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INDAGARE
REVISTA JURÍDICA
2022
INDAGARE
REVISTA JURÍDICA
2
Ficha técnica
Direção “INDAGARE- Revista Jurídica”:
Ana Lira
Bárbara Inês de Matos
Carolina Costa
Catarina Pereira
Diana Gusmão
Helena Antunes
Mateus Vasconcellos
Rita Barreira
Sofia Lucas
Comissão Científica:
Prof. Dra. Anabela Gonçalves
Prof. Dra. Andreia Barbosa
Prof. Dra. Andreia Oliveira
Prof. Dra. Alessandra Silveira
Prof. Dra. Bárbara Bravo
Prof. Dra. Cristina Dias
Prof. Dra. Eva Sónia Moreira
Prof. Dra. Isabel Fonseca
Prof. Dra. Joana Aguiar
3
Prof. Dra. Joana Covelo
Prof. Dra. Maria Assunção Pereira
Prof. Dra. Maria Irene Gomes
Prof. Dra. Rossana Martingo
Prof. Dr. Américo Morais
Prof. Dr. Conde Monteiro
Prof. Dr. Jacob Morais
Prof. Dr. João Vilas Boas Pinto
Prof. Dr. Marco Gonçalves
Prof. Dr. Mário Monte
Prof. Dr. Nuno Oliveira
Prof. Dr. Serafim Froufe
Mestre João Nuno Barros
Mestre Patrícia Borges
Capa e produção gráfica:
Bruna Lima
Isabel Osório
Formatação e edição:
Ana Lira
Carolina Costa
Catarina Pereira
4
Diana Gusmão
Rita Barreira
Sofia Lucas
Editora:
ELSA UMINHO
Escola de Direito da Universidade do Minho, Campus de Gualtar,
Sala 10
4710-057 Braga, Portugal
indagare@elsauminho.pt
Tel: +351 253 601 867
Impressão:
Viana & Dias
ISSN: 2183-8763
A reprodução desta obra, em todo ou em parte, carece do
consentimento da Direção da INDAGARE e dos seus autores.
Braga, 31 de Janeiro de 2023
5
6
ÍNDICE
1. A Proposta De Regulamento Da União Europeia Sobre A
Inteligência Artificial – A Importância De Uma Abordagem
Equilibrada por Dr.ª Gabriela Antunes Araújo;
2. Análise Crítica Da Proposta De Regulamento Sobre Inteligência
Artificial: A Fragilidade Dos Direitos Fundamentais por Filipa
Barros Oliveira Cerqueira
3. Breve Análise À Proposta De Regulamento Da União Europeia
Sobre A Inteligência Artificial por Dr.ª Catarina Silva Lêdo;
4. Inteligência Artificial E (In)Compatibilidade Com Os Direitos
Fundamentais: Implicações Da Covid-19 por Ana Teresa Cruz;
5. Inteligência Artificial E A Decisão Judicial: Sistema De Justiça No
Rumo Certo? por Liliana Valente;
6. Da Proposta De Diretiva Do Parlamento Europeu E Do Conselho
Relativa Ao Dever De Diligência Das Empresas E À
Responsabilidade Empresarial À Proposta De Diretiva Da
Comissão Europeia Relativa Ao Dever De Diligência Das
Empresas Em Matéria De Sustentabilidade por Gabriela
Duarte;
7. Desafios Da Proteção De Dados Em Telessaúde por Dr.ª Ariana
Daniela Fernandes Ribeiro Cunha, Dr.ª Juliana Filipa
7
Marques Lima, Dr.ª Maria Armanda Marinho Rodrigues e
Dr.ª Paula Cristina Moreira Sampaio;
8. Enquadramento Legal Do Acesso Às Técnicas De Procriação
Medicamente Assistidas Em Portugal Por Casais Do Mesmo
Género por Dr.ª Mónica Sofia Maciel Carvalho;
9. O Eventual Direito A Faltar Por Perda Perinatal por Dr.ª Rita
Ferreira da Silva Loureiro e Dr.ª Carla Margarida Esteves
Costa;
10. Violência Obstétrica: Estudo De Caso por Dr.ª Maria Emília
Simões, Dr.ª Mariana Reis e Dr.ª Melanie Antunes;
Essay Competition 21/22:
1. As Problemáticas Da Vida Intra-Uterina por André Azenha
Rijo;
2. Dissertação: A Memória por Rita Pereira Barreira;
3. Preclusão Do Exercício Do Direito De Arrependimento Nos
Contratos Celebrados À Distância Em Caso De Manipulação
Excessiva Do Bem? por Helena Isabel Silva Pereira;
4. O Ensurdecedor Silêncio Do Dito Segredo De Justiça por Eduardo
Botelho Cardoso Rebelo Ferreira;
8
9
10
Nota Introdutória aos textos desenvolvidos com base no
Projeto «Análise crítica da Proposta de Regulamento sobre
Inteligência Artificial», candidato ao Prémio de Iniciação à
Investigação Científica)
Justificava-se uma explicação relativamente à publicação dos
textos que se seguem.
Como é do conhecimento geral, a Universidade do Minho tem
vindo a promover a investigação científica já desde a Licenciatura,
tentando motivar os estudantes a não se deixar ficar pela estrutura
curricular dos cursos, mas começando, desde logo, a
explorar novos horizontes e a desenvolver o seu espírito crítico e
criatividade. Assim, mais uma vez, lançou o Prémio de Iniciação à
Investigação Científica, aprovado pelo Despacho RT-12/2020. Este
Prémio admitia candidaturas de estudantes de Licenciatura que
fossem integrados em Projetos de Investigação em curso nas
Unidades Orgânicas.
A Escola de Direito lançou uma Call para apresentação de
candidaturas, disponibilizando aos seus estudantes – das
Licenciaturas em Direito e em Criminologia e Justiça Criminal –
três temas inseridos em Projetos em curso no nosso Centro
11
de Investigação, o JusGov – Centro de Investigação em Justiça e
Governação.
Os Projetos propostos na Call, que em seguida se
reproduz, foram os seguintes: “
1) «Análise crítica da Proposta de Regulamento sobre
Inteligência Artificial». O projeto consiste em analisar
criticamente os desafios que a IA coloca ao Direito em
variadíssimas áreas, discutindo eventuais soluções e
novas propostas de legislação no domínio da IA. O
objetivo principal será a elaboração de um artigo em
coautoria com a IR e/ou outro membro da equipa de
acompanhamento, a publicar em revista internacional
com peer-review. A investigação será supervisionada pela
Prof.ª Doutora Eva Sónia Moreira da Silva, investigadora
responsável pelo projeto.
2) «eUjust “O Contencioso da União Europeia e a cobrança
transfronteiriça de créditos: compreendendo as soluções
digitais à luz do paradigma da Justiça eletrónica europeia».
O projeto visa analisar o impacto, na boa
administração da justiça, do paradigma da justiça
eletrónica na UE. Para além da sensibilização dos
estudantes para novos paradigmas associados à justiça e
12
que tornam a integração judiciária europeia mais
visível, ao permitir a interação reflexiva entre os juízes
dos vários EM e destes com o TJUE, numa dinâmica
Projectbased learning, o projeto tem por objetivo
detetar, na prática judiciária europeia, pistas de
reflexão concretizadoras das políticas públicas que
conduziram à justiça eletrónica. A investigação será
supervisionada pela Prof.ª Doutora Joana Covelo de
Abreu, investigadora responsável pelo projeto.
3) «Desenvolvimento sustentável e tributação – a abordagem
jurisprudencial». O projeto consiste em identificar os
termos em que a relação entre tributação e
desenvolvimento sustentável é suscetível de ser
estabelecida, procurando se, essencialmente, aferir,
partindo da jurisprudência relevante, se os tributos têm
ou não sido concebidos à luz de uma conceção utilitarista,
que os assuma como instrumentos ao serviço da
concretização do desenvolvimento sustentável. O
objetivo é apresentar a resposta às questões identificadas
num artigo (escrito em coautoria com elemento(s) da
equipa de acompanhamento). A investigação será
13
supervisionada pelo Prof. Doutor João Sérgio
Ribeiro, investigador responsável pelo projeto”.
Ora, quando a Senhora Diretora do JusGov, a Senhora Prof.ª
Doutora Maria Miguel Carvalho, me lançou o desafio de orientar
um estudante de Licenciatura a apresentar uma candidatura ao
Prémio, uma vez que era a IR (Investigadora Responsável) do
Projeto IA & Robótica – Desafios para o Direito do Século XXI, acedi
de muito bom grado, até porque sempre imaginei que seria um
tema de interesse dos estudantes, mas nada me faria imaginar a
adesão espantosa que este teria. Tive a penosa tarefa de ter de
selecionar apenas um estudante de entre os dez (!) que se
candidataram.
Foi muito difícil.
Foi necessário avaliar do mérito e das capacidades de cada um,
pelo que desafiei as dez candidatas a apresentar shortpapers sobre o
tema, após lhes ter fornecido alguma bibliografia base. Os
trabalhos que fizeram – em tempo de avaliação e de exames! –
foi meritório, ao ponto de ser uma injustiça não lhes reconhecer
visibilidade.
14
Assim, lancei às candidatas, que – com grande pena minha –
tive de excluir, um desafio: desenvolver os seus shortpapers para
publicação na Indagare, revista editada pela ELSA-UMinho, a
quem, desde já parabenizo e agradeço por terem acolhido
esta iniciativa.
Os resultados constam das páginas que se seguem. Espero,
sinceramente, que inspirem mais e mais colegas a abraçar a
investigação, a aceitar desafios, porque os vossos contributos, um
dia, poderão ajudar a melhorar o mundo.
As vossas colegas estão de parabéns! Em época de exames, em
estreita colaboração comigo, mostraram do que eram capazes e
deixaram-me muito orgulhosa dos nossos estudantes de
Licenciatura.
Ao ler as páginas que se seguem, tenho a certeza de que
concordarão comigo: valeu a pena o esforço!
Sónia Moreira
15
A PROPOSTA DE REGULAMENTO DA
UNIÃO EUROPEIA SOBRE A
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL – A
IMPORTÂNCIA DE UMA ABORDAGEM
EQUILIBRADA
Resumo:
A União Europeia almeja a liderança mundial em matéria de
Inteligência Artificial mediante a criação de um quadro jurídico equilibrado que
permita a promoção dos direitos fundamentais e o fomento da inovação
tecnológica.
O presente artigo visa sublinhar a importância de uma abordagem efetivamente
equilibrada na regulamentação do fenómeno disruptivo da Inteligência Artificial,
indagando acerca do cumprimento desse desígnio pela tão esperada Proposta de
Regulamento que estabelece Regras Harmonizadas em Matéria de Inteligência
Artificial.
b
Palavras-chave:
Inteligência Artificial; União Europeia; Direitos Fundamentais;
Mercado Único Digital.
16
Sumário:
1. A Inteligência Artificial: conceito, oportunidades e desafios;
2. A Proposta de Regulamento da União Europeia sobre a Inteligência
Artificial;
2.1. Enquadramento geral e objetivos a atingir;
2.2. A busca pela abordagem equilibrada e a classificação do risco;
2.2.1. «Unacceptable risk AI»;
2.2.2. «High-risk AI»;
2.2.3 «Low-risk AI»;
3. Breves notas conclusivas: uma compatibilização desafiadora, mas
necessária.
17
1. A Inteligência Artificial: conceito, oportunidades e
desafios
O conceito de Inteligência Artificial é comummente
associado às obras literárias e cinematográficas de ficção científica.
Não obstante, independentemente dos cenários que potenciam a
nossa imaginação, a verdade é que as múltiplas aplicações da
Inteligência Artificial se encontram subtilmente presentes no
quotidiano de cada uma e de cada um de nós 1 . Para comprovar a
veracidade desta afirmação, basta que pensemos, a título
exemplificativo, na assistente pessoal ou no corretor ortográfico
do nosso smartphone ou, ainda, nas recomendações de conteúdo
inerentes aos mais variados serviços de streaming – sem as quais,
muito provavelmente, nunca teríamos assistido àquele filme.
O termo, empregue pela primeira vez por John McCarthy,
remonta ao ano de 1955. De acordo com a definição proposta pelo
Professor de Stanford, “[i]t is the science and engineering of
making intelligent machines, especially intelligent computer
programs” 2 . Longas décadas volvidas, as potencialidades da
1 Sobre a presença da Inteligência Artificial no dia a dia das sociedades hodiernas, vide, v.g.,
MOREIRA. Sónia – “Artificial Intelligence: Brief Considerations Regarding the Robot-Judge”. In
E.Tec Yearbook – Governance & Technology. 2184-707X. 2021, p. 299. Disponível em:
www.jusgov.uminho.pt/publicacoes/etec-yearbook-2021-2/
2 McCARTHY, John – What Is Artificial Intelligence?. [Consultado em: 25/06/2022]. Disponível
em: jmc.stanford.edu/artificial-intelligence/.
18
Inteligência Artificial relevaram-se surpreendentes, originando um
conceito de Inteligência Artificial em constante evolução,
inevitavelmente dependente do desenvolvimento tecnológico 3 .
Numa tentativa de aproximação a um conceito que designe
este fenómeno, e de acordo com uma aceção hodierna, a
Inteligência Artificial reconduzir-se-á à capacidade de uma
máquina reproduzir competências que outrora se encontravam
exclusivamente estritas ao Ser Humano e à sua inteligência, como
é o caso do raciocínio, da aprendizagem, do planeamento e da
criatividade. A Inteligência Artificial permite que “(…) os sistemas
técnicos percebam o ambiente que os rodeia, lidem com o que
percebem e resolvam problemas, agindo no sentido de alcançar um
objetivo específico. O computador recebe dados (já preparados ou
recolhidos através dos seus próprios sensores (...)), processa-os e
responde.” 4 .
3 Neste sentido, RAPOSO, Vera Lúcia – “Proposta de Regulamento sobre Inteligência Artificial:
The devil is in the details”. In Privacy and Data Protection Magazine. 2184-920X. N. º003, 2021, p.
11.
4 PARLAMENTO EUROPEU – O que é a Inteligência Artificial e como funciona?. [Consultado
em: 27/06/2022]. Disponível em:
www.europarl.europa.eu/news/pt/headlines/priorities/inteligencia-artificial
naue/20200827STO85804/o-que-e-a-inteligencia-artificial-e-como-funciona.
19
A Inteligência Artificial gera oportunidades e desafios 5 .
Dentre as oportunidades, urge destacar os benefícios decorrentes
para os cidadãos, que se traduzem, designadamente, em melhores
cuidados de saúde, meios de transporte mais seguros ou produtos
e serviços especializados e mais acessíveis; para as empresas, uma
vez que o recurso às novas tecnologias permite o aumento da
produção e a poupança de energia; e para os serviços públicos,
dando-se um claro enfoque ao mote da sustentabilidade (utilização
de transportes públicos mais ecológicos, por exemplo).
Quanto às ameaças, urge sublinhar alguns dos desafios
colocados aos direitos fundamentais e à democracia. Se utilizados
de forma incorreta, inadequada e/ou abusiva, os sistemas de
Inteligência Artificial, sempre que em causa esteja um processo de
tomada de decisão, podem originar resultados arbitrários e
discriminatórios. Por outro lado, estes sistemas podem ser
extremamente violadores do direito à privacidade dos cidadãos,
tendo em conta a intrusão que podem representar determinados
equipamentos, nomeadamente de reconhecimento facial. Isto sem
esquecer as denominadas deepfakes – imagens falsas, mas
5 PARLAMENTO EUROPEU – Inteligência Artificial – Oportunidades e desafios. [Consultado
em: 28/06/2022]. Disponível em:
www.europarl.europa.eu/news/pt/headlines/priorities/inteligencia-artificial
naue/20200918STO87404/inteligencia-artificial-oportunidades-e-desafios.
20
extremamente realistas –, capazes de influenciar o caráter
democrático do processo legislativo.
Com vista a otimizar os benefícios e a encarar, com
firmeza, os desafios, a União Europeia propôs-se a enquadrar
juridicamente os sistemas de Inteligência Artificial, de modo a
garantir uma posição pioneira em termos mundiais.
2. A Proposta de Regulamento da União Europeia sobre a
Inteligência Artificial
2.1. Enquadramento Geral e Objetivos a Atingir
A tão esperada Proposta de Regulamento do Parlamento
Europeu e do Conselho que estabelece Regras Harmonizadas em
Matéria de Inteligência Artificial (Regulamento Inteligência
Artificial) 6 estabelece – ou visa estabelecer – uma abordagem
equilibrada no enquadramento jurídico do fenómeno disruptivo da
Inteligência Artificial no âmbito da União Europeia.
6 Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho que estabelece Regras
Harmonizadas em Matéria de Inteligência Artificial (Regulamento Inteligência Artificial) e altera
determinados atos legislativos da União, COM (2021)206 final, Bruxelas, 21 de abril de 2021.
[Consultado em: 28/06/2022]. Disponível em: EUR-Lex - 52021PC0206 – EN – EUR-Lex
(europa.eu).
21
Perante o contínuo e acelerado desenvolvimento
tecnológico vivenciado nas últimas décadas, que origina novos e
crescentes desafios, Ursula von der Leyen, reconhecendo a
indispensabilidade desse desenvolvimento na promoção do
progresso civilizacional, anunciou nas suas orientações políticas
para 2019-2024, intituladas «Uma União mais ambiciosa» 7 , que a
Comissão apresentaria uma proposta legislativa relativa a uma
abordagem europeia orientada às implicações éticas da Inteligência
Artificial.
Honrando este compromisso político, e dando
cumprimento ao segundo objetivo do Livro Branco sobre a
Inteligência Artificial, que define as opções políticas sobre a forma
de alcançar o duplo objetivo de promover a adoção da Inteligência
Artificial e de abordar os riscos associados a determinadas
utilizações desta tecnologia 8 , o diploma ora proposto visa
impulsionar o Mercado Único Digital através da maximização dos
benefícios dos sistemas de Inteligência Artificial, garantindo, ao
mesmo tempo, um alto nível de proteção dos direitos
7 VON DER LEYEN, Ursula – Orientações Políticas para a próxima Comissão Europeia 2019-
2024. [Consultado em: 28/06/2022]. Disponível em:
ec.europa.eu/info/sites/default/files/political-guidelines next-commission_pt.pdf.
8 COMISSÃO EUROPEIA – Livro Branco sobre a Inteligência Artificial – Uma abordagem
europeia virada para a excelência e a confiança, COM (2020)65 final, Bruxelas, 19 de fevereiro de
20220, p. 1. [Consultado em: 28/06/2022]. Disponível em:
ec.europa.eu/info/sites/default/files/commission-white-paper-artificial
intelligencefeb2020_pt.pdf.
22
fundamentais dos cidadãos.
Neste sentido, consagraram-se quatro objetivos
específicos a alcançar com o primeiro quadro jurídico relativo à
Inteligência Artificial:
⎯ “garantir que os sistemas de IA colocados no mercado
da União e utilizados sejam seguros e respeitem a legislação
em vigor em matéria de direitos fundamentais e valores da
União,
⎯ garantir a segurança jurídica para facilitar os
investimentos e a inovação no domínio da IA,
⎯ melhorar a governação e a aplicação efetiva da legislação
em vigor em matéria de direitos fundamentais e dos requisitos
de segurança aplicáveis aos sistemas de IA,
⎯ facilitar o desenvolvimento de um mercado único para
as aplicações de IA legítimas, seguras e de confiança e evitar a
fragmentação do mercado” 9 .
Para garantir estes objetivos, crê-se que uma abordagem
efetivamente equilibrada, que coloque o Ser Humano no centro da
9 Proposta de Regulamento, cit., p. 3.
23
problemática, permitirá facilitar o investimento económico e a
inovação, mediante a disponibilização de uma Inteligência
Artificial segura, ética e de confiança.
Assim, a Proposta propõe “(…) uma abordagem
regulamentar horizontal equilibrada e proporcionada ao domínio
da inteligência artificial, que se limita aos requisitos mínimos
necessários para dar resposta aos riscos e aos problemas associados
à IA, sem restringir ou prejudicar indevidamente a evolução
tecnológica ou aumentar desproporcionalmente o custo de
colocação no mercado das soluções de IA. A proposta estabelece
um quadro jurídico sólido e flexível” 10 .
2.2. A Busca pela Abordagem Equilibrada e a Classificação
do Risco
À face do exposto, qualquer análise crítica da Proposta da
Comissão terá necessariamente de indagar acerca do cumprimento
da almejada compatibilização entre a tutela jurídica dos direitos
fundamentais, que reclama, neste campo, um corpo normativo
robusto e protetor, e as exigências do Mercado, carecido de uma
10 Idem, p. 3.
24
regulamentação clara e simplificada, que permita à União a
assunção de um papel pioneiro no progresso científico e
tecnológico.
Esta dificuldade de compatibilização advém dos riscos que
os sistemas de Inteligência Artificial inevitavelmente comportam –
que se revelam aos mais diversos níveis e reclamam do Direito uma
adaptação constante – e que a Proposta procura categorizar em
diferentes níveis, sujeitos, por sua vez, a diferentes exigências,
determinadas em função da potencial gravidade dos riscos que
neles se inserem.
Estabelece-se, assim, um modelo de avaliação de risco do
qual emergem três categorias de sistemas de Inteligência Artificial:
«Unacceptable risk AI»; «High-risk AI»; e «Low risk AI».
2.2.1. «Unacceptable Risk AI»
Na categoria «Unacceptable risk AI» proíbem-se os
sistemas de Inteligência Artificial especialmente perigosos em
termos de lesividade dos direitos fundamentais dos cidadãos, mais
propriamente os sistemas de IA que empreguem técnicas que
contornem a consciência das pessoas (cfr. artigo 5.º, n.º 1, alínea
25
a)) ou que explorem vulnerabilidades de grupos específicos (cfr.
artigo 5.º, n.º 1, alínea b)) para distorcer o seu comportamento, que
sejam utilizados para efeitos de avaliação da credibilidade de
pessoas singulares com base no seu comportamento ou nas suas
características e em que a classificação conduza a um tratamento
prejudicial ou desfavorável dessas pessoas (cfr. artigo 5.º, n.º 1,
alínea c)) e, ainda, os sistemas de identificação biométrica à
distância em «tempo real» em espaços acessíveis ao público para
efeitos de manutenção da ordem pública (cfr. artigo 5.º, n.º 1,
alínea d)) 11 .
Estas proibições são, naturalmente, de aplaudir, uma vez
que contendem frontalmente com os valores propugnados pela
União Europeia. No entanto, é de sublinhar que as proibições ora
estabelecidas não se afiguram como absolutas, uma vez que se
estabelecem exceções em nome da prossecução de outros
interesses, nomeadamente para fins de investigação criminal. Neste
sentido, sublinhe-se que, ainda que se compreendam estas
exceções, é recomendável que se adote uma postura de prudência
quanto às mesmas, uma vez que regras flexíveis nesta matéria
podem culminar na utilização de sistemas de IA altamente
intrusivos, capazes de restringir de forma intolerante os direitos
11 Idem, pp. 47-48.
26
fundamentais dos cidadãos. Sublinhe-se que tanto o European Data
Protection Board como o European Data Protection Superviser
consideraram que não deve existir qualquer exceção à proibição da
identificação biométrica remota de indivíduos em espaços
públicos, contrariamente ao disposto no artigo 5.º, n.º 1, alínea d),
da Proposta de Regulamento 12 .
2.2.2. «High-Risk AI»
Na categoria «High-risk AI» enquadram-se os sistemas de
Inteligência Artificial de risco elevado em termos de lesividade dos
direitos fundamentais 13 , como é o caso dos sistemas utilizados na
gestão e no funcionamento de infraestruturas críticas, mais
propriamente no controlo do tráfego rodoviário e das redes de
abastecimento de água, gás, aquecimento e eletricidade, capazes
de colocar em risco “(…) a vida e a saúde das pessoas em larga
escala e provocar perturbações substanciais das atividades sociais e
económicas normais” 14 ; no domínio da educação ou da formação
profissional, “(…) designadamente para determinar o acesso ou a
12 A este respeito, veja-se a opinião conjunta disponível em: edpb.europa.eu/system/files/2021-
10/edpb edps_joint_opinion_ai_regulation_pt.pdf, p. 13. [Consultado em: 28/06/2022].
13 Cfr. artigo 6.º, n.º 2, e Anexo III da Proposta.
14 Proposta de Regulamento, cit., Considerando 34.
27
afetação de pessoas a instituições de ensino e de formação
profissional ou para avaliar testes que as pessoas realizam no
âmbito da sua educação ou como pré-condição para a mesma” 15 ;
nos domínios do emprego, da gestão de trabalhadores e do acesso
ao emprego por conta própria, nomeadamente para efeitos de
recrutamento e seleção (por exemplo, software de triagem de
currículos) 16 ; no acesso a determinados serviços e prestações
essenciais, como é o caso dos empréstimos 17 ; na gestão da
migração, do asilo e do controlo das fronteiras, devido à
vulnerabilidade inerente à situação das pessoas que se encontram
sujeitas a esse mesmo controlo 18 ; na manutenção da ordem
pública, nomeadamente na aplicação de medidas repressivas para
cumprimento da lei, que contendem diretamente com os direitos
fundamentais dos cidadãos (por exemplo, avaliação de provas) 19 ;
e, ainda, na administração da justiça (por exemplo, aplicação da lei
ao caso concreto) e dos processos democráticos 20 .
Os sistemas que se enquadram na categoria «High-risk AI»
são autorizados no Mercado Interno, mas estão sujeitos ao
15 Idem, Considerando 35.
16 Idem, Considerando 36.
17 Idem, Considerando 37.
18 Idem, Considerando 39.
19 Idem, Considerando 38.
20 Idem, Considerando 40.
28
cumprimento de determinados requisitos obrigatórios, previstos
no Capítulo 2 do Título III da Proposta, bem como a uma
avaliação da conformidade ex ante (cfr. artigo 16.º, alínea e), e artigo
19.º), sendo que “[a] classificação de um sistema de IA como de
risco elevado tem como base a finalidade prevista desse sistema,
em conformidade com a atual legislação relativa à segurança dos
produtos” 21 .
Ora, nestes setores, estabelece-se, portanto, uma
regulamentação complexa e exigente. Neste sentido, Vera Lúcia
Raposo alerta para a existência de domínios onde a Proposta “(…)
peca pelo excesso de rigidez, de complexidade regulamentadora e
pela exigência de standards difíceis de atingir na prática”,
sublinhando que “[a]lgumas matérias focadas pela Proposta não só
são altamente regulamentadas, como ademais sujeitas a padrões de
exigência excessivamente rígidos e, eventualmente, impossíveis de
cumprir” 22 . Aponta-se, aqui, a título exemplificativo, o caso do
artigo 10.º, n.º 3, que, em consonância com o Considerando 44,
estabelece que os conjuntos de dados de treino, validação e teste
devem ser isentos de erros. Ora, esta isenção de erros afigura-se
21 Idem, p. 14.
22 RAPOSO, Vera Lúcia, op. cit., p. 16.
29
manifestamente irreal e, assim, impossível de atingir 23 .
Sónia Moreira, por sua vez, considera que, porventura,
seria necessário ir mais além, mormente no que respeita à utilização
dos sistemas de Inteligência Artificial na administração da justiça,
uma vez que reputa como insuficiente a adoção de um
procedimento de avaliação da conformidade baseado num
controlo meramente interno 24 – “(…) we have serious doubts
concerning the sufficiency of the requeriments established for the
use of AI in the judiciary. These are systems that will impact
profoundly the fundamental rights of the citizens. One cannot give
the benefice of the doubt to a partial party (the provider)” –,
propondo, ao invés, a inclusão desses sistemas “(…) in a list of
systems that should be assessed by an impartial third party,
preferably an administrative body, a commission created by each
Member-State to perform this conformity assessment” 25 , de modo
a garantir uma cabal defesa dos direitos fundamentais dos
cidadãos.
23 Neste sentido, SIEMENS – EU’s AI Regulation proposal (21/04/2021) Position &
recommendations, July 2021, p. 6 [Consultado em: 28/06/2022]. Disponível em:
ec.europa.eu/info/law/better-regulation/have your-say/initiatives/12527-Inteligencia-artificial-
Requisitos-eticos-e-legais/F2662941.
24 Cfr. artigo 43.º, n.º 2, da Proposta.
25 MOREIRA, Sónia, op. cit., p. 313.
30
2.2.3. «Low-Risk AI»
Na categoria «Low-risk AI» é possível estabelecer uma
distinção entre os sistemas de risco limitado e os sistemas de risco
mínimo 26 . Os primeiros, que implicam uma maior interação entre
os sistemas de Inteligência Artificial e os utilizadores, como é o
caso dos chatbots, encontram-se sujeitos a obrigações mínimas de
transparência, de modo a garantir a informação necessária à
tomada de decisão por parte dos utilizadores. Os segundos, que
englobam a maioria dos sistemas de Inteligência Artificial já
existentes (como é o caso, por exemplo, dos videojogos e dos
filtros de spam), encontram-se associados à simplicidade e à
gratuitidade, não estando sujeitos a regras adicionais, uma vez que
implicam um risco praticamente nulo para os direitos dos cidadãos.
3. Breves Notas Conclusivas: uma compatibilização
desafiadora, mas necessária
Do exposto se depreende que a compatibilização entre os
desígnios fundamentais desta Proposta é extremamente
26 Neste sentido, e ainda que da Proposta não resulte claramente esta distinção, vide, COMISSÃO
EUROPEIA – Novas Regras para a Inteligência Artificial – Perguntas e Respostas. [Consultado em:
28/06/2022]. Disponível em:
ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/pt/QANDA_21_1683.
31
desafiadora. Como tal, sempre se admitirá a opinião daqueles que
a consideram, em alguns campos, demasiado rígida, atrasando o
desenvolvimento tecnológico do Mercado Único e
impossibilitando a vanguarda da União; e daqueles que a
consideram, noutros campos, porventura demasiado flexível, não
tutelando de forma cabal os direitos inabaláveis dos cidadãos e, em
última instância, a sua Dignidade.
A busca pela abordagem equilibrada não deve, no entanto,
cessar. A construção do futuro digital da Europa depende de uma
abordagem europeia que coloque a tecnologia ao serviço dos
cidadãos e, consequentemente, permita a promoção de uma
sociedade aberta, democrática e sustentável 27 .
Dr.ª Gabriela Antunes Araújo
Licenciada em Direito pela Universidade do Minho
27 Dentre as seis prioridades da Comissão Europeia para 2019-2024, consta, em específico, Uma
Europa preparada para a era digital. V. ec.europa.eu/info/strategy/priorities-2019-2024/europe-fitdigital-age_pt.
[Consultado em: 28/06/2022].
32
ANÁLISE CRÍTICA DA PROPOSTA DE
REGULAMENTO SOBRE
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: A
FRAGILIDADE DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS
Resumo:
O mundo encontra-se em constante evolução, sendo disso prova a
Inteligência Artificial (IA), que oferece, incontestavelmente, inúmeros
benefícios para a vida em sociedade. Não obstante, acarreta também riscos,
designadamente, quanto aos direitos fundamentais. Neste sentido, surge a
Proposta de Regulamento sobre Inteligência Artificial da União Europeia 28 , que
se propõe conciliar o desenvolvimento de um mercado único para as aplicações
de IA com o respeito pela legislação em vigor relativa a direitos fundamentais e
valores da União.
Desde a segurança jurídica e proteção da confiança à não
discriminação, vários são os direitos fundamentais que poderão resultar
fragilizados em consequência de uma utilização indevida dos sistemas de IA.
Neste sentido, seria pertinente a adoção de medidas jurídicas eficazes, de forma
28
Proposta de Regulamento sobre Inteligência Artificial da União Europeia [Consultada em:
09/05/2022]. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legalcontent/PT/TXT/?uri=CELEX:52021PC0206
.
33
a dar resposta àqueles que, eventualmente, possam ver a sua individualidade
trespassada.
b
Palavras-chave:
discriminação.
Inteligência Artificial; Direitos fundamentais; Segurança jurídica; Não
b
Sumário:
1. Objetivos da Proposta: vantagens e possíveis riscos;
2. Ambiguidade da definição de “Sistema de IA” adotada pela Proposta:
2.1. Implicações ao nível da segurança jurídica e proteção da confiança;
3. Proteção das vítimas de utilizações inadequadas dos sistemas de IA;
4. Notas Conclusivas;
34
1. Objetivos da Proposta: vantagens e possíveis riscos:
A Proposta de Regulamento sobre Inteligência Artificial da
União Europeia pretende harmonizar (1) o desenvolvimento de
um mercado único para as aplicações de Inteligência Artificial e (2)
o respeito pela legislação em vigor relativa a direitos fundamentais
e valores da União. Isto dito, coloca-se a questão de saber se os
dois objetivos preconizados pela Proposta são, efetivamente,
conciliáveis 29 .
Se, por um lado, a IA pode contribuir de forma positiva
para vários setores da vida em sociedade, como sejam as alterações
climáticas, o ambiente, a saúde e a justiça, por outro lado, reputase
necessário averiguar os novos riscos advindos desta evolução
tecnológica, nomeadamente, ao nível dos direitos fundamentais.
Ora, a Proposta em apreço visa desenvolver “um quadro jurídico
29 RAPOSO, Vera Lúcia – “Proposta de Regulamento sobre Inteligência Artificial: The devil is in
the details”. In Privacy and Data Protection Magazine. Lisboa. 2184-920X. N. º 03. 2021, p. 11.
[Consultado em: 09/05/2022]. Disponível em:
https://bo.europeia.pt/content/files/pdpm_003_2.pdf#page=16.
35
para uma IA de confiança” 30 : para isso, propõe-se abordar e regular
tais riscos associados a determinadas utilizações desta tecnologia.
2. Ambiguidade da definição de “Sistema de IA” adotada
pela Proposta:
2.1. Implicações ao nível da segurança jurídica e proteção da
confiança:
De facto, ao longo da Proposta é notável o interesse em
proteger os direitos fundamentais dos cidadãos, sendo certo que
estes podem resultar ameaçados com relativa facilidade, uma vez
que a IA enfrenta desafios como“a opacidade, a complexidade, os
preconceitos [ou enviesamentos], um certo grau de
imprevisibilidade e comportamentos parcialmente autónomos de
determinados sistemas de IA” 31 .
Desde logo, resulta do art.º3.º, al. 1), da Proposta que se
entende por “«Sistema de inteligência artificial», um programa
informático desenvolvido com uma ou várias das técnicas e
30 Como se pode ler na exposição de motivos da Proposta de Regulamento sobre Inteligência
Artificial. Proposta sobre Inteligência Artificial, cit, p. 1.
31 Idem, p. 2.
36
abordagens enumeradas no anexo I, capaz de, tendo em vista um
determinado conjunto de objetivos desenvolvidos por seres
humanos, criar resultados, tais como conteúdos, previsões,
recomendações ou decisões, que influenciam os ambientes com os
quais interage”.
Importa considerar, a este respeito, o Princípio do Estado
de Direito, consagrado no art.º 2.º da Constituição da República
Portuguesa. Como ensina J. J. Gomes Canotilho, tal preceito da
Lei Fundamental tem subjacente o pressuposto material da
juridicidade, o qual pressupõe que “(...) como meio de ordenação
racional, o direito é indissociável da realização da justiça, da
efetivação de valores políticos, económicos, sociais e culturais;
como forma, ele aponta para a necessidade de garantias jurídicoformais
de modo a evitar ações e comportamentos arbitrários e
irregulares de poderes públicos” 32 .
Para esse efeito, o Princípio do Estado de Direito
contempla um subprincípio concretizador relevante: o princípio da
segurança jurídica e proteção da confiança. Parafraseando J. J.
Gomes Canotilho, a segurança jurídica versa sobre elementos
32 CANOTILHO, José Joaquim – “A República Portuguesa e os seus Princípios Estruturantes”. In
Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003, pp. 241-244.
37
objetivos da ordem jurídica, como a garantia de estabilidade
jurídica, segurança de orientação e realização do direito, ao passo
que a proteção da confiança alude às componentes subjetivas da
segurança, nomeadamente a calculabilidade e previsibilidade dos
indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos atos dos poderes
públicos.
Assim, “[a] segurança e a proteção da confiança exigem, no
fundo: (1) fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos
atos do poder; (2) de forma que em relação a eles o cidadão veja
garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos
jurídicos dos seus próprios atos” 33 .
Ora, a definição supramencionada de “Sistema de
inteligência artificial”, adotada pela Proposta, despertou
imediatamente a minha atenção, no sentido de que penso não ser
suficientemente elucidativa e, por outro lado, diria ser um tanto
abrangente 34 . Isto é, não considero que esteja ao alcance de toda e
qualquer pessoa a capacidade de compreender com clareza o que
realmente se entende por “Sistema de inteligência artificial”.
33 CANOTILHO, José Joaquim – “A República Portuguesa e os seus Princípios Estruturantes”, cit.,
p. 257.
34 RAPOSO. Vera Lúcia – “Proposta de Regulamento sobre Inteligência Artificial: The devil is in
the details”, cit., pp. 12 e 13
38
Assim, na medida em que a área em apreço, por si só, é já
caracterizada pela opacidade, complexidade e imprevisibilidade,
sob a minha perspetiva, a Proposta deveria procurar esclarecer, na
medida do possível, aqueles que poderão vir a ser afetados por tais
riscos.
Ademais, leia-se o Considerando 6:
“A definição de «sistema de IA» deve ser
inequívoca, para assegurar a segurança jurídica,
concedendo em simultâneo a flexibilidade suficiente para
se adaptar a futuras evoluções tecnológicas” 35 .
Pois bem, como referido anteriormente, a definição de
“sistema de IA” não parece ser inequívoca, já que denota uma certa
imprecisão – imprecisão essa que poderá colocar em causa a
segurança jurídica, cenário que, aliás, o Considerando em apreço
tenciona acautelar. No entanto, afigura-se-me inconcebível
pretender assegurar uma definição inequívoca e flexível em
simultâneo: o conceito de “inequívoco” pressupõe uma só
interpretação possível, ao passo que o conceito de “flexível” sugere
35 Considerando 6 da Proposta.
39
uma fácil adaptação a diferentes situações. Estaremos perante uma
definição de “sistema de IA” paradoxal?
3. Proteção das vítimas de utilizações inadequadas dos
sistemas de IA
Um outro aspeto relevante prende-se com a tutela das
vítimas de uma utilização indevida dos sistemas de IA. Por ser
direcionado para a abordagem dos riscos associados a
determinadas utilizações deste tipo de tecnologia 36 , o Regulamento
prevê, de forma bastante exaustiva e eficiente, um regime
sancionatório 37 . Nos termos do art.º 71.º “(…) os Estados-
Membros devem estabelecer o regime de sanções, incluindo
coimas, aplicáveis em caso de infração ao presente regulamento e
devem tomar todas as medidas necessárias para garantir que o
mesmo é aplicado correta e eficazmente”.
36 Exposição de motivos da Proposta. Proposta de Regulamento sobre Inteligência Artificial, cit., p.
3.
37 Proposta de Regulamento sobre Inteligência Artificial, cit., pp. 88 (Título X – Confidencialidade
e Sanções).
40
Sucede que, ocorrendo infrações ao Regulamento, é
possível que resultem afetados direitos fundamentais, destacandose,
neste contexto, a discriminação algorítmica.
De acordo com um artigo publicado pela Universidade de
Amsterdão, “[a]n algorithm can be described as «an abstract,
formalised description of a computational procedure»” 38 .
Importa notar que existem riscos associados às decisões
algorítmicas, nomeadamente quando o sistema tem por base
decisões humanas discriminatórias 39 .
Nos EUA é já utilizado o COMPAS (Correctional Offender
Management Profiling for Alternative Sanctions): trata-se de “um sistema
que determina o perfil de um arguido e avalia o Risco de
38 BORGESIUS, Frederik – Discrimination, artificial intelligence, and algorithmic decision-making.
[Consultado em: 25/05/2022]. Disponível em:
https://pure.uva.nl/ws/files/42473478/32226549.pdf.
39 BORGESIUS. Frederik – Strengthening legal protection against discrimination by algorithms and
artificial intelligence. In The International Journal of Human Rights. 1744-053X. V. 24. N. º 10,
2020, p. 1574. [Consultado em: 25/06/2022]. Disponível em:
https://www.tandfonline.com/doi/pdf/10.1080/13642987.2020.1743976?needAccess=true.
41
Reincidência, o Risco de Violência e o Risco de Falta de
Comparência (em tribunal para julgamento)” 40 .
Nestes casos, verificou-se uma maior propensão do
sistema para classificar os réus negros como apresentando um risco
maior de reincidência violenta do que os réus brancos. Além disso,
foi demonstrado que, em termos de reincidência futura, os réus
negros apresentam mais risco em 77%, quando comparados com
os réus brancos 41 . Esta discriminação algorítmica pode decorrer do
facto de o sistema de IA ter sido treinado com dados enviesados,
reproduzindo o padrão que detetou (e que era discriminatório).
Deste modo, apesar de a última palavra impender sobre um juiz
humano, “a verdade é que este tem em consideração o perfil
40 MOREIRA, Sónia – “Artificial Intelligence: Brief considerations regarding the Robot-Judge”, in
Maria Miguel Carvalho/Sónia Moreira (coords.). Governance & Technology - E-Tec Yearbook.
JusGov - Research Centre for Justice and Governance/University of Minho - School of Law. 2021,
p. 302. [Consultado em: 25/06/2022]. Disponível em
https://www.jusgov.uminho.pt/publicacoes/etec-yearbook 2021-2/.
41 LARSON, Jeff, MATTU, Surya, KIRCHNER, Lauren, ANGWIN, Julia – How We Analyzed
the COMPAS Recidivism Algorithm. [Consultado em: 25/06/2022]. Disponível em:
https://www.propublica.org/article/how-we-analyzed-the-compas-recidivism-algorithm.
42
discriminatório do COMPAS, e assim, o risco de uma decisão
discriminatória é muito elevado” 42 .
Isto dito, a Carta dos Direitos Fundamentais da União
Europeia 43 assume um papel preponderante no que concerne à não
discriminação, relevando, designadamente, o art.º 21.º, n.º 1, do
diploma em causa:
“É proibida a discriminação em razão,
designadamente, do sexo, raça, cor ou origem étnica ou
social, características genéticas, língua, religião ou
convicções, opiniões políticas ou outras, pertença a uma
minoria nacional, riqueza, nascimento, deficiência, idade
ou orientação sexual.”.
Assim, da Carta decorre, desde logo, a exigência de
mitigação da discriminação algorítmica, à qual a Proposta de
Regulamento sobre Inteligência Artificial deve atender.
42 MOREIRA, Sónia – “Artificial Intelligence: Brief considerations regarding the Robot-Judge”, cit.,
p. 306.
43 [Consultado em: 25/06/2022]. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal
content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:12016P/TXT&from=FR
.
43
Para mais, uma observação interessante tem que ver com
o facto de que podem ocorrer discriminações de preços, também
potenciadas por decisões algorítmicas. Assim, chamando à colação
o artigo da Universidade de Amsterdão suprarreferido “[o]nline
shops can differentiate the price for identical products based on
information the shop has about a consumer: a practice called
online price differentiation. A shop can recognise website visitors,
for instance through cookies, and categorise them as pricesensitive
or price-insensitive. With price differentiation, shops aim to charge
each consumer the maximum price that he or she is willing to
pay” 44 . Neste particular, tendo em conta que, hoje, uma parte
considerável das compras são efetuadas online, os consumidores
deveriam ter acesso facilitado a este tipo de informação, o que não
sucede.
Assim sendo, na medida em que os direitos fundamentais não
devem ficar desprovidos de proteção, seria razoável e relevante
atender a mecanismos de proteção de vítimas de eventuais
utilizações inadequadas dos sistemas de IA.
44 BORGESIUS, Frederik – Discrimination, artificial intelligence, and algorithmic decision-making.
[Consultado em: 25/06/2022]. Disponível em:
https://pure.uva.nl/ws/files/42473478/32226549.pdf.
44
4. Notas conclusivas
Em conclusão, a Proposta de Regulamento sobre
Inteligência Artificial surge como um importante passo no sentido
de impulsionar o mercado único para as aplicações de IA, evitando
a fragmentação do mercado, sem perder de vista a proteção dos
direitos fundamentais e valores da União 45 . Não obstante, certos
aspetos carecem de concretização, impondo-se a imperiosa
questão de saber como podem as vítimas de uma utilização
imprópria das aplicações de IA fazer valer os seus direitos. Posto
isto, não seria descabido aprofundar um conjunto de medidas
jurídicas neste sentido, para que os direitos fundamentais fossem
efetivamente assegurados.
Relativamente à discriminação algorítmica, uma possível
solução passaria pelo reforço da supervisão humana, no que
respeita às decisões automatizadas, e pela constante verificação e
atualização da base de dados utilizada pelo sistema de inteligência
artificial em causa. Ademais, as decisões tomadas com base em
algoritmos devem ser explicadas de forma clara àqueles que
45 Exposição de motivos da Proposta.
45
possam ver a sua esfera jurídica afetada por elas, de forma a
salvaguardar a segurança jurídica e proteção da confiança 46 .
No que se refere a mecanismos de recomendação ou
previsão – onde se insere a problemática da discriminação de
preços – está em causa o direito à privacidade e proteção de dados.
Uma vez que tais mecanismos atuam com base em dados pessoais,
a informação que as lojas detêm acerca dos consumidores deve ser
jurídica e eticamente regulada. Os dados utilizados devem ter um
propósito que se paute pela ética e pela boa fé, como o de dar a
conhecer ao consumidor os produtos pelos quais,
presumivelmente, ele nutrirá maior interesse: nesse caso, o
consumidor sairá beneficiado por não ter de efetuar uma pesquisa
exaustiva, e a loja, por sua vez, obterá lucro de forma justa. Por
conseguinte, tudo o que, neste âmbito, extravase os limites da ética
e da boa-fé, será já intrusivo. Assim, por exemplo, os dados
pessoais dotados de maior sensibilidade
46 GORZONI, Paula – Inteligência Artificial: Riscos para direitos humanos e possíveis ações, p. 6.
[Consultado em: 28/06/2022]. Disponível em: https://itsrio.org/wpcontent/uploads/2019/03/Paula
Gorzoni.pdf.
46
(como a religião ou a orientação sexual) devem manter-se
intocados, sob pena de resultar violado o direito à privacidade e à
proteção de dados 47 .
Filipa Barros Oliveira Cerqueira
Estudante do 4.º ano da Licenciatura da Universidade do Minho
.
47 GORZONI, Paula – Inteligência Artificial: Riscos para direitos humanos e possíveis ações, cit.,
pp. 3 e 4.
47
BREVE ANÁLISE DA PROPOSTA DE
REGULAMENTO SOBRE
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
Resumo:
O presente artigo, após uma análise sobre a Proposta de Regulamento
da União Europeia sobre a Inteligência Artificial, visa elencar brevemente os
principais desafios que este documento comporta e aos quais a Comissão
Europeia deve responder perante a realidade, os consumidores, os Estados-
Membros da União Europeia e a coerência e concordância entre os vários
diplomas em vigor e os valores europeus.
b
Palavras-chave:
Inteligência Artificial; Proposta Regulamento da União Europeia;
Desafios; Mercado Digital;
B
48
Sumário:
1. Enquadramento geral entre Inteligência Artificial e a União Europeia;
2. Principais Desafios da Proposta de Regulamento:
2.1. Reconhecimento biométrico e os seus limites;
2.2. Inteligência Artificial e a Proteção de Dados;
2.3. Hierarquização de conceitos indeterminados;
2.4. Os meios de reação e controle;
3. Conclusão;
49
1. Enquadramento geral entre Inteligência Artificial e a
União Europeia:
A Inteligência Artificial (IA), aliada às suas variantes,
consequências, importância e desenvolvimento exponencial, tem
sido um dos temas centrais de debate neste século XXI, pois exige
a total atenção e acompanhamento do Direito. O uso destes
sistemas permite que o ser humano possa descobrir realidades que,
há poucos anos, não seriam possíveis de imaginar. Toda a
abordagem da utilização da IA envolve uma ponderação de
princípios, valores e interesses nacionais e europeus, privados e
públicos. No entanto, o balanceamento entre estes ainda é alvo de
discussão. Se, por um lado, é-nos apresentada a ideal finalidade de
os cidadãos confiarem num mercado orientado pela IA, por outro,
está presente um conjunto de entidades que se pautam pela criação
e uso dessa mesma tecnologia, sujeitos a obrigações num conjunto
de situações.
A proteção dos direitos fundamentais e a regulação do
mercado apresentam disparidades nos Estados Membros (EM)
tendo, a União Europeia (UE), um papel fundamental para o
alcance da segurança jurídica, aceitação de preceitos e
homogeneidade de soluções. Entende-se, pois, num espaço amplo
como o da IA, que os Estados não consigam atingir uma
50
regulamentação sólida neste assunto, muito menos o perspetivem
da mesma forma. Invoca-se, por isso, a soberania digital que a UE
necessita de assegurar e promover para que os particulares confiem
nas instituições, as empresas atuem num mercado seguro e os EM
adotem uma linhagem única de atuação. Por isto mesmo, esta
proposta invoca categorias de risco que envolvem, diretamente, a
sujeição dos provedores da tecnologia a situações de risco dentro,
por exemplo, do meio educacional, do emprego, de fluxos
migratórios, de processos judiciais 48 . Em adição, visa regular que,
sob uma determinada conduta, haja a responsabilização das
entidades públicas que se revelem contra estes propósitos e ideais,
sobretudo, os que embatam nos direitos fundamentais dos
cidadãos e na segurança da União e do Mundo. Mas vários
problemas se revelam.
48 Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho que estabelece regras
harmonizadas em matéria de Inteligência Artificial (Regulamento Inteligência Artificial) e altera
determinados atos legislativos da União, p. 13. [Consultado em: 24-05-2022]. Disponível em:
https://eur- lex.europa.eu/resource.html?uri=cellar: e0649735-a372-11eb-9585-
01aa75ed71a1.0004.02/DOC_1&format=PDF.
51
2. Principais Desafios da Proposta de Regulamento:
2.1. Reconhecimento biométrico e os seus limites:
A crítica principal assenta no sistema de reconhecimento
biométrico 49 – reconhecimento de voz, face, impressão digital,
entre outros – que envolve todo um mecanismo de captura de
aspetos físicos através do uso de câmaras de videovigilância e
sensores. Sendo estes sistemas de identificação considerados de
risco elevado, e subordinados a medidas de atuação rígidas, neste
tópico em concreto, pergunta-se qual o âmbito do consentimento
individual (de cada pessoa e não por autorização de um órgão
judicial ou de alguma entidade independente) para o seu uso e em
que situações. A proposta é pautada por uma imprecisão e
ambiguidade nesta temática, sem referir respostas a uma violação
destes dados que possam ser recolhidos em casos de abuso de
poder e ataques cibernéticos. Em adição, problematiza-se a
eficiência de um possível on- off na utilização e ligação a este sistema
pois, como é este garantido quando depende de uma operação
instalada a priori? Apresenta-se, por isso, uma produção legislativa
não sustentável plenamente.
49 SHIFTER – "Proposta de Lei sobre Inteligência Artificial na EU é inédita e pioneira, mas...”
[Consultado em: 24-05-2022]. Disponível em: https://shifter.pt/2021/04/lei-inteligencia-artificial/.
52
2.2. Inteligência Artificial e a Proteção de Dados:
Ora, outro problema embate com a proteção de dados que
a IA possa violar e o chamamento de várias normas e diplomas
europeus, introduzindo a possibilidade de existirem conflitos.
Além disso, mesmo que o embate entre normas não se concretize,
a conciliação entre estas tem de estar constantemente a ser
analisada ao pormenor 50 .
Traduzir-se-á a obtenção de dados pessoais numa invasão
pessoal ou numa maior objetividade para determinar os limites em
que a IA pode atuar? Quanto ao consentimento, será apenas um
dever ou um ónus jurídico? Apesar de perguntas dispersas que
possam surgir, a verdade é que, noutros instrumentos, como o
RGPD, os cidadãos já se encontram salvaguardados de abusos
decorrentes da utilização de sistemas da IA. Contudo, esta
proteção não se mostrará suficiente ou isenta de abusos em
situações que, à partida, parecem refletir uma boa prática das
exigências destes instrumentos e princípios internacionais. Veja-se,
por exemplo, a polémica de partilha de dados entre a Royal Free
50 RAPOSO, Vera Lúcio – “Proposta de Regulamento sobre Inteligência Artificial: The Devil is in
the Details”. In Privacy and Data Protection Magazine, Online, No3, 2021, pp. 18-19.
53
London NHS Foundation Trust, a DeepMind e a Google e a ação
judicial por parte da Comissão de Informação do Reino Unido 51 .
2.3. Hierarquização de conceitos indeterminados
Uma outra questão a invocar prende-se com as categorias
de risco hierarquizadas na proposta, em concreto, a de risco
mínimo. Ora, esta é caracterizada por ser composta, dentro de
outros exemplos, pela livre utilização dos jogos de vídeo básicos
ou um simples cookie no correio eletrónico, não intervindo o
regulamento nestes casos 52 . Veja-se, no entanto, que a sociedade
tem sido constantemente alvo de burlas, ataques e erros
informáticos com inúmeras consequências, algoritmos de
publicidade enganosa, cookies e termos gerais de aceitação de sites
que envolvem a recolha de imagem e dados, sem que o cidadão se
aperceba do que está a ocorrer ou que está a ser manipulado 53 . Há,
51 POWLES, Julia; HODSON, Hal – Google DeepMind and healthcare in an age of algorithms.
[Consultado em: 22-05-2022]. Disponível em: https://link.springer.com/article/10.1007/s12553-
017-0179-1.
52 EUROPEIA, Comissão – Excelência e Confiança na Inteligência Artificial. [Consultado em: 22-
05-2021]. Disponível em: https://ec.europa.eu/info/strategy/priorities-2019-2024/europe-fitdigital-age/excellence-
trust-artificial-intelligence_pt.
53 SILVA, Joana Luís da – Big Data no comércio eletrónico: utilização de cookies e questões de
privacidade na recolha de dados pessoais. Online. Dissertação de Mestrado. [Consultado em: 22-05-
2021]. Disponível em:
https://recipp.ipp.pt/bitstream/10400.22/17368/1/Joana_Silva_MNE_2020.pdf
54
sim, um potencial risco de vulneração de direitos fundamentais que
necessita, também, de obter uma rede de construção legislativa
sólida, sustentável, segura e fiável. Não esquecer que tal
preocupação não é descabida.
Analisando o exemplo da China, com o seu sistema de
“crédito social” 54 e valorização (ou não) do comportamento dos
cidadãos, há a vigia do mínimo movimento físico e digital. Apesar
de a proposta de regulamento proibir e englobar estas práticas no
âmbito das categorias de risco elevado, a garantia de se executarem
de forma indireta nas de baixo risco é provável e mais fácil de se
manifestar. Um outro exemplo aparece com o desenvolvimento da
DeepMind, empresa que tem como principal objetivo a investigação
e desenvolvimento da IA. Através da experiência, repetição e
fornecimento de dados, usada inicialmente em jogos e analisando
as pontuações e jogadas que são executadas 55 , ou sendo parceira do
sistema de saúde do Reino Unido para a recolha de dados clínicos
dos utentes para futuras doenças, pode esta nova tecnologia
54 FILHO, Demócrito Reinaldo – A proposta regulatória da União Europeia para a inteligência
artificial (2a parte): sistemas de risco inaceitável. [Consultado em: 23-05-2022]. Disponível em:
http://bomdebate.com/a-proposta-regulatoria-da-uniao-europeia-para-a-inteligencia-artificial-2aparte-
sistemas-de-risco-inaceitavel/.
55 PASCANU, Razvan/ WEBER, Theophane/ BATTAGLIA, Peter/ REICHERT, David/
RECANIÈRE, Sébastien, LI, Yazhe – Agents that imagine and plan. Online. [Consultado em 27-
06-2022]. Disponível em: https://www.deepmind.com/blog/agents-that-imagine-and-plan
55
comportar vários erros como a captação de dados mentais
excessivos 56 .
Para além disso, apesar da boa-fé de criar estes tipos de
risco, tentou-se categorizar algo não categorizável, que coexiste e
se interliga, não podendo haver uma separação tão limpa e
inequívoca de conceitos.
2.4. Os meios de reação e controle
Além disso, apesar de a proposta prever uma criação de
Centros de IA para a controlar, são deficitários os mecanismos que
os cidadãos dispõem em caso de violação dos seus direitos. Aliado
a isto, esta tecnologia é programada por humanos e,
consequentemente, pode conter erros 57 . Deste modo, urge a
criação de um meio de denúncia para casos de furto de
informações, tratamento discriminatório 58 , troca de dados, não
56 MORISSE, Tom – DEEPMIND, O LABORATÓRIO STARTUP. Online. [Consultado em: 27-
06-2022]. Disponível em: https://supertoast.pt/2017/04/11/deepmind-o-laboratorio-startup/
57 ROQUE, Andre Vasconcelos. SANTOS, Lucas Braz Rodrigues dos – “Inteligência Artificial na
tomada de decisões judiciais: três premissas básicas”. In Revista Eletrónica de Direito Processual –
REDP. Rio de Janeiro. 1982-7636. 2021, pp.58-78. [Consultado em: 22-05-2022]. Disponível em:
https://www.e- publicacoes.uerj.br/index.php/redp/article/view/53537/36309
58 MATTIUZZO, Marcela. MENDES, Laura Schertel – Discriminação algorítmica: conceito,
fundamento legal e tipologia. In Direito Público. 2236-1766. 90. 2019. [Consultado em: 27-06-2022].
Disponível em: https://portal.idp.emnuvens.com.br/direitopublico/article/view/3766
56
cumprimento das normas por parte dos fornecedores destes
sistemas, entre outros – dados que são inseridos na máquina a
priori num processo de criação de finalidades. A par disto, prevêse
um problema de conflitos entre os órgãos e a sua competência
nesta atividade. Deste modo, a criação de um Comité Europeu de
IA, para a aplicação e promoção de regras, mostra-se deficitário 59 .
Mas, por outro lado, o alargamento da competência deste Comité
como um órgão de fiscalização poderia colocar em causa, por
exemplo, o Ministério da Saúde controlando o que seria o certo ou
o errado, manipulando aquilo que seria a conduta médica, de uma
forma, diga-se, subjetiva, ambígua e imprecisa, tal como o texto da
proposta. Por fim, a dicotomia pessoa-robô ainda está sem
explicação no que concerne à personalidade jurídica
eletrónica/digital 60 e responsabilidade, sem qualquer negligência
humana.
59 CABRAL, Tiago Sérgio – A proposta de Regulamento sobre a Inteligência Artificial na União
Eurpeia: breve análise. In O Contencioso da União europeia e a cobrança transfronteiriça de
créditos: compreendendo as soluções digitais à luz do paradigma da Justiça eletrónica europeia (e-
Justice) – Volume II. Online. Pensamento Sábio – Associação para o conhecimento e inovação
Universidade do Minho, 2021, pp. 129-130. [Consultado em: 27-06-2022]. Disponível em:
https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/73489/3/Contencioso%20da%20Uniao%
20Europeia _eUjust_Vol%20II.pdf
60 NEGRI, Sergio Marcos Carvalho de Ávila; LOPES, Giovana F. Peluso Lopes – “Da
personalidade eletrónica à classificação de riscos na inteligência artificial (IA)”. Online. 2526-0464.
2021, pp. 12-17
57
3. Conclusão
A IA aliada à confiança mostra-se o mote desta proposta
de regulamento, no entanto, com a presença de “proibições
flexíveis” 61 , conceitos gerais e espaços de interpretação arbitrária e
lacunas poderá a sua finalidade ficar aquém do esperado. Não
esquecer que o mercado, em particular o digital, não é plenamente
aberto, nem leal, nem concorrencial a nível prático.
Por esse motivo, dadores destes serviços vão camuflando as suas
intervenções obscuras nestas zonas cinzentas 62 e mal
regulamentadas, dando a aparência de uma atuação em
conformidade com a lei através de promessas irreais 63 e populistas
de um futuro alternativo 64 .
Como a Comissária Europeia para a Concorrência
Margrethe Vestager afirma “[n]o domínio da inteligência artificial,
61 RAPOSO, Vera Lúcio – “Proposta de Regulamento sobre Inteligência Artificial: The Devil is in
the Details”, cit., pp. 14-15
62 ROCHA, Tiago Filipe Morais da – A Era Digital e o Estado de Direito Democrático na União
Europeia. Online. Dissertação de Mestrado. Pp. 24-29. [Consultado em: 28-06-2022]. Disponível
em: https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/131465/2/436195.pdf
63 KAMLOT, Daniel – Propaganda Enganosa e Persuasão Reação do Consumidor e Proposta de
Políticas Públicas. Online. 2013, pp. 84. [Consultado em: 28-06-2022]. Disponível em:
https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/10874/TESE_DanielKamlot_ve
rsaoDEFIN ITIV A.pdf?sequence=1&isAllowed=y
64 DANTAS, Ana Roque – Inovação em Portugal A importância de aprender com o fracasso. In
Sociologia Online. No21. 2019, pp.83-115. [Consultado em: 28-06-2022]. Disponível em:
https://revista.aps.pt/pt/inovacao-em-portugal-a-importancia-de-aprender-com-o-fracasso/
58
a confiança é um imperativo, não um acessório” 65 e enquanto estas
palavras são discutíveis nesta proposta de regulamento, os
trabalhos não finalizaram. Por conseguinte, é importante
congratular o passo dado no mercado mundial competitivo que a
UE vem conquistando com estas iniciativas legislativas como um
marco importante no Direito Digital. Da mesma forma, é
necessária a atenção cuidada e minuciosa na prevenção do
autoritarismo tecnológico, bem como a promoção da ética e
proteção dos direitos fundamentais que a temática envolve e exige.
Dr.ª Catarina Silva Lêdo
Licenciada em Direito pela Universidade do Minho
65 Apud SOUSA, José Ricardo – Comissão propõe novas regras e ações para promover a inteligência
artificial. [Consultado em: 21-05-2022]. Disponível em:
https://europedirectminho.ipca.pt/comissao- propoe-novas-regras-e-acoes-para-promover-ainteligencia-artificial/
59
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E
(IN)COMPATIBILIDADE COM OS
DIREITOS FUNDAMENTAIS:
IMPLICAÇÕES DA COVID-19:
Resumo:
É inegável que a inteligência artificial (IA) se tem enlaçado nas nossas
vidas, influenciando-nos de uma forma singular, confrontando-nos com
mudanças em variadas áreas. Certo é também que a Covid-19 veio acelerar esta
necessidade de criar espaço para novas soluções numa sociedade mais célere e
eficaz, introduzindo oportunidades em áreas como a saúde, a educação e o
emprego. Mas será que tudo se justifica para que possamos usufruir dessas
vantagens? Não será onerar em demasia o Estado de Direito e os seus
princípios? A Proposta de Regulamento da União Europeia tem em vista uma
abordagem que preserva os direitos fundamentais, no incremento das soluções
baseadas em IA 66 .b
66 Margrethe Vestager, vice-presidente da Comissão Europeia responsável pela Concorrência
afirmou que “no domínio da inteligência artificial, a confiança é um imperativo, não um acessório.
Com esta regulamentação histórica, a UE lidera o desenvolvimento de novas normas mundiais, para
garantir uma inteligência artificial de confiança”. – SOUSA, José Ricardo – “Comissão propõe novas
regras e ações para promover a inteligência artificial”. [Consultado em: 23.04.2022]. Disponível em:
60
Palavras-chave:
Inteligência Artificial; Covid-19; Direitos Fundamentais; Proposta de
Regulamento da União Europeia;
b
Sumário:
1. Breves considerações relativas à Inteligência Artificial e à Proposta de
Regulamento da União Europeia;
2. Implicações da Covid-19 nas técnicas de IA e a (in)compatibilidade com
os Direitos Fundamentais;
• 2.1. Em alguns sistemas de risco elevado;
• 2.2. Eventuais soluções e a Proposta de Regulamento;
3. Notas conclusivas
https://europedirectminho.ipca.pt/comissao-propoe-novas-regras-e-acoes-para-promover-ainteligencia-
artificial/.
61
1. Breves considerações relativas à Inteligência Artificial e à
Proposta de Regulamento da União Europeia:
A IA, definida pelo Dicionário Webster como “[t]he
capability of a machine to imitate intelligent human behavior”, é
um ramo da ciência informática que tem em vista a criação de
máquinas computorizadas, de software. Este pode estar incorporado
num substrato físico, possuindo, assim, também hardware ou não
(reside aqui a diferença entre robot e bot, respetivamente). O
objetivo destes softwares é que possam atuar como seres humanos,
simulando a sua inteligência, capazes na apreensão de informações
e no tratamento das mesmas, podendo dar respostas a inúmeros
problemas, por via de machine learning ou deep learning 67 .
Como é natural, estes mecanismos pressupõem inúmeros
riscos, pelo que surgiu a primeira Proposta de Regulamento do
Parlamento Europeu e do Conselho “que estabelece Regras
harmonizadas em Matéria de Inteligência Artificial (Regulamento
67 A este propósito, v. MOREIRA, Sónia – “Artificial Intelligence: Brief considerations regarding
the Robot-Judge”, in Maria Miguel Carvalho/Sónia Moreira (coords.), Governance & Technology -
E-Tec Yearbook, JusGov - Research Centre for Justice and Governance/University of Minho -
School of Law, 2021, pp. 297-313, disponível em https://www.jusgov.uminho.pt/publicacoes/etecyearbook-2021-2/.
62
Inteligência Artificial) e altera determinados Atos Legislativos da
União 68 , por forma a poder garantir a construção de uma IA na
qual o indivíduo possa depositar a sua confiança. É, assim,
importante a implementação de diretrizes éticas, como a
transparência, a responsabilidade, a segurança, a privacidade e
governação dos dados, a acessibilidade e a sustentabilidade 69 .
Resulta, desde logo, dos primeiros considerandos da Proposta, o
leque de benefícios desta “família de tecnologias” para a sociedade,
em todas as suas indústrias e atividades 70 . A Proposta estrutura-se
de forma a abordar o âmbito da IA (Título I), as áreas onde é
proibida a utilização de IA (Título II), os sistemas de risco elevado
(Título III), sem esquecer as necessidades de transparência e
medidas de apoio à inovação (Títulos IV e V, respetivamente).
68 Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho que estabelece Regras
harmonizadas em Matéria de Inteligência Artificial (Regulamento Inteligência Artificial) e altera
determinados Atos Legislativos da União. [Consultado em 22/06/2022]. Disponível em
https://eur-lex.europa.eu/legal- content/PT/TXT/?uri=CELEX:52021PC0206.
69 Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho que estabelece Regras
harmonizadas em Matéria de Inteligência Artificial (Regulamento Inteligência Artificial) e altera
determinados Atos Legislativos da União. [Consultado em 22/06/2022]. Disponível em
https://eur-lex.europa.eu/legal- content/PT/TXT/?uri=CELEX:52021PC0206.
70 Mais concretamente o Considerando 3.
63
2. Implicações da Covid-19 nas técnicas de IA e a
(in)compatibilidade com os Direitos Fundamentais:
Da pandemia resultaram inúmeras possibilidades de
exploração da IA que se inserem no âmbito dos sistemas de risco
elevado da Proposta, regulados no Título III e especificados no
Anexo III, ex vi do artigo 6.º, n.º 2, da Proposta. É objetivo do
presente artigo dar a conhecer algumas técnicas de IA que surgiram
no seio desses mesmos sistemas, com o contexto pandémico, que
nos vieram mostrar que é uma realidade bem próxima,
problematizando, assim, a eventual continuidade de determinadas
medidas e a sua evolução para técnicas ainda mais avançadas. É
pertinente avaliar que interesses públicos estas medidas
efetivamente asseguram e se estão em consonância com a
segurança, privacidade, imparcialidade e dignidade da pessoa
humana que a Proposta pretende salvaguardar, já que as técnicas
de IA são caracterizadas, não raras vezes, por alguma opacidade.
64
2.1. Em alguns sistemas de risco elevado:
No que diz respeito à área da saúde 71 , indubitável é a
evolução e a importância da IA, desde uma maior precisão e
rapidez no diagnóstico pelos equipamentos tecnológicos, passando
por um melhor acompanhamento e monotorização dos doentes,
até uma maior eficiência no âmbito da farmacologia 72 .
Em concreto, com a pandemia, a comunidade científica
procurou conhecer o vírus e as suas consequências; o uso da IA foi
– e é – fundamental na deteção, resposta, prevenção e recuperação
da doença (assim como de outras, naturalmente). Vejamos, de
seguida, algumas técnicas, a título exemplificativo 73 .
Como forma de prevenção, foi criada a EpiRisk,
plataforma destinada a criar probabilidades de deslocação de
infetados de locais onde existam surtos para outras áreas do
mundo, por via de transporte aéreo. Selecionando um determinado
país no mapa, é- nos dada a informação acerca dos principais
71 Área com inúmeros sistemas de IA identificados pelo artigo 6.o da Proposta como sendo de risco
elevado, e concretizados pelo ponto n.º 5 do Anexo III e pelo artigo 7.º, n.º 1, alínea b), da referida
Proposta.
72 PD PORTUGAL, Redação – “Efeitos da Inteligência Artificial na Medicina”. [Consultado em:
17.06.2022]. Disponível em: https://www.apd.pt/efeitos-da-inteligencia-artificial-na-medicina/.
73 A este respeito, v. artigo: OCDE – “Usando a inteligência artificial para ajudar no combate à
COVID- 19”. [Consultado em: 01.05.2022]. Disponível em:
https://www.oecd.org/coronavirus/policy- responses/usando-a-inteligencia-artificial-para-ajudarno-combate-a-covid-19-a569dd72/.
65
destinos que são apresentados relativamente ao risco de
importação de casos de infeção 74 . Não podemos esquecer, ainda,
as inúmeras aplicações e plataformas criadas em diversos países
para monitorizar e identificar casos de infeção e cadeias de
transmissão, obtendo dados de localização dos cidadãos,
controlando o contacto entre estes, enviando até mensagens de
alerta em caso de infeção próximo. Em Portugal, nasce para esse
efeito a aplicação StayAway Covid, criada pela Direção Geral da
Saúde (DGS), como forma de rastreio digital da doença. Em Itália,
o uso do robot Tommy, durante o surto de Covid-19, 75 foi crucial na
supervisão de cada paciente e recolha de informações a serem
transmitidas à equipa clínica, fazendo com que a mesma reduzisse
o contacto direto com os doentes, reduzindo, assim, o risco de
infeção.
No que concerne às medidas que visam dar resposta,
apostou-se na criação de chatbots para esclarecer dúvidas
relacionadas com a doença. Em Portugal, a ferramenta com base
em algoritmos da UpHill 76 fornece a informação necessária, que
74
PROJECT, Gleam – “EpiRisk”. [Consultado em: 17/06/2022]. Disponível em:
https://epirisk.net/.
75 REUTERS, Agência (Jornal Público) – “Tommy, o «enfermeiro-robot» que ajuda os médicos
italianos a lutar contra a Covid-19”. [Consultado em: 17.06.2022]. Disponível em:
https://www.publico.pt/2020/04/01/fotogaleria/tommy-the-robot-400929.
76 A funcionalidade pode ser testada em UPHILL; DGS – “Autogestão COVID-19/Autogestão de
Condição pós-COVID-19”. [Consultado em: 17/06/2022]. Disponível em:
https://covid19.uphill.pt/.
66
vai sendo atualizada, e de forma credível, para que cada cidadão
entenda a sua situação particular e saiba como agir em
conformidade com a mesma. Este mecanismo veio permitir que as
linhas de atendimento ao utente se vissem mais desimpedidas,
particularmente no que toca a dúvidas que podem, por esta via, ser
esclarecidas, também de forma eficaz, permitindo ainda que os
casos mais graves e que necessitam de uma atenção mais célere a
possam conseguir.
Relativamente às técnicas utilizadas para tratamento e
recuperação, tem imperiosa relevância o uso do mecanismo de
reproposição de medicamentos: são criados algoritmos que usam
gráficos médicos para prever novas ligações entre medicamentos
já no mercado e doenças já existentes, analisando moléculas ativas
contra o coronavírus 77 . Pode isto ser uma alternativa à espera de
uma solução criada originariamente para o tratamento deste vírus,
questão que durante toda a pandemia e até hoje tem sido
investigada pela comunidade científica.
Perante períodos de instabilidade e insegurança, estes
exemplos informam aquilo que é a vantagem da IA neste campo.
A dúvida prende-se em saber qual é o limite, até que ponto obter
77 Assim como nos diz FISZMAN, Marcelo – “Inteligência Artificial na reproposição de drogas
para COVID-19”. [Consultado em: 01.05.2022]. Disponível em:
http://evidenciascovid19.ibict.br/index.php/tag/inteligencia-artificial/.
67
dados confidenciais do cidadão (como nas técnicas de prevenção
supra referidas) não significa desrespeitar o seu direito à vida
privada e familiar e à proteção de dados pessoais (plasmados nos
artigos 7.º e 8.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União
Europeia (CDFUE) e 26.º, n.º 1, da Constituição da República
Portuguesa (CRP)) – no caso das aplicações de rastreio – e até
mesmo a sua liberdade (artigos 6.º CDFUE e 27.º CRP). Em
relação aos métodos de diagnóstico e de tratamento, poderá
garantir-se, veementemente, que o uso combinado de
determinados componentes dos fármacos não seja prejudicial à
saúde ou que os diagnósticos se revelam íntegros? Será isto uma
potencial violação do direito à saúde e à sua proteção (artigos 35.º
CDFUE e 64.º CRP) e até, em ultima ratio, do direito à vida (artigos
2.º CDFUE e 24.º CRP)? Como disposto no considerando 28 da
Proposta, “(...) os sistemas de diagnóstico e sistemas que apoiam
decisões humanas devem produzir resultados exatos e de
confiança”. A verdade é que a informação recolhida sobre os
doentes, nestas plataformas, pode ser utilizada sem ter em conta o
histórico do paciente e o uso de uma máquina poderá conduzir a
68
diversos efeitos prejudiciais, não obstante o facto de os médicos
poderem introduzir dados erróneos na realização desses sistemas 78 .
Quanto aos “enfermeiros-robot”, importa equacionar as
eventuais vantagens de um sistema de saúde em que os doentes
não passam de um mero número num algoritmo vazio, quando são
privados do contacto direto com os profissionais, privilegiando o
sucesso dos resultados. Não será oportuno refletir sobre o impacto
do contacto humano no processo de recuperação do doente?
Com a Covid-19, também o indivíduo teve de se reinventar
na esfera da educação 79 , nomeadamente com a adoção do ensino à
distância. Segundo Alessandra Montini, “[a] educação foi um dos
setores mais atingidos pela pandemia da Covid-19. Com o
fechamento das instituições de ensino, foi preciso transferir as salas
de aula para o mundo digital, o que exigiu um grande esforço das
escolas e educadores” 80 .
78 DN/LUSA, Diário de Notícias – “Há riscos éticos no uso de inteligência artificial na medicina”.
[Consultado em: 17.06.2022]. Disponível em: https://www.dn.pt/sociedade/cientistas-alertampara-riscos-
eticos-de-uso-de-inteligencia-artificial-na-medicina-9187889.html.
79 Área também identificada pelo artigo 6.o da Proposta como sendo de risco elevado,
concretizada pelo ponto n.o 3 do Anexo III, neste caso, a alínea b).
80 MONTINI, Alessandra – “O que a inteligência artificial pode fazer pela educação?”. [Consultado
em: 04.05.2022]. Disponível em: https://infranewstelecom.com.br/o-que-a-inteligencia-artificialpode-fazer-
pela-educacao/.
69
De forma sumária e exemplificativa, podemos apontar
sistemas de avaliação que prescindem de mão humana na correção
de provas, sistemas que detetam as expressões faciais do aluno na
realização dos testes ou durante as aulas 81 ou a criação de bots que
respondem às dúvidas dos estudantes autonomamente 82 .
Mais uma vez, a IA mostrou a sua importância e o seu
valor, pese embora seja legítimo que se questione se não estarão a
ser prejudicados o direito à educação (artigos 14.º CDFUE, 73.oºe
74.º CRP), assim como outros direitos já referidos anteriormente,
como o direito à proteção dos dados pessoais (dos alunos), à sua
privacidade e sobretudo à dignidade (artigos 1.º CDFUE e 1.º
CRP). Naturalmente, a correção de provas não é um exercício
meramente objetivo, há critérios de subjetividade e de criatividade
que, em determinadas circunstâncias, devem ser atendidos e uma
máquina poderá não ser capaz de o fazer. Nem todas as questões
poderão, à partida, ser subsumíveis a um algoritmo. Veja-se o caso
81 Não precisamos de ir muito longe: a plataforma Respondus, aplicada na Universidade do Minho
na realização de testes online.
82 A Staffordshire University, em Inglaterra, criou o “Beacon”, bot que ajuda os estudantes universitários
no seu percurso académico, esclarecendo questões de forma mais rápida. Sobre este tema,
COURTOIS, Jean-Philippe (Microsoft) – “Como a IA está transformando a educação e o
desenvolvimento de habilidades”. [Consultado em: 04/05/2022]. Disponível em:
https://news.microsoft.com/pt-br/como-ia-esta-transformando-educacao-desenvolvimentohabilidades/.
O website deste bot e algumas informações podem ser encontradas em
STAFFORDSHIRE UNIVERSITY – “Beacon - Your digital coach”. [Consultado em:
17/06/2022]. Disponível em: https://www.staffs.ac.uk/students/digital-services/beacon.
70
de alunos com necessidades educativas especiais: não parece viável
que um software tenha a empatia e o cuidado necessários para
acompanhar essas necessidades, se não é formatado para atender a
uma ou outra situação individual.
Será de extrema relevância mencionar que, na perspetiva
do professor, poderá estar inclusive em causa o direito ao trabalho
(artigos 15.º CDFUE, 47.º, n.º 1, e 58.º CRP). Com a pandemia
Covid-19, por volta de um milhão de portugueses passou a
trabalhar remotamente, com o fim de se evitar a propagação do
vírus 83 .
Embora não possamos dizer que o teletrabalho prejudica
diretamente este direito fundamental, pois é certo que não se está
a privar alguém de exercer as suas funções e, consequentemente,
de obter a remuneração do seu trabalho, a verdade é que esta
profissão poderá vir a ser “inutilizada” se forem adotadas
prospetivamente estas medidas, se se chegar à conclusão que é
possível o ensino desprovido de professores e que as novas
tecnologias os podem substituir. É uma questão muito complexa e
que exige uma problematização mais aprofundada.
83 GOMES, Maria Irene – “O Teletrabalho e as Condições de Trabalho: Desafios e Problemas” in
E. Tec Yearbook – Artificial Intelligence & Robots, Braga, 2184-707X, JusGov/University of Minho –
School of Law, 2020, p. 142 (pp. 141-169).
71
O mesmo acontece em relação aos profissionais de saúde,
que, embora hoje nos pareçam imprescindíveis e insubstituíveis, a
verdade é que caminhamos no sentido de, cada vez mais,
podermos abdicar de recursos humanos e utilizar a IA a nosso
favor, não só para efeitos de celeridade e eficácia, mas também para
efeitos de proteção do indivíduo. Note-se que, em
estabelecimentos de saúde, a propagação de doenças e a possível
infeção dos profissionais sempre foi um problema que a Covid-19
apenas veio acentuar.
2.2. Eventuais soluções e a Proposta de Regulamento:
Partindo do Princípio ubi ius, ibi remedium e do Princípio da
Tutela Jurisdicional Efetiva (artigo 20.º CRP), na eventualidade da
violação de um direito, o cidadão tem o direito de se defender, de
aceder aos tribunais para fazer valer os seus direitos individuais.
Assim, toda e qualquer lesão a um bem jurídico deve encontrar
uma resposta no mundo jurídico 84 .
No caso vertente, o exercício de proteção destes direitos
fundamentais deverá ser realizado ex ante – é, aliás, o grande desafio
84 DIAS, Jorge de Figueiredo – Direito Penal, Parte Geral. Tomo I. Questões Fundamentais, A
Doutrina Geral do Crime. 3.a edição. Coimbra: Gestlegal, 2019, p. 130.
72
que a União Europeia se propôs a ultrapassar com a Proposta – até
porque o Direito não pode, nem deve, ter uma função apenas de
reação, mas de antevisão e previsão de eventuais litígios, maxime no
que diz respeito a técnicas que ainda estão em desenvolvimento e
investigação e que são consideradas de risco elevado.
Tendo em conta os riscos suprarreferidos, a Proposta
introduz requisitos destinados aos sistemas de IA em áreas
delicadas como estas, aos fornecedores – que devem assegurar,
desde logo, o cumprimento do disposto no artigo 16.o – bem
como aos utilizadores destes mesmos sistemas, como a
necessidade do estabelecimento de um sistema de gestão de riscos
(artigo 9.º), de uma avaliação prévia à colocação no mercado (artigo
19.º) e a imperiosidade da transparência, da informação aos
utilizadores (artigo 13.º), da cibersegurança e sobretudo da
supervisão humana (artigo 14.º) 85 .
Relevante será, após uma análise profunda de cada uma
destas exigências, saber se as mesmas serão suficientes para
salvaguardar e proteger a esfera jurídica de cada indivíduo; essa
análise deverá ser feita de forma casuística, isto é, atendendo a cada
85 O considerando 48 da Proposta prevê a necessidade de os sistemas de IA de risco elevado serem
desenvolvidos de forma a possibilitar a supervisão humana. A identificação destas medidas deverá
ser realizada numa fase anterior à colocação no mercado.
73
software ou hardware, problematizando todas as questões enunciadas
e procurando obter soluções apropriadas para as mesmas.
Mais do que necessário, é urgente que haja uma
ponderação rigorosa entre a vantagem de uma determinada técnica
de IA e o prejuízo que poderá comportar para o cidadão, sendo
imperativo que essa ponderação seja desejavelmente preventiva e
não meramente reativa.
3. Notas conclusivas:
É certo que o ser humano vive em constante evolução e só
progride quando ultrapassa os seus limites, quando é capaz de criar
e partilhar a sua inteligência com outras realidades. Ao longo dos
séculos, e em diversos ramos da vida social, assistimos a um
crescendo de informações e de tecnologias que fizeram com que,
nos dias de hoje, nos possamos considerar seres verdadeiramente
evoluídos. A verdade é que o Direito é mutável, acompanha esse
caminho de constante progressão e tem uma função criadora de
segurança e de certeza 86 ; mas o Direito é feito de pessoas: não só
pessoas que criem e/ou supervisionem, mas pessoas que o sejam na
86 EWALD HÖRSTER, Heinrich; MOREIRA DA SILVA, Eva Sónia – A Parte Geral do Código
Civil Português. 2.a edição. Coimbra: Almedina, 2019, p. 14.
74
verdadeira aceção da palavra ser. Só sendo é que garantimos que o
outro vive com a sua dignidade, com a sua liberdade, com a sua
privacidade. São bens jurídicos consagrados em inúmeros
diplomas nacionais e supranacionais, mas, acima de tudo, são
valores que nos permitem articular o (necessário) avanço da
Ciência – que não pretendemos prejudicar – com a essência do ser
humano. “Entregar” a pessoa e as suas funções à IA com limites
nem sempre claros e, por vezes, insuficientes para cada sistema de
risco poderá ser deveras perigoso, aspeto que exige uma maior
dedicação normativa a cada uma destas áreas e uma prevenção
rigorosa da violação dos direitos fundamentais que poderá estar
efetivamente em causa.
A Covid-19 veio particularmente mostrar-nos que o futuro
é uma realidade não muito distante e que são possíveis
(imperativas!) mudanças proficientes. Aprofundar a sua
regulamentação é fulcral na garantia do respeito pela
individualidade de cada ser humano, assim como um permanente
“diálogo sério e profícuo entre juristas e cientistas” 87 , a fim de se
alcançar a almejada compatibilização, que entendemos ser
87 IDALGO, Sónia – A Inteligência Artificial no Direito Penal. Coimbra: Almedina, 2020, p. 156.
75
necessária, entre uma sociedade moderna e um cidadão
integralmente respeitado.
Ana Teresa Cruz
Estudante do 3.º ano da Licenciatura em Direito da Universidade do Minho
76
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E A
DECISÃO JUDICIAL: SISTEMA DE
JUSTIÇA NO RUMO CERTO?
Resumo:
Entre promessas de efetividade, celeridade, segurança jurídica e
economia de recursos surgem propostas de implementação de sistemas de IA
no Direito, mais concretamente, no âmbito do processo de tomada de decisão
nos tribunais. O Juiz-Robot emerge da mudança paradigmática que se opera na
sociedade.
A este respeito emergem duas possibilidades, designadamente, a
aplicação da IA no sistema judiciário externamente, figurando o sistema de IA
como um mero auxiliar do juiz na busca de legislação, jurisprudência ou
doutrina, por exemplo; ou a aplicação interna, onde se pretende substituir a
tomada de decisão do julgador por um algoritmo, criando assim, um “Juiz-
Robot”.
Debruçar-nos-emos sobre alguns problemas que surgem ou poderão
surgir na eventualidade da tomada de decisão pela mão do juiz ser substituída
por um algoritmo. Analisaremos criticamente, neste âmbito, a Proposta de
Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, relativa ao
estabelecimento de regras harmonizadas sobre a inteligência artificial.
77
Palavras-chave:
Fundamentais.
Inteligência Artificial, União Europeia, Juiz-Robot, Direitos
Sumário:
1. Notas Introdutórias;
2. Definição de Inteligência Artificial:
3. Problemas da decisão tomada por um sistema de AI:
2.1. Dificuldade de formalização do raciocínio jurídico;
2.2. O problema de decisão algorítmica: riscos para a não
discriminação;
2.3. Riscos para outros direitos fundamentais: particularmente para o
direito à ação e a um tribunal imparcial (artigo 47.º da Carta de Direitos
Fundamentais da UE);
4. Notas Conclusivas;
78
1. Notas Introdutórias
Inimaginável a Pós-Modernidade sem tecnologia; a
segunda tornou-se uma protagonista na vida do Homem. Verificase
a inevitabilidade de referir a chamada Inteligência Artificial (IA):
uma inteligência que se pretende vir a ser similar à humana,
verificada por mecanismos e software. A sua crescente utilização e
incursão na vida do homem não poupou as preocupações da União
Europeia, que divulgou, pioneiramente, um diploma regulamentar
da IA.
No dia 21 de abril de 2021, a Comissão Europeia
apresentou uma Proposta de Regulamento do Parlamento
Europeu e do Conselho, relativa ao estabelecimento de regras
harmonizadas sobre a Inteligência Artificial (doravante Proposta),
a concretização do compromisso político assumido por Ursula von
der Leyen 88 . Urge a necessidade de regular sobre a mais recente
novidade tecnológica pela expressividade crescente que tem vindo
a apresentar na sociedade. O Judiciário não é exceção: têm-se
88 Proposta de Regulamento Inteligência Artificial. [Consultado em: 9/05/2022]. Disponível em:
https://eurlex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX:52021PC0206.
79
verificado algumas experiências de sistemas inteligentes, tais como,
o COMPAS, o Vítor, a Prometea, entre outros 89 .
A tecnologia é uma presença constante no quotidiano do
homem, à data da pós-modernidade, indissociável, presente nas
mais amplas práticas sociais, desde as mais elementares às mais
complexas. É uma alavanca de desenvolvimento da sociedade
global, bem como uma ferramenta cada vez mais utilizada nas
diversas áreas. O avanço tecnológico observa uma evolução
irreversível a um ritmo alucinante. A evolução tecnológica
apresenta-se fragmentada, na medida em que a cada rutura
paradigmática as novidades são descontínuas 90 , nunca descuidando
os passos anteriores. Estabelece uma estreita afinidade com a
sociedade e as suas particularidades espácio-temporalmente
limitadas, numa recíproca influência. Segundo Thomas Hughes a
capacidade de influência da sociedade no avanço tecnológico é
89 MOREIRA, Sónia - “Artificial Intelligence: Brief Considerations Regarding the Robot-Judge”.
In Governance & Technology - E-Tec Yearbook, JusGov - Research Centre for Justice and
Governance/University of Minho - School of Law, 2021, pp. 301-304. [Consultado em:
29/06/2022] Disponível em: https://www.jusgov.uminho.pt/publicacoes/etec-yearbook-2021-2/.
90 Não é uma ideia consensual. “Herbert Schillere Nicholas Garnham, por exemplo, põem o acento
tónico na continuidade e não na ruptura tecnológica, social e económica”. Cfr. SOUSA, Helena –
“Reflexões/Leituras”. In Comunicação e a Sociedade. E-ISSN: 2183-3575. Vol. 5, 2004, p. 168.
[Consultado em: 15/06/2022]. Disponível em:
https://revistacomsoc.pt/index.php/revistacomsoc/article/view/1248/1230.
80
demarcada por dois conceitos, essencialmente: momentum e reverse
salients. O primeiro é sugestivo da necessidade de emprego de
esforços de forma coletiva com o desígnio de ultrapassar os
obstáculos que impedem o avanço num determinado sistema
tecnológico (o autor refere que seria necessária a ação coletiva para
ultrapassar os obstáculos); a atuação da coletividade pressupõe que
sejam identificados os reverse salients, ou seja, os obstáculos (quem
impediam o desenvolvimento do sistema) convertidos em
problemas superáveis, cuja solução permite um desenvolvimento
efetivo. “Segundo Hughes, provavelmente a maioria das invenções
e desenvolvimentos tecnológicos resulta de esforços para corrigir
os reverse salients” 91 .
É possível identificar no progresso tecnológico quatro eras
ou movimento, “ou seja, épocas na evolução histórico-social do
homem marcadas pelo predomínio de um tipo de tecnologia. O
91 A propósito BENAKOUCHE, Tamara – TECNOLOGIA É SOCIEDADE: CONTRA A
NOÇÃO DE IMPACTO TECNOLÓGICO, p. 7. [Consultado em: 24/06/2022]. Disponível em:
https://pimentalab.milharal.org/files/2013/11/Tamara_Benakouche_Tecnologia_eh_Sociedade.p
df.
81
desenvolvimento tecnológico da humanidade pode ser classificado
em quatro eras: industrial, elétrica, eletrônica e da informação” 92 .
A IA surge no âmbito da era da informação, mais
concretamente a par do desenvolvimento da computação, neste
particular, em mecanismos de software. Segundo Castells o
conceito de tecnologias de informação “inclui um conjunto
convergente de tecnologias em micro-electrónica, computação
(hardware e software), telecomunicações, radiodifusão, optoelectrónica
e até engenharia genética e suas aplicações” 93 .
A IA é a novidade deste novo período de abnegação de
imperativo racionalismo da modernidade, a crença num progresso
linear e verdades absolutas, no qual a solidez e continuidade fora
substituída pela incerteza, esta permanente e irredutível, quer em
relação às pessoas, quer em relação ao mundo e ao modo como
nele se deve viver: a pós-modernidade 94 .
92 MESSA, Ana Flávia e CAMILO, Carlos – “Diretrizes Éticas da Inteligência Artificial”. In E.TEC
YEARBOOK Articial Intelligence & Robots. School of Law of the University of Minho, 2020, p.
3. [Consultado em: 25/06/2022]. Disponível em:
https://www.jusgov.uminho.pt/publicacoes/etec-yearbook-2020-2-2/.
93 SOUSA, Helena – “Reflexões/Leituras”, cit., p. 168.
94 Harvey e Bauman/ SOUZA, Eloisio – “Pós-modernidade nos estudos organizacionais:
equívocos, antagonismos e dilemas”. In Cad. EBAPE.BR. Rio de Janeiro. v. 10, 2012, pp. 271-272.
82
2. Definição de Inteligência Artificial
Têm sido apostadas algumas tentativas para cumprir a
tarefa da definição de IA, que se afigura um tanto ou quanto
complexa. Designadamente, a Autoridade Norueguesa de Proteção
de Dados no relatório “Artificial intelligence and privacy”, de
janeiro de 2018, avança com a seguinte definição: “Artificial
intelligence (AI) is the concept used to describe computer systems
that are able to learn from their own experiences and solve
complex problems in different situations – abilities we previously
thought were unique to mankind. And it is data, in many cases
personal
data, that fuels these systems, enabling them to learn and become
intelligent” 95 .
Até à data da divulgação da Proposta a Comissão Europeia,
em 2018, propunha a seguinte definição: “Artificial intelligence
(AI) refers to systems that display intelligent behaviour by
analysing their environment and taking actions – with some degree
[Consultado em: 24/06/2022]. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/cebape/a/TmkfjwXQYCrDrxYznHnM5gr/?format=pdf&lang=pt.
95 Artificial intelligence and privacy report. Datatylsinet, 2018, p. 5. [Consultado em: 25/06/2022].
Disponível em: https://www.datatilsynet.no/globalassets/global/english/ai-and-privacy.pdf.
83
of autonomy – to achieve specific goals” 96 . Esta foi substituída por
uma definição (que decorre da Proposta) - “A inteligência artificial
(IA) é uma família de tecnologias em rápida evolução capaz de
oferecer um vasto conjunto de benefícios económicos e sociais a
todo o leque de indústrias e atividades sociais” 97 - à qual têm vindo
a ser tecidas algumas críticas, como por exemplo, pelo seu carácter
lato e amplo capaz de incluir no quadro regulamentar softwares
que, vulgarmente, não sejam classificados como tal (como sistemas
de IA, entenda-se) 98 .
Simplificando, a IA pode ser definida como a tentativa de
reprodução, em sistemas artificiais, da cognição humana dos seus
mais variados componentes, como a aprendizagem, a memória e o
processo de tomada de decisões. Assim, a missão da Inteligência
Artificial consubstancia-se na descrição com precisão de
96 EUROPEAN COMISSION, Communication from the Commission to the European
Parliament, the European Council, the Council, the European Economic and Social Committee and
the Committee of the Regions on Artificial Intelligence for Europe, Brussels, 25.4.2018 COM (2018)
237 final. [Consultado em: 24/06/2022]. Disponível em: https://eurlex.europa.eu/legalcontent/EN/TXT/?uri=COM%3A2018%3A237%3AFIN
97 Proposta, artigo 3.o, n.o 1.
98 Sobre esta questão consultar RAPOSO, Vera Lúcia – “Draft Regulation on Artificial Intelligence:
The devil is in the details”. In Privacy and Data Protection Magazine - Revista Científica na Área
Jurídica. Lisboa. ISSN: 2184-920X. N.o 03, 2021, p. 12. [Consultado em: 28/06/2022]. Disponível
em: https://bo.europeia.pt/content/files/pdpm_003_2.pdf.
84
habilidades humanas a ponto de conseguir programá-las num
computador. Pelas palavras de John McCarthy, “fazer com que
uma máquina se comporte de maneira que, caso se tratasse de um
ser humano, seria considerada inteligente" 99 .
3. Problemas da decisão tomada por um sistema de AI
3.1. Dificuldade de formalização do raciocínio jurídico
No Direito, a IA é utilizada por meio da estruturação de
algoritmos, os quais se caracterizam como um procedimento
lógico voltado à solução de determinado problema, tendo como
ponto de partida os dados que são fornecidos ao sistema - input -
como, por exemplo, os padrões de factos, os padrões de
documentos, decisões de casos analógicos e os precedentes, e
como ponto de chegada - output - o resultado alcançado. Assim, o
99 OLIVEIRA, Samuel e COSTA, Ramón – “Pode a Máquina Julgar? Considerações sobre o Uso
de Inteligência Artificial no Processo de Decisão Judicial”. In Revista de Argumentação e
Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre. e ISSN: 2526 0103. Vol. 4, no. 2, 2018, p. 24. [Consultado em:
28/06/2022]. Disponível em:
https://www.academia.edu/38733203/PODE_A_M%C3%81QUINA_JULGAR_CONSIDERA
%C3%87%C3%95ES_SOBRE_O_USO_DE_INTELIG%C3%8ANCIA_ARTIFICIAL_NO_P
ROCESSO_DE_DECIS%C3%83O_JUDICIAL.
85
sistema, para que assuma um papel ativo na tomada de decisão 100 ,
carece de estímulos externos que deverão ser providenciados pelo
seu fornecedor. O primeiro problema coloca-se neste particular.
Será este processo compatível com o método jurídico? Não é de se
olvidar a integração do ordenamento jurídico na família jurídica
Civil Law, considerando as especificidades da mesma,
designadamente a opção lógica normativa: o processo dedutivo 101 .
A estreita ligação entre o direito material e o direito processual
opera-se segundo um silogismo judiciário, partindo-se de uma
premissa maior até uma premissa menor, permitindo-se assim o
alcance de uma conclusão 102 . Porém não se traduz num processo
mecânico com uma total expurgação do processo criativo. Este
último pontua em dois momentos essencialmente. À uma, na
interpretação da lei, artigo 9º do Código Civil (CC). Segundo o
número 1 do presente preceito legal, o intérprete deverá socorrer-
100 Em bom rigor é uma escolha e não uma decisão. No nosso entendimento, os sistemas de AI
apenas são capazes de escolha. A decisão é um processo complexo. Os processos complexos não se
desenvolvem mediante mecanicidade, tampouco se contentam apenas com cálculos e memória, pois
exigem uma esfera de decisão que deverá ser tomada. Será um sistema IA capaz de processos
complexos? Cfr. MESSA, Ana Flávia e CAMILO, Carlos – “Diretrizes Éticas da Inteligência
Artificial”, cit., p. 14.
101 CORTÊS, António - Para uma Metodologia Jurídica Integral, p. 40. [Consultado em:
28/06/2022]. Disponível em: file:///C:/Users/USER/Downloads/9875-Artigo-16911-1-10-
20210403.pdf.
102 15 CORTÊS, António - Para uma Metodologia Jurídica Integral, cit., p. 41.
86
se dos elementos literal, histórico, sistemático e teleológico.
Observe-se a margem de apreciação e conformação devolvida ao
julgador que não deverá proceder a uma aplicação "cega" da letra
da lei 103 . À outra, na integração de lacunas, artigo 10º do CC.
Quando confrontado com o vazio legal, o julgador, com recurso à
analogia, poderá criar uma norma ad hoc, na falta de caso análogo,
aplicável somente ao caso concreto, artigo 10º, n.º 3, do CC 104 .
Receamos a incapacidade do exercício racional lógico apto a
relacionar os elementos do caso concreto à generalidade e
abstração da norma, por parte de um sistema de IA, ou seja, a
impossibilidade de subsunção. O mesmo se diga relativamente às
lacunas. Não estamos convictos de que um algoritmo seja capaz de
decidir em conformidade com as exigências do silogismo
judiciário, tal como ele se configura no ordenamento jurídico
português.
Note-se que as próprias técnicas legislativas poderão
obstaculizar a decisão autónoma, ou melhor, esta poderá ser
incompatível com as primeiras. A título exemplificativo, veja-se as
103 MOREIRA, Sónia, “Artificial Intelligence: Brief Considerations Regarding The Robot-Judge”,
cit., p. 304.
104 CAMBINDA, Hernani - A “Integração Constitutiva” do Direito, p. 65. [Consultado em:
28/06/2022]. Disponível em: file:///C:/Users/USER/Downloads/9238-Artigo-15458-1-10-
20200701.pdf.
87
cláusulas gerais e os conceitos indeterminados. Questiona-se, será
o Juiz-Robot capaz de decidir segundo a equidade ou de aplicar
princípios? Não bastaria um “mero arranjo da dogmática
tradicional do Direito Civil” 105 , senão do processo de aplicação da
norma. Afinal a “Justiça é mais do que a mera aplicação da lei” 106 .
3.2 O problema de decisão algorítmica: riscos para a não
discriminação
Os sistemas inteligentes poderão revestir-se de autonomia,
porém diversa da autonomia humana (como demonstraremos
infra), isto é, “capazes de evoluir para além da sua programação,
utilizando machine learning ou mesmo deep learning, tornando-se cada
105 FREITAS, Pedro “Veículos Autónomos e «Inteligentes» Perante Conflito de Interesses: Uma
Visão a Partir do Direito e de Necessidade Jurídico Penal”, in E.TEC YEARBOOK Articial
Intelligence & Robots School of Law of the University of Minho, 2020, p. 56. [Consultado em:
25/06/2022]. Disponível em: https://www.jusgov.uminho.pt/publicacoes/etec-yearbook-2020-2-
2/.
106 MOREIRA, Sónia, “Artificial Intelligence: Brief Considerations Regarding The Robot-Judge”,
cit, p. 298.
88
vez mais aptos a resolver os problemas para os quais foram
criados” 107 .
Caracterizam-se como um procedimento lógico voltado à
solução de determinado problema, tendo como ponto de partida
os dados que são fornecidos ao sistema e como ponto de chegada,
o resultado alcançado, como foi já descrito anteriormente. Assim
a decisão tomada pelo algoritmo, ainda que de forma independente
pelo até aqui disposto, dependerá sempre dos inputs que foram
fornecidos pelo programador 108 . A par dos problemas de
responsabilidade civil que poderão ser suscitados neste particular,
surgem outras preocupações: decisões enviesadas.
Contrariamente à crença coletiva de que os sistemas
baseados em IA são objetivos, imparciais e até neutros, na medida
em que a subjetividade humana é substituída por resultados
imparciais, estes podem refletir preconceitos e vieses humanos.
Segundo Núbia Oliveira, Deilton Brasil e Jamile Diz, as
discriminações algorítmicas devem-se essencialmente a três
107 MOREIRA, Sónia, “Artificial Intelligence: Brief Considerations Regarding The Robot-Judge”,
cit., p. 300.
108 MOREIRA, Sónia, “Artificial Intelligence: Brief Considerations Regarding The Robot-Judge”,
cit., p. 301.
89
fatores 109 : 1) falta de precisão dos sistemas, remetem para as
limitações a nível técnico dos próprios sistemas que impedem
resultados totalmente eficazes; 2) os dados que são inseridos pelos
programadores comportam já as suas preferências pessoais; 3) falta
de diversidade dos programadores.
Há que ter claro que as decisões tomadas nestes conformes
poderão apresentar um duplo vício. À uma, as decisões poderão
ser tendenciosas porque os dados com que são programadas
comportam preferências pessoais do programador, juízos de valor,
opiniões, etc., pelo que, a este nível corre-se o risco de se
perpetuarem padrões sociais discriminatórios 110 . À outra, dados
incorretos ou até incompletos, que geram decisões,
consequentemente incorretas, o que também se revela
problemático, porque, atendendo à pretensão da cientificidade, em
relação ao resultado, poderão ser inquestionadas, despidas de
109 OLIVEIRA, Núbia, BRASIL, Deilton e DIZ, Jamile, “Decisões Automatizadas e Processos
Discriminatório: a Lei Geral de Proteção de Dados brasileira como mecanismo de governança”. In
Privacy and Data Protection Magazine - Revista Científica na Área Jurídica. Lisboa. ISSN: 2184-
920X. N.o 02, 2021, p. 58. [Consultado em: 28/06/2022]. Disponível em:
https://www.europeia.pt/content/files/pdpm_002.pdf.
110 A propósito, o COMPAS (Correctional Offender Management Profiling for Alternative
Sanctions), um sistema de IA utilizado em alguns tribunais norte-americanos corrobora o sentido
da presente afirmação. V. MOREIRA, Sónia, “Artificial Intelligence: Brief Considerations Regarding
The Robot-Judge”, cit., p. 302.
90
qualquer reflexão sobre o funcionamento do algoritmo. Esta
aceitação serena é coibitiva do impulso para a reverter. A diferença
entre dois níveis, reside no facto de no primeiro “a base de dados
utilizada pelo algoritmo está correta, mas o resultado do seu
empego é discriminatório” 111 .
A Proposta é solidária com as presentes preocupações.
Primeiro, em seu Considerando 38, assume a “forma
discriminatória ou incorreta e injusta” com que podem ser
destacadas pessoas por um sistema de IA, bem como podem ser
prejudicados “o exercício de importantes direitos processuais,
como o direito de ação e a um tribunal imparcial, a presunção de
inocência, e o direito de defesa” (dos primeiros trataremos
adiante). Em virtude de tal, considera “apropriado classificar como
de risco elevado 112 um conjunto de sistema de IA”. Reitera-se a
imperatividade de classificarem sistemas de IA “concebidos para a
administração da justiça e os processos democráticos” como de
risco elevado. Ademais, não se negam os “riscos de potenciais
enviesamentos, erros e opacidade”. Para os sistemas de IA de risco
111 CANTALI, Fernanda e ENGELMANN, Wilson, “Do não cognitivismo dos homens ao não
cognitivismo das máquinas: percursos para o uso de decisões judiciais automatizadas”. In Revista
Jurídica Portucalense / Portucalense Law Journal. E-ISSN: 2183-5705. N.o 29, 2021, p.52.
112 O quadro regulamentar sobre IA é baseado no risco e diferencia entre as utilizações que criam:
i) um risco inaceitável, ii) um risco elevado e iii) um risco baixo ou mínimo.
91
elevado, em conformidade com o disposto no Considerando 43 da
Proposta são previstos requisitos exigentes, impondo-se a
necessidade de implementação de um sistema de gestão do risco,
de cumprimento de requisitos relativos à qualidade dos dados
utilizados, disponibilidade de documentação técnica e conservação
de registos, prestação de informação aos utilizadores, supervisão
humana e requisitos de segurança dos sistemas 113 .
Encontramos na Proposta um mecanismo que
aparentemente poderia ultrapassar as decisões autónomas
discriminatórias. Ora vejamos, no artigo 10º, n.º 1, da Proposta,
advoga-se que os sistemas de IA de risco elevado que utilizem
técnicas que envolvam o treino de modelos com dados devem ser
desenvolvidos com base num conjunto de dados de treino,
validação e teste que cumpram os critérios de qualidade referidos
ainda no referido artigo em seus números 2 a 5. Atente-se aos
requisitos previstos no número 3, em particular “conjuntos de
dados de treino, validação e teste devem ser representativos,
isentos de erros e completos” (itálico nosso), ideia antecipada pelo
Considerando 44. Em tese, excluir-se-iam as hipóteses de
enviesamento das decisões tomadas pelos sistemas inteligentes de
forma autónoma e, numa lógica de proporcionalidade direta, as
113 Proposta, artigos 8º, 9º, 10º e 11º.
92
discriminações por elas logradas. No entanto, ficamo-nos pelo
plano teórico, “os especialistas salientam que um conjunto de
dados completamente livre de erros é utópico” 114 .
Vera Lúcia Raposo alerta-nos para a ambiguidade em que
habita a exigência que decorre do presente preceito legal. “Será que
o erro em causa se refere ao conjunto dos dados, à sua classificação,
à forma como o comportamento pretendido é representado, a
todos estes aspectos, ou ainda a outros? Por outro lado, quem
avalia a qualidade dos dados e com que critérios?” 115 . A autora é
acompanhada por Swedsof, quando afirma que “[a]ctors in the
market are already working towards these ideal standards simply
because it makes their models more efficient and effective, but the
ideals are practically unattainable. Even verifying that data is free
of any potential flaw that may affect the model outputs is
oftentimes impossible to do ex ante” 116 .
114 RAPOSO, Vera Lúcia – “Draft Regulation on Artificial Intelligence: The devil is in the details”.
In Privacy and Data Protection Magazine - Revista Científica na Área Jurídica. Lisboa. ISSN: 2184-
920X. N.o 03, 2021, p. 16.
115 RAPOSO, Vera Lúcia, “Draft Regulation on Artificial Intelligence: The devil is in the details”.
In Privacy and Data Protection Magazine - Revista Científica na Área Jurídica. Lisboa. ISSN: 2184-
920X. N.o 03, 2021, cit., p. 17.
116 SWEDSOF – “Comments Regarding the European Commission’s proposal for an Artificial
Intelligence Act”, 2021, p.4. [Consultado em: 24/06/2022]. Disponível em:
93
O Juiz-Robot poderá não proferir uma decisão não
discriminatória, assente no princípio da igualdade, quer na sua
dimensão formal, quer na sua dimensão material, apesar dos
mecanismos que têm vindo a ser apontados na tentativa de resolver
a grande problemática das decisões autónomas inquinadas. Por
enquanto, não será possível compatibilizar este processo decisório,
através de algoritmos e de forma autónoma, entenda-se, com os
desígnios do Princípio Não Discriminação 117 e do Princípio do
Respeito pelos Direitos Fundamentais, previstos na Carta
Europeia de Ética sobre a utilização da Inteligência Artificial nos
Sistemas Judiciais e seu Ambiente 118 , tampouco com o Princípio da
Igualdade, previsto no artigo 7º da Declaração Universal dos
Direitos Humanos 119 , no preâmbulo da Carta dos Direitos
https://www.regeringen.se/49eb04/contentassets/59dff9749d5e4cfa8d51146dd026ff62/swedsoft
.pdf.
117 “[O]s intervenientes públicos ou privados devem garantir que os métodos não reproduzem ou
agravam essa discriminação e que não conduzem a análise ou utilizações determinísticas”. – Carta
Europeia de Ética sobre a utilização da Inteligência Artificial nos Sistemas Judiciais e seu Ambiente.
[Consultado em: 29/06/2022]. Disponível em: https://rm.coe.int/carta-etica-traduzida-paraportugues-revista/168093b7e0.
118 EUROPEAN COMMISSION FOR THE EFFICIENCY OF JUSTICE (CEPEJ) – European
Ethical Charter on the use of Artificial Intelligence in Judicial Systems and their Environment.
[Consultado em: 26/06/2022]. Disponível em: ES250132_PREMS 005419 GBR 2013 charte
ethique CEPEJ WEB A5.pdf (coe.int).
119 Declaração Universal dos Direitos Humanos. [Consultado em: 29/06/2022]. Disponível em:
https://dre.pt/dre/geral/legislacao-relevante/declaracao-universal-direitos-humanos.
94
Fundamentais da União Europeia 120 , e ainda, no ordenamento
jurídico português, no artigo 13.o da Constituição da República
Portuguesa.
3.3 Riscos para outros direitos fundamentais:
particularmente para o direito à ação e a um tribunal
imparcial (artigo 47.º da Carta de Direitos Fundamentais da
UE)
As decisões proferidas pelo Juiz-Robot confrontam-se
com outros problemas também eles ameaçadores de direitos
fundamentais, designadamente, o direito à ação e o direito a um
tribunal imparcial.
Outros dos principais problemas relacionados com a
tomada de decisão mediante o emprego de Inteligência Artificial
refere-se à opacidade do algoritmo, já que, atualmente, existem
algumas situações em que o algoritmo não é revelado, para que se
120 Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. [Consultado em: 29/06/2022]. Disponível
em:
https://eur-lex.europa.eu/legalcontent/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:12016P/TXT&from=FR.
95
conheçam os critérios utilizados na sua programação que o levaram
ao processo decisório 121 .
Apontam-se dois fatores para a ausência de transparência
neste âmbito. Primeiro, o facto de os sistemas inteligentes serem
desenvolvidos por entidades privadas que optam por protegerem
informações sobre os seus algoritmos com amparo na proteção da
propriedade intelectual. Como destaca Jenna Burrel “algorithmic
opacity is a largely intentional form of self-protection by
corporations’ intent on maintaining their trade secrets and
competitive advantage” 122 . Depois, deve-se à própria autonomia
dos sistemas inteligentes, impossibilitando “uma explicação
inteligível sobre o modo de processamento interno da informação
pelos algoritmos treinados com redes neurais artificiais
profundas” 123 . A tecnologia opaca é um desafio à transparência, à
121 ENGELMANN, Alana – “Uso do Algoritmo como Instrumento de Construção da Decisão
Judicial e a Necessidade de Surpervisão do Uso da Tecnologia no Processo de Tomada de Decisões”.
In Revista ANNEP de Direito Processual. Vol 2, No. 1, 2021, p. 8.
122 BURRELL, Jenna. “How the machine ‘thinks’: Understanding opacity in machine learning
algorithms. Big Data & Society”, 2016. [Consultado em: 26/06/2022]. Disponível em:
https://doi.org/10.1177/2053951715622512.
123 MEDEIROS, Natália, “USO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NO PROCESSO DE
TOMADA DE DECISÕES JURISDICIONAIS: Uma análise sob a perspectiva da teoria normativa
da comparticipação”, p. 60. [Consultado em: 26/06/22]. Disponível em:
http://www.biblioteca.pucminas.br/teses/Direito_MedeirosNRFV_1.pdf.
96
qual a Proposta apela 124 inúmeras vezes 125 . Não ficam por aqui os
constrangimentos da black box. No plano jusprocessual revela-se
uma ameaça para o direito à ação, no particular direito de
fundamentação (uma dimensão do primeiro). O direito à ação
encontra-se previsto no artigo 47º da Carta de Direitos
Fundamentais da União Europeia 126 , bem como o artigo 20º da
Constituição da República Portuguesa.
A inacessibilidade ao caminho percorrido pelo sistema de
IA para a obtenção da decisão implica a inobservância da respetiva
fundamentação, pois o software não fundamenta as suas decisões.
Para além de resultar violado o direito à fundamentação resulta
igualmente afetado o direito de recurso 127 , uma vez que sem o
conhecimento do iter cognoscitivo que serve de base a um
124 Considerandos 14, 38, 39, 43, 47, 69 e 70, Artigos 1/d e 13, e Título IV da Proposta.
125 RAPOSO, Vera Lúcia, “Draft Regulation on Artificial Intelligence: The devil is in the details”,
cit., p.16.
126 Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. [Consultado em: 29/06/2022]. Disponível
em:
https://eur-lex.europa.eu/legalcontent/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:12016P/TXT&from=FR.
127 CANOTILHO, Gomes e MOREIRA, Vital, “Constituição da República Portuguesa –
Anotada”, Vol. 1, 2014, p. 181.
97
determinado resultado decisório judicial não é possível recorrer do
ato jurisdicional.
O direito à ação, previsto no artigo 47º da Carta e no nosso
ordenamento jurídico, no artigo 20º da Constituição da República
Portuguesa, pressupõe a tutela efetiva de direitos e interesses
legalmente protegidos por uma decisão de mérito, em tempo
razoável. Tal poderá resultar negativamente afetado se a decisão
judicial fosse proferida por um Juiz-Robot, por diversas
vicissitudes que poderão ser observadas no momento decisório. A
par do até então referido coloca-se em discussão a imparcialidade
da decisão nestas circunstâncias.
O exposto supra, a propósito das decisões algorítmicas
enviesadas, relembra- nos que os dados que servem de base aos
resultados conformam-se com elementos subjetivos, sendo que
estes poderão apresentar-se sob a forma de opções normativas ou
doutrinárias 128 , predileções políticas, enfim, clivagens pessoais
suficientes para converterem um resultado numa decisão parcial.
128 “Os dados (inputs) que alimentam a inteligência artificial são frutos de interpretações humanas
e, portanto, a depender de sua qualidade (...) seria perfeitamente possível obter decisões por demais
subjetivas”, ROQUE, André e SANTOS, Luca, “Inteligência artificial na tomada de decisões
judiciais: três premissas básicas”, Revista Eletrônica de Direito Processual (uerj.br), p. 67.
98
4. Notas conclusivas
A celeridade processual não é imperativa quando estão em
causa direitos fundamentais e, na mira, o sacrifício de
discriminação. A Proposta não se afigura complacente com a
decisão judicial autómata, levada a cabo por sistemas inteligentes,
sem se observar qualquer intervenção humana. Não olvidamos o
papel importante e os benefícios que os sistemas inteligentes
assumem na atualidade, inclusive, no processo judicial. No entanto,
a decisão deverá, por enquanto, ser tomada pelo homem, o único
capaz de uma decisão justa. Afinal esta justiça deve ser humana e
sobretudo humanista.
A timidez e reticência que se vive em Portugal,
designadamente pelas palavras reiteradas de Anabela Pedroso,
secretária de Estado (“[s]erá um humano a decidir” 129 ), é prudente
e a mais acertada. A IA deve auxiliar o homem na tomada de
decisão, mas esta deverá caber exclusivamente ao homem. Caso
[Consultado em: 24/06/2022]. Disponível em: https://www.epublicacoes.uerj.br/index.php/redp/article/view/53537.
129 MANDIM, David - A Inteligência Artificial ao serviço da Justiça. Pode haver um juiz-robô?
[Consultado em: 29/06/2022]. Disponível em: https://www.dn.pt/pais/a-inteligencia-artificial-aoservico-da-justica-pode-haver-um-juiz-robo--11408704.html.
99
contrário tratar-se-ia de um sacrifício violador de pilares do Estado
de Direito Democrático.
Não obstante o auxílio ao longo do processo judicial de
ferramentas inteligentes, a decisão judicial de composição do litígio
não poderá ser deixada à mercê da automação.
Liliana Marcela Soares Valente
Estudante do 3.º ano da Licenciatura da Universidade do Minho
100
DA PROPOSTA DE DIRETIVA DO
PARLAMENTO EUROPEU E DO
CONSELHO RELATIVA AO DEVER DE
DILIGÊNCIA DAS EMPRESAS E À
RESPONSABILIDADE EMPRESARIAL À
PROPOSTA DE DIRETIVA DA
COMISSÃO EUROPEIA RELATIVA AO
DEVER DE DILIGÊNCIA DAS
EMPRESAS EM MATÉRIA DE
SUSTENTABILIDADE
Resumo:
A heterogeneidade das normas voluntárias, criadora de distorções
entre empresas, e o facto de dificilmente produzirem o impacto necessário em
matéria de proteção de direitos humanos, prevenção de danos ambientais e boa
governação empresarial tornam necessária a adoção de legislação que vincule os
Estados-Membros a adotar medidas. Neste sentido, o Parlamento Europeu e o
Conselho apresentaram à Comissão Europeia uma Proposta de Diretiva.
Atendendo às recomendações das duas instituições, a Comissão Europeia
avançou, em fevereiro deste ano, com a Proposta. Uma vez aprovada, as
101
empresas ficam obrigadas a identificar e, se necessário, prevenir, eliminar ou
atenuar impactos adversos nos direitos humanos e no ambiente. Ao mesmo
tempo, os Administradores ficam incumbidos de implementar e supervisionar a
aplicação do dever de diligência na estratégia empresarial. O presente artigo
apresenta e compara, ainda que superficialmente, ambas as Propostas.
b
Palavras-chave:
Empresa, Dever de Diligência, Direitos Humanos, Ambiente, Sustentabilidade,
Boa Governação, Responsabilidade Empresarial.
B
Sumário:
1. A Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa
ao Dever de Diligência das Empresas e à Responsabilidade
Empresarial (2020/2129(INL)):
1.1. Delimitação Subjetiva;
1.2. Delimitação Objetiva;
1.3. Responsabilidade das Empresas;
1.4. Papel dos Administradores;
2. A Proposta de Diretiva da Comissão Europeia relativa ao Dever de
Diligência das Empresas em matéria de Sustentabilidade que altera a
Diretiva (EU) 2019/1937
2.1. Delimitação Subjetiva;
102
2.2. Delimitação Objetiva;
2.3. Responsabilidade das Empresas;
2.4. Papel dos Administradores;
3. Conclusões;
4. Referências;
103
1. A Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do
Conselho relativa ao Dever de Diligência 130 das Empresas e
à Responsabilidade Empresarial (2020/2129(INL))
Em 2020, perante as conclusões do estudo sobre os
requisitos de diligência devida nas cadeias de abastecimento 131 , a
Comissão Europeia comprometeu-se a avançar com uma proposta
legislativa em 2021. No mesmo sentido, em abril de 2020, o
Comissário Europeu para a área da Justiça, Didier Reynders,
anunciou que a União Europeia (doravante UE) planeava
desenvolver uma proposta legislativa que impusesse deveres de
diligência (due diligence) em matéria de direitos humanos e ambiente.
Nesse estudo analisava-se o impacto de quatro opções de
intervenção regulamentar pela UE. Concluiu-se que, entre as
opções analisadas, os impactos da “opção quatro” seriam os mais
130 Deve entender-se por “dever de diligência” “… a obrigação que incumbe a uma empresa de
tomar todas as medidas proporcionadas e adequadas e de envidar todos os esforços ao seu alcance
para evitar efeitos nefastos nos direitos humanos, no ambiente e na boa governação nas suas cadeias
de valor e corrigir esses efeitos negativos sempre que estes ocorram”. Na prática, consiste em “…
identificar, avaliar, prevenir, mitigar, cessar, monitorizar, comunicar, prestar contas, resolver e
corrigir os efeitos negativos potenciais e/ou reais nos direitos humanos … o que inclui o contributo
para as alterações climáticas, e na boa governação decorrentes das suas próprias atividades e nas das
suas relações empresariais na cadeia de valor”.
131 Study on due diligence requirements through the supply chain: final report, encomendado pela Comissão
Europeia. Disponível em:https://data.europa.eu.
104
expressivos. Esta opção pressupõe a adoção de regulamentos que
imponham o dever diligência como um dever legal de cuidado.
Além disso, nota-se que a melhoria da situação sócio-económicoambiental
nos países que acolhem fornecedores de empresas da
UE pode ter um efeito positivo na prossecução dos Objetivos de
Desenvolvimento Sustentável (doravante ODS) 132 . Contudo,
mesmo quando o due diligence é obrigatório, é difícil controlar e
impor o seu cumprimento.
Depois das Nações Unidas estabelecerem a
responsabilidade empresarial em matéria de direitos humanos
através dos Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos
Humanos (doravante PONU 133 ), a UE tem vindo a posicionar-se
pela necessidade de tornar obrigatório o dever de diligência nesta
matéria, nas questões ambientais e de boa governança, reforçando
a tendência mundial voltada para o cumprimento dos critérios
132 Os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) foram aprovados por unanimidade
pelos (193) Estados-membros da ONU, reunidos em Assembleia-Geral.
133 Os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos (PONU ou UNGP’s),
aprovados em 2011, pelo Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas, propuseram aos
Estados-Membros a redação de leis que exigissem das empresas o respeito pelos direitos humanos;
que assegurassem que outras leis e políticas que regem a criação e funcionamento das empresas
comerciais não condicionassem o respeito pelos direitos humanos; fornecessem orientações eficazes
às empresas sobre como respeitar os direitos humanos; entre outros.
105
ESG 134 pelas empresas.
Desta feita, e perante indícios crescentes de violação dos
direitos humanos e de degradação ambiental, o Parlamento
Europeu aprovou 135 , em março de 2021, no âmbito do processo
legislativo de preparação da Diretiva, uma Resolução com
recomendações (de caráter não vinculativo) dirigidas à Comissão
Europeia, no sentido de a levar a apresentar uma proposta
legislativa.
A Proposta de Diretiva tem por objetivo “garantir que as
empresas (…) cumpram o seu dever de respeitar os direitos
humanos, o ambiente e a boa governação e não causem efeitos
negativos, potenciais ou reais, nos direitos humanos, no ambiente
e na boa governação, ou para eles contribuam, (…) e que previnam
e atenuem esses efeitos negativos” 136 .
Estas recomendações surtiram efeito junto da instituição
presidida por Ursula von der Leyen que, em fevereiro de 2022,
134 Environmental, Sustainability and Governance. São um conjunto de critérios de conduta (ambientais,
sociais, governança) que ajudam as empresas a implementar boas práticas nos seus negócios.
135 Tendo em conta o artigo 225.º do TFUE.
136 Cfr. artigo 1.º da Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho. Disponível em:
https://eur lex.europa.eu.
106
aprovou uma Proposta de Diretiva relativa ao dever de diligência
das empresas em matéria de sustentabilidade.
1.1. Delimitação Subjetiva
A Proposta de Diretiva vincula empresas sediadas na UE ou fora
dela. Concretamente:
o Grandes empresas regidas pelo Direito de um Estado-Membro
ou estabelecidas no território da União;
o Pequenas e médias empresas (doravante PME) cotadas em
bolsa e pequenas e médias empresas que operem em setores de
alto risco;
o Grandes empresas e PME cotadas em bolsa e PME que
operem em setores de alto risco, que sejam regidas pelo Direito
de um País Terceiro e não estejam estabelecidas no território
da União, sempre que operem no mercado interno.
1.2. Delimitação Objetiva
Em matéria de dever de diligência, as empresas devem,
nomeadamente:
o Integrar o dever de diligência na sua estratégia (em
107
conformidade com o artigo 4.º):
¨ as empresas têm de cumprir um dever de diligência
efetivo no que diz respeito aos efeitos negativos, reais
ou potenciais, nos direitos humanos, no ambiente e na
boa governação 137 , nas suas operações e relações
empresariais 138 .
o Identificar impactos adversos, potenciais ou reais, nos direitos
humanos, no ambiente e na boa governação suscetíveis de estar
presentes nas suas operações e relações empresariais (em
conformidade com o artigo 4.º):
¨ o as empresas devem empenhar esforços para
identificar e avaliar a gravidade e urgência dos efeitos
potenciais ou reais da sua atuação nos direitos
humanos, no ambiente ou na boa governação; a
137 Para efeitos da Proposta de Diretiva, deve entender-se:
− por “efeito negativo, potencial ou real, nos direitos humanos” qualquer efeito negativo, potencial
ou real, suscetível de prejudicar o pleno usufruto dos direitos humanos por pessoas ou grupos
de pessoas no que respeita aos direitos humanos, incluindo os direitos sociais, laborais e
sindicais;
− por “efeito negativo, potencial ou real, no ambiente” qualquer violação das normas ambientais
internacionalmente reconhecidas e das normas ambientais da União;
− por “efeito negativo, potencial ou real, na boa governação” qualquer efeito negativo, potencial ou
real na boa governação de um país, região ou território.
138 Por “relações empresariais” se compreenda as filiais e as relações comerciais de uma empresa ao
longo da sua cadeia de valor, incluindo fornecedores e subcontratantes, que estejam diretamente
ligadas às operações comerciais, aos produtos ou aos serviços da empresa.
108
natureza e o contexto das suas operações; bem como a
determinar se as suas operações e relações
empresariais causam alguns desses efeitos negativos,
para eles contribuem ou a eles estão diretamente
ligados.
¨ Uma empresa deve concluir que não detetou efeitos
negativos se da identificação dos seus efeitos e da
análise da avaliação dos riscos determinar que as suas
filiais, cadeias de valor, relações empresariais,
subcontratantes e fornecedores diretos exercem o
dever de diligência.
o Adotar e indicar todas as políticas e medidas proporcionadas e
adequadas com vista a fazer cessar, prevenir ou atenuar os
efeitos negativos, potenciais ou reais, nos direitos humanos,
no ambiente ou na boa governação (em conformidade com o
artigo 4.º);
o Definir prioridades, caso não estejam em condições de lidar,
em simultâneo, com todos os efeitos negativos, potenciais ou
reais (em conformidade com o artigo 4.º):
¨ as empresas devem considerar o nível de gravidade,
probabilidade e urgência dos diferentes efeitos
109
negativos, potenciais ou reais, nos direitos humanos,
no ambiente ou na boa governação; a natureza e o
contexto das suas operações, nomeadamente, do
ponto de vista geográfico; o âmbito dos riscos, a sua
escala e o seu eventual caráter irremediável; e, se
necessário, utilizar uma política de definição de
prioridades para a sua gestão.
o Publicar e comunicar a estratégia adotada em matéria de dever
de diligência (em conformidade com o artigo 6.º):
¨ as empresas devem publicar a estratégia (atualizada)
por si adotada em matéria de dever de diligência, ou a
declaração que inclui a avaliação dos riscos e
disponibilizá-la, gratuitamente, em especial, nos seus
websites. De igual modo, devem comunicar a sua
estratégia aos representantes dos seus trabalhadores,
aos sindicatos, às suas relações empresariais, bem
como, a pedido, às autoridades nacionais
competentes 139 .
139 Cada Estado-Membro deve designar uma ou mais autoridades nacionais competentes
responsáveis pela supervisão da aplicação da Diretiva tal como transposta para o Direito nacional.
e pela difusão das boas práticas em matéria de dever de diligência.
110
o Divulgar informações não financeiras e informações sobre a
diversidade (em conformidade com o artigo 7.º):
¨ a Proposta não prejudica as obrigações impostas a
certas empresas pela Diretiva 2013/34/UE 140 , relativas
à inclusão no seu relatório de gestão de uma
demonstração não financeira que inclua uma descrição
das políticas da empresa em relação, no mínimo, às
questões ambientais, sociais e relativas aos
trabalhadores, ao respeito pelos direitos humanos, ao
combate à corrupção e às tentativas de suborno e aos
processos relativos ao dever de diligência aplicados.
o Avaliar e rever a sua estratégia em matéria de dever de
diligência (em conformidade com o artigo 8.º):
¨ as empresas devem controlar a eficácia da sua estratégia
e a aplicação das medidas por si adotadas em matéria
do dever de diligência pelo menos uma vez por ano e,
quando dessa avaliação resultar a necessidade de
140 Diretiva 2013/34/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, relativa
às demonstrações financeiras anuais, às demonstrações financeiras consolidadas e aos relatórios
conexos de certas formas de empresas. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu.
111
revisão, devem revê-la em conformidade 141 .
1.3. Responsabilidade das Empresas
Sempre que uma empresa conclua que está diretamente
relacionada com um efeito adverso, real ou potencial, nos direitos
humanos, ambiente ou boa governação deve cooperar no
correspondente processo de reparação. Além das garantias de que
os danos não se repetirão, a reparação pode assumir a forma de
uma compensação financeira ou não financeira, reintegração,
desculpas públicas, restituição, reabilitação ou contribuição para
uma investigação.
Note-se que o facto de uma empresa propor a reparação
não impede que os lesados intentem ações cíveis nos termos do
Direito nacional. Em especial, a existência de um processo
pendente num mecanismo de reclamação não impede o acesso a
um tribunal. As decisões proferidas pelo mecanismo de reclamação
141 A avaliação e a revisão da estratégia em matéria de dever de diligência devem implicar a discussão
com as partes interessadas.
São “partes interessadas” as pessoas e os grupos de pessoas cujos direitos ou interesses possam ser
afetados pelos efeitos negativos, potenciais ou reais, nos direitos humanos, no ambiente e na boa
governação provocados por uma empresa ou pelas suas relações empresariais, bem como as
organizações cuja finalidade estatutária seja a defesa dos direitos humanos, incluindo os direitos
sociais e laborais, do ambiente e da boa governação (os trabalhadores e os seus representantes, as
comunidades locais, os sindicatos, as organizações da sociedade civil e os acionistas das empresas).
112
devem ser consideradas em tribunal, apesar de não vinculativas.
Resulta do artigo 19.º que o facto de uma empresa respeitar
as suas obrigações em matéria de dever de diligência não a isenta
da eventual responsabilidade em que incorra nos termos do
Direito nacional, com vista à reparação de danos decorrentes de
efeitos negativos, potenciais ou reais, nos direitos humanos,
ambiente ou boa governação que tenham causado ou para os quais
tenham contribuído, por atos ou omissões. Concretamente, as
autoridades nacionais poderão proceder à aplicação de coimas, à
exclusão temporária ou indefinida das empresas dos contratos
públicos, dos auxílios estatais, dos regimes de apoio público,
recorrer à apreensão de mercadorias, ou à aplicação de outras
sanções administrativas.
Assim, os Estados-Membros devem utilizar os regimes de
responsabilidade existentes e, se necessário, introduzir legislação
adicional para garantir que as empresas são responsabilizadas por
danos resultantes de efeitos negativos que elas ou entidades que
controlam tenham causado ou para os quais tenham contribuído.
Contudo, a empresa pode sempre provar que adotou todas as
precauções necessárias para evitar a produção de danos ou que os
danos teriam ocorrido mesmo que tivessem sido adotadas todas as
precauções necessárias.
113
1.4. Papel dos Administradores
Para que o dever de diligência seja integrado na cultura de
uma empresa, os membros dos órgãos de administração, de
direção e de supervisão deverão ser responsáveis pela adoção e
execução das suas estratégias de sustentabilidade e do dever de
diligência. Não obstante, o Parlamento Europeu realça, em
conformidade com os PONU, que o facto de uma empresa aplicar
o dever de diligência não deve automaticamente exonerá-la da
responsabilidade pelos danos que causar ou para os quais
contribuía.
2. A Proposta de Diretiva da Comissão Europeia relativa ao
Dever de Diligência das Empresas em matéria de
Sustentabilidade que altera a Diretiva (EU) 2019/1937 142
Na sequência da Resolução aprovada pelo Parlamento
Europeu, a Comissão Europeia divulgou, a 23 de fevereiro de
2022, a Proposta de Diretiva relativa ao dever de diligência das
142 Diretiva (UE) 2019/1937 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2019,
relativa à proteção das pessoas que denunciam violações ao Direito da União. Disponível em:
https://eur-lex.europa.eu.
114
empresas em matéria de sustentabilidade.
A mesma obriga as empresas a identificar e, se necessário,
prevenir, eliminar ou atenuar os impactos adversos das suas
atividades nos direitos humanos e no ambiente. Ao mesmo tempo,
obriga os seus Administradores a implementar o dever de
diligência na estratégia empresarial e a supervisionar a aplicação
dos processos internos de devida diligência.
A Proposta de Diretiva da Comissão Europeia está sujeita
ao processo legislativo ordinário descrito no artigo 294.º do TFUE,
por remissão do artigo 289.º do TFUE. Caso seja aprovada
conjuntamente pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho, o ato é
adotado.
Uma vez adotada, os Estados-Membros disporão de um
prazo de transposição de dois anos, período em que estão
obrigados a adotar as disposições legislativas, regulamentares e
administrativas adequadas à realização dos fins fixados na Diretiva
(em conformidade com o artigo 288.º do TFUE).
115
2.1. Delimitação Subjetiva
A Proposta da Comissão Europeia dirige-se a:
o Empresas sediadas na UE com dimensão e poder económico
substancial:
¨ empresas que empreguem mais de 500 trabalhadores,
em média, e que tenham tido, no ano financeiro
anterior, um volume de negócios líquido a nível
mundial superior a 150 milhões de euros;
¨ empresas que, por não atingirem esses valores,
cumulativamente, tenham mais de 250 empregados e
um volume de negócios líquido a nível mundial igual
ou superior a 40 milhões de euros no ano financeiro
anterior, desde que pelo menos 50% desse volume
tenha sido gerado num ou mais setores definidos
como setores de elevado impacto 143 ;
143 Segundo o artigo 2.º da Proposta de Diretiva da Comissão Europeia, são setores de elevado
impacto os seguintes:
− fabrico de têxteis, couro e produtos afins (incluindo calçado), e o comércio por grosso de
têxteis, vestuário e calçado;
− agricultura, silvicultura, pesca (incluindo aquicultura), o fabrico de produtos alimentares, e
o comércio por grosso de matérias-primas agrícolas, animais vivos, madeira, alimentos e
116
o Empresas sediadas num País Terceiro que atuem num Estado-
Membro da UE e que:
¨ tenham gerado um volume de negócios líquido de mais
de 150 milhões de euros na União no ano financeiro
anterior; ou
¨ tenham gerado um volume de negócios líquido igual ou
superior a 40 milhões de euros, mas não superior a 150
milhões, na União, no ano financeiro anterior, desde
que pelo menos 50% desse volume tenha sido gerado
num ou mais setores definidos como setores de
elevado impacto.
A Proposta de Diretiva aplica-se, às operações da própria
empresa e das suas filiais, bem como às das empresas com quem
mantenham relações comerciais.
bebidas; − extração de recursos minerais, independentemente do local onde sejam extraídos
(incluindo petróleo bruto, gás natural, carvão, lignite, metais e minérios metálicos, bem como
todos os outros minerais não metálicos e produtos das pedreiras), o fabrico de produtos
metálicos de base, outros produtos minerais não metálicos e produtos metálicos fabricados
(exceto maquinaria e equipamento) e o comércio por grosso de recursos minerais, minerais
básicos e produtos intermédios (incluindo metais e minérios metálicos, materiais de
construção, combustíveis, produtos químicos, entre outros produtos).
Portanto, os que correspondem às orientações setoriais específicas da OCDE em matéria de due
diligence. Consultados em: Sectors (oecd.org).
117
As PME, embora excluídas, podem, enquanto empresas
contratadas ou subcontratadas das (grandes) empresas às quais a
Diretiva se dirige, ser afetadas pelas suas disposições. Assim, a
Proposta de Diretiva prevê que os Estados-Membros criem e
operem plataformas específicas onde as PME possam encontrar
orientação, apoio e informações adicionais sobre a forma mais
eficaz de cumprirem as suas obrigações de due diligence. De igual
modo, os Estados-Membros devem apoiar financeiramente as
PME no cumprimento dessas medidas, e tal apoio deve ser
alargado aos operadores sediados em Países Terceiros 144 .
2.2. Delimitação Objetiva
Na sua estratégia de due diligence, as empresas devem:
o Integrar o dever de diligência na sua estratégia (em
conformidade com o artigo 5.º):
¨ as empresas devem, anualmente, atualizar as suas
políticas internas relativas ao dever de diligência, de
forma a que contenham informação atualizada sobre:
144 Ibid., artigo 14.º.
118
a abordagem que a empresa pretende seguir, a curto e
longo prazo; o código de conduta que inclua as regras
e princípios que devem orientar o comportamento dos
seus trabalhadores e subsidiárias; e os processos
implementados com o objetivo de cumprir o dever de
diligência, incluindo as medidas a tomar para garantir o
cumprimento do código de conduta, bem como as
medidas previstas para garantir a aplicação do mesmo
a todas as empresas com quem mantenham relações
comerciais.
o Identificar impactos adversos, reais ou potenciais, nos
direitos humanos e no ambiente (em conformidade com o
artigo 6.º):
¨ as empresas devem adotar medidas adequadas à
identificação de impactos adversos, reais ou potenciais,
decorrentes das suas operações ou da atuação das suas
filiais e das empresas com as quais mantenham relações
comerciais.
o Prevenir ou mitigar potenciais impactos adversos, reais ou
potenciais (em conformidade com o artigo 7.º):
¨ as empresas devem adotar medidas adequadas a
119
prevenir ou, quando tal não seja possível, atenuar
efeitos adversos nos direitos humanos e no ambiente.
o Fazer cessar ou, na impossibilidade, minimizar os impactos
reais negativos (em conformidade com o artigo 8.º):
¨ em relação aos impactos negativos que não possam
ser prevenidos ou adequadamente atenuados, a
empresa é obrigada a abster-se de estabelecer novas
relações ou de alargar as relações comerciais
existentes que justifiquem esse impacto negativo; a,
sempre que a lei o permita, suspender
temporariamente as relações comerciais com o
parceiro em questão; e a cessar essas relações
comerciais, se o impacto adverso for grave.
o Estabelecer e manter um procedimento de reclamação (em
conformidade com o artigo 9.º):
¨ as empresas devem prever a possibilidade de
pessoas e organizações 145 lhes dirigirem queixas,
145 Devem poder apresentar queixa (artigo 9.º/2): pessoas afetadas ou que tenham motivos
razoáveis para crer que possam ser afetados por um impacto adverso; sindicatos e outros
representantes de indivíduos que trabalhem na cadeia de valor em questão; e organizações da
sociedade civil ativas nas áreas relacionadas com a cadeia de valor em causa.
120
sempre que tenham preocupações legítimas
relativamente a impactos negativos para os direitos
humanos e ambiente, em relação às suas operações
ou às operações das suas filiais e das suas cadeias
de valor.
§ Aos queixosos deve ser reconhecido o
direito a solicitar o acompanhamento da
queixa e de todo o processo e a reunir-se
com os representantes da empresa para
discutir os impactos adversos graves,
potenciais ou reais, que são o objeto da
queixa.
§ Não obstante, os mesmos devem ter a
possibilidade de intentar ações judiciais por
danos, caso considerem que os mesmos
poderiam ter sido evitados através da
adoção de medidas de diligência adequadas.
o Controlar a eficácia da sua estratégia e das medidas
adotadas em matéria do dever de diligência (em
conformidade com o artigo 10.º):
¨ as empresas devem realizar avaliações periódicas
121
das suas próprias operações e medidas, das suas
filiais e, quando relacionadas com as cadeias de
valor da empresa, das suas relações comerciais, de
modo a controlar a eficácia da identificação,
prevenção, mitigação, cessação e minimização da
extensão de impactos adversos nos direitos
humanos e no ambiente.
§ Tais avaliações devem basear-se em
indicadores qualitativos e quantitativos e
devem ser efetuadas, pelo menos, uma vez
por ano, e sempre que existam motivos
razoáveis para crer que possam surgir
riscos significativos da ocorrência desses
impactos. A política de diligência devida
deve ser atualizada de acordo com o
resultado dessas avaliações.
o Reportar publicamente sobre o dever de diligência (em
conformidade com o artigo 11.º):
¨ as empresas que não estejam sujeitas à obrigação de
declaração nos termos artigos 19º-A e 29º-A da
Diretiva 2013/34/EU, devem reportar sobre as
122
matérias abrangidas pela Proposta, através de
publicação de uma declaração anual no seu website.
o Combater as alterações climáticas (em conformidade com
o artigo 15.º): as grandes empresas devem dispor de um
plano que garanta que a sua estratégia empresarial é
compatível com a limitação do aquecimento global a 1,5
°C, em conformidade com o Acordo de Paris.
2.3. Responsabilidade das Empresas
Para os Estados-Membros resulta o dever de assegurar que
as empresas são responsabilizadas por danos decorrentes do
incumprimento das obrigações previstas nos artigos 7.º e 8.º, se
desse incumprimento resultar um dano que deveria ter sido evitado
ou, na impossibilidade, identificado, mitigado, cessado ou
minimizado 146 .
Na avaliação da existência e extensão da responsabilidade
devem ser considerados o empenho da empresa em cumprir
qualquer ação de reparação, quaisquer investimentos e qualquer
146
Ibid., artigo 22.º.
123
apoio específico prestado, bem como qualquer colaboração com
outras entidades para fazer face aos impactos adversos nas suas
cadeias de valor.
Apesar disto, existem casos previstos na lei nos quais a
empresa não será responsabilizada: a Diretiva prevê que os
Estados-Membros devem assegurar que, sempre que uma empresa
tenha adotado as medidas previstas nos artigos 7.º/2, al. b) e 4 e
artigo 8.º/3, al. c) e 5, não será responsável pelos danos causados
por um parceiro indireto com o qual tenha uma relação comercial,
a menos que não fosse razoável, nas circunstâncias do caso,
esperar que as medidas adotadas fossem adequadas para prevenir,
mitigar, pôr termo ou minimizar a extensão do impacto negativo.
A responsabilidade civil por danos de uma empresa
enquadrada nesta exceção não prejudica a responsabilidade civil
das suas filiais ou de quaisquer parceiros comerciais, diretos ou
indiretos, na cadeia de valor. De igual modo, não sai prejudicada a
aplicação de regras nacionais e/ou outras regras da UE que
prevejam situações não previstas pela Diretiva ou que prevejam
uma responsabilidade mais rigorosa.
124
2.4. Papel dos Administradores
A Proposta prevê, nos seus artigos 25.º e 26.º, a
intervenção dos Administradores das empresas, por forma a
garantir o cumprimento do dever de diligência. Os mesmos ficam
obrigados a, nomeadamente, implementar e supervisionar a
aplicação do dever de diligência e a integrá-lo na estratégia da
empresa.
Com efeito, no cumprimento do seu dever de agir no
melhor interesse da empresa, os Administradores devem
considerar as consequências que as suas decisões possam ter em
matéria de sustentabilidade, incluindo, quando aplicável, direitos
humanos, alterações climáticas e consequências ambientais, a
curto, médio e longo prazo.
Também, a remuneração variável associada ao contributo
dos Administradores para a estratégia de diligência da empresa,
bem como para os interesses e a sustentabilidade a longo prazo,
deve considerar o cumprimento das obrigações do plano
empresarial relativas às alterações climáticas.
125
3. Conclusões:
Ainda que mais tarde do que o previsto, a Proposta da
Comissão Europeia é resultado de um debate significativo que veio
alterar a Proposta do Parlamento Europeu e do Conselho em
diversos aspetos. Foquemo-nos no âmbito subjetivo e objetivo das
Propostas, na responsabilidade empresarial e no papel dos
Administradores.
Subjetivamente, talqualmente as recomendações iniciais, a
Proposta da Comissão Europeia dirige-se a empresas sediadas na
UE e em Países Terceiros 147 . No entanto, exclui as PME
(consideradas pela Proposta inicial, se cotadas em bolsa ou se
operassem em setores de elevado impacto). Por isto, já algumas
vozes vieram defender que a legislação vinculasse todas as
empresas e não apenas as grandes empresas.
Quanto ao âmbito objetivo 148 , a Comissão Europeia adota
uma abordagem mais restrita do que o Parlamento Europeu e o
Conselho: inclui os direitos humanos e o ambiente, mas não a "boa
governação”, apesar das numerosas ligações entre corrupção e
147 Cfr. artigo 2.º da Proposta de Diretiva da Comissão Europeia.
148 Ibid., artigos 5.º a 11.º.
126
direitos humanos. Esta ausência talvez se deva à confiança de que
se tornaria assim mais fácil para as empresas cumprir os requisitos
essenciais da Diretiva.
Quanto aos direitos humanos, não é claro quais os direitos
efetivamente abrangidos; e quanto ao ambiente, a Proposta da
Comissão Europeia engloba disposições refletidas nas principais
Convenções internacionais, mas, estranhamente, não inclui nem as
alterações climáticas nem o Acordo de Paris (não obstante o artigo
15.º).
Surpreendentemente, a Comissão Europeia aumentou as
obrigações dos Administradores, impondo como parte do seu
"dever de cuidado" de agir no melhor interesse da empresa, que
os Conselhos de Administração das grandes empresas sediadas na
UE tomem em consideração os direitos humanos, as alterações
climáticas e o impacto ambiental das suas decisões, a curto, médio
e longo prazo 149 .
Na essência, esta Proposta veio redefinir as
responsabilidades dos Administradores, incluindo, além dos
resultados financeiros, questões ambientais e de direitos humanos,
esperando que os membros do Conselho de Administração tomem
149 Ibid., artigos 25.º e 26.º.
127
medidas ativas no sentido de avaliar, abordar e relatar os riscos e
impactos da atividade empresarial sobre os direitos humanos e
ambiente de forma precisa e responsável.
Finalmente, e no sentido das recomendações que lhe foram
dirigidas, a Comissão Europeia contemplou sanções a aplicar às
empresas em caso de incumprimento do dever de diligência 150 .
Concretamente, os Estados-Membros devem assegurar que as
empresas possam ser responsabilizadas pelos danos que elas, as
suas filiais e/ou os seus parceiros comerciais causem ou para os
quais contribuam (não obstante a consagração de exceções 151 ).
Aqui chegados, resta esperar pela aprovação da Proposta
pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho. Uma vez adotada, os
Estados da UE disporão de um prazo de dois anos para adotar as
disposições legislativas, regulamentares e administrativas
adequadas à realização dos fins fixados na Diretiva (cfr. artigo
288.º do TFUE).
Depois de introduzidas na legislação nacional dos Estados-
Membros, o cumprimento destas obrigações será supervisionado
por uma autoridade administrativa nacional responsável, com
150 Ibid., artigo 20.º.
151 Vide páginas 73 e 74.
128
legitimidade para atuar sempre que existam preocupações
fundamentadas de incumprimento 152 , que podem ser denunciadas
por qualquer pessoa singular ou entidade 153 . Neste sentido, os
Estados-Membros podem conduzir investigações e, em caso de
infração, a empresa em causa pode ser objeto de coimas e de
responsabilidade civil 154 .
Neste sentido, a Comissão Europeia prevê a constituição
de uma rede europeia de autoridades (the European Network of
Supervisory Authorities), que terá como missão facilitar a cooperação
entre as várias autoridades nacionais e a coordenação de práticas
regulamentares, investigativas, sancionatórias e de supervisão.
152 Existirão razões fundamentadas quando existam motivos para acreditar, com base em factos
objetivos, que uma empresa não está a cumprir a legislação nacional que transpõe a Diretiva. 25
153 Ibid., artigos 17.º a 19.º.
154
Ibid., artigo 22.º.
129
4. Referências:
ABREU ADVOGADOS – “O dever de diligência das empresas em matéria de
sustentabilidade e o papel dos administradores”. [Consultado em: 24 de março
de 2022]. Disponível em: https://abreuadvogados.com.
BRITISH INSTITUTE OF INTERNATIONAL AND COMPARATIVE
LAW, CIVIC CONSULTING, DIREÇÃO-GERAL DA JUSTIÇA E DOS
CONSUMIDORES (COMISSÃO EUROPEIA), LSE – “Study on Due Diligence
Requirements through the Supply Chain: Final Report”. In Publicações da União
Europeia. Disponível em: https://data.europa.eu. 2020. Páginas 35-38 e 509-
569.
DUARTE, Ana – “Proposta de Diretiva relativa ao Dever de Diligência das
Empresas e a Responsabilidade Empresarial”. [Consultado em: 24 de março de
2022]. Disponível em: Proposta de Diretiva.
FERREIRA, Bruno – “Dever de diligência em matéria de sustentabilidade: aqui
vamosnós!”. [Consultado em 24 de março de 2022]. Disponível em:
https://www.plmj.com/pt/conhecimento/notas-informativas.
GLOBAL COMPACT NETWORK PORTUGAL (GCNG). “A Agenda 2030
para o Desenvolvimento Sustentável”. [Consultado em 24 de março de 2022].
Disponível em: Agenda 2030 - Global Compact.
JONATHAN C. DRIMMER; NICOLA BONUCCI; TARA K. GIUNTA;
HARRY DENLEGH-MAXWELL – “The Long Awaited Draft Directive on
Corporate Sustainability Due Diligence”. [Consultado em: 30 de março de 2022].
Disponível em: Draft Directive on Corporate Sustainability Due Diligence.
130
ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND
DEVELOPMENT (OECD) – “OECD Guidelines for Multinational Enterprises”.
[Consultado em: 30 de março de 2022]. Disponível em: Sectors - OECD.
UNITED NATIONS HUMAN RIGHTS OFFICE OF THE HIGHER
COMISSION. Special Representative of the Secretary-General – “Guiding
Principles on Business and Human Rights: Implementing the United Nations ‘Protect,
Respect and Remedy’ Framework"). In Concelho dos Direitos Humanos das Nações
Unidas (Doc. A/HRC/17/31). Disponível em: https://www.ohchr.org. 2011.
Páginas 1-35.
Gabriela Marques Duarte
Estudante do 4.º ano da Licenciatura em Direito na Universidade de Coimbra
131
DESAFIOS DA PROTEÇÃO DE DADOS
EM TELESSAÚDE
Resumo:
A pandemia por SARS-COV-2 levou à massificação das tecnologias de
informação e comunicação (doravante TIC), como a telessaúde, facilitando o
acesso a cuidados de saúde numa altura de restrições sociais e confinamentos,
mas também permitindo um rápido acesso aos dados de saúde e ao tratamento
dos mesmos.
No entanto, sendo a telessaúde uma realidade incontornável, esta contém alguns
constrangimentos, por um lado, a discriminação de pessoas infoexcluídas, e por
outro, o grande desafio da segurança dos dados armazenados e da proteção dos
mesmos.
O Regulamento Geral de Proteção de Dados (doravante RGPD), veio
estabelecer as regras relativas à proteção dos dados pessoais das pessoas
singulares e à livre circulação dos mesmos, considerando esta proteção como
um direito fundamental.
Neste artigo iremos analisar os desafios legais da proteção de dados no acesso
aos serviços de telessaúde.
B
132
b
Palavras-chave:
Dados em saúde; Proteção de dados; Telessaúde; Regulamento Geral
de Proteção de Dados.
Sumário:
1. Introdução;
2. Telessaúde;
3. Proteção de Dados Pessoais: enquadramento legal e jurisprudência:
3.1. O Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados
3.2. Análise Jurisprudencial;
4. Reflexões Conclusivas;
133
1. Introdução
Nos últimos anos o setor da saúde foi dos que sofreu
maiores e mais significativas transformações, a complexidade da
área, a dimensão do mercado, o elevado número de stakeholders,
a mudança de paradigmas, assim como o envelhecimento das
populações e o aumento das doenças crónicas, colocaram uma
enorme pressão nos sistemas. Com o foco na centralidade no
cidadão tem sido necessário adaptar e responder, de forma eficaz
e rápida, às suas necessidades e prioridades.
Numa era cada vez mais tecnológica, com vários avanços
digitais e com o surgimento da pandemia por SARS-COV-2 em
2020, a utilização da telessaúde foi indispensável, não só para
tornar o acesso a cuidados de saúde mais amplo numa altura de
restrições sociais e confinamentos, mas também para permitir um
rápido acesso aos dados de saúde e ao tratamento dos mesmos.
No entanto, existem constrangimentos no que à saúde à
distância diz respeito, por um lado, a discriminação de pessoas
infoexcluídas, que podem não possuir os equipamentos
necessários ou o know-how para aceder às novas tecnologias e, por
outro, o grande desafio da segurança dos dados armazenados e da
proteção dos mesmos, sendo este o tema que nos propomos
analisar.
134
A discussão e aplicação da telessaúde tornou-se, assim,
uma questão relevante devido à extrema importância dos dados em
saúde, à fácil acessibilidade proporcionada e à necessidade de
proteção dos mesmos, que determinará a confiança dos pacientes
nos serviços digitais.
Neste artigo tentaremos abordar os principais desafios da
proteção de dados em telessaúde, com conhecimento que a saúde
à distância é uma realidade incontornável, cada vez mais presente
na nossa sociedade e incrementada pelo surgimento da pandemia.
As várias vantagens dos cuidados à distância podem ser
prejudicadas pelas adversidades que lhe estão associadas, não só na
forma de prestação dos cuidados propriamente ditos, como
também no aumento das responsabilidades dos profissionais de
saúde.
2. Telessaúde
A Lei de Bases da Saúde pressupõe que o Serviço Nacional
de Saúde (doravante SNS) garanta a prestação de cuidados de
saúde a todas as pessoas, em condições de dignidade
135
e de igualdade. Para que seja assegurada a realização do direito à
proteção da saúde, o Estado deverá proporcionar o acesso de
todos os cidadãos, independentemente da sua condição
económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de
reabilitação, pelo que a universalidade pressupõe que todas as
pessoas, estejam incluídas nas políticas de promoção e proteção da
saúde 155 .
A Pandemia introduziu-nos uma nova realidade, e se até
essa altura já existia uma elevada aposta no conceito de telessaúde,
tanto no setor público, como no privado, a partir de 2020
consolidou-se como meio de prestação de cuidados de saúde. A
telessaúde representa o conjunto dos serviços relacionados com a
área da saúde providenciados de forma remota, com recurso a
telecomunicações.
A população portuguesa encontra-se cada vez mais
envelhecida, mas também está mais informada 156 . Contudo,
compreende-se que determinadas faixas etárias apresentem
155 Entidade Reguladora da Saúde, “Direitos e Deveres dos Utentes dos Serviços de Saúde”, 2021.
[Consultado em 19/12/2021]. Disponível in:
https://www.ers.pt/media/sfbd4x2h/publica%C3%A7%C3%A3o-ers_direitos-e-deveres.pdf.
156 MARTINS, Henrique, “Plano Estratégico Nacional para a Telessaúde - 2019-2022”, Centro
Nacional de TeleSaúde, 2019, p. 51. [Consultado em 19/12/2021]. Disponível in:
https://www.spms.min-saude.pt/wp content/uploads/2019/11/PENTS_portugu%C3%AAs.pdf
136
limitações no uso das TIC, dependendo do auxílio de terceiros para
o fazerem de forma competente.
O exercício da medicina tem-se modificado, resultado de
um mundo mais digital e tecnológico, onde a distância física não
constitui um obstáculo à comunicação 157 . Além da transposição de
barreiras geográficas, a telessaúde promove a partilha de
informação, um acompanhamento continuado, maior articulação
de cuidados, diagnósticos mais céleres e tratamentos numa fase
inicial da doença. Existem novos modelos de prestação de
cuidados de saúde assentes neste conceito, como teleconsultas,
teletriagem, telemonitorização, telediagnóstico, telerrastreio e
telerreabilitação, entre outros.
Os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, EPE
(doravante SPMS) através do Centro Nacional de Telessaúde,
apresentaram o primeiro documento estratégico na área da
telessaúde para o SNS – o Plano Estratégico Nacional para a
Telessaúde (doravante PENTS), para o período de 2019-2022.
Este plano define a plena integração da telessaúde no dia-a-dia dos
cuidados de saúde e introduz novos conceitos, como a eSaúde e a
telemedicina. A eSaúde consiste na utilização das TIC, com o
157 DUARTE, Andreia, Telemedicina: Os Novos Desafios à Responsabilidade Civil Médica - A emergência de
uma nova forma de prestar consentimento (Dissertação de Mestrado), Universidade do Porto, 2018, pp. 3,
21-22. Disponível in: site
137
intuito de melhoria da promoção, educação e gestão de saúde,
assim como todo o ciclo de saúde. A telemedicina significa a
prestação de cuidados de saúde realizados à distância por médicos,
através do uso das TIC para a prestação de cuidados, para a
organização dos serviços e para a formação de profissionais de
saúde e cidadãos 158 . O PENTS procura garantir a
interoperabilidade entre os diferentes sistemas de informação, a
segurança dos dados de saúde e dotação do SNS de infraestruturas
e sistemas mais centrados no cidadão.
Simultaneamente, é necessário assegurar a qualidade dos
aparelhos e meios utilizados e a qualificação do pessoal
envolvido 159 .
Destacam-se os seguintes sistemas de informação
elaborados pelos SPMS 160 :
• SClínico - informatização dos registos clínicos nos
cuidados de saúde primários e hospitalares, contribui para
uniformização dos mesmos, possibilita a partilha dos dados entre
158 MARTINS, Henrique, op. cit., pp. 24-25.
159 DUARTE, Andreia, op. cit., pp. 21-22.
160 MARTINS, Henrique, op. cit., pp. 24-25.
138
profissionais de saúde de várias áreas, facilitando a atuação
articulada.
• Plataforma de Dados de Saúde Live (PDS Live) -
realização de teleconsultas em tempo real, recorrendo ao vídeo e
partilha de informação, como resultados de um exame ou imagens,
num episódio de prestação.
• Registo de Saúde Eletrónico (RSE) - agregação de
contactos do cidadão com o sistema de saúde, conduzindo a um
processo clínico único.
• Área do Cidadão - interface de serviços do SNS,
instrumento importante para que o cidadão realize a autogestão da
sua saúde. Permite a consulta de dados clínicos e de resultados de
exames, marcação de consultas, renovação de medicação crónica,
acesso ao boletim de vacinas digital, consulta do tempo de espera
para cirurgia, entre outros.
• Registo de Saúde Eletrónica-Referenciação (RSE-REF) -
sistema eletrónico de referenciação entre prestadores do SNS,
suporta a teleconsulta em diferido.
139
• Prescrição Eletrónica Médica (PEM) - funcionalidade
receita sem papel, permite que o cidadão receba e aceda à sua
receita à distância.
• Projeto Exames sem Papel - desmaterialização dos
processos de requisição, efetivação, faturação e integração de
resultados de Meios Complementares de Diagnóstico e
Terapêutica, com integração dos seus resultados no RSE.
• App MySNS - acesso rápido ao SNS24, informações e
contactos relevantes, notícias e permite ao cidadão avaliar o SNS
de acordo com a sua satisfação.
• App MySNS carteira - transposição da informação do
RSE para a versão móvel.
• Trace COVID-19 - ferramenta de acompanhamento
COVID-19, permite registo de informação sobre os casos, rastreio
e gestão de contactos, acompanhamento clínico e monitorização
de pacientes em vigilância ativa e passiva 161 .
161 Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, “Trace COVID-19: Manual de utilizador”, 2020,
[consultado em 05-01-2022]. Disponível in: http://www.arscentro.min-saude.pt/wp
content/uploads/sites/6/2020/05/TraceCOVID-deck-V1.pdf. pp.3-4
140
Ao expor e analisar apenas alguns dos sistemas e
plataformas inerentes ao Ministério da Saúde, sem abordar os
sistemas usados por entidades privadas, compreende-se o volume
de informação de cariz sensível que está disponível a vários
utilizadores digitalmente. Observamos que são inequívocas as
vantagens da telessaúde na maior acessibilidade e proximidade a
cuidados de saúde, na integração de respostas, na capacitação do
cidadão e cuidador, porém é importante questionar de que forma
estão a ser salvaguardados os pressupostos da proteção geral de
dados, quando entramos no campo do digital e das bases de dados
massivas.
De acordo com os SPMS, em alguns sistemas de informação
utilizados no SNS os utilizadores estão devidamente identificados,
através das suas contas profissionais Office365 ® e login próprio,
podendo obter-se o conhecimento de quem acede às informações,
em que momento e que alterações executa 162 .
No entanto, observando as teleconsultas realizadas por
telefone, que correspondem à maioria das efetuadas, surgem
dúvidas sobre como se garante a identificação inequívoca do
paciente e, consequentemente, a segurança e fiabilidade dos dados
162 Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, op. cit., pp. 3-4.
141
que estão a ser recolhidos.
Outra questão prende-se com o consentimento informado,
que apesar de igualmente válido, apenas pode ocorrer de forma
verbal, sendo imprescindível que obedeça aos seguintes
pressupostos: quem o transmite tem de possuir capacidade para
consentir, o consentimento tem de ser esclarecido, ser livremente
prestado, ser atual, e finalmente, deve respeitar os bons costumes
e a ordem pública.
Compreende-se assim, que aumente a incerteza no profissional
de saúde que não está a observar diretamente o paciente, em
garantir que os pressupostos do consentimento informado estão
assegurados. Uma forma de contrariar esta dificuldade seria a
realização de videochamadas, porém o SNS não possui o número
de equipamentos necessários para o efeito, dado o elevado custo
que isso acarreta. Quando, através da tecnologia, se reproduz a
imagem e dados do cidadão, nem sempre é possível controlar e
saber quem poderá obter acesso, por isso pode não se conseguir
garantir na íntegra a privacidade do paciente. A privacidade
consiste no direito que qualquer indivíduo tem, de controlar quem
tem acesso à informação sobre a sua saúde e em que
142
circunstâncias 163 .
As instituições da área da saúde, nas quais é fundamental a
segurança dos dados pessoais e clínicos e que beneficiam bastante
dos avanços tecnológicos, necessitam saber com toda a certeza
como alcançar toda essa segurança. O RGPD fornece as
ferramentas para que o processamento de dados seja legal,
direcionado para objetivos claros e precisos, e manuseado de
forma segura. Estas instituições de saúde necessitam de maior
transparência e rigor no processamento de dados, podendo para
isso desenvolver e aplicar procedimentos que sejam do
conhecimento e postos em prática por todos os seus profissionais.
O RGPD consagra vários direitos para os titulares dos dados,
tais como o direito de solicitarem que os mesmos sejam apagados,
o direito de requererem uma cópia dos mesmos para uso próprio
e o direito de se oporem ao uso desses dados de forma
automatizada, como por exemplo através de mecanismos de
inteligência artificial. Os cidadãos podem solicitar que as decisões
feitas por algoritmos informáticos sejam anuladas e substituídas
por decisões de pessoas, como por exemplo de profissionais de
saúde.
163
DUARTE, Andreia, op. cit., p. 32.
143
Existem algumas exceções, particularmente no que aos dados
de saúde diz respeito, isto é, os titulares dos dados não podem
solicitar que se apaguem secções inteiras dos seus registos clínicos,
pois isso poderia colocar em causa os cuidados de saúde e o
profissional de saúde poderá necessitar dos mesmos para servirem
de referência a futuros tratamentos ou até para servirem como sua
defesa, caso necessário 164 .
3. Proteção de Dados Pessoais: enquadramento legal e
jurisprudência
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia prevê
no seu artigo 8.º o seguinte:
“Todas as pessoas têm direito à proteção dos dados de caráter
pessoal que lhe digam respeito; que esses dados devem ser objeto
de um tratamento leal, para fins específicos e com o
consentimento da pessoa interessada ou com outro fundamento
previsto por lei. Todas as pessoas têm o direito de aceder aos
dados coligidos que lhes digam respeito e de obter a respetiva
164 LEA, Nathan C.; MEYER, Filip de, “How Will the General Data Protection Regulation Affect
Healthcare?”, Acta Médica Portuguesa; vol. 31, No 7-8, 2018, pp. 364-365.
144
retificação; que o cumprimento destas regras fica sujeito a
fiscalização por parte de uma autoridade independente”.
De acordo com HENRIQUE PRATA RIBEIRO: “o RGPD,
que entrou em vigência no dia 25 de maio de 2018, tem como
objetivo estabelecer as regras relativas à proteção das pessoas
singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à
livre circulação desses dados, defendendo os direitos e as
liberdades fundamentais destas pessoas" 165 .
Verificamos, sobretudo após a análise da Deliberação da
Comissão Nacional de Proteção de Dados (doravante CNPD) n.º
2020/262, que os dados clínicos das pessoas são considerados
“dados sensíveis”, merecendo uma particular proteção por parte
do legislador 166 :
“Nestes termos, e tendo em conta que não estão fixadas no
ordenamento jurídico nacional, quanto a este tratamento, medidas
adequadas e específicas para defesa dos direitos fundamentais e
dos interesses do titular dos dados, como exige a alínea i) do n.º 2
165 PRATA, Henrique Ribeiro, et al., “The New General Data Protection Regulation and Its
Implications Regarding Clinical Information Requests to Healthcare Professionals”, Acta Médica
Portuguesa, Vol 33, No 4, 2020, p. 221
166 Comissão Nacional de Proteção de Dados, “Deliberação 2020/262”, 2020, pp. 1-2. Deliberação
sobre as vulnerabilidades da plataforma Trace COVID-19, nomeadamente sobre funcionalidades
com impacto na segurança e na confidencialidade de dados pessoais. [Consultado em 21/12/2021].
Disponível in: https://www.cnpd.pt/decisoes/historico-de-decisoes/?year=2020&type=2&ent=.
145
do artigo 9.º do RGPD, importa criar, pelo menos, um mecanismo
que garanta, do lado do responsável pelo tratamento, que o acesso
só é conferido a quem seja profissional de saúde sujeito a dever
de sigilo profissional, como decorre da mesma norma.”.
3.1. O Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados
Para O Ilustre Autor 167 , a implementação do RGPD introduziu
dúvidas na prática médica, relativamente aos pedidos de
informação realizados pelos titulares dos dados pessoais e as
obrigações legais impostas aos serviços de saúde.
Podem existir situações nas quais sejam os próprios cidadãos
a efetuar pedidos de acesso específicos relacionados com os seus
dados pessoais, que podem incluir os de natureza clínicoassistencial;
ou pedidos efetuados por entidades administrativas,
como a Autoridade Tributária, a Segurança Social, os Tribunais e
o Ministério Público, em que existe uma obrigação legal no
fornecimento de informação.
Verificou-se que o RGPD prevê que os dados pessoais sejam
objeto de tratamento lícito e transparente, apenas se houver
consentimento do titular, se forem recolhidos para finalidades
167 PRATA, Henrique Ribeiro, et al., op. cit., p. 221.
146
determinadas, explícitas e legítimas, não podendo ser tratados mais
tarde de uma forma incompatível com essas finalidades.
Os princípios do RGPD apesar de parecerem indiciar
limitações para atividade médica e pesquisa científica, na realidade,
de acordo com o seu artigo 89.º, permitem a utilização dos dados
para fins de interesse público, de investigação ou estatísticos, desde
que se respeite a minimização dos dados e as condições para o
exercício dos direitos dos seus titulares.
O acesso aos dados dos pacientes encontra-se enquadrado
com a alínea d) do número 1 do artigo 6.º, que indica licitude do
tratamento dos dados se for necessária para a defesa os interesses
vitais do titular dos dados. Considera-se lícito que toda a equipa
assistencial tenha acesso aos dados necessários, de forma a evitar
possíveis erros. O fornecimento de dados do processo (clínico e
administrativo) a outras entidades, como as judiciais, levanta a
questão do tipo de dados que poderiam ser fornecidos sem
consentimento do próprio paciente, contudo os autores
consideram que esta questão já se encontrava prevista no artigo
195.º do Código Penal e no artigo 135.º do Código do Processo
Penal, que indicam que a informação clínica não pode ser
fornecida sem consentimento do titular, é protegida pelo sigilo
profissional, e caso isso ocorra o profissional pode ser alvo de um
147
procedimento criminal. Excetuam-se as situações em que é
imperativo o levantamento do segredo médico por via do
princípio do interesse preponderante, decidido judicialmente.
Sempre que existirem dúvidas deve ser solicitada autorização a
entidade hierárquica ou legalmente competente para o efeito,
como o Encarregado de Proteção de Dados da instituição 168 .
Quando existir autorização expressa do paciente, podem ser
cedidos os dados clínicos, como é exemplo a realização e envio de
relatórios médicos, como explícito no número 3 do artigo 3.º da
Lei n.º 12/2005. O RGPD reforça o direito ao paciente de
consultar o seu processo clínico, embora este aspeto já se
encontrasse consagrado na Constituição da República Portuguesa,
nos seus artigos 35.ºe 268.º. O tempo de duração do registo dos
dados depende do tipo e da finalidade dos dados, devendo regerse
de acordo com o artigo 21.º números 1.º e 2.º da Lei n.º
58/2019 de 8 de Agosto, que indica que o prazo de conservação
de dados pessoais é o que estiver fixado por norma legal ou
regulamentar ou, na falta desta, o que se revele necessário para a
prossecução da finalidade 169 .
Com o aumento significativo de informação a circular na
168 PRATA, Henrique Ribeiro, op. cit., p. 222
169 PRATA, Henrique Ribeiro, op. cit., p. 223
148
internet, aliado aos diferentes usos, questões como a segurança de
informação, cibersegurança, tratamento e armazenamento dos
dados, foram tendo cada vez mais peso, conduzindo para uma
necessidade de reforma na regulamentação aplicável às matérias
relacionadas com a proteção de dados pessoais, que teve a sua
génese na Diretiva n.º 95/46/CE, relativa à proteção das pessoas
singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à
livre circulação desses dados, aplicável no âmbito do mercado
interno (a “Diretiva”), transposta em Portugal pela Lei n.º 67/98,
de 26 de outubro (a “Lei da Proteção de Dados Pessoais”).
Em 2012 surge a necessidade de uma reforma legislativa no
que diz respeito às regras de proteção de dados na Europa,
consequência da dificuldade na conciliação da transposição e
aplicação da Diretiva n.º 95/46/CE aos estados-membros, que
levou à aplicação de regras diferentes relativas à proteção de dados
pessoais e à dificuldade no cumprimento da legislação em vários
países da União Europeia. Esta reforma terminou com a
aprovação do regulamento que viria a determinar as regras
comunitárias a serem cumpridas no âmbito da proteção de dados
pessoais, o Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu
e do Conselho de 27 de abril de 2016 (que revoga a Diretiva n.º
95/46/CE) (o “RGPD”).
149
O RGPD que entrou em vigor em 25 de maio de 2016, é
extensível a todos os Estados Membros e não requer transposição
para o ordenamento jurídico interno de cada Estado, desde 25 de
maio de 2018 170 .
A Lei n.º 58/2019 veio revogar a Lei da Proteção de Dados
Pessoais (Lei n.º 67/98 de 26/10), proceder a alterações e
republicar a Lei n.º 43/2004, de 18 de agosto, que regula a
organização e o funcionamento da CNPD, bem como alterar a Lei
n.º 26/2016, de 26 de agosto, que aprova o regime de acesso à
informação administrativa e ambiental e de reutilização dos
documentos administrativos.
O presente regulamento respeita todos os direitos
fundamentais e observa a liberdade e os princípios reconhecidos
na Carta, consagrados nos Tratados, nomeadamente o “respeito
pela vida privada e familiar, pelo domicílio e pelas comunicações,
a proteção dos dados pessoais, a liberdade de pensamento, de
consciência e de religião, a liberdade de expressão e de
informação, a liberdade de empresa, o direito à ação e a um
tribunal imparcial, e a diversidade cultural, religiosa e linguística”.
170 MOTA, Joana; PEDAL, Alexandre Sampaio, “Regulamento Geral de Proteção de Dados em
Portugal – alguns apontamentos à sua lei de execução”, Actualidad Jurídica Uría Menéndez, No 53,
2019, p. 146
150
No seu artigo 1.º vêm explanados como objeto e objetivos as
regras relativas à proteção das pessoas singulares no que diz
respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses
dados, a defesa dos direitos e as liberdades fundamentais das
pessoas singulares, nomeadamente o seu direito à proteção e livre
circulação de dados pessoais no interior da União não restringida
nem proibida por motivos relacionados com a proteção das
pessoas singulares no que respeita ao tratamento de dados
pessoais.
No n.º 1 do artigo 9.º, o RGPD institui a proibição do
tratamento de dados pessoais relativos à saúde, exceto se o titular
dos mesmos tiver dado consentimento explícito (alínea a)), se for
necessário para efeitos de medicina preventiva ou do trabalho, para
a avaliação da capacidade de trabalho do empregado, o diagnóstico
médico, a prestação de cuidados ou tratamentos de saúde ou de
ação social, ou a gestão de sistemas e serviços de saúde ou de ação
social com base no direito da União ou dos Estados-Membros, ou
por força de um contrato com um profissional de saúde, sob
reserva de determinadas condições e garantias (alínea h)).
Também é exceção o tratamento de dados de saúde se for
necessário por motivos de interesse público no domínio da saúde
pública, tais como a proteção contra ameaças transfronteiriças
151
graves para a saúde ou para assegurar um elevado nível de
qualidade e de segurança dos cuidados de saúde e dos
medicamentos ou dispositivos médicos, com base no direito da
União ou dos Estados-Membros que preveja medidas adequadas e
específicas que salvaguardem os direitos e liberdades do titular dos
dados, em particular o sigilo profissional (alínea i)) 171 .
3.2. Análise jurisprudencial
a) Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12-05-
2015 172
Neste Acórdão, o Tribunal da Relação de Lisboa pronunciouse
sobre ter-se em conta, em matéria de dados pessoais e sensíveis,
a necessária autorização legal ou CNPD (órgão habilitado a
aquilatar possíveis colisões de direitos) na interpretação do n.º 3 -
h) do artigo 7.º da Lei n.º 67/98, de 26/10 (o qual remete para o
n.º1 do mesmo preceito legal) (que transpôs para a ordem jurídica
portuguesa a Diretiva n.º 95/46/CE, do Parlamento Europeu e
171 Parlamento Europeu - Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho. In
Jornal Oficial da União Europeia, L 119, 2016, pp. 35-36 e 38-39.
172 Acórdão proferido no âmbito do Processo n.º 637/10.OTVLSB.L1-1, Relator Afonso Henrique,
Tribunal da Relação de Lisboa, de 12/05/2015 [consultado em 20/12/2021]. Disponível in:
http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/3bd3059cffbb1ea680257e6e00
585991? OpenDocument&ExpandSection=1,2,3,4,5,6,7.
152
do Conselho, de 24 de Outubro de 1995, relativa à proteção das
pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento dos dados
pessoais e à livre circulação desses dados).
“A efetividade de qualquer direito está intimamente
relacionada com o seu regime probatório. Quem reclama um
direito tem consciência de que deverá provar o mesmo em juízo.
Como se sabe, as regras do ónus da prova estão construídas para
partes com os mesmos direitos e deveres, ou seja, que estão numa
posição de igualdade de armas” 173 .
Apesar de a Lei n.º 67/98 de 26/10 já se encontrar revogada
pela Lei n.º 58/2019 de 8/8, a matéria sobre a qual o Tribunal da
Relação de Lisboa se pronunciou neste acórdão, vai de encontro
ao tema abordado neste artigo, no que à proteção de dados
pessoais e sensíveis e a autorização legal para o acesso e
tratamento dos mesmos diz respeito, dado que o mesmo versa
sobre uma ação intentada por uma seguradora contra uma
instituição bancária, sendo o objeto do litígio, a invalidade do
contrato de seguro do ramo vida de um segurado, entretanto
falecido, por inexatidão das declarações por este prestadas acerca
do seu estado de saúde aquando do preenchimento da proposta de
173 CARVALHO, Paulo Morgado de, “Ónus da prova em caso de discriminação”, Direito e Justiça,
vol. 3, Especial SE-Artigos, 2015, p. 109.
153
seguro e se estariam reunidos todos os pressupostos legais para o
tratamento e utilização dos dados de saúde deste.
Refere o douto Acórdão o seguinte 174 :
Primeiro aspeto. De acordo com o disposto na alínea d) do
n.º 3 do artigo 7. ° da Lei n° 67/98 de 26 de outubro, para a
recolha, tratamento e utilização de dados relativos à saúde, é
necessário que se verifiquem três pressupostos:
a) autorização expressa e escrita do segurado;
b) utilização desses dados para efeitos de
defesa de um direito legítimo;
c) exercício desse direito no âmbito de um
processo judicial.
Segundo aspeto. O tratamento de dados relativos à saúde de
uma pessoa e consequentemente também a obtenção de elementos
clínicos da mesma para junção a um processo judicial como meios
174 Processo n.º 637/10.OTVLSB.L1-1, RELATOR AFONSO HENRIQUE, Tribunal da Relação
de Lisboa, de 12/05/2015 [consultado em 20/12/2021]. Disponível in:
http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/3bd3059cffbb1ea680257e6e00
585991? OpenDocument&ExpandSection=1,2,3,4,5,6,7
154
de prova, depende sempre de uma disposição legal que o admita
ou de autorização da CNPD quando, designadamente, o titular dos
dados tenha dado o seu consentimento expresso/escrito.
a) Porque inexiste disposição legal que permita a obtenção,
utilização e junção aos autos de documentação relativa à
saúde de alguém sem necessidade de autorização prévia da
CNPD, resta então determinar as consequências
decorrentes da utilização dos mencionados documentos
sem a prova desta autorização.
b) Porque a «intromissão na vida privada» a que se refere o
artigo 32. °, n.º 8, da Constituição da República
Portuguesa, também engloba a saúde, podemos aferir que
a obtenção e utilização de documentos relativos a dados
sensíveis como são os dados clínicos, sem que haja a
necessária autorização da CNPD, representa
uma intromissão da vida privada e por isso um tratamento
de dados ilegal, o que determina a nulidade das provas
deles obtidas, nos termos daquele preceito constitucional
aplicável por analogia ao processo civil.
c) Face a esta nulidade da prova, os documentos obtidos desta
forma, não podem ser valorados como meios de prova.
155
O Acórdão supracitado explicita também o normativo em
análise (Lei n.º 67/98, de 26/10). Dispõe o artigo 7.º do respetivo
diploma legal, relativo ao tratamento de dados sensíveis, que:
Por um lado, é proibido o tratamento de dados pessoais
referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária
ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem racial ou étnica, bem
como o tratamento de dados relativos à saúde e à vida sexual,
incluindo os dados genéticos.
Por outro lado, através de disposição legal ou autorização da
CNPD, pode ser permitido o tratamento dos dados referidos no
número anterior quando por motivos de interesse público
importante esse tratamento for indispensável ao exercício das
atribuições legais ou estatutárias do seu responsável, ou quando o
titular dos dados tiver dado o seu consentimento expresso para
esse tratamento, em ambos os casos com garantias de não
discriminação e com medidas de segurança previstas no artigo 15.º.
De acordo com o n. º1 do citado artigo 15.º, é permitido
proceder ao tratamento de dados quando se verificar uma das
seguintes condições:
a) Ser necessário para proteger interesses vitais do titular dos
156
dados ou de uma outra pessoa e o titular dos dados estiver
física ou legalmente incapaz de dar o seu consentimento;
b) Ser efetuado com o consentimento do seu titular, por
fundação, associação ou organismo sem fins lucrativos de
carácter político, filosófico, religioso ou sindical, no âmbito
das atividades legítimas, sob condição do tratamento respeitar
apenas aos membros desse organismo ou às pessoas que com
ele mantenham contactos periódicos ligado às suas finalidades,
e de os dados não serem comunicados a terceiros sem o
consentimento dos seus titulares;
c) Dizer respeito a dados manifestamente tornados públicos
pelo seu titular desde que se possa legitimamente deduzir das
suas declarações o consentimento para o tratamento dos
mesmos;
d) Ser necessário à declaração, exercício ou defesa de um
direito em processo judicial e for efetuado exclusivamente com
essa finalidade.
Importa ainda referir que o tratamento dos dados referentes à
saúde e à vida sexual, incluindo os dados genéticos, é permitido
quando for necessário para efeitos de medicina preventiva, de
157
diagnóstico médico, de prestação de cuidados ou tratamentos
médicos ou de gestão de serviços de saúde.
No entanto, é essencial que o tratamento desses dados seja
efetuado por um profissional de saúde obrigado a sigilo ou por
outra pessoa sujeita igualmente a segredo profissional. Terá ainda
de existir a devida notificação à CNPD (artigo 27.º), sendo
asseguradas as medidas adequadas de segurança da informação.
Foi entendimento do Tribunal decidir no sentido de
improcedência do recurso, tendo confirmado a sentença, pois em
matéria de dados pessoais e sensíveis, deve ser obtida a necessária
autorização legal ou autorização da CNPD.
4. Reflexões conclusivas
A telessaúde contribui para ultrapassar as barreiras geográficas
e temporais no acesso à saúde, promovendo uma maior
coordenação, integração e continuidade dos cuidados de saúde.
Assente numa lógica de intervenção à distância, promove a
melhoria do acesso a cuidados, aumento de hábitos de saúde,
maior articulação entre diferentes prestadores e entidades, uma
gestão mais eficiente dos recursos, melhoria na qualidade dos
cuidados a prestar e diminuição da institucionalização do
158
cidadão 175 .
Verificamos com a realização do presente artigo, que a
telessaúde comporta riscos, podendo informação sensível ficar
desprotegida, e uma franja da população, com menos prática no
uso das TIC, ser excluída desta realidade. Outro constrangimento
é a possibilidade de ocorrer uma mudança na relação profissional
de saúde-paciente, com maior dificuldade em estabelecer uma
relação de proximidade e de a realização de diagnósticos à
distância poder agravar o risco de erro clínico.
O RGPD é recente, o que leva à falta de jurisprudência sobre
esta matéria, havendo apenas, para já, acórdãos que remetem para
a Lei n.º 67/98 de 26/10. Esta Lei, apesar de revogada, continha
na sua essência os pressupostos legais existentes antes da entrada
em vigor do RGPD, relativos à proteção das pessoas singulares,
no que diz respeito ao tratamento dos dados pessoais e à livre
circulação desses dados.
Dr.ª Ariana Daniela Fernandes Ribeiro Cunha,
Estudante do 2.º ano em Gestão de Unidades de Saúde, Escola de Economia e
Gestão da Universidade do Minho;
175
MARTINS, Henrique, op. cit., p. 26
159
Dr.ª Juliana Filipa Marques Lima,
Estudante do 2.º ano em Gestão de Unidades de Saúde, Escola de Economia e
Gestão da Universidade do Minho;
Dr.ª Maria Armanda Marinho Rodrigues,
Estudante do 2.º ano em Gestão de Unidades de Saúde, Escola de Economia e
Gestão da Universidade do Minho;
Dr.ª Paula Cristina Moreira Sampaio,
Estudante do 2.º ano em Gestão de Unidades de Saúde, Escola de Economia e
Gestão da Universidade do Minho;
160
ENQUADRAMENTO LEGAL DO
ACESSO ÀS TÉCNICAS DE
PROCRIAÇÃO MEDICAMENTE
ASSISTIDAS EM PORTUGAL POR
CASAIS DO MESMO GÉNERO
Resumo:
Com a crescente emancipação das mulheres desde o 25 de abril de 1974
até à atualidade, Portugal sofreu uma (r)evolução não só tecnológica como
intelectual, tentando acompanhar as necessidades da sua população, cada vez
mais mesclada pela migração. Por outro lado, a crescente evolução trouxe
consigo uma também crescente dificuldade na procriação por situações de
infertilidade, dando azo à necessidade de técnicas médicas para a reprodução e
dar resposta ao desejo de constituir família. Esta reflexão incidirá sobre o direito
à constituição de família na organização jurídica portuguesa, através do qual se
procurará entender de que forma é que se encontra reguada a questão da
Procriação Medicamente Assistida e de que forma é que a lei prevê o
envolvimento dos casais do mesmo sexo, cogitando-se sobre uma possível
colisão com o princípio da igualdade.
B
161
Palavras-chave:
Família; Género; Igualdade; Procriação Medicamente Assistida.
Sumário:
1. O Direito à Constituição de Família:
1.1. Dos casais do mesmo sexo;
2. As Técnicas de Procriação Medicamente Assistida:
2.1. Enquadramento Jurídico das Técnicas de Procriação
Medicamente Assistida;
2.2. Da Jurisprudência à Reflexão;
3. Conclusão;
162
1. O Direito à Constituição de Família
O conceito de família varia de acordo com a cultura em
que se está inserido e tem vindo a evoluir e a adaptar-se ao longo
do tempo. Em Portugal, a noção generalizada de família
representa-a como sendo o início e o final de tudo, engloba os laços
de consanguinidade, parentesco e/ou de afinidade, que partilham
o mesmo agregado. Quer na Constituição da República Portuguesa
(CRP) como na Declaração Universal dos Direitos do Homem
(DUDH) a família representa uma estrutura fundamental para a
sociedade, devendo ser assumida a sua proteção pelo Estado.
Tendo em conta a evolução natural da sociedade, com o
reconhecimento do divórcio e do casamento entre pessoas do
mesmo sexo, houve a necessidade de rever a noção de família,
alargando-a para inserir novas estruturas e organização das
mesmas. Ou seja, numa sociedade orientada para um padrão
normativo de família, começou a incluir-se uma multiplicidade de
configurações familiares, nomeadamente as monoparentais, as de
união de facto, as de reconstrução ou pluriparentais, e as
constituídas por pessoas do mesmo sexo. Portanto, a definição de
família vai depender se é pretendida uma representação biológica,
163
social ou cultural da mesma 176 , ficando apenas a faltar uma revisão
sobre a definição de fundação de família baseada no casamento.
Viriam a ser reconhecidas as relações em união de facto na
lei no 7/2001, de 11 de maio, como uma situação jurídica em que
duas pessoas, independentemente do sexo, vivam em união de
facto há, pelo menos, dois anos, tendo sido futuramente revista
com a lei 23/2010 de 30 de agosto para a proteção da mesma união
em caso de falecimento de uma das partes. Mantém, ainda assim, a
diferenciação equiparada ao casamento, cumprido o princípio de
não igualar o que não é igual, diferenciando os direitos legais dos
unidos de facto relativamente aos casados.
A CRP salvaguarda, no seu art. 36o, o direito de todo e
qualquer cidadão em constituir família, independentemente do seu
estado civil (apesar de no n.º 1 do mesmo artigo esses dois fatores
terem uma conotação interdependente), orientação sexual,
salientando os direitos e deveres dos pais, cônjuges ou não, de
garantir a educação e manutenção dos seus filhos,
independentemente de estes terem nascido dentro ou fora do
casamento. Pese embora o realce do direito à constituição de
176 SHARMA, Rahul – The Family and Family Structure Classification Redefined for the Current
Times. In Journal of Family Medicine and Primary Care. Delhi, India. ISNN 2249-4863. Vol. 2, No
4, 2013, p.307 (pp. 306-310).
164
família em situações abrangentes, estas não o são suficientemente
para incluir no conceito de família nas dimensões sociais
anteriormente explanadas e faz uma alusão ao casamento legal e
católico, desconsiderando também o matrimónio ao abrigo de
outras crenças religiosas.
Por sua vez, no que toca à maternidade e paternidade,
embora haja pouca referência a estas ligações nos documentos
revistos, a CRP, no seu art. 68o, identifica-as como sendo valores
sociais distintos, conferindo a sua proteção, por parte da sociedade
e do Estado, garantindo a insubstituível ação de educação dos pais
sobre os filhos, bem como a sua realização profissional e
participação no desenvolvimento cívico do país. Para além disso, o
código civil português regulamenta a atribuição de proteção laboral
e social às mulheres durante o período pré e pós-parto, bem como
de direitos laborais (a mãe e pai) que visem o maior interesse da
criança.
1.1. Dos casais do mesmo sexo
São vários os documentos internacionais que defendem o
direito à família, à igualdade e à não discriminação. Desde logo, a
DUDH, em 1948, proclama que todos os indivíduos “nascem
165
livres, iguais em dignidade e igualdade”, com direito a contrair
matrimónio e de constituir família, com salvaguarda da sua
privacidade familiar, sem ataques à sua honra e reputação e com
direito a proteção contra a discriminação 177 . Também na
Convenção Europeia dos Direitos do Homem, em 1950, são
mantidas premissas idênticas no art. 12º, sobre o direito a casar e
constituir família, desde que com idade acima dos 16 anos,
mediante as leis nacionais 178 . Não aclaram, contudo, os conceitos
de casamento e de família, ficando estes suscetíveis à adaptação
cultural e sociológica de cada nação.
É possível verificar um crescente reconhecimento jurídico
das uniões das pessoas do mesmo sexo, por toda a Europa. Tal
como Dias (2011) 179 refere, este reconhecimento difere entre os
vários países, parecendo haver uma preferência pela regularização
desta como uma união de facto, vedando o casamento apenas a
177 Organização das Nações Unidas – Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948.
[Consultado em 05/01/2022]. Disponível em: https://dre.pt/dre/geral/legislacaorelevante/declaracao-universal-direitos-humanos.
178 European Court of Humans Rights – European Convention on Human Rights, 1950.
[Consultado em 05/01/2022]. Disponível em:
https://www.echr.coe.int/documents/convention_eng.pdf
179 4 ARAÚJO, Cristina M. Dias – A Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem
e as Novas Formas de Família. In Revista Jurídica da Universidade Portucalense. Porto, Portugal.
ISNN 0874-2839. No 15, 2012, p. 37 (pp. 35-48).
166
casais heterossexuais, como é o caso de Espanha, França e Bélgica.
Outros, têm vindo a rever a legislação das uniões de facto,
equiparando-a à dos casamentos, tal como Dinamarca, Noruega,
Suécia, Islândia, Holanda, Finlândia, Reino Unido e Alemanha.
Em Portugal, a união de casais do mesmo sexo pode ser
reconhecida como uma união de facto ou como casamento,
consoante a vontade dos indivíduos. O Decreto-Lei no 9/2010 de
31 de maio vem permitir o casamento legal 180 entre pessoas do
mesmo sexo, conferindo-lhes os mesmos direitos dos casais
heterossexuais, exceto no que concerne à adoção. O entrave da
adoção foi ultrapassado com a Lei no2/2016 de 29 de fevereiro,
que visou a eliminação de todas as discriminações no acesso à
adoção, apadrinhamento civil e outras relações jurídicas familiares,
reconhecendo o direito e o acesso à adoção, nos termos da lei, a
pessoas não casadas (artigo 7º) e alterou o predisposto no artigo 3o
na Lei n.º 9/2010, de 31 de maio, passando a admitir a legal adoção
por pessoas do mesmo sexo, casadas ou em união de facto.
Posto isto, é possível concluir que apesar dos lentos
avanços na legislação portuguesa no que toca à regulamentação do
180 “Casamento é o contrato celebrado entre duas pessoas que pretendem constituir família
mediante uma plena comunhão de vida”, nos termos das disposições da Lei no 9/2010, de 31 de
maio, em Diário da República.
167
direito à constituição familiar e, estando esta ainda muito vinculada
pelo casamento, que ainda se comporta como sendo a relação
jurídica com maior ratificação aos olhos da lei, é possível assumir
uma abertura legal, que se espera ser representativa da sociedade
portuguesa, no reconhecimento dos casais homoafetivos. Esta
abertura peca pelo timing, que se encontra atrasado em relação a
outros países europeus, mas também em relação às mudanças
sociais do paradigma da família que se têm observado existir nos
últimos 40 anos. Foram cerca de 30 anos que estes cidadãos
portugueses estiveram à espera de verem os seus direitos
reconhecidos na lei portuguesa, protegendo-os contra a
discriminação no acesso ao casamento e adoção, que sendo um dos
direitos fundamentais do homem é questionável.
2. As Técnicas de Procriação Medicamente Assistida
As técnicas de avaliação e o tratamento de infertilidade,
bem como as suas alternativas terapêuticas têm vindo a ser uma
preocupação mundial nos últimos 100 anos, mas foi nos últimos
40 que houve maior expressão destes avanços científicos, com a
implantação da técnica de Fertilização in Vitro (FIV), que resultou
no nascimento de uma criança em 25 de julho de 1978.
168
Rapidamente, estas técnicas foram sendo disseminadas por todo
mundo, sendo alvo de diversas reflexões éticas, sociais e legais.
Em Portugal, o primeiro ciclo de FIV foi realizado em
julho de 1985, tendo nascido em fevereiro de 1986 a primeira
criança resultante da utilização dessa técnica. Outros
procedimentos viriam a ser adotados como tratamento a casais
inférteis em Portugal, desde a execução da inseminação artificial, a
transferência intratubária de gâmetas, a criopreservação de
embriões e a Microinjeção Intracitoplasmática de
Espermatozoides, integrando, assim, no vocabulário o conceito de
Procriação Medicamente Assistida, doravante designadas como
PMA 181 .
As PMA têm vindo a constituir uma crescente procura em
todo mundo, facto ao qual Portugal não é indiferente, apesar de
apresentar uma resposta ineficiente aos casais com indicação para
estas técnicas por infertilidade e aos restantes beneficiários que
pretendam a gravidez que procuram. Estima-se que, em todo o
mundo, já tenham nascido mais de três milhões de crianças como
resultado de PMA. De acordo com os últimos dados disponíveis,
181 Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida – PMA em Portugal. [Consultado em
12/12/2022]. Disponível em https://www.cnpma.org.pt/cidadaos/Paginas/pma-em-portugal.aspx
169
em 2016 o número de crianças originadas em tratamentos com
PMA representou cerca de 3% do total de crianças nascidas em
Portugal.
A utilização das PMA são continuamente alvo de reflexão
ética, social e legal. A Comissão Nacional de Ética para as Ciências
da Vida (CNECV) emitiu, em 1993, o primeiro parecer
relativamente às técnicas de PMA – sendo na altura a entidade
reguladora, juntamente com a Ordem dos Médicos, dos centros de
PMA –, para a aprovação do projeto de lei que viria entrar em vigor
anos mais tarde. Nesse documento 182 , assumindo uma perspetiva
humana da natureza da conceção – ainda que não estritamente
biológica – e suportada no preâmbulo da resolução sobre
fertilização in vitro e in vivo do Parlamento Europeu, a CNECV
lança o apelo para que se considerem dois pontos importantes ao
regularizar estas técnicas: a) A não instrumentalização da pessoa
humana, no que diz respeito à doação de esperma a menos que ela
seja totalmente doada, mas também no risco de materialização do
nasciturno que possa advir, que a própria comissão aceita que
poderá não acontecer dado o amor subjacente que o casal infértil
182 Conselho Nacional de Ética Para as Ciências da Vida – Relatório: Parecer Sobre Reprodução
Medicamente Assistida (3/CNECV/93), 1993. [Consultado a 12/12/2021]. Disponível em:
https://www.cnecv.pt/pt/deliberacoes/pareceres/3-cnecv-
93?download_document=3058&token=fc35825d4935423ef6fd13af76b8a22a.
170
terá por chegar ao ponto de proceder à PMA para colmatar o
desejo de ter um filho; b) A liberdade ética, no que diz respeito a
uma decisão devidamente informada pelo casal, especialmente da
mulher – já que esta é a primeira a sentir os efeitos das técnicas de
PMA – e aborda o receio que, com o avanço tecnológico e
científico, o direito a ter filhos possa levar ao direito de ter filhos
com as características que quiserem. Mais tarde, em 1997, o
CNECV volta a emitir novo parecer 183 , trazendo à luz a
incongruência detetada na lei com os direitos fundamentais do
cidadão no que toca ao direito à identidade própria e identidade
genética posta em causa pela confidencialidade assegurada aos
dadores de gâmetas.
2.1 Enquadramento Jurídico das Técnicas de Procriação
Medicamente Assistida
A primeira legislação das PMA remota ao Decreto-Lei n.º
319/86 de 25 de setembro, após a recomendação da Assembleia
Parlamentar do Conselho da Europa relativamente à utilização de
183 Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida – Relatório Sobre o Projeto de Proposta de
Lei Relativa à Procriação Medicamente Assistida, 1997. [Consultado a 12/12/2021]. Disponível em:
https://www.cnecv.pt/pt/deliberacoes/pareceres/23-cnecv-
97?download_document=3115&token=5ca8aa30c3703e9066f6d4c78601fb99
171
embriões na investigação científica. Ainda que tivesse um carácter
provisório e limitativo, comportou-se como base de
desenvolvimento de futuros diplomas nesta matéria: em 1997, o
Governo aprovou proposta de Lei n.º 135/VII e houve alteração
da CRP pela Lei n.º 1/97 de 20 de setembro, tornando as PMA um
direito constitucional; em 1999, há a primeira tentativa de
legislação das PMA, com o Decreto-Lei n.º 415/VII de 16 de julho,
que foi vetada; nova tentativa foi realizada em 2005, sem sucesso 184 .
A regulamentação das técnicas de PMA surge vinte anos
depois, com a Lei n.º 32/2006 de 2 de Junho, que autoriza e regula
diferentes técnicas de PMA, nomeadamente “inseminação
artificial, fertilização in vitro, injeção intracitoplasmática de
espermatozóides, transferência de embriões, gâmetas ou zigotos, o
diagnóstico genético pré-implantação e outras técnicas
laboratoriais de manipulação gamética ou embrionária equivalentes
ou subsidiárias” e também incide sobre a criação do Conselho
Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA). Esta lei
viria, dez anos mais tarde, a ser alterada, com o alargamento no
âmbito dos seus beneficiários, garantindo o acesso a todas as
mulheres independentemente do estado civil, orientação sexual ou
184 CARDOSO, Carla Luísa Monteiro – Procriação Medicamente Assistida: Limites e Desafios ao
Regime Jurídico dos Beneficiários. Braga, Universidade do Minho, 2017.
172
do diagnóstico de infertilidade, pela Lei no 17/2016 de 20 de
junho. Encontrava-se em discussão o alargamento do âmbito das
técnicas de PMA para a gravidez de substituição 185 , que no diploma
em vigor – ao início deste trabalho – se define como proibido,
sendo punível com pena de prisão até dois anos ou pena de multa
até 240 dias. As propostas de alteração da lei já foram apresentadas
e vetadas por duas vezes pelo Exmo. Presidente da República
Portuguesa, até à sua promulgação e publicação em Diário da
República no passado dia 16 de dezembro de 2021.
Olhando para o decreto que permitiu a introdução das
técnicas de PMA em Portugal, este visa a possibilidade de gravidez
em situações em que seja diagnosticada infertilidade ou em
situações em que a finalidade seja a de tratamento ou prevenção de
transmissibilidade de anomalias cromossomáticas ou infeciosas
que, de outra maneira, não sejam possíveis de controlar 186 , sendo
da responsabilidade do CNPMA a verificação e cumprimento dos
185 Entenda-se por gravidez de substituição como sendo “qualquer situação em que a mulher se
disponha a suportar uma gravidez por conta de outrem e a entregar a criança após o parto,
renunciando aos poderes e deveres próprios da maternidade”, tal como definido na Lei no 32/2006,
de 26 de julho (artigo 8º).
186 Trata-se de doenças infeciosas sem cura ou outras que, por fatores genéticos e hereditários
traduzem uma doença grave ou causa de morte precoce. Excluem-se situações de manipulação
genética que não constituam um benefício de saúde, como a escolha de sexo (exceto se a doença em
causa tenha predominância num dos sexos), segundo a Lei 32/2006, de 26 de julho (artigo 7o).
173
critérios de inclusão dos beneficiários. Fala-se, portanto, de
métodos subsidiários, disponíveis no SNS ou em instituições
privadas autorizadas, destinados a indivíduos maiores, casados ou
em união de facto e de sexos diferentes – sublinha-se essa
premissa, a ser alvo de reflexão – que após a devida transmissão da
informação necessária 187 a tomar uma decisão, bem como da
garantia de confidencialidade, expressem o seu consentimento
livre, esclarecido, explícito e por escrito, tal como regulado pela Lei
no 32/2006, de 26 de julho.
A mesma lei define limitações no que toca à utilidade
científica dos gâmetas ou embriões, sendo declaradas as condições
em que os produtos podem ser utilizados para investigação – o que
não vem a ser pertinente neste trabalho e, por isso, não será
alongado. Também são expressas limitações na sua utilização em
caso de falecimento do cônjuge durante a criopreservação dos
produtos, sendo permitida a utilização post mortem de embriões, se
acompanhados de consentimento e vontade expressa da sua
utilização por parte do falecido, mas não a utilização de
espermatozóides, ainda que tenha sido consentido no ato de
187 A Lei n.o 32/2006, de 26 de julho (artigo 14o) refere-se aos riscos e benefícios, bem como das
implicações éticas, sociais e jurídicas da utilização das técnicas de PMA, não só do âmbito e do
processo.
174
inseminação, sendo este destruído após falecimento. É importante
ressalvar que a utilização de gâmetas de dadores terceiros não
constitui um vínculo que implique o estabelecimento da
parentalidade, sendo esta assumida por quem deu o consentimento
à realização da PMA.
Relativamente ao destino dos embriões, estes podem ser
criopreservados com vista à sua utilização durante três anos, findos
quais devem ser destruídos ou poderão ser doados a outros casais
elegíveis ou para investigação, mediante o consentimento dos
beneficiários primários. A pedido das pessoas beneficiárias pode
ser alargado esse período por mais três anos, segundo a revisão
deste diploma, levada a cabo em 2010. A sua compra e venda é
estritamente proibida, assim como o é dos óvulos e esperma, que
devem ser destruídos após cinco anos de criopreservação, ao
abrigo da Lei no 32/2006, de 26 de julho.
Finalmente é garantido, por lei, o sigilo e o anonimato quer
dos beneficiários, dos dadores (no caso das PMA heterólogas) e
das crianças nascidas, não sendo permitido a inclusão da
informação de esta é resultado de uma técnica de PMA, sendo
punível por lei o incumprimento dessas premissas. Fica, portanto,
salvaguardada a situação em que alguma destas partes expresse por
escrito que não exige a confidencialidade das suas informações e
175
também as situações em que existam razões ponderosas em que,
por ordem judicial, seja dado a conhecer a entidade do dador.
Fica, portanto, evidente a limitação do acesso às técnicas
de PMA a determinados grupos sociais. Pese embora a evolução
significativa na legislação e considerando os vinte anos em que a
regulação das PMA se limitava a três artigos inespecíficos, é de
reconhecer a amplitude do presente diploma em vigor, concordese
ou não com a extensão do mesmo a vários níveis,
nomeadamente na discriminação pelos casais de sexo masculino ao
acesso das PMA, facto que será alvo de reflexão. Outro ponto de
interesse para reflexão trata-se da confidencialidade dos dados e até
que ponto esta pode interferir com o direito constitucional da
criança nascida em ter conhecimento da sua identidade genética
(artigo 25º da CRP).
3. Da Jurisprudência à Reflexão
Apesar de aparentar ser um conceito recente, a utilização
de técnicas PMA não é tão atual quanto se julga. Bem observado,
já na Bíblia Sagrada existe a menção da utilização de barriga de
aluguer por parte de Sara e Abraão para reprodução de um filho
que Sara não seria capaz de gerar, através do relacionamento de
176
Abraão com sua escrava. De todas as técnicas de PMA, a que ainda
gera discussão em Assembleia da República é a utilização de
gestação de substituição, motivo que já foi para aprovação
múltiplas vezes, sendo vetada pelo Presidente da República até ser
publicada a Lei n.º 90/2021 de 16 de dezembro.
Após pesquisa sobre acórdãos relativamente à utilização de
técnicas de PMA, sobretudo em casais homossexuais, a mesma não
apresenta resultados. Assim, optou-se por estudar os que incidiam
sobre a gestação de substituição e que foram base de formulação
da lei atualmente publicada – que será abordada –, podendo
constituir uma luz ao fundo do túnel para os casais homossexuais
masculinos.
A Lei n.º 25/2016 de 22 de agosto previa a regulamentação
do acesso à gestação de substituição, como sendo uma das
alterações à Lei n.º 32/2006, de 26 de julho, que regula as técnicas
de PMA. Terá sido promulgada e emitido o decreto regulamentar
a 31 de julho de 2017, onde estariam emitidas as condições de
realização de PMA em gestação de substituição. Contudo, mais
tarde foi declarada inconstitucional, em algumas das suas leis, pelo
Acórdão n.º 225/2018 do Tribunal Constitucional, de 7 de maio
177
de 2018 188 . As fundamentações desta declaração baseiam-se nos
seguintes pontos:
o A violação do direito constitucional à identidade pessoal,
nomeadamente da sua ascendência genética (artigos 26º/1 e 3
da CRP), salvo se por motivos ponderosos e decretados por
tribunal, que entra em colisão com o direito fundamental de
constituir família e da proteção da privacidade da vida pessoal
e familiar (artigos 36º e 26º da CRP, respetivamente). Ponto
muito relevante no parecer do CNECV, que chega a justificar
que se ter um filho é um direito fundamental, também o é
conhecer a sua identidade e que em caso de colisão deva ser o
primeiro a ceder e não o segundo. É certo que a lei não tem
um caráter proibitivo absoluto no que toca à divulgação da
identidade dos dadores das PMA heterólogas, mas existe uma
margem muito reduzida para a conseguir, já que este direito de
confidencialidade foi matéria de pronúncia em 2009 no
Acórdão n.º 101/2009, em que o Tribunal Constitucional
decidiu pela não inconstitucionalidade do sigilo, em benefício
de manutenção da paz e da privacidade da vida familiar.
188 Tribunal Constitucional – Acórdão do Tribunal Constitucional no 225/2018, de 7 de maio. In
Diário da República, Série I, n.º87, 2018, p. 1887 (pp.1885–1979). [Consultado a 10/12/2021].
Disponível em https://dre.pt/dre/detalhe/acordao-tribunal-constitucional/225-2018-115226940.
178
o A violação da dignidade da pessoa humana assenta na
objetificação e mercantilização do nascimento de uma criança,
em que a mãe de substituição é usada como objeto de
incubação e a criança é o objeto transacionado. Esta
preocupação surge no conhecimento de que grande parte das
mulheres que se oferecem para prosseguir com esta técnica são
oriundas de zonas economicamente pobres, cujo intuito é o de
receber os apoios fornecidos a nível alimentar, de saúde,
condições, suportados pelos beneficiários, representando uma
forma de subsistência familiar. Este facto não pode ser
desconsiderado, bem como o dos efeitos psicológicos que
possam advir da entrega de uma criança gerada e nascida do
seu próprio corpo. Além disso, a lei não prevê a possibilidade
de revogação do contrato após o início das técnicas de PMA,
por parte da gestante.
Revista a lei e devolvida novamente sem promulgação, o
Tribunal Constitucional volta a declarar a sua inconstitucionalidade
no Acórdão n.º 465/2019 de 18 de outubro de 2019 189 . Neste, além
de reforçar que os pontos anteriormente explanados não foram
189 Tribunal Constitucional - Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 465/2019, de 18 de outubro.
In Diário da República, Série I, no 201, 2019, p. 123 (pp.117–137). [Consultado a 10/12/2021].
Disponível em https://dre.pt/dre/detalhe/acordao-tribunal-constitucional/465-2019-125468550.
179
devidamente solucionados, reforça que as soluções tomadas para
permitir a revogação até ao momento da entrega da criança aos
beneficiários pode constituir um período de incerteza legal para
todas as partes envolvidas, sobretudo para a criança.
Servindo-se das anteriores revisões e dos acórdãos
emitidos pelo Tribunal Constitucional, é realizada nova revisão do
projeto de lei (oitava) e entregue para aprovação, tendo sido aceite
e promulgado recentemente, em novembro. Assim, a 16 de
dezembro de 2021, é publicada a lei n.º 90/2021, que altera o
regime jurídico aplicável à gestação de substituição. À luz das
orientações deixadas pelo Tribunal Constitucional nos acórdãos
anteriores e dos pareceres emitidos pelo CNECV e do CNPMA,
esta nova lei admite, entre outras, as seguintes alterações:
o A realização de acordos jurídicos para a gravidez de
substituição só é admissível a título excecional para casos de
ausência de útero ou incapacidade biológica do mesmo em
suportar uma gravidez ou outra situação clínica que impeça
definitivamente a gravidez da mulher.
o A grávida de substituição deve ser, preferencialmente, mãe,
ainda que a não verificação deste facto não possa impedir a sua
participação.
180
o A realização do acordo carece da autorização e auditoria prévia
do CNPMA, com audição da Ordem dos Médicos e Ordem
dos Psicólogos.
o A criança nascida da utilização de gestação de substituição é
tida como filha dos beneficiários.
o No que diz respeito ao consentimento, este deve ser dado
mediante a divulgação de todas as informações previstas na lei
anterior, podendo ser revogado pela grávida de substituição até
ao momento do registo da criança.
o Declara as cláusulas que devem ser verificadas – sob supervisão
do CNPMA – no contrato que visam direitos e deveres da
gestante; as disposições a observar em caso de complicações
na gravidez ou de interrupção voluntária da gravidez; a
possibilidade de denúncia do contrato por incumprimento; a
gratuitidade do processo, abrangendo o pagamento de
despesas decorrentes da vigilância da gravidez e gastos de
deslocação.
o Aprova as sanções a serem aplicadas em caso de
incumprimento dos termos legais na realização desta técnica
ou quem a promover com fins lucrativos.
181
Se biopsicologicamente está comprovado que existe uma
ligação que se estabelece entre mãe e filho durante o período
gestacional, bem como todo um conjunto de alterações físicas e
psicológicas inerentes ao processo, é passível de se levantarem
algumas questões: de que forma pode ser utilizado um corpo como
uma incubadora de um feto que não é seu; como pode a mulher
deixar livremente de querer assumir como seu quem gerou em si;
como pode a mulher, alvo de todas as alterações físicas, hormonais,
psicológicas não ser vítima de transtornos mentais e como proteger
essas mulheres. A consciência e o peso carregado pelo acordo
estabelecido com um casal que não pode ter filhos e a importância
dada ao altruísmo da mulher por aceitar fazer cumprir um objetivo
a dois, tão importante como o de constituir família, poderá
representar um fardo demasiado grande e impeditivo para que esta
exprima livremente as suas vontades ou que seja capaz de
prosseguir com o acordo livremente, colocando em causa a sua
dignidade, ao sentir-se utilizada como um meio para atingir um fim.
Dessa reflexão, poderá ter resultado a alteração das
premissas que regulam o acesso à gestação de substituição,
nomeadamente a preferência por uma mulher que já seja mãe, a
emissão de um leque de direitos previstos para a grávida de
substituição, entre os quais o de decidir sobre si e sobre o feto
durante a gravidez e o de ser acompanhada por um psicólogo
182
durante a gravidez, parto e pós-parto. Também disso terá resultado
a alteração do tempo de revogação por parte da gestante, o que se
torna um importante espaço de reflexão e ponderação por parte da
mulher no sentido de ver respeitada a sua dignidade. Por outro
lado, ao ser permitida a liberdade de decidir sobre si e o seu corpo,
bem como do feto até ao momento da entrega, acarreta uma
pressão e incógnita sobre o futuro para os beneficiários, o que
implica um investimento emocional sobre um projeto e sobre o
material genético que lhes pertence – ou pelo menos a um deles –
que poderão não ver reconhecidos como seus. Contudo, este facto
parece ser apenas considerado como uma perda contratual, aos
olhos do Tribunal Constitucional, ao não dar relevância a esta
perda, olhando apenas pelos interesses da grávida de substituição
e da pessoa que da PMA nascer.
O Tribunal Constitucional também incide sob o interesse
da criança, tal como é defendido pela CNECV no seu parecer de
2016, colocando-o como principal entidade a ser protegida,
aquando da emissão de leis. A proteção de dados dos dadores de
gâmetas ou, neste caso, das grávidas de substituição entra em
conflito com o direito a uma identidade genética. Nesta nova lei
publicada é novamente explícito o direito do nasciturno em
conhecer as vias em que foi gerado e nascido, mas não existe
referência relativamente à divulgação dos dados da gestante, já que
183
se pressupõe que o material genético será de um ou ambos os
beneficiários e nunca da gestante, mantendo-se em vigor o previsto
na lei n.º 32/2006.
Faça-se, agora, um enquadramento sobre as premissas que
regulam os beneficiários. É certo que à data da publicação da lei
n.º 32/2006, não estavam ainda reconhecidas, legalmente, as
uniões entre indivíduos do mesmo sexo. Como já se viu
anteriormente, em 2006, apesar de já se terem dado os primeiros
passos no reconhecimento das uniões de facto
(independentemente do sexo), ainda não estava reconhecido o
casamento entre pessoas homo-afetivas. À data da lei n.º 17/2016
de 20 de junho, altura em que se alargaram os beneficiários para
recurso às técnicas de PMA, o casamento entre pessoas do mesmo
sexo já havia sido reconhecido legalmente. Não obstante, essa
alteração da lei não está redigida de forma exclusivista, mas ainda
assim inclui apenas as mulheres, deixando de fora os indivíduos do
sexo masculino, sejam eles solteiros ou unidos ou casados com
outro homem, o que se traduz numa desigualdade na constituição
de família baseada no sexo e na sua impossibilidade de engravidar.
Seria expectável que esta nova proposta de lei apresentasse uma
resposta a esta lacuna, mas o mesmo não foi verificado,
abrangendo apenas as mulheres que não tenham um órgão
184
reprodutor competente para prosseguir com a gestação, ainda que
os homens também não o possuam.
4. Conclusão
A realização deste trabalho permitiu desenvolver
competências no que toca à investigação e na interpretação de
elementos jurídicos – neste caso as leis, propostas de lei e acórdãos
– inerentes ao tema em causa. Foi possível, então, conseguir
entender o que está regulado relativamente à utilização de técnicas
de PMA para dar resposta ao direito constitucional de formar
família. Apesar dos constantes esforços em proceder à emissão de
leis que regulem o acesso às técnicas de PMA é visível a
morosidade e a discriminação a eles inerentes, o que leva à procura
por soluções em outros países cuja legislatura esteja mais
abrangente ou, na impossibilidade, a danos morais e psicológicos
nos indivíduos excluídos. Aguarda-se uma evolução breve neste
sentido.
Dr.ª Mónica Sofia Maciel Carvalho
Estudante do 2º ano do Mestrado em Gestão de Unidades de Saúde na
Universidade do Minho
185
O EVENTUAL DIREITO A FALTAR POR
PERDA PERINATAL
Resumo:
Com o presente artigo pretendemos trazer à colação, a discussão
sobre a necessidade de previsão legal para a justificação de faltas no caso de
perda perinatal. O conceito de perda perinatal no momento do parto e as
suas consequências sobre o eventual direito dos pais a faltar ao trabalho.
Desta forma, pretendemos mapear a bibliografia existente sobre a temática
de modo a responder ao objetivo proposto. Assim, primeiro, apresentamos
os conceitos de direito de trabalho, de parentalidade e de perda perinatal. A
partir destes, delimitaremos o estado jurídico e legislativo atual em Portugal
e no mundo. Por último, retrataremos a perda dolorosa por interrupção de
um vínculo afetivo e biológico construído ao longo da gravidez, cujo
reconhecimento por lei do direito ao processo de luto parental não é
reconhecido, nem, todavia, consensual.
Palavras-chave:
Perinatal.
Direito do Trabalho; Faltas Justificadas; Luto Parental; Perda
186
Sumário:
1. Breves notas introdutórias;
2. Direito do Trabalho;
3. Parentalidade e Perda Perinatal;
4. A dor da Perda Perinatal;
5. Faltas Justificadas por motivo de falecimento;
6. Notas Conclusivas;
187
1. Breves notas introdutórias
O tema do luto por perda perinatal no momento do parto,
nos dias de hoje, continua a ser um assunto bastante sensível. A
perda perinatal no momento do parto retrata um momento
doloroso, de transição e que requer diversas dificuldades
adaptativas. No entanto, existe falta de apoio junto das entidades
empregadoras que se regem através do Código do Trabalho, em
Portugal.
Assim, pretendemos analisar as principais limitações atuais
existentes neste âmbito e aprofundar o reconhecimento por lei
sobre o eventual direito a dias de luto dos pais por perda perinatal
no momento do parto.
2. Direito do Trabalho
Em Direito, o conceito de trabalho pode ser definido como
atividade profissional que requer esforço físico e/ou psíquico com
vista a uma determinada finalidade, podendo ser ou não
188
remunerado 190 . Por sua vez, este pode ser dividido em trabalho por
conta própria ou por conta de outrem. Sucintamente, um
trabalhador por conta própria é quando a pessoa exerce atividade
independente. E, por conta de outrem atribui-se quando a pessoa
exerce atividade ao serviço de uma entidade empregadora,
podendo esta ser de forma autónoma através de um prestador de
serviços ou de forma subordinada regulada por um contrato de
trabalho 191 . O direito do trabalho, por sua vez, constitui uma parte
do Direito responsável pelas normas e princípios jurídicos que
regularizam as relações laborais que se estabelecem entre o
empregador e o trabalhador 192 . Estas encontram-se enumeradas no
Código do Trabalho. Este tem como objetivos promover
informação completa sobre as condições constantes no contrato a
assinar, promover qualidade de saúde e segurança aos
trabalhadores, proteger nas questões relacionadas com a
190 NEVES, Diana; Nascimento, REJANE; Félix, Mauro; SILVA, Fabiano; ANDRADE, Rui –
Sentido e significado do trabalho: uma análise dos artigos publicados em periódicos associados à
Scientific Periodicals Electronic Library. Brasil, 2018, pp. 2-3.
191 GARCIA, António; CARREIRO, Inês – Direito do Trabalho. Lisboa, Tese de Mestrado,
Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, 2019, p. 2.
192 XAVIER, Bernardo – Manual de Direito do Trabalho. 3.a edição. Lisboa: Rei dos Livros, 2018
p. 35-36.
189
parentalidade e proporcionar igualdade nas condições de trabalho
entre os colaboradores.
Antes de mais importa referir que o objeto em estudo está
relacionado com o direito do trabalho aplicado aos progenitores
em caso de perda perinatal.
3. Parentalidade e Perda Perinatal
A parentalidade é definida como um conjunto de ações
exercidas pelos pais ou cuidadores que assegurem as questões de
segurança, saúde e desenvolvimento físico, cognitivo, emocional e
social da criança 193 . Traduzindo-se, pela ótica jurídica, no
estabelecimento de um vínculo entre um adulto e uma criança a
seu cargo, sendo responsável pelos seus direitos e obrigações 194 . De
acordo com o Art. 68º da Constituição da República Portuguesa, a
maternidade e paternidade são valores sociais eminentes e que, as
mulheres têm direito a proteção durante a gravidez e após o parto,
o que inclui dispensa do trabalho durante um período adequado.
193
NEGRÃO, Mariana – Ser mãe, ser pai: os desafios da parentalidade (Durante e após a
pandemia). Ordem dos Psicólogos, 2021, pp. 2-4.
194
MESQUITA, Margarida – Parentalidade e Filiação: jurisdição da família e das crianças. Lisboa:
Centros de estudos judiciários, 2018, p.103.
190
No entanto, questionamos o cumprimento deste direito no caso de
perda perinatal no momento do parto. A perda perinatal é um
fenómeno que traduz a perda do bebé ocorrida durante a gestação
ou após o parto em que, independentemente do momento e/ou
causa, retrata uma vivência particular e, segundo a literatura, pouco
reconhecida socialmente 195 . Aplicado à temática, a perda perinatal
no momento do parto simboliza um momento de vida em que
ocorre a morte, podendo impulsionar um período de crise,
sofrimento e dificuldades adaptativas 196 .
Neste caso, uma vez que o bebé «nasce sem vida» (nadomorto),
todo o processo de idealização e planeamento desenvolvido
durante a gravidez é interrompido 197 , apesar da vivência da mesma
e do estabelecimento de um vínculo que é tanto biológico com
afetivo. No entanto, cada vez mais, na literatura se questiona o
195
TEODÓSIO, Andressa – “Particularidades do luto materno decorrente de perda perinatal:
estudo qualitativo”. DOI: https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v20i2.e9834. In Revista
Subjetividades, 2020, pp. 2-4.
196 ALVES, Rayssa; Celestino, Kênia – “De braços vazios, nos braços da dor: perda perinatal e
perinatal”. RSD Journal, ISSN 2525-3409. 2020, pp. 3-5.
197 LEMOS, Luana; CUNHA, Ana – Conceções sobre morte e luto: experiência feminina sobre a
perda perinatal. DOI: https://doi.org/10.1590/1982-3703001582014. Psicol. Ciênc. Prof., 2015, pp.
2-5.
191
reconhecimento desta perda. Surge o conflito, à luz da
interpretação jurídica, se o bebé que «nasce sem vida» é sujeito de
direitos ou obrigações jurídicas, isto é, se é suscetível de
personalidade jurídica. Segundo os termos do Art. 66.º do Código
Civil, a personalidade jurídica das pessoas singulares adquire-se no
momento do parto com o nascimento com vida e completo. Sendo
assim, uma vez que o bebé «nasce sem vida» e é a vida no momento
do parto que dá o atributo jurídico da pessoa, então compreendese
que o bebé não é sujeito de direitos ou obrigações jurídicas, o
que limita o seu reconhecimento. Por outro lado, o Art. 24.º da
Constituição da República Portuguesa menciona que a “vida
humana é inviolável”, surgindo a questão na literatura do porquê
de não se considerar como vida humana ao produto da conceção
ainda in útero. Assim, apesar do estabelecimento de um vínculo
biológico e afetivo entre os pais e o feto, e vivência da gravidez até
ao termo, o seu reconhecimento pela lei em caso de perda no
momento do parto não é assim tão linear e claro.
4. A dor da Perda Perinatal
O processo de luto é definido pela reação de um indivíduo
perante a perda de ligação com algo significativo, sendo, por isso,
192
um momento dinâmico complexo que interfere com o próprio e
na relação com o que o envolve durante o seu desenvolvimento
(Santos, 2015) 198 . O luto por perda perinatal comporta
especificidades, uma vez que, não envolve apenas a perda do filho
como também, a perda de autoestima, do estatuto enquanto pais e
a perda do futuro que ambicionaram. Requer a adaptação a uma
nova realidade dolorosa em que o trabalho de luto é fundamental.
A vivência de um acontecimento inesperado intensifica o
choque da perda dolorosa para a díade familiar. A forma como a
dor é sentida diverge, alguns vivenciam-na de uma forma mais
rápida enquanto, que outros podem necessitar de um tempo de
luto mais longo. O facto de a sociedade ter dificuldade em
reconhecer a importância desta perda contribui para o
desenvolvimento/aumento de complicações como depressão,
ansiedade, stress, culpa e até mesmo a visão que os pais têm de si
próprios. Os psicólogos consideram ser essencial que a dor sofrida
seja vivida, sentida e falada no momento certo e na intensidade de
cada pessoa. Estabelecer uma rede de apoio, entre enfermeiros,
198
SANTOS, Daniela – A elaboração do luto materno na perda gestacional, Lisboa, Tese de
Mestrado, Universidade do Lisboa, 2015, pp. 1-2.
193
psicólogos, médicos, familiares e amigos, é fundamental neste
processo de luto e superação.
5. Faltas justificadas por motivo de falecimento
a. Os dias de luto concedidos em Portugal
A perda de alguém muito próximo requer uma adaptação
à nova realidade, cuja resposta e sentimentos variam de pessoa para
pessoa, sendo assim, o processo de luto algo individual e
complexo 199 . No caso da perda no momento do parto por
natimorto, trata-se de um momento inesperado e traumatizante
uma vez que, os pais não antecipam nem estão preparados para a
possibilidade desta dor. A relação biológica e afetiva que
construíram durante a gravidez é interrompida, o que requer uma
adaptação tanto individual, conjugal, familiar e social face à
perda 200 .
199
Serviço Nacional de Saúde Home Page – O meu luto, 2015, [Consultado em 15 Dez. 2021]
Disponível em: https://s-1.sns.gov.pt/wp-content/uploads/2018/06/B1_O-Meu-luto.pdf.
200
ALVES, Sofia – Perda Perinatal: perspetiva da díade parental, Coimbra, Dissertação de
Mestrado, Universidade de Coimbra, 2018, pp. 38-41.
194
O Art. 251.º do Código do Trabalho, retrata as faltas ao
trabalho em caso de falecimento do cônjuge, parente ou outro,
sendo que:
“O trabalhador pode faltar justificadamente:
o Até cinco dias consecutivos por falecimento do
cônjuge não separado de pessoas e bens ou de parente
ou afim no 1.º grau na linha reta;
o Até dois dias consecutivos por falecimento de outro
parente ou afim no 2.º grau da linha colateral;
o Aplica-se o disposto na alínea a) do número anterior
em caso de falecimento de pessoa que viva em união
de facto ou economia comum com o trabalhador nos
termos previstos em legislação específica.
o Constitui contraordenação a violação do disposto
neste artigo”
Assim, consta como direito do trabalhador, a falta
justificada, ou seja, a lei portuguesa confere o gozo de dias de luto
no caso de falecimento de um familiar que pode ser, de dois a cinco
dias, em função do grau de parentesco. No entanto, apesar desta
195
conceção legal, esta não contempla todos os graus de parentesco
ou relações afetuosas.
No caso dos parentes 201 ou afim 202 no 1.º grau na linha
reta 203 , cujo direito concedido por lei é o prazo de cinco dias
consecutivos de luto, abrangendo, por conseguinte,
marido/esposa, casal que se encontre em união de facto, pais,
filhos, sogros e genros/noras. No caso dos parentes ou afins no
2.º grau da linha colateral engloba irmãos, avós, bisavós, netos,
bisnetos e cunhados. Assim, ficam excluídos por lei, relações
familiares como tios, sobrinhos, primos, entre outros.
Desde 2009 que o Art. 251.º do Código do Trabalho não
sofria alterações, até que em setembro de 2021, a Acreditar –
Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro 204 , lançou
201
Decreto-Lei n.o 47344 – Código Civil, artigo 1578.º (Noção de parentesco) – “Parentesco é o
vínculo que une duas pessoas, em consequência de uma delas descender da outra ou de ambas
procederem de um progenitor comum”. progenitor comum”.
202
Decreto-Lei n.º 47344 – Código Civil, artigo 1584.º (Noção de afinidade) – “Afinidade é o
vínculo que liga cada um dos cônjuges aos parentes do outro”.
203 Decreto-Lei n.º 47344 – Código Civil, artigo 1581.º (Cômputo dos graus) – “1. Na linha reta há
tantos graus quantas as pessoas que formam a linha de parentesco, excluindo o progenitor. 2. Na
linha colateral os graus contam-se pela mesma forma, subindo por um dos ramos e descendo pelo
outro, mas sem contar o progenitor comum”.
204 A Acreditar é uma associação que tem como objetivo apoiar as crianças, jovens, pais e amigos
com cancro, proporcionando uma rede certa de apoio nos planos emocional, logístico, social outro
que as famílias necessitem.
196
uma petição a propor o alargamento do período de faltas
justificadas pela perda de um filho para vinte dias 205 .
Com o lema - o luto de uma vida não cabe em cinco dias -
conseguiram sensibilizar alguns partidos políticos que, por sua vez,
propuseram alterações legislativas. Inês de Sousa Real, deputada
do PAN, reconheceu a dor vivida pela perda de um filho,
sugerindo 20 dias de luto por perda de um filho ou para mães que
sofreram perda perinatal. Seguidamente, afirmou-se o deputado do
Bloco de Esquerda, José Moura Soeiro que, apesar de uma visão
um bocado diferenciada sobre os dias de luto por perda perinatal,
ao comparar com os outros partidos, este refere que 5 dias não são
certamente suficientes para o luto dos pais. Todavia, refere que
deve existir uma diferença entre os dias de luto para a perda de um
filho em vida e perda perinatal. André ventura, representante do
CHEGA, não propôs nenhum número para aumento ou
diminuição de dias de luto. Referiu, em parlamento, que a perda
perinatal é um tema pouco falado e ao qual deveria ser dado mais
importância, pedindo o reconhecimento do luto por perda
perinatal. Já o Partido Ecologista, representado por José Luis
Ferreira, expõe que existe uma lacuna na lei acerca da perda
205 PAULINO, Mauro; GABRIEL, Sofia – A petição: Luto Parental. Acreditar, Lisboa, 2021, p. 1.
197
perinatal, não sendo significativo, aos olhos da lei, a perda de um
feto, mencionando que esta deveria ser revista.
Em novembro de 2021, foi atingido consenso parlamentar
para o alargamento do período de cinco para vinte dias em
novembro de 2021. Após promulgação do Presidente da
República, a alteração é publicada a 3 de janeiro de 2022 com
entrada em vigor no dia seguinte, o Art. 251.º do Código do Direito
do Trabalho, passa a ter a seguinte redação:
“O trabalhador pode faltar justificadamente:
o Até vinte dias consecutivos, por falecimento de
descendente ou afim no 1.º grau na linha reta;
o Até cinco dias consecutivos, por falecimento de
cônjuge não separado de pessoas e bens ou de parente
ou afim ascendente no 1.º grau na linha reta;
o Até dois dias consecutivos, por falecimento de outro
parente ou afim na linha reta ou no 2.º grau da linha
colateral.
o Aplica-se o disposto na alínea b) do número anterior
em caso de falecimento de pessoa que viva em união
198
de facto ou economia comum com o trabalhador, nos
termos previstos em legislação específica.
o Constitui contraordenação grave a violação do
disposto neste artigo”.
Deste modo, esta alteração veio dar mais um passo
importante no reconhecimento do luto parental e “corrigir, na
medida do possível, uma injustiça da lei, uma vez que não consegue
corrigir a injustiça da vida” 206 . No entanto, apesar deste avanço
legislativo que consideramos bastante positivo, deixou por
resolver, nomeadamente, a inclusão do critério da perda perinatal
no direito ao acesso de dias de luto parental.
b. Uma breve visão sobre o Direito Comparado
Apenas no final do ano de 2021 é que Portugal conseguiu
dar um avanço, ainda que pouco significativo, no que respeita ao
luto parental, alargando o período de dias de luto de cinco para
vinte dias em caso de perda de um descendente ou afim no 1.º grau
na linha reta. Como Portugal, já vários países europeus nos últimos
anos têm estabelecido, no nosso entender, um período mais
adequado para o luto parental. Apesar do número de dias
206 Acreditar Home Page – O luto de uma vida não cabe em 5 dias. Acreditar, Lisboa, 2021.
199
facultados não ser uniforme em todos os países, caracterizam
avanços no reconhecimento desta dor, facilitando a sua
compreensão e dando espaço para o seu aprofundamento. Servem
de exemplo, a Irlanda que permite vinte dias, o Reino Unido com
catorze dias e a Dinamarca que consagra até vinte e seis dias 207 em
casos de luto parental.
No entanto, em Portugal, o luto por perda perinatal não
foi abrangido nas mais recentes alterações. Isto porque, apesar da
tentativa em alterar-se o quadro legislativo nesta matéria, visto que
em paralelo à mais recente alteração do Art. 251.º do Código do
Trabalho, foi levada à discussão, a eventual previsão de um período
de faltas justificadas, em caso de perda perinatal.
O PAN – Partido das Pessoas–Animais–Natureza,
apresentou o Projeto de Lei n.º 926/XIV/2.ª onde propunha a
concretização de uma licença de doze dias em caso de perda
perinatal. Pode ler-se naquele projeto a preocupação dada às
consequências da perda perinatal na vida dos progenitores que
inclui o sentimento de fracasso, o sofrimento emocional, a pressão
social e riscos para a saúde como ideação suicida, excessivo stress
e maior probabilidade de aparecimento de doenças cardíacas, entre
207 CUNHA, Bebiana; REAL, Inês; SILVA, Nélson – Projeto de Lei n.º 926/XIV/2.ª Altera o
regime de faltas por motivo de luto procedendo à décima sétima alteração ao Código do Trabalho,
aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro. Grupo Parlamentar PAN. Lisboa. 2021.
200
outros. Desta forma, apelavam à inclusão de um período de pausa
laboral justificada de doze dias na atual legislação, para que,
também estes pais tivessem direito a se adaptarem à nova dolorosa
realidade. Ou seja, apesar da existência de propostas, por parte dos
partidos políticos, para faltas justificadas perante a perda perinatal,
estas não avançaram. Sendo os principais critérios a segurança da
mulher e o nível de formação do feto, aponta, mais uma vez, para
a falta do reconhecimento por parte da lei, deste momento
doloroso na vida dos pais.
Assim, apesar do moroso desenvolvimento desta matéria,
temos assistido na Europa 208 , nos últimos anos, a um despertar
para a eventual necessidade de se concretizar um quadro legislativo
que contemple a concretização de dias de luto no caso de perda
perinatal. Pelo que, aguarda-se mais uma jornada até ser dado o
devido reconhecimento por lei deste tipo de dor em Portugal.
208 Em março de 2021, a Nova Zelândia tornou elegível a perda perinatal no direito parental a uma
licença remunerada de três dias. – Comunidade, Cultura e Arte Home Page – Nova Zelândia aprova
licença remunerada e direito a luto de três dias em caso de aborto espontâneo. Lisboa, 2021.
201
6. Notas conclusivas
O direito à concessão de faltas justificadas no caso de perda
perinatal no momento do parto retrata um tema atual e que não
reúne consenso. Trata-se de uma perda dolorosa por interrupção
de um vínculo afetivo e biológico construído ao longo da gravidez
e que não é reconhecido por lei, visto que o legislador português
não confere o direito ao processo de luto parental e familiar.
Conforme supra se expôs, apesar das recentes tentativas
para se considerar justificada a falta ao trabalho por perda perinatal,
o Art. 251.º do Código do Trabalho, a verdade é que não foi
atingido o desfecho proposto. Sendo certo que seja difícil que o
Código do Trabalho contemple a universalidade das situações, é
importante continuar a lutar pela inclusão desta perda no mesmo,
garantindo também um período de ajuste psicológico, físico e
social a estes progenitores.
Por conseguinte, acreditamos que o mais recente avanço
legislativo operado pelo legislador na Nova Zelândia venha
proporcionar uma maior abertura para a discussão e o debate
público sobre esta temática, de modo que possa impactar futuras
decisões. Assim como a Nova Zelândia, incluiu o natimorto dentro
do significado de nascimentos, óbitos, casamentos e lei de registo
de relacionamentos do código, contribuiu para desmistificar o luto
202
por perda perinatal. Aceitá-lo sem ser necessário recorrer a uma
licença médica por doença para justificar a falta laboral – “Porque
a dor deles não é uma doença, é uma perda. E a perda leva tempo”,
segundo a membro do Parlamento da Nova Zelândia Ginny
Andersen em 2021 209 .
Foi exatamente com esse mote que nos propusemos a
desenvolver o presente trabalho, e, nessa medida, contribuir para
o processo de desmistificação deste tema e enfatizar a importância
que é cabida ao Direito para a sua análise e discussão.
Dr.ª Rita Ferreira da Silva Loureiro
Estudante do 1.º ano do Mestrado em Gestão de Unidades de Saúde
da Universidade do Minho.
Dr.ª Carla Margarida Esteves Costa
Estudante do 1.º ano do Mestrado em Gestão de Unidades de Saúde
da Universidade do Minho.
209 ANDERSEN, Ginny – Holidays (Bereavement leave for miscarriage) amendment bill, New
Zealand Parliament, 2021, p. 2-4.
203
VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA: ESTUDO DE
CASO
Resumo:
A violência obstétrica gera significativa polémica pela divergência
de opinião entre as entidades de saúde em Portugal. A sua regulamentação
através do projeto de Lei n.º 912.XIV ainda não foi conseguida. Algumas
organizações de saúde evocam a inexistência de violência obstétrica 210 . A
ação ou omissão de práticas médicas não ditadas pela evidência científica
constituem crimes ou infrações deontológicas previstas nos códigos penal
e deontológico. Este estudo de caso visa analisar a violência obstétrica à luz
do Direito em Saúde. O resultado destaca a falta de consciencialização do
tema nos profissionais, as consequências tremendas que perpetuam na
mulher, o número residual destas que recorrem à justiça por falta de
recursos económicos e por desconhecimento dos seus direitos.
210
Ordem dos Médicos, 2021 - Parecer do Colégio da Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia
da Ordem dos Médicos sobre o Projeto de Lei n.º 912.XIV PAN 2021. [Consultado em:
20/08/2022]. Disponível in https://ordemdosmedicos.pt/wpcontent/uploads/2017/09/Esclarecimentos_Ginobst.pdf
. 2 MOREIRA, S., PARTICHELLI, P. &
BAZANI, A. – “A violência obstétrica e os desafios de se promover políticas de saúde efetivas”. In
Revista Diálogo da Editora Universidade LaSalle, 2019 (DOI:
http://dx.doi.org/10.18316/dialogo.v0i41.4822).
204
Palavras-chave:
obstétrica.
Parto; violação dos Direitos Humanos; saúde da mulher; violência
Sumário:
1. Violência obstétrica;
2. Caso Clínico;
3. Violência obstétrica;
3.1. Conceito e enquadramento jurídico;
3.1. Responsabilização civil e criminal;
4. Considerações finais.
205
1. Violência obstétrica
A violência obstétrica continua a ser uma forma de violência
pouco reconhecida em Portugal, definida como a violência contra
as mulheres no contexto da assistência à gravidez, parto e pósparto.
As formas mais correntes de violência obstétrica incluem
abusos físicos ou verbais, práticas invasivas, uso desnecessário de
medicação, intervenções médicas não consentidas, humilhação,
desumanização e recusa de assistência ou negligência pelas
necessidades da mulher.
Neste sentido, segundo o artigo de Moreira, S., Partichelli,
P. & Bazani a violência obstétrica pode ser entendida como “(…)
a inferiorização da mulher em relação ao género, à classe social, à
etnia ou ao grupo social, desqualificando a e submetendo-a a
intervenções médicas sem que sua autonomia seja respeitada, bem
como sem o seu consentimento acerca dos procedimentos a serem
realizados.” 211
A Declaração da OMS de 2014 refere: “(…) no mundo
211
Ordem dos Médicos, 2021 - Parecer do Colégio da Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia
da Ordem dos Médicos sobre o Projeto de Lei n.º 912.XIV PAN 2021. [Consultado em:
20/08/2022]. Disponível in https://ordemdosmedicos.pt/wpcontent/uploads/2017/09/Esclarecimentos_Ginobst.pdf
. 2 MOREIRA, S., PARTICHELLI, P. &
BAZANI, A. – “A violência obstétrica e os desafios de se promover políticas de saúde efetivas”. In
Revista Diálogo da Editora Universidade LaSalle, 2019 (DOI:
http://dx.doi.org/10.18316/dialogo.v0i41.4822).
206
inteiro, muitas mulheres sofrem abusos, desrespeito e maus-tratos
durante o parto nas instituições de saúde. Tal tratamento viola o
direito das mulheres ao cuidado respeitoso, mas também ameaça
o direito à vida, à saúde, à integridade física e à não-discriminação.
Esta declaração convoca maior ação, diálogo, pesquisa e
mobilização sobre este importante tema de saúde pública e
direitos humanos.” 212 .
Salientando a necessidade de “(…) começar, apoiar e
manter programas desenhados para melhorar a qualidade dos
cuidados de saúde materna, com forte enfoque no cuidado
respeitoso como componente essencial da qualidade da
assistência”.
Segundo Sílvia Badim Marques violência obstétrica vem a
ser entendida como toda violência física, moral, patrimonial ou
psicológica praticada contra as mulheres no momento do parto,
pós-parto e puerpério, sendo constatada em diversas práticas que
ocorrem nos sistemas de saúde, tanto público quanto privado 4 .
212
Organização Mundial de Saúde, 2014 - Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maustratos
durante o parto em instituições de saúde. [Consultado em 20/08/2022]. Disponível in
https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/106 65/134588/WHO_RHR_14.23_por.pdf. 4
MARQUES, S., “Violência obstétrica no Brasil: um conceito em construção para a garantia do
direito integral à saúde das mulheres”. Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário, Brasília,
9(1): jan/mar, 2020 (DOI: http://dx.doi.org/10.17566/ciads.v9i1.585).
207
Nesta perspetiva a problemática é reconhecida
mundialmente, sensivelmente desde 2014, com enfoque em
delinear medidas concretas nas políticas de saúde para minorar o
problema.
De acordo com Raylla Albuquerque e Natan Monsores,
embora a ocorrência de violência obstétrica seja multifatorial, as
principais práticas de violência referem-se a condutas não éticas,
na avaliação das mesmas 213 .
A violência contra a mulher é persistente e complexa,
assumindo diferentes formas no ambiente social. Segundo a OMS
(2014) a violência obstétrica é considerada como violação dos
direitos humanos “(…) apropriação do corpo da mulher e dos
processos reprodutivos por profissionais de saúde, na forma de um
tratamento desumanizado, medicação abusiva ou patológica dos
processos naturais, reduzindo a autonomia da paciente e a
capacidade de tomar suas próprias decisões livremente sobre seu
corpo e sua sexualidade, o que tem consequências negativas em
sua qualidade de vida".
213
ALBUQUERQUE, Raylla; MONSORES, Natan – “Violência Obstétrica e Bioética
à luz da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos”. In Revista Brasileira
de Bioética, volume 14, 2018. Disponível em:
https://periodicos.unb.br/index.php/rbb/article/view/24238
208
Considerando este fenómeno como global e atual, são
imensos os relatos sobre experiências vividas pelas mulheres
grávidas (especialmente no parto) que revelam um quadro
perturbador em que muitas mulheres experimentam abusos,
desrespeito, maus tratos e negligência nas instituições de saúde.
Em todo o mundo, a gravidez e o nascimento de um ser são
envoltos de momentos de grande vulnerabilidade quer pela mulher
quer pela família.
Partindo do pressuposto que a maternidade segura é
normalmente atribuída a condição física, ela está envolta de
inúmeros significados pessoais e culturais. A relação da mulher
com os profissionais de saúde e o sistema de saúde onde é
integrada durante este delicado período é crucial, considerando os
profissionais essenciais para garantir a saúde/segurança da mulher
e da criança.
A perplexidade do tema advém do impacto significativo da
capacitação e conforto por um lado e dos danos e traumas
emocionais por outro lado, esta relação pode ser potenciadora ou
destruidora da autoestima e da confiança de cada mulher.
A Organização Mundial de saúde (OMS) emitiu uma
declaração intitulada prevenção e eliminação de abusos,
desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de
209
saúde, onde afirma que “toda a mulher tem direito ao melhor
padrão atingível de saúde, o qual inclui o direito a um cuidado de
saúde digno e respeitoso. No mundo inteiro, muitas mulheres
sofrem abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto nas
instituições de saúde. Tal tratamento não apenas viola os direitos
das mulheres ao cuidado respeitoso, mas também ameaça o direito
à vida, à saúde, à integridade física e à não-discriminação. Esta
declaração convoca maior ação, diálogo, pesquisa e mobilização
sobre este importante tema de saúde pública e direitos humanos”.
Em Portugal o tema ganhou dimensão e visibilidade
quando um inquérito denominado “Experiências de Parto em
Portugal”, realizado pela APDMGP (Associação Portuguesa pelos
Direitos da Mulher na Gravidez e Parto), revelou que 43,5 por
cento das mulheres inquiridas não tiveram o parto que queriam.
Em 2017 é lançada uma petição pública “Pelo fim da
Violência Obstétrica nos blocos de parto dos hospitais
portugueses”, onde bastaram apenas três dias para ultrapassar o
número de assinaturas necessárias para ser submetida na
Assembleia da República 214 .
214
Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto, 2015 – “Experiências de
Parto em Portugal”. [Consultado em 20/08/2022]. Disponível in
210
Os relatos de quem vivenciou algum tipo de violência
obstétrica são frequentes a nível pessoal e profissional, no entanto
continuam a ser uma incógnita oficialmente. Com alguma
incompreensão apesar do desenvolvimento da medicina e
tecnologia são inúmeras as famílias que recordam os seus partos
por práticas que não se coadunam com as leges artis.
Em Portugal não existem condenações por violência
obstétrica, pois em termos de jurisprudência o conceito não é
reconhecido. Em julho de 2021, o Projeto de Lei 912/XIV/2.ª –
que visava reforçar a proteção das mulheres na gravidez e parto
através da criminalização da violência obstétrica, foi chumbado na
Assembleia da República. Foram solicitados pareceres a ordens
profissionais, onde por exemplo a Ordem dos Médicos nega a
existência desta situação no nosso país 215 .
215
http://www.associacaogravidezeparto.pt/wpcontent/uploads/2016/08/Experi%C3%AAncias_P
arto_Portug al_2012-2015.pdf.
7 Projeto de Lei n.º 912/XIV/2.ª de 2021. [Consultado em 20/08/2022]. Disponível in
https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=12103
6.
211
2. Caso clínico
Maria (nome fictício) com 36 anos de idade, autora do relato
ocorrido no mês de fevereiro no ano de 2021, num hospital
público, considerado um caso típico de violência obstétrica. A
partilha consentida da experiência vivenciada por esta constitui um
“fardo” possivelmente para o resto da vida.
“Decorreram 38 semanas de gestação de um
projeto de vida planeado e muito desejado, nunca
tinha estado grávida, primeiro filho, primeiro neto,
primeiro sobrinho, de uma família que ambicionada
ver aumentada. A gravidez foi vigiada e decorreu sem
qualquer intercorrência, senti-me muito bem grávida,
só me sentia enorme, a barriga cresceu imenso, sentiame
feliz e a família estava radiante. Um dia recorri ao
hospital por dor intensa na região pélvica seguida de
contrações, achando que o bebé ia nascer, chorei de
alegria, emoção ou medo, não sei, mas continuava
muito feliz, um misto de sensações que não consigo
explicar, o momento havia chegado de conhecer o
rosto escondido. Depois de muitas horas na expetativa
de um parto dito normal, ansiosa por conhecer aquele
lindo ser, tive um parto distócico com recurso a
212
espátulas. Nome que não conseguia associar a nada,
mas rapidamente senti que de “normal” não estava
nada a ser. Deste parto anormal resultaram
complicações que mudaram a minha vida até hoje,
uma laceração perineal de 3º grau e episiorrafia.
Perante tantas mudanças repentinas a linda bebe no
meu colo, recordo a voz da Sra. Enfermeira para a
Dra. apenas 24 horas depois do parto: “está
incontinente para fezes…” foi removida uma
compressa vaginal, e percebi que algo não estaria bem.
Não me explicaram o que se estava a passar e como
poderia vir a ficar. Aquando da alta apresentava
edema perineal e incontinência para gases com ligeira
perda e fezes e incontinência urinária para espirros. Na
consulta do puerpério (um mês pós-parto) referi ao
obstetra que mantinha incontinência, e que
apresentava alteração da fisionomia do períneo. Que
não me sentia bem com a minha imagem corporal,
que a minha região vaginal estava muito alterada, fui
encaminha para consulta de medicina física e
reabilitação que ainda hoje mantenho (fisioterapia).
Recentemente fui novamente à consulta da obstetra,
onde expliquei que estou melhor da incontinência,
213
mas ainda perco gases e urina, que mantenho penso
higiénico, que tenho alteração da fisionomia vaginal e
dor no ato sexual, onde a resposta que nem consigo
comentar “(…) é por baixo ninguém vê”.
Em novembro após 3 meses de fisioterapia
(reeducação do pavimento pélvico), mantenho perda
de fezes líquidas com hipotonia anal e diminuição da
contractilidade anal. Nunca idealizei o parto, só queria
ser mãe, sabia que as coisas mudam, mas nunca pensei
que o trauma me deixasse sequelas que me
acompanham para a vida”.
Este relato de trauma pós-parto refere-se apenas a um de
muitos auscultados de inúmeras mulheres que se encontram numa
situação de fragilidade e passam por momentos inqualificáveis de
descrever. Embora não reconhecido o termo violência obstétrica
por várias ordens profissionais de saúde será difícil de encontrar
um outro que melhor possa designar este caso, a não ser violência
obstétrica.
A vulnerabilidade da mulher no processo de parto está
relacionada, principalmente, com o desconhecimento sobre seus
direitos, seu corpo e sobre os tipos de assistência.
214
3. Violência obstétrica
3.1. Conceito e enquadramento jurídico
A violência obstétrica é um tipo de violência, de natureza
física ou psicológica, exercida sobre o corpo da mulher grávida
por profissionais de saúde durante a gravidez e o parto. Esta
constitui a violação dos Direitos Humanos Fundamentais
(reconhecido pela OMS em 2014). Em Portugal não sabemos
oficialmente como, quando e onde acontece a violência obstétrica.
Importa salientar que a Lei n.º 110/2019 de 9 de setembro
“estabelece os princípios, direitos e deveres aplicáveis em matéria
de proteção na preconceção, na procriação medicamente assistida,
na gravidez, no parto, no nascimento e no puerpério, visando a
sua consolidação, abrangendo os serviços de saúde do setor
público, privado e social, procedendo à segunda alteração à Lei n.º
15/2014, de 21 de março, que consolida a legislação em matéria
de direitos e deveres do utente dos serviços de saúde” 216 .
Apesar do desenvolvimento extraordinário da medicina
ainda existem famílias com traumas por práticas menos adequadas
216
Lei n.º 110/2019 de 9 de setembro.
215
no parto causadoras de danos irreparáveis, como por exemplo na
autoestima e imagem corporal.
Em Portugal não existem condenações por violência
obstétrica, uma vez que em termos de jurisprudência o conceito
não é reconhecido nem utilizado. Uma Deputada da Assembleia
da República levou a votação uma proposta de projeto de lei para
a criminalização desta prática, no entanto foram solicitados
pareceres a diferentes ordens profissionais.
A Ordem dos Médicos pronunciou-se negando a existência
desta situação no nosso país, “O termo violência obstétrica é
inapropriado em países onde se prestam cuidados de saúde
materno-infantil de excelência, como é o caso de Portugal”.
Concluindo que é crucial auditar estas situações da qual sabemos
muito pouco, sendo pertinente acompanhar os relatos das vítimas.
“Os direitos e deveres dos utentes do SNS estão
consagrados, nomeadamente, na Lei n.º 15/2014, de
21 de março, alterada pelo Decreto-Lei n.º 44/2017,
de 20 de abril, na Portaria n.º 87/2015, de 23 de março,
na Portaria 153/2017, de 4 de maio e no Despacho
n.º 5344-A/2016, de 14 de abril, publicado no Diário
da República n.º 76/2016, 1.º suplemento, Série II de
216
19 de abril” 217 .
Neste sentido a Carta dos Direitos do Utente identifica o
direito à adequação da prestação dos melhores cuidados.
3.2. A responsabilização civil e criminal
A responsabilidade civil ou penal pressupõe um ato ilícito. A
ilicitude é qualificada juridicamente como sendo o “juízo de
censura sobre o próprio facto (de um ângulo objetivo) por ele
consistir na infração de um dever jurídico”, gerando como
consequência uma sanção que pode ser de natureza punitiva ou
ressarcitória. Esta surge por forma a responsabilizar as pessoas
singulares e/ou pessoas coletivas pelos comportamentos positivos
(ações) ou negativos (omissões) que causem lesão a terceiro (o
doente).
A responsabilidade civil é marcada por um dano ou
“prejuízo sofrido lesão pelo lesado” que pode ser de natureza
patrimonial – artigo 564.º do Código Civil – e/ou não patrimonial
– artigo 496.º do Código Civil.
217 Lei n.º 15/2014 de 21 de março.
217
Perante estes factos a conduta do profissional de saúde no
contexto da violência obstétrica pode ser danosa por ação e/ou
omissão, quando não são respeitadas as leges artis, que consistem
no conjunto de regras científicas e técnicas que o profissional de
saúde tem obrigação de conhecer utilizar tendo em conta o estado
da ciência e o estado concreto do doente.
A responsabilidade penal é o dever jurídico de responder
por uma infração, ou seja, toda a conduta que gera uma lesão que
recai sobre a pessoa que praticou o ato. No entanto há a considerar
que enquanto a ilicitude civil, cometida pelo agente, se caracteriza
por ação ou omissão de forma voluntária com negligência e
imprudência, a ilicitude penal é cometida pelo agente por ação ou
omissão culpável que viola uma conduta do direito penal.
De uma forma sucinta quer a responsabilidade civil quer a
penal podem estar presentes em casos de violência obstétrica,
tanto individualmente como em simultâneo. Embora o parecer do
Colégio de Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia da Ordem
dos Médicos sobre o Projeto de Lei n.º 912/XIV/2 refere que “o
termo violência obstétrica é inapropriado em países onde se
prestam cuidados de saúde materno-infantil de excelência, como
é o caso de Portugal. (…) A violência obstétrica é apontada, por
todas as instituições idóneas, como um grave obstáculo à prestação
218
de cuidados materno infantis adequados e não como algo que deles
resulta. (…)”.
Desta forma como nomear os casos onde é evidente o não
cumprimento da leges artis na gravidez ou no parto?
A responsabilidade civil extracontratual do estado e pessoas
coletivas por factos ilícitos praticados pelos seus órgãos ou agentes
assenta nos pressupostos da idêntica responsabilidade prevista na
lei civil, que são: a ilicitude, a imputação do facto ao lesante (culpa),
o dano e nexo de causalidade entre o dano e o facto.
Partindo do pressuposto da definição de violência
obstétrica segundo a OMS, no caso retratado, são poderão
identificar-se vários indícios de responsabilidade civil
extracontratual pois este caso refere-se a um hospital público: “…
um parto distócico com recurso a espátulas, do qual resultou uma
laceração perineal de 3ºgrau e episiorrafia”.
Consequentemente poderá verificar-se a presença de danos morais
e físicos, o dano localiza-se no âmbito dos perigos que uma
conduta de acordo com as leges artis pretende evitar para afastar o
nexo de causalidade entre a violação do dever de cuidado e o
resultado que se verificaria ainda que tivessem sido cumpridas as
leges artis. Existe nexo de causalidade entre a ação do parto e a
219
situação indesejável de danos físicos e morais em que se encontra
a utente. Assim é considerado um erro grosseiro injustificável e
com resultados danosos.
Os danos morais são perpetuados pelo sofrimento físico e
psicológico. Face ao quadro que a utente apresenta, é evidente que
os procedimentos realizados conduziram ao sofrimento, angústia
e à impossibilidade de levar uma vida normal, entre outros -
“apresentava edema perineal e incontinência para gases com ligeira
perda e fezes e incontinência urinária para espirros”.
Neste caso é notória a ausência dos melhores e possíveis
cuidados de saúde, segundo a melhor e mais atual evidência
científica.
Identificamos algumas normas jurídicas nas quais poderá ser
enquadrado na violação da leges artis com ofensas à integridade
física nos artigos 143.º, 144.º e 148.º, do Código Penal com
agravamento do resultado pelo artigo 147.º do Código Penal.
O artigo 150.º do Código Penal estipula um regime
específico relativamente a intervenções e tratamentos médicocirúrgicos
“as intervenções e tratamentos que, segundo o estado
dos conhecimentos e da experiência da medicina se mostrarem
indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por
220
um medico ou outra pessoa legalmente autorizada com intenção
de prevenir, diagnosticar (…) não se consideram ofensas à
integridade física” ou seja, desta forma todo e qualquer tratamento
realizado segundo as leges artis não se consideram crime. 218
O caso retratado poderá representar um ato ilícito culposo,
por violação das leges artis, o comportamento dos profissionais do
hospital público (médico e de enfermagem) perante a situação em
que se deparavam, possivelmente, deviam ter optado pela
realização de um parto por cesariana e optaram pelo parto por via
vaginal, não adotando as práticas que se impunham.
Efetivamente na realidade portuguesa, não tendo sido
aprovado o Projeto de Lei 912/XIV/2 que reforçava a proteção
das mulheres na gravidez e parto através da criminalização da
violência obstétrica, existe o código penal que prevê matéria para
delitos médicos. São diversos os crimes abrangidos pelo código
penal português que podem responsabilizar os profissionais de
saúde no exercício da medicina.
Em boa verdade a evolução da prática da medicina é uma
218 Centro de Estudos Judiciários - Responsabilidade penal dos médicos. Enquadramento jurídico, prática e
gestão processual, 2021 [Consultado em 20/08/2022]. Disponível em
http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/penal/eb_RP_Medico_MP.pdf.
221
constante, caracterizada por uma enorme complexidade e por
inúmeros atos que dependem duma equipa e não de profissionais
individualmente, o que levanta inúmeros problemas em termos de
determinação de responsabilidade quando resulta numa ofensa
para o utente.
4. Considerações finais
A violência obstétrica constitui um tipo de violência de
género caracterizado, essencialmente, por uma apropriação do
corpo da mulher pelos profissionais de saúde durante a gravidez
e parto, envolvendo todos os profissionais que interagem com a
grávida. A OMS, desde 2014, reconhece que os maus-tratos
durante a gravidez e o parto constituem violação dos direitos
humanos fundamentais.
Inúmeras famílias continuam a recordar os partos com
práticas consideradas menos apropriadas perpetuando transtornos
para o resto da vida, sem reportarem a entidades competentes
considerando estes conceitos enraizados como práticas comuns.
Será de todo importante que as ordens profissionais (da saúde) e
as políticas de saúde construam indicadores que permitam
clarificar onde, quando e como acontece esta realidade de forma
222
a minimizar o fenómeno.
A ocorrência de violência obstétrica é multifatorial, as
principais práticas referidas pela participante referem-se a
condutas não éticas que violam a leges artis. Considera-se
fundamental a necessidade de promover discussão e reflexão sobre
a violência obstétrica no sentido de envolver profissionais de
saúde e comunidade para uma maior sensibilização e desta
problemática.
É emergente quebrar as teorias não fundamentadas com
evidência e paternalismo clínico, assegurando os melhores
cuidados, mantendo a autodeterminação das mulheres.
Permitindo desta forma interromper o ciclo de violência
institucionalizada e partilhar uma responsabilidade entre mulher e
profissional na tomada de decisão da sua saúde.
Em Portugal à luz do Direito não é reconhecido o termo
“violência obstétrica”, pelo que este é enquadrado no Código
Penal.
Uma tentativa de clarificar esta problemática deve envolver
a sociedade civil, as ordens profissionais e os políticos na definição
de estratégias para reconhecimento e regulamentação deste
conceito.
223
A realidade deste tema é uma constante, mas são poucas as
mulheres que recorrem à justiça para serem ressarcidas dos danos
sofridos. A justiça constitui um processo pouco célere e muito
dispendioso, o que não promove que as mulheres recorram a ela
para defender os seus direitos.
Após uma pesquisa contínua são escassos os acórdãos
relacionados com o tema. Apresentamos um exemplo, um
acórdão de 2012 sobre esta temática que remete para uma
condenação de um hospital público por não se ter verificado uma
conduta de acordo com as leges artis 219 .
Relativamente à responsabilidade do estado e a pertinência
da medicina e aos seus possíveis erros é necessário que haja uma
resposta: os cidadãos desejam-na, o estado deve-a e os tribunais
definem-na.
Dr.ª Maria Emília Simões
Mestre em Gestão de Unidades de Saúde, Escola de Economia e Gestão –
Universidade do Minho.
Especialista em Enfermagem de Reabilitação, Universidade Fernando Pessoa.
Licenciada em Enfermagem, Escola de Superior de Enfermagem de Viana do
219 Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 24 de maio de 2014, n.º 0576/10. Disponível
in
http://www.dgsi.pt/JSTA.NSF/35FBBBF22E1BB1E680256F8E003EA931/A37708EEE16E137
18025 7A10005169C9?OPENDOCUMENT&EXPANDSECTION=1#_SECTION1
224
Castelo.
Enfermeira Especialista no Aces Cavado I
Dr.ª Mariana Reis
Mestre em Gestão de Unidades de Saúde, Escola de Economia e Gestão –
Universidade do Minho.
Enfermeira no Hospital Trofa Saúde.
Licenciada em Enfermagem, Escola Superior de Saúde Vale do Ave –
Instituto Politécnico de Saúde do Norte.
Dr.ª Melanie Antunes
Mestranda em Gestão de Unidades de Saúde, Escola de Economia e Gestão –
Universidade do Minho.
Técnica Superior de Diagnóstico e Terapêutica Radiologia, Hospital de Braga.
Licenciada em Imagem Médica e Radioterapia, Escola Superior de Tecnologia
da Saúde de Coimbra – Instituto Politécnico de Coimbra
225
ESSAY COMPETITION 21/22:
Resumo:
Na Edição da Indagare 2022, consta ainda um conjunto de artigos
jurídicos que advêm da Essay Competition, edição 2021/22.
Sumário:
1. As Problemáticas Da Vida Intra-Uterina por André Rijo;
2. Dissertação: A Memória por Rita Barreira;
3. Preclusão Do Exercício Do Direito De Arrependimento Nos
Contratos Celebrados À Distância Em Caso De Manipulação
Excessiva Do Bem? por Helena Silva;
4. O Ensurdecedor Silêncio Do Dito Segredo De Justiça por
226
1. As Problemáticas da Vida Intra-Uterina por André Rijo:
Ao longo dos séculos tem-se questionado o que é a vida,
mais particularmente, o que é a vida humana. A partir de que
momento é que a vida intra-uterina passa a ser considerada vida
humana, se é que existe tal marco temporal. E se, quando passa a
ser vida humana, quais direitos lhe devem ser
reconhecidos/protegidos, principalmente face à vida extrauterina,
ou seja, após o nascimento. Não tendo em vista a esgotar
a temática, mas tão-só apresentar, de forma superficial, as
indagações principais que a revestem, decidi formular o respetivo
escrito.
Em pleno século XXI, o orador já não consegue mistificar
ou ludibriar o auditório sobre como a conceção humana se sucede,
antigamente atribuindo-lhe natureza sobrenatural, tendo esta
corrente de pensamento visto o seu declínio com a ascensão da
ciência médica. Dizendo-nos, a medicina, que há vida a partir do
momento em que o espermatozoide penetra o oócito, fundindose
os dois gâmetas opostos e independentes, resultando esta
fertilização no zigoto. Sendo, este último, uma nova vida individual
227
e autónoma dos seus progenitores, embora dependente da
progenitora e do seu útero para subsistir e se desenvolver 220 .
Ainda na área da medicina, com o Relatório Warnock
consegue-se subentender que o mesmo só reconhece vida humana
após o décimo quarto dia da conceção pois, até esta data, é
admitido o uso experimental do embrião humano. Este marco
temporal justifica-se com o facto de, até o décimo quarto dia, se
formarem os sistemas responsáveis pela proteção e nutrição que
o embrião necessita para se desenvolver. Outros autores
consideram que, apesar de já estarem formados os tecidos e os
órgãos, é a constituição e a atividade do sistema nervoso, vulgo
cérebro humano, que nos permite indicar a nível médico que
estamos perante vida humana 221 .
Noutra linha de pensamento, o Relatório-Parecer sobre a
Reprodução Medicamente Assistida (3/CNE/93), do Conselho
Nacional da Ética Para as Ciências da Vida, traz a debate o facto
de carecer de distinção a vida humana da vida pessoal. Indicando
que um embrião antes da nidação é vida humana, mas não é
220 “ O facto que deve ser notado acima de tudo é que este novo programa não é inerte, nem
«executado» por obra de órgãos fisiológicos maternos que se sirvam do programa da mesma maneira
como um arquiteto se serve de um projeto, como um esquema passivo – ele é um novo projecto
que se constrói a si mesmo e é, em si mesmo, o actor principal”.
221 Goldenring, John M. - The brain-life theory: towards a consistent biological definition of
humanness. In Journal of Medical Ethics. 1985, 1, págs. 198-204.
228
pessoa, devido a não poder ser entendido como indivíduo, por
ainda ser possível a sua divisão, resultando em gémeos
univitelinos.
A nível religioso, fugindo do dito tradicional em que, tanto
o corpo como a alma humana eram transmitidos aos embriões
pelos seus progenitores, surgiu a hipótese tomista. A mesma era
defendida por São Tomás de Aquino, dizendo-nos que embora a
parte física resulta-se dos seus progenitores, a parte espiritual, a
alma vinha diretamente de Deus. Embora estas duas partes
estivessem destinadas a se unir, a união estava dependente da
forma corporal, e até que tal se efetivasse o embrião apenas teria
uma alma animal, despida de qualquer racionalidade. Este período
temporal de união, entre a parte espiritual e a física, acontecia entre
o trigésimo e o quadragésimo dia, em consonância com a
purificação da mulher após o parto, nas escrituras bíblicas.
No campo da filosofia, a corrente behaviorista considera
que a única forma de se poder objetivar, com toda a certeza, que
estamos perante uma vida humana é através do seu
comportamento, ou seja, será um ser humano se se comportar
como ser humano. No entender desta corrente filosófica, não se
consegue compreender se o recém-nascido está ou não a ter
comportamento humano, para tal terá de ser a própria mãe a
229
reconhecer esse comportamento, ou seja, o reconhecimento da
vida humana ao recém-nascido estava pendente de o mesmo ser
acolhido pela mãe.
Do ponto de vista do direito, existe diversas
incongruências. O antigo código de Seabra revela-nos, no seu
artigo. 6.º, que só se adquiria capacidade jurídica a partir do
nascimento, estabelecendo o seu artigo 110.º que se tinha de nascer
com figura humana 222 . Atualmente, o art. 66.º do Código Civil
(C.C.) estabelece que a personalidade jurídica se adquire com o
nascimento completo e com vida. Contudo, o mesmo CC.
estabelece nos seus artigos 952.º e 2033.º direitos de doação e
sucessão respetivamente aos concepturos, e o seu artigo 1855.º
confere direito de perfilhação aos nascituros 223 . Sendo esta uma
das inconformidades dentro do ordenamento jurídico português
relativamente à proteção de direitos dos concepturos, visto que os
mesmos só existem in mente Dei 224 .
222 A necessidade de figura humana devia-se ao facto de, na Roma antiga se acreditar que das práticas
de zoofilia poderiam resultar fetos com características animal e humana, ou que um feto ter mais
ou menos membros não era normal, e que não era figura humana.
223 Neste sentido o A.C. do Supremo Tribunal de Justiça, Relator Pinto Monteiro, Processo n.º
04A2661.
224 Os nascituros em sentido amplo abrangem os nascituros em sentido stricto sensu e os concepturos.
Os primeiros são aqueles que já se encontram concebidos, mas ainda não nasceram, os segundos
são aqueles que ainda não estão concebidos, mas se presume que venham a ser e venham a nascer.
230
No seguimento das incoerências do ordenamento jurídico
português, temos as do código penal (CP.) com o CC. Que, nos
seus art. 140.º e 141.º o CP. penaliza quem ponha termo à vida
intra-uterina, consagrando a proteção do direito à vida e do direito
à integridade pessoal conforme previsto nos artigos 24.º e 25.º da
Constituição da República Portuguesa, mas que depois se encontra
em total oposição ao art. 66.º do CC. Visto que só se adquire
personalidade jurídica com o nascimento completo e com vida,
então não faz sentido jurídico a proteção do direito à vida e à
integridade física da vida intra-uterina, pois a mesma ainda não
nasceu e por isso não só não tem personalidade jurídica, como
também não é suscetível de ter direitos, em respeito pelo art. 66.º
e 67.º do CC.
Tendo, em seguida, surgido o art. 142.º do CP. permitindo
a interrupção da gravidez não punível, mediante certas condições,
que entre outros objetivos teve em vista a pôr termo ao aborto
clandestino que todos os anos ceifava a vida de milhares de
mulheres portuguesas. Contudo, entre outros civilistas, a Dra.
Stella Barbas que tem contribuído muito para o desenvolvimento
A título de exemplo relativamente aos concepturos, temos o facto de quando os avós fazem
testamentos onde constam doações a futuros netos que nem se encontram concebidos.
231
da bioética e da biotecnologia, no que se refere à pauta do direito,
defende doutrinalmente que existe personalidade jurídica a partir
do momento da conceção e que o nascituro, em sentido stricto
sensu, é dotado de personalidade jurídica, sendo o nascimento
apenas outro marco temporal como a puberdade.
Como se pode ver pela presente formulação, a vida intrauterina
suscita diversas questões médicas, filosóficas, socioculturais
e de direito, tendo este último de andar sempre a par de
todas as outras áreas, visto que o direito nasce das pessoas para as
pessoas.
232
2. Dissertação: A Memória por Rita Barreira:
Memória. Muitos de nós tomam-na como certa, intrínseca
e indissociável à nossa pessoa. A memória dos primeiros passos,
do primeiro dia de escola e de todos os dias após esses.
Construímos memórias, como pequenos tijolos que culminam no
edifício de cada um de nós. Mas esta também se revela enganosa,
ao ponto de nos lembrarmos da viagem feita há anos, mas não
possuirmos recoleção de onde pousamos as chaves do carro no
próprio dia.
As memórias são parte fundamental da nossa forma índole,
da nossa forma de ser e dos nossos valores e princípios. Poderei
dizer, não de forma la palissada que as memórias nos moldam e
toldam o nosso presente bem como o nosso futuro.
Várias são as vezes em que a memória nos atraiçoa e não
nos permite agir e reagir perante muitos dos estímulos e perceções
que recebemos. Somos frágeis e impotentes perante estas falhas,
como que a batalhar um adversário invisível, mas que a cada
impacto adquire impetuosamente poder sob nós.
Gostaria de realizar uma simples equiparação entre nós,
enquanto seres humanos e um puzzle, no qual as peças são as
memórias e o todo é a nossa personalidade, os nossos valores e os
233
nossos sentimentos. Esta comparação convida-nos a repensar
todas as decisões até então tomadas ao longo das nossas vidas. As
decisões pessoais e familiares, a fim de entender o porquê de estas
terem sido, por nós, tomadas. Interrogamo- nos frequentemente
relativamente aos “se” e os “talvez” que enfrentamos, para pouco
depois chegarmos à conclusão da inutilidade deste
questionamento; o passado e as memórias são irreversíveis e sem
estes, não seríamos o que somos hoje.
Muitas das nossas decisões são ditadas pelas memórias e
pelas noções que as mesmas nos transmitem, mesmo que por
vezes, erroneamente. “Quem conta um conto, acrescenta um
ponto”, diz-nos o famoso ditado popular. A distorção da memória,
mesmo que realizada de modo inconsciente, é uma problemática
real, amplificada pelo “diz que disse”, pela maldade e falsidade ou
até pela comunicação moderna, dos ecrãs. Daí advém a mentira, os
falsos testemunhos e as omissões, os verdadeiros “terroristas” do
exercício do Direito e transversais a todas as sociedades. As
memórias despem-se assim da inocência e originalidade, passando
a fabricações exageradamente fantasiadas. O apuramento da
verdade dos factos enfrenta males corruptivos como estes, pelo
que cabe aos juristas, tribunais e órgãos promotores da justiça o
dever de combatê-los.
234
Existe também a questão igualmente preocupante das
“memórias fabricadas”. O conceito de relembrar algo nunca vivido
na realidade é, de facto, um enigma dotado de paradoxalidade e até
hoje, irresolúvel. Graças a esta problemática, o campo jurídico
padece com a falta de confiança e a descrença nas suas capacidades,
pois a verdade dos factos é, nos dias de hoje cada vez mais
gratuitamente deturpada em função de conveniências.
Vivemos dia após dia agarrados à memória, de pessoas, de
acontecimentos, de coisas e de sítios.
Embalados na recordação dos “antigamentes”, desejamos
voltar para um tempo que não o nosso agora. Esquecemo-nos,
porém, que afinal, se as memórias se pudessem repetir, perderiam
a sua essência original e deixariam de o ser.
A saudade, uma palavra tão orgulhosamente portuguesa,
seria desta forma extinta. Muitas das nossas vivências, considero,
viverão melhor conservadas nos cofres da memória, dado que a
constante mudança é também inevitável ao ser humano e à
passagem do tempo. As memórias, sejam estas individuais ou
coletivas, funcionam como um refúgio inerte, um filme com vários
figurantes, mas como nós como o único espectador.
235
No âmbito do Direito, realizo um apelo à memória não só
da juridicidade portuguesa, bem como europeia e de todas as
nações mundiais. Enquanto seres humanos, batalhamos desde os
primórdios da nossa existência para a criação de um mundo
juridicamente livre. Note-se que, propositadamente, optei por me
abster relativamente à descrição do nosso mundo como “justo”,
por considerar essa classificação não só utópica como falaciosa,
dado que o exercício do Direito se alimenta primariamente da
injustiça que o Homem cultiva em sociedade.
Não existe, e atrevo-me a afirmar que nunca existirá
memória, em qualquer ponto da nossa História, de um sistema
jurídico perfeito e totalmente funcional, sem quaisquer lacunas
associadas. A idealização deste conceito encontra-se restrita aos
horizontes da imaginação de cada um, daquilo que se considera ser
o melhor para a comunidade. Thomas Moore, na obra Utopia,
realiza uma apologia à conceptualização de uma sociedade nos
moldes descritos, em que imperam a harmonia e paz, sendo por
isso mínima a ação do Direito. Todavia, também reconhece a
impossibilidade de alcançar na plenitude uma sociedade e sistema
jurídicos por si ficcionados, sustentando a tese anteriormente
explanada.
236
Enquanto agentes ativos da sociedade e defensores do
Direito, é nosso dever honrar a memória dos
avanços realizados pelos nossos antepassados nos campos
jurídicos, económicos, sociais e culturais, apontando para um
futuro que mais tarde, tenhamos orgulho em relembrar, tal como
dispõe o artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa:
“Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade
da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na
construção de uma sociedade livre, justa e solidária.”
A instalação da primeira universidade de Direito
portuguesa, a redação da nossa Constituição, a Revolução dos
Cravos, a abolição da pena de morte e, mais recentemente, o
reconhecimento do direito matrimonial a casais do mesmo sexo
são apenas alguns dos exemplos da nossa evolução enquanto país.
Internacionalmente, o Holocausto, a queda do muro de Berlim, ou
a Declaração Universal dos Direitos Humanos constituem
exemplos de memórias coletivas que moldaram a construção dos
sistemas jurídicos, da justiça e do Direito Internacional.
237
Todavia, acontecimentos recentes como a guerra entre a
Rússia e Ucrânia que atualmente assola o continente europeu
abalam o desejo e esperança por um futuro em que a dignidade da
pessoa humana e os direitos, liberdades e garantias das
comunidades se encontram salvaguardados. Portugal, numa
tentativa de solidariedade no sentido de ajudar os indefesos
afetados nesta guerra, disponibilizou, no campo jurídico, milhares
de profissionais em regime pro bono, que se voluntariaram para
prestação de apoio jurídico 225 . A ciclicidade característica da
História assombra o mundo, e junto acarreta recordações de
anteriores guerras e conflitos. As memórias do sofrimento, morte,
fome, pobreza e decadência tornam-se a cada momento mais
presentes, passando de recordações à realidade. Os esforços
hercúleos conjuntos realizados pelo resto do mundo para que tudo
não passe de uma distante memória demonstram como a
recordação possui o poder de unir nações em prol do bem comum.
A História do Direito, disciplina estruturante na formação
dos juristas, preocupa-se em orientar-nos na realização do seu
objetivo primordial; reconhecer e refletir sobre acontecimentos
transatos, utilizando a memória como ponto de partida. O passado
225 Informação baseada na página digital do Jornal Público, consultada pela última vez no dia
06/03/2022 às 18:03: https://www.publico.pt/2022/03/05/sociedade/noticia/1200-advogadosportugal-oferecemse-ajudar-ucranianos-1997720
238
surge, no Direito e na História, como ensinamento para o presente
e futuro. Aliás, a própria jurisprudência, doutrina e os diversos
textos jurídicos do nosso ordenamento assentam todos no mesmo
pressuposto, a memória. A lembrança de antigas sentenças, de
perspetivas de magistrados, juristas e pensadores ou a
rememoração de diferentes sistemas jurídicos históricos
constituem fatores determinantes para a construção do Direito tal
como o conhecemos.
Concluo com os versos do poeta pintor da realidade,
Fernando Pessoa: “Vivemos da memória, que é a imaginação do
que morreu/da esperança, que é a confiança no que não existe/do
sonho, que é a visão do que não pode existir.”
239
3. Preclusão Do Exercício Do Direito De Arrependimento Nos
Contratos Celebrados À Distância Em Caso De Manipulação
Excessiva Do Bem? por Helena Silva:
O direito de arrependimento é um direito subjetivo e de
origem legal em que, de uma maneira geral, o consumidor tem a
faculdade de, unilateralmente e sem a necessidade de motivação,
no prazo de 14 dias, desvincular-se de um contrato que não
corresponde às expectativas geradas ab initio, o exercício deste
direito não acarreta custos para o lado do consumidor e, esta
desnecessidade pecuniária associada ao exercício, por vezes, traz
com ela abusos por parte do consumidor. Em Portugal, os
profissionais apresentam algumas ressalvas ao exercício deste
direito quando, nos deparamos com a solução moderada,
constante na lei portuguesa, para os casos de manipulação
excessiva do bem.
Neste sentido, hodiernamente, decorre da conjugação das
normas dos n.ºs 1 e 2 do art. 14.º do DL n.º 24/2014, que o
consumidor, enquanto proprietário do bem adquirido, pode
licitamente manipular a coisa para verificar a sua natureza,
características e funcionamento, desde que tal inspeção e utilização
não exceda aquela que habitualmente é admitida em
estabelecimento comercial. Porém, extrai-se, ainda, da solução
240
plasmada no mesmo n.º 2 que, mesmo nos casos em que há um
manuseamento excessivo do bem, o consumidor continua a dispor
do seu direito de livre arrependimento, pelo que o profissional não
se opor ao exercício de tal prerrogativa unilateral pelo consumidor,
quedando-se pela mera faculdade de reclamar tutela reparatória
pela depreciação do bem causada pela ação do consumidor 226 .
226 Sob pontos 46. e 47. das conclusões da advogada-geral Verica Trstenjak apresentadas, em
18.02.2009, no Processo C-489/07 (Pia Messner contra Firma Stefan Krüger) do TJUE, relativo a
pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Amtsgerichts Lahr (Alemanha), desenvolve-se, com
particular interesse, a distinção entre “uso” e “prova”, nos seguintes termos: “Na noção de prova
inclui-se o ver, o provar e também o testar. Com efeito, tendo em conta diversos bens, como por
exemplo o vestuário ou os equipamentos técnicos, a apreciação das características do uso é
igualmente parte integrante de uma decisão de compra. Uma especificidade estrutural do comércio
à distância reside no facto de, nesta matéria, não haver à disposição um objecto ou equipamento
para demonstração, assumindo antes o próprio objecto da venda esta função. Por exemplo, no caso
da prova de vestuário e de calçado, está em causa não apenas ver o bem, mas também vesti-lo e
usá-lo a título de prova. No caso da compra à distância de um automóvel, o ensaio de condução,
como sucede com a compra num estabelecimento comercial, também não deveria ser considerado,
desde logo, como uma situação de uso por parte do comprador. O exemplo do automóvel é
especialmente eficaz, uma vez que, no caso de um veículo novo, a primeira matrícula necessária
eventualmente para um ensaio de condução envolve já, em regra, uma diminuição do valor, que a
doutrina indica como sendo de cerca de 20% e que, além disso, implica que o automóvel seja
posteriormente considerado um veículo usado”. E mais se acrescenta, em seguida: “As marcas
eventualmente deixadas ao provar e ao examinar o bem não devem, em princípio, ser equiparados
às marcas deixadas pelo uso. Trata-se de marcas que podem igualmente produzir-se ao provar o
bem no estabelecimento comercial, fora do âmbito do comércio à distância, e que, regra geral, não
conduzem à obrigação de indemnizar, desde que não se verifique a existência de qualquer dano. Em
cada caso concreto, a questão de saber se o valor se alterou mediante a prova ou o uso e se (e a que
preço) o produto pode voltar a ser vendido após a devolução, depende das características e da
241
Ora, esta opção legislativa não merece aceitação unânime,
na medida em que, de acordo com a posição de alguns
profissionais, encerra uma excessiva proteção do consumidor, sem
atender suficientemente ao interesse, igualmente legítimo e digno
de tutela, de promoção da competitividade das empresas.
Desenvolvendo um pouco mais o argumento expendido pelos
profissionais, depois de uma utilização de forma usual, que não se
limita, portanto, à mera experimentação, e ao fim do prazo de 14
dias, o bem acaba por sofrer, inevitavelmente, um desgaste
decorrente da manipulação frequente, não apresentando,
necessariamente, a mesma qualidade e desempenho que ostentava
inicialmente. Neste conspecto, se admitido o exercício do direito
de arrependimento até ao termo dos 14 dias, os profissionais que
queiram reintegrar o bem no mercado terão de criar um mercado
próprio de bens usados, dado que, se colocarem o bem usado à
venda num mercado que se destina à venda de bens novos, estão
sujeitos a incorrer em responsabilidade por não cumprimento do
contrato, uma vez que tal prática configuraria uma venda de coisa
natureza do bem em causa. O risco implícito de uma diminuição do valor, em caso de uma compra
no estabelecimento comercial, recai, em princípio, sobre o vendedor, que tem à disposição, em
muitos casos, um equipamento ou um objecto para demonstração. Uma especificidade do comércio
à distância, que se apresenta de forma distinta do ponto de vista estrutural, consiste no facto de esse
risco não resultar de uma situação que precede à compra, mas sim apresentar-se após a compra e a
entrega do bem.” [sublinhados nossos].
242
desconforme. Porém, não pode ignorar-se que nem todos os
profissionais têm a possibilidade e a capacidade de criar um
mercado de bens usados.
Nesta senda, e em apoio dos argumentos que atestam em
favor dos profissionais, a proposta de Diretiva do Parlamento
Europeu e do Conselho, com a referência COM(2018) 185 final,
datada de 11.04.2018 227 , veio reconhecer, sob considerando (35)
que “[a] obrigação de aceitar a devolução desses bens cria
dificuldades aos profissionais, que são obrigados a avaliar o «valor
depreciado» do bem devolvido e a vendê-las como bens em
segunda mão ou a desfazer-se deles. Distorce o equilíbrio entre um
elevado nível de defesa do consumidor e a competitividade das
empresas, prosseguido pela Diretiva 2011/83/UE”. E como
solução para os casos em que há uma utilização mais do que o
necessário para verificar a natureza, características e
funcionamento do bem por parte do consumidor, por considerar
que a obrigação vigente de aceitar a devolução constitui um
“encargo desproporcionado para os profissionais” (considerando
(33)), esta proposta apontava no sentido da supressão do direito de
227 Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho que altera a Diretiva 93/13/CEE
do Conselho, de 5 de abril de 1993, a Diretiva 98/6/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, a
Diretiva 2005/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho e a Diretiva 2011/83/UE do
Parlamento Europeu e do Conselho, a fim de assegurar uma melhor aplicação e a modernização das
normas da UE em matéria de defesa do consumidor, disponível em https://eur-lex.europa.eu/legalcontent/PT/ALL/?uri=COM:2018:0185:FIN.
243
arrependimento aos consumidores, mediante o aditamento de uma
alínea n) ao art. 16.º da Diretiva 2011/83/UE, que trata das
«Exceções ao direito de retratação», a qual tomaria a seguinte
redação: “Os Estados-Membros não conferem o direito de
retratação previsto nos art. 9.º a 15.º relativamente aos contratos
celebrados à distância e fora do estabelecimento comercial no
tocante: (…) n) Ao fornecimento de bens a que o consumidor
tenha dado qualquer utilização, dentro do prazo de retratação, que
exceda o necessário para verificar a natureza, as características e o
funcionamento desses bens”.
Apesar de a mesma não ter conhecido a luz do dia, os
ditames desta concreta proposta deve fazer-nos refletir sobre o
possível golpe que estaria a ser dado sobre os elementos que
notabilizam o direito de arrependimento e o fazem diferenciar-se
das figuras afins já acima mencionadas.
Desde logo, destaca-se o ataque à sua unilateralidade, isto
porque, ao recusarmos o acesso ao direito de arrependimento
apenas quando o bem é, supostamente, utilizado de forma
excessiva por parte do consumidor, continuando a vigorar, de
forma incólume, quando o bem está de acordo com um
manuseamento que é geralmente tolerado em estabelecimento
comercial, acabamos por ter uma intervenção por parte do
244
profissional no que diz respeito ao exercício deste direito, porque
o mesmo terá sempre uma palavra a dizer sobre o estado em que
o bem é devolvido e, por essa via e no limite, sobre a legitimidade
da desvinculação pretendida pelo contraente mais débil da relação
de consumo. Em termos mais sintéticos, o direito de
arrependimento passaria a revestir natureza bilateral, o que, com o
devido respeito, cremos implicar uma mudança de paradigma
bastante radical, idónea, mesmo, a colocar em causa as finalidades
últimas que presidiram à criação da figura objeto do nosso estudo.
Ademais, a solução ora em equação também desvirtuaria o
caráter imotivado (ou ad nutum) do direito de arrependimento, pois
mesmo que o consumidor pudesse dirigir a sua declaração de “livre
resolução” ao profissional, sem invocação de qualquer razão
atendível, caso o profissional se oponha a tal vontade de
desvinculação com fundamento no manuseamento excessivo do
bem, o consumidor vê-se colocado na contingência de ter de se
defender e ser forçado a fundamentar a sua declaração de “livre
resolução”.
Em extrema síntese, caso esta proposta viesse a ser
acolhida pelo Direito da União Europeia e pelos ordenamentos
jurídicos de cada um dos Estados-Membros da UE, o direito de
arrependimento passaria a ser apenas tendencialmente unilateral e
245
imotivado, o que, a nosso ver, não promoveria uma melhor
aplicação e modernização das normas da UE em matéria de defesa
do consumidor, antes representaria um preocupante retrocesso
face ao caminho já trilhado no sentido do reforço dos direitos dos
consumidores.
246
4. O Ensurdecedor Silêncio Do Dito Segredo De Justiça por
Eduardo Botelho:
A questão do Segredo de Justiça sempre foi bastante
controversa. Sobre a sua existência, há inclusive alguma
divergência doutrinária. O que é facto é que, com o crescimento
exponencial dos meios de comunicação social, com o rápido e fácil
acesso a diversas fontes de informação, a controvérsia
relativamente ao tema tem aumentado.
A violação do sigilo judiciário é punível por Lei com pena
de prisão até dois anos ou com multa até 240 dias, plasmado no
Artigo 371.º do Código Penal. No entanto, assistimos
sistematicamente a arguidos de grandes casos mediáticos, digamos,
de colarinho branco, que apontam o desrespeito pelo Segredo de
Justiça, por parte de diversos órgãos de comunicação social. Esta
prática está tão presente no quotidiano que acaba por ser
menosprezada, colocando em causa a celeridade e o bom
funcionamento dos processos.
Devemos assim problematizar a questão e refletir sobre
este mecanismo. Será que manter o Segredo de Justiça ainda faz
sentido? E, se sim, em que moldes? É evidente que os casos mais
mediáticos, os megaprocessos (como são muitas vezes apelidados),
têm como arguidos personalidades com grande influência nos mais
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diversos setores, desde a economia à política. Neste sentido, o
mecanismo do Segredo de Justiça é fundamental quando este é
respeitado. A investigação, sobretudo na sua fase inicial, tem maior
probabilidade de se realizar sem incidentes, preservando os meios
de prova e conservando a identidade de eventuais atores no
processo. É de referir que os arguidos gozam de uma presunção de
inocência, assente na máxima In Dubio Pro Reo. Assim, até existir
uma sentença que condene efetivamente o arguido, este é inocente.
Esta é, obviamente, uma presunção ilidível.
Com a excessiva fuga de informação que deveria ser
preservada, podemos incorrer em juízos falaciosos e em
condenações na praça pública que em nada beneficiam a Justiça. O
princípio da legalidade, o princípio da separação de poderes e o
princípio da reserva da função jurisdicional, são pilares
fundamentais de um Estado de Direito.
O Segredo de Justiça pode ser requerido quer pelo arguido,
quer pelo réu, devendo estes expor os motivos pelos quais
consideram que o processo deve ser sujeito a este mecanismo.
Cabe ao Juiz de Instrução Criminal decidir se efetivamente o
processo justificará o Segredo de Justiça, tendo também o
Ministério Público direito a se pronunciar sobre a questão.
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A grande problemática que se coloca na atualidade consiste
no conflito entre dois pilares fundamentais de um Estado de
Direito Democrático. Por um lado, temos a questão das liberdades
de expressão e de imprensa (previstos sobretudo nos artigos 37.º e
38.º da Constituição da República Portuguesa) e, por outro, temos
o Segredo de Justiça (Artigo 86.º do Código do Processo Penal) e
o Princípio da Reserva da Função Jurisdicional (Artigo 20.º da
Constituição da República Portuguesa). No âmbito dos Direitos
Fundamentais, sabemos que, quando existe um conflito entre dois
direitos basilares de um Estado de Direito Democrático, deverão
ser realizados todos os esforços no sentido de os harmonizar. Em
ultima ratio, deverá o Juiz proferir se a desaplicação de um destes
preceitos é a solução. A linha que separa o Segredo de Justiça da
fuga de informação é ténue e bastante polémica na maior parte dos
casos. Sabemos que a proliferação de dados por parte dos media é
inevitável, tal como a coexistência entre a Justiça e a comunicação
social. Assistimos com frequência ao que pode ser percebido como
uma investigação quase pericial por parte dos meios de
comunicação social. São facultadas escutas, os visados são
acompanhados diariamente nos processos. É uma autêntica
investigação ao “som das luzes”.
No entanto, comprovamos que a imprensa, em alguns
casos, se antecipa à própria justiça. Mesmo antes da fase de
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inquérito, os mass media já dispõem de variados dados. Uma vez que
esta investigação mediática pode acontecer numa fase préprocessual,
torna-se ambíguo o argumento da violação do Segredo
de Justiça, já que este ainda não ganhou escopo. Outro caso, com
outra relevância jurídica, ocorre quando a comunicação social
interfere diretamente no núcleo duro do processo. Aquando da
fase inquisitória, são reveladas escutas e outros meios de prova que
deviam ser mantidos em sigilo judicial.
Deste modo, assistimos, por parte de alguns meios de
comunicação social, a uma mediatização excessiva e à elaboração
de juízos de valor antecipados, acicatando o público relativamente
a processos de grande relevância social. São frequentes uma certa
demagogia e sensacionalismo. Com a massificação da informação
a que assistimos nos dias de hoje, alguns canais de informação
parecem querer destacar-se pelo supérfluo, diria até mesmo pelo
ócio informativo. Extravasam certas linhas e domínios que
ultrapassam o razoável, como no caso em apreço, o próprio
Segredo de Justiça.
O investimento em equipamentos e softwares de ponta
que permitam efetuar as diligências de forma segura deverá ser uma
das grandes preocupações da Justiça. Este investimento iria mitigar
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o risco de fuga de informação digital, que coloca imensas vezes em
causa o desenvolvimento dos processos.
A morosidade e a teia burocrática que compõem o sistema
judicial português são reconhecidas de forma quase unânime.
Assim, este jogo da violação, ou não, do Segredo de Justiça pode
ser ainda mais um elemento que pode retardar a conclusão dos
processos.
Neste sentido, cabe a nós, cidadãos e consumidores de
informação, não fazer juízos de valor prévios. Devemos
acompanhar de forma atenta e sistemática o desenrolar do
processo pelos órgãos jurisdicionais. Simultaneamente, é do nosso
interesse procurar informação em diversas fontes fidedignas e
tentar estabelecer paralelismos para alcançar uma maior
aproximação à veracidade dos factos.
Por fim, cabe também às entidades da comunicação social
o papel de filtrar e expor assuntos e temáticas que não cedam
excessivamente ao mediatismo. A excelência, a factualidade e o
rigor são também virtudes que são apreciadas pelo leitor e
seguramente valorizadas e reconhecidas pela comunidade.
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