, esta Proposta veio redefinir as

responsabilidades dos Administradores, incluindo, além dos

resultados financeiros, questões ambientais e de direitos humanos,

esperando que os membros do Conselho de Administração tomem

149 Ibid., artigos 25.º e 26.º.

127


medidas ativas no sentido de avaliar, abordar e relatar os riscos e

impactos da atividade empresarial sobre os direitos humanos e

ambiente de forma precisa e responsável.

Finalmente, e no sentido das recomendações que lhe foram

dirigidas, a Comissão Europeia contemplou sanções a aplicar às

empresas em caso de incumprimento do dever de diligência 150 .

Concretamente, os Estados-Membros devem assegurar que as

empresas possam ser responsabilizadas pelos danos que elas, as

suas filiais e/ou os seus parceiros comerciais causem ou para os

quais contribuam (não obstante a consagração de exceções 151 ).

Aqui chegados, resta esperar pela aprovação da Proposta

pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho. Uma vez adotada, os

Estados da UE disporão de um prazo de dois anos para adotar as

disposições legislativas, regulamentares e administrativas

adequadas à realização dos fins fixados na Diretiva (cfr. artigo

288.º do TFUE).

Depois de introduzidas na legislação nacional dos Estados-

Membros, o cumprimento destas obrigações será supervisionado

por uma autoridade administrativa nacional responsável, com

150 Ibid., artigo 20.º.

151 Vide páginas 73 e 74.

128


legitimidade para atuar sempre que existam preocupações

fundamentadas de incumprimento 152 , que podem ser denunciadas

por qualquer pessoa singular ou entidade 153 . Neste sentido, os

Estados-Membros podem conduzir investigações e, em caso de

infração, a empresa em causa pode ser objeto de coimas e de

responsabilidade civil 154 .

Neste sentido, a Comissão Europeia prevê a constituição

de uma rede europeia de autoridades (the European Network of

Supervisory Authorities), que terá como missão facilitar a cooperação

entre as várias autoridades nacionais e a coordenação de práticas

regulamentares, investigativas, sancionatórias e de supervisão.

152 Existirão razões fundamentadas quando existam motivos para acreditar, com base em factos

objetivos, que uma empresa não está a cumprir a legislação nacional que transpõe a Diretiva. 25

153 Ibid., artigos 17.º a 19.º.

154

Ibid., artigo 22.º.

129


4. Referências:

ABREU ADVOGADOS – “O dever de diligência das empresas em matéria de

sustentabilidade e o papel dos administradores”. [Consultado em: 24 de março

de 2022]. Disponível em: https://abreuadvogados.com.

BRITISH INSTITUTE OF INTERNATIONAL AND COMPARATIVE

LAW, CIVIC CONSULTING, DIREÇÃO-GERAL DA JUSTIÇA E DOS

CONSUMIDORES (COMISSÃO EUROPEIA), LSE – “Study on Due Diligence

Requirements through the Supply Chain: Final Report”. In Publicações da União

Europeia. Disponível em: https://data.europa.eu. 2020. Páginas 35-38 e 509-

569.

DUARTE, Ana – “Proposta de Diretiva relativa ao Dever de Diligência das

Empresas e a Responsabilidade Empresarial”. [Consultado em: 24 de março de

2022]. Disponível em: Proposta de Diretiva.

FERREIRA, Bruno – “Dever de diligência em matéria de sustentabilidade: aqui

vamosnós!”. [Consultado em 24 de março de 2022]. Disponível em:

https://www.plmj.com/pt/conhecimento/notas-informativas.

GLOBAL COMPACT NETWORK PORTUGAL (GCNG). “A Agenda 2030

para o Desenvolvimento Sustentável”. [Consultado em 24 de março de 2022].

Disponível em: Agenda 2030 - Global Compact.

JONATHAN C. DRIMMER; NICOLA BONUCCI; TARA K. GIUNTA;

HARRY DENLEGH-MAXWELL – “The Long Awaited Draft Directive on

Corporate Sustainability Due Diligence”. [Consultado em: 30 de março de 2022].

Disponível em: Draft Directive on Corporate Sustainability Due Diligence.

130


ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND

DEVELOPMENT (OECD) – “OECD Guidelines for Multinational Enterprises”.

[Consultado em: 30 de março de 2022]. Disponível em: Sectors - OECD.

UNITED NATIONS HUMAN RIGHTS OFFICE OF THE HIGHER

COMISSION. Special Representative of the Secretary-General – “Guiding

Principles on Business and Human Rights: Implementing the United Nations ‘Protect,

Respect and Remedy’ Framework"). In Concelho dos Direitos Humanos das Nações

Unidas (Doc. A/HRC/17/31). Disponível em: https://www.ohchr.org. 2011.

Páginas 1-35.

Gabriela Marques Duarte

Estudante do 4.º ano da Licenciatura em Direito na Universidade de Coimbra

131


DESAFIOS DA PROTEÇÃO DE DADOS

EM TELESSAÚDE

Resumo:

A pandemia por SARS-COV-2 levou à massificação das tecnologias de

informação e comunicação (doravante TIC), como a telessaúde, facilitando o

acesso a cuidados de saúde numa altura de restrições sociais e confinamentos,

mas também permitindo um rápido acesso aos dados de saúde e ao tratamento

dos mesmos.

No entanto, sendo a telessaúde uma realidade incontornável, esta contém alguns

constrangimentos, por um lado, a discriminação de pessoas infoexcluídas, e por

outro, o grande desafio da segurança dos dados armazenados e da proteção dos

mesmos.

O Regulamento Geral de Proteção de Dados (doravante RGPD), veio

estabelecer as regras relativas à proteção dos dados pessoais das pessoas

singulares e à livre circulação dos mesmos, considerando esta proteção como

um direito fundamental.

Neste artigo iremos analisar os desafios legais da proteção de dados no acesso

aos serviços de telessaúde.

B

132


b

Palavras-chave:

Dados em saúde; Proteção de dados; Telessaúde; Regulamento Geral

de Proteção de Dados.

Sumário:

1. Introdução;

2. Telessaúde;

3. Proteção de Dados Pessoais: enquadramento legal e jurisprudência:

3.1. O Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados

3.2. Análise Jurisprudencial;

4. Reflexões Conclusivas;

133


1. Introdução

Nos últimos anos o setor da saúde foi dos que sofreu

maiores e mais significativas transformações, a complexidade da

área, a dimensão do mercado, o elevado número de stakeholders,

a mudança de paradigmas, assim como o envelhecimento das

populações e o aumento das doenças crónicas, colocaram uma

enorme pressão nos sistemas. Com o foco na centralidade no

cidadão tem sido necessário adaptar e responder, de forma eficaz

e rápida, às suas necessidades e prioridades.

Numa era cada vez mais tecnológica, com vários avanços

digitais e com o surgimento da pandemia por SARS-COV-2 em

2020, a utilização da telessaúde foi indispensável, não só para

tornar o acesso a cuidados de saúde mais amplo numa altura de

restrições sociais e confinamentos, mas também para permitir um

rápido acesso aos dados de saúde e ao tratamento dos mesmos.

No entanto, existem constrangimentos no que à saúde à

distância diz respeito, por um lado, a discriminação de pessoas

infoexcluídas, que podem não possuir os equipamentos

necessários ou o know-how para aceder às novas tecnologias e, por

outro, o grande desafio da segurança dos dados armazenados e da

proteção dos mesmos, sendo este o tema que nos propomos

analisar.

134


A discussão e aplicação da telessaúde tornou-se, assim,

uma questão relevante devido à extrema importância dos dados em

saúde, à fácil acessibilidade proporcionada e à necessidade de

proteção dos mesmos, que determinará a confiança dos pacientes

nos serviços digitais.

Neste artigo tentaremos abordar os principais desafios da

proteção de dados em telessaúde, com conhecimento que a saúde

à distância é uma realidade incontornável, cada vez mais presente

na nossa sociedade e incrementada pelo surgimento da pandemia.

As várias vantagens dos cuidados à distância podem ser

prejudicadas pelas adversidades que lhe estão associadas, não só na

forma de prestação dos cuidados propriamente ditos, como

também no aumento das responsabilidades dos profissionais de

saúde.

2. Telessaúde

A Lei de Bases da Saúde pressupõe que o Serviço Nacional

de Saúde (doravante SNS) garanta a prestação de cuidados de

saúde a todas as pessoas, em condições de dignidade

135


e de igualdade. Para que seja assegurada a realização do direito à

proteção da saúde, o Estado deverá proporcionar o acesso de

todos os cidadãos, independentemente da sua condição

económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de

reabilitação, pelo que a universalidade pressupõe que todas as

pessoas, estejam incluídas nas políticas de promoção e proteção da

saúde 155 .

A Pandemia introduziu-nos uma nova realidade, e se até

essa altura já existia uma elevada aposta no conceito de telessaúde,

tanto no setor público, como no privado, a partir de 2020

consolidou-se como meio de prestação de cuidados de saúde. A

telessaúde representa o conjunto dos serviços relacionados com a

área da saúde providenciados de forma remota, com recurso a

telecomunicações.

A população portuguesa encontra-se cada vez mais

envelhecida, mas também está mais informada 156 . Contudo,

compreende-se que determinadas faixas etárias apresentem

155 Entidade Reguladora da Saúde, “Direitos e Deveres dos Utentes dos Serviços de Saúde”, 2021.

[Consultado em 19/12/2021]. Disponível in:

https://www.ers.pt/media/sfbd4x2h/publica%C3%A7%C3%A3o-ers_direitos-e-deveres.pdf.

156 MARTINS, Henrique, “Plano Estratégico Nacional para a Telessaúde - 2019-2022”, Centro

Nacional de TeleSaúde, 2019, p. 51. [Consultado em 19/12/2021]. Disponível in:

https://www.spms.min-saude.pt/wp content/uploads/2019/11/PENTS_portugu%C3%AAs.pdf

136


limitações no uso das TIC, dependendo do auxílio de terceiros para

o fazerem de forma competente.

O exercício da medicina tem-se modificado, resultado de

um mundo mais digital e tecnológico, onde a distância física não

constitui um obstáculo à comunicação 157 . Além da transposição de

barreiras geográficas, a telessaúde promove a partilha de

informação, um acompanhamento continuado, maior articulação

de cuidados, diagnósticos mais céleres e tratamentos numa fase

inicial da doença. Existem novos modelos de prestação de

cuidados de saúde assentes neste conceito, como teleconsultas,

teletriagem, telemonitorização, telediagnóstico, telerrastreio e

telerreabilitação, entre outros.

Os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, EPE

(doravante SPMS) através do Centro Nacional de Telessaúde,

apresentaram o primeiro documento estratégico na área da

telessaúde para o SNS – o Plano Estratégico Nacional para a

Telessaúde (doravante PENTS), para o período de 2019-2022.

Este plano define a plena integração da telessaúde no dia-a-dia dos

cuidados de saúde e introduz novos conceitos, como a eSaúde e a

telemedicina. A eSaúde consiste na utilização das TIC, com o

157 DUARTE, Andreia, Telemedicina: Os Novos Desafios à Responsabilidade Civil Médica - A emergência de

uma nova forma de prestar consentimento (Dissertação de Mestrado), Universidade do Porto, 2018, pp. 3,

21-22. Disponível in: site

137


intuito de melhoria da promoção, educação e gestão de saúde,

assim como todo o ciclo de saúde. A telemedicina significa a

prestação de cuidados de saúde realizados à distância por médicos,

através do uso das TIC para a prestação de cuidados, para a

organização dos serviços e para a formação de profissionais de

saúde e cidadãos 158 . O PENTS procura garantir a

interoperabilidade entre os diferentes sistemas de informação, a

segurança dos dados de saúde e dotação do SNS de infraestruturas

e sistemas mais centrados no cidadão.

Simultaneamente, é necessário assegurar a qualidade dos

aparelhos e meios utilizados e a qualificação do pessoal

envolvido 159 .

Destacam-se os seguintes sistemas de informação

elaborados pelos SPMS 160 :

• SClínico - informatização dos registos clínicos nos

cuidados de saúde primários e hospitalares, contribui para

uniformização dos mesmos, possibilita a partilha dos dados entre

158 MARTINS, Henrique, op. cit., pp. 24-25.

159 DUARTE, Andreia, op. cit., pp. 21-22.

160 MARTINS, Henrique, op. cit., pp. 24-25.

138


profissionais de saúde de várias áreas, facilitando a atuação

articulada.

• Plataforma de Dados de Saúde Live (PDS Live) -

realização de teleconsultas em tempo real, recorrendo ao vídeo e

partilha de informação, como resultados de um exame ou imagens,

num episódio de prestação.

• Registo de Saúde Eletrónico (RSE) - agregação de

contactos do cidadão com o sistema de saúde, conduzindo a um

processo clínico único.

• Área do Cidadão - interface de serviços do SNS,

instrumento importante para que o cidadão realize a autogestão da

sua saúde. Permite a consulta de dados clínicos e de resultados de

exames, marcação de consultas, renovação de medicação crónica,

acesso ao boletim de vacinas digital, consulta do tempo de espera

para cirurgia, entre outros.

• Registo de Saúde Eletrónica-Referenciação (RSE-REF) -

sistema eletrónico de referenciação entre prestadores do SNS,

suporta a teleconsulta em diferido.

139


• Prescrição Eletrónica Médica (PEM) - funcionalidade

receita sem papel, permite que o cidadão receba e aceda à sua

receita à distância.

• Projeto Exames sem Papel - desmaterialização dos

processos de requisição, efetivação, faturação e integração de

resultados de Meios Complementares de Diagnóstico e

Terapêutica, com integração dos seus resultados no RSE.

• App MySNS - acesso rápido ao SNS24, informações e

contactos relevantes, notícias e permite ao cidadão avaliar o SNS

de acordo com a sua satisfação.

• App MySNS carteira - transposição da informação do

RSE para a versão móvel.

• Trace COVID-19 - ferramenta de acompanhamento

COVID-19, permite registo de informação sobre os casos, rastreio

e gestão de contactos, acompanhamento clínico e monitorização

de pacientes em vigilância ativa e passiva 161 .

161 Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, “Trace COVID-19: Manual de utilizador”, 2020,

[consultado em 05-01-2022]. Disponível in: http://www.arscentro.min-saude.pt/wp

content/uploads/sites/6/2020/05/TraceCOVID-deck-V1.pdf. pp.3-4

140


Ao expor e analisar apenas alguns dos sistemas e

plataformas inerentes ao Ministério da Saúde, sem abordar os

sistemas usados por entidades privadas, compreende-se o volume

de informação de cariz sensível que está disponível a vários

utilizadores digitalmente. Observamos que são inequívocas as

vantagens da telessaúde na maior acessibilidade e proximidade a

cuidados de saúde, na integração de respostas, na capacitação do

cidadão e cuidador, porém é importante questionar de que forma

estão a ser salvaguardados os pressupostos da proteção geral de

dados, quando entramos no campo do digital e das bases de dados

massivas.

De acordo com os SPMS, em alguns sistemas de informação

utilizados no SNS os utilizadores estão devidamente identificados,

através das suas contas profissionais Office365 ® e login próprio,

podendo obter-se o conhecimento de quem acede às informações,

em que momento e que alterações executa 162 .

No entanto, observando as teleconsultas realizadas por

telefone, que correspondem à maioria das efetuadas, surgem

dúvidas sobre como se garante a identificação inequívoca do

paciente e, consequentemente, a segurança e fiabilidade dos dados

162 Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, op. cit., pp. 3-4.

141


que estão a ser recolhidos.

Outra questão prende-se com o consentimento informado,

que apesar de igualmente válido, apenas pode ocorrer de forma

verbal, sendo imprescindível que obedeça aos seguintes

pressupostos: quem o transmite tem de possuir capacidade para

consentir, o consentimento tem de ser esclarecido, ser livremente

prestado, ser atual, e finalmente, deve respeitar os bons costumes

e a ordem pública.

Compreende-se assim, que aumente a incerteza no profissional

de saúde que não está a observar diretamente o paciente, em

garantir que os pressupostos do consentimento informado estão

assegurados. Uma forma de contrariar esta dificuldade seria a

realização de videochamadas, porém o SNS não possui o número

de equipamentos necessários para o efeito, dado o elevado custo

que isso acarreta. Quando, através da tecnologia, se reproduz a

imagem e dados do cidadão, nem sempre é possível controlar e

saber quem poderá obter acesso, por isso pode não se conseguir

garantir na íntegra a privacidade do paciente. A privacidade

consiste no direito que qualquer indivíduo tem, de controlar quem

tem acesso à informação sobre a sua saúde e em que

142


circunstâncias 163 .

As instituições da área da saúde, nas quais é fundamental a

segurança dos dados pessoais e clínicos e que beneficiam bastante

dos avanços tecnológicos, necessitam saber com toda a certeza

como alcançar toda essa segurança. O RGPD fornece as

ferramentas para que o processamento de dados seja legal,

direcionado para objetivos claros e precisos, e manuseado de

forma segura. Estas instituições de saúde necessitam de maior

transparência e rigor no processamento de dados, podendo para

isso desenvolver e aplicar procedimentos que sejam do

conhecimento e postos em prática por todos os seus profissionais.

O RGPD consagra vários direitos para os titulares dos dados,

tais como o direito de solicitarem que os mesmos sejam apagados,

o direito de requererem uma cópia dos mesmos para uso próprio

e o direito de se oporem ao uso desses dados de forma

automatizada, como por exemplo através de mecanismos de

inteligência artificial. Os cidadãos podem solicitar que as decisões

feitas por algoritmos informáticos sejam anuladas e substituídas

por decisões de pessoas, como por exemplo de profissionais de

saúde.

163

DUARTE, Andreia, op. cit., p. 32.

143


Existem algumas exceções, particularmente no que aos dados

de saúde diz respeito, isto é, os titulares dos dados não podem

solicitar que se apaguem secções inteiras dos seus registos clínicos,

pois isso poderia colocar em causa os cuidados de saúde e o

profissional de saúde poderá necessitar dos mesmos para servirem

de referência a futuros tratamentos ou até para servirem como sua

defesa, caso necessário 164 .

3. Proteção de Dados Pessoais: enquadramento legal e

jurisprudência

A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia prevê

no seu artigo 8.º o seguinte:

“Todas as pessoas têm direito à proteção dos dados de caráter

pessoal que lhe digam respeito; que esses dados devem ser objeto

de um tratamento leal, para fins específicos e com o

consentimento da pessoa interessada ou com outro fundamento

previsto por lei. Todas as pessoas têm o direito de aceder aos

dados coligidos que lhes digam respeito e de obter a respetiva

164 LEA, Nathan C.; MEYER, Filip de, “How Will the General Data Protection Regulation Affect

Healthcare?”, Acta Médica Portuguesa; vol. 31, No 7-8, 2018, pp. 364-365.

144


retificação; que o cumprimento destas regras fica sujeito a

fiscalização por parte de uma autoridade independente”.

De acordo com HENRIQUE PRATA RIBEIRO: “o RGPD,

que entrou em vigência no dia 25 de maio de 2018, tem como

objetivo estabelecer as regras relativas à proteção das pessoas

singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à

livre circulação desses dados, defendendo os direitos e as

liberdades fundamentais destas pessoas" 165 .

Verificamos, sobretudo após a análise da Deliberação da

Comissão Nacional de Proteção de Dados (doravante CNPD) n.º

2020/262, que os dados clínicos das pessoas são considerados

“dados sensíveis”, merecendo uma particular proteção por parte

do legislador 166 :

“Nestes termos, e tendo em conta que não estão fixadas no

ordenamento jurídico nacional, quanto a este tratamento, medidas

adequadas e específicas para defesa dos direitos fundamentais e

dos interesses do titular dos dados, como exige a alínea i) do n.º 2

165 PRATA, Henrique Ribeiro, et al., “The New General Data Protection Regulation and Its

Implications Regarding Clinical Information Requests to Healthcare Professionals”, Acta Médica

Portuguesa, Vol 33, No 4, 2020, p. 221

166 Comissão Nacional de Proteção de Dados, “Deliberação 2020/262”, 2020, pp. 1-2. Deliberação

sobre as vulnerabilidades da plataforma Trace COVID-19, nomeadamente sobre funcionalidades

com impacto na segurança e na confidencialidade de dados pessoais. [Consultado em 21/12/2021].

Disponível in: https://www.cnpd.pt/decisoes/historico-de-decisoes/?year=2020&type=2&ent=.

145


do artigo 9.º do RGPD, importa criar, pelo menos, um mecanismo

que garanta, do lado do responsável pelo tratamento, que o acesso

só é conferido a quem seja profissional de saúde sujeito a dever

de sigilo profissional, como decorre da mesma norma.”.

3.1. O Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados

Para O Ilustre Autor 167 , a implementação do RGPD introduziu

dúvidas na prática médica, relativamente aos pedidos de

informação realizados pelos titulares dos dados pessoais e as

obrigações legais impostas aos serviços de saúde.

Podem existir situações nas quais sejam os próprios cidadãos

a efetuar pedidos de acesso específicos relacionados com os seus

dados pessoais, que podem incluir os de natureza clínicoassistencial;

ou pedidos efetuados por entidades administrativas,

como a Autoridade Tributária, a Segurança Social, os Tribunais e

o Ministério Público, em que existe uma obrigação legal no

fornecimento de informação.

Verificou-se que o RGPD prevê que os dados pessoais sejam

objeto de tratamento lícito e transparente, apenas se houver

consentimento do titular, se forem recolhidos para finalidades

167 PRATA, Henrique Ribeiro, et al., op. cit., p. 221.

146


determinadas, explícitas e legítimas, não podendo ser tratados mais

tarde de uma forma incompatível com essas finalidades.

Os princípios do RGPD apesar de parecerem indiciar

limitações para atividade médica e pesquisa científica, na realidade,

de acordo com o seu artigo 89.º, permitem a utilização dos dados

para fins de interesse público, de investigação ou estatísticos, desde

que se respeite a minimização dos dados e as condições para o

exercício dos direitos dos seus titulares.

O acesso aos dados dos pacientes encontra-se enquadrado

com a alínea d) do número 1 do artigo 6.º, que indica licitude do

tratamento dos dados se for necessária para a defesa os interesses

vitais do titular dos dados. Considera-se lícito que toda a equipa

assistencial tenha acesso aos dados necessários, de forma a evitar

possíveis erros. O fornecimento de dados do processo (clínico e

administrativo) a outras entidades, como as judiciais, levanta a

questão do tipo de dados que poderiam ser fornecidos sem

consentimento do próprio paciente, contudo os autores

consideram que esta questão já se encontrava prevista no artigo

195.º do Código Penal e no artigo 135.º do Código do Processo

Penal, que indicam que a informação clínica não pode ser

fornecida sem consentimento do titular, é protegida pelo sigilo

profissional, e caso isso ocorra o profissional pode ser alvo de um

147


procedimento criminal. Excetuam-se as situações em que é

imperativo o levantamento do segredo médico por via do

princípio do interesse preponderante, decidido judicialmente.

Sempre que existirem dúvidas deve ser solicitada autorização a

entidade hierárquica ou legalmente competente para o efeito,

como o Encarregado de Proteção de Dados da instituição 168 .

Quando existir autorização expressa do paciente, podem ser

cedidos os dados clínicos, como é exemplo a realização e envio de

relatórios médicos, como explícito no número 3 do artigo 3.º da

Lei n.º 12/2005. O RGPD reforça o direito ao paciente de

consultar o seu processo clínico, embora este aspeto já se

encontrasse consagrado na Constituição da República Portuguesa,

nos seus artigos 35.ºe 268.º. O tempo de duração do registo dos

dados depende do tipo e da finalidade dos dados, devendo regerse

de acordo com o artigo 21.º números 1.º e 2.º da Lei n.º

58/2019 de 8 de Agosto, que indica que o prazo de conservação

de dados pessoais é o que estiver fixado por norma legal ou

regulamentar ou, na falta desta, o que se revele necessário para a

prossecução da finalidade 169 .

Com o aumento significativo de informação a circular na

168 PRATA, Henrique Ribeiro, op. cit., p. 222

169 PRATA, Henrique Ribeiro, op. cit., p. 223

148


internet, aliado aos diferentes usos, questões como a segurança de

informação, cibersegurança, tratamento e armazenamento dos

dados, foram tendo cada vez mais peso, conduzindo para uma

necessidade de reforma na regulamentação aplicável às matérias

relacionadas com a proteção de dados pessoais, que teve a sua

génese na Diretiva n.º 95/46/CE, relativa à proteção das pessoas

singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à

livre circulação desses dados, aplicável no âmbito do mercado

interno (a “Diretiva”), transposta em Portugal pela Lei n.º 67/98,

de 26 de outubro (a “Lei da Proteção de Dados Pessoais”).

Em 2012 surge a necessidade de uma reforma legislativa no

que diz respeito às regras de proteção de dados na Europa,

consequência da dificuldade na conciliação da transposição e

aplicação da Diretiva n.º 95/46/CE aos estados-membros, que

levou à aplicação de regras diferentes relativas à proteção de dados

pessoais e à dificuldade no cumprimento da legislação em vários

países da União Europeia. Esta reforma terminou com a

aprovação do regulamento que viria a determinar as regras

comunitárias a serem cumpridas no âmbito da proteção de dados

pessoais, o Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu

e do Conselho de 27 de abril de 2016 (que revoga a Diretiva n.º

95/46/CE) (o “RGPD”).

149


O RGPD que entrou em vigor em 25 de maio de 2016, é

extensível a todos os Estados Membros e não requer transposição

para o ordenamento jurídico interno de cada Estado, desde 25 de

maio de 2018 170 .

A Lei n.º 58/2019 veio revogar a Lei da Proteção de Dados

Pessoais (Lei n.º 67/98 de 26/10), proceder a alterações e

republicar a Lei n.º 43/2004, de 18 de agosto, que regula a

organização e o funcionamento da CNPD, bem como alterar a Lei

n.º 26/2016, de 26 de agosto, que aprova o regime de acesso à

informação administrativa e ambiental e de reutilização dos

documentos administrativos.

O presente regulamento respeita todos os direitos

fundamentais e observa a liberdade e os princípios reconhecidos

na Carta, consagrados nos Tratados, nomeadamente o “respeito

pela vida privada e familiar, pelo domicílio e pelas comunicações,

a proteção dos dados pessoais, a liberdade de pensamento, de

consciência e de religião, a liberdade de expressão e de

informação, a liberdade de empresa, o direito à ação e a um

tribunal imparcial, e a diversidade cultural, religiosa e linguística”.

170 MOTA, Joana; PEDAL, Alexandre Sampaio, “Regulamento Geral de Proteção de Dados em

Portugal – alguns apontamentos à sua lei de execução”, Actualidad Jurídica Uría Menéndez, No 53,

2019, p. 146

150


No seu artigo 1.º vêm explanados como objeto e objetivos as

regras relativas à proteção das pessoas singulares no que diz

respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses

dados, a defesa dos direitos e as liberdades fundamentais das

pessoas singulares, nomeadamente o seu direito à proteção e livre

circulação de dados pessoais no interior da União não restringida

nem proibida por motivos relacionados com a proteção das

pessoas singulares no que respeita ao tratamento de dados

pessoais.

No n.º 1 do artigo 9.º, o RGPD institui a proibição do

tratamento de dados pessoais relativos à saúde, exceto se o titular

dos mesmos tiver dado consentimento explícito (alínea a)), se for

necessário para efeitos de medicina preventiva ou do trabalho, para

a avaliação da capacidade de trabalho do empregado, o diagnóstico

médico, a prestação de cuidados ou tratamentos de saúde ou de

ação social, ou a gestão de sistemas e serviços de saúde ou de ação

social com base no direito da União ou dos Estados-Membros, ou

por força de um contrato com um profissional de saúde, sob

reserva de determinadas condições e garantias (alínea h)).

Também é exceção o tratamento de dados de saúde se for

necessário por motivos de interesse público no domínio da saúde

pública, tais como a proteção contra ameaças transfronteiriças

151


graves para a saúde ou para assegurar um elevado nível de

qualidade e de segurança dos cuidados de saúde e dos

medicamentos ou dispositivos médicos, com base no direito da

União ou dos Estados-Membros que preveja medidas adequadas e

específicas que salvaguardem os direitos e liberdades do titular dos

dados, em particular o sigilo profissional (alínea i)) 171 .

3.2. Análise jurisprudencial

a) Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12-05-

2015 172

Neste Acórdão, o Tribunal da Relação de Lisboa pronunciouse

sobre ter-se em conta, em matéria de dados pessoais e sensíveis,

a necessária autorização legal ou CNPD (órgão habilitado a

aquilatar possíveis colisões de direitos) na interpretação do n.º 3 -

h) do artigo 7.º da Lei n.º 67/98, de 26/10 (o qual remete para o

n.º1 do mesmo preceito legal) (que transpôs para a ordem jurídica

portuguesa a Diretiva n.º 95/46/CE, do Parlamento Europeu e

171 Parlamento Europeu - Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho. In

Jornal Oficial da União Europeia, L 119, 2016, pp. 35-36 e 38-39.

172 Acórdão proferido no âmbito do Processo n.º 637/10.OTVLSB.L1-1, Relator Afonso Henrique,

Tribunal da Relação de Lisboa, de 12/05/2015 [consultado em 20/12/2021]. Disponível in:

http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/3bd3059cffbb1ea680257e6e00

585991? OpenDocument&ExpandSection=1,2,3,4,5,6,7.

152


do Conselho, de 24 de Outubro de 1995, relativa à proteção das

pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento dos dados

pessoais e à livre circulação desses dados).

“A efetividade de qualquer direito está intimamente

relacionada com o seu regime probatório. Quem reclama um

direito tem consciência de que deverá provar o mesmo em juízo.

Como se sabe, as regras do ónus da prova estão construídas para

partes com os mesmos direitos e deveres, ou seja, que estão numa

posição de igualdade de armas” 173 .

Apesar de a Lei n.º 67/98 de 26/10 já se encontrar revogada

pela Lei n.º 58/2019 de 8/8, a matéria sobre a qual o Tribunal da

Relação de Lisboa se pronunciou neste acórdão, vai de encontro

ao tema abordado neste artigo, no que à proteção de dados

pessoais e sensíveis e a autorização legal para o acesso e

tratamento dos mesmos diz respeito, dado que o mesmo versa

sobre uma ação intentada por uma seguradora contra uma

instituição bancária, sendo o objeto do litígio, a invalidade do

contrato de seguro do ramo vida de um segurado, entretanto

falecido, por inexatidão das declarações por este prestadas acerca

do seu estado de saúde aquando do preenchimento da proposta de

173 CARVALHO, Paulo Morgado de, “Ónus da prova em caso de discriminação”, Direito e Justiça,

vol. 3, Especial SE-Artigos, 2015, p. 109.

153


seguro e se estariam reunidos todos os pressupostos legais para o

tratamento e utilização dos dados de saúde deste.

Refere o douto Acórdão o seguinte 174 :

Primeiro aspeto. De acordo com o disposto na alínea d) do

n.º 3 do artigo 7. ° da Lei n° 67/98 de 26 de outubro, para a

recolha, tratamento e utilização de dados relativos à saúde, é

necessário que se verifiquem três pressupostos:

a) autorização expressa e escrita do segurado;

b) utilização desses dados para efeitos de

defesa de um direito legítimo;

c) exercício desse direito no âmbito de um

processo judicial.

Segundo aspeto. O tratamento de dados relativos à saúde de

uma pessoa e consequentemente também a obtenção de elementos

clínicos da mesma para junção a um processo judicial como meios

174 Processo n.º 637/10.OTVLSB.L1-1, RELATOR AFONSO HENRIQUE, Tribunal da Relação

de Lisboa, de 12/05/2015 [consultado em 20/12/2021]. Disponível in:

http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/3bd3059cffbb1ea680257e6e00

585991? OpenDocument&ExpandSection=1,2,3,4,5,6,7

154


de prova, depende sempre de uma disposição legal que o admita

ou de autorização da CNPD quando, designadamente, o titular dos

dados tenha dado o seu consentimento expresso/escrito.

a) Porque inexiste disposição legal que permita a obtenção,

utilização e junção aos autos de documentação relativa à

saúde de alguém sem necessidade de autorização prévia da

CNPD, resta então determinar as consequências

decorrentes da utilização dos mencionados documentos

sem a prova desta autorização.

b) Porque a «intromissão na vida privada» a que se refere o

artigo 32. °, n.º 8, da Constituição da República

Portuguesa, também engloba a saúde, podemos aferir que

a obtenção e utilização de documentos relativos a dados

sensíveis como são os dados clínicos, sem que haja a

necessária autorização da CNPD, representa

uma intromissão da vida privada e por isso um tratamento

de dados ilegal, o que determina a nulidade das provas

deles obtidas, nos termos daquele preceito constitucional

aplicável por analogia ao processo civil.

c) Face a esta nulidade da prova, os documentos obtidos desta

forma, não podem ser valorados como meios de prova.

155


O Acórdão supracitado explicita também o normativo em

análise (Lei n.º 67/98, de 26/10). Dispõe o artigo 7.º do respetivo

diploma legal, relativo ao tratamento de dados sensíveis, que:

Por um lado, é proibido o tratamento de dados pessoais

referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária

ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem racial ou étnica, bem

como o tratamento de dados relativos à saúde e à vida sexual,

incluindo os dados genéticos.

Por outro lado, através de disposição legal ou autorização da

CNPD, pode ser permitido o tratamento dos dados referidos no

número anterior quando por motivos de interesse público

importante esse tratamento for indispensável ao exercício das

atribuições legais ou estatutárias do seu responsável, ou quando o

titular dos dados tiver dado o seu consentimento expresso para

esse tratamento, em ambos os casos com garantias de não

discriminação e com medidas de segurança previstas no artigo 15.º.

De acordo com o n. º1 do citado artigo 15.º, é permitido

proceder ao tratamento de dados quando se verificar uma das

seguintes condições:

a) Ser necessário para proteger interesses vitais do titular dos

156


dados ou de uma outra pessoa e o titular dos dados estiver

física ou legalmente incapaz de dar o seu consentimento;

b) Ser efetuado com o consentimento do seu titular, por

fundação, associação ou organismo sem fins lucrativos de

carácter político, filosófico, religioso ou sindical, no âmbito

das atividades legítimas, sob condição do tratamento respeitar

apenas aos membros desse organismo ou às pessoas que com

ele mantenham contactos periódicos ligado às suas finalidades,

e de os dados não serem comunicados a terceiros sem o

consentimento dos seus titulares;

c) Dizer respeito a dados manifestamente tornados públicos

pelo seu titular desde que se possa legitimamente deduzir das

suas declarações o consentimento para o tratamento dos

mesmos;

d) Ser necessário à declaração, exercício ou defesa de um

direito em processo judicial e for efetuado exclusivamente com

essa finalidade.

Importa ainda referir que o tratamento dos dados referentes à

saúde e à vida sexual, incluindo os dados genéticos, é permitido

quando for necessário para efeitos de medicina preventiva, de

157


diagnóstico médico, de prestação de cuidados ou tratamentos

médicos ou de gestão de serviços de saúde.

No entanto, é essencial que o tratamento desses dados seja

efetuado por um profissional de saúde obrigado a sigilo ou por

outra pessoa sujeita igualmente a segredo profissional. Terá ainda

de existir a devida notificação à CNPD (artigo 27.º), sendo

asseguradas as medidas adequadas de segurança da informação.

Foi entendimento do Tribunal decidir no sentido de

improcedência do recurso, tendo confirmado a sentença, pois em

matéria de dados pessoais e sensíveis, deve ser obtida a necessária

autorização legal ou autorização da CNPD.

4. Reflexões conclusivas

A telessaúde contribui para ultrapassar as barreiras geográficas

e temporais no acesso à saúde, promovendo uma maior

coordenação, integração e continuidade dos cuidados de saúde.

Assente numa lógica de intervenção à distância, promove a

melhoria do acesso a cuidados, aumento de hábitos de saúde,

maior articulação entre diferentes prestadores e entidades, uma

gestão mais eficiente dos recursos, melhoria na qualidade dos

cuidados a prestar e diminuição da institucionalização do

158


cidadão 175 .

Verificamos com a realização do presente artigo, que a

telessaúde comporta riscos, podendo informação sensível ficar

desprotegida, e uma franja da população, com menos prática no

uso das TIC, ser excluída desta realidade. Outro constrangimento

é a possibilidade de ocorrer uma mudança na relação profissional

de saúde-paciente, com maior dificuldade em estabelecer uma

relação de proximidade e de a realização de diagnósticos à

distância poder agravar o risco de erro clínico.

O RGPD é recente, o que leva à falta de jurisprudência sobre

esta matéria, havendo apenas, para já, acórdãos que remetem para

a Lei n.º 67/98 de 26/10. Esta Lei, apesar de revogada, continha

na sua essência os pressupostos legais existentes antes da entrada

em vigor do RGPD, relativos à proteção das pessoas singulares,

no que diz respeito ao tratamento dos dados pessoais e à livre

circulação desses dados.

Dr.ª Ariana Daniela Fernandes Ribeiro Cunha,

Estudante do 2.º ano em Gestão de Unidades de Saúde, Escola de Economia e

Gestão da Universidade do Minho;

175

MARTINS, Henrique, op. cit., p. 26

159


Dr.ª Juliana Filipa Marques Lima,

Estudante do 2.º ano em Gestão de Unidades de Saúde, Escola de Economia e

Gestão da Universidade do Minho;

Dr.ª Maria Armanda Marinho Rodrigues,

Estudante do 2.º ano em Gestão de Unidades de Saúde, Escola de Economia e

Gestão da Universidade do Minho;

Dr.ª Paula Cristina Moreira Sampaio,

Estudante do 2.º ano em Gestão de Unidades de Saúde, Escola de Economia e

Gestão da Universidade do Minho;

160


ENQUADRAMENTO LEGAL DO

ACESSO ÀS TÉCNICAS DE

PROCRIAÇÃO MEDICAMENTE

ASSISTIDAS EM PORTUGAL POR

CASAIS DO MESMO GÉNERO

Resumo:

Com a crescente emancipação das mulheres desde o 25 de abril de 1974

até à atualidade, Portugal sofreu uma (r)evolução não só tecnológica como

intelectual, tentando acompanhar as necessidades da sua população, cada vez

mais mesclada pela migração. Por outro lado, a crescente evolução trouxe

consigo uma também crescente dificuldade na procriação por situações de

infertilidade, dando azo à necessidade de técnicas médicas para a reprodução e

dar resposta ao desejo de constituir família. Esta reflexão incidirá sobre o direito

à constituição de família na organização jurídica portuguesa, através do qual se

procurará entender de que forma é que se encontra reguada a questão da

Procriação Medicamente Assistida e de que forma é que a lei prevê o

envolvimento dos casais do mesmo sexo, cogitando-se sobre uma possível

colisão com o princípio da igualdade.

B

161


Palavras-chave:

Família; Género; Igualdade; Procriação Medicamente Assistida.

Sumário:

1. O Direito à Constituição de Família:

1.1. Dos casais do mesmo sexo;

2. As Técnicas de Procriação Medicamente Assistida:

2.1. Enquadramento Jurídico das Técnicas de Procriação

Medicamente Assistida;

2.2. Da Jurisprudência à Reflexão;

3. Conclusão;

162


1. O Direito à Constituição de Família

O conceito de família varia de acordo com a cultura em

que se está inserido e tem vindo a evoluir e a adaptar-se ao longo

do tempo. Em Portugal, a noção generalizada de família

representa-a como sendo o início e o final de tudo, engloba os laços

de consanguinidade, parentesco e/ou de afinidade, que partilham

o mesmo agregado. Quer na Constituição da República Portuguesa

(CRP) como na Declaração Universal dos Direitos do Homem

(DUDH) a família representa uma estrutura fundamental para a

sociedade, devendo ser assumida a sua proteção pelo Estado.

Tendo em conta a evolução natural da sociedade, com o

reconhecimento do divórcio e do casamento entre pessoas do

mesmo sexo, houve a necessidade de rever a noção de família,

alargando-a para inserir novas estruturas e organização das

mesmas. Ou seja, numa sociedade orientada para um padrão

normativo de família, começou a incluir-se uma multiplicidade de

configurações familiares, nomeadamente as monoparentais, as de

união de facto, as de reconstrução ou pluriparentais, e as

constituídas por pessoas do mesmo sexo. Portanto, a definição de

família vai depender se é pretendida uma representação biológica,

163


social ou cultural da mesma 176 , ficando apenas a faltar uma revisão

sobre a definição de fundação de família baseada no casamento.

Viriam a ser reconhecidas as relações em união de facto na

lei no 7/2001, de 11 de maio, como uma situação jurídica em que

duas pessoas, independentemente do sexo, vivam em união de

facto há, pelo menos, dois anos, tendo sido futuramente revista

com a lei 23/2010 de 30 de agosto para a proteção da mesma união

em caso de falecimento de uma das partes. Mantém, ainda assim, a

diferenciação equiparada ao casamento, cumprido o princípio de

não igualar o que não é igual, diferenciando os direitos legais dos

unidos de facto relativamente aos casados.

A CRP salvaguarda, no seu art. 36o, o direito de todo e

qualquer cidadão em constituir família, independentemente do seu

estado civil (apesar de no n.º 1 do mesmo artigo esses dois fatores

terem uma conotação interdependente), orientação sexual,

salientando os direitos e deveres dos pais, cônjuges ou não, de

garantir a educação e manutenção dos seus filhos,

independentemente de estes terem nascido dentro ou fora do

casamento. Pese embora o realce do direito à constituição de

176 SHARMA, Rahul – The Family and Family Structure Classification Redefined for the Current

Times. In Journal of Family Medicine and Primary Care. Delhi, India. ISNN 2249-4863. Vol. 2, No

4, 2013, p.307 (pp. 306-310).

164


família em situações abrangentes, estas não o são suficientemente

para incluir no conceito de família nas dimensões sociais

anteriormente explanadas e faz uma alusão ao casamento legal e

católico, desconsiderando também o matrimónio ao abrigo de

outras crenças religiosas.

Por sua vez, no que toca à maternidade e paternidade,

embora haja pouca referência a estas ligações nos documentos

revistos, a CRP, no seu art. 68o, identifica-as como sendo valores

sociais distintos, conferindo a sua proteção, por parte da sociedade

e do Estado, garantindo a insubstituível ação de educação dos pais

sobre os filhos, bem como a sua realização profissional e

participação no desenvolvimento cívico do país. Para além disso, o

código civil português regulamenta a atribuição de proteção laboral

e social às mulheres durante o período pré e pós-parto, bem como

de direitos laborais (a mãe e pai) que visem o maior interesse da

criança.

1.1. Dos casais do mesmo sexo

São vários os documentos internacionais que defendem o

direito à família, à igualdade e à não discriminação. Desde logo, a

DUDH, em 1948, proclama que todos os indivíduos “nascem

165


livres, iguais em dignidade e igualdade”, com direito a contrair

matrimónio e de constituir família, com salvaguarda da sua

privacidade familiar, sem ataques à sua honra e reputação e com

direito a proteção contra a discriminação 177 . Também na

Convenção Europeia dos Direitos do Homem, em 1950, são

mantidas premissas idênticas no art. 12º, sobre o direito a casar e

constituir família, desde que com idade acima dos 16 anos,

mediante as leis nacionais 178 . Não aclaram, contudo, os conceitos

de casamento e de família, ficando estes suscetíveis à adaptação

cultural e sociológica de cada nação.

É possível verificar um crescente reconhecimento jurídico

das uniões das pessoas do mesmo sexo, por toda a Europa. Tal

como Dias (2011) 179 refere, este reconhecimento difere entre os

vários países, parecendo haver uma preferência pela regularização

desta como uma união de facto, vedando o casamento apenas a

177 Organização das Nações Unidas – Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948.

[Consultado em 05/01/2022]. Disponível em: https://dre.pt/dre/geral/legislacaorelevante/declaracao-universal-direitos-humanos.

178 European Court of Humans Rights – European Convention on Human Rights, 1950.

[Consultado em 05/01/2022]. Disponível em:

https://www.echr.coe.int/documents/convention_eng.pdf

179 4 ARAÚJO, Cristina M. Dias – A Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem

e as Novas Formas de Família. In Revista Jurídica da Universidade Portucalense. Porto, Portugal.

ISNN 0874-2839. No 15, 2012, p. 37 (pp. 35-48).

166


casais heterossexuais, como é o caso de Espanha, França e Bélgica.

Outros, têm vindo a rever a legislação das uniões de facto,

equiparando-a à dos casamentos, tal como Dinamarca, Noruega,

Suécia, Islândia, Holanda, Finlândia, Reino Unido e Alemanha.

Em Portugal, a união de casais do mesmo sexo pode ser

reconhecida como uma união de facto ou como casamento,

consoante a vontade dos indivíduos. O Decreto-Lei no 9/2010 de

31 de maio vem permitir o casamento legal 180 entre pessoas do

mesmo sexo, conferindo-lhes os mesmos direitos dos casais

heterossexuais, exceto no que concerne à adoção. O entrave da

adoção foi ultrapassado com a Lei no2/2016 de 29 de fevereiro,

que visou a eliminação de todas as discriminações no acesso à

adoção, apadrinhamento civil e outras relações jurídicas familiares,

reconhecendo o direito e o acesso à adoção, nos termos da lei, a

pessoas não casadas (artigo 7º) e alterou o predisposto no artigo 3o

na Lei n.º 9/2010, de 31 de maio, passando a admitir a legal adoção

por pessoas do mesmo sexo, casadas ou em união de facto.

Posto isto, é possível concluir que apesar dos lentos

avanços na legislação portuguesa no que toca à regulamentação do

180 “Casamento é o contrato celebrado entre duas pessoas que pretendem constituir família

mediante uma plena comunhão de vida”, nos termos das disposições da Lei no 9/2010, de 31 de

maio, em Diário da República.

167


direito à constituição familiar e, estando esta ainda muito vinculada

pelo casamento, que ainda se comporta como sendo a relação

jurídica com maior ratificação aos olhos da lei, é possível assumir

uma abertura legal, que se espera ser representativa da sociedade

portuguesa, no reconhecimento dos casais homoafetivos. Esta

abertura peca pelo timing, que se encontra atrasado em relação a

outros países europeus, mas também em relação às mudanças

sociais do paradigma da família que se têm observado existir nos

últimos 40 anos. Foram cerca de 30 anos que estes cidadãos

portugueses estiveram à espera de verem os seus direitos

reconhecidos na lei portuguesa, protegendo-os contra a

discriminação no acesso ao casamento e adoção, que sendo um dos

direitos fundamentais do homem é questionável.

2. As Técnicas de Procriação Medicamente Assistida

As técnicas de avaliação e o tratamento de infertilidade,

bem como as suas alternativas terapêuticas têm vindo a ser uma

preocupação mundial nos últimos 100 anos, mas foi nos últimos

40 que houve maior expressão destes avanços científicos, com a

implantação da técnica de Fertilização in Vitro (FIV), que resultou

no nascimento de uma criança em 25 de julho de 1978.

168


Rapidamente, estas técnicas foram sendo disseminadas por todo

mundo, sendo alvo de diversas reflexões éticas, sociais e legais.

Em Portugal, o primeiro ciclo de FIV foi realizado em

julho de 1985, tendo nascido em fevereiro de 1986 a primeira

criança resultante da utilização dessa técnica. Outros

procedimentos viriam a ser adotados como tratamento a casais

inférteis em Portugal, desde a execução da inseminação artificial, a

transferência intratubária de gâmetas, a criopreservação de

embriões e a Microinjeção Intracitoplasmática de

Espermatozoides, integrando, assim, no vocabulário o conceito de

Procriação Medicamente Assistida, doravante designadas como

PMA 181 .

As PMA têm vindo a constituir uma crescente procura em

todo mundo, facto ao qual Portugal não é indiferente, apesar de

apresentar uma resposta ineficiente aos casais com indicação para

estas técnicas por infertilidade e aos restantes beneficiários que

pretendam a gravidez que procuram. Estima-se que, em todo o

mundo, já tenham nascido mais de três milhões de crianças como

resultado de PMA. De acordo com os últimos dados disponíveis,

181 Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida – PMA em Portugal. [Consultado em

12/12/2022]. Disponível em https://www.cnpma.org.pt/cidadaos/Paginas/pma-em-portugal.aspx

169


em 2016 o número de crianças originadas em tratamentos com

PMA representou cerca de 3% do total de crianças nascidas em

Portugal.

A utilização das PMA são continuamente alvo de reflexão

ética, social e legal. A Comissão Nacional de Ética para as Ciências

da Vida (CNECV) emitiu, em 1993, o primeiro parecer

relativamente às técnicas de PMA – sendo na altura a entidade

reguladora, juntamente com a Ordem dos Médicos, dos centros de

PMA –, para a aprovação do projeto de lei que viria entrar em vigor

anos mais tarde. Nesse documento 182 , assumindo uma perspetiva

humana da natureza da conceção – ainda que não estritamente

biológica – e suportada no preâmbulo da resolução sobre

fertilização in vitro e in vivo do Parlamento Europeu, a CNECV

lança o apelo para que se considerem dois pontos importantes ao

regularizar estas técnicas: a) A não instrumentalização da pessoa

humana, no que diz respeito à doação de esperma a menos que ela

seja totalmente doada, mas também no risco de materialização do

nasciturno que possa advir, que a própria comissão aceita que

poderá não acontecer dado o amor subjacente que o casal infértil

182 Conselho Nacional de Ética Para as Ciências da Vida – Relatório: Parecer Sobre Reprodução

Medicamente Assistida (3/CNECV/93), 1993. [Consultado a 12/12/2021]. Disponível em:

https://www.cnecv.pt/pt/deliberacoes/pareceres/3-cnecv-

93?download_document=3058&token=fc35825d4935423ef6fd13af76b8a22a.

170


terá por chegar ao ponto de proceder à PMA para colmatar o

desejo de ter um filho; b) A liberdade ética, no que diz respeito a

uma decisão devidamente informada pelo casal, especialmente da

mulher – já que esta é a primeira a sentir os efeitos das técnicas de

PMA – e aborda o receio que, com o avanço tecnológico e

científico, o direito a ter filhos possa levar ao direito de ter filhos

com as características que quiserem. Mais tarde, em 1997, o

CNECV volta a emitir novo parecer 183 , trazendo à luz a

incongruência detetada na lei com os direitos fundamentais do

cidadão no que toca ao direito à identidade própria e identidade

genética posta em causa pela confidencialidade assegurada aos

dadores de gâmetas.

2.1 Enquadramento Jurídico das Técnicas de Procriação

Medicamente Assistida

A primeira legislação das PMA remota ao Decreto-Lei n.º

319/86 de 25 de setembro, após a recomendação da Assembleia

Parlamentar do Conselho da Europa relativamente à utilização de

183 Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida – Relatório Sobre o Projeto de Proposta de

Lei Relativa à Procriação Medicamente Assistida, 1997. [Consultado a 12/12/2021]. Disponível em:

https://www.cnecv.pt/pt/deliberacoes/pareceres/23-cnecv-

97?download_document=3115&token=5ca8aa30c3703e9066f6d4c78601fb99

171


embriões na investigação científica. Ainda que tivesse um carácter

provisório e limitativo, comportou-se como base de

desenvolvimento de futuros diplomas nesta matéria: em 1997, o

Governo aprovou proposta de Lei n.º 135/VII e houve alteração

da CRP pela Lei n.º 1/97 de 20 de setembro, tornando as PMA um

direito constitucional; em 1999, há a primeira tentativa de

legislação das PMA, com o Decreto-Lei n.º 415/VII de 16 de julho,

que foi vetada; nova tentativa foi realizada em 2005, sem sucesso 184 .

A regulamentação das técnicas de PMA surge vinte anos

depois, com a Lei n.º 32/2006 de 2 de Junho, que autoriza e regula

diferentes técnicas de PMA, nomeadamente “inseminação

artificial, fertilização in vitro, injeção intracitoplasmática de

espermatozóides, transferência de embriões, gâmetas ou zigotos, o

diagnóstico genético pré-implantação e outras técnicas

laboratoriais de manipulação gamética ou embrionária equivalentes

ou subsidiárias” e também incide sobre a criação do Conselho

Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA). Esta lei

viria, dez anos mais tarde, a ser alterada, com o alargamento no

âmbito dos seus beneficiários, garantindo o acesso a todas as

mulheres independentemente do estado civil, orientação sexual ou

184 CARDOSO, Carla Luísa Monteiro – Procriação Medicamente Assistida: Limites e Desafios ao

Regime Jurídico dos Beneficiários. Braga, Universidade do Minho, 2017.

172


do diagnóstico de infertilidade, pela Lei no 17/2016 de 20 de

junho. Encontrava-se em discussão o alargamento do âmbito das

técnicas de PMA para a gravidez de substituição 185 , que no diploma

em vigor – ao início deste trabalho – se define como proibido,

sendo punível com pena de prisão até dois anos ou pena de multa

até 240 dias. As propostas de alteração da lei já foram apresentadas

e vetadas por duas vezes pelo Exmo. Presidente da República

Portuguesa, até à sua promulgação e publicação em Diário da

República no passado dia 16 de dezembro de 2021.

Olhando para o decreto que permitiu a introdução das

técnicas de PMA em Portugal, este visa a possibilidade de gravidez

em situações em que seja diagnosticada infertilidade ou em

situações em que a finalidade seja a de tratamento ou prevenção de

transmissibilidade de anomalias cromossomáticas ou infeciosas

que, de outra maneira, não sejam possíveis de controlar 186 , sendo

da responsabilidade do CNPMA a verificação e cumprimento dos

185 Entenda-se por gravidez de substituição como sendo “qualquer situação em que a mulher se

disponha a suportar uma gravidez por conta de outrem e a entregar a criança após o parto,

renunciando aos poderes e deveres próprios da maternidade”, tal como definido na Lei no 32/2006,

de 26 de julho (artigo 8º).

186 Trata-se de doenças infeciosas sem cura ou outras que, por fatores genéticos e hereditários

traduzem uma doença grave ou causa de morte precoce. Excluem-se situações de manipulação

genética que não constituam um benefício de saúde, como a escolha de sexo (exceto se a doença em

causa tenha predominância num dos sexos), segundo a Lei 32/2006, de 26 de julho (artigo 7o).

173


critérios de inclusão dos beneficiários. Fala-se, portanto, de

métodos subsidiários, disponíveis no SNS ou em instituições

privadas autorizadas, destinados a indivíduos maiores, casados ou

em união de facto e de sexos diferentes – sublinha-se essa

premissa, a ser alvo de reflexão – que após a devida transmissão da

informação necessária 187 a tomar uma decisão, bem como da

garantia de confidencialidade, expressem o seu consentimento

livre, esclarecido, explícito e por escrito, tal como regulado pela Lei

no 32/2006, de 26 de julho.

A mesma lei define limitações no que toca à utilidade

científica dos gâmetas ou embriões, sendo declaradas as condições

em que os produtos podem ser utilizados para investigação – o que

não vem a ser pertinente neste trabalho e, por isso, não será

alongado. Também são expressas limitações na sua utilização em

caso de falecimento do cônjuge durante a criopreservação dos

produtos, sendo permitida a utilização post mortem de embriões, se

acompanhados de consentimento e vontade expressa da sua

utilização por parte do falecido, mas não a utilização de

espermatozóides, ainda que tenha sido consentido no ato de

187 A Lei n.o 32/2006, de 26 de julho (artigo 14o) refere-se aos riscos e benefícios, bem como das

implicações éticas, sociais e jurídicas da utilização das técnicas de PMA, não só do âmbito e do

processo.

174


inseminação, sendo este destruído após falecimento. É importante

ressalvar que a utilização de gâmetas de dadores terceiros não

constitui um vínculo que implique o estabelecimento da

parentalidade, sendo esta assumida por quem deu o consentimento

à realização da PMA.

Relativamente ao destino dos embriões, estes podem ser

criopreservados com vista à sua utilização durante três anos, findos

quais devem ser destruídos ou poderão ser doados a outros casais

elegíveis ou para investigação, mediante o consentimento dos

beneficiários primários. A pedido das pessoas beneficiárias pode

ser alargado esse período por mais três anos, segundo a revisão

deste diploma, levada a cabo em 2010. A sua compra e venda é

estritamente proibida, assim como o é dos óvulos e esperma, que

devem ser destruídos após cinco anos de criopreservação, ao

abrigo da Lei no 32/2006, de 26 de julho.

Finalmente é garantido, por lei, o sigilo e o anonimato quer

dos beneficiários, dos dadores (no caso das PMA heterólogas) e

das crianças nascidas, não sendo permitido a inclusão da

informação de esta é resultado de uma técnica de PMA, sendo

punível por lei o incumprimento dessas premissas. Fica, portanto,

salvaguardada a situação em que alguma destas partes expresse por

escrito que não exige a confidencialidade das suas informações e

175


também as situações em que existam razões ponderosas em que,

por ordem judicial, seja dado a conhecer a entidade do dador.

Fica, portanto, evidente a limitação do acesso às técnicas

de PMA a determinados grupos sociais. Pese embora a evolução

significativa na legislação e considerando os vinte anos em que a

regulação das PMA se limitava a três artigos inespecíficos, é de

reconhecer a amplitude do presente diploma em vigor, concordese

ou não com a extensão do mesmo a vários níveis,

nomeadamente na discriminação pelos casais de sexo masculino ao

acesso das PMA, facto que será alvo de reflexão. Outro ponto de

interesse para reflexão trata-se da confidencialidade dos dados e até

que ponto esta pode interferir com o direito constitucional da

criança nascida em ter conhecimento da sua identidade genética

(artigo 25º da CRP).

3. Da Jurisprudência à Reflexão

Apesar de aparentar ser um conceito recente, a utilização

de técnicas PMA não é tão atual quanto se julga. Bem observado,

já na Bíblia Sagrada existe a menção da utilização de barriga de

aluguer por parte de Sara e Abraão para reprodução de um filho

que Sara não seria capaz de gerar, através do relacionamento de

176


Abraão com sua escrava. De todas as técnicas de PMA, a que ainda

gera discussão em Assembleia da República é a utilização de

gestação de substituição, motivo que já foi para aprovação

múltiplas vezes, sendo vetada pelo Presidente da República até ser

publicada a Lei n.º 90/2021 de 16 de dezembro.

Após pesquisa sobre acórdãos relativamente à utilização de

técnicas de PMA, sobretudo em casais homossexuais, a mesma não

apresenta resultados. Assim, optou-se por estudar os que incidiam

sobre a gestação de substituição e que foram base de formulação

da lei atualmente publicada – que será abordada –, podendo

constituir uma luz ao fundo do túnel para os casais homossexuais

masculinos.

A Lei n.º 25/2016 de 22 de agosto previa a regulamentação

do acesso à gestação de substituição, como sendo uma das

alterações à Lei n.º 32/2006, de 26 de julho, que regula as técnicas

de PMA. Terá sido promulgada e emitido o decreto regulamentar

a 31 de julho de 2017, onde estariam emitidas as condições de

realização de PMA em gestação de substituição. Contudo, mais

tarde foi declarada inconstitucional, em algumas das suas leis, pelo

Acórdão n.º 225/2018 do Tribunal Constitucional, de 7 de maio

177


de 2018 188 . As fundamentações desta declaração baseiam-se nos

seguintes pontos:

o A violação do direito constitucional à identidade pessoal,

nomeadamente da sua ascendência genética (artigos 26º/1 e 3

da CRP), salvo se por motivos ponderosos e decretados por

tribunal, que entra em colisão com o direito fundamental de

constituir família e da proteção da privacidade da vida pessoal

e familiar (artigos 36º e 26º da CRP, respetivamente). Ponto

muito relevante no parecer do CNECV, que chega a justificar

que se ter um filho é um direito fundamental, também o é

conhecer a sua identidade e que em caso de colisão deva ser o

primeiro a ceder e não o segundo. É certo que a lei não tem

um caráter proibitivo absoluto no que toca à divulgação da

identidade dos dadores das PMA heterólogas, mas existe uma

margem muito reduzida para a conseguir, já que este direito de

confidencialidade foi matéria de pronúncia em 2009 no

Acórdão n.º 101/2009, em que o Tribunal Constitucional

decidiu pela não inconstitucionalidade do sigilo, em benefício

de manutenção da paz e da privacidade da vida familiar.

188 Tribunal Constitucional – Acórdão do Tribunal Constitucional no 225/2018, de 7 de maio. In

Diário da República, Série I, n.º87, 2018, p. 1887 (pp.1885–1979). [Consultado a 10/12/2021].

Disponível em https://dre.pt/dre/detalhe/acordao-tribunal-constitucional/225-2018-115226940.

178


o A violação da dignidade da pessoa humana assenta na

objetificação e mercantilização do nascimento de uma criança,

em que a mãe de substituição é usada como objeto de

incubação e a criança é o objeto transacionado. Esta

preocupação surge no conhecimento de que grande parte das

mulheres que se oferecem para prosseguir com esta técnica são

oriundas de zonas economicamente pobres, cujo intuito é o de

receber os apoios fornecidos a nível alimentar, de saúde,

condições, suportados pelos beneficiários, representando uma

forma de subsistência familiar. Este facto não pode ser

desconsiderado, bem como o dos efeitos psicológicos que

possam advir da entrega de uma criança gerada e nascida do

seu próprio corpo. Além disso, a lei não prevê a possibilidade

de revogação do contrato após o início das técnicas de PMA,

por parte da gestante.

Revista a lei e devolvida novamente sem promulgação, o

Tribunal Constitucional volta a declarar a sua inconstitucionalidade

no Acórdão n.º 465/2019 de 18 de outubro de 2019 189 . Neste, além

de reforçar que os pontos anteriormente explanados não foram

189 Tribunal Constitucional - Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 465/2019, de 18 de outubro.

In Diário da República, Série I, no 201, 2019, p. 123 (pp.117–137). [Consultado a 10/12/2021].

Disponível em https://dre.pt/dre/detalhe/acordao-tribunal-constitucional/465-2019-125468550.

179


devidamente solucionados, reforça que as soluções tomadas para

permitir a revogação até ao momento da entrega da criança aos

beneficiários pode constituir um período de incerteza legal para

todas as partes envolvidas, sobretudo para a criança.

Servindo-se das anteriores revisões e dos acórdãos

emitidos pelo Tribunal Constitucional, é realizada nova revisão do

projeto de lei (oitava) e entregue para aprovação, tendo sido aceite

e promulgado recentemente, em novembro. Assim, a 16 de

dezembro de 2021, é publicada a lei n.º 90/2021, que altera o

regime jurídico aplicável à gestação de substituição. À luz das

orientações deixadas pelo Tribunal Constitucional nos acórdãos

anteriores e dos pareceres emitidos pelo CNECV e do CNPMA,

esta nova lei admite, entre outras, as seguintes alterações:

o A realização de acordos jurídicos para a gravidez de

substituição só é admissível a título excecional para casos de

ausência de útero ou incapacidade biológica do mesmo em

suportar uma gravidez ou outra situação clínica que impeça

definitivamente a gravidez da mulher.

o A grávida de substituição deve ser, preferencialmente, mãe,

ainda que a não verificação deste facto não possa impedir a sua

participação.

180


o A realização do acordo carece da autorização e auditoria prévia

do CNPMA, com audição da Ordem dos Médicos e Ordem

dos Psicólogos.

o A criança nascida da utilização de gestação de substituição é

tida como filha dos beneficiários.

o No que diz respeito ao consentimento, este deve ser dado

mediante a divulgação de todas as informações previstas na lei

anterior, podendo ser revogado pela grávida de substituição até

ao momento do registo da criança.

o Declara as cláusulas que devem ser verificadas – sob supervisão

do CNPMA – no contrato que visam direitos e deveres da

gestante; as disposições a observar em caso de complicações

na gravidez ou de interrupção voluntária da gravidez; a

possibilidade de denúncia do contrato por incumprimento; a

gratuitidade do processo, abrangendo o pagamento de

despesas decorrentes da vigilância da gravidez e gastos de

deslocação.

o Aprova as sanções a serem aplicadas em caso de

incumprimento dos termos legais na realização desta técnica

ou quem a promover com fins lucrativos.

181


Se biopsicologicamente está comprovado que existe uma

ligação que se estabelece entre mãe e filho durante o período

gestacional, bem como todo um conjunto de alterações físicas e

psicológicas inerentes ao processo, é passível de se levantarem

algumas questões: de que forma pode ser utilizado um corpo como

uma incubadora de um feto que não é seu; como pode a mulher

deixar livremente de querer assumir como seu quem gerou em si;

como pode a mulher, alvo de todas as alterações físicas, hormonais,

psicológicas não ser vítima de transtornos mentais e como proteger

essas mulheres. A consciência e o peso carregado pelo acordo

estabelecido com um casal que não pode ter filhos e a importância

dada ao altruísmo da mulher por aceitar fazer cumprir um objetivo

a dois, tão importante como o de constituir família, poderá

representar um fardo demasiado grande e impeditivo para que esta

exprima livremente as suas vontades ou que seja capaz de

prosseguir com o acordo livremente, colocando em causa a sua

dignidade, ao sentir-se utilizada como um meio para atingir um fim.

Dessa reflexão, poderá ter resultado a alteração das

premissas que regulam o acesso à gestação de substituição,

nomeadamente a preferência por uma mulher que já seja mãe, a

emissão de um leque de direitos previstos para a grávida de

substituição, entre os quais o de decidir sobre si e sobre o feto

durante a gravidez e o de ser acompanhada por um psicólogo

182


durante a gravidez, parto e pós-parto. Também disso terá resultado

a alteração do tempo de revogação por parte da gestante, o que se

torna um importante espaço de reflexão e ponderação por parte da

mulher no sentido de ver respeitada a sua dignidade. Por outro

lado, ao ser permitida a liberdade de decidir sobre si e o seu corpo,

bem como do feto até ao momento da entrega, acarreta uma

pressão e incógnita sobre o futuro para os beneficiários, o que

implica um investimento emocional sobre um projeto e sobre o

material genético que lhes pertence – ou pelo menos a um deles –

que poderão não ver reconhecidos como seus. Contudo, este facto

parece ser apenas considerado como uma perda contratual, aos

olhos do Tribunal Constitucional, ao não dar relevância a esta

perda, olhando apenas pelos interesses da grávida de substituição

e da pessoa que da PMA nascer.

O Tribunal Constitucional também incide sob o interesse

da criança, tal como é defendido pela CNECV no seu parecer de

2016, colocando-o como principal entidade a ser protegida,

aquando da emissão de leis. A proteção de dados dos dadores de

gâmetas ou, neste caso, das grávidas de substituição entra em

conflito com o direito a uma identidade genética. Nesta nova lei

publicada é novamente explícito o direito do nasciturno em

conhecer as vias em que foi gerado e nascido, mas não existe

referência relativamente à divulgação dos dados da gestante, já que

183


se pressupõe que o material genético será de um ou ambos os

beneficiários e nunca da gestante, mantendo-se em vigor o previsto

na lei n.º 32/2006.

Faça-se, agora, um enquadramento sobre as premissas que

regulam os beneficiários. É certo que à data da publicação da lei

n.º 32/2006, não estavam ainda reconhecidas, legalmente, as

uniões entre indivíduos do mesmo sexo. Como já se viu

anteriormente, em 2006, apesar de já se terem dado os primeiros

passos no reconhecimento das uniões de facto

(independentemente do sexo), ainda não estava reconhecido o

casamento entre pessoas homo-afetivas. À data da lei n.º 17/2016

de 20 de junho, altura em que se alargaram os beneficiários para

recurso às técnicas de PMA, o casamento entre pessoas do mesmo

sexo já havia sido reconhecido legalmente. Não obstante, essa

alteração da lei não está redigida de forma exclusivista, mas ainda

assim inclui apenas as mulheres, deixando de fora os indivíduos do

sexo masculino, sejam eles solteiros ou unidos ou casados com

outro homem, o que se traduz numa desigualdade na constituição

de família baseada no sexo e na sua impossibilidade de engravidar.

Seria expectável que esta nova proposta de lei apresentasse uma

resposta a esta lacuna, mas o mesmo não foi verificado,

abrangendo apenas as mulheres que não tenham um órgão

184


reprodutor competente para prosseguir com a gestação, ainda que

os homens também não o possuam.

4. Conclusão

A realização deste trabalho permitiu desenvolver

competências no que toca à investigação e na interpretação de

elementos jurídicos – neste caso as leis, propostas de lei e acórdãos

– inerentes ao tema em causa. Foi possível, então, conseguir

entender o que está regulado relativamente à utilização de técnicas

de PMA para dar resposta ao direito constitucional de formar

família. Apesar dos constantes esforços em proceder à emissão de

leis que regulem o acesso às técnicas de PMA é visível a

morosidade e a discriminação a eles inerentes, o que leva à procura

por soluções em outros países cuja legislatura esteja mais

abrangente ou, na impossibilidade, a danos morais e psicológicos

nos indivíduos excluídos. Aguarda-se uma evolução breve neste

sentido.

Dr.ª Mónica Sofia Maciel Carvalho

Estudante do 2º ano do Mestrado em Gestão de Unidades de Saúde na

Universidade do Minho

185


O EVENTUAL DIREITO A FALTAR POR

PERDA PERINATAL

Resumo:

Com o presente artigo pretendemos trazer à colação, a discussão

sobre a necessidade de previsão legal para a justificação de faltas no caso de

perda perinatal. O conceito de perda perinatal no momento do parto e as

suas consequências sobre o eventual direito dos pais a faltar ao trabalho.

Desta forma, pretendemos mapear a bibliografia existente sobre a temática

de modo a responder ao objetivo proposto. Assim, primeiro, apresentamos

os conceitos de direito de trabalho, de parentalidade e de perda perinatal. A

partir destes, delimitaremos o estado jurídico e legislativo atual em Portugal

e no mundo. Por último, retrataremos a perda dolorosa por interrupção de

um vínculo afetivo e biológico construído ao longo da gravidez, cujo

reconhecimento por lei do direito ao processo de luto parental não é

reconhecido, nem, todavia, consensual.

Palavras-chave:

Perinatal.

Direito do Trabalho; Faltas Justificadas; Luto Parental; Perda

186


Sumário:

1. Breves notas introdutórias;

2. Direito do Trabalho;

3. Parentalidade e Perda Perinatal;

4. A dor da Perda Perinatal;

5. Faltas Justificadas por motivo de falecimento;

6. Notas Conclusivas;

187


1. Breves notas introdutórias

O tema do luto por perda perinatal no momento do parto,

nos dias de hoje, continua a ser um assunto bastante sensível. A

perda perinatal no momento do parto retrata um momento

doloroso, de transição e que requer diversas dificuldades

adaptativas. No entanto, existe falta de apoio junto das entidades

empregadoras que se regem através do Código do Trabalho, em

Portugal.

Assim, pretendemos analisar as principais limitações atuais

existentes neste âmbito e aprofundar o reconhecimento por lei

sobre o eventual direito a dias de luto dos pais por perda perinatal

no momento do parto.

2. Direito do Trabalho

Em Direito, o conceito de trabalho pode ser definido como

atividade profissional que requer esforço físico e/ou psíquico com

vista a uma determinada finalidade, podendo ser ou não

188


remunerado 190 . Por sua vez, este pode ser dividido em trabalho por

conta própria ou por conta de outrem. Sucintamente, um

trabalhador por conta própria é quando a pessoa exerce atividade

independente. E, por conta de outrem atribui-se quando a pessoa

exerce atividade ao serviço de uma entidade empregadora,

podendo esta ser de forma autónoma através de um prestador de

serviços ou de forma subordinada regulada por um contrato de

trabalho 191 . O direito do trabalho, por sua vez, constitui uma parte

do Direito responsável pelas normas e princípios jurídicos que

regularizam as relações laborais que se estabelecem entre o

empregador e o trabalhador 192 . Estas encontram-se enumeradas no

Código do Trabalho. Este tem como objetivos promover

informação completa sobre as condições constantes no contrato a

assinar, promover qualidade de saúde e segurança aos

trabalhadores, proteger nas questões relacionadas com a

190 NEVES, Diana; Nascimento, REJANE; Félix, Mauro; SILVA, Fabiano; ANDRADE, Rui –

Sentido e significado do trabalho: uma análise dos artigos publicados em periódicos associados à

Scientific Periodicals Electronic Library. Brasil, 2018, pp. 2-3.

191 GARCIA, António; CARREIRO, Inês – Direito do Trabalho. Lisboa, Tese de Mestrado,

Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, 2019, p. 2.

192 XAVIER, Bernardo – Manual de Direito do Trabalho. 3.a edição. Lisboa: Rei dos Livros, 2018

p. 35-36.

189


parentalidade e proporcionar igualdade nas condições de trabalho

entre os colaboradores.

Antes de mais importa referir que o objeto em estudo está

relacionado com o direito do trabalho aplicado aos progenitores

em caso de perda perinatal.

3. Parentalidade e Perda Perinatal

A parentalidade é definida como um conjunto de ações

exercidas pelos pais ou cuidadores que assegurem as questões de

segurança, saúde e desenvolvimento físico, cognitivo, emocional e

social da criança 193 . Traduzindo-se, pela ótica jurídica, no

estabelecimento de um vínculo entre um adulto e uma criança a

seu cargo, sendo responsável pelos seus direitos e obrigações 194 . De

acordo com o Art. 68º da Constituição da República Portuguesa, a

maternidade e paternidade são valores sociais eminentes e que, as

mulheres têm direito a proteção durante a gravidez e após o parto,

o que inclui dispensa do trabalho durante um período adequado.

193

NEGRÃO, Mariana – Ser mãe, ser pai: os desafios da parentalidade (Durante e após a

pandemia). Ordem dos Psicólogos, 2021, pp. 2-4.

194

MESQUITA, Margarida – Parentalidade e Filiação: jurisdição da família e das crianças. Lisboa:

Centros de estudos judiciários, 2018, p.103.

190


No entanto, questionamos o cumprimento deste direito no caso de

perda perinatal no momento do parto. A perda perinatal é um

fenómeno que traduz a perda do bebé ocorrida durante a gestação

ou após o parto em que, independentemente do momento e/ou

causa, retrata uma vivência particular e, segundo a literatura, pouco

reconhecida socialmente 195 . Aplicado à temática, a perda perinatal

no momento do parto simboliza um momento de vida em que

ocorre a morte, podendo impulsionar um período de crise,

sofrimento e dificuldades adaptativas 196 .

Neste caso, uma vez que o bebé «nasce sem vida» (nadomorto),

todo o processo de idealização e planeamento desenvolvido

durante a gravidez é interrompido 197 , apesar da vivência da mesma

e do estabelecimento de um vínculo que é tanto biológico com

afetivo. No entanto, cada vez mais, na literatura se questiona o

195

TEODÓSIO, Andressa – “Particularidades do luto materno decorrente de perda perinatal:

estudo qualitativo”. DOI: https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v20i2.e9834. In Revista

Subjetividades, 2020, pp. 2-4.

196 ALVES, Rayssa; Celestino, Kênia – “De braços vazios, nos braços da dor: perda perinatal e

perinatal”. RSD Journal, ISSN 2525-3409. 2020, pp. 3-5.

197 LEMOS, Luana; CUNHA, Ana – Conceções sobre morte e luto: experiência feminina sobre a

perda perinatal. DOI: https://doi.org/10.1590/1982-3703001582014. Psicol. Ciênc. Prof., 2015, pp.

2-5.

191


reconhecimento desta perda. Surge o conflito, à luz da

interpretação jurídica, se o bebé que «nasce sem vida» é sujeito de

direitos ou obrigações jurídicas, isto é, se é suscetível de

personalidade jurídica. Segundo os termos do Art. 66.º do Código

Civil, a personalidade jurídica das pessoas singulares adquire-se no

momento do parto com o nascimento com vida e completo. Sendo

assim, uma vez que o bebé «nasce sem vida» e é a vida no momento

do parto que dá o atributo jurídico da pessoa, então compreendese

que o bebé não é sujeito de direitos ou obrigações jurídicas, o

que limita o seu reconhecimento. Por outro lado, o Art. 24.º da

Constituição da República Portuguesa menciona que a “vida

humana é inviolável”, surgindo a questão na literatura do porquê

de não se considerar como vida humana ao produto da conceção

ainda in útero. Assim, apesar do estabelecimento de um vínculo

biológico e afetivo entre os pais e o feto, e vivência da gravidez até

ao termo, o seu reconhecimento pela lei em caso de perda no

momento do parto não é assim tão linear e claro.

4. A dor da Perda Perinatal

O processo de luto é definido pela reação de um indivíduo

perante a perda de ligação com algo significativo, sendo, por isso,

192


um momento dinâmico complexo que interfere com o próprio e

na relação com o que o envolve durante o seu desenvolvimento

(Santos, 2015) 198 . O luto por perda perinatal comporta

especificidades, uma vez que, não envolve apenas a perda do filho

como também, a perda de autoestima, do estatuto enquanto pais e

a perda do futuro que ambicionaram. Requer a adaptação a uma

nova realidade dolorosa em que o trabalho de luto é fundamental.

A vivência de um acontecimento inesperado intensifica o

choque da perda dolorosa para a díade familiar. A forma como a

dor é sentida diverge, alguns vivenciam-na de uma forma mais

rápida enquanto, que outros podem necessitar de um tempo de

luto mais longo. O facto de a sociedade ter dificuldade em

reconhecer a importância desta perda contribui para o

desenvolvimento/aumento de complicações como depressão,

ansiedade, stress, culpa e até mesmo a visão que os pais têm de si

próprios. Os psicólogos consideram ser essencial que a dor sofrida

seja vivida, sentida e falada no momento certo e na intensidade de

cada pessoa. Estabelecer uma rede de apoio, entre enfermeiros,

198

SANTOS, Daniela – A elaboração do luto materno na perda gestacional, Lisboa, Tese de

Mestrado, Universidade do Lisboa, 2015, pp. 1-2.

193


psicólogos, médicos, familiares e amigos, é fundamental neste

processo de luto e superação.

5. Faltas justificadas por motivo de falecimento

a. Os dias de luto concedidos em Portugal

A perda de alguém muito próximo requer uma adaptação

à nova realidade, cuja resposta e sentimentos variam de pessoa para

pessoa, sendo assim, o processo de luto algo individual e

complexo 199 . No caso da perda no momento do parto por

natimorto, trata-se de um momento inesperado e traumatizante

uma vez que, os pais não antecipam nem estão preparados para a

possibilidade desta dor. A relação biológica e afetiva que

construíram durante a gravidez é interrompida, o que requer uma

adaptação tanto individual, conjugal, familiar e social face à

perda 200 .

199

Serviço Nacional de Saúde Home Page – O meu luto, 2015, [Consultado em 15 Dez. 2021]

Disponível em: https://s-1.sns.gov.pt/wp-content/uploads/2018/06/B1_O-Meu-luto.pdf.

200

ALVES, Sofia – Perda Perinatal: perspetiva da díade parental, Coimbra, Dissertação de

Mestrado, Universidade de Coimbra, 2018, pp. 38-41.

194


O Art. 251.º do Código do Trabalho, retrata as faltas ao

trabalho em caso de falecimento do cônjuge, parente ou outro,

sendo que:

“O trabalhador pode faltar justificadamente:

o Até cinco dias consecutivos por falecimento do

cônjuge não separado de pessoas e bens ou de parente

ou afim no 1.º grau na linha reta;

o Até dois dias consecutivos por falecimento de outro

parente ou afim no 2.º grau da linha colateral;

o Aplica-se o disposto na alínea a) do número anterior

em caso de falecimento de pessoa que viva em união

de facto ou economia comum com o trabalhador nos

termos previstos em legislação específica.

o Constitui contraordenação a violação do disposto

neste artigo”

Assim, consta como direito do trabalhador, a falta

justificada, ou seja, a lei portuguesa confere o gozo de dias de luto

no caso de falecimento de um familiar que pode ser, de dois a cinco

dias, em função do grau de parentesco. No entanto, apesar desta

195


conceção legal, esta não contempla todos os graus de parentesco

ou relações afetuosas.

No caso dos parentes 201 ou afim 202 no 1.º grau na linha

reta 203 , cujo direito concedido por lei é o prazo de cinco dias

consecutivos de luto, abrangendo, por conseguinte,

marido/esposa, casal que se encontre em união de facto, pais,

filhos, sogros e genros/noras. No caso dos parentes ou afins no

2.º grau da linha colateral engloba irmãos, avós, bisavós, netos,

bisnetos e cunhados. Assim, ficam excluídos por lei, relações

familiares como tios, sobrinhos, primos, entre outros.

Desde 2009 que o Art. 251.º do Código do Trabalho não

sofria alterações, até que em setembro de 2021, a Acreditar –

Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro 204 , lançou

201

Decreto-Lei n.o 47344 – Código Civil, artigo 1578.º (Noção de parentesco) – “Parentesco é o

vínculo que une duas pessoas, em consequência de uma delas descender da outra ou de ambas

procederem de um progenitor comum”. progenitor comum”.

202

Decreto-Lei n.º 47344 – Código Civil, artigo 1584.º (Noção de afinidade) – “Afinidade é o

vínculo que liga cada um dos cônjuges aos parentes do outro”.

203 Decreto-Lei n.º 47344 – Código Civil, artigo 1581.º (Cômputo dos graus) – “1. Na linha reta há

tantos graus quantas as pessoas que formam a linha de parentesco, excluindo o progenitor. 2. Na

linha colateral os graus contam-se pela mesma forma, subindo por um dos ramos e descendo pelo

outro, mas sem contar o progenitor comum”.

204 A Acreditar é uma associação que tem como objetivo apoiar as crianças, jovens, pais e amigos

com cancro, proporcionando uma rede certa de apoio nos planos emocional, logístico, social outro

que as famílias necessitem.

196


uma petição a propor o alargamento do período de faltas

justificadas pela perda de um filho para vinte dias 205 .

Com o lema - o luto de uma vida não cabe em cinco dias -

conseguiram sensibilizar alguns partidos políticos que, por sua vez,

propuseram alterações legislativas. Inês de Sousa Real, deputada

do PAN, reconheceu a dor vivida pela perda de um filho,

sugerindo 20 dias de luto por perda de um filho ou para mães que

sofreram perda perinatal. Seguidamente, afirmou-se o deputado do

Bloco de Esquerda, José Moura Soeiro que, apesar de uma visão

um bocado diferenciada sobre os dias de luto por perda perinatal,

ao comparar com os outros partidos, este refere que 5 dias não são

certamente suficientes para o luto dos pais. Todavia, refere que

deve existir uma diferença entre os dias de luto para a perda de um

filho em vida e perda perinatal. André ventura, representante do

CHEGA, não propôs nenhum número para aumento ou

diminuição de dias de luto. Referiu, em parlamento, que a perda

perinatal é um tema pouco falado e ao qual deveria ser dado mais

importância, pedindo o reconhecimento do luto por perda

perinatal. Já o Partido Ecologista, representado por José Luis

Ferreira, expõe que existe uma lacuna na lei acerca da perda

205 PAULINO, Mauro; GABRIEL, Sofia – A petição: Luto Parental. Acreditar, Lisboa, 2021, p. 1.

197


perinatal, não sendo significativo, aos olhos da lei, a perda de um

feto, mencionando que esta deveria ser revista.

Em novembro de 2021, foi atingido consenso parlamentar

para o alargamento do período de cinco para vinte dias em

novembro de 2021. Após promulgação do Presidente da

República, a alteração é publicada a 3 de janeiro de 2022 com

entrada em vigor no dia seguinte, o Art. 251.º do Código do Direito

do Trabalho, passa a ter a seguinte redação:

“O trabalhador pode faltar justificadamente:

o Até vinte dias consecutivos, por falecimento de

descendente ou afim no 1.º grau na linha reta;

o Até cinco dias consecutivos, por falecimento de

cônjuge não separado de pessoas e bens ou de parente

ou afim ascendente no 1.º grau na linha reta;

o Até dois dias consecutivos, por falecimento de outro

parente ou afim na linha reta ou no 2.º grau da linha

colateral.

o Aplica-se o disposto na alínea b) do número anterior

em caso de falecimento de pessoa que viva em união

198


de facto ou economia comum com o trabalhador, nos

termos previstos em legislação específica.

o Constitui contraordenação grave a violação do

disposto neste artigo”.

Deste modo, esta alteração veio dar mais um passo

importante no reconhecimento do luto parental e “corrigir, na

medida do possível, uma injustiça da lei, uma vez que não consegue

corrigir a injustiça da vida” 206 . No entanto, apesar deste avanço

legislativo que consideramos bastante positivo, deixou por

resolver, nomeadamente, a inclusão do critério da perda perinatal

no direito ao acesso de dias de luto parental.

b. Uma breve visão sobre o Direito Comparado

Apenas no final do ano de 2021 é que Portugal conseguiu

dar um avanço, ainda que pouco significativo, no que respeita ao

luto parental, alargando o período de dias de luto de cinco para

vinte dias em caso de perda de um descendente ou afim no 1.º grau

na linha reta. Como Portugal, já vários países europeus nos últimos

anos têm estabelecido, no nosso entender, um período mais

adequado para o luto parental. Apesar do número de dias

206 Acreditar Home Page – O luto de uma vida não cabe em 5 dias. Acreditar, Lisboa, 2021.

199


facultados não ser uniforme em todos os países, caracterizam

avanços no reconhecimento desta dor, facilitando a sua

compreensão e dando espaço para o seu aprofundamento. Servem

de exemplo, a Irlanda que permite vinte dias, o Reino Unido com

catorze dias e a Dinamarca que consagra até vinte e seis dias 207 em

casos de luto parental.

No entanto, em Portugal, o luto por perda perinatal não

foi abrangido nas mais recentes alterações. Isto porque, apesar da

tentativa em alterar-se o quadro legislativo nesta matéria, visto que

em paralelo à mais recente alteração do Art. 251.º do Código do

Trabalho, foi levada à discussão, a eventual previsão de um período

de faltas justificadas, em caso de perda perinatal.

O PAN – Partido das Pessoas–Animais–Natureza,

apresentou o Projeto de Lei n.º 926/XIV/2.ª onde propunha a

concretização de uma licença de doze dias em caso de perda

perinatal. Pode ler-se naquele projeto a preocupação dada às

consequências da perda perinatal na vida dos progenitores que

inclui o sentimento de fracasso, o sofrimento emocional, a pressão

social e riscos para a saúde como ideação suicida, excessivo stress

e maior probabilidade de aparecimento de doenças cardíacas, entre

207 CUNHA, Bebiana; REAL, Inês; SILVA, Nélson – Projeto de Lei n.º 926/XIV/2.ª Altera o

regime de faltas por motivo de luto procedendo à décima sétima alteração ao Código do Trabalho,

aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro. Grupo Parlamentar PAN. Lisboa. 2021.

200


outros. Desta forma, apelavam à inclusão de um período de pausa

laboral justificada de doze dias na atual legislação, para que,

também estes pais tivessem direito a se adaptarem à nova dolorosa

realidade. Ou seja, apesar da existência de propostas, por parte dos

partidos políticos, para faltas justificadas perante a perda perinatal,

estas não avançaram. Sendo os principais critérios a segurança da

mulher e o nível de formação do feto, aponta, mais uma vez, para

a falta do reconhecimento por parte da lei, deste momento

doloroso na vida dos pais.

Assim, apesar do moroso desenvolvimento desta matéria,

temos assistido na Europa 208 , nos últimos anos, a um despertar

para a eventual necessidade de se concretizar um quadro legislativo

que contemple a concretização de dias de luto no caso de perda

perinatal. Pelo que, aguarda-se mais uma jornada até ser dado o

devido reconhecimento por lei deste tipo de dor em Portugal.

208 Em março de 2021, a Nova Zelândia tornou elegível a perda perinatal no direito parental a uma

licença remunerada de três dias. – Comunidade, Cultura e Arte Home Page – Nova Zelândia aprova

licença remunerada e direito a luto de três dias em caso de aborto espontâneo. Lisboa, 2021.

201


6. Notas conclusivas

O direito à concessão de faltas justificadas no caso de perda

perinatal no momento do parto retrata um tema atual e que não

reúne consenso. Trata-se de uma perda dolorosa por interrupção

de um vínculo afetivo e biológico construído ao longo da gravidez

e que não é reconhecido por lei, visto que o legislador português

não confere o direito ao processo de luto parental e familiar.

Conforme supra se expôs, apesar das recentes tentativas

para se considerar justificada a falta ao trabalho por perda perinatal,

o Art. 251.º do Código do Trabalho, a verdade é que não foi

atingido o desfecho proposto. Sendo certo que seja difícil que o

Código do Trabalho contemple a universalidade das situações, é

importante continuar a lutar pela inclusão desta perda no mesmo,

garantindo também um período de ajuste psicológico, físico e

social a estes progenitores.

Por conseguinte, acreditamos que o mais recente avanço

legislativo operado pelo legislador na Nova Zelândia venha

proporcionar uma maior abertura para a discussão e o debate

público sobre esta temática, de modo que possa impactar futuras

decisões. Assim como a Nova Zelândia, incluiu o natimorto dentro

do significado de nascimentos, óbitos, casamentos e lei de registo

de relacionamentos do código, contribuiu para desmistificar o luto

202


por perda perinatal. Aceitá-lo sem ser necessário recorrer a uma

licença médica por doença para justificar a falta laboral – “Porque

a dor deles não é uma doença, é uma perda. E a perda leva tempo”,

segundo a membro do Parlamento da Nova Zelândia Ginny

Andersen em 2021 209 .

Foi exatamente com esse mote que nos propusemos a

desenvolver o presente trabalho, e, nessa medida, contribuir para

o processo de desmistificação deste tema e enfatizar a importância

que é cabida ao Direito para a sua análise e discussão.

Dr.ª Rita Ferreira da Silva Loureiro

Estudante do 1.º ano do Mestrado em Gestão de Unidades de Saúde

da Universidade do Minho.

Dr.ª Carla Margarida Esteves Costa

Estudante do 1.º ano do Mestrado em Gestão de Unidades de Saúde

da Universidade do Minho.

209 ANDERSEN, Ginny – Holidays (Bereavement leave for miscarriage) amendment bill, New

Zealand Parliament, 2021, p. 2-4.

203


VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA: ESTUDO DE

CASO

Resumo:

A violência obstétrica gera significativa polémica pela divergência

de opinião entre as entidades de saúde em Portugal. A sua regulamentação

através do projeto de Lei n.º 912.XIV ainda não foi conseguida. Algumas

organizações de saúde evocam a inexistência de violência obstétrica 210 . A

ação ou omissão de práticas médicas não ditadas pela evidência científica

constituem crimes ou infrações deontológicas previstas nos códigos penal

e deontológico. Este estudo de caso visa analisar a violência obstétrica à luz

do Direito em Saúde. O resultado destaca a falta de consciencialização do

tema nos profissionais, as consequências tremendas que perpetuam na

mulher, o número residual destas que recorrem à justiça por falta de

recursos económicos e por desconhecimento dos seus direitos.

210

Ordem dos Médicos, 2021 - Parecer do Colégio da Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia

da Ordem dos Médicos sobre o Projeto de Lei n.º 912.XIV PAN 2021. [Consultado em:

20/08/2022]. Disponível in https://ordemdosmedicos.pt/wpcontent/uploads/2017/09/Esclarecimentos_Ginobst.pdf

. 2 MOREIRA, S., PARTICHELLI, P. &

BAZANI, A. – “A violência obstétrica e os desafios de se promover políticas de saúde efetivas”. In

Revista Diálogo da Editora Universidade LaSalle, 2019 (DOI:

http://dx.doi.org/10.18316/dialogo.v0i41.4822).

204


Palavras-chave:

obstétrica.

Parto; violação dos Direitos Humanos; saúde da mulher; violência

Sumário:

1. Violência obstétrica;

2. Caso Clínico;

3. Violência obstétrica;

3.1. Conceito e enquadramento jurídico;

3.1. Responsabilização civil e criminal;

4. Considerações finais.

205


1. Violência obstétrica

A violência obstétrica continua a ser uma forma de violência

pouco reconhecida em Portugal, definida como a violência contra

as mulheres no contexto da assistência à gravidez, parto e pósparto.

As formas mais correntes de violência obstétrica incluem

abusos físicos ou verbais, práticas invasivas, uso desnecessário de

medicação, intervenções médicas não consentidas, humilhação,

desumanização e recusa de assistência ou negligência pelas

necessidades da mulher.

Neste sentido, segundo o artigo de Moreira, S., Partichelli,

P. & Bazani a violência obstétrica pode ser entendida como “(…)

a inferiorização da mulher em relação ao género, à classe social, à

etnia ou ao grupo social, desqualificando a e submetendo-a a

intervenções médicas sem que sua autonomia seja respeitada, bem

como sem o seu consentimento acerca dos procedimentos a serem

realizados.” 211

A Declaração da OMS de 2014 refere: “(…) no mundo

211

Ordem dos Médicos, 2021 - Parecer do Colégio da Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia

da Ordem dos Médicos sobre o Projeto de Lei n.º 912.XIV PAN 2021. [Consultado em:

20/08/2022]. Disponível in https://ordemdosmedicos.pt/wpcontent/uploads/2017/09/Esclarecimentos_Ginobst.pdf

. 2 MOREIRA, S., PARTICHELLI, P. &

BAZANI, A. – “A violência obstétrica e os desafios de se promover políticas de saúde efetivas”. In

Revista Diálogo da Editora Universidade LaSalle, 2019 (DOI:

http://dx.doi.org/10.18316/dialogo.v0i41.4822).

206


inteiro, muitas mulheres sofrem abusos, desrespeito e maus-tratos

durante o parto nas instituições de saúde. Tal tratamento viola o

direito das mulheres ao cuidado respeitoso, mas também ameaça

o direito à vida, à saúde, à integridade física e à não-discriminação.

Esta declaração convoca maior ação, diálogo, pesquisa e

mobilização sobre este importante tema de saúde pública e

direitos humanos.” 212 .

Salientando a necessidade de “(…) começar, apoiar e

manter programas desenhados para melhorar a qualidade dos

cuidados de saúde materna, com forte enfoque no cuidado

respeitoso como componente essencial da qualidade da

assistência”.

Segundo Sílvia Badim Marques violência obstétrica vem a

ser entendida como toda violência física, moral, patrimonial ou

psicológica praticada contra as mulheres no momento do parto,

pós-parto e puerpério, sendo constatada em diversas práticas que

ocorrem nos sistemas de saúde, tanto público quanto privado 4 .

212

Organização Mundial de Saúde, 2014 - Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maustratos

durante o parto em instituições de saúde. [Consultado em 20/08/2022]. Disponível in

https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/106 65/134588/WHO_RHR_14.23_por.pdf. 4

MARQUES, S., “Violência obstétrica no Brasil: um conceito em construção para a garantia do

direito integral à saúde das mulheres”. Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário, Brasília,

9(1): jan/mar, 2020 (DOI: http://dx.doi.org/10.17566/ciads.v9i1.585).

207


Nesta perspetiva a problemática é reconhecida

mundialmente, sensivelmente desde 2014, com enfoque em

delinear medidas concretas nas políticas de saúde para minorar o

problema.

De acordo com Raylla Albuquerque e Natan Monsores,

embora a ocorrência de violência obstétrica seja multifatorial, as

principais práticas de violência referem-se a condutas não éticas,

na avaliação das mesmas 213 .

A violência contra a mulher é persistente e complexa,

assumindo diferentes formas no ambiente social. Segundo a OMS

(2014) a violência obstétrica é considerada como violação dos

direitos humanos “(…) apropriação do corpo da mulher e dos

processos reprodutivos por profissionais de saúde, na forma de um

tratamento desumanizado, medicação abusiva ou patológica dos

processos naturais, reduzindo a autonomia da paciente e a

capacidade de tomar suas próprias decisões livremente sobre seu

corpo e sua sexualidade, o que tem consequências negativas em

sua qualidade de vida".

213

ALBUQUERQUE, Raylla; MONSORES, Natan – “Violência Obstétrica e Bioética

à luz da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos”. In Revista Brasileira

de Bioética, volume 14, 2018. Disponível em:

https://periodicos.unb.br/index.php/rbb/article/view/24238

208


Considerando este fenómeno como global e atual, são

imensos os relatos sobre experiências vividas pelas mulheres

grávidas (especialmente no parto) que revelam um quadro

perturbador em que muitas mulheres experimentam abusos,

desrespeito, maus tratos e negligência nas instituições de saúde.

Em todo o mundo, a gravidez e o nascimento de um ser são

envoltos de momentos de grande vulnerabilidade quer pela mulher

quer pela família.

Partindo do pressuposto que a maternidade segura é

normalmente atribuída a condição física, ela está envolta de

inúmeros significados pessoais e culturais. A relação da mulher

com os profissionais de saúde e o sistema de saúde onde é

integrada durante este delicado período é crucial, considerando os

profissionais essenciais para garantir a saúde/segurança da mulher

e da criança.

A perplexidade do tema advém do impacto significativo da

capacitação e conforto por um lado e dos danos e traumas

emocionais por outro lado, esta relação pode ser potenciadora ou

destruidora da autoestima e da confiança de cada mulher.

A Organização Mundial de saúde (OMS) emitiu uma

declaração intitulada prevenção e eliminação de abusos,

desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de

209


saúde, onde afirma que “toda a mulher tem direito ao melhor

padrão atingível de saúde, o qual inclui o direito a um cuidado de

saúde digno e respeitoso. No mundo inteiro, muitas mulheres

sofrem abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto nas

instituições de saúde. Tal tratamento não apenas viola os direitos

das mulheres ao cuidado respeitoso, mas também ameaça o direito

à vida, à saúde, à integridade física e à não-discriminação. Esta

declaração convoca maior ação, diálogo, pesquisa e mobilização

sobre este importante tema de saúde pública e direitos humanos”.

Em Portugal o tema ganhou dimensão e visibilidade

quando um inquérito denominado “Experiências de Parto em

Portugal”, realizado pela APDMGP (Associação Portuguesa pelos

Direitos da Mulher na Gravidez e Parto), revelou que 43,5 por

cento das mulheres inquiridas não tiveram o parto que queriam.

Em 2017 é lançada uma petição pública “Pelo fim da

Violência Obstétrica nos blocos de parto dos hospitais

portugueses”, onde bastaram apenas três dias para ultrapassar o

número de assinaturas necessárias para ser submetida na

Assembleia da República 214 .

214

Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto, 2015 – “Experiências de

Parto em Portugal”. [Consultado em 20/08/2022]. Disponível in

210


Os relatos de quem vivenciou algum tipo de violência

obstétrica são frequentes a nível pessoal e profissional, no entanto

continuam a ser uma incógnita oficialmente. Com alguma

incompreensão apesar do desenvolvimento da medicina e

tecnologia são inúmeras as famílias que recordam os seus partos

por práticas que não se coadunam com as leges artis.

Em Portugal não existem condenações por violência

obstétrica, pois em termos de jurisprudência o conceito não é

reconhecido. Em julho de 2021, o Projeto de Lei 912/XIV/2.ª –

que visava reforçar a proteção das mulheres na gravidez e parto

através da criminalização da violência obstétrica, foi chumbado na

Assembleia da República. Foram solicitados pareceres a ordens

profissionais, onde por exemplo a Ordem dos Médicos nega a

existência desta situação no nosso país 215 .

215

http://www.associacaogravidezeparto.pt/wpcontent/uploads/2016/08/Experi%C3%AAncias_P

arto_Portug al_2012-2015.pdf.

7 Projeto de Lei n.º 912/XIV/2.ª de 2021. [Consultado em 20/08/2022]. Disponível in

https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=12103

6.

211


2. Caso clínico

Maria (nome fictício) com 36 anos de idade, autora do relato

ocorrido no mês de fevereiro no ano de 2021, num hospital

público, considerado um caso típico de violência obstétrica. A

partilha consentida da experiência vivenciada por esta constitui um

“fardo” possivelmente para o resto da vida.

“Decorreram 38 semanas de gestação de um

projeto de vida planeado e muito desejado, nunca

tinha estado grávida, primeiro filho, primeiro neto,

primeiro sobrinho, de uma família que ambicionada

ver aumentada. A gravidez foi vigiada e decorreu sem

qualquer intercorrência, senti-me muito bem grávida,

só me sentia enorme, a barriga cresceu imenso, sentiame

feliz e a família estava radiante. Um dia recorri ao

hospital por dor intensa na região pélvica seguida de

contrações, achando que o bebé ia nascer, chorei de

alegria, emoção ou medo, não sei, mas continuava

muito feliz, um misto de sensações que não consigo

explicar, o momento havia chegado de conhecer o

rosto escondido. Depois de muitas horas na expetativa

de um parto dito normal, ansiosa por conhecer aquele

lindo ser, tive um parto distócico com recurso a

212


espátulas. Nome que não conseguia associar a nada,

mas rapidamente senti que de “normal” não estava

nada a ser. Deste parto anormal resultaram

complicações que mudaram a minha vida até hoje,

uma laceração perineal de 3º grau e episiorrafia.

Perante tantas mudanças repentinas a linda bebe no

meu colo, recordo a voz da Sra. Enfermeira para a

Dra. apenas 24 horas depois do parto: “está

incontinente para fezes…” foi removida uma

compressa vaginal, e percebi que algo não estaria bem.

Não me explicaram o que se estava a passar e como

poderia vir a ficar. Aquando da alta apresentava

edema perineal e incontinência para gases com ligeira

perda e fezes e incontinência urinária para espirros. Na

consulta do puerpério (um mês pós-parto) referi ao

obstetra que mantinha incontinência, e que

apresentava alteração da fisionomia do períneo. Que

não me sentia bem com a minha imagem corporal,

que a minha região vaginal estava muito alterada, fui

encaminha para consulta de medicina física e

reabilitação que ainda hoje mantenho (fisioterapia).

Recentemente fui novamente à consulta da obstetra,

onde expliquei que estou melhor da incontinência,

213


mas ainda perco gases e urina, que mantenho penso

higiénico, que tenho alteração da fisionomia vaginal e

dor no ato sexual, onde a resposta que nem consigo

comentar “(…) é por baixo ninguém vê”.

Em novembro após 3 meses de fisioterapia

(reeducação do pavimento pélvico), mantenho perda

de fezes líquidas com hipotonia anal e diminuição da

contractilidade anal. Nunca idealizei o parto, só queria

ser mãe, sabia que as coisas mudam, mas nunca pensei

que o trauma me deixasse sequelas que me

acompanham para a vida”.

Este relato de trauma pós-parto refere-se apenas a um de

muitos auscultados de inúmeras mulheres que se encontram numa

situação de fragilidade e passam por momentos inqualificáveis de

descrever. Embora não reconhecido o termo violência obstétrica

por várias ordens profissionais de saúde será difícil de encontrar

um outro que melhor possa designar este caso, a não ser violência

obstétrica.

A vulnerabilidade da mulher no processo de parto está

relacionada, principalmente, com o desconhecimento sobre seus

direitos, seu corpo e sobre os tipos de assistência.

214


3. Violência obstétrica

3.1. Conceito e enquadramento jurídico

A violência obstétrica é um tipo de violência, de natureza

física ou psicológica, exercida sobre o corpo da mulher grávida

por profissionais de saúde durante a gravidez e o parto. Esta

constitui a violação dos Direitos Humanos Fundamentais

(reconhecido pela OMS em 2014). Em Portugal não sabemos

oficialmente como, quando e onde acontece a violência obstétrica.

Importa salientar que a Lei n.º 110/2019 de 9 de setembro

“estabelece os princípios, direitos e deveres aplicáveis em matéria

de proteção na preconceção, na procriação medicamente assistida,

na gravidez, no parto, no nascimento e no puerpério, visando a

sua consolidação, abrangendo os serviços de saúde do setor

público, privado e social, procedendo à segunda alteração à Lei n.º

15/2014, de 21 de março, que consolida a legislação em matéria

de direitos e deveres do utente dos serviços de saúde” 216 .

Apesar do desenvolvimento extraordinário da medicina

ainda existem famílias com traumas por práticas menos adequadas

216

Lei n.º 110/2019 de 9 de setembro.

215


no parto causadoras de danos irreparáveis, como por exemplo na

autoestima e imagem corporal.

Em Portugal não existem condenações por violência

obstétrica, uma vez que em termos de jurisprudência o conceito

não é reconhecido nem utilizado. Uma Deputada da Assembleia

da República levou a votação uma proposta de projeto de lei para

a criminalização desta prática, no entanto foram solicitados

pareceres a diferentes ordens profissionais.

A Ordem dos Médicos pronunciou-se negando a existência

desta situação no nosso país, “O termo violência obstétrica é

inapropriado em países onde se prestam cuidados de saúde

materno-infantil de excelência, como é o caso de Portugal”.

Concluindo que é crucial auditar estas situações da qual sabemos

muito pouco, sendo pertinente acompanhar os relatos das vítimas.

“Os direitos e deveres dos utentes do SNS estão

consagrados, nomeadamente, na Lei n.º 15/2014, de

21 de março, alterada pelo Decreto-Lei n.º 44/2017,

de 20 de abril, na Portaria n.º 87/2015, de 23 de março,

na Portaria 153/2017, de 4 de maio e no Despacho

n.º 5344-A/2016, de 14 de abril, publicado no Diário

da República n.º 76/2016, 1.º suplemento, Série II de

216


19 de abril” 217 .

Neste sentido a Carta dos Direitos do Utente identifica o

direito à adequação da prestação dos melhores cuidados.

3.2. A responsabilização civil e criminal

A responsabilidade civil ou penal pressupõe um ato ilícito. A

ilicitude é qualificada juridicamente como sendo o “juízo de

censura sobre o próprio facto (de um ângulo objetivo) por ele

consistir na infração de um dever jurídico”, gerando como

consequência uma sanção que pode ser de natureza punitiva ou

ressarcitória. Esta surge por forma a responsabilizar as pessoas

singulares e/ou pessoas coletivas pelos comportamentos positivos

(ações) ou negativos (omissões) que causem lesão a terceiro (o

doente).

A responsabilidade civil é marcada por um dano ou

“prejuízo sofrido lesão pelo lesado” que pode ser de natureza

patrimonial – artigo 564.º do Código Civil – e/ou não patrimonial

– artigo 496.º do Código Civil.

217 Lei n.º 15/2014 de 21 de março.

217


Perante estes factos a conduta do profissional de saúde no

contexto da violência obstétrica pode ser danosa por ação e/ou

omissão, quando não são respeitadas as leges artis, que consistem

no conjunto de regras científicas e técnicas que o profissional de

saúde tem obrigação de conhecer utilizar tendo em conta o estado

da ciência e o estado concreto do doente.

A responsabilidade penal é o dever jurídico de responder

por uma infração, ou seja, toda a conduta que gera uma lesão que

recai sobre a pessoa que praticou o ato. No entanto há a considerar

que enquanto a ilicitude civil, cometida pelo agente, se caracteriza

por ação ou omissão de forma voluntária com negligência e

imprudência, a ilicitude penal é cometida pelo agente por ação ou

omissão culpável que viola uma conduta do direito penal.

De uma forma sucinta quer a responsabilidade civil quer a

penal podem estar presentes em casos de violência obstétrica,

tanto individualmente como em simultâneo. Embora o parecer do

Colégio de Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia da Ordem

dos Médicos sobre o Projeto de Lei n.º 912/XIV/2 refere que “o

termo violência obstétrica é inapropriado em países onde se

prestam cuidados de saúde materno-infantil de excelência, como

é o caso de Portugal. (…) A violência obstétrica é apontada, por

todas as instituições idóneas, como um grave obstáculo à prestação

218


de cuidados materno infantis adequados e não como algo que deles

resulta. (…)”.

Desta forma como nomear os casos onde é evidente o não

cumprimento da leges artis na gravidez ou no parto?

A responsabilidade civil extracontratual do estado e pessoas

coletivas por factos ilícitos praticados pelos seus órgãos ou agentes

assenta nos pressupostos da idêntica responsabilidade prevista na

lei civil, que são: a ilicitude, a imputação do facto ao lesante (culpa),

o dano e nexo de causalidade entre o dano e o facto.

Partindo do pressuposto da definição de violência

obstétrica segundo a OMS, no caso retratado, são poderão

identificar-se vários indícios de responsabilidade civil

extracontratual pois este caso refere-se a um hospital público: “…

um parto distócico com recurso a espátulas, do qual resultou uma

laceração perineal de 3ºgrau e episiorrafia”.

Consequentemente poderá verificar-se a presença de danos morais

e físicos, o dano localiza-se no âmbito dos perigos que uma

conduta de acordo com as leges artis pretende evitar para afastar o

nexo de causalidade entre a violação do dever de cuidado e o

resultado que se verificaria ainda que tivessem sido cumpridas as

leges artis. Existe nexo de causalidade entre a ação do parto e a

219


situação indesejável de danos físicos e morais em que se encontra

a utente. Assim é considerado um erro grosseiro injustificável e

com resultados danosos.

Os danos morais são perpetuados pelo sofrimento físico e

psicológico. Face ao quadro que a utente apresenta, é evidente que

os procedimentos realizados conduziram ao sofrimento, angústia

e à impossibilidade de levar uma vida normal, entre outros -

“apresentava edema perineal e incontinência para gases com ligeira

perda e fezes e incontinência urinária para espirros”.

Neste caso é notória a ausência dos melhores e possíveis

cuidados de saúde, segundo a melhor e mais atual evidência

científica.

Identificamos algumas normas jurídicas nas quais poderá ser

enquadrado na violação da leges artis com ofensas à integridade

física nos artigos 143.º, 144.º e 148.º, do Código Penal com

agravamento do resultado pelo artigo 147.º do Código Penal.

O artigo 150.º do Código Penal estipula um regime

específico relativamente a intervenções e tratamentos médicocirúrgicos

“as intervenções e tratamentos que, segundo o estado

dos conhecimentos e da experiência da medicina se mostrarem

indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por

220


um medico ou outra pessoa legalmente autorizada com intenção

de prevenir, diagnosticar (…) não se consideram ofensas à

integridade física” ou seja, desta forma todo e qualquer tratamento

realizado segundo as leges artis não se consideram crime. 218

O caso retratado poderá representar um ato ilícito culposo,

por violação das leges artis, o comportamento dos profissionais do

hospital público (médico e de enfermagem) perante a situação em

que se deparavam, possivelmente, deviam ter optado pela

realização de um parto por cesariana e optaram pelo parto por via

vaginal, não adotando as práticas que se impunham.

Efetivamente na realidade portuguesa, não tendo sido

aprovado o Projeto de Lei 912/XIV/2 que reforçava a proteção

das mulheres na gravidez e parto através da criminalização da

violência obstétrica, existe o código penal que prevê matéria para

delitos médicos. São diversos os crimes abrangidos pelo código

penal português que podem responsabilizar os profissionais de

saúde no exercício da medicina.

Em boa verdade a evolução da prática da medicina é uma

218 Centro de Estudos Judiciários - Responsabilidade penal dos médicos. Enquadramento jurídico, prática e

gestão processual, 2021 [Consultado em 20/08/2022]. Disponível em

http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/penal/eb_RP_Medico_MP.pdf.

221


constante, caracterizada por uma enorme complexidade e por

inúmeros atos que dependem duma equipa e não de profissionais

individualmente, o que levanta inúmeros problemas em termos de

determinação de responsabilidade quando resulta numa ofensa

para o utente.

4. Considerações finais

A violência obstétrica constitui um tipo de violência de

género caracterizado, essencialmente, por uma apropriação do

corpo da mulher pelos profissionais de saúde durante a gravidez

e parto, envolvendo todos os profissionais que interagem com a

grávida. A OMS, desde 2014, reconhece que os maus-tratos

durante a gravidez e o parto constituem violação dos direitos

humanos fundamentais.

Inúmeras famílias continuam a recordar os partos com

práticas consideradas menos apropriadas perpetuando transtornos

para o resto da vida, sem reportarem a entidades competentes

considerando estes conceitos enraizados como práticas comuns.

Será de todo importante que as ordens profissionais (da saúde) e

as políticas de saúde construam indicadores que permitam

clarificar onde, quando e como acontece esta realidade de forma

222


a minimizar o fenómeno.

A ocorrência de violência obstétrica é multifatorial, as

principais práticas referidas pela participante referem-se a

condutas não éticas que violam a leges artis. Considera-se

fundamental a necessidade de promover discussão e reflexão sobre

a violência obstétrica no sentido de envolver profissionais de

saúde e comunidade para uma maior sensibilização e desta

problemática.

É emergente quebrar as teorias não fundamentadas com

evidência e paternalismo clínico, assegurando os melhores

cuidados, mantendo a autodeterminação das mulheres.

Permitindo desta forma interromper o ciclo de violência

institucionalizada e partilhar uma responsabilidade entre mulher e

profissional na tomada de decisão da sua saúde.

Em Portugal à luz do Direito não é reconhecido o termo

“violência obstétrica”, pelo que este é enquadrado no Código

Penal.

Uma tentativa de clarificar esta problemática deve envolver

a sociedade civil, as ordens profissionais e os políticos na definição

de estratégias para reconhecimento e regulamentação deste

conceito.

223


A realidade deste tema é uma constante, mas são poucas as

mulheres que recorrem à justiça para serem ressarcidas dos danos

sofridos. A justiça constitui um processo pouco célere e muito

dispendioso, o que não promove que as mulheres recorram a ela

para defender os seus direitos.

Após uma pesquisa contínua são escassos os acórdãos

relacionados com o tema. Apresentamos um exemplo, um

acórdão de 2012 sobre esta temática que remete para uma

condenação de um hospital público por não se ter verificado uma

conduta de acordo com as leges artis 219 .

Relativamente à responsabilidade do estado e a pertinência

da medicina e aos seus possíveis erros é necessário que haja uma

resposta: os cidadãos desejam-na, o estado deve-a e os tribunais

definem-na.

Dr.ª Maria Emília Simões

Mestre em Gestão de Unidades de Saúde, Escola de Economia e Gestão –

Universidade do Minho.

Especialista em Enfermagem de Reabilitação, Universidade Fernando Pessoa.

Licenciada em Enfermagem, Escola de Superior de Enfermagem de Viana do

219 Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 24 de maio de 2014, n.º 0576/10. Disponível

in

http://www.dgsi.pt/JSTA.NSF/35FBBBF22E1BB1E680256F8E003EA931/A37708EEE16E137

18025 7A10005169C9?OPENDOCUMENT&EXPANDSECTION=1#_SECTION1

224


Castelo.

Enfermeira Especialista no Aces Cavado I

Dr.ª Mariana Reis

Mestre em Gestão de Unidades de Saúde, Escola de Economia e Gestão –

Universidade do Minho.

Enfermeira no Hospital Trofa Saúde.

Licenciada em Enfermagem, Escola Superior de Saúde Vale do Ave –

Instituto Politécnico de Saúde do Norte.

Dr.ª Melanie Antunes

Mestranda em Gestão de Unidades de Saúde, Escola de Economia e Gestão –

Universidade do Minho.

Técnica Superior de Diagnóstico e Terapêutica Radiologia, Hospital de Braga.

Licenciada em Imagem Médica e Radioterapia, Escola Superior de Tecnologia

da Saúde de Coimbra – Instituto Politécnico de Coimbra

225


ESSAY COMPETITION 21/22:

Resumo:

Na Edição da Indagare 2022, consta ainda um conjunto de artigos

jurídicos que advêm da Essay Competition, edição 2021/22.

Sumário:

1. As Problemáticas Da Vida Intra-Uterina por André Rijo;

2. Dissertação: A Memória por Rita Barreira;

3. Preclusão Do Exercício Do Direito De Arrependimento Nos

Contratos Celebrados À Distância Em Caso De Manipulação

Excessiva Do Bem? por Helena Silva;

4. O Ensurdecedor Silêncio Do Dito Segredo De Justiça por

226


1. As Problemáticas da Vida Intra-Uterina por André Rijo:

Ao longo dos séculos tem-se questionado o que é a vida,

mais particularmente, o que é a vida humana. A partir de que

momento é que a vida intra-uterina passa a ser considerada vida

humana, se é que existe tal marco temporal. E se, quando passa a

ser vida humana, quais direitos lhe devem ser

reconhecidos/protegidos, principalmente face à vida extrauterina,

ou seja, após o nascimento. Não tendo em vista a esgotar

a temática, mas tão-só apresentar, de forma superficial, as

indagações principais que a revestem, decidi formular o respetivo

escrito.

Em pleno século XXI, o orador já não consegue mistificar

ou ludibriar o auditório sobre como a conceção humana se sucede,

antigamente atribuindo-lhe natureza sobrenatural, tendo esta

corrente de pensamento visto o seu declínio com a ascensão da

ciência médica. Dizendo-nos, a medicina, que há vida a partir do

momento em que o espermatozoide penetra o oócito, fundindose

os dois gâmetas opostos e independentes, resultando esta

fertilização no zigoto. Sendo, este último, uma nova vida individual

227


e autónoma dos seus progenitores, embora dependente da

progenitora e do seu útero para subsistir e se desenvolver 220 .

Ainda na área da medicina, com o Relatório Warnock

consegue-se subentender que o mesmo só reconhece vida humana

após o décimo quarto dia da conceção pois, até esta data, é

admitido o uso experimental do embrião humano. Este marco

temporal justifica-se com o facto de, até o décimo quarto dia, se

formarem os sistemas responsáveis pela proteção e nutrição que

o embrião necessita para se desenvolver. Outros autores

consideram que, apesar de já estarem formados os tecidos e os

órgãos, é a constituição e a atividade do sistema nervoso, vulgo

cérebro humano, que nos permite indicar a nível médico que

estamos perante vida humana 221 .

Noutra linha de pensamento, o Relatório-Parecer sobre a

Reprodução Medicamente Assistida (3/CNE/93), do Conselho

Nacional da Ética Para as Ciências da Vida, traz a debate o facto

de carecer de distinção a vida humana da vida pessoal. Indicando

que um embrião antes da nidação é vida humana, mas não é

220 “ O facto que deve ser notado acima de tudo é que este novo programa não é inerte, nem

«executado» por obra de órgãos fisiológicos maternos que se sirvam do programa da mesma maneira

como um arquiteto se serve de um projeto, como um esquema passivo – ele é um novo projecto

que se constrói a si mesmo e é, em si mesmo, o actor principal”.

221 Goldenring, John M. - The brain-life theory: towards a consistent biological definition of

humanness. In Journal of Medical Ethics. 1985, 1, págs. 198-204.

228


pessoa, devido a não poder ser entendido como indivíduo, por

ainda ser possível a sua divisão, resultando em gémeos

univitelinos.

A nível religioso, fugindo do dito tradicional em que, tanto

o corpo como a alma humana eram transmitidos aos embriões

pelos seus progenitores, surgiu a hipótese tomista. A mesma era

defendida por São Tomás de Aquino, dizendo-nos que embora a

parte física resulta-se dos seus progenitores, a parte espiritual, a

alma vinha diretamente de Deus. Embora estas duas partes

estivessem destinadas a se unir, a união estava dependente da

forma corporal, e até que tal se efetivasse o embrião apenas teria

uma alma animal, despida de qualquer racionalidade. Este período

temporal de união, entre a parte espiritual e a física, acontecia entre

o trigésimo e o quadragésimo dia, em consonância com a

purificação da mulher após o parto, nas escrituras bíblicas.

No campo da filosofia, a corrente behaviorista considera

que a única forma de se poder objetivar, com toda a certeza, que

estamos perante uma vida humana é através do seu

comportamento, ou seja, será um ser humano se se comportar

como ser humano. No entender desta corrente filosófica, não se

consegue compreender se o recém-nascido está ou não a ter

comportamento humano, para tal terá de ser a própria mãe a

229


reconhecer esse comportamento, ou seja, o reconhecimento da

vida humana ao recém-nascido estava pendente de o mesmo ser

acolhido pela mãe.

Do ponto de vista do direito, existe diversas

incongruências. O antigo código de Seabra revela-nos, no seu

artigo. 6.º, que só se adquiria capacidade jurídica a partir do

nascimento, estabelecendo o seu artigo 110.º que se tinha de nascer

com figura humana 222 . Atualmente, o art. 66.º do Código Civil

(C.C.) estabelece que a personalidade jurídica se adquire com o

nascimento completo e com vida. Contudo, o mesmo CC.

estabelece nos seus artigos 952.º e 2033.º direitos de doação e

sucessão respetivamente aos concepturos, e o seu artigo 1855.º

confere direito de perfilhação aos nascituros 223 . Sendo esta uma

das inconformidades dentro do ordenamento jurídico português

relativamente à proteção de direitos dos concepturos, visto que os

mesmos só existem in mente Dei 224 .

222 A necessidade de figura humana devia-se ao facto de, na Roma antiga se acreditar que das práticas

de zoofilia poderiam resultar fetos com características animal e humana, ou que um feto ter mais

ou menos membros não era normal, e que não era figura humana.

223 Neste sentido o A.C. do Supremo Tribunal de Justiça, Relator Pinto Monteiro, Processo n.º

04A2661.

224 Os nascituros em sentido amplo abrangem os nascituros em sentido stricto sensu e os concepturos.

Os primeiros são aqueles que já se encontram concebidos, mas ainda não nasceram, os segundos

são aqueles que ainda não estão concebidos, mas se presume que venham a ser e venham a nascer.

230


No seguimento das incoerências do ordenamento jurídico

português, temos as do código penal (CP.) com o CC. Que, nos

seus art. 140.º e 141.º o CP. penaliza quem ponha termo à vida

intra-uterina, consagrando a proteção do direito à vida e do direito

à integridade pessoal conforme previsto nos artigos 24.º e 25.º da

Constituição da República Portuguesa, mas que depois se encontra

em total oposição ao art. 66.º do CC. Visto que só se adquire

personalidade jurídica com o nascimento completo e com vida,

então não faz sentido jurídico a proteção do direito à vida e à

integridade física da vida intra-uterina, pois a mesma ainda não

nasceu e por isso não só não tem personalidade jurídica, como

também não é suscetível de ter direitos, em respeito pelo art. 66.º

e 67.º do CC.

Tendo, em seguida, surgido o art. 142.º do CP. permitindo

a interrupção da gravidez não punível, mediante certas condições,

que entre outros objetivos teve em vista a pôr termo ao aborto

clandestino que todos os anos ceifava a vida de milhares de

mulheres portuguesas. Contudo, entre outros civilistas, a Dra.

Stella Barbas que tem contribuído muito para o desenvolvimento

A título de exemplo relativamente aos concepturos, temos o facto de quando os avós fazem

testamentos onde constam doações a futuros netos que nem se encontram concebidos.

231


da bioética e da biotecnologia, no que se refere à pauta do direito,

defende doutrinalmente que existe personalidade jurídica a partir

do momento da conceção e que o nascituro, em sentido stricto

sensu, é dotado de personalidade jurídica, sendo o nascimento

apenas outro marco temporal como a puberdade.

Como se pode ver pela presente formulação, a vida intrauterina

suscita diversas questões médicas, filosóficas, socioculturais

e de direito, tendo este último de andar sempre a par de

todas as outras áreas, visto que o direito nasce das pessoas para as

pessoas.

232


2. Dissertação: A Memória por Rita Barreira:

Memória. Muitos de nós tomam-na como certa, intrínseca

e indissociável à nossa pessoa. A memória dos primeiros passos,

do primeiro dia de escola e de todos os dias após esses.

Construímos memórias, como pequenos tijolos que culminam no

edifício de cada um de nós. Mas esta também se revela enganosa,

ao ponto de nos lembrarmos da viagem feita há anos, mas não

possuirmos recoleção de onde pousamos as chaves do carro no

próprio dia.

As memórias são parte fundamental da nossa forma índole,

da nossa forma de ser e dos nossos valores e princípios. Poderei

dizer, não de forma la palissada que as memórias nos moldam e

toldam o nosso presente bem como o nosso futuro.

Várias são as vezes em que a memória nos atraiçoa e não

nos permite agir e reagir perante muitos dos estímulos e perceções

que recebemos. Somos frágeis e impotentes perante estas falhas,

como que a batalhar um adversário invisível, mas que a cada

impacto adquire impetuosamente poder sob nós.

Gostaria de realizar uma simples equiparação entre nós,

enquanto seres humanos e um puzzle, no qual as peças são as

memórias e o todo é a nossa personalidade, os nossos valores e os

233


nossos sentimentos. Esta comparação convida-nos a repensar

todas as decisões até então tomadas ao longo das nossas vidas. As

decisões pessoais e familiares, a fim de entender o porquê de estas

terem sido, por nós, tomadas. Interrogamo- nos frequentemente

relativamente aos “se” e os “talvez” que enfrentamos, para pouco

depois chegarmos à conclusão da inutilidade deste

questionamento; o passado e as memórias são irreversíveis e sem

estes, não seríamos o que somos hoje.

Muitas das nossas decisões são ditadas pelas memórias e

pelas noções que as mesmas nos transmitem, mesmo que por

vezes, erroneamente. “Quem conta um conto, acrescenta um

ponto”, diz-nos o famoso ditado popular. A distorção da memória,

mesmo que realizada de modo inconsciente, é uma problemática

real, amplificada pelo “diz que disse”, pela maldade e falsidade ou

até pela comunicação moderna, dos ecrãs. Daí advém a mentira, os

falsos testemunhos e as omissões, os verdadeiros “terroristas” do

exercício do Direito e transversais a todas as sociedades. As

memórias despem-se assim da inocência e originalidade, passando

a fabricações exageradamente fantasiadas. O apuramento da

verdade dos factos enfrenta males corruptivos como estes, pelo

que cabe aos juristas, tribunais e órgãos promotores da justiça o

dever de combatê-los.

234


Existe também a questão igualmente preocupante das

“memórias fabricadas”. O conceito de relembrar algo nunca vivido

na realidade é, de facto, um enigma dotado de paradoxalidade e até

hoje, irresolúvel. Graças a esta problemática, o campo jurídico

padece com a falta de confiança e a descrença nas suas capacidades,

pois a verdade dos factos é, nos dias de hoje cada vez mais

gratuitamente deturpada em função de conveniências.

Vivemos dia após dia agarrados à memória, de pessoas, de

acontecimentos, de coisas e de sítios.

Embalados na recordação dos “antigamentes”, desejamos

voltar para um tempo que não o nosso agora. Esquecemo-nos,

porém, que afinal, se as memórias se pudessem repetir, perderiam

a sua essência original e deixariam de o ser.

A saudade, uma palavra tão orgulhosamente portuguesa,

seria desta forma extinta. Muitas das nossas vivências, considero,

viverão melhor conservadas nos cofres da memória, dado que a

constante mudança é também inevitável ao ser humano e à

passagem do tempo. As memórias, sejam estas individuais ou

coletivas, funcionam como um refúgio inerte, um filme com vários

figurantes, mas como nós como o único espectador.

235


No âmbito do Direito, realizo um apelo à memória não só

da juridicidade portuguesa, bem como europeia e de todas as

nações mundiais. Enquanto seres humanos, batalhamos desde os

primórdios da nossa existência para a criação de um mundo

juridicamente livre. Note-se que, propositadamente, optei por me

abster relativamente à descrição do nosso mundo como “justo”,

por considerar essa classificação não só utópica como falaciosa,

dado que o exercício do Direito se alimenta primariamente da

injustiça que o Homem cultiva em sociedade.

Não existe, e atrevo-me a afirmar que nunca existirá

memória, em qualquer ponto da nossa História, de um sistema

jurídico perfeito e totalmente funcional, sem quaisquer lacunas

associadas. A idealização deste conceito encontra-se restrita aos

horizontes da imaginação de cada um, daquilo que se considera ser

o melhor para a comunidade. Thomas Moore, na obra Utopia,

realiza uma apologia à conceptualização de uma sociedade nos

moldes descritos, em que imperam a harmonia e paz, sendo por

isso mínima a ação do Direito. Todavia, também reconhece a

impossibilidade de alcançar na plenitude uma sociedade e sistema

jurídicos por si ficcionados, sustentando a tese anteriormente

explanada.

236


Enquanto agentes ativos da sociedade e defensores do

Direito, é nosso dever honrar a memória dos

avanços realizados pelos nossos antepassados nos campos

jurídicos, económicos, sociais e culturais, apontando para um

futuro que mais tarde, tenhamos orgulho em relembrar, tal como

dispõe o artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa:

“Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade

da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na

construção de uma sociedade livre, justa e solidária.”

A instalação da primeira universidade de Direito

portuguesa, a redação da nossa Constituição, a Revolução dos

Cravos, a abolição da pena de morte e, mais recentemente, o

reconhecimento do direito matrimonial a casais do mesmo sexo

são apenas alguns dos exemplos da nossa evolução enquanto país.

Internacionalmente, o Holocausto, a queda do muro de Berlim, ou

a Declaração Universal dos Direitos Humanos constituem

exemplos de memórias coletivas que moldaram a construção dos

sistemas jurídicos, da justiça e do Direito Internacional.

237


Todavia, acontecimentos recentes como a guerra entre a

Rússia e Ucrânia que atualmente assola o continente europeu

abalam o desejo e esperança por um futuro em que a dignidade da

pessoa humana e os direitos, liberdades e garantias das

comunidades se encontram salvaguardados. Portugal, numa

tentativa de solidariedade no sentido de ajudar os indefesos

afetados nesta guerra, disponibilizou, no campo jurídico, milhares

de profissionais em regime pro bono, que se voluntariaram para

prestação de apoio jurídico 225 . A ciclicidade característica da

História assombra o mundo, e junto acarreta recordações de

anteriores guerras e conflitos. As memórias do sofrimento, morte,

fome, pobreza e decadência tornam-se a cada momento mais

presentes, passando de recordações à realidade. Os esforços

hercúleos conjuntos realizados pelo resto do mundo para que tudo

não passe de uma distante memória demonstram como a

recordação possui o poder de unir nações em prol do bem comum.

A História do Direito, disciplina estruturante na formação

dos juristas, preocupa-se em orientar-nos na realização do seu

objetivo primordial; reconhecer e refletir sobre acontecimentos

transatos, utilizando a memória como ponto de partida. O passado

225 Informação baseada na página digital do Jornal Público, consultada pela última vez no dia

06/03/2022 às 18:03: https://www.publico.pt/2022/03/05/sociedade/noticia/1200-advogadosportugal-oferecemse-ajudar-ucranianos-1997720

238


surge, no Direito e na História, como ensinamento para o presente

e futuro. Aliás, a própria jurisprudência, doutrina e os diversos

textos jurídicos do nosso ordenamento assentam todos no mesmo

pressuposto, a memória. A lembrança de antigas sentenças, de

perspetivas de magistrados, juristas e pensadores ou a

rememoração de diferentes sistemas jurídicos históricos

constituem fatores determinantes para a construção do Direito tal

como o conhecemos.

Concluo com os versos do poeta pintor da realidade,

Fernando Pessoa: “Vivemos da memória, que é a imaginação do

que morreu/da esperança, que é a confiança no que não existe/do

sonho, que é a visão do que não pode existir.”

239


3. Preclusão Do Exercício Do Direito De Arrependimento Nos

Contratos Celebrados À Distância Em Caso De Manipulação

Excessiva Do Bem? por Helena Silva:

O direito de arrependimento é um direito subjetivo e de

origem legal em que, de uma maneira geral, o consumidor tem a

faculdade de, unilateralmente e sem a necessidade de motivação,

no prazo de 14 dias, desvincular-se de um contrato que não

corresponde às expectativas geradas ab initio, o exercício deste

direito não acarreta custos para o lado do consumidor e, esta

desnecessidade pecuniária associada ao exercício, por vezes, traz

com ela abusos por parte do consumidor. Em Portugal, os

profissionais apresentam algumas ressalvas ao exercício deste

direito quando, nos deparamos com a solução moderada,

constante na lei portuguesa, para os casos de manipulação

excessiva do bem.

Neste sentido, hodiernamente, decorre da conjugação das

normas dos n.ºs 1 e 2 do art. 14.º do DL n.º 24/2014, que o

consumidor, enquanto proprietário do bem adquirido, pode

licitamente manipular a coisa para verificar a sua natureza,

características e funcionamento, desde que tal inspeção e utilização

não exceda aquela que habitualmente é admitida em

estabelecimento comercial. Porém, extrai-se, ainda, da solução

240


plasmada no mesmo n.º 2 que, mesmo nos casos em que há um

manuseamento excessivo do bem, o consumidor continua a dispor

do seu direito de livre arrependimento, pelo que o profissional não

se opor ao exercício de tal prerrogativa unilateral pelo consumidor,

quedando-se pela mera faculdade de reclamar tutela reparatória

pela depreciação do bem causada pela ação do consumidor 226 .

226 Sob pontos 46. e 47. das conclusões da advogada-geral Verica Trstenjak apresentadas, em

18.02.2009, no Processo C-489/07 (Pia Messner contra Firma Stefan Krüger) do TJUE, relativo a

pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Amtsgerichts Lahr (Alemanha), desenvolve-se, com

particular interesse, a distinção entre “uso” e “prova”, nos seguintes termos: “Na noção de prova

inclui-se o ver, o provar e também o testar. Com efeito, tendo em conta diversos bens, como por

exemplo o vestuário ou os equipamentos técnicos, a apreciação das características do uso é

igualmente parte integrante de uma decisão de compra. Uma especificidade estrutural do comércio

à distância reside no facto de, nesta matéria, não haver à disposição um objecto ou equipamento

para demonstração, assumindo antes o próprio objecto da venda esta função. Por exemplo, no caso

da prova de vestuário e de calçado, está em causa não apenas ver o bem, mas também vesti-lo e

usá-lo a título de prova. No caso da compra à distância de um automóvel, o ensaio de condução,

como sucede com a compra num estabelecimento comercial, também não deveria ser considerado,

desde logo, como uma situação de uso por parte do comprador. O exemplo do automóvel é

especialmente eficaz, uma vez que, no caso de um veículo novo, a primeira matrícula necessária

eventualmente para um ensaio de condução envolve já, em regra, uma diminuição do valor, que a

doutrina indica como sendo de cerca de 20% e que, além disso, implica que o automóvel seja

posteriormente considerado um veículo usado”. E mais se acrescenta, em seguida: “As marcas

eventualmente deixadas ao provar e ao examinar o bem não devem, em princípio, ser equiparados

às marcas deixadas pelo uso. Trata-se de marcas que podem igualmente produzir-se ao provar o

bem no estabelecimento comercial, fora do âmbito do comércio à distância, e que, regra geral, não

conduzem à obrigação de indemnizar, desde que não se verifique a existência de qualquer dano. Em

cada caso concreto, a questão de saber se o valor se alterou mediante a prova ou o uso e se (e a que

preço) o produto pode voltar a ser vendido após a devolução, depende das características e da

241


Ora, esta opção legislativa não merece aceitação unânime,

na medida em que, de acordo com a posição de alguns

profissionais, encerra uma excessiva proteção do consumidor, sem

atender suficientemente ao interesse, igualmente legítimo e digno

de tutela, de promoção da competitividade das empresas.

Desenvolvendo um pouco mais o argumento expendido pelos

profissionais, depois de uma utilização de forma usual, que não se

limita, portanto, à mera experimentação, e ao fim do prazo de 14

dias, o bem acaba por sofrer, inevitavelmente, um desgaste

decorrente da manipulação frequente, não apresentando,

necessariamente, a mesma qualidade e desempenho que ostentava

inicialmente. Neste conspecto, se admitido o exercício do direito

de arrependimento até ao termo dos 14 dias, os profissionais que

queiram reintegrar o bem no mercado terão de criar um mercado

próprio de bens usados, dado que, se colocarem o bem usado à

venda num mercado que se destina à venda de bens novos, estão

sujeitos a incorrer em responsabilidade por não cumprimento do

contrato, uma vez que tal prática configuraria uma venda de coisa

natureza do bem em causa. O risco implícito de uma diminuição do valor, em caso de uma compra

no estabelecimento comercial, recai, em princípio, sobre o vendedor, que tem à disposição, em

muitos casos, um equipamento ou um objecto para demonstração. Uma especificidade do comércio

à distância, que se apresenta de forma distinta do ponto de vista estrutural, consiste no facto de esse

risco não resultar de uma situação que precede à compra, mas sim apresentar-se após a compra e a

entrega do bem.” [sublinhados nossos].

242


desconforme. Porém, não pode ignorar-se que nem todos os

profissionais têm a possibilidade e a capacidade de criar um

mercado de bens usados.

Nesta senda, e em apoio dos argumentos que atestam em

favor dos profissionais, a proposta de Diretiva do Parlamento

Europeu e do Conselho, com a referência COM(2018) 185 final,

datada de 11.04.2018 227 , veio reconhecer, sob considerando (35)

que “[a] obrigação de aceitar a devolução desses bens cria

dificuldades aos profissionais, que são obrigados a avaliar o «valor

depreciado» do bem devolvido e a vendê-las como bens em

segunda mão ou a desfazer-se deles. Distorce o equilíbrio entre um

elevado nível de defesa do consumidor e a competitividade das

empresas, prosseguido pela Diretiva 2011/83/UE”. E como

solução para os casos em que há uma utilização mais do que o

necessário para verificar a natureza, características e

funcionamento do bem por parte do consumidor, por considerar

que a obrigação vigente de aceitar a devolução constitui um

“encargo desproporcionado para os profissionais” (considerando

(33)), esta proposta apontava no sentido da supressão do direito de

227 Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho que altera a Diretiva 93/13/CEE

do Conselho, de 5 de abril de 1993, a Diretiva 98/6/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, a

Diretiva 2005/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho e a Diretiva 2011/83/UE do

Parlamento Europeu e do Conselho, a fim de assegurar uma melhor aplicação e a modernização das

normas da UE em matéria de defesa do consumidor, disponível em https://eur-lex.europa.eu/legalcontent/PT/ALL/?uri=COM:2018:0185:FIN.

243


arrependimento aos consumidores, mediante o aditamento de uma

alínea n) ao art. 16.º da Diretiva 2011/83/UE, que trata das

«Exceções ao direito de retratação», a qual tomaria a seguinte

redação: “Os Estados-Membros não conferem o direito de

retratação previsto nos art. 9.º a 15.º relativamente aos contratos

celebrados à distância e fora do estabelecimento comercial no

tocante: (…) n) Ao fornecimento de bens a que o consumidor

tenha dado qualquer utilização, dentro do prazo de retratação, que

exceda o necessário para verificar a natureza, as características e o

funcionamento desses bens”.

Apesar de a mesma não ter conhecido a luz do dia, os

ditames desta concreta proposta deve fazer-nos refletir sobre o

possível golpe que estaria a ser dado sobre os elementos que

notabilizam o direito de arrependimento e o fazem diferenciar-se

das figuras afins já acima mencionadas.

Desde logo, destaca-se o ataque à sua unilateralidade, isto

porque, ao recusarmos o acesso ao direito de arrependimento

apenas quando o bem é, supostamente, utilizado de forma

excessiva por parte do consumidor, continuando a vigorar, de

forma incólume, quando o bem está de acordo com um

manuseamento que é geralmente tolerado em estabelecimento

comercial, acabamos por ter uma intervenção por parte do

244


profissional no que diz respeito ao exercício deste direito, porque

o mesmo terá sempre uma palavra a dizer sobre o estado em que

o bem é devolvido e, por essa via e no limite, sobre a legitimidade

da desvinculação pretendida pelo contraente mais débil da relação

de consumo. Em termos mais sintéticos, o direito de

arrependimento passaria a revestir natureza bilateral, o que, com o

devido respeito, cremos implicar uma mudança de paradigma

bastante radical, idónea, mesmo, a colocar em causa as finalidades

últimas que presidiram à criação da figura objeto do nosso estudo.

Ademais, a solução ora em equação também desvirtuaria o

caráter imotivado (ou ad nutum) do direito de arrependimento, pois

mesmo que o consumidor pudesse dirigir a sua declaração de “livre

resolução” ao profissional, sem invocação de qualquer razão

atendível, caso o profissional se oponha a tal vontade de

desvinculação com fundamento no manuseamento excessivo do

bem, o consumidor vê-se colocado na contingência de ter de se

defender e ser forçado a fundamentar a sua declaração de “livre

resolução”.

Em extrema síntese, caso esta proposta viesse a ser

acolhida pelo Direito da União Europeia e pelos ordenamentos

jurídicos de cada um dos Estados-Membros da UE, o direito de

arrependimento passaria a ser apenas tendencialmente unilateral e

245


imotivado, o que, a nosso ver, não promoveria uma melhor

aplicação e modernização das normas da UE em matéria de defesa

do consumidor, antes representaria um preocupante retrocesso

face ao caminho já trilhado no sentido do reforço dos direitos dos

consumidores.

246


4. O Ensurdecedor Silêncio Do Dito Segredo De Justiça por

Eduardo Botelho:

A questão do Segredo de Justiça sempre foi bastante

controversa. Sobre a sua existência, há inclusive alguma

divergência doutrinária. O que é facto é que, com o crescimento

exponencial dos meios de comunicação social, com o rápido e fácil

acesso a diversas fontes de informação, a controvérsia

relativamente ao tema tem aumentado.

A violação do sigilo judiciário é punível por Lei com pena

de prisão até dois anos ou com multa até 240 dias, plasmado no

Artigo 371.º do Código Penal. No entanto, assistimos

sistematicamente a arguidos de grandes casos mediáticos, digamos,

de colarinho branco, que apontam o desrespeito pelo Segredo de

Justiça, por parte de diversos órgãos de comunicação social. Esta

prática está tão presente no quotidiano que acaba por ser

menosprezada, colocando em causa a celeridade e o bom

funcionamento dos processos.

Devemos assim problematizar a questão e refletir sobre

este mecanismo. Será que manter o Segredo de Justiça ainda faz

sentido? E, se sim, em que moldes? É evidente que os casos mais

mediáticos, os megaprocessos (como são muitas vezes apelidados),

têm como arguidos personalidades com grande influência nos mais

247


diversos setores, desde a economia à política. Neste sentido, o

mecanismo do Segredo de Justiça é fundamental quando este é

respeitado. A investigação, sobretudo na sua fase inicial, tem maior

probabilidade de se realizar sem incidentes, preservando os meios

de prova e conservando a identidade de eventuais atores no

processo. É de referir que os arguidos gozam de uma presunção de

inocência, assente na máxima In Dubio Pro Reo. Assim, até existir

uma sentença que condene efetivamente o arguido, este é inocente.

Esta é, obviamente, uma presunção ilidível.

Com a excessiva fuga de informação que deveria ser

preservada, podemos incorrer em juízos falaciosos e em

condenações na praça pública que em nada beneficiam a Justiça. O

princípio da legalidade, o princípio da separação de poderes e o

princípio da reserva da função jurisdicional, são pilares

fundamentais de um Estado de Direito.

O Segredo de Justiça pode ser requerido quer pelo arguido,

quer pelo réu, devendo estes expor os motivos pelos quais

consideram que o processo deve ser sujeito a este mecanismo.

Cabe ao Juiz de Instrução Criminal decidir se efetivamente o

processo justificará o Segredo de Justiça, tendo também o

Ministério Público direito a se pronunciar sobre a questão.

248


A grande problemática que se coloca na atualidade consiste

no conflito entre dois pilares fundamentais de um Estado de

Direito Democrático. Por um lado, temos a questão das liberdades

de expressão e de imprensa (previstos sobretudo nos artigos 37.º e

38.º da Constituição da República Portuguesa) e, por outro, temos

o Segredo de Justiça (Artigo 86.º do Código do Processo Penal) e

o Princípio da Reserva da Função Jurisdicional (Artigo 20.º da

Constituição da República Portuguesa). No âmbito dos Direitos

Fundamentais, sabemos que, quando existe um conflito entre dois

direitos basilares de um Estado de Direito Democrático, deverão

ser realizados todos os esforços no sentido de os harmonizar. Em

ultima ratio, deverá o Juiz proferir se a desaplicação de um destes

preceitos é a solução. A linha que separa o Segredo de Justiça da

fuga de informação é ténue e bastante polémica na maior parte dos

casos. Sabemos que a proliferação de dados por parte dos media é

inevitável, tal como a coexistência entre a Justiça e a comunicação

social. Assistimos com frequência ao que pode ser percebido como

uma investigação quase pericial por parte dos meios de

comunicação social. São facultadas escutas, os visados são

acompanhados diariamente nos processos. É uma autêntica

investigação ao “som das luzes”.

No entanto, comprovamos que a imprensa, em alguns

casos, se antecipa à própria justiça. Mesmo antes da fase de

249


inquérito, os mass media já dispõem de variados dados. Uma vez que

esta investigação mediática pode acontecer numa fase préprocessual,

torna-se ambíguo o argumento da violação do Segredo

de Justiça, já que este ainda não ganhou escopo. Outro caso, com

outra relevância jurídica, ocorre quando a comunicação social

interfere diretamente no núcleo duro do processo. Aquando da

fase inquisitória, são reveladas escutas e outros meios de prova que

deviam ser mantidos em sigilo judicial.

Deste modo, assistimos, por parte de alguns meios de

comunicação social, a uma mediatização excessiva e à elaboração

de juízos de valor antecipados, acicatando o público relativamente

a processos de grande relevância social. São frequentes uma certa

demagogia e sensacionalismo. Com a massificação da informação

a que assistimos nos dias de hoje, alguns canais de informação

parecem querer destacar-se pelo supérfluo, diria até mesmo pelo

ócio informativo. Extravasam certas linhas e domínios que

ultrapassam o razoável, como no caso em apreço, o próprio

Segredo de Justiça.

O investimento em equipamentos e softwares de ponta

que permitam efetuar as diligências de forma segura deverá ser uma

das grandes preocupações da Justiça. Este investimento iria mitigar

250


o risco de fuga de informação digital, que coloca imensas vezes em

causa o desenvolvimento dos processos.

A morosidade e a teia burocrática que compõem o sistema

judicial português são reconhecidas de forma quase unânime.

Assim, este jogo da violação, ou não, do Segredo de Justiça pode

ser ainda mais um elemento que pode retardar a conclusão dos

processos.

Neste sentido, cabe a nós, cidadãos e consumidores de

informação, não fazer juízos de valor prévios. Devemos

acompanhar de forma atenta e sistemática o desenrolar do

processo pelos órgãos jurisdicionais. Simultaneamente, é do nosso

interesse procurar informação em diversas fontes fidedignas e

tentar estabelecer paralelismos para alcançar uma maior

aproximação à veracidade dos factos.

Por fim, cabe também às entidades da comunicação social

o papel de filtrar e expor assuntos e temáticas que não cedam

excessivamente ao mediatismo. A excelência, a factualidade e o

rigor são também virtudes que são apreciadas pelo leitor e

seguramente valorizadas e reconhecidas pela comunidade.

251


Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!