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3D383D<strong>em</strong>ocracia, direitos humanos e mediação de conflitos: do local aointernacional/Organização Valdênia Brito Monteiro. Recife: <strong>Gajop</strong>,2011.1. Direitos humanos. 2. Mediação de conflitos. I. Monteiro, ValdêniaBrito.CDD 341.27ISBN: 978-85-63518-03-3CDU 349 (81)


Apresentação............................................................................................... 6 - 7O Princípio da Indivisibility perante a Corte Interamericana de DireitosHumanos Jayme Benvenuto.....................................................................Por uma Política Nacional de Garantia, Promoção e Proteção dosDireitos Humanos da Criança e do Adolescente Wanderlino NogueiraNeto..............................................................................................................A Lei Maria da Penha na Avaliação das Mulheres e de Profissionais doJuizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher <strong>em</strong> Mossoró-RN Rita Wigna de Souza Silva..................................................................O Sist<strong>em</strong>a de Justiça como Parte de um Sist<strong>em</strong>a de Garantia de DireitosFundamentais Ivanilda Figueiredo............................................................O Sist<strong>em</strong>a Penal, Contenção da Pobreza e Direitos Humanos ValdêniaBrito Monteiro...............................................................................................Xucuru do Ororubá e Direitos Humanos dos Indígenas: lutas pela terrasegurançae Estado no Brasil Cecília MacDowell Santos........................Acesso à Justiça e Uso do Território: análise geográfica do trabalho doProjeto Justiça Cidadã <strong>em</strong> Recife Willian Magalhães deAlcântara......................................................................................................Direito à Justiça e Acesso ao Direito: a mediação como princípio e aconcretização do acesso à justiça Gustavo Henrique BaptistaAndrade........................................................................................................Conflitos para além das Questões Estruturais e de Sobrevivência: debatesobre a f<strong>em</strong>inização da pobreza e a existência f<strong>em</strong>inina Kelly ReginaSantos da Silva............................................................................................Mediação de Conflitos como Política Pública na Prevenção dacriminalidade: análise crítica de uma experiência <strong>em</strong> Minas Gerais Bráulio de Magalhães Santos......................................................................Levantamento dos Acordos Realizados nos Núcleos do Projeto JustiçaCidadã: tentativa de avaliação dos resultados e impactos de uma políticade mediação de conflitos Júlia Oliveira.................................................8 - 2122 - 7576 - 9394 - 116117 -127128 -158159 -181182 - 197198 - 205206 - 229230 - 249


7desigualdade social, o desequilíbrio deriqueza entre os espaços e suarelação no acesso a direitosfundamentais. A renda baixa, amarginalização e a falta de informaçãosão fatores que faz<strong>em</strong> os direitosser<strong>em</strong> desconhecidos para as pessoascarentes e permit<strong>em</strong> uma heg<strong>em</strong>oniasocial e de classe. Ele conclui queacessar a Justiça é uma necessidadesocial e independe de classes. Noentanto, o Poder Judiciário nãoconsegue ser acessível aos grupossociais carentes ou socialmentevulneráveis. Logo, o Projeto JustiçaCidadã supre essa lacuna social.Ad<strong>em</strong>ais, marcam presençanesta publicação a doutrina de CecíliaMacDowell, Valdênia Brito Monteiro,Jayme Benvenuto e WanderlinoNogueira. Contamos também com acolaboração de Wigna Souza, IvanildaFigueiredo, Kelly Regina, GustavoAndrade e Bráulio Magalhães.Convido todas e todos para aleitura.Recife, Junho de 2011Luis Emmanuel Barbosa da Cunha


8Casos Villagrán Morales e Outroscontra a Guat<strong>em</strong>ala, Mayagna AwasTingny contra a Nicarágua, CincoPensionistas contra o Peru e BaenaRicardo e Outros contra o PanamáIntroduçãoJayme Benvenuto A afirmação do princípio daindivisibilidade dos direitos humanosno plano internacional se relacionacom o fim da 2.ª Guerra Mundial,período que marcou o surgimento daOrganização das Nações Unidas(ONU) e dos sist<strong>em</strong>as internacionaisde proteção aos direitos humanos, nomarco da adoção da DeclaraçãoUniversal dos Direitos Humanos. Noentanto, pelo menos desde meados doséculo XIX, pod<strong>em</strong>os identificar nodebate político manifestaçõesrelacionadas com a ideia deindivisibilidade dos direitos humanos,ou seja, expressões relacionadas coma necessidade de se validar, <strong>em</strong> igualcapacidade, direitos individuais esociais.Professor Doutor de Direito InternacionalPúblico. Diretor do Centro de CiênciasJurídicas da Universidade Católica dePernambuco. Catedrático da CátedraUnesco/Unicap Dom Helder de DireitosHumanos. Bolsista de Produtividade <strong>em</strong>Pesquisa 2 do CNPq.Os princípios, como oscostumes, necessitam do passar dot<strong>em</strong>po para ser<strong>em</strong> afirmados e, pormaior que seja sua aceitação,encontram-se <strong>em</strong> disputa com o quepoderíamos chamar decontraprincípios ideias que secontrapõ<strong>em</strong> aos princípios. Desde acriação da ONU, com a adoção daCarta das Nações, o mundo afirmou oprincípio da não intervenção, que v<strong>em</strong>sendo confrontado pelas intervençõesmilitares unilaterais que vimosacontecer desde então, inclusiverecent<strong>em</strong>ente no Afeganistão e noIraque, de responsabilidade dosEstados Unidos e seus aliados.Igualmente, e há mais t<strong>em</strong>po, oprincípio pacta sunt servanda v<strong>em</strong>sendo afirmado no plano internacional,sendo confrontado pelo desrespeitoaos tratados ratificados, pelarecorrência às guerras e pelounilateralismo.Neste artigo, discutimos oprocesso de criação e reconhecimentodo princípio da indivisibilidade dosdireitos humanos, relacionando-o comfatos históricos que consideramosimportantes e com os instrumentos <strong>em</strong>ecanismos estabelecidos no âmbito


10Entre as marcas dacolonização, destaca-se o surgimentode uma aristocracia nacional nadafavorável ao respeito aos direitossociais para o conjunto da populaçãolatino-americana. Diferent<strong>em</strong>ente doque se observava no continenteeuropeu, no qual os primeiros direitossociais começaram a ser exigidos epraticados como resultado daexpansão e da crise do capitalismo, noNovo Mundo, as elites locais sebeneficiavam particularmente dos<strong>em</strong>préstimos diretos provenientes dosestados europeus, à frente a Inglaterra,a França, a Al<strong>em</strong>anha e,posteriormente, os Estados Unidos. Osprocessos de modernização dospaíses latino-americanos eram<strong>aqui</strong>latados apenas pela capacidadede construir infraestrutura (estradas deferro; portos e linhas de bonde;instalação de <strong>em</strong>presas e serviçospúblicos essenciais) e adotarprocedimentos comerciais de caráterexportador de padrão internacional, nacondição de investimentos quebeneficiavam mais diretamente aselites e uma nascente classe média.Estava praticamente ausente aperspectiva relacionada com melhoraras condições de vida das populaçõesmais pobres, residentes <strong>em</strong>localidades mais r<strong>em</strong>otas, <strong>em</strong> relaçãoàs quais os benefícios dosinvestimentos não chegavam ouchegavam <strong>em</strong> quantidade dosada pelamedida dos interesses políticos.Essas elites não incluíram aerradicação da pobreza ou a reduçãodas desigualdades entre seusinteresses reais. Ou seja: nãopod<strong>em</strong>os encobrir os aspectosendógenos do subdesenvolvimento,deixando de ver os aspectos deacumulação interna, as relações econtradições próprias das sociedadescolonizadas (LIMA, 2009). O fracassodos programas de reforma agrária aolongo dos últimos séculos é um dosex<strong>em</strong>plos mais agudos nesse quadrode exclusão social.Contraditoriamente com aspráticas no âmbito nacional, durantetoda a segunda metade do século XIX,pod<strong>em</strong>os identificar nos discursospolíticos de diplomatas e governanteslatino-americanos reivindicaçõesrelacionadas com ideia de reparaçãoeuropeia pelos danos causados com acolonização. No campo diplomático, os<strong>em</strong>bates políticos dos novos estadosamericanos com os estados europeuspartiam do ponto de vista de que haviasido levado a cabo nos séculosanteriores um trágico processo dedominação e exploração, peloseuropeus, razão pela qual caberia a


11esses a obrigação moral decontribuír<strong>em</strong> para o desenvolvimentodas novas nações independentes.Nesse sentido, é provável que obolivarismo tenha sido a experiênciapolítica mais assertiva <strong>em</strong> termos deuma América Latina soberana: Bolívar“acreditava nas possibilidades deconstruir o sist<strong>em</strong>a americano comomodelo universal. Uma Américaindependente, livre, unida, diferente”(CERVO; BUENO, 2010, p. 10).Desvinculada do bolivarismo, aperspectiva brasileira, a partir de certomomento, também associou a Europa,<strong>em</strong> particular a Grã-Bretanha, àprepotência política sobre a região: “Odiscurso político reivindicava a rupturacom o sist<strong>em</strong>a de relações exterioresimplantado à época da independênciae o reordenamento da política externa<strong>em</strong> função de diretrizes radicalmentedistintas.” (CERVO; BUENO, 2010, p.11). Mesmo os Estados Unidos, combase na Doutrina Monroe, adotaraminicialmente uma perspectiva política eeconômica claramente refratária àEuropa, o que foi abandonado noséculo XX, com a posição de liderançamundial alcançada por aquele país, eo consequente abandono dos d<strong>em</strong>aispaíses americanos <strong>em</strong> troca dasatelização europeia.Apesar do contexto hostil deluta por direitos sociais, a partir doséculo XX, os estados latinoamericanosadotaram legislaçõestrabalhistas com garantias mínimas,como o descanso s<strong>em</strong>anal aosdomingos, a restrição da carga horárias<strong>em</strong>anal, a proteção <strong>em</strong> caso deacidentes e a regulamentação dotrabalho de mulheres e crianças. OUruguai foi um dos pioneiros naregião, ainda na década de 1910, coma instituição de medidas protetivas dedireitos trabalhistas, como o direito degreve, a jornada de oito horas, saláriomínimo, pensão para idosos e segurosaúde (HALL; SPALDING JR., 2002).Com a Constituição Social de 1917, oMéxico passou a garantir direitossociais – o que implicava atribuirsignificado a um princípio entãoinominado de indivisibilidade dosdireitos humanos. É relevante, doponto de vista da genealogia doprincípio da indivisibilidade, o debatepolítico havido durante o processoconstituinte mexicano.O núcleo central dos debates enegociações da Constituição Mexicanafoi a discussão acerca das novascondições legais econômico-sociais,como decorrência do triunfo desegmentos mais radicais eprogressistas, diante da resistênciados setores legalistas e moderados. Osentido histórico daquele que, <strong>em</strong> suaépoca constituyó el código laboral más


13ajuda dos países desenvolvidos comofundamental para seudesenvolvimento, não queriam assumirpropriamente o compromisso com aexigibilidade de direitos sociais porparte de suas populações. Por isso,não fizeram maiores esforços nosentido de manter a ideia daindivisibilidade dos direitos humanosna prática. 2Os países desenvolvidosdesejavam manter a proteção adireitos sociais no âmbito de suaagenda nacional, pela compreensãode que, para “garantir” direitos sociaispara o mundo “explorado”, teriam derepartir o bolo, o que certamente nãolhes interessava. O resultado é ajustificação criada no ambiente2 Um ex<strong>em</strong>plo nesse sentido é dado pela Índiano debate nas Nações Unidas a respeito daadoção de um ou dois pactos de DireitosHumanos: “India believed that while civilrights were properly legal rights, ‘there was,however, no direct r<strong>em</strong>edy for the violation ofeconomic and social rights and no existingmachinery for their protection andenforc<strong>em</strong>ent.” Numa outra ocasião, a Índiadá nova d<strong>em</strong>onstração de poucocompromisso com os direitos sociais: “Theposition supported by India was that while thedraft Covenant might contain some generalexpressions of economic, social, and culturalrights – perhaps similar in language to Article22-27 of the Universal Declaration –subsequent instruments should be drafted toprovide some legal basis for those ‘rights’ byspecifying more clearly the nature and extentof state obligations.” Mais grave foi a posiçãoadotada pelo Brasil e pela Turquia,coautores, com os Estados Unidos, daproposta de resolução que separou osdireitos humanos <strong>em</strong> dois pactos (WHELAN,2010, p. 74, 80, 82).europeu e repetida de forma, às vezes,até mais convincente pelos“subdesenvolvidos” de que aconcretização de direitos sociaisdepende exclusivamente dacapacidade econômica dos países.Não lhes interessava amplificar asvozes do “Terceiro Mundo” queexigiam a contribuição do mundodesenvolvido para sua “libertação defato”. Particularmente para os estadoseuropeus, era interessante que quasetodos os recursos norte-americanosdisponíveis viess<strong>em</strong> a ser usados paraa recuperação e o fortalecimento desua economia, como acabouacontecendo.Por mais de quarenta anos daguerra fria – se considerarmos que elacomeçou logo após o fim da 2.ª GuerraMundial e terminou <strong>em</strong> 1989, com aqueda do Muro de Berlim –, o princípioda indivisibilidade dos direitoshumanos esteve inscrito nos tratadosinternacionais de direitos humanoscomo uma expressão retóricarelacionada com a teoria dos direitoshumanos. Mesmo o debate no âmbitoda ONU durante a 1.ª ConferênciaMundial de Direitos Humanos,realizada <strong>em</strong> Teerã, <strong>em</strong> 1968, écarregado de um idealismo s<strong>em</strong>sustentação fática. Ao mesmo t<strong>em</strong>po<strong>em</strong> que representou a confrontação


14entre os países pós-coloniais e ospaíses desenvolvidos <strong>em</strong> torno deposições mais claras na proteção dosdireitos humanos – buscou passar dafase legislativa para uma fase deimpl<strong>em</strong>entação dos direitos –,representou também a acomodaçãode posições ambíguas no cenáriointernacional.A agenda pós-colonial incluía aideia de que os direitos humanos sãouma parte essencial no plano dedesenvolvimento econômico e social;as propostas de transferência derecursos dos países desenvolvidospara os subdesenvolvidos e <strong>em</strong>desenvolvimento, o desarmamento detodos os países por limitar<strong>em</strong> aspossibilidades de desenvolvimentosocial, <strong>em</strong> especial dos países menosdesenvolvidos, a adoção d<strong>em</strong>ecanismos concretos de realizaçãode direitos humanos, a eliminação dadiscriminação racial e das políticas doapartheid, o combate à escravidãocont<strong>em</strong>porânea e ao comércio deescravos e o princípio daautodeterminação dos povos, além,evident<strong>em</strong>ente, do princípio daindivisibilidade dos direitos humanos.Em termos práticos, os direitoscivis e políticos foram consideradosplenamente “justiciáveis” e diretamenteimpl<strong>em</strong>entáveis pela legislação;enquanto os direitos sociais passarama ser vistos como realizáveis apenasna medida da disponibilidade derecursos por país. No desenho dosist<strong>em</strong>a de reclamações internacionaisconstruído, foram estabelecidosmecanismos de defesa individuaisapenas para os direitos civis epolíticos, enquanto os direitoseconômicos, sociais e culturais foramrelegados a uma realizaçãoprogressiva. Prevaleceram, no planoglobal, o discurso e a políticaanticolonial, e a sujeição dos paísesex-coloniais aos interesses dos paíseseconomicamente desenvolvidos.No âmbito da Organização dosEstados Americanos, o sist<strong>em</strong>ainteramericano de proteção dosdireitos humanos contou com asmesmas dificuldades do sist<strong>em</strong>aglobal. Considerando que aConvenção Americana sobre DireitosHumanos, de 1969, limitava-se aproteger os direitos civis e políticos, osist<strong>em</strong>a adotou tardiamente, <strong>em</strong> 1988,o Protocolo Adicional à ConvençãoAmericana sobre Direitos Humanos <strong>em</strong>Matéria de Direitos Econômicos,Sociais e Culturais, conhecido como“Protocolo de San Salvador”.O Protocolo de San Salvadorincorporou ao Sist<strong>em</strong>a Interamericanode Direitos Humanos a proteção aos


17supostamente pelo seu significado nahistória da humanidade.O direito à vida (física),considerado de acordo com aquelavisão o mais fundamental de todosos direitos, nos termos defendidos porCançado Trindade, tomado <strong>em</strong> suaampla dimensão, abarca “também ascondições de vida (direito de viver comdignidade)” que “pertence a um t<strong>em</strong>poao domínio dos direitos civis epolíticos, como ao dos direitoseconômicos, sociais e culturais”, namedida <strong>em</strong> que não se pode contentarcom uma definição de vida restrita àexistência de vida física. Esse é oentendimento expresso <strong>em</strong> sentençada Corte Interamericana de DireitosHumanos <strong>em</strong> 1999, então presididapelo jurista brasileiro mencionado, comrelação ao caso de extermínio d<strong>em</strong>eninos de rua na Guat<strong>em</strong>ala, porpoliciais integrantes de grupos deextermínio, conhecido como casoVillagrán Morales e Outros contra aGuat<strong>em</strong>ala. A sentença referidamarcou um novo momento no DireitoInternacional dos Direitos Humanos,<strong>em</strong> que o mundo jurídico oficial passoua reconhecer a indivisibilidade práticados direitos humanos, o que significaver e tratar determinados direitos a umsó t<strong>em</strong>po como de repercussões civis,políticas, econômicas, sociais eculturais.A consequência prática doreconhecimento da indivisibilidade dosdireitos humanos no caso dos meninosde rua na Guat<strong>em</strong>ala foi a exigência,da Corte Interamericana de DireitosHumanos, de “medidas positivas deproteção por parte do Estado” para arealização do direito à vida. Na suaausência, responsabilizou-o pela mortedos meninos de rua guat<strong>em</strong>altecos,que poderiam ser brasileiros,colombianos, peruanos, ou dequalquer outro país latino-americanoque convive com a tragédia doassassinato de crianças por policiais egrupos de extermínio. Ao reconhecerque a perda da vida não é só física,mas social, uma vez que “a vida dosmeninos já carecia de qualquersentido”, a Corte atribuiu ao direito àvida a condição de “viver comdignidade”.No caso Baena Ricardo eOutros contra o Panamá, não restadúvida de que as reivindicações dostrabalhadores ao governo panamenhoeram de natureza trabalhista, sendo asmesmas que motivaram a intervençãodo Estado julgada na sentença d<strong>em</strong>érito da Corte Interamericana(CORTE IDH, 2003a). Mesmo s<strong>em</strong>fazer menção clara ao princípio da


20sociais e culturais como igualmentereivindicáveis.A utilização do princípio daindivisibilidade dos direitos humanosno sist<strong>em</strong>a interamericano de direitoshumanos – <strong>em</strong> especial pela CorteInteramericana de Direitos Humanos:1. Marca uma interpretação compatívelcom as necessidades da maior partedos estados que integram o sist<strong>em</strong>a –países <strong>em</strong> desenvolvimento que sehoje já não reivindicam ingenuamenteque os estados desenvolvidoscontribuam retributivamente com seudesenvolvimento, pretend<strong>em</strong> criar ascondições para se desenvolver<strong>em</strong>autonomamente pelo menos s<strong>em</strong> queos d<strong>em</strong>ais atrapalh<strong>em</strong>.2. Considera a dificuldade que éclassificar como civil e político umdireito, e não como econômico, sociale cultural, e vice-versa. Os casosMayagna Awas Tingni contra aNicarágua, Baena Ricardo e Outroscontra o Panamá, Cinco Pensionistascontra o Peru, entre outros, ilustramb<strong>em</strong> essa posição.3. Utiliza-se da contradição interna daclassificação geracional dos direitoshumanos – civis, políticos,econômicos, sociais e culturais – parafazer valer a proteção aos direitossociais pela via dos direitos civis epolíticos.Em que pes<strong>em</strong> às limitaçõesmencionadas, o princípio daindivisibilidade dos direitos humanosencontrou na América Latina umarelevância que ainda não t<strong>em</strong> <strong>em</strong>outras partes do mundo, considerandoa produção jurisprudencial do sist<strong>em</strong>ainteramericano de Direitos Humanos.ReferênciasCERVO, Amado Luiz; BUENO,Clodoaldo. História da política exteriordo Brasil. Brasília: UnB, 2010.CORTE IDH. Caso de los “Niños de laCalle”: Villagrán Morales y otros Vs.Guat<strong>em</strong>ala: excepciones preliminares.Sentencia de 11 de septi<strong>em</strong>bre de1997. Jueces Cançado Trindade yAbreu Burelli. Serie C, n.º 32.______. Caso de la ComunidadMayagna (Sumo) Awas Tingni Vs.Nicaragua: excepciones preliminares.Juez ad-hoc Montiel Argüello.Sentencia de 1 de febrero de 2000.Serie C, n.º 66.______. Caso Baena Ricardo y otrosVs. Panamá: competencia. Sentenciade 28 de novi<strong>em</strong>bre de 2003a. SerieC, n.º 104.______. Caso Cinco Pensionistas Vs.Perú: fondo, reparaciones y costas.Sentencia de 28 de febrero de 2003b.Juez Cançado Trindade, Juez GarcíaRamírez, Juez de Roux Rengifo.SerieC, n.º 98.HALL, Michael M; SPALDING JR,Hobart A. A classe trabalhadoraurbana e os primeiros movimentostrabalhistas na América Latina, 1880-


211930. In: BETHEL, Leslie (Org.).História da América Latina: de 1870 a1930. São Paulo: Edusp, 2002. v. 4.LIMA, Marcos Costa. Desenvolvimentoe globalização na periferia: o eloperdido. In: ARAÚJO, Cícero;AMADEO, Javier (Org.). Teoria políticalatino-americana. São Paulo: Hucitec,2009.NAÇÕES UNIDAS. ConvençãoInteramericana para Prevenir, Punir eErradicar a Violência contra a Mulher.Convenção de Belém do Pará, 1994.Adotada <strong>em</strong> Belém do Pará, Brasil, <strong>em</strong>6 de junho de 1994, no 24.º PeríodoOrdinário de Sessões da Ass<strong>em</strong>bléiaGeral das Nações Unidas. Ratificadapelo Brasil <strong>em</strong> 27 de dez<strong>em</strong>bro de1995 e promulgada pela Presidênciada República pelo Decreto n.º1.973/1996. Belém, PA: A Convenção,1994. Disponível <strong>em</strong>:. Acesso<strong>em</strong>: 7 ago. 2010.TRINDADE, Antonio AugustoCançado. Brasil e o PactoInternacional de Direitos Econômicos,Sociais e Culturais. In:CONFERÊNCIA NACIONAL DEDIREITOS HUMANOS, 4. 2000,Brasília. Relatórios. Brasília: Câmarados Deputados, 2000.WHELAN, Daniel J. Indivisible rights: ahistory. Philadelphia; Oxford:University of Pennsylvania Press,2010.BibliografiaBENVENUTO, Jayme. Os direitoshumanos econômicos, sociais e culturais.Rio de Janeiro: Renovar, 2001.______. A justiciabilidade internacionaldos direitos humanos econômicos, sociaise culturais: casos das Cortes Europeia eInteramericana de Direitos Humanos.Tese (Doutorado <strong>em</strong> Direito Internacional) Faculdade de Direito, Universidade deSão Paulo, São Paulo, 2005.BERNAND, Carmen. ImperialismosIbéricos. In: FERRO, Marc (Org.). O livronegro do colonialismo. Rio de Janeiro:Ediouro, 2004.CORTE INTERAMERICANA DEDERECHOS HUMANOS. Casoscontenciosos. Disponível <strong>em</strong>:.______. Instrumentos Sist<strong>em</strong>aInteramericano. Disponível <strong>em</strong>:.EIDE, Asbjorn; KRAUSE, Catarina;ROSAS, Alan (Ed.). Economic, Social andCultural Rights: a textbook. Dordrecht:Martinus Nijhoff Publishers, 1995.GLADE, William. A América Latina e aeconomia internacional, 1870-1914. In:BETHEL, Leslie (Org.). História daAmérica Latina: de 1870 a 1930. SãoPaulo: Edusp, 2002. v. 4.MARSHALL, Theodor H. Cidadania,classe social e status. Rio de Janeiro:Zahar, 1967.WOLKMER, Antônio Carlos.Constitucionalismo e direitos sociaisno Brasil. São Paulo: Acadêmica,1989.YOUNG, Robert. White mythologies:writing history and the West. Londres:Routledge, 1990.


22Wanderlino Nogueira Neto JUSTIFICATIVAS PARA AFORMULAÇÃO DE UMA POLÍTICADE GARANTIA, PROMOÇÃO EPROTEÇÃO (= DEFESA ERESPONSABILIZAÇÃO) DEDIREITOS HUMANOS DE CRIANÇASE ADOLESCENTESIntroduçãoNovos discursos científicos enormativo-jurídicos 1preliminarmenteProcurador de justiça aposentado doMinistério Público da Bahia e m<strong>em</strong>bro daSeção Brasil da Rede Defense for ChildrenInternational (DCI) Associação Nacionaldos Centros de Defesa da Criança e doAdolescente (Anced). Foi professor deDireito Internacional Público na UniversidadeFederal da Bahia (UFBA), procurador-geralde Justiça da Bahia (governo Waldir Pires),diretor-geral do Tribunal de Justiça da Bahia,articulador Nacional da Rede de núcleos deestudos sobre a criança e o adolescente e darede de centros de defesa da criança e doadolescente (Fórum Nacional DCA),secretário nacional do Fórum DCA,secretario executivo da Anced-DCI,coordenador do grupo t<strong>em</strong>ático paramonitoramento da impl<strong>em</strong>entação daConvenção sobre os Direitos da Criança noBrasil, professor de Direitos Humanos noscursos especiais para advogados-militantesda Anced-DCI, representante da Anced-DCI,perante REDLAMYC nos encontros iberoamericanospara a infância, consultorespecial para o Unicef (Brasil, Angola, CaboVerde e Paraguai), supervisor-geral deprojetos de formação para a AssociaçãoBrasileira de Magistrados, Promotores eDefensores da Infância e Juventude (ABMP),consultor ad hoc para o Conanda e para oFórum Nacional DCA. Autor de seis livrospublicados especialmente sobre direitoshumanos.precisam ser pensados e explicitados,e nova prática política decorrenteprecisa ser formulada e desenvolvida,ambos, 2 na perspectiva dasnecessidades, dos interesses e dosdesejos da classe trabalhadora e dedeterminados segmentos sociaisespecialmente vulnerabilizados <strong>em</strong>razão de sua diversidade identitária. 3Por causa disso, é necessário que opensamento científico, o direito e apolítica respondam de maneiratransformadora:1Discursos científicos, isto é, teorias oudoutrinas no campo científico da psicologia,da sociologia, do direito, da antropologia, daciência política, da história, da economia, porex<strong>em</strong>plo; e normativo-jurídicos ordenamento jurídico, normas jurídicas,direito positivado (constituições,tratados/convenções, leis, decretos,resoluções, portarias, atos normativos,instruções normativas, normas operacionaisbásicas, etc.).2Evit<strong>em</strong>os opor, de maneira equivocada,imediatista e infantilizada, o discurso (asideias, as falas, as normas, o conhecimentocientífico, o saber popular, etc.) de relaçãoàs práticas (ações, políticasoperacionalizadas, atividades etc.). Ambosjustificam e <strong>em</strong>basam um ao outro, tanto areflexão quanto a ação no que se chama“práxis”. Não nos deve interessar umaação/atividade que não tenha vinculaçãocom um discurso/fala. O contrário tambémnão nos deve interessar. Não há movimentosocial efetivo s<strong>em</strong> discurso e práticatransformadores e revolucionários próprios,que, por sua vez, produzam, <strong>em</strong> conjunto,uma mística/bandeira mobilizadora eintegradora que cri<strong>em</strong> coesão e pertença.3Identidade geracional, racial, étnica, degênero, de orientação sexual, de localizaçãogeográfica, etc.


23(a) a um contexto social desubalternização, desigualdades edesrespeito à diversidade identitária;além do mais,(b) a esse contexto social descrito,como integrantes de um sist<strong>em</strong>aamplo de garantia, promoção eproteção de direitos humanos, 4favor desse público, <strong>em</strong> especial.<strong>em</strong>Toda tentativa de fazer tudoisso com base <strong>em</strong> uma pretensaneutralidade axiológica ou de umaneutralidade ideológico-política deveser rechaçada: é preciso pensar eatuar por meio de um compromissocom certos paradigmas, princípios evalores e com uma determinada luta.Essa opção de luta pela transformaçãoé uma das opções políticas que sepode escolher (ou não) <strong>em</strong> função deuma preliminar e determinada visãosocial de mundo. Ou seja, de umadeterminada forma deanalisar aconjuntura, tendo como base ejustificativa uma utopia<strong>em</strong>ancipatória/libertária. 5Também sepode optar por outra qualquer formade analisar a conjuntura, tendo comobase uma ideologia autoritária econservadora.4Sist<strong>em</strong>a multicultural, multidisciplinar,intersetorial, multiprofissional.5 Utopia = o que não está <strong>aqui</strong> agora, <strong>aqui</strong>ainda, mas que se está construindo comocenário possível, histórico, verossímil.Nessatransformadora/<strong>em</strong>ancipatóriaperspectivapostaacima, isto é, de uma determinadavisão social de mundo, nossa reflexãoteórica e prática de ação (históricopolítica)deveria buscar, no atualmomento histórico, apoio na teoria oudoutrina jus-humanista, 6 paraconstruír<strong>em</strong> tanto uma teoria geral dosdireitos fundamentais e seucorrespondente ordenamento jurídico 7quanto uma”política de garantia,promoção e proteção de direitoshumanos” (específica) <strong>em</strong> favor dacriança e do adolescente.Ali deverão ambos buscar(direito e política) seus paradigmasético-políticos, seus princípiosjurídicos, seus parâmetros, suasdiretrizes gerais, suas estratégias,seus objetivos, suas metas, seusprocessos/resultados/impactos,seusresponsáveis/parceiros, seus modelosde gestão e financiamento: toda umaformulação e um planejamento(estratégico situacional), elaborado apartir dessas questões preliminares6 Teoria ou Doutrina dos Direitos Humanos(multidimensional), também chamada naAmérica Latina e no Brasil particularmentede “doutrina da proteção integral” no campodos direitos infanto-adolescentes, como severá adiante.7 Ou seja, uma teoria ou doutrina jurídica(Ciência do Direito) somada a uma normativajurídica vigente (direito positivo ou dogmáticajurídica: leis, decretos, resoluções, portarias,NOB, instruções normativas, etc.).


24<strong>aqui</strong> postas – ou seja, uma políticaformulada e um plano elaborado nãocomo meros documentos técnicoburocráticos,mas como documentospolíticos.1 UM CONTEXTO SOCIALMARCADO PELASUBALTERNIZAÇÃO, PELASDESIGUALDADES E PELADOMINAÇÃO ADULTOCÊNTRICAGeneralidadesA definição de uma política degarantia, promoção e proteção 8dedireitos humanos da criança e doadolescente (específica!) e seudecorrente planejamento decenaldepend<strong>em</strong>, desse modo,preliminarmente de uma análise dasituação, ou seja, depend<strong>em</strong> docontexto social sobre o qual ela vaiincidir; oportunidade na qual selevantará, analisará e avaliará oquadro multidimensional das relaçõesgeracionais, como condicionantedesse trabalho de definição,formulação e planejamento citado.8 Segundo a tradição dos direitos humanos,usa-se <strong>aqui</strong> a expressão “proteção dedireitos humanos” quando são ameaçadosou violados. Ela implica didaticamente doisramos de atuação protetiva,compl<strong>em</strong>entares: defesa dos violados <strong>em</strong>seus direitos e responsabilização dosvioladores desses direitos.Sendo assim, há de se concluirque essa política pública institucional 9 para maior ou menor efetividade,eficácia e eficiência na suaoperacionalização dependerá de suacapacidade de responder a essecontexto social:(1) marcado primeiramente pelosprocessos perversos desubalternização da classe trabalhadorae das franjas vulnerabilizadas própriasdo regime capitalista;(2) marcado igualmente pelasdecorrentes desigualdades einiquidades; e(3) marcado finalmente pelosespecíficos processos de dominaçãoadultocêntrica.Essa é a primeira constatação einicial indicativo que <strong>aqui</strong> se propõe nomomento <strong>em</strong> que a sociedade civilorganizada 10 (por meio das entidadessociais e dos seus militantes,articuladas no Fórum Nacional DCA eseus homólogos locais, por ex<strong>em</strong>plo)pretende discutir previamente a9 A partir da classificação formal das políticaspúblicas no Brasil: sociais (educação, saúde,previdência, assistência social, trabalho,etc.), institucionais (direitos humanos,segurança pública, relações exteriores,defesa do Estado, etc.), infraestruturantes(agricultura, comércio, indústria, transporte,turismo, etc.) e econômicas (fiscal, cambial,etc.).10 No sentido político-ideológico usado porAntonio Gramsci (“M<strong>em</strong>órias do Cárcere”),mais restrito que o de população, terceirosetor, sociedade.


25formulação/planejamento da políticade garantia, promoção e proteção dosdireitos humanos infanto-adolescentes,a ser feita pelo Conselho Nacional dosDireitos da Criança e do Adolescente(Conanda); <strong>em</strong> consonância com oPrograma Nacional de DireitosHumanos 3 (PNDH 3), recent<strong>em</strong>enteformulado como política de Estado edepois aprovado, <strong>em</strong> parte, pordecreto presidencial como política degoverno. 11Uma Realidade Perversa ePerversoraAnálise do contexto social a partir dosíndices de subalternização,desigualdade/iniquidade e dominaçãoadultocêntricaEm uma visita aos dados einformações totalizados, por meio dasfontes primárias de dados einformações, três fatores tendenciaisse destacam e justificam que sepriorize o enfrentamento desses trêsfatores na formulação/planejamento dapolítica de garantia, promoção eproteção dos direitos (humanos) <strong>em</strong>11 No caso, desse trabalho da sociedade civilde pré-formulação e discussão, sustenta-se<strong>aqui</strong> que essa consonância citada deverá sercom a versão original ampliada do PNDH III,oriunda de formulação conjunta pelo governoe sociedade civil, <strong>em</strong> conferências econsultas públicas.favor da infância e adolescência e naformulação/planejamento da políticade acesso à Justiça: (1) asubalternização/alienação; (2) asdesigualdades/iniquidades de todos ostipos (econômicas, políticas, sociais ejurídicas); e (3) o quadro dedominação heg<strong>em</strong>ônica adultocêntricaconsequente.Tanto no tocante às ações daspolíticas públicas, minimamente nasáreas da saúde, educação, assistênciasocial, da cultura, segurança pública,relações exteriores, direitos humanose planejamento/orçamento, quanto notocante às ações para garantir equalificar acesso à Justiça, todos osprocessos de levantamento e análisede dados e informações passam a termais sentido e mais efetividade se oscolocarmos todos confrontados com osespecíficos dados e informações, arespeito dos altos níveis de dominaçãoadultocêntrica (especialmente nomarco da iniquidade e dadesigualdade social, econômica,cultural e jurídica), que marcam econdicionam essas ações públicas degarantia, promoção e proteção dosdireitos fundamentais infantoadolescentes.Quadro esse que se desvelacom mais clareza quando se analisa asituação das políticas públicas e do


26acesso à Justiça no âmbito do poderlocal, do território dos municípios, istoé, num espaço político mais próximode qu<strong>em</strong> depende dessas açõespúblicas, de qu<strong>em</strong> mais sofre pelaausência de ações do Poder Públicoou pela falta de eficiência, eficácia eefetividade na operacionalizaçãodessas ações públicas contidas noseio das políticas de Estado e pelafalta de efetividade e qualidade noacesso à Justiça.Disseque-se brev<strong>em</strong>ente essequadro: com mais de 183 milhões depessoas, o Brasil é o quinto país maispopuloso do mundo e a décimaeconomia; mas é um dos países maisdesiguais da Terra, ocupando a 92.ªdistribuição do PIB per capita e a 69.ªposição no ranking do Índice deDesenvolvimento Humano (IDH).Dados do Programa das NaçõesUnidas para o Desenvolvimento(PNUD, 2006) informam que o Brasil éo 10.º mais desigual numa lista com126 países e territórios, à frenteapenas da Colômbia, Bolívia, do Haitie de cinco países da ÁfricaSubsaariana. Além disso, <strong>em</strong> apenasoito países, os 10% mais ricos dapopulação se apropriam de uma fatiada renda nacional maior que a dosricos brasileiros. No Brasil, eles ficamcom 45,8% da renda, menos que noChile (47%), Colômbia (46,9), Haiti(47,7), Lesoto (48,3%), Botsuana(56,6%), Suazilândia (50,2%), Namíbia(64,5%) e República Centro-Africana(47,7%). Os pobres brasileiros detêmapenas 0,8% da renda, fatia superior àdos pobres da Colômbia, de ElSalvador e Botsuana (0,7%), doParaguai (0,6%), e Namíbia, SerraLeoa e Lesoto (0,5%).A comparação entre os 20%mais ricos e os 20% mais pobresmostra que, no Brasil, a fatia da rendaobtida pelo quinto mais rico dapopulação (62,1%) é quase 24 vezesmaior do que a fatia de renda doquinto mais pobre, 2,6% (PNUD,2006). Preliminarmente, é de sereconhecer que a pobreza é o maiorsinal dessa desigualdade, dessa faltade equidade. Ela é a primeira grandeviolação aos direitos fundamentais e omaior filtro obstaculizador para oacesso com êxito às políticas públicase à Justiça nos municípiosprincipalmente, uma vez que osmecanismos de proteção social <strong>em</strong>todas as políticas sociais básicas, naponta do atendimento público, sãoincapazes de garantir direitos aosmilhões de crianças e famílias <strong>em</strong>situação de vulnerabilidadeeconômica.


27De acordo com o InstitutoBrasileiro de Geografia e Estatística(IBGE, 2007), <strong>em</strong> quase metade dasfamílias brasileiras (48,9%), hácrianças e adolescentes com até 14anos de idade. Basta assinalar que opercentual de famílias consideradaspobres (com rendimento mensal percapita de até ½ salário mínimo) é de25,1% <strong>em</strong> relação ao total das famíliasno País, mas chega a 40,4% entre asfamílias com crianças de até 14 anos.Quando se consideram apenas asfamílias com crianças na faixa até os 6anos, o percentual é mais alto: 45,4%,ou seja, as famílias com filhos nestafaixa etária são mais pobres. Contudo,além da pobreza, a desigualdade t<strong>em</strong>outras dimensões, outrascondicionantes e limitações para aação pública.De nada adianta falar <strong>em</strong>redução da mortalidade infantil, deevasão escolar no Brasil, se nãodissecar<strong>em</strong> esses dados para seconstatar que essa redução ocorre,por ex<strong>em</strong>plo, <strong>em</strong> níveis maiores <strong>em</strong>municípios da Região Sul, que osdados referentes ao aumento damortalidade por morte violenta(homicídio, por ex<strong>em</strong>plo) refer<strong>em</strong>-s<strong>em</strong>uito mais a municípios da RegiãoNordeste e que a Região Norte t<strong>em</strong> ospiores índices no desenvolvimento daspolíticas públicas e no acesso àJustiça. A desigualdade t<strong>em</strong> diferentesdimensões regionais, geográficas.Como ex<strong>em</strong>plo, tome-se a diferençado percentual de famílias com criançase adolescentes de até 14 anos queviv<strong>em</strong> <strong>em</strong> situação de pobreza no Sul(26,5%) e no Nordeste (63,1%), ouseja, além de ser nacionalmentedesigual, o Brasil t<strong>em</strong> disparidadesregionais que chegam a quase 40pontos percentuais (IBGE, 2007).O mesmo se diga que aexploração e a violência têm raça/cor eetnia no Brasil, atingindo de maneiramaciça e sist<strong>em</strong>ática a populaçãoindígena e afrodescendente; e mais,igualmente, atingindo pessoas comdeficiência, LGBTT, crianças,adolescentes e jovens, idosos <strong>em</strong>ulheres. Essas são também variáveisimportantíssimas na análise dessesdados e informações. Ai de qu<strong>em</strong>nasce pobre, ribeirinho amazônico,mulher, adolescente, afrodescendente,lésbica, pessoa com deficiência, porex<strong>em</strong>plo, nos municípios deste Brasil.A desigualdade t<strong>em</strong> comocondicionante o fator cor/raça. Em2005, o Relatório de DesenvolvimentoHumano do Brasil (PNUD, 2005) focouas desigualdades étnico-raciais. Deacordo com esse documento:


28Caso formass<strong>em</strong> uma nação à parte,os brancos, com um nível dedesenvolvimento humano alto [...] Apopulação negra, com um nível dedesenvolvimento humano médio [...] Adistância entre brancos e negros,portanto, seria enorme: 61 posições noranking do IDH mundial. (PNUD, 2005,p. 58).A população branca teria IDHalto (0,814) e ficaria na 44.ª posição noranking mundial – s<strong>em</strong>elhante à daCosta Rica e superior à da Croácia. Jáa população negra (pretos e pardos),teria IDH médio (0,703) e ficaria <strong>em</strong>105.º lugar, equivalente ao de ElSalvador e pior que o do Paraguai. NoBrasil, a despesa média mensalfamiliar das famílias <strong>em</strong> que a pessoade referência se declarou branca (R$2.262,24) chega a quase o dobro dasque se declararam negras (cerca deR$ 1.230,00), <strong>em</strong> uma incontested<strong>em</strong>onstração da interseccionalidadede raça e classe social. 12 Ao todo, são9,5 milhões de crianças de até 3 anosfora das creches e 2,2 milhões entre 4e 6 anos que não estão na pré-escola;do total de crianças de 4 a 6 anos forada escola, 58% são negras, o quecorresponde a 1,3 milhão de crianças.A formulação de uma política degarantia, de promoção e proteção dosdireitos humanos de crianças e12 Os dados oficiais, recolhidos nas pesquisasdo IBGE, adotam o conceito deautodeclaração, ou seja, os ent<strong>revista</strong>dosdeclaram ser “branco, negro ou pardo”.adolescentes deve levar <strong>em</strong> contaesse quadro para colocar como suamissão finalística o desvelamento delee seu enfrentamento. Além disso, talquadro de subalternização,desigualdades e dominaçãoadultocêntrica será importante naprioridade às estratégias para cumpriressa missão e seus objetivosdecorrentes; igualmente seráimprescindível ao se definir<strong>em</strong>responsáveis, parceiros nos objetivose aliados nas estratégias, ao buscaralianças com os que sofr<strong>em</strong> igualprocesso de subalternização edesigualdades: mulheres, negros,povos indígenas, segmentospopulacionais tradicionais (ciganos,quilombolas, ribeirinhos amazônicosetc.), minorias eróticas, pessoas comdeficiência – por ex<strong>em</strong>plo.O Adultocentrismo e a LutaEmancipatória e Transformadoracontra Ele e contra Outras Formasde Dominação Heg<strong>em</strong>ônicaNa maioria das sociedades, asdiferenças biológicas entre crianças,adolescentes e adultos justificam elegitimam desigualdades no que dizrespeito ao poder atribuído aos adultossobre crianças e adolescentes. Isso sereconhecerá como uma cultura popular


29e institucional adultocêntrica, <strong>em</strong> quese estabelec<strong>em</strong> relações dediscriminação, negligência, exploraçãoe violência, isto é, de dominação sobrecrianças e adolescentes, num claro(mas raramente reconhecido)processo de heg<strong>em</strong>onia social,cultural, econômica e jurídica domundo adulto <strong>em</strong> detrimento domundo(NOGUEIRA NETO, 2005).infanto-adolescenteHeg<strong>em</strong>onização adultocêntricaque repete o androcentrismopatriarcal-machista, o etnocentrismoracista, a homofobia sexista, porex<strong>em</strong>plo. Um adultocentrismo quereforça essas formas outras dedominação majoritária e a elas se alia,acumplicia-se.A tarefa básica dos movimentossociais e de suas expressõesorganizativas, 13 nos últimos t<strong>em</strong>pos, noBrasil, t<strong>em</strong> sido a de procurar incidirsobre o Estado e sobre a sociedade de13 Movimentos sociais de real enfrentamentoda verdadeira questão social, centralizadosnela, posicionando-se <strong>em</strong> favor daprevalência das necessidades, dosinteresses, dos desejos e dos direitos daclasse trabalhadora e dos gruposvulnerabilizados e marginalizados(discriminados, explorados, violentados):mulheres, negros, indígenas, LGBTT,ciganos, quilombolas, ribeirinhosamazônicos, pessoas com deficiência,soropositivas, os loucos, etc., para quesejam reconhecidos como direitos, numsentido amplo, mesmo os ainda nãoreconhecidos e garantidos pelo Estado(“direitos insurgentes”).modo geral, no sentido da deflagraçãoe construção de um processo“transformante-revolucionante”,<strong>em</strong>ancipatório, contra-heg<strong>em</strong>ônico(social, cultural, político, econômico ejurídico), atuando nas brechas dosblocos heg<strong>em</strong>ônicos capitalista,adultocêntrico, androcêntrico,etnocêntrico, homofóbico, etc.Uma incidência que procuralevar o Estado e a Sociedade aabandonar, cada vez mais, aquelalinha tradicional alienadora <strong>em</strong>eramente filantrópico-caritativa, nocaso de crianças, adolescentes, jovense idosos, na qual suas ações seconfiguravam como uma benesse oufavor do mundo adulto, apaziguandoconsciências e legitimando ohigienismo dominante – uma linhacastradoramente "tutelar", portanto,adultocêntrica.Por sua vez, nascendo dessesmovimentos sociais e a elesvinculados (ou por eles influenciados),surgiram determinados movimentosconjunturais de luta, por ex<strong>em</strong>plo, <strong>em</strong>favor de uma nova normativainternacional e nacional de caráter<strong>em</strong>ancipador e transformador, quepudesse ser considerada uma aliadapolítica no processo maior de lutas dosmovimentos sociais <strong>em</strong> tal lutaconjuntural específica por um novo


30Direito e por uma decorrente e novaPolítica. Contudo, é importante que sereconheça também que n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pretodos os segmentos ou blocos decertos movimentos conjunturais estãoaliados aos verdadeiros movimentossociais e são orgânicos de relação aestes. Na verdade estão alguns blocosaliados (mesmo que subrepticiamente)aos gruposheg<strong>em</strong>ônicoscapitalistas,adultocêntricos, por ex<strong>em</strong>plo.Nesse contexto de aliança d<strong>em</strong>ovimentos conjunturais com osmovimentos sociais, estão os esforçosde vários e determinados movimentosconjunturais históricos pela inclusãodos artigos 227 e 228 na ConstituiçãoFederal de 1988, pela ratificação daConvenção sobre os Direitos daCriança e pela aprovação do Estatutoda Criança e do Adolescente (ECA),ambos <strong>em</strong> 1990. Espera-se, nomomento atual, que igual processo serepita, com um renovado movimentoconjuntural, legítimo e <strong>em</strong> aliança comos movimentos sociais, pelaformulação e planejamento de umapolítica específica que dê conta daefetividade social e eficácia jurídica donovo Direito, ou seja, a PolíticaNacional de Garantia, Promoção eProteção dos Direitos Humanos deCrianças e Adolescentes.Essa luta transformadora e<strong>em</strong>ancipadora, por um novo Direito epor uma nova Política, ambos <strong>em</strong> favorda infância/adolescência, precisa serfeita como parte da “incidência-<strong>em</strong>combate”,14 mais ampla, dosmovimentos sociais na luta dostrabalhadores e dos citados gruposvulnerabilizados e marginalizados (<strong>em</strong>especial, oprimidos, discriminados,negligenciados,violentados), 15explorados,para o enfrentamentoda questão social <strong>em</strong> sua radicalidade.Contudo, nesse contexto maior,a luta dos movimentos por direitosinfanto-adolescentes ainda se faz <strong>em</strong>nível um tanto incipiente secompararmos, por ex<strong>em</strong>plo, comaquela outra pelo fortalecimento daidentidade f<strong>em</strong>inina, pela <strong>em</strong>ancipaçãoradical da mulher e pela construção deoutra masculinidade ad<strong>em</strong>ocratização das relações degênero. Ou se compararmos com lutas<strong>em</strong>elhante contra todas as formasodiosas de discriminação e violência aque são submetidas as populaçõesnegras ou indígenas, as minorias14No pensar de Lenine: “doutrinação epropaganda” e “ação revolucionária”.15Evitou-se <strong>aqui</strong> o uso das tradicionaisexpressões “exclusão social” e “excluídos”,por sua limitação e ambiguidade naconjuntura atual no chamado TerceiroMundo.


31eróticas 16 e outros segmentos sociaisvulnerabilizados no Brasil e norestante do mundo.As mulheres, os negros, osíndios e os homossexuais, porex<strong>em</strong>plo eles próprios sofrendo naprópria pele a dominação e opressão, organizaram-se e construíramdiscursos e práticas alternativas deradicalidade, com indiscutívelefetividade e capacidade de alteridadee de transformação, como processocontra-heg<strong>em</strong>ônico.Eles todos citados partiraminicialmente do reconhecimento doantagonismo intrínseco com os blocosheg<strong>em</strong>ônicos, capitalista, machista,racista e homofóbico, por ex<strong>em</strong>plo. Ofato de nossos movimentosconjunturais por direitos e suasexpressões organizativas, envolvidosnessas lutas <strong>em</strong>ancipatórias,combater<strong>em</strong> pela sobrevivência de suaessencialidade humana e identidadeprópria, faz realmente diferençaquando se coteja com o discurso e aprática (mesmo os mais progressistas)de alguns movimentos e organizaçõesque lutam pela infância e pelaadolescência, ainda eivados de certopaternalismo sub-reptício.16 Prostituto (a), gays, lésbicas, bissexuais,transgêneros, etc.Normalmente, é dentro dopróprio bloco heg<strong>em</strong>ônicoadultocêntrico que a luta pelos direitosda criança e do adolescente se faz,com um discurso crítico e uma práticaengajada e conscientizadora:compromisso, solidariedade e cuidado.São adultos que tentam fazersobrelevar <strong>em</strong> si mesmo seusinteresses e desejos de blocomajoritário dominante, para secomprometer<strong>em</strong> com os interesses edesejos dos oprimidos, com o<strong>em</strong>poderamento ou potencializaçãoestratégica (<strong>em</strong>powerment) decrianças e adolescentes, para sua<strong>em</strong>ancipação, para se tornar<strong>em</strong>sujeitos da História – reconhecendo etolerando 17sua "face" identitária (declasse, geração, gênero, sexualidade,raça, etc.).Mais radicais e, portanto maisrápidos e efetivos, seriam os discursose as práticas contra-heg<strong>em</strong>ônicas e<strong>em</strong>ancipatórias do segmento infantoadolescentese o grau de consciênciae organização de crianças eadolescentes chegasse a ponto deconstruír<strong>em</strong> um real "protagonismo" 18nessa luta, inclusive buscando17 Aqui no sentido positivo da expressão comoo utilizado <strong>em</strong> estratégias de advocacy daUnesco.18 Metodologia para se garantir o direito àparticipação de crianças e adolescentes.


32alianças diretas com outros oprimidos um fortalecendo o outro.Se tal consciência e papelassumiss<strong>em</strong> as próprias crianças e osadolescentes, eles nos forçariam,"adultos convertidos", a lutar realmente"com eles", e não apenas "para eles",como ainda prevalece <strong>em</strong> nossot<strong>em</strong>po, com raras exceções. Aparticipação proativa 19de crianças eadolescentes no mundo familiar,social e político passaria a se dar apartir deles próprios, e não comoconcessão do mundo adulto e comodecorrência de políticas, programas eprojetos artificiais que, mais das vezes,promov<strong>em</strong> de fora para dentro essaproatividade e, ao mesmo t<strong>em</strong>po,<strong>em</strong>olduram-na e domesticam.Essencialidade Humana eIdentidade GeracionalNessa luta <strong>em</strong>ancipatória etransformadora <strong>em</strong> favor de crianças eadolescentes (jovens e idosos, porextensão), há de se procuraralternativa nova, por meio deinstrumentos normativos, de espaçospúblicos (institucionais ou não) e de19 Adiante se tratará mais aprofundadamentedessa questão quando finda esta análise daconjuntura se começar a esboçar os cenáriospossíveis para enfrentamento da dominaçãoadultocêntrica.mecanismos estratégicos (políticos,sociais, econômicos, culturais,religiosos e jurídicos) que se torn<strong>em</strong>verdadeiros mecanismos d<strong>em</strong>ediação 20 nessa luta peloasseguramento da essencialidadehumana e da diversidade identitáriageracional, vencendo esse processode desumanização, de dominação eopressão, de desclassificação socialde crianças e adolescentes, no jogoheg<strong>em</strong>ônico e contra-heg<strong>em</strong>ônico quecondena grandes contingentes dessepúblico infanto-adolescente, no Brasile no mundo.Assim sendo, crianças eadolescentes não deveriam interessarao Direito e à política pública apenasquando integrass<strong>em</strong> especificamentegrupos determinados dos “excluídos”,“oprimidos”, “vitimizados”, “<strong>em</strong> riscosocial e pessoal”, “drogaditos”,“infratores”, “explorados no trabalho esexualmente”, etc. É preciso ir mais aofundo. Deveriam todos eles interessarantes como parte de um bloco contraheg<strong>em</strong>ônico,pelo simples fato deser<strong>em</strong> crianças e adolescentes e,portanto, como tal tratados pelo blocoheg<strong>em</strong>ônico como diversos, como20Mediação que afasta toda pretensãoideológica-conservadora de neutralidade eque parte do ponto de vista dos interesses edesejos das classes trabalhadoras e dosgrupos vulnerabilizados e igualmentesubalternizados


33menores <strong>em</strong> direitos, como objeto deuma proteção tutelar e limitadora.A depender da resposta dessascrianças e adolescentes, <strong>em</strong> suarelação com a família, a justiça, apolícia, os conselhos tutelares, asigrejas, a escola, os órgãos deatendimento assistencial, entre outros,eles ganham rótulos e sãocategorizados no processo de triag<strong>em</strong>próprio desses sist<strong>em</strong>as de regulaçãosocial.A Lógica da Reação Social <strong>em</strong>Detrimento da EssencialidadeHumana e da Identidade GeracionalNesse prisma específico, aanálise da situação de dominaçãoadultocêntrica reenvia ao t<strong>em</strong>a da“reação social”, inicialmente informaldifusada sociedade e comunidade,depois formal-institucional do aparatoestatal. Essa reação social merececonsideração quando se pretendeaprofundar na construção do que <strong>aqui</strong>se chamou de novo Direito e novaPolítica.Reação social que, além domais, numa linha de radicalização,pode tornar-se “desviante e marginal”,arbitrária e violenta: por ex<strong>em</strong>plo, osarrastões, as institucionalizaçõesilegais, os procedimentos abusivos, aproibição sist<strong>em</strong>ática do ir e vir, 21 astorturas, os banimentos, o extermínio.Reação social pela qual oscomportamentos infanto-adolescentes,que se distanciam das normasprevalecentes no seu ambiente, sãoreprovados, rotulados/estigmatizados,condenados à vendeta social, quandonão expurgados violentamente(extermínio?).Por isso, quando se enfrenta aquestão da relação entreadultocentrismo e reação social, urgeconsiderar a lógica e a prática dosatores envolvidos, de ambos os ladosda ord<strong>em</strong> de geração – mundo adultoe mundo infanto-adolescente. Ou seja,é importante considerar a perspectivado segmento social dominado esubalternizado <strong>em</strong> face da norma e dosist<strong>em</strong>a de regulação social dos quaisse distancia e <strong>em</strong> face dessa reaçãosocial decorrente de taldistanciamento. Deve-se considerar aótica dos aparelhos de repressão,dentro dos sist<strong>em</strong>as de regulaçãosocial, diante da marginalização e domarginalizado. Isto é, igualmenteimporta <strong>em</strong> se considerar o itineráriosociobiográfico da criança ou do21 Leis estaduais ou municipais e portariasjudiciais chamadas de “toque de recolher,que nunca se pensou nelas mesmo no augeda vigência do Código de Menores e daPolítica do B<strong>em</strong>-Estar do Menor e no augedo período ditatorial militar no Brasil.


34adolescente. A maneira pelas quaiscrianças e adolescentes avaliam suacapacidade de operacionalizar suasnormas pessoais de referência ou asnormas do seu meio próximocircundante.Quando se enfrentam questões,por ex<strong>em</strong>plo, como a dos “garotosmichês” e das “garotas de programa”na exploração sexual-comercial e ados “aviõezinhos” no narcotráfico,importa levar-se <strong>em</strong> conta a lógicapeculiar deles, suas especiaisnecessidades sexuais, socioculturais efinanceiras, a normatização peculiardos seus guetos e o papeldesclassificante/reclassificante,normatizador e sancionador/protetorde seus pais e parentes, de policiais,de juízes e promotores, de seusadvogados, de professores, donamorado e companheiro, do cafetão,do pai de rua, do bicheiro, dotraficante, etc.Esse público infantoadolescentedeve ser chamado a“superar” essa condição de vidaconsiderada marginal, imoral, ilegal,não apenas moralisticamente a “negála”.Um menino ou uma menina quevivia da prostituição, mesmo deixandoessa forma de expressão sexual eprofissão, não poderão ter uma vidasexual igual a de outro adolescente desua mesma idade, mas que não viveuessa situação, de exacerbação dosseus desejos e necessidades: terão apartir de agora novas exigênciassexuais, socioculturais e financeirasque precisam ser consideradas. N<strong>em</strong>tampouco a eles se poderá ofereceralgum tipo de posto de trabalhorotineiro, repetitivo, desprazeroso, quelhe renda tostões e s<strong>em</strong> perspectivade crescimento, de trazer-lhesreconhecimento social acima dopadrão médio pequeno-burguês.Saídas Possíveis <strong>em</strong> face deum Processo AdultocêntricoNa interatividade entre indivíduoe agrupamento, encontra-se apossibilidade de sobreviver e resistir,mesmo no interior das relaçõesdominadoras e opressorasadultocêntricas. A galera e a turmacriam um “espelho”, onde esseadolescente pode olhar-se agora s<strong>em</strong>susto, elevando sua baixa autoestima.O “mundo lá fora”, os “outros” e suas“regras” passam a ser “careta”, isto é,incômodos, obsoletos e perigosos. Ummundo velho a impedir o surgimentodo novo, do “radical”. A solução estarána busca do "irado". Os funqueiros daFavela Tal, a turma da Rua Qual,aquela Galera de Rock-Garag<strong>em</strong>,


35aquele Grupo de Grafiteiros, osmeninos de rua liderados por Beltrano,os drogaditos ligados a Fulano,determinados michês, travestis eass<strong>em</strong>elhados, passam todos a sesentir fortes e reconhecidossocialmente, exclusivamente <strong>em</strong> seureduto, <strong>em</strong> seu agrupamento, que lhesreforça a autoestima construída nessa“rede de relações entre pares”; mas areforçar também o sentido deexclusão, apartação, subalternização edominação. A partir desse sentido depertença ao agrupamento e desseautorreconhecimento social no seio dogrupo dominado, produz-se umacultura própria a ser considerada.Uma arte peculiar, por ex<strong>em</strong>plo,que se torna instrumento operacionalda superação da crise vivida peloadolescente, mas um instrumentooperacionalizador também dessedistanciamento da norma e decontestação ao sist<strong>em</strong>a de regulaçãosocial. Igualmente de integração maisradical e permanente do adolescente àsua galera, gangue, etc. Assim sendo,por essa “cultura marginal”, passamtambém os processos de neutralizaçãoda marginalidade e de ascensão sociale de reconhecimento social dasociedade como um todo, inclusive dopróprio Sist<strong>em</strong>a, antes negado e doqual se desviou o adolescente e suagalera. Essa transformação passa, porex<strong>em</strong>plo, pelo grafite, hip-hop, funk,rap, pagode, história <strong>em</strong> quadrinhos,banda-garag<strong>em</strong>, e pela moda.Em conclusão:Não há caminho melhor no processopedagógico para produzir essa’transformação’ do que a introduçãodos conceitos e das práticas de arte,cultura, beleza – minha prática noâmbito da educação e da arte leva-mea afirmar que a convivência com aestética é um direito fundamental dacriança e do jov<strong>em</strong>, qualquer seja suasituação existencial. (LA ROCCA,1998).Alternativas Castradoras ouEmancipadorasQuando se trata de enfrentar aprobl<strong>em</strong>ática da dominação eopressão(discriminação,adultocêntricanegligenciação,exploração e violência) da infância eda adolescência (a lhes fazer abortadaa cidadania), até o momento, umadúvida <strong>em</strong> princípio v<strong>em</strong> à mente,diante do quadro geral da efetivaçãoda normativa legal e daoperacionalização das políticas e dasações públicas no Brasil:a) As crianças e os adolescentes,quando marginalizados, estarãocondenados, s<strong>em</strong> alternativa, àsolidão, aos guetos ou à morte?b) Qualquer solução terá de virnuma linha soterista-messiânica


36(salvadora), a partir de fora e decima – como uma outorga, umasalvação, uma redenção,marcada pelo sinete do perdãoabastardador e alienador? Teráde vir numa linha puramenteassistencialista/repressora etutelar, desconsiderando acondição de cidadania dessacriança e desseadolescente?Ou só seriapossível uma respostarepressora, violenta e arbitráriado Estado e da sociedade como ideológica justificativa darepressão à violência decrianças e adolescentes“desviante-marginalizados”?d) Dev<strong>em</strong> eles se tornar tambémobjeto de incidência do discurso eda prática daquele chamado“desvio institucional”, imputável aospróprios organismos oficiais deregulação social (arrastões,constrangimentos ilegais, torturas,extermínios, etc.?Há de existir alternativa. Assim,além do imprescindível atendimentopúblico tradicional pelas políticassociais (educação, saúde, cultura,habitação e especialmente daassistência social), a luta contra asrelações adultocêntricas deve ser vistacomo uma questão de garantia,promoção e proteção de direitoshumanos.Reconheça-se,preliminarmente, que se dev<strong>em</strong> tratartodas as crianças e todos osadolescentes, e a cada um deles, <strong>em</strong>respeito à sua essencialidade humanacomo sujeitos de direitos e <strong>em</strong> respeitoà sua identidade geracional comopessoas <strong>em</strong> condição peculiar dedesenvolvimento. Isto é, criançacidadãoe adolescente-cidadão queprecisam de pessoas e grupos,responsáveis pela promoção e defesados seus direitos à participação, àproteção, ao desenvolvimento e àsobrevivência; mas eles própriostambém responsáveis por seus atos,por sua vida.Não é preciso que a proteçãodessa pessoa <strong>em</strong> desenvolvimento,como sujeito de direito, torne-seexercício de um poder arbitrário da suafamília, da sua comunidade, dasociedade <strong>em</strong> geral ou do Estado. Nãose protege uma pessoa como seprotege um pequeno animal feroz eperigoso, esquecendo-se que ele, dequalquer maneira, é um ser que já t<strong>em</strong>todos os direitos de um cidadão ecomo tal deve ser tratado; revertendoseo processo de abortamento da suacidadania.Eles não precisam de proteçãointrinsecamente, mas sim <strong>em</strong>


37determinadas circunstâncias,situações, condições, momentos: asnecessárias limitações ao exercício deseus direitos dev<strong>em</strong> ser entendidascomo estratégias para garantir aplenitude desses direitos. Isto é, limitasea autonomia deles para assegurar aplenitude da sua cidadania, e não paratorná-los menos-cidadão, cidadãos desegunda classe.2 POSSÍVEIS CENÁRIOS EMCONSTRUÇÃO: AS AÇÕESAFIRMATIVAS COMO FORMASDE AÇÃO CONTRA-HEGEMÔNICAA resiliênciada promoção da “resiliência”, comopotencial humano de passar porexperiências adversas sucessivas,s<strong>em</strong> comprometimento da capacidadede superar esses percalços, de fazerb<strong>em</strong> as coisas e resgatar a própriadignidade. Promover a resiliência dacriança e do adolescente significafazer com que ele consiga construirseu sentido de vida e das coisas, seulugar no mundo, no presente e,principalmente no futuro.Cenise Vicente:Como dizA resiliência é um fenômenopsicológico construído e não tarefa dosujeito sozinho; as pessoas resilientescontaram com a presença de figurassignificativas, estabeleceram vínculos,seja de apoio, seja de admiração; taisexperiências de apego permitiram odesenvolvimento da auto-estima eautoconfiança. (VICENTE, 1999, p. 7).A criança e o adolescente, <strong>em</strong>si, já carregam uma carga denegatividade muito forte, que lheimpõe a ord<strong>em</strong> social adultocêntrica eque acabam assumindo. Importante setorna, então, a focalização estratégicapositiva nos direitos e naspossibilidades práticas de suaexigibilidade. Com essa posturapositiva, abandonamos, também, adescrença que nasce do “modelo dodano” (tanto dos atores oprimidosdominadosquanto dos agentespúblicos que com eles lidam) <strong>em</strong> favorParticipação Proativa <strong>em</strong>Construção, como Estratégia deEmpoderamento e Forma de AçãoContra-Heg<strong>em</strong>ônica contra oAdultocentrismoEsse fortalecimento da reflexãoe da atuação da criança e doadolescente forçosamente nos levaráao ponto mais importante nesseprocesso de construção de cenáriosmais favoráveis aos processos deextensão da cidadania da criança e doadolescente, à superação do modelo


38adultocêntrico e à formulação dessapolítica de direitos humanos: apromoção da sua participação proativana vida social <strong>em</strong> geral eparticularmente no planejamento e nodesenvolvimento das estratégias desua integração social, fortalecendoneles um sentido de <strong>em</strong>powermentcomo estratégia de potencialização doseu protagonismo social comometodologia para a garantia do seudireito de ser ouvido e de ter suaopinião considerada conforme aConvenção sobre os Direitos daCriança, artigo 12, 2:“[...] à criança será, <strong>em</strong> particular,dada a oportunidade de ser ouvida <strong>em</strong>qualquer procedimento judicial ouadministrativo que lhe diga respeito,diretamente ou através de umrepresentante ou órgão apropriado,<strong>em</strong> conformidade com as regrasprocessuais do direito nacional.”(ONU, 1990).As crianças e os adolescentes,de um lado, não pod<strong>em</strong> ser “massa d<strong>em</strong>anobra”, manipulados por seusdominadores. De um lado, não pod<strong>em</strong>ser chamados a participar apenasreativamente, como forma delegitimação de um formalista“protagonismo social” ou de uma falsaparticipação, ouvindo-lhes as opiniões,às vezes, mas s<strong>em</strong> as considerar. Ounão pod<strong>em</strong>, de outro lado, ser<strong>em</strong>deslocados para espaços meramentee equivocadamente “lúdicos” 22 eapartado. Fazendo com que elespercam sua capacidade de incidênciasobre os espaços e mecanismos dediscussão e ação política, sobre seusinteresses, desejos e necessidades:fazê-los “brincar de casinha deboneca” simbolicamente, d<strong>em</strong>arcandopreconceituosamente espaços <strong>em</strong>ecanismos do mundo adulto e domundo infanto-adolescente, s<strong>em</strong>pontes e s<strong>em</strong> parcerias.Diante dessas duas opçõesdeformantes da participação infantoadolescente,é preciso evitar que, <strong>em</strong>certas circunstâncias (no caso deconferências, de s<strong>em</strong>inários eencontros t<strong>em</strong>áticos e outros tipos deevento, promovidos pelo governo oupela sociedade civil), crianças eadolescentes particip<strong>em</strong> apenas d<strong>em</strong>aneira reativa ou decorativa.Nessas circunstâncias, os“adolescentespseudo-adultos”(miniadultos!?) são levados a umprotagonismoindividualista,descolados que ficam da suaidentidade geracional e da suainserção <strong>em</strong> organizações próprias erepresentativas. São atoresprotagônicos,ao modelo teatral e22 Como se a ludicidade pudesse ficar ausentedo atuar humano, de modo geral, como seética e estética foss<strong>em</strong> campos separados.


39cin<strong>em</strong>atográfico, treinados para tal pordeterminados líderes societários oupor seus pais/parentes, com discursosrepetitivos e cheios de jargões; sãocrianças e adolescentes “prodígios”,que não consegu<strong>em</strong> formatar umdiscurso próprio e autônomo.Ou de outro lado, deve-se evitarigualmente que seus mecanismos desobrevivência e resistência aosprocessos de dominaçãoadultocêntrica sejam usados <strong>em</strong>anipulados (inclusive por elespróprios!) como forma de defesa noambiente adulto, principalmentenaqueles espaços de caráteradultocêntrico (explícito ou aparente),onde predominam as falas oudiscursos técnicos, científicos epolíticos nitidamente competenteexclusores,antagônicos ao saberpopular e não científico-formal: oscondenáveis juridicês, economês,biologicismo-higienista,sociopsicologista, de caráter elitista ecorporativista, etc.Por ex<strong>em</strong>plo, o mecanismo daguetificação 23 e do uso exclusivo dalinguag<strong>em</strong> de gueto quando essesatores ou só aceitam falar e atuarexclusivamente <strong>em</strong> seus guetosformais. Ou quando aceitam participarde ambientes imaginados hostis (omundo adulto, visto simplificadamente)o faz<strong>em</strong> de maneira defensiva, usandocomo forma de comunicaçãocodificada a linguag<strong>em</strong> do seu gueto,s<strong>em</strong> tentar construir pontes, n<strong>em</strong>assumir compromissos de luta política.Como conciliar a comunicaçãonecessária nascida da sua essênciahumana com a linguag<strong>em</strong> própria dasua diversidade identitária de geração(e mais, de gênero, raça, orientaçãosexual, localização geográfica, etc.).Não se nega a validade dalinguag<strong>em</strong> do gueto, da comunicaçãocodificada/s<strong>em</strong>iótica 24 quando se estácircunstancial e conjunturalmente noseu gueto e se constrói, ali, com a falasentido de pertença: realmente não hácomo se condenarindiscriminadamente a vivência <strong>em</strong>guetos quando o chamado mundo láfora é realmente hostil. Porém, aguetificação é meio, estratégia de luta,e não um fim <strong>em</strong> si mesmo, masnunca como forma de alienação eanestesiamento de suas lutas porreconhecimento, respeito e libertação.23 Formação de blocos ou espaços isolados deiguais, de pessoas que se un<strong>em</strong> <strong>em</strong> guetospara sua proteção e livre explicitação de suadiversidade identitária (por ex<strong>em</strong>plo, racial,sexual, cultural, etc.).24 S<strong>em</strong>iótica = construção e uso de signos,símbolos, sinais, como forma de expressão ede comunicação.


40Os líderes infanto-adolescentesque foram lançados à vivência <strong>em</strong>guetos (prostitutos, gays, travestis,ciganos, meninos de rua, drogaditos,infratores, abrigados, negros, etc.)precisam aceitar construir as pontescom o resto da sociedade organizada,para possibilitar que sejaminstrumentos de “mediatização”, 25 istoé, defender os desejos, interesses enecessidades do seu grupo,vulnerabilizado <strong>em</strong> seus direitos. Paraisso, precisam fazer cessar a cantilenainterminável e falsa de que o único<strong>em</strong>pecilho para a luta no meio dasociedade e do aparelho estatal é a“linguag<strong>em</strong>”, quando, na verdade,falta-lhes um processo deconscientização de suasnecessidades, desejos e interesses ede explicitação tática, de alguma formaformulando esse discurso próprio <strong>em</strong>termos identitários, mas comunicantese inteligíveis minimamente.Capacidade para intervir<strong>em</strong>têm, quase s<strong>em</strong>pre, crianças eadolescentes nesses espaços deconstrução do social; mas às vezes,falta-lhes capacitação <strong>em</strong> certosconhecimentos e treinamento <strong>em</strong>certas habilidades, para qualificar e25No sentido restrito e específico dopensamento marxiano: mediar <strong>em</strong> favor deum dos polos <strong>em</strong> conflito.fortalecer essa atuação/comunicação,como evolução da sua capacidade oudesenvolvimento. É preciso, pois,discernir entre o processo natural dedesenvolvimento, de evolução dacapacidade desses adolescentes edessas crianças, com o processoconstruído de desenvolvimento desuas competências políticas,científicas, técnicas (formação,educação, etc.).A quantidade e qualidade dasoportunidades de participação naresolução das situações reaisinfluenciam os níveis de autonomia ede autodeterminação que eles serãocapazes de alcançar também na vidapessoal, familiar, profissional, cívica,social [...] passa a ter diante de si umaoportunidade de ‘mobilizar’ <strong>em</strong> favorde uma causa, <strong>em</strong> favor de uma vidamelhor, <strong>em</strong> níveis profundos, comouma opção de natureza pessoal, quelhe é fonte de prazer, de gratificação,de sentido de auto-realização.(NOGUEIRA NETO, 1998a).Discriminações PositivasPor fim, constat<strong>em</strong>-se ainda: assituações de negligência, exploração,violência, opressão e particularmentede discriminação, a que estãosubmetidos crianças e adolescentes,exacerbados por uma situação oudesvantag<strong>em</strong> social (<strong>em</strong> função daraça, etnia, gênero, sexo, morbidade,pobreza extr<strong>em</strong>a), ou vulnerabilidade(exploração sexual, abandono,


41exploração no trabalho), ou conflitocom a lei (infração), justificam quantosuficiente são “discriminaçõespositivas” <strong>em</strong> favor deles, com açõesafirmativas que compens<strong>em</strong> essequadro maligno desencadeador oupotencializador da dominaçãoadultocêntrica.Contra-Heg<strong>em</strong>onizaçãoPolítica e JurídicaNesse ponto de reflexão,interessa aprofundar a discussãoespecificamente sobre a contraheg<strong>em</strong>onizaçãopolítica e jurídica, <strong>em</strong>favor dos segmentos geracionaissubmetidos a esse processo dedominação, <strong>em</strong> nossa conjuntura, maisparticularmente crianças eadolescentes. É imprescindível que secreia que o Direito t<strong>em</strong> um podertransformador maior do quetradicionalmente se atribui a ele, <strong>em</strong>nosso meio, ainda muito marcado porum “substancialismo jurídico” (GARCÍAMÉNDEZ, 1998).É imprescindível, além disso,que se creia que as políticas deEstado têm igualmente podertransformador, talvez menor do quetradicionalmente se atribui, poucomarcado ainda pela ideia de que aformulação e o desenvolvimentodessas políticas estatais faz<strong>em</strong> partede um processo sociopolítico maisamplo, meta-estatal, <strong>em</strong> que aspredefinições políticas nasc<strong>em</strong> dopróprio povo organizado, comcapacidade de incidência sobre essaspolíticas públicas.Um Direito formulado pelospoderes do Estado é mais amplo eprofundo que a lei que o reflete, masnão o esgota. De outro lado, um maisamplo conceito de Direito, insurgente(LYRA FILHO, 1988) do meio dasociedade, é mais profundo e maislegítimo que aquele citado Direitoestatal e, por consequência, que a lei.3 CONTEXTO INSTITUCIONAL DOSISTEMA DE GARANTIA DOSDIREITOS HUMANOS DACRIANÇA E DO ADOLESCENTECOMO JUSTIFICATIVA PARAFORMULAÇÃO DE UMAPOLÍTICA TRANSFORMADORA EEMANCIPADORA, EM FAVOR DAINFÂNCIA E ADOLESCÊNCIAA formulação e o planejamentodessa política específica tambémdepend<strong>em</strong> da análise do contextopolítico-institucional sobre o qual elavai incidir, <strong>em</strong> que se levante, analisee avalie sua inserção numa ambiênciasistêmico-holística, ou seja, sua


42inserção <strong>em</strong> um “sist<strong>em</strong>a de garantiados direitos humanos da criança e doadolescente”, 26 no âmbito do Estado eda sociedade, <strong>em</strong> que se articulará ese integrará.Conceituação e rotulaçãoA tradição do direitointernacional dos direitos humanosleva-nos à utilização da já consagradaexpressão "promoção e proteção dosdireitos humanos", para se qualificaros ordenamentos, normativo e políticoinstitucionalinternacional. É só conferiros textos de convenções, acordos,declarações e outros documentosinternacionais ou multinacionais arespeito. É só conferir, além disso, afarta doutrina científica(multidisciplinar/multidimensional) 27sobre os direitos humanos no mundo.É só conferir, finalmente, o já criado eimplantado <strong>em</strong> termos de instituições <strong>em</strong>ecanismos quando se fala dossist<strong>em</strong>as internacionais e regionais depromoção e proteção dos direitoshumanos e de seus órgãos integrantes(ONU, Unicef, Unesco, OIT, OMS,OEA, Corte Internacional de Haia,26 Expressão consagrada na Resolução n.º113 da Conanda.27 No campo da História, da Filosofia (Ética),da Sociologia, da Antropologia, da CiênciaPolítica e da Ciência do Direito, por ex<strong>em</strong>plo.Tribunal Penal Internacional, CorteInteramericana de Direitos de SãoJosé da Costa Rica, Alto Comissariadopara os Direitos Humanos e seuComitê para os Direitos da Criança,Conselho Internacional dos DireitosHumanos, entre outros).Com a ratificação dos diversosinstrumentosnormativosinternacionalistas a respeito do t<strong>em</strong>a, 28países no mundo inteiro têm adequadoseu ordenamento jurídico e seuordenamento político-institucional,internos, aos paradigmas éticopolíticose aos princípios jurídicos dosdireitos humanos. Assim se v<strong>em</strong>fazendo no Brasil com a ratificação detoda normativa internacional sobredireitos humanos, por ex<strong>em</strong>plo, com aratificação da Convenção sobre osDireitos da Criança.Mesmo a Constituição Federalbrasileira de 1988, <strong>em</strong> seu artigo 24,XV e no parágrafo 1.º do mesmoartigo, antecipando-se à Convenção(aprovada pela ONU <strong>em</strong> 1989 eratificada pelo Brasil <strong>em</strong> 1990), prevê acriação de uma “legislação deproteção da infância e da juventude"(BRASIL, 2010, grifo nosso), comnormas gerais federais e normasespecíficas editadas concorrent<strong>em</strong>ente28 Cf. ANEXO com quadro dessa normativainternacional.


43pela União e pelas UnidadesFederativas. Determina no artigo 227,parágrafo 3.º, I a VII, que, <strong>em</strong>determinadas circunstâncias deviolação de direitos, crianças eadolescentes faz<strong>em</strong> jus a uma"proteção especial". Posteriormente, oEstatuto da Criança e do Adolescente(BRASIL, 1990) diz, no seu artigo 1.º,que é seu objetivo dispor sobre a“proteção integral” de crianças eadolescentes. Aí a expressão“proteção” é tomada como sintética econtrata, de relação à expressãoanalítica e expandida, “garantia,promoção e proteção de direitoshumanos”.Porém, no Brasil, os que lutampelos direitos da criança e doadolescente, geralmente, têm certaresistência(mesmoinconscient<strong>em</strong>ente) ao uso daexpressão "promoção e proteção dedireitos", preferindo a forma sintéticocontratade "garantia de direitos", numsentido amplo, genérico. Ou mesmode "atendimento dos direitos,"expressão a-técnica, consagrada noEstatuto da Criança e do Adolescente(BRASIL, 1990, art. 86).Assim sendo, usar-se-ão <strong>aqui</strong>as três expressões, sinonímica econcomitant<strong>em</strong>ente: “garantia dedireitos humanos”, “promoção &proteção de direitos humanos” e“garantia, promoção e proteção dedireitos humanos”.Isoladamente, a expressão“garantia de direitos humanos” deveriaser usada como gênero, no seusentido ampliado, abrangendo asespécies da “promoção e da proteçãode direitos humanos” e do “controle”sobre esses dois eixos citados.A expressão “promoção dosdireitos humanos” isoladamente seusaria no sentido da criação decondições político-institucionais para arealização/efetivação dos direitos, a sefazer principalmente por meio dodesenvolvimento das políticas públicas políticas sociais, institucionais,infraestruturantes e econômicas.Por sua vez, a “proteção dedireitos (humanos)”, isoladamente,também se usaria como acesso àJustiça, para responsabilização dosvioladores e para a defesa 29dosviolados, no caso de violação ouameaça a esses direitos infantoadolescentes,por meio da política29 Pede-se a atenção para o fato de que a“defesa dos violados” e a “responsabilizaçãodos violadores” não deveriam ser vistos(como t<strong>em</strong> acontecido) como duas outrasespécies de garantia de direitos, no mesmonível da “proteção e da promoção dedireitos”; mas sim como uma subespécie daproteção de direitos.


44judicial e público-ministerial 30 esubsidiariamente das políticaspúblicas.Desse modo, a expressão maisampla proposta de “garantia,promoção e proteção de direitoshumanos” 31 consegue abarcar ogênero e suas duas espécies.De qualquer maneira, oessencial é que a normatizaçãojurídica das relações geracionais sejavista como parte integrante dasesferas do direito internacional dosdireitos humanos e do direitoconstitucional brasileiro (maisespecificamente da sua teoria geraldos direitos fundamentais) como umaespecialização desses dois ramos doDireito.Todavia, t<strong>em</strong>-se evitado,algumas vezes, entre nós a expressão"promoção e proteção de direitos",isoladamente, para evitar confusãocom as velhas doutrinas ou teorias da30 Por força da Emenda Constitucional n.º 45,que prevê a existência dessas políticas, sobresponsabilidade do Conselho Nacional deJustiça (CNJ), do Conselho Nacional doMinistério Público (CNMP) e dos órgãos daadministração superior do Poder Judiciário edo Ministério Público (federal, estadual edistrital).31 A proteção de direitos implica tanto a defesade qu<strong>em</strong> t<strong>em</strong> seu direito violado (chamadovítima) como a responsabilização doviolador.proteção tutelar 32(incluída nessas achamada "doutrina da situaçãoirregular", dominante no passado nocone sul da América Latina). Doutrinastutelaristas essas que utilizavamparticularmente a expressão“proteção” num sentido deformado, dedominação, castração da cidadania,coisificação, submissão ao mundoadulto, numa perspectiva puramenteadultocêntrica.De qualquer maneira, aexpressão “garantia de direitos”, noseu sentido ampliado, t<strong>em</strong> prevalecido<strong>em</strong> nosso meio, merecendo suaconsagração pela normativaoperacional básica a respeito, como aResolução n.º 113 do Conanda. Essaúltima expressão igualmente t<strong>em</strong> afavor do seu uso no Brasil acircunstância de que o textoconstitucional pátrio a consagra(BRASIL, 2010, art. 5.º) quando setrata de assegurar, por mecanismos deexigibilidade específicos (“garantiasconstitucionais”), a efetividade dosdireitos civis, políticos, econômicos,sociais e culturais dos cidadãos,incluindo-se crianças e adolescentesobviamente. Por conseguinte, quandose falar <strong>em</strong> “garantia de direitos” de32 Doutrinas científicas no campo do Direito,das Ciências Sociais, da Psicologia,Pedagogia, Ciência Política, entre outras.


45maneira simplificada, poder-se-á usarigualmente a expressão “garantia,promoção e proteção de direitos” comosinônima.Por fim, presume-se que,quando se agregar, além disso, otermo “defesa de direitos”, entenderse-áque se está querendo colocarmais foco na linha da proteção dedireitos, particularmente nas ações dedefesa (proteção jurídico-social) decrianças e adolescentes com direitosviolados e ameaçados. Significa quenão se quer dar igual destaque àsações de responsabilização judicial(penal e não penal) e não judicial dosvioladores de direitos? Fica <strong>aqui</strong> adúvida.Registrando a História RecenteÉ de se l<strong>em</strong>brar rapidamente opassado recente para melhor seentender: (a) a reflexão, no Brasil, <strong>em</strong>torno dos instrumentos, instânciaspúblicas e mecanismos de garantia,promoção e proteção (= defesa +responsabilização) de direitoshumanos <strong>em</strong> favor da infância eadolescência e da juventude (jovensadultos);(b) a reflexão <strong>em</strong> torno danecessidade de se construir umdiscurso e uma prática sobre aarticulação política ampla e aintegração operacional pontual dessesmecanismos <strong>em</strong> rede, dentro de umaambiência sistêmica.Tal discussão sobre essest<strong>em</strong>as na área da infância eadolescência, b<strong>em</strong> como de outrosgruposvulnerabilizados(afrodescendentes, mulheres, povosindígenas, segmentos LGBTT, idosos,pessoas com deficiência e outros), erafeita, de maneira sist<strong>em</strong>ática e aindatímida, <strong>em</strong> 1991, por ex<strong>em</strong>plo, noNúcleo de Estudose Pesquisas Direito Insurgente (Nudin)<strong>em</strong> Salvador. 33Essa reflexão e seusprodutos 34 eram apresentados <strong>em</strong>termos amplos quando se discutia apromoção e proteção dos direitoshumanos de determinados gruposvulnerabilizados ou das entãochamadas “minorias políticas” (negros,33Organização não governamental deestudos, pesquisas e ação social, formadapor professores e alunos, associados, daFaculdade de Direito da UniversidadeFederal da Bahia (UFBA), que atuava nocampo dos Direitos Humanos especiais degrupos vulnerabilizados (“minorias políticas”),integrando a Rede dos Núcleos de Estudosdo Fórum Nacional DCA. O Nudin, à época,desenvolvia atividades acadêmicas deextensão para a cadeira Direito InternacionalPúblico da UFBA, como parte daorganização social Fundação FaculdadeLivre de Direito da Bahia.34 Apostilas do Curso de Pós-Graduação (latusensu) <strong>em</strong> Direito Constitucional da Criança(Cooperação Nudin, Unicef, CBIA e aFundação Faculdade Livre de Direito daBahia), 1990: textos de Wanderlino Nogueira(Org.), Vera Leonelli, Carlos Vasconcellos,Maria Auxiliadora Minahim et al.


46mulheres, minorias eróticas, crianças,adolescentes e jovens). Naquelaoportunidade, <strong>em</strong> especial, procuravaseinserir nesse contexto geral dosdireitos humanos o recém-editadoEstatuto da Criança e do Adolescentee a recém-ratificada Convenção sobreos Direitos da Criança.Posteriormente, o Centro DomHelder Câmara de Estudos e AçãoSocial (Cendhec), no Recife, <strong>em</strong> seuss<strong>em</strong>inários de avaliação eplanejamento, <strong>em</strong> parceria com a Savethe Children Fund (Reino Unido),aprofundou mais essa reflexão, dandodestaque, específica e parcialmente,ao que se chamou de “Sist<strong>em</strong>a deGarantia dos Direitos da Criança e doAdolescente”; 35 s<strong>em</strong>, porém,abandonar a discussão sobre o campogenérico da promoção e proteção dosdireitos humanos (CABRAL et al.,1993).Essa discussão logo se amplioupara o âmbito da Associação Nacionaldos Centros de Defesa da Criança edo Adolescente (NOGUEIRA NETO,35 Interessava, naquela ocasião, no Cendhec,discutir, mais específica eaprofundadamente, a posição dos centros dedefesa da criança e do adolescente, comointegrantes do “eixo da defesa de direitos”(ou garantia de direitos, no sentido estrito) ecomo entidades de defesa responsáveis pela“proteção jurídico-social” de crianças eadolescentes com direitos violados (BRASIL,1990, art. 87, V).1998b) e <strong>em</strong> seguida chegou aoConanda, que a consagrou <strong>em</strong> umaConferência Nacional dos Direitos daCriança e do Adolescente (1999);usando-se, daí <strong>em</strong> diante, a expressão“garantia de direitos”, amplamente,como sinônimo de “promoção eproteção de direitos”, abrangendo esseúltimo binômio.A partir daí, muito se produziude doutrina a respeito da matéria,especialmente por fomento eprovocação da Associação Brasileirados Magistrados e Promotores daInfância e Juventude (ABMP), doFundo das Nações Unidas para aInfância (Unicef) e do próprio Conanda– tudo isso ainda s<strong>em</strong> umasist<strong>em</strong>atização completa, s<strong>em</strong> que seconstruíss<strong>em</strong> certos consensosmínimos a respeito dos marcosteóricos, que só o t<strong>em</strong>po e o debateassegurarão. No momento, ainda hámaior preocupação na configuraçãofísica estrutural-funcionalista dosist<strong>em</strong>a (e, portanto, no desenho dediagramas didáticos) do que na suaessencialidade 36e sinergia interna eexterna (articulação e integração, adintra et ad extra).36 Por ex<strong>em</strong>plo, os marcos referenciais domultiprofissionalismo,damultidisciplinaridade, da intersetorialidade eos paradigmas sistêmicos autopoiéticos eholísticos (cf. LUHMANN, 1989).


47O Espírito da Época noPassado e a Atual DogmáticaJurídicaEm verdade, o Estatuto daCriança e do Adolescente, <strong>em</strong> nenhummomento, é suficient<strong>em</strong>ente claroquanto a esse “sist<strong>em</strong>a de garantia dedireitos”: trata-se mais de umainferência, especialmente nos artigos86 a 90, e de uma transposição dosmodelos internacionais e regional(interamericano). Esse sist<strong>em</strong>a nasc<strong>em</strong>uito mais do espírito da Convençãodo que propriamente do texto doEstatuto. 37Outras legislações deadequação à normativa internacional(Convenção sobre os Direitos daCriança) de outros países, posterioresao Estatuto brasileiro, foram maisclaras e explícitas, pois aproveitaram ot<strong>em</strong>po posterior de rica discussão no37 Não se pode deixar de registrar que esseenfoque, no sentido da conformação aomodelo internacional/regional, já eraadvogado por alguns participantes domovimento de luta pelos direitos da criança edo adolescente que se <strong>em</strong>penhavam, deinício, pela formulação do Estatuto citado epela sua efetivação posteriormente: porex<strong>em</strong>plo, Aninna Lahalle, Maria JosephinaBecker, Césare de Florio La Rocca, Yves deRoussan, Emílio Garcia Mendes, IreneRizzini, Jaime Benvenuto, Valdênia Brito eoutros.mundo, pós-edição da Convenção,como o Paraguai. 38À época da edição do Estatuto(1990), a reflexão sist<strong>em</strong>ática sobreinstrumentos e mecanismos degarantia, promoção e proteção dedireitos humanos no Brasil não tinhaalcançado o alto nível que alcançounos dias de hoje: intuía-se anecessidade de “a-tecnicamente”“atender direitos”, num esforçolouvável para se superar o velhoparadigma do “atendimento denecessidades básicas”, acolhendo-seo novo paradigma da “garantia epromoção/proteção de direitoshumanos”.Em verdade, a própriadiscussão ampla sobre direitoshumanos no Brasil e sobreinstrumentos, instâncias públicas <strong>em</strong>ecanismos de efetivação dessesdireitos humanos ainda era incipienteentre nós. 39 Especialmente comomarco referencial jus-humanista para anormalização,formulação,coordenação e execução tanto de umapolítica pública institucional autônomano âmbito do Poder Executivo quantode uma política judicial de acesso à38 A nova lei paraguaia começa com capituloreferente ao sist<strong>em</strong>a de garantia de direitos.39 Entre nós, no passado, as forças maisprogressistas viam o discurso dos direitoshumanos como caudatário do discurso sobrecidadania, numa linha neoliberal burguesa.


48Justiça no âmbito do Poder Judiciárioe do Ministério Público.Mesmo assim, não se podenegar que o Estatuto dispõeinquestionavelmente sobre garantia,promoção e proteção de direitos dainfância e juventude, isto é, ele foipromulgado como norma reguladorados artigos 227 e 228 da Constituiçãofederal. Consequent<strong>em</strong>ente, ele t<strong>em</strong>de ser considerado como uma normade “garantia, promoção e proteção dosdireitos humanos”, especificamente decrianças e adolescentes, uma vez queesses dispositivos citados da CartaMagna têm essa natureza,equiparados que são ao artigo 5.º daCarta Magna 40 , compl<strong>em</strong>entados pelasnormas da Convenção sobre osDireitos da Criança. 41 Desse modo,dever-se-á interpretar o Estatuto pelosprincípios e diretrizes da teoria geraldos direitos fundamentais (direitoconstitucional brasileiro) e do direitointernacional dos direitos humanos;fazendo-se uma interpretaçãosist<strong>em</strong>ática dos seus dispositivos, <strong>em</strong>harmonia com as d<strong>em</strong>ais normasdesses campos do Direito, tanto naord<strong>em</strong> jurídica nacional quantointernacional.Ex<strong>em</strong>plificando com aOperacionalização dos Mecanismosde Promoção e Proteção dosDireitos de Crianças e Adolescentes<strong>em</strong> EspecialPor ex<strong>em</strong>plo, quando seprocura enfrentar a chamada "violênciasexual contra crianças e adolescentes"(ou seja, o abuso e a exploraçãosexual-comercial), 42 não se deveriarestringir às intervenções públicasexclusivamente, apenas àresponsabilização penal dosabusadores e exploradores sexuais maniqueistamente. Também sedeveria assegurar, simultânea earticuladamente: (1) o atendimentomédico e psicossocial do(a)abusado(a) e do(a) explorado(a), <strong>em</strong>serviços ou programas especializados;(2) sua inclusão com sucesso naescola; (3) seu atendimentoespecializado por serviços do Sist<strong>em</strong>aÚnico de Saúde; (4) a inclusão da suafamília (ou dos próprios beneficiários,40 O artigo 1.º do Estatuto citado deixa issomeridianamente claro e, <strong>em</strong> função disso,t<strong>em</strong>-se sustentado <strong>em</strong> certas ocasiões queos artigos 227 e 228 da Constituição dev<strong>em</strong>ser equiparados a “cláusulas pétreas”.41 Tratado reconhecido pela ONU como depromoção e proteção de direitos humanos.42 Evita-se <strong>aqui</strong> o uso impróprio da expressão“pedofilia”, que, na verdade, tecnicamente,no campo próprio da saúde mental, é umdistúrbio mental, um transtorno obsessivocompulsivo, uma parafilia, uma perversãosexual, portanto t<strong>em</strong> sentido b<strong>em</strong> restrito (cf.LIBÓRIO, 2010).


49conforme a idade) <strong>em</strong> programassocioassistenciais; (5) ou <strong>em</strong>programas de erradicação do trabalhoinfantil (especialmente, os deeliminação imediata de piores formasde trabalho), entre outras ações.Acrescente-se que, nessescasos de violência sexual, deve-seassegurar um eficiente e eficazmonitoramento e avaliação (=controle), tanto das intervençõesjurídico-judiciais ("acesso à justiça") 43quanto desse atendimento direto pelaspolíticaspúblicas,administrativamente. 44 A mera eisolada responsabilização penal dosvioladores, geralmente, leva à“revitimização” da criança ou doadolescente com seus direitos sexuaisviolados.A visão reducionista dapromoção e proteção de direitoshumanos, que a faz se esgotar nalinha exclusivamente naresponsabilização penal do violador,no campo jurídico-judicial, igualmente,pode levar a um43 Pelas respectivas Corregedorias, ConselhosSuperiores e Ouvidorias, do Poder Judiciário,do Ministério Público, da Defensoria Pública,etc.44 Conselhos dos Direitos da Criança e doAdolescente, Fóruns de Entidades NãoGovernamentais, Fóruns t<strong>em</strong>áticos mistos,Tribunais de Contas, Congresso Nacional,Ass<strong>em</strong>bleias Legislativas e Câmara deVereadores.hiperdimensionamento da figura dojuiz dentro do sist<strong>em</strong>a de proteçãoespacial de direitos violados, <strong>em</strong>oposição a todo avanço que seconseguiu nesse ponto de relação àsrançosas doutrinas da proteção tutelar(dentre elas, a latino-americana"doutrina da situação irregular"),firmada na ideia do juiz-pai, do juizadministrador,do juiz-higienistaterapeuta.Não cabe ao juiz (econsequent<strong>em</strong>ente ao promotor, aodelegado de polícia, ao conselheirotutelar – mutatis mutandi) fazerindevidamente o papel de gestor(formulador, coordenador e executor)de políticas públicas. São resquíciosdessa visão reducionista, por ex<strong>em</strong>plo,os juízes que normalizam amplamente,por portarias, os que procuramdesenvolver diretamente serviços eprogramas públicos, os queconfund<strong>em</strong> controle judicial dos atosadministrativos com supervisãohierárquico-administrativa, os quetransformam conselhos tutelares <strong>em</strong>suas equipes multiprofissionais. Assim,esses magistrados esquec<strong>em</strong> seupapel primordial de prestadores dajurisdição, de "administradores dejustiça à população que delanecessita" papel indelegável e desupr<strong>em</strong>a importância para o


50funcionamento do sist<strong>em</strong>a <strong>em</strong> suatotalidade.Por sua vez, o oposto deve serigualmente condenado: a redução daproteção especial dos direitos dessascrianças e adolescentes submetidos aabusos e exploração sexual, deixandoexclusivamente ao atendimento direto<strong>em</strong> programas e serviços deassistência social, educação e saúde,s<strong>em</strong> a responsabilização jurídica (civil,penal, administrativo-disciplinar, etc.)dos violadores.Essa postura equivocada leva àimpunidade e à perpetuação do cicloperverso de violação de direitos. Ohiperdimensionamento dos programase serviços das políticas públicastambém t<strong>em</strong> suas mazelas e r<strong>em</strong>eteao assistencialismo, à filantropia, aohigienismo, à tutela – a satisfação denecessidades, desejos e interesses,s<strong>em</strong> a marca da qualificação dessasatisfação como proteção de direitoshumanos, é um retrocesso contra oqual se precisa igualmente lutar. Esseenfoque abastarda a vítima daviolência sexual, ao ter seu direito auma sexualidade livre e prazerosareduzido a um mero interesse a sertutelado, não como dever do Estado.(II) MARCOS REFERENCIAIS PARAFORMULAÇÃO DE UMA POLÍTICATRANSFORMADORAEMANCIPADORA EM FAVOR DAINFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA1 APROVAÇÃO, FORMULAÇÃO EPLANEJAMENTO DE POLÍTICASPÚBLICASGeneralidadesSegundo o parágrafo 7.º doartigo 227, combinado com o artigo204, ambos da Constituição Federal,tanto a “formulação das políticas”,quanto o “controle das ações <strong>em</strong> todosos níveis” dev<strong>em</strong> contar com a“participação da população”,obedecida a diretriz da“descentralização política eadministrativa”, <strong>em</strong> que compete a“coordenação e as normas gerais àesfera federal e a coordenação eexecução dos respectivos programasàs esferas estadual e municipal”, b<strong>em</strong>como às “entidades” de “atendimentode direitos da criança e doadolescente”, 45 ou melhor, de garantia,45 Nessa forma a-técnica utilizada no artigo 86do Estatuto da Criança e do Adolescente oucomo política de garantia, promoção eproteção de direitos humanos de crianças eadolescentes, como posteriormente sepassou a chamar por força de legislaçãoposterior e outras normas administrativasreguladoras (ver atrás a questão danomenclatura).E


51promoção e proteção de direitoshumanos de crianças e adolescentes.Posteriormente, adequando aord<strong>em</strong> jurídica infraconstitucionalàquele comando constitucional citado,o Estatuto da Criança e doAdolescente (ESTATUTO), definiu noartigo 88, II, que compete aosconselhos dos direitos da criança e doadolescente, <strong>em</strong> caráter deliberativo,controlar as ações <strong>em</strong> todos os níveis.Pouco t<strong>em</strong>po depois, a lei federal quecriou o Conselho Nacional dos Direitosda Criança (Conanda), <strong>em</strong> 1991,melhor adequando a normativainfraconstitucional a respeito, ampliaessa norma-regra do Estatuto, paraincluir ao lado da atribuição decontrolar ações, igualmente a deformular políticas, como previsto nodispositivo citado da Constituição (art.204, II).Nesse diapasão, ampliando asatribuições dos conselhos estaduais <strong>em</strong>unicipais, as leis locaiscorrespondentes passaram aconsagrar a “formulação de políticas” eo “controle de ações”, como as duasáreas centrais de incidência do poderdeliberativo desses conselhos públicosmulticitados; ao lado da “mobilizaçãoda opinião pública” (ECA, art. 88, VII,com nova redação dada pela LeiFederal n.º 12.010/2009).Assim sendo, compete àsnormas supl<strong>em</strong>entares 46 (federais,estaduais e municipais) quedetalhar<strong>em</strong> as normas gerais de“proteção integral” do Estatuto, àsnormas técnicas sobre gestão públicaconsagradas, à jurisprudência judiciale administrativa dominante e à boadoutrina definir, com mais precisão, oconceito de “formulação de política”,que raramente nossos comentaristasdo Estatuto enfrentam para além dasparáfrases; confundindo-se, algumasvezes, essa ação de formulação depolítica para sua aprovação final, comuma inexistente e excessivamenteampla “deliberação sobre as políticas”(sic!), s<strong>em</strong> respaldo nas normaslegais 47e técnicas, confundindo-se,desse modo, a natureza do poderdecisório (deliberativo e nãoconsultivo) dos conselhos, com suasatribuições legais.46 Normas supl<strong>em</strong>entares e gerais (§§ 1.º a 3.ºdo artigo 24 da Constituição).47 O ESTATUTO, no seu artigo 88, fala <strong>em</strong>“deliberar e controlar ações”;etmologicamente já se vê que no texto legala conjunção aditiva “e” não permite que seentenda tratar-se de “deliberar ações” (sic!) e“controlar ações”. Em verdade, trata-serealmente de “controlar ações” <strong>em</strong> caráterdeliberativo. O regime dos dois verbos(deliberar e controlar) não permite outrainterpretação. A palavra “política” nãoaparece no texto <strong>em</strong> análise para permitirque se entenda tratar-se de um “deliberarsobre políticas”, como às vezes se afirmaequivocadamente, concessa maxima venia.


52O que significa “formular” umadeterminada política pública d<strong>em</strong>aneira geral? A expressão“formulação” etimologicamente t<strong>em</strong> osentido de parametrizar por meio dedeterminados marcos referenciais. Ouseja, t<strong>em</strong> o sentido de estabelecerparadigmas, princípios, diretrizes ebases para a operacionalização daspolíticas públicas. No fundo, “formularpolíticas” significa reduzir-se afórmulas normativas e conceituais odesenvolvimento e aoperacionalização de uma política e desuas ações. Isso se fará, portanto,com normas jurídicas ou normastécnicas que estabeleçam essaformulação de parâmetros normativose conceituais. A formulação de umapolítica (ou de um programa, maisdetalhadamente) integra como fasepreliminar, o processo dedesenvolvimento ou operacionalizaçãodessa política.Sepegarmosex<strong>em</strong>plificativamente a Lei Orgânicade Assistência Social (LOAS), 48ver<strong>em</strong>os que ela estabelece que aoConselho Nacional da AssistênciaSocial compete “aprovar a política”,usando a lei adiante a expressão48 Considerando-se que a Constituição Federalmanda aplicar as diretrizes do seu artigo 20,à proteção da criança e do adolescenteregulada pelo seu artigo 227.“formular a política de recursoshumanos” para uma das atribuições doórgão executivo nacional.Todavia, o Estatuto e suas leissupl<strong>em</strong>entares l<strong>em</strong>bradas 49 não faz<strong>em</strong>distinção entre o ato deliberativoformal de aprovação final da política eo ato procedimental intermediário deformulação da política. Nesse caso,deve-se entender por falta de distinçãodo legislador que os conselhos dedireitos da criança e do adolescentesão competentes para a formulação epara a aprovação da política degarantia, promoção e proteção dosdireitos humanos de crianças eadolescentes.Por fim, é de se reconhecer quea formulação da nossa política degarantia, promoção e proteção dedireitos humanos de crianças eadolescentes (a mal chamada “políticade atendimento de direitos”), para suaaprovação final, pressupõe que,previamente, se formul<strong>em</strong> seusmarcos normativos, conceituais epolítico--institucionais, por meio49 Leis federais, estaduais e municipais decriação de conselhos dos direitos da criançae do adolescente, conselhos tutelares,fundos para a infância e adolescência, varasda infância e juventude, promotorias edefensorias públicas e leis específicas sobreexecução de medidas socioeducativas, sobregarantia do direito à convivência familiar ecomunitária, sobre programas de proteção avítimas e test<strong>em</strong>unhas, entre outros.


53da elaboração de parâmetros para aoperacionalização e odesenvolvimento dessa política, ouseja, mediante a formulação deanálises do contexto (à guisa dejustificativas), de princípios, dediretrizes e de objetivos, estratégias,metas e ações – com uma forma deplanejamento estratégico situacional. 50Obedecida a supracitadanorma-principiológica da Constituição,essa formulação de política deverá serfeita com a ampla e irrestrita“participação da população” porintermédio de suas organizaçõesrepresentativas. Isso se fará namedida <strong>em</strong> que essa formulação dapolítica e sua aprovação final seprocedam <strong>em</strong> espaços institucionaisonde se garanta a paridade entregoverno e sociedade civil organizadana sua composição, como osconselhos dos direitos da criança e doadolescente.Essa necessária participaçãopopular não se esgota apenas nasdeliberações desses conselhosmediatizadores, mas também dev<strong>em</strong>anifestar-se na participação proativada sociedade civil organizada, por50 Diverso do planejamento operacional ouplanejamento de gestão, que integra ocampo da coordenação e execução daspolíticas, fora da área de atuação dosconselhos formuladores e controladores.meio das suas expressõesorganizativas e das suasarticulações, 51 diretamente <strong>em</strong>processos de discussão,deliberações/indicações e préformulaçõesnesses espaços nãoinstitucionais da sociedade.Em conclusão, o FórumNacional DCA e seus homólogoslocais, portanto, têm legitimidadejurídica e política para promover<strong>em</strong>discussões e aprovar<strong>em</strong> indicaçõespré-formuladoras, quando se tratar daformulação e do planejamentoestratégico situacional da política degarantia, promoção e proteção dedireitos (humanos) de crianças eadolescentes.O Fórum Nacional DCA e seushomólogos locais farão isso d<strong>em</strong>aneira autônoma econcorrent<strong>em</strong>ente com os conselhosdos direitos da criança e doadolescente, e mesmo com osm<strong>em</strong>bros desses conselhos escolhidospelas ass<strong>em</strong>bleias da sociedade civilpara ter assento neles.Também a área governamentalt<strong>em</strong> a mesma legitimidade parapromover discussões e aprovarindicações pré-formuladoras, pois oBrasil na configuração do seu Estado51 Fóruns e frentes de entidades sociais, porex<strong>em</strong>plo.


54d<strong>em</strong>ocrático de direito optou pelomodelo misto de d<strong>em</strong>ocraciarepresentativa e participativa (art. 1.ºda Constituição).De qualquer maneira,estabelecido se tenha que essaformulação <strong>em</strong> definitivo de tal políticano campo dos direitos humanos (apartir das indicações, subsídios eestudos preliminares do governo e dasociedade) 52 é de responsabilidadedos conselhos dos direitos da criançae do adolescente, nos três níveis,competindo ao Conselho Nacional dosDireitos da Criança e do Adolescente aformulação das normas e diretrizesgerais, s<strong>em</strong> prejuízo do papelsupl<strong>em</strong>entar dos conselhos locais(municipais e estaduais).2 A POLÍTICA NACIONAL DEGARANTIA, PROMOÇÃO EPROTEÇÃO (DEFESA?) DEDIREITOS HUMANOS PARA ACRIANÇA E O ADOLESCENTEPolíticas Públicas <strong>em</strong> Favorde Crianças e AdolescentesDentro do amplo “sist<strong>em</strong>agarantia de direitos humanos da52 Incluindo-se os organismos e agênciasinternacionais.criança e do adolescente” 53 vistoacima como parte de um meta-sist<strong>em</strong>ade garantia, promoção e proteção dedireitos humanos <strong>em</strong> geral 54 , há dese desenvolver políticas públicas queabranjam ações (programas eserviços) variados <strong>em</strong> favor da criançae do adolescente: educação, saúde,assistência social, trabalho, cultura,relações exteriores, segurança pública,planejamento e orçamento, promoçãode direitos humanos.Porém, o ECA, no caput do seuartigo 86 e nos incisos I a V do artigo87, estabelece, para o efeito dessa lei(isto é, para assegurar a “proteçãointegral”, na forma do seu artigo 1.º),que será instituída uma chamada"política de atendimento dos direitosda criança e do adolescente" oupolítica de garantia, promoção,proteção de direitos humanos decriança e de adolescentes, 55 quepassou a integrar o âmbito geral dapolítica nacional de direitos humanos(Cf. BRASIL, 2009), quando ela foimais claramente formulada e maisb<strong>em</strong> explicitada no Brasil: o artigo 3.º53 Resolução n. º 113 do Conanda.54 “Ambiência sistêmica ou sist<strong>em</strong>a holístico”(NOGUEIRA NETO, 2010) e “sist<strong>em</strong>aautopoiético” (TRINDADE, 2007).55Na formulação dada pelos estudospreliminares para a planificação decenaldessa política, para, que se desenvolva, noâmbito do Conanda, material agora sobconsulta pública.


55do Estatuto diz que crianças eadolescentes “gozam de todos osdireitos fundamentais inerentes àpessoa humana”, ou seja, de todos osdireitos humanos positivados pelaord<strong>em</strong> jurídica brasileira. Maior clarezaseria preciso?Essa citada política,estrategicamente, cortará de maneiratransversal(multidisciplinar,intersetorial e multiprofissionalmente)todas as políticas públicas:infraestruturantes (Agricultura,Indústria, Comércio, Transporte eoutras); institucionais, SegurançaPública, Direitos Humanos, Defesa doEstado, etc.; econômicas e sociais respectivamente, Fiscal, Cambial, etc.e Educação, Saúde, PrevidênciaSocial, Assistência Social, entre outrasáreas. Cabe a ela reforçar a ideia deque a satisfação das necessidadesbásicas, dos interesses e dos desejos,por qualquer dessas políticas públicas,antes de tudo, é um direito do cidadãocriançae do cidadão-adolescente e,ao mesmo t<strong>em</strong>po, um dever doEstado, da família e da sociedade.Essa deverá ser uma políticaestratégica, e não estritamenteoperacional de atendimento direto, ouseja, uma política que desenvolveráações afirmativas <strong>em</strong> favor dos direitosfundamentais de crianças eadolescentes, incidindo sobre todas aspolíticas públicas s<strong>em</strong> limites deabrangência. Será, além disso, umapolítica que desenvolverá ações deproteção de direitos, quandoameaçados ou violados, facilitando equalificando o acesso à Justiça paraesse segmento infanto- -adolescente.Essa é uma política de direitoshumanos que deverá desenvolver-se,quando formulada/normalizada eplanificada mais aprofundadamente,por meio de três linhas estratégicasessenciais (s<strong>em</strong> prejuízo de outras quea análise da situação, isto é, que aconjuntura aponte):a) a primeira linha deverá ter umcaráter de atendimento inicial,direto, integrado, <strong>em</strong>ergencial e,ao mesmo t<strong>em</strong>po,impulsionador/fomentadordaefetivação dos direitosfundamentais e,consequent<strong>em</strong>ente, da inclusãopreferencial de seusbeneficiários (vítimas deviolação de direitos), tanto naspolíticas públicas do Executivoquanto nas políticas de acessoá Justiça 56do Judiciário, do56 Cf. Emenda Constitucional n.º 45: ConselhoNacional de Justiça e Conselho Nacional do


56Ministério Público e daDefensoria Pública; porex<strong>em</strong>plo, os programas,serviços e ações de:a.1 proteção de vítimas etest<strong>em</strong>unhas;a.2 atendimento inicialintegrado,acautelamentoinicial e internação provisóriade adolescentes <strong>em</strong> conflitocom a lei;a.3 combate à subnotificaçãono registro civil das pessoasnaturais;a.4 enfrentamento do abuso eexploração sexual;a.5 observatório de violaçãode direitos (gerenciamento dedados e informações);b) a segunda linha atuaindiretamente por meio deações de mobilização social, deadvocacy e de outras açõesestratégicas, 57<strong>em</strong> favor dosdireitos fundamentais (direitoshumanos positivados), incidindosobre a formulação das d<strong>em</strong>aispolíticas e acoordenação/execuçãodosserviços, programas e açõesMinistério Público, como formuladores dessapolítica judicial e público-ministerial.57Monitoramento, apoio institucional,construção de competências (formação),<strong>em</strong>poderamento, parcerização (articulações& integrações).dessas políticas todas doExecutivo. 58c) a terceira linha atuaindiretamente,também,mediante ações de mobilizaçãosocial, de advocacy e de outrasações estratégicas, <strong>em</strong> favordos direitos fundamentais(id<strong>em</strong>), incidindo sobre aformulação da política judicial epúblico-ministerial e sobre suacoordenação e execução deseus serviços, programas eações do Poder Judiciário e doMinistério Público. 59Em todas essas três linhas, ofulcro central das ações dessamencionada política de direitoshumanos infanto-adolescentes está,por ex<strong>em</strong>plo, <strong>em</strong> assegurar que osparadigmas ético-políticos e osprincípios jurídicos dos direitoshumanos (gerais e geracionais)tenham prevalência, ou seja, tenhamefetividade sociopolítica e eficáciajurídica: dignidade humana, liberdade,diversidade/pluralidade,igualdade,universalidade, integralidade, não58 Originalmente pelos conselhos setoriais depolíticas públicas e pelos órgãos próprios deexecução: por ex<strong>em</strong>plo, Sist<strong>em</strong>a Único deAssistência Social (SUAS), ConselhoNacional de Assistência Social (CNAS) eMinistério do Desenvolvimento Social eCombate à Fome (MDS) e sua Secretaria deAssistência Social Federal.59 Cf. nota 29.


57discriminação, superior interesse eparticipação proativa da criança e doadolescente, proteção especial <strong>em</strong>casos de violação de direitos,prioridade no atendimento.Deve ser do escopo dessapolítica citada, por ex<strong>em</strong>plo, que oprincípio do superior interesse dacriança/adolescente (Constituição,Convenção sobre os Direitos daCriança e o ECA) tenha prevalência,efetividade política e eficácia jurídica,concretamente, na real prioridadeabsoluta do seu atendimento peloEstado, sociedade e família, porex<strong>em</strong>plo, no processo de elaboração eexecução do orçamento público.Desse modo, também <strong>em</strong> outroex<strong>em</strong>plo: essa citada política dedireitos humanos infanto-adolescentesigualmente deverá desenvolver açõesafirmativas <strong>em</strong> favor da igualdad<strong>em</strong>aterial de todas as crianças eadolescentes, promovendo o respeitoà sua diversidade de gênero, raça/cor,etnia, orientação sexual. além deproteger esse público quandosubmetido às inúmeras formas dediscriminação e de exploração eviolência decorrentes.Mais um ex<strong>em</strong>plo, desta vez,tocando no coração da nova normativainternacional sobre direitos da criança,a Convenção sobre os Direitos daCriança: tal política finalmente deverádesenvolver ações <strong>em</strong> favor do direitoà participação proativa de crianças eadolescentes, isto é, do seu direito deser ouvido e de ter sua opiniãoconsiderada na medida do seu grau d<strong>em</strong>aturidade (art. 12, 2), indo além damera metodologia do “protagonismojuvenil” para se alcançar a essênciadesse princípio jus-humanista.Estratégias de Controle dessaPolítica Especial de Garantia,Promoção e Proteção de DireitosHumanos Infanto-Adolescentes–Monitoramento & AvaliaçãoPor fim, essa política degarantia, promoção e proteção dedireitos (humanos) de crianças eadolescentes deveria ter suaefetividade assegurada eoperacionalização qualificada eaperfeiçoada, por meio dedeterminadosespaços“governamentais e nãogovernamentais” (ou instânciaspúblicas) e de específicos mecanismosde acompanhamento, avaliação <strong>em</strong>onitoramento, isto é, mediantecontrole social-difuso (pela sociedadecivil organizada, especialmente, viaseus fóruns, comitês e das própriasexpressões organizativas domovimento social isolada e


58diretamente) e também o controleinstitucional (pelos Conselhos dosDireitos da Criança e do Adolescente,Ministério Público, Parlamento,Tribunais de Contas, entre outros).controle 60Para que esse subsist<strong>em</strong>a de(acompanhamento,avaliação & monitoramento) sejaoperacionalizado e funcione eficiente(melhores resultados) e eficazmente(maior impacto), é precisominimamente o seguinte:a) discussão ampla entre aorganizaçãosocial,especialmente via essasinstâncias articuladoras dasociedade civil (fóruns), d<strong>em</strong>odo a pautar politicamente asquestões e a mobilizar asociedade;b) elaboração de diagnóstico dasituação, 61 com atualizaçãoperiódica, pela sociedade civilorganizada, pelo governo parasubsídio dos Conselhos;c) construção preliminar epropositiva de matrizes eparâmetros, como indicadorespara o acompanhamento,60 Subsist<strong>em</strong>a integrante do amplo sist<strong>em</strong>a degarantia de direitos humanos (cf. Resoluçãon.º 113 do Conanda).61 Nesse ponto, necessário se torna envolver,algumas vezes, o meio acadêmico(Universidades), s<strong>em</strong> prejuízo da atuação dosnúcleos/centros de estudos e pesquisas(autônomos).avaliação e monitoramento,tanto por essas instâncias dasociedade civil quanto pelogoverno, com indicações(planos sociopolíticos);d) exame e referendo, pelosconselhos dos direitos, dess<strong>em</strong>aterial, a ser promulgadocomo normas administrativasregulamentares, <strong>em</strong> caráterdeliberativo e vinculante, no quefor cabível, isto é, na esferaestrita de sua competêncialegal.Esses mecanismos de controle(acompanhamento, avaliação &monitoramento), dentro do amplosist<strong>em</strong>a de garantia dos direitos dacriança e do adolescente, têm camposde atuação dos mais importantes,mas, na verdade, estão sendo poucoexplorados pela maior parte dosórgãos governamentais, das entidadessociais (especialmente mediante seusfóruns) e dos próprios conselhos.Ex<strong>em</strong>plificando: o controle dodesenvolvimento da própria política depromoção dos direitos (humanos), pormeio do cumprimento do disposto noparágrafo único do artigo 90 e nocaput do artigo 91 do ECA, que tratado registro de entidades sociais e doregistro de programas governamentaise não governamentais, pelos


59conselhos municipais dos direitos.Outro ex<strong>em</strong>plo: a montag<strong>em</strong> dochamado "Orçamento-Criança" e, apartir daí, o acompanhamentomonitoramentotanto da elaboraçãoorçamentária quanto da sua execução.Mais: o acompanhamento dofuncionamento dos programassocioeducativos (unidades deinternação e s<strong>em</strong>iliberdade, unidadesde acautelamento inicial, programasde liberdade assistida). Id<strong>em</strong>, quanto aabrigos, etc.Gestão & Financiamentoplano nacional decenal geral não deveficar adstrito aos atuais modelos degestão pública e de gestão financeiraprevisto: ele deverá também proporalterações no ordenamento jurídico(leis, decretos, portarias, resoluções,etc.) existente, que trata atualmentedessa área da gestão e financiamentopúblico. 623 NATUREZA E CARACTERÍSTICASDA POLÍTICA DE GARANTIA,PROMOÇÃO E PROTEÇÃO(DEFESA) DOS DIREITOS DECRIANÇAS E ADOLESCENTESRealmente, na formulação geralda política de garantia, promoção eproteção de direitos humanos há de seenfrentar a questão da gestão publicae do financiamento dessa políticaespecialmente; mas numa visãoestratégica e não operacional – noestabelecimento, por ex<strong>em</strong>plo, dediretrizes gerais, para o financiamentodessa política pelo orçamento públicoe, portanto, mediante fundos públicospelos direitos da criança e doadolescente (FIA). Esse último, comseu funcionamento já regulamentadopela Resolução do Conanda, quedeverá ter essa norma regulamentar<strong>revista</strong>, reformada e adaptada ao novoplano decenal geral <strong>em</strong> elaboração. OUma Política IntersetorialO Estatuto da Criança e doAdolescente prevê, no seu artigo 86, odesenvolvimento de uma "política deatendimento de direitos da criança edo adolescente”, ou, dito melhor, comose viu atrás: uma política de garantia,promoção e proteção de direitos dacriança e do adolescente dentro do62 Assim o fez recent<strong>em</strong>ente com o PlanoNacional de Garantia e Promoção do Direitoà Convivência Familiar, aprovado <strong>em</strong>Resolução conjunta do Conanda e do CNASe que indicou muitas alterações a ser<strong>em</strong>feitas futuramente ao ECA. Indicativos essesque resultaram <strong>em</strong> parte na Lei n.º12.10/2009 (a chamada nova lei da adoção),mas que nesse processo de reformalegislativa não se repetiu o processod<strong>em</strong>ocrático de elaboração originalmente doEstatuto e do citado Plano.


60vasto campo da política nacional dedireitos humanos. Obviamente, não setrata <strong>aqui</strong> de nenhuma política setorial,como as políticas sociais setoriaisbásicas (educação, saúde, assistênciasocial, etc.), mas sim de uma políticainstitucional autônoma, de caráterintersetorial, a cortar transversalmentetodas as d<strong>em</strong>ais políticas públicassociais (educação, saúde, assistênciasocial, por ex<strong>em</strong>plo), institucionais(defesa do Estado, relações exteriores,segurança), econômicas (cambial,crédito, monetária) e infraestruturantes(transporte, comunicação social,agricultura, indústria, energia, turismo,portuária, saneamento básico).Essa política institucional teria ocondão – por meio de suas instânciaspúblicas de formulação, coordenação,execução e controle (interno) e dosseus mecanismos políticoadministrativos– de garantir, protegere promover, como direitosconstitucionais fundamentais (isto é,direitos humanos geracionais decrianças e adolescentes), certosdireitos reconhecidos de modo geralpela Constituição Federal (art. 21 a24), para fins de sua normatizaçãoregulatória: ou seja, direitosconsagrados no campo de quaisquerdas políticas públicas. Segundo aConstituição brasileira, os direitosfundamentais são direitos dehierarquia superior, consagrados <strong>em</strong>normas-princípiosautoaplicáveis,acima das normas-regras prevalentesna legislação infraconstitucional.Confusões ReducionistasDessa maneira, é realmenteabsurda a confusão que muitos aindafaz<strong>em</strong> entre essa política de garantia,promoção e proteção de direitoshumanos ("política de atendimento dosdireitos da criança e do adolescente" Estatuto e conselhos dos direitos,citados e a política de assistênciasocial, por ex<strong>em</strong>plo. Puro ranço deantigas doutrinas científicas (ex<strong>em</strong>plo,a doutrina da situação irregular, entrenós, no Cone Sul latino-americano), derevogadas legislações (como orevogado Código de Menores) e depolíticas assistencialistas repressoras(a ex<strong>em</strong>plo do B<strong>em</strong>-Estar do Menor,nas quais o tutelarismo era seu maisimportante pilar. Só que a atual políticade garantia, promoção e proteção dedireitos humanos se firma na doutrinajus-humanista, também chamada entrenós de “doutrina da proteçãointegral". 63 Ao mesmo t<strong>em</strong>po, a política63 Essa não se trata propriamente de umadoutrina científica disciplinar oumultidisciplinar sist<strong>em</strong>atizada, mas sim deuma construção teórica a ser usada comochave hermenêutica (sentido teleológico)


61de assistência social constrói umcaminho de negação do clientelismo,do "primeiro-damismo", doassistencialismo, do focalismo. Novosparadigmas para ambas, mas sóconfirmam a autonomia de cada uma.Alguns desavisados quer<strong>em</strong>reduzir simplesmente o ECA, suapolítica de direitos humanos e osconselhos dos direitos da criança e doadolescente a meras "especializações"da Lei Orgânica da Assistência Social,da sua política decorrente, do seusist<strong>em</strong>a único e dos seus conselhossetoriais. Como se os primeirostratass<strong>em</strong> apenas de um setor daassistência social: o das crianças eadolescentessocialmentevulnerabilizados ou <strong>em</strong> situação derisco pessoal e social.Ora, o Estatuto da Criança e doAdolescente não permite tal visãocorporativa, reducionista e equivocadada abrangência de ação da suapolítica e dos conselhos dos direitos.Na verdade, não se trata de um terprevalência sobre o outro ou concorrercom o outro, mas, sim, realmente deabrangência. Os conselhosintersetoriais (como os dos direitos dapara a exegese/interpretação de todanormativa internacional e nacional,construída na América Latina principalmentecomo fruto das estratégias de advocacy e deconstrução de capacidades do Unicef.criança, da mulher, da igualdaderacial, das pessoas com de deficiência,etc.) têm uma abrangência maior quequalquer dos conselhos setoriais(saúde, educação, assistência social).No entanto, não uma importânciamaior, pois suas funções são bastantedíspares, s<strong>em</strong> confusão, superposiçãoe concorrência. Em que dispositivosseus a Lei Orgânica da AssistênciaSocial teria revogado expressa eimplicitamente o Estatuto da Criança edo Adolescente para que se possaassegurar que não existe espaço hojepara a formulação de uma políticaautônoma de garantia, promoção eproteção de direitos humanos dacriança e do adolescente? Ou,olhando-se de outro prisma, será queo atual Programa Nacional de DireitosHumanos 3 deverá ser entendidoabsurdamente como parte integranteda Política de Assistência Social?Programas de proteção aclientelas específicas exist<strong>em</strong> <strong>em</strong>qualquer das políticas sociais.Inclusive e especialmente no campoda política de assistência social, comoos programas de proteção social decrianças e adolescentesvulnerabilizados e <strong>em</strong> risco social, porex<strong>em</strong>plo. Contudo, programas,serviços, ações e atividades não seconfund<strong>em</strong> com políticas, no seu


62sentido amplo e puro – e sim asintegram como partes. Por ex<strong>em</strong>plo:toda e qualquer forma de exploraçãolaboral da criança e do adolescente 64deverá se prevenida e erradicada (ouproibida e eliminada imediatamente,conforme o caso) por meio deserviços/atividadesprogramas/projetos de proteçãoespecial de direitos da política degarantia, promoção, proteção dedireitos humanos, articulados eintegrados com programas/projetos eserviços/atividades das políticas desaúde, de educação, de cultura, deassistência social, de proteção notrabalho, 65de segurança pública, deagricultura, das relações exteriores,etc. A erradicação do trabalho infantilno Brasil não é uma questãopuramente de assistência social, maso é também.Modelo Institucional FederalNo passado, depois dapromulgação do Estatuto da Criança edo Adolescente, o governo federalespecificamente entregou acoordenação dessa política64Trabalho precoce, trabalho doméstico,prostituição, narcotráfico, trabalho noturno,trabalho perigoso, insalubre e penoso,trabalho escravo, etc.65 Cf. nota 29.e(institucional e intersetorial) degarantia, promoção, proteção dedireitos, à Fundação Centro Brasileiropara a Infância e Adolescência (CBIA),vinculada ao Ministério do B<strong>em</strong>-EstarSocial, que a nomeava como “políticade proteção especial”. A vinculação doCBIA ao Ministério do B<strong>em</strong>-EstarSocial, naquela época, tinha certoranço do "velho regime": um órgãonovo, com responsabilidades novas erevisionistas (e que a isso se propunhae estava alcançando realmente antesde sua extinção), preso, ainda queformal e institucionalmente, ao modeloassistencial do passado. Por sua vez,nidificou-se o Conselho Nacional dosDireitos da Criança e do Adolescente(Conanda), responsável pelaformulação e controle dessa política naPresidência da República (!);reforçando, com isso, a natureza deintersetorialidade ao fazê-loresponsável pela concertação nacional<strong>em</strong> favor dos direitos fundamentais deinfanto-adolescentes.Posteriormente, com aapressada extinção da FundaçãoCBIA, o Conanda foi vinculado aoMinistério da Justiça, responsável pela"política de defesa da cidadania".Nesse Ministério de Estado, criou-se oDepartamento da Criança e doAdolescente na estrutura da Secretaria


63Nacional da Cidadania, transformada<strong>em</strong> Secretaria Nacional dos DireitosHumanos, ficando esse órgãoresponsável pela coordenaçãonacional dessa política de garantia,promoção e proteção dos direitoshumanos da infância e adolescência.Atualmente, toda a política dedireitos humanos foi deslocada, <strong>em</strong>boa hora, para a Presidência daRepública, sob a responsabilidadedireta de uma Secretaria de Estado(mais estratégica que operacional) doMinistério Extraordinário: Secretariados Direitos Humanos (com suaSubsecretaria Nacional de Promoçãodos Direitos da Criança e doAdolescente). Essa é uma vitória quenão pode ser abandonada.Modelos Estaduais e MunicipaisNa esfera estadual e municipal,o nicho institucional dessa política degarantia, promoção e proteção dosdireitoshumanos(crianças/adolescentes) varia de umlugar para outro. Em uns, está elanidificada <strong>em</strong> Secretarias de AçãoSocial, de Desenvolvimento Social, deSolidariedade Humana, de AssistênciaSocial e até de Educação. Em outrosestados, <strong>em</strong> Secretarias de Justiça oude Segurança Pública – algumaspoucas. Em outros raros, diretamentevinculadas ao Chefe do PoderExecutivo – Casa Civil, Gabinete doGovernador. Finalmente, no caso doParaná, há uma Secretaria de Estadoexclusiva para a área.A primeira experiência, <strong>em</strong>determinados governos e <strong>em</strong> certosmomentos, t<strong>em</strong> levado ao risco deconfundir a política de direitoshumanos com a política de assistênciasocial, de maneira reducionista,desprezando a ótica da priorizaçãoabsoluta, da intersetorialidade, daexigibilidade preferencial dos direitosfundamentais. Nesse caso, transformaessa "política de direitos humanos" <strong>em</strong>um mero ramo especializado daAssistência Social: os conselhos dessaúltima seriam "conselhos de políticapública”, enquanto os conselhos dosdireitos da criança e do adolescente,seriam apenas "conselhos t<strong>em</strong>áticos"(?). Essa distorção pode levar-nos aost<strong>em</strong>pos da "Política do B<strong>em</strong>-Estar doMenor", <strong>em</strong> boa hora extinta (Sist<strong>em</strong>aFunab<strong>em</strong>-Feb<strong>em</strong>).A segunda experiência denidificação <strong>em</strong> Secretarias da Justiça eCidadania t<strong>em</strong> o perigo de fazer repetirmodelos do passado (Sist<strong>em</strong>a SAM-SEAM) de triste m<strong>em</strong>ória, <strong>em</strong> que oprobl<strong>em</strong>a dos "menores abandonadose delinquentes" era uma questão de


64segurança e seu atendimento se faziade maneira ass<strong>em</strong>elhada aoatendimento prisional: as Secretariasde Justiça estaduais ainda nãoconseguiram construir uma práticarenovada de "defesa da cidadania",apesar do nome mais das vezes e dasboas intenções. Seu quadro depessoal t<strong>em</strong> razoável competência (evícios também) no trabalho comdeterminadas linhas tradicionalmentesuas: trabalhar na articulação políticado Poder Executivo com os PoderesLegislativo e Judiciário, com oMinistério Público, com os poderesmunicipais e com a Sociedade(quando não perderam para a CasaCivil ou Secretarias de Governo, <strong>em</strong>alguns Estados) no trabalho desupervisão geral de órgãos como asOuvidorias Gerais e as DefensoriasPúblicas (quando não assum<strong>em</strong> suaautonomia constitucional) eprincipalmente no trabalho deadministração do sist<strong>em</strong>a prisional.Quando não, <strong>em</strong> determinadasexperiências, funcionam <strong>em</strong> conjuntocom a Segurança Pública.A conjuntura local dirá qual amelhor vinculação administrativa,levando-se <strong>em</strong> conta uma sérieimensa de variáveis: de qualquermaneira, a melhor solução está navinculação a um Ministério, Secretariaestadual ou municipal ou outro órgãopúblico: (a) que a reconheça comopolítica autônoma; (b) que a reconheçacomo política de garantia de direitoshumanos e não “política de clientela”;(c) que tenha maior abertura para aintersetorialidade, com maiorcapacidade de articulaçãointerinstitucional; e (d) que tenharealmente força política(poder/prestígio).4 OPERACIONALIZAÇÃO DAPOLÍTICA DE GARANTIA,PROMOÇÃO E PROTEÇÃO(DEFESA) DE DIREITOS DACRIANÇA E DO ADOLESCENTEOs Programas e ServiçosEspecíficos de Socioeducação(Sanção) de Adolescentes <strong>em</strong>Conflito com a Lei de ProteçãoEspecial de Direitos Humanos deCrianças e Adolescentes Credoresde DireitosTanto os programas e serviçosespecíficos de socioeducação(sanção) de adolescentes <strong>em</strong> conflitocom a lei quanto os de proteçãoespecial de direitos humanos decrianças e adolescentes credores dedireitos, são dirigidos a público-alvo ea situações próprias, que os


65distingu<strong>em</strong> dos programas de proteçãode outras políticas públicas (porex<strong>em</strong>plo, os programas de proteçãosocioassistencial para crianças eadolescentes <strong>em</strong> situação de risco ousocialmente vulnerabilizados, típicosda política de assistência social).Os programas, serviços e asações públicas de proteção especialde direitos humanos para crianças eadolescentes se dirig<strong>em</strong> a todo osegmento infanto-adolescente quetenha seus direitos ameaçados ouviolados (art. 98 co ECA) – são elesuniversais e focalistas, a um só t<strong>em</strong>po!Não é uma situação social(vulnerabilidade social, carência, etc.)que justifica a intervenção dessesprogramas/serviços previstos no ECA,e sim uma situação jurídica: isto é, onão reconhecimento e não garantia dedireitos fundamentais nas áreascitadas anteriormente como ex<strong>em</strong>ploda educação, da saúde, da assistênciasocial, da cultura, do lazer, dotrabalho.O ECA discriminaex<strong>em</strong>plificativamente, nos incisos I aVII do artigo 87, 66alguns tipos deprogramas e serviços socioeducativos(adolescentes <strong>em</strong> conflito com a lei) e66 Nova redação dada pela Lei Federal n.º12.010, de 2009, incluindo-se os incisos VI eVII.protetivos específicos de direitoshumanos (crianças e adolescentescredores de direitos), a ser<strong>em</strong>normalizados, criados e mantidos, 67 noâmbito dessa política de garantia,promoção e proteção de direitoshumanos infanto-adolescentes (ounão!), por outras leis subsequentes(leis orgânicas) e outras normasoperacionais básicas federais,estaduais e municipais.No artigo 90, o ECA fala <strong>em</strong>“regimes” para a “manutenção porentidades de atendimento”, de“programas de proteção esocioeducativos” (sic!), ou no âmbitoda política de garantia, promoção eproteção de direitos humanos dacriança e do adolescente ou <strong>em</strong>qualquer outra política pública(assistência, social, educação,segurança pública, cultura?) adepender de leis orgânicas e atosadministrativosreguladoresposteriores:1. Liberdade assistida2. S<strong>em</strong>iliberdade3. Internação4. Orientação e apoiosociofamiliar5. Apoio socioeducativo <strong>em</strong>meio aberto67 “Programas específicos” (ECA, art. 88, III).


666. Colocação familiar7. Acolhimento institucional 68(antigo regime de abrigo).Numa discutível redaçãotécnico-legislativa, o ECAconfusamente discriminou essescitados regimes, serviços e programasde maneira tal que se poderia presumirque estava instituindo e criandoorganicamente serviços e programasde uma política determinada, malchamada por ele de “política deatendimento de direitos” (sic!). Isso sepresumiria se estivéss<strong>em</strong>os fazendouma mera interpretação gramatical dosseus dispositivos referentes a essacitada política (art. 86, 87 e 90).Contudo, <strong>em</strong> se fazendo uma devidainterpretação sist<strong>em</strong>ática e teleológicadessas normas citadas (comodetermina o art. 6.º do Estatuto) deverse-áentender que ali naquelesdispositivos examinados apenas seestá apontando ex<strong>em</strong>plificativamenteáreas de intervenção para essa“política de atendimento de direitos”,ou dito melhor, para essa política degarantia, promoção e proteção dosdireitos humanos.Observe-se que o ECA dispõesobre a “proteção integral de criançase adolescentes”, como estabelece seu68 Nova redação dada pela Lei Federal n.º10.012/2009, de 3 de agosto de 2009.artigo 1º, editado com base nopermissivo do inciso XV do artigo 24 eno parágrafo 1.º do citado artigo daConstituição Federal, que diz competirà União legislar (concorrent<strong>em</strong>entecom os Estados Federados e com oDistrito Federal) por meio de “normasgerais” sobre “proteção da infância ejuventude”. A Constituição Federal fazdistinção entre: (a) regular direitos,legislando sobre eles diretamente(artigos 21 e 24); 69 (b) regular direitos,legislando sobre diretrizes, bases e aorganização <strong>em</strong> sist<strong>em</strong>as dedeterminadas políticas públicas(Educação, cultura, previdência,seguridade social, defesa, transporte,etc.)Com esse entendimento,examine-se o artigo 87 e seus incisos:o Estatuto estaria realmente criando eorganizando aqueles “serviços”mencionados nos seus incisos III a V eaquelas “políticas” mencionadas nosseus incisos I e II? Ora, as políticassociais citadas nos incisos I e II jáeram preexistentes e deveriam serreguladas por leis orgânicas próprias,como foram (LOS, LOAS, LDB, etc.).Em verdade, no citado dispositivo sequeria dizer que competia à política69 Direito civil, comercial, penal, processual,eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, dotrabalho, tributário, financeiro, penitenciário,proteção ao patrimônio histórico.


67especial p<strong>revista</strong> no artigo 86 incidirsobre tais políticas sociais, para ali, nointerior delas – como uma linhaestratégica –, garantir, promover eproteger os direitos fundamentais decriança e adolescentes. Do mesmomodo: os serviços especificados nosincisos III a V igualmente jápreexistiam no campo de outraspolíticas e lá encontravam suanidificação (a localização dedesaparecidos, por ex<strong>em</strong>plo, nasegurança pública) e ali se queria dizera mesma coisa dita de relação aosincisos I e II.Com uma posterior formulaçãoe normalização dessa política degarantia, promoção e proteção dedireitos (humanos) da criança e doadolescente esses serviços,programas e serviços deveriam sercriados concretamente, ou no bojodessa política, como forma deatendimento direto ou no bojo dequalquer outra política. Nesse últimocaso, sujeito está à incidência externada política de garantia, promoção eproteção de direitos humanos (direitosfundamentais) da criança e doadolescente.Assim, normatizou-se, formulouse,planejou-se, por ex<strong>em</strong>plo, na áreada assistência social, <strong>em</strong> que depoisde editada a Lei Orgânica daAssistência Social, posteriormente poratos normativos deliberativos doConselho Nacional de AssistênciaSocial foi formulada essa política(Resolução n.º 145/2004) e foi maisinstituído e regulamentado o Sist<strong>em</strong>aÚnico da Assistência Social (SUAS).De igual maneira, procedeu-se na áreada Saúde, da Educação, daSegurança Pública, etc.Características Maioresdesses Serviços e ProgramasEspecíficos de Proteção de DireitosHumanos Infanto-AdolescentesOs programas e serviços deproteção especial de direitos humanos,de modo geral, são assim vistos porMesquita Neto e Affonso (2002, p. 21)como ações:[...] que visam aumentar o grau deproteção contra graves violações dedireitos humanos, direcionadas àpopulação <strong>em</strong> geral, a grupos depessoas especialmente vulneráveis aestas violações ou a grupos depessoas que já foram vítimas destasagressões. São ações que visamprevenir a ocorrência de violações dedireitos humanos antes que elasaconteçam, ou atender às vítimasimediatamente após a ocorrência dasviolações ou no longo prazo, quedev<strong>em</strong> ser preservadas e fortalecidas.Tal característica deverá ter osserviços e programas de proteção


68especial dos direitos humanosgeracionais.Esses serviços e programasespecíficos 70 deveriam ser, <strong>em</strong>primeira instância, numa primeira linhaestratégica (mas não única!), adepender da necessidade conjuntural,como "centros integrados deatendimento inicial" dirigidos àpopulação infanto-adolescente, numalinha preventiva e de atendimento<strong>em</strong>ergencial, precário e encaminhador,funcionando principalmente como"retaguarda" para os conselhostutelares e varas da infância e dajuventude (e os órgãos do MinistérioPúblico, da Defensoria Pública). Seusoperadores são basicamente"defensores de direitos humanos",qualquer que seja sua formaçãoacadêmica e profissional.São esses serviços eprogramas de proteção especial ospreferenciais "provedores/portais” darede de atendimento direto, na amplaambiência sistêmico-holística doSist<strong>em</strong>a de Garantia dos DireitosHumanos, ao lado dos conselhostutelares e dos órgãos do MinistérioPúblico. Por meio deles e após umtrabalho integrador e preparatório, ascrianças e os adolescentes,70 “Criação e manutenção de programasespecíficos.” (ECA, art. 88, III).adjetivados de alguma forma por suascircunstâncias de vida (explorados ouabusados sexualmente, <strong>em</strong> situaçãode rua, soropositivos, torturados,vítimas de maus-tratos,narcotraficantes, abandonados,drogaditos, explorados no trabalho,etc.) poderão ser encaminhados aserviços e programas das políticassociais básicas ou de certas políticasinstitucionais e econômicas, comosites dessa "rede" maior de atençãointegral à população infantoadolescente.Nessas característicasapontadas, certamente estão aessencialidade e o diferencial dosprogramas e serviços de proteçãoespecial, de relação aos serviços eprogramas das d<strong>em</strong>ais políticaspúblicas que pod<strong>em</strong> incidir sobreessas crianças e adolescentescredores de direito, concorrente esuperpostamente.O ECA, por ser norma nacionale geral de proteção integral de direitos,pouco detalhou a respeito, apenasrotulando os serviços e programas <strong>em</strong>questão, deixando, portanto, para queleis federais, estaduais e municipais esuas decorrentes normasadministrativas regulamentadoras(NOB) os criass<strong>em</strong>, definindo seucampo de atuação e suas atribuições.


69Características Maioresdesses Programas Socioeducativos(Sancionatórios) para Adolescentes<strong>em</strong> Conflito com a LeiAntecipando-se à formulação damulticitada Política de Garantia,Promoção e Proteção de DireitosHumanos de Crianças e Adolescentes,o Conselho Nacional dos Direitos daCriança e do Adolescente, 71 nopassado, formulou as diretrizes para odesenvolvimento dos programassocioeducativos destinados aadolescentes declarados pelo sist<strong>em</strong>ade Justiça Juvenil como autores deatos infracionais; assim, por meio deuma Resolução sua <strong>em</strong> que aprovou oSist<strong>em</strong>a Nacional SocioEducativo(Sinase), a ser obedecida como normade garantia, promoção e proteção dedireitos humanos, quando da suaoperacionalização por qualquer outrapolítica pública (assistência social, porex<strong>em</strong>plo).Assim sendo, futuramente, apósa edição do amplo plano nacionaldecenal (e/ou genérica normaoperacional básica ou de lei federalespecífica) referente à política de71 Mais uma vez, o Conanda, “comendo pelasbeiradas”, fez antecipadamente a formulaçãoda execução dos programas socioeducativosde relação à formulação do total da políticade garantia, promoção e proteção de direitoshumanos de crianças e adolescentes.garantia, promoção e proteção dedireitos humanos de crianças eadolescentes, essas normasespecíficas do Sinase merecerãoobviamente uma revisão. Nomomento, há de se considerar matériavencida nesse ponto e se retirar (ounão!) do próprio texto do Sinas<strong>em</strong>uitas lições e evitar desvios noprocesso <strong>em</strong> andamento deformulação da política de garantia,promoção e proteção de direitoshumanos de crianças e adolescentes.Incidência sobre os Serviços eProgramas das D<strong>em</strong>ais PolíticasEm outra linha estratégica deatuação, a política de garantia,promoção e proteção de direitoshumanos da criança e doadolescente 72 (obviamente como o faza genérica política de direitos humanosde relação a toda a pessoa humana)deve fomentar, facilitar, articular ainclusão de seu público-alvo decredores de direitos, a partir daquelesseus serviços e programas específicosde proteção especial esocioeducativos primeira linhaestratégica, atrás analisados , nos72 Insistindo na l<strong>em</strong>brança: a mesma coisa que“política de atendimento de direitos” (cf. art.86 do ECA).


70programas e serviços das d<strong>em</strong>aispolíticas públicas, especialmente daspolíticas sociais básicas: educação,saúde, assistência social, trabalho,previdência, segurança pública,cultura, desporto, etc.Assim sendo, a referida políticade garantia e seu decorrente sist<strong>em</strong>apolítico-institucional lançam seupúblico de crianças e adolescentescredores de direitos e de adolescentes<strong>em</strong> conflito com a lei ad intra aosbraços dos “cuidadores”, operando nosseus serviços e programas deproteção especial (pr<strong>em</strong>ial) e desocioeducação (sancionatória).Entretanto, essa missão dapolítica de garantia de inclusãoprivilegiada e acompanhada nosserviços e programas das d<strong>em</strong>aispolíticas públicas (educação, saúde,assistência social, educação,segurança pública, relações exteriores,trabalho, cultura, planejamentoorçamento,etc.), na prática cotidiana,sofre algumas ambiguidades: algumasvezes, essa política de garantia é vistaapenas como mera articulação daspolíticas sociais (garantir acesso àescola, por ex<strong>em</strong>plo); outras vezes, elaé reduzida aos seus programas deproteção especial (abrigo, porex<strong>em</strong>plo) ou socioeducativos(internação).O ideal é assegurar que ela(como toda política <strong>em</strong> favor deDireitos Humanos) t<strong>em</strong> como missãoúltima o asseguramento do acessoqualificado de seu público a quaisquerdos serviços e programas de todas aspolíticas públicas, inclusive daspolíticas judiciais. Ao mesmo t<strong>em</strong>po,para isso atingir como ponto-ômega,essa política <strong>aqui</strong> <strong>em</strong> foco precisa dainstitucionalização e manutenção dosseus serviços e programasespecíficos, quando criados, numalinha nitidamente estratégica.Ex<strong>em</strong>plificandoAssim, a sociedade civilorganizada 73 poderia apresentar comoáreas estratégicas para a formulação eplanejamento da política de garantia,promoção e proteção dos direitos dacriança e do adolescente algumas dasinúmeras indicações – por ex<strong>em</strong>plo –cont<strong>em</strong>pladas no “Relatório daSociedade Civil sobre a Situação dosDireitos da Criança e do Adolescenteno Brasil”; 74 tanto referentes73Segmento da sociedade com forteconotação ideológica, transformadora e<strong>em</strong>ancipadora, que o Fórum Nacional DCA eseus homólogos nos Estados e <strong>em</strong> algunsmunicípios pretende representar.74Relatório apresentado ao Comitê dosDireitos da Criança das Nações Unidas(Genebra), pela Anced, com a adesão doFórum Nacional dos Direitos da Criança e do


71especificamente ao Sist<strong>em</strong>a deGarantia dos Direitos da Criança e doAdolescente (capítulos 1,4-5 dorelatório) por ex<strong>em</strong>plo,“impl<strong>em</strong>entação de programas oficiaisde proteção a test<strong>em</strong>unhas e vítimasde crimes contra crianças eadolescentes”, “criação de unidadesde internação provisória <strong>em</strong> espaçofísico de das unidades de internaçãoprovisória” quanto referentesgenericamente aos sist<strong>em</strong>as deeducação e de saúde (capítulos 2-3 dorelatório) por ex<strong>em</strong>plo, “investimento<strong>em</strong> programas de nutrição infantil, comênfase na faixa entre 12 e 60 meses”,“fortalecimento do acompanhamento edo controle social da totalidade dosrecursos destinados à educação”.Em ambos os casos, estar-se-iaprocurando operacionalizar a políticade garantia, promoção, proteção dosdireitos humanos da criança e doadolescente, <strong>em</strong> suas linhasestratégicas de ação, na forma doEstatuto da Criança e do Adolescente,da Convenção sobre os Direitos daCriança e da Constituição Federal.Adolescente – DCA e de outras entidades<strong>em</strong> 2004 (a chamada Coalizão da SociedadeCivil Brasileira).Em sínteseFalar-se hoje <strong>em</strong> "política degarantia, promoção e proteção dedireitos humanos da criança e doadolescente" t<strong>em</strong> um novo sentido:acentua a vinculação das suas normasreguladoras e do seu sist<strong>em</strong>a políticoinstitucionalde efetivação dessasnormas, aos instrumentos <strong>em</strong>ecanismos, gerais e especiais,internacionais, regionais (europeu,americano, africano, asiático) enacionais, de garantia, promoção eproteção de direitos humanos.Significa a assunção de umcompromisso maior com a ótica dodireito internacional, dos direitoshumanos e do direito constitucional(direitos fundamentais) brasileiro;afastando a tentação de desvincular omovimento de luta pela <strong>em</strong>ancipaçãode crianças e adolescentes, domovimento maior pela <strong>em</strong>ancipaçãodos cidadãos <strong>em</strong> geral, especialmentedos "dominados", notadamente:trabalhadores, <strong>em</strong>pobrecidos,mulheres, negros, população s<strong>em</strong>terrae s<strong>em</strong>-teto, lésbicas ehomossexuais, transgêneros, índios,descapacitados e pessoas comdeficiência, pessoas que viv<strong>em</strong> comHIV, ciganos, loucos, delinquentes,nordestinos, quilombolas, ribeirinhos


72amazônicos, moradores de favelas,segmentos LGBTT, etc.É preciso retirar a criança e oadolescente do nicho de sacralizaçãoe idealização e da d<strong>em</strong>onização, noqual muitas vezes nosso discurso enossa prática os entronizam oucondenam, para lutar mais concreta ecriticamente pela retirada deles,portanto dos círculos do éden ou doinferno a que estão condenados, comoanjos glorificados ou como anjosdecaídos.ReferênciasBRASIL. Constituição (1988).Constituição da República Federativado Brasil: promulgada <strong>em</strong> 5 de outubrode 1988. São Paulo: Saraiva, 2010.______. Lei n.º 8.069, de 13 de julhode 1990. Estatuto da Criança e doAdolescente. Dispõe sobre o Estatutoda Criança e do Adolescente e dáoutras providências. Diário Oficial [da]República Federativa do Brasil, PoderExecutivo. Brasília, 16 jul. 1990.Disponível<strong>em</strong>:. Acesso <strong>em</strong>: 8 jan. 2011.______. Ministério das RelaçõesExteriores. Atos multilaterais <strong>em</strong> vigorpara o Brasil no âmbito dos direitoshumanos. Brasília, 2007. Disponível<strong>em</strong>: . Acesso<strong>em</strong>: 16 mar. 2011.______. Secretaria Especial dosDireitos Humanos. Programa Nacionalde Direitos Humanos 3. Brasília, 2009.CABRAL, Edson Araújo; NOGUEIRANETO, Wanderlino; BOSCH, MargaritaGarcia; PORTO, Paulo César Maia;NEPOMUCENO, Valéria et al. (Org.)Sist<strong>em</strong>a de garantia de direitos: umcaminho para a proteção integral.Recife: Cendhec / BID, 1993. (ColeçãoCadernos Cendhec, v. 8).GARCÍA MÉNDEZ, Emilio. Infância, leie d<strong>em</strong>ocracia: uma questão de justiça.Revista da Escola Superior daMagistratura do Estado de SantaCatarina, ano 4, v. 5, 1998.IBGE. Diretoria de Pesquisas. Síntesede indicadores sociais 2007: umaanálise das condições de vida dapopulação brasileira. Rio de Janeiro:Comunicação social IBGE, 2007.(Estudos e Pesquisas: InformaçãoD<strong>em</strong>ocrática e Socioeconômica, n.21). Disponível <strong>em</strong>:. Acesso <strong>em</strong>: 16 jan. 2011.LA ROCCA, Césare de Florio.Reflexões sobre liberdade, direitos edeveres humanos. In: BRASIL.Ministério da Justiça. Políticas públicase estratégias de atendimentosocioeducativo a adolescentes <strong>em</strong>conflito com a lei. Brasília: Ministérioda Justiça; Unesco, 1998.LIBÓRIO, Renata Maria Coimbra.Abuso, exploração sexual e pedofilia.In: UNGARETTI, Maria América (Org.).Criança e adolescente: direitos,sexualidade e reprodução. São Paulo.ABMP, 2010.


73LUHMANN, Niklas. Ecologicalcommunication. Chicago, University ofChicago Press, 1989.LYRA FILHO, Roberto. Direito e lei: odireito achado na rua. Brasília: Ed.UnB, 1988.MESQUITA NETO, Paulo de;AFFONSO, Beatriz S. Azevedo(Coord.). Segundo Relatório Nacionalsobre os Direitos Humanos no Brasil.São Paulo: Comissão Teotônio Vilelade Direitos Humanos; Brasília:Ministério da Justiça, 2002.Disponível<strong>em</strong>:. Acesso <strong>em</strong>: 18 nov.2010.NOGUEIRA NETO, Wanderlino (Org.).Atendimento ao adolescente <strong>em</strong>conflito com a lei: reflexões para umaprática qualificada. Brasília: Ed. DCA-SNDH-MJ, 1998a. (Caderno n. 1).______. Direitos humanos geracionais.Fortaleza: SDH & CEDCA-CE, 2005.______. Paradigmas ético-políticos eprincípios normativo-jurídicosnorteadores dosprocedimentos de escuta & inquiriçãode crianças e adolescentes. In: Oficinasobre o Papel do Psicólogo noProcesso de Escuta de Crianças eAdolescentes. Brasília: ConselhoFederal de Psicologia, 2010.______. A proteção jurídico-social.Revista da Anced, v. 2, 1998b. Teseaprovada <strong>em</strong> Ass<strong>em</strong>bleia Geral daAnced.ONU. Convenção sobre os Direitos daCriança (1989). Adotada pelaResolução L. 44 (XLIV) da Ass<strong>em</strong>bleiaGeral das Nações Unidas, <strong>em</strong> 20 denov<strong>em</strong>bro de 1989. Ratificada peloBrasil <strong>em</strong> 24 de set<strong>em</strong>bro de 1990.Disponível<strong>em</strong>:. Acesso <strong>em</strong>: 7 jan. 2011.PNUD. Relatório de desenvolvimentohumano Brasil 2005: racismo, pobrezae violência. Brasília, 2005.http://www.pnud.org.br/gera<strong>pdf</strong>.php?id01=1610TRINDADE, André. Para entenderLuhmann e o direito como sist<strong>em</strong>aautopoiético. Porto Alegre: Liv. doAdvogado, 2007.VICENTE, Cenise Monte. Abrigos:desafios e perspectivas. 1999.Disponível <strong>em</strong>:. Acesso <strong>em</strong>: 8jan. 2011.


74ANEXO Normativa internacional de promoção e proteção de direitos humanosaplicável no BrasilTítuloDataDecreto n.ºPromulgaçãoDataConvenção sobre a Escravatura 25/9/1926 66 14/7/1965Convenção sobre o Instituto IndigenistaInteramericanoAcordo Relativo a Concessão de um Título de Viag<strong>em</strong>para Refugiados que Estejam sob Jurisdição doComitê Intergovernamental de RefugiadosConvenção Interamericana sobre a Concessão dosDireitos Civis à MulherConvenção Interamericana sobre a Concessão dosDireitos Políticos à Mulher24/2/1940 36098 19/8/195415/10/1946 38018 7/10/19552/5/1948 31643 23/10/19522/5/1948 28011 19/4/1950Convenção para a Prevenção do Crime de Genocídio 9/12/1948 30822 6/5/1952Declaração Universal dos Direitos Humanos 10/12/1948Convenção para a Melhoria da Sorte dos Feridos eEnfermos dos Exércitos <strong>em</strong> Campanha (I)Convenção para a Melhoria da Sorte dos Feridos,Enfermos e Náufragos das Forças Armadas no Mar(II)Convenção Relativa ao Tratamento dos Prisioneirosde Guerra (III)Convenção Relativa à Proteção dos Civis <strong>em</strong> T<strong>em</strong>pode Guerra (IV)12/8/1949 42121 21/8/195712/8/1949 42121 21/8/195712/8/1949 42121 21/8/195712/8/1949 42121 21/8/1957Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados 2/7/1951 50215 28/1/1961Convenção sobre os Direitos Políticos da Mulher 31/3/1953 52476 12/9/1963Convenção relativa à Escravatura, assinada <strong>em</strong>Genebra a 25 de set<strong>em</strong>bro de 1926 e <strong>em</strong>endada peloProtocolo aberto à assinatura ou à aceitação na Sededas Nações UnidasConvenção Supl<strong>em</strong>entar sobre a Abolição daEscravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituiçõese Práticas Análogas à EscravaturaConvenção Internacional sobre a Eliminação deTodas as Formas de Discriminação RacialProtocolo Facultativo ao Pacto de Direitos Civis ePolíticos07/12/1953 58563 1/6/19667/9/1956 58563 1/6/19667/3/1966 65810 8/12/196916/12/1966Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos 19/12/1966 592 6/7/1992Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos,Sociais e Culturais19/12/1966 591 6/7/1992Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados 31/1/1967 70946 7/8/1972Convenção Americana sobre Direitos Humanos(Pacto de São José)22/11/1969 678 6/11/1992


75Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formasde Discriminação Contra as MulheresConvenção Contra a Tortura e outros Tratamentos ouPenas Cruéis, Desumanos ou DegradantesConvenção Interamericana para Prevenir e Punir aTorturaProtocolo Adicional à Convenção Americana sobreDireitos Humanos <strong>em</strong> Matéria de DireitosEconômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de SanSalvador)Convenção n.º 169 da Organização Internacional doTrabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais18/12/1979 4377(*) 13/9/200210/12/1984 40 15/2/19919/12/1985 98386 09/11/198917/11/1988 3321 30/12/199927/6/1989 5051 19/4/2004Convenção sobre os Direitos da Criança 20/11/1989 99710 21/11/1990Protocolo à Convenção Americana sobre DireitosHumanos Relativo à Abolição da Pena de MorteAcordo Constitutivo do Fundo para o Desenvolvimentodos Povos Indígenas da América Latina e do CaribeConferência Mundial sobre Direitos Humanos(Declaração e Programa de Ação) VienaConvenção Interamericana sobre Tráfico Internacionalde MenoresConvenção Interamericana para Prevenir, Punir eErradicar a Violência contra a MulherConvenção Interamericana para a Eliminação deTodas as Formas de Discriminação contra as PessoasPortadoras de DeficiênciaProtocolo Facultativo à Convenção para a Eliminaçãode Todas as Formas de Discriminação contra asMulheresDeclaração de Reconhecimento da CompetênciaObrigatória da Corte Interamericana de DireitosHumanosDeclaração Facultativa à Convenção Internacionalsobre a Eliminação de Todas as Formas deDiscriminação RacialProtocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitosda Criança relativo ao envolvimento de crianças <strong>em</strong>conflitos armadosProtocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitosda Criança referente à venda de crianças, àprostituição infantil e à pornografia infantilProtocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura eoutros Tratamentos ou Penas Cruéis,Desumanos ouDegradantes8/6/1990 2754 27/8/199824/7/1992 3108 30/6/199925/6/199318/3/1994 2740 20/8/19989/6/1994 1973 1/8/19967/6/1999 3956 8/10/20016/10/1999 4316 30/7/20024463 8/11/20024738 12/6/200325/5/2000 5006 8/3/200425/5/2000 5007 8/3/200418/12/2002 6.085 19/4/2007Fonte: BRASIL. Ministério das Relações Exteriores (2007)(*) O Decreto n.º 4.377, de 13/9/2002 revogou o Decreto n.º 86.460, de 20/3/1984


76Rita Wigna de Souza Silva IntroduçãoO artigo que ora apresentamosé fruto de uma pesquisa desenvolvidana Faculdade de Serviço Social daUniversidade do Estado do Rio Grandedo Norte. O estudo visa compreendercomo se dá a percepção das mulheres<strong>em</strong> situação de violência e dos (as)profissionais que trabalham no Juizadode Violência Doméstica e Familiarcontra a Mulher (JVDFM) acerca daaplicação da Lei Maria da Penha nacidade de Mossoró-RN. Pretend<strong>em</strong>osespecificamente identificar apercepção das mulheres queingressaram com processo judicial noJVDFM sobre a aplicação da Lei Mariada Penha <strong>em</strong> Mossoró; b<strong>em</strong> comoconhecer na ótica das mulheres aspossibilidades de aplicação dessa lei<strong>em</strong> Mossoró-RN; investigar as açõesdesenvolvidas pelo JVDFM para que aLei Maria da Penha seja aplicada <strong>em</strong>Mossoró; apreender a percepção dos(as) profissionais do Juizado de Assistente Social e Especializanda <strong>em</strong>Direitos Humanos na Universidade doEstado do Rio Grande do Norte (UERN).Violência contra a Mulher sobre aaplicação da Lei Maria da Penha <strong>em</strong>Mossoró.A violência contra a mulher éuma realidade presente na vida damaioria das mulheres, principalmente,das pobres e negras. Ela se dá <strong>em</strong>razão da cultura patriarcal e machistaque é incorporada por toda asociedade que oprime e violenta asmulheres, pois, <strong>em</strong>bora homens <strong>em</strong>ulheres nasçam iguais, a sociedadeimpõe papéis diferenciados paraambos os sexos, <strong>em</strong> que prevalece <strong>em</strong>todos os aspectos a superioridade doshomens sobre as mulheres.Na realidade brasileira, existeuma violência social disfarçada que sereflete fort<strong>em</strong>ente no dia a dia de todasas mulheres fora de sua casa, que fazcom que sejam discriminadas na vidapública: no trânsito, no salário inferiorao dos homens, na maior dificuldadede ingressar no mercado de trabalho.Em vista disso, elas constitu<strong>em</strong> amaioria da população mais pobre domundo. Além dessa violência social,exist<strong>em</strong> as violências físicas, sexuais,morais, psicológicas e patrimoniais,que costumam ocorrer frequent<strong>em</strong>entedentro de casa, praticadas pelo


77companheiro, marido, namorado,amante ou algum ex, o que as tornamais vulneráveis a essas práticas.Assim, as mulheresreivindicaram ao Estado serviços decombate a essa forma de violência,tendo como um dos instrumentos deintervenção as políticas públicas. Em1981, foram criados os grupos SOSMulher no Rio de Janeiro, 1 <strong>em</strong> PortoAlegre e Belo Horizonte que seconstituíram num espaço de reflexão <strong>em</strong>udança da condição de vida dasmulheres <strong>em</strong> situação de violência.Mais tarde, por força da pressão domovimento f<strong>em</strong>inista, foramimplantadas as DelegaciasEspecializadas no Atendimento àsMulheres (DEAM). No Brasil, aprimeira delegacia foi inaugurada nacidade de São Paulo <strong>em</strong> 1985. Noestado do Rio Grande do Norte, nacidade de Natal, a instalação ocorreu<strong>em</strong> 1987, e <strong>em</strong> 1993, no município deMossoró, local de nosso estudo.Na década de 1990, aprobl<strong>em</strong>ática da violência contra a1“Os SOS reuniam representantes dediferentes grupos f<strong>em</strong>inistas, ligados adiferentes correntes ideológicas e posiçõespolíticas. O objetivo da entidade eraestabelecer vínculos entre as militantesf<strong>em</strong>inistas e as mulheres vítimas deviolência, visando educá-las para o combateda violência através do f<strong>em</strong>inismo.”(IZUMINO, 1998).mulher foi reconhecida pelaOrganização Mundial de Saúde (OMS)e pela Organização Panamericana deSaúde (OPAS) e associações deprofissionais como um probl<strong>em</strong>a desaúde pública, considerada umaviolação aos direitos humanos e umlimite à d<strong>em</strong>ocracia pelas agências dosist<strong>em</strong>a da Organização das NaçõesUnidas (ONU), <strong>em</strong> diversos tratados,acordos e convenções internacionais.O método materialista históricodialéticofundamentou a pesquisa,visto que esse método busca conhecero real e suas contradições, deixandode lado análises simplistas esuperficiais desvendando os fatos paraalém de sua imediaticidade. Tomandocomo base esse método, a pesquisase fundamentou nas seguintescategorias teórico-metodológicas:violência contra a mulher, patriarcadoe relações sociais de gênero,entendendo-as numa relação detotalidade e contradição, inseridas nocontexto das relações capitalistas deprodução e da opressão advinda dosist<strong>em</strong>a patriarcal, que impõe, dentreoutros valores, a subordinação dasmulheres aos homens.No que se refere à categoriaviolência contra a mulher,compreend<strong>em</strong>os que ela é fruto dasubordinação e opressão das


78mulheres no sist<strong>em</strong>a patriarcalcapitalista.Essa violência, segundoTeles e Melo (2002), constitui-se <strong>em</strong>uma das formas mais perversas dediscriminação das mulheres, além derepresentar uma grave violação aosdireitos humanos das mulheres,impedindo-as de tomar suas decisõesde forma livre e autônoma, deexpressar as próprias opiniões oudesejo e de viver melhor.Com relação ao patriarcado,outra categoria que fundamentou apesquisa, entend<strong>em</strong>os que ele serefere à opressão e dominação doshomens sobre as mulheres. O sist<strong>em</strong>apatriarcal t<strong>em</strong> prejudicadod<strong>em</strong>asiadamente as mulheres, pois,além de desvalorizá-las <strong>em</strong> diversosespaços sociais – família, trabalho,sexualidade, sociabilidades, etc. –impõe um modelo de f<strong>em</strong>inino a serseguido, modelo esse que controlasuas ações e atitudes.Outra categoria utilizada nainvestigação foi relações sociais degênero. Essa categoria é entendida,segundo Scott (1990), como asrelações sociais construídas entre ossexos e como uma das primeirasformas de expressão do poder nasociedade, b<strong>em</strong> como a partir dopensamento de Saffioti (2004), quandoafirma que o biológico se constitui <strong>em</strong>unidade dialética com o social, sendoatravessados pela história. Dessaforma, compreend<strong>em</strong>os o gênerocomo uma categoria histórica,analítica, relacional e ontológica nospossibilitando o entendimento dasrelações entre os gêneros para alémda esfera anátomo-fisiológica earticulada com o sist<strong>em</strong>a patriarcal.Nele, tais relações são permeadaspelo poder masculino e pelasubordinação das mulheres aoshomens. Além do mais, tais relaçõessão construídas historicamente deacordo com a dinâmica da sociedadena qual estão insertas.Elaboramos o instrumento deprodução de dados, o qual seconstituiu <strong>em</strong> dois roteiros deent<strong>revista</strong> s<strong>em</strong>iestruturada. O primeirodirecionado às mulheres, contém operfil sociod<strong>em</strong>ográfico dasent<strong>revista</strong>das e 20 perguntas; osegundo direcionado ao juiz e àpromotora de Justiça do JVDFM, como perfil sociod<strong>em</strong>ográfico do(a)ent<strong>revista</strong>do(a) e 14 perguntas. Comisso, realizamos 12 ent<strong>revista</strong>s, todasno JVDFM, dentre as quais, 10 commulheres <strong>em</strong> situação de violência queiniciaram processo. A finalidade eradar oportunidade para as mulheresfalar<strong>em</strong> e avaliar<strong>em</strong> os limites e aspossibilidades de aplicação da Lei


79Maria da Penha <strong>em</strong> Mossoró, uma vezque consideramos importante apercepção e análise dos sujeitos quetenham procurado o serviço ou estãosendo favorecidos com a referida lei, ese está sendo satisfatória suaaplicação. Também uma ent<strong>revista</strong>com o juiz e outra com a promotora deJustiça, com a intenção de saber apercepção deles (a) acerca daaplicação da Lei Maria da Penha <strong>em</strong>Mossoró.Vale ressaltar a participaçãosist<strong>em</strong>ática nas audiências. Esseinstrumento nos possibilitou vivenciarcomo as mulheres são atendidas ecomo proced<strong>em</strong> a uma audiência noJVDFM. Essas informações foramimportantes para análise e registradas<strong>em</strong> nosso diário de campo.A percepção das mulheres <strong>em</strong>situação de violência acerca daaplicação da Lei Maria da Penha<strong>em</strong> Mossoró-RNA violência contra a mulher éuma das expressões da questãosocial, 2uma violação aos direitoshumanos e um grave probl<strong>em</strong>a desaúde pública que v<strong>em</strong>redimensionando-se, ganhando novoscontornos. Por isso, necessita da2 Apreendida como o conjunto das expressõesdas desigualdades da sociedade capitalista(IAMAMOTO, 2005).intervenção do Estado com odesenvolvimento de políticas públicasque venham não somente combater,mas também prevenir essa forma deviolência.Constatamos que o JVDFM nãot<strong>em</strong> sede própria, está <strong>em</strong> um localcedido pela Escola dos Magistrados doRio Grande do Norte (Esmarn), asinstalações físicas são pequenas, nãodispõe de equipe multidisciplinarcomposta por profissionais de ServiçoSocial, Psicologia, Jurídico e deSaúde, fato esse destacado naent<strong>revista</strong> realizada com o juiz, o queprejudica a atuação do PoderJudiciário. No município de Mossoró,não existe uma rede integrada deserviços de proteção às mulheres <strong>em</strong>situação de violência, sendo entãodificultado o trabalho dessesprofissionais.Tomando como base osresultados da pesquisa de campoobtidos nas ent<strong>revista</strong>s realizadas comas mulheres <strong>em</strong> situação de violência,constatamos que <strong>em</strong> Mossoró aaplicação da Lei Maria da Penha t<strong>em</strong>serestringido à aplicação das MedidasProtetivas de Urgência, ainda que deforma limitada, <strong>em</strong> razão da falta derede integrada de serviços de apoio àsmulheres <strong>em</strong> situação de violência, eda imposição de penas não restritivas


80de liberdade aos agressores, nãotendo eles a obrigatoriedade departicipar de programas de reabilitaçãoe reeducação, conforme preconiza aLei Maria da Penha, uma vez que esseserviço não existe <strong>em</strong> Mossoró.Vale ressaltar que a maioria dasmulheres ent<strong>revista</strong>das foi agredidapelo ex-companheiro, porque ele nãoconcordou com o fim dorelacionamento. Os agressores nãoaceitam a separação e, mesmo assim,quando a mulher toma corag<strong>em</strong> paraenfrentar essa realidade, eles nãoadmit<strong>em</strong> e quer<strong>em</strong> continuarmantendo o controle sobre elas. Telese Melo afirmam que “eles não aceitamperdê-las e reproduz<strong>em</strong> a ideia de queou será minha ou não será de maisninguém” (TELES; MELO apudQueiroz et al. 2009, p. 10). O agressort<strong>em</strong> a mulher como uma propriedadeprivada, objeto dele, assim reproduzum sentimento de posse e domíniosobre ela. Em nossa pesquisa, um dosagressores foi o próprio pai. Nessesentido, ao perguntarmos sobre asviolências sofridas, ela afirma:Violência psicológica, física [...] é praver se ele toma consciência que isso éum erro [...] tudo b<strong>em</strong> se eu fosse umapessoa ruim, usasse droga, fosseviciada, fizesse alguma coisa de mal[...] sou casada, vivo com meu esposoe com meu filho [...] só que ele s<strong>em</strong>prefoi muito agressivo e eu estoucansada; casada e tendo de apanhardo pai. (Ent<strong>revista</strong>da 4, JVDFM). 3Apreend<strong>em</strong>os dessa fala e dasd<strong>em</strong>ais ent<strong>revista</strong>das que elas têm umbom conhecimento da violência contraa mulher para além da física, taiscomo a violência verbal, psicológica,sexual, mesmo tendo sofrido somenteviolência física e psicológica.Vale ressaltar que a violênciasocial não está tipificada na Lei Mariada Penha, mas está presente no dia adia das mulheres nos âmbitos públicoe privado, <strong>em</strong> que são discriminadasno trânsito, receb<strong>em</strong> salário inferior aopago aos homens, b<strong>em</strong> como d<strong>em</strong>aistipos citados anteriormente. Dasent<strong>revista</strong>das, percebe-se que namaioria são parte de uma populaçãomais pobre do mundo, que totalizaaproximadamente 70%, conformeMészaros (2005).De acordo, com o discurso dasent<strong>revista</strong>das, algumas consideram asdrogas, tanto lícitas quanto ilícitas, umfator determinante para a existência daviolência. Uma delas afirmou que “seuex-companheiro chegava alcoolizadoou drogado e vinha perturbá-la”(ent<strong>revista</strong>da 1, JVDFM,). Infelizmente,ela não compreende que a violência3 Denominamos as ent<strong>revista</strong>das por números,para preservar sua identidade.


81contra a mulher é um produto daarticulação da subordinação dasmulheres aos homens com a opressãoimposta pelo sist<strong>em</strong>a patriarcal; e ouso de drogas apenas potencializa aviolência.Nesse sentido, observamos nasent<strong>revista</strong>s alguns pontos descritos pornossas ent<strong>revista</strong>das comocausadores da violência, tais como ouso de drogas, bebidas alcoólicas,ciúmes e outros. Entend<strong>em</strong>os queesses pontos são fatores quepotencializam a violência, contudo,jamais como causa. Segundo Azevedo(1985), esses mitos precisam serquestionados para não justificar aviolência. Mesmo que se tenha umarelação entre álcool/droga e violência,não t<strong>em</strong>os argumentos suficientespara afirmar que sejam os causadoresdo comportamento violentodesenvolvido pelos agressores.Azevedo relata, nesses casos, aintenção do hom<strong>em</strong> <strong>em</strong> bater <strong>em</strong> suaesposa ou companheira. Intençãoessa que pode ser representada poruma vontade explícita ou oculta àespera de um pretexto para praticaratos violentos contra sua mulher.Constatamos que a Lei Maria daPenha não está sendo muitodivulgada, uma vez que as mulheresent<strong>revista</strong>das evidenciaram nãoconhecer esse instrumento legal;algumas, quando conhec<strong>em</strong>, é deforma superficial. Os meios decomunicação social como a televisão,o rádio e os jornais são osinstrumentos que faz<strong>em</strong> maiorexplicitação da lei, uma vez que asent<strong>revista</strong>das que a conhec<strong>em</strong>afirmaram ter sido por meio de umdesses mecanismos de informação.Contudo, tal lei é, na maioria dasvezes, transmitida de forma simplista,fato que se reflete na compreensãodas mulheres sobre essa lei. Outrasnão tiveram oportunidade de ter esseconhecimento, somente sendopossível após a ida ao JVDFM. Fatoesse que desperta reflexões, uma vezque antes de ir<strong>em</strong> a esse local elassão atendidas na DEAM. Presume-seque na DEAM as mulheres não estãosendo informadas acerca dos seusdireitos. As mulheres ent<strong>revista</strong>dasconfirmaram ter muitas expectativas<strong>em</strong> relação à Lei Maria da Penha. Elasquer<strong>em</strong> que seu agressor as deixe <strong>em</strong>paz, não as procure mais, afast<strong>em</strong>-sedefinitivamente de sua vida. Àpergunta sobre suas expectativas <strong>em</strong>relação à Lei Maria da Penha, elasresponderam:Se não fosse essa Lei Maria daPenha, não tinha a qu<strong>em</strong> recorrer,procurar uma ajuda, me informar [...]


82acredito <strong>em</strong> parte, não fica um policialdo seu lado, ele pode chegar e matar,se ele não usar arma, num talvez evita[...] por um lado, é bom, porque ele vait<strong>em</strong>er um pouco a justiça, mas poroutro, não é seguro [...] (Ent<strong>revista</strong>da4, JVDFM).Acredito. Só não acredito nos que vãoaceitar a justiça, ter uma vida normal,porque se os homens de boa vontadeque têm poder e autoridade nãobarrar, qu<strong>em</strong> vai barrar? mas euacredito sim [...] Antes, como eu nãotinha muito conhecimento, achava quenão ia ser aplicada, mas agora, graçasa Deus, eu tive um amparo perante alei. (Ent<strong>revista</strong>da 7, JVDFM).Eu acho que ele vai mudar; já estamoscom três meses que ele voltou paramim [...] o negócio dele é ciúme [...]agora com esse aperto que ele teve[...] (Ent<strong>revista</strong>da 3, JVDFM).Contribuiu para o hom<strong>em</strong> que t<strong>em</strong>medo de ser punido; hoje são poucosque têm medo da punição. Valeu oprogresso. (Ent<strong>revista</strong>da 10, JVDFM).[...] acredito que ele não vai maisfazer, ele disse que não fazia mais.Acredito que ele foi punido [...] agora,o que acontecer, é procurar a justiça.Eu pensava que não acontecia, não iapreso, ia só conversar como era queantigamente, [...] e depois mandavapara casa. (Ent<strong>revista</strong>da 8, JVDFM).A expectativa das mulheres <strong>em</strong>relação à Lei Maria da Penha é queseu agressor cumpra o acordo firmadodurante a audiência: que se afastarádelas, não mais vai procurá-las, n<strong>em</strong>se aproximar de sua residência. Elastêm a esperança de que afastado doconvívio habitual, existirá maispossibilidade de acabar com asviolências sofridas.A ent<strong>revista</strong>da 4 acredita <strong>em</strong>parte na justiça e na polícia, porque,ao iniciar o processo, as mulheres nãotêm a devida proteção que necessitamquando <strong>em</strong> situação de violência. A LeiMaria da Penha, <strong>em</strong> seu artigo 8.º,garante essa proteção, mas não seaplica na prática por falta deinvestimentos por parte dos poderespúblicos.A ent<strong>revista</strong>da 7 diz que a leicontribuiu muito para o enfrentamentoda violência contra a mulher. Crê najustiça, na polícia, mas não acredita nocumprimento dessa lei por muitoshomens. Espera com o processoconseguir ter uma vida normal, ouseja, s<strong>em</strong> violência.A ent<strong>revista</strong>da 3 afirma que oagressor mudou, melhorousignificativamente. Justifica a violênciacom o ciúme doentio do companheiro,mas já o perdoou e estão juntos. Apartir do momento <strong>em</strong> que deu inícioao processo judicial contra ele, oagressor levou um susto, ficouintimidado e mudou seucomportamento com medo daspenalidades que poderia sofrer. Amulher nesse caso utilizou a lei comomecanismo para melhorar e reconciliarsua relação.Atribuímos essa mudança decomportamento do agressor à terceirafase do ciclo da violência conhecidacomo lua de mel, uma vez que o


83agressor começa a agradar a mulher ea fazer promessas de amor e diz quevai mudar.As duas últimas ent<strong>revista</strong>dasdeixam entender que a lei serve comomecanismo de intimidação para oshomens <strong>em</strong> relação à prática daviolência contra a mulher, b<strong>em</strong> comoseu interesse, <strong>em</strong> que, caso oagressor volte a procurá-la ouameaçá-la, ele sofra novamente asdevidas punições p<strong>revista</strong>s na lei.Assim, a Lei n.º 11.340/06, de 7 deagosto de 2006, traz <strong>em</strong> seu artigo 20,parágrafo único: “O juiz poderárevogar a prisão preventiva se, nocurso do processo, verificar a falta d<strong>em</strong>otivo para que subsista, b<strong>em</strong> comode novo decretá-la, se sobrevier<strong>em</strong>razões que a justifiqu<strong>em</strong>.” (BRASIL,2006). Contudo, muitas ent<strong>revista</strong>dasnão quer<strong>em</strong> que seu agressor sejapreso, deseja apenas dar “um susto”nele, fazê-lo ter medo da prisão. Issopode ser confirmado nas falasseguintes:Eu só o liberei porque ele só fez meameaçar, não chegou n<strong>em</strong> a bater <strong>em</strong>mim. (Ent<strong>revista</strong>da 1, JVDFM).Eu estou acreditando, não sei docoração dele, só Deus é qu<strong>em</strong> sabe.Agora com esse aperto que ele teve[...] perguntou se ele não queria doisou três meses de prisão [...] adorei,gostei d<strong>em</strong>ais. (Ent<strong>revista</strong>da 3,JVDFM).[...] a lentidão da justiça as mulherest<strong>em</strong><strong>em</strong> [...] só que eu acredito que émelhor você tentar buscar umasolução do que ficar calada, porqueuma hora morre, e não sabe n<strong>em</strong> porque morreu [...] Eu acho que umapunição dessas é uma boa. Ele saiude lá b<strong>em</strong> mansinho [...] antes tinhamuito a desejar, a punição era b<strong>em</strong>menor, era só para pagar com cestasbásicas, só bobag<strong>em</strong>, mas hoje oagressor vai preso se descumprir.(Ent<strong>revista</strong>da 4, JVDFM).A Lei Maria da Penha não prevêpenas alternativas. Observamos queas ent<strong>revista</strong>das não desejam que oagressor seja preso. Elas não deramcontinuidade ao processo, somentequeriam dar um susto e intimidar oagressor. Além de outros fatoresargumentados, como a lentidão dajustiça, o que coloca <strong>em</strong> risco a vidadas mulheres <strong>em</strong> situação deviolência, mesmo sendo p<strong>revista</strong> aproteção delas na Lei n.º 11.340/06<strong>em</strong> seu artigo 11.A ent<strong>revista</strong>da 4 cita a Lei n.º9.099/95, pela qual antes eramjulgados os casos de violência, umavez que o agressor pagava penasalternativas, tais como cestas básicasou prestação de serviço àcomunidade. Ela também conhece aLei Maria da Penha, que julga oscrimes praticados contra as mulheres<strong>em</strong> situação de violência.No entanto, notamos que a Lein.º 11.340/06 funciona como um


84mecanismo para intimidar os homensque praticam violência contra suamulher, já que os artigos previstos nalei, como as medidas protetivas deurgência, a prisão <strong>em</strong> flagrante doagressor ou se descumprir as medidase outras, faz<strong>em</strong> os agressores t<strong>em</strong>eras sanções p<strong>revista</strong>s na lei nos casosde violência contra a mulher.Com relação ao atendimento noJVDFM, as ent<strong>revista</strong>das, <strong>em</strong> suamaioria, avaliaram de forma positiva,afirmando que depois da Lei Maria daPenha o atendimento melhoroubastante, visto que a justiça tornou-s<strong>em</strong>ais ágil e eficiente. Com isso, eladeixa claro <strong>em</strong> sua fala que antes daLei Maria da Penha as mulheresesperavam um longo período paraser<strong>em</strong> atendidas. T<strong>em</strong>po esse quecustava, muitas vezes, a própria vida.Contudo, elas ve<strong>em</strong> esse bomatendimento não como um direito, mascomo uma questão de merecimento oufavor. Assim, restringe o atendimentoao plano pessoal e à perspectiva deum bom acolhimento. Elas nãocompreend<strong>em</strong> que um bomatendimento vai além da lógica dapessoa ser b<strong>em</strong> recebida. Um bomatendimento passa pela informação aopúblico sobre seus direitos, os meiosde exercê-los, onde e a qu<strong>em</strong> recorrerpara materializá-los.Consideramos que exist<strong>em</strong>muitos limites no atendimento àsmulheres no JVDFM, porque todas asent<strong>revista</strong>das afirmaram que nãoforam informadas sobre os serviços deproteção às mulheres que sofr<strong>em</strong>violência. Apesar de sabermos queesses serviços, <strong>em</strong> grande parte, sãoprecários, entend<strong>em</strong>os que eles sãonecessários na luta contra a violênciadoméstica e familiar contra a mulher,pois esses serviços pod<strong>em</strong>proporcionar às vítimas um tratamentomais adequado e uma motivação paraefetivar a denúncia.A percepção de profissionais doJuizado da Violência Domésticae Familiar sobre a Lei Maria daPenha <strong>em</strong> Mossoró-RNA Lei Maria da Penha configuraa violência contra a mulher comoqualquer “ação ou omissão baseadano gênero que lhe cause morte, lesão,sofrimento físico, sexual ou psicológicoe dano moral ou patrimonial”,conforme o artigo 5.º. Além de relataras relações pessoais independentesde orientação sexual e também asformas de violação dos seus direitoshumanos, perceb<strong>em</strong>os essaconcepção no discurso do juiz do


85JVDFM de Mossoró ao perguntamos oque é violência contra a mulher:É qualquer ação ou omissão quepraticada contra alguém do sexof<strong>em</strong>inino cause um dano moral,patrimonial, sexo, psicológico [...]esses tipos de violência que eu faleiantes, baseada <strong>em</strong> uma relação depoder, discriminação, preconceito [...]nessa estrutura patriarcal que nóst<strong>em</strong>os <strong>em</strong> nossa cidade, isso éviolência de gênero contra a mulher.(Ent<strong>revista</strong> com o juiz do JVDFM).O ent<strong>revista</strong>do t<strong>em</strong> umconhecimento profundo sobre violênciacontra a mulher – os tipos de violência,seus determinantes e a Lei Maria daPenha, Lei n.º 11.340/06. Lei que criamecanismos para coibir e prevenir aviolência contra a mulher nos termosdo inciso 8.º do artigo 226 daConstituição Federal, da Convençãosobre a Eliminação de todas asFormas de Violência contra a Mulher,da Convenção Interamericana paraPrevenir, Punir e Erradicar a Violênciacontra a Mulher, conforme o artigo 1.ºda referida lei.Nessesentido,compreend<strong>em</strong>os, com base nessesinstrumentos legais, que o Estado t<strong>em</strong>a responsabilidade com as mulheres<strong>em</strong> situação de violência, de prevenir,proteger as mulheres e punir seuagressor. A respeito disso, apromotora de Justiça do JVDFM deMossoró afirma:A violência contra a mulher é todo ogênero que existe de violentar umamulher. Inclusive, o hom<strong>em</strong> hoje podeser sujeito passivo da violênciadoméstica. Pode existir a violência atéde um filho (a) contra a mãe. O gênerode violentar uma mulher que esteja noseu âmbito familiar, seja decoabitação, seja de residir realmentefixo, seja simultaneamente,circunstancialmente se encontre,decisões já foram tomadas, e era oque eu e Renato (Juiz do JEVDFM)vínhamos fazendo. Violência contra amulher é todo o gênero que acontece<strong>em</strong> que a mulher é sujeito passivo dequalquer ato de violência, quando diza lei de dano, de lesão, de ameaça, depatrimonial. Inclusive, filhos que furtama mãe, pelo direito penal, não sãoviolências enquanto a violênciadoméstica, o tipo penal da violênciapreocupa-se com isso [...]. (Promotorade justiça do JVDFM).Ficou claro nessa ent<strong>revista</strong> quea promotora de justiça t<strong>em</strong> umconhecimento profundo sobre aviolência contra a mulher, pois elaabordou pontos que estão previstos naLei n.º 11.340/06 conforme seu artigo7.º, b<strong>em</strong> como acrescentando novosfatos quando expõe que não só ohom<strong>em</strong> pode ser sujeito ativo daviolência doméstica, <strong>em</strong> virtude dessasviolências ser<strong>em</strong> executadas combase no gênero, mas e também podeser de um filho (a) ou, então aocontrário. Esse foi um fato novo. Apromotora acrescentou informaçõescom relação a essas decisõesrecentes do Supr<strong>em</strong>o Tribunal Federale outros tribunais, uma vez que asmulheres pod<strong>em</strong> ser sujeitos ativos da


86violência, a ex<strong>em</strong>plo nos casos <strong>em</strong>que as mães agrid<strong>em</strong> as filhas, vistoque esses casos estão sendoencaminhados pelos ConselhosTutelares, DEAM para o JVDFM.Pod<strong>em</strong>os visualizar essa ideia <strong>em</strong> umtrecho da fala <strong>em</strong> uma das ent<strong>revista</strong>s:[...] alguns esclarecimentos, que eunão poderia bater na minha filha. Eudisse a ele que já que eu não poderiabater, ou eu batia nela agora ouquando ela ficar mais velha, qu<strong>em</strong> vaibater nela é a polícia. (Ent<strong>revista</strong>da 6– JVDFM).Tiv<strong>em</strong>os a oportunidade deassistir a algumas audiências erealmente esses casos estão sendojulgados no JVDFM. Tais como mãeque bate na filha, hom<strong>em</strong> que bate nocarro da mulher no trânsito, entreoutros. Isso nos instiga a refletir sobreo fato de que a violência contra amulher t<strong>em</strong> como base a desigualdadede gênero e são julgados no JVDFM; eesses outros casos de violência quetambém estão sendo encaminhadosao JVDFM eram para ser julgados najustiça comum, mas, pelo fato de oJVDFM ter maior rapidez e eficiênciana resolução dos casos, estes tambémestão sendo julgados no Juizado.Para o juiz do Juizado deViolência Doméstica e Familiar contraa Mulher não existe discriminação. Deacordo com a lei, independe se forhom<strong>em</strong> ou mulher o autor daquelainfração, crime ou contravenção,desde que seja praticado contra outramulher e tenha sua base no gênero.Evidenciamos essa afirmação <strong>em</strong> umtrecho da sua fala:Primeiro que no juizado não hádiscriminação, na lei se é hom<strong>em</strong> oumulher o autor daquela infração, crimeou contravenção, conquanto que sejafeito contra outra mulher baseada nogênero. A mulher pode assumir dentroda sociedade um papel masculino epreconceituoso. Acabamos de receberdiversos casos que sãoexclusivamente de violência contra amulher praticada ou pelo filho, ou pelafilha, às vezes até pelo marido, quenão são violência de gênero. Como oJVDFM acaba dando uma vazão, umaresposta mais rápida, acabamosaceitando o que não deveria ser. Ocorreto é que esses casos específicosfoss<strong>em</strong> para a justiça comum. (Juiz doJVDFM).Salientamos a importância deentender a diferenciação entre asterminologias da violência de gênero eviolência contra a mulher, mesmo queno atual momento esta esteja sendojulgada no JVDFM. A violência degênero é expressa pela desigualdadeentre homens e mulheres, uma vezque o hom<strong>em</strong> é superior à mulher <strong>em</strong>nossa sociedade, e tendo como basede sustentação, o sist<strong>em</strong>a patriarcalcapitalista,o qual mantém essadesigualdade oprimindo e explorandoas mulheres.


87A Lei Maria da Penha traz <strong>em</strong>seu conteúdo mecanismos deaplicação que permit<strong>em</strong> maiorsegurança às mulheres para tercondições de denunciar e formalizar asagressões ou qualquer outro tipo deviolência praticada contra elas. Porém,vale salientar que a erradicação daviolência contra a mulher não se limitaa tornar mais severas as medidaspenais contra os agressores. A LeiMaria da Penha também enfoca eestabelece medidas de assistênciasocial como a inclusão da mulher <strong>em</strong>situação de risco no cadastro deprogramas assistenciais dos governosfederal, estadual e municipal,conforme seu artigo 8.º, inciso IX.Por outro lado, analisamos quea Lei Maria da Penha contribui para oenfrentamento da violência contra amulher por criar esses mecanismospara coibir e combater essa forma deviolência. Ao perguntamos ao juiz se alei contribuiu para o enfrentamentodessa violência, obtiv<strong>em</strong>os a seguinteinformação:Seguramente, só o fato da existênciada lei, ainda que não se aplicasse todoo mecanismo que t<strong>em</strong> nela. Contribuiuno sentido da discussão que elapossibilitou na sociedade; só colocarna agenda do dia a questão do gênerof<strong>em</strong>inino, a questão da discriminaçãocontra a mulher [...] faz da Lei Mariada Penha algo positivo. Não só isso,nós t<strong>em</strong>os hoje juizadosespecializados, t<strong>em</strong>os um tratamentodiferenciado, t<strong>em</strong>os a DEAM [...]. Umparalelo das DEAM e o JVDFM; antesde 1985, nós não tínhamos DEAM. Aprimeira surgiu <strong>em</strong> 1985, os juizadosou varas surgiram <strong>em</strong> 2006. (Juiz doJVDFM).Assim, comprovamos na falado juiz que a Lei n.º 11.340/06contribui para o enfrentamento daviolência contra a mulher no municípiode Mossoró. Acrescentamos aimportância de se estar discutindo nasociedade a violência praticada contraesse segmento, a questão de gênero,a discriminação contra a mulher, etc.Somado a isso, a conquista de termosno município o Juizado de ViolênciaDoméstica e Familiar contra a Mulher,implantado <strong>em</strong> junho de 2009.Reiteramos que o Juizado não t<strong>em</strong>sede própria, funciona <strong>em</strong> um localcedido pela Escola de Magistratura doRio Grande do Norte (Esmarn), nãot<strong>em</strong> equipe multidisciplinar, o que tornadifícil a aplicação da Lei Maria daPenha na cidade de Mossoró.Atribuímos isso ao fato de o Estado seesquivar de suas obrigações noenfrentamento da violência contra amulher. Antes do JVDFM, os casos deviolência eram encaminhados à 5.ªVara Criminal, que tratava também doscrimes de tráfico de drogas. Aoperguntarmos à promotora de Justiçadesse Juizado, ela respondeu:


88Certamente, mas vai contribuir aindaquando existir<strong>em</strong> as casas de apoio.Elas hoje enfrentam por saber<strong>em</strong> quet<strong>em</strong> punição, acima de tudo, mesmochorando, como eu vejo muitas mães,n<strong>em</strong> tanto das mulheres <strong>em</strong> relação aomarido; mas as mães, que sab<strong>em</strong> que,por mais que elas chor<strong>em</strong> e vãodenunciar os filhos, sab<strong>em</strong> que vaicaber uma cadeia para eles, e vão tirareles e diminuir pelo menos por certot<strong>em</strong>po ou vai segurar eles, porque ocrack é muito difícil de sair [...].(Promotora de justiça do JVDFM).Notamos que a promotora deJustiça <strong>em</strong> sua fala confirma que a Lein.º 11.340/06 contribuiu para oenfrentamento da violência contra amulher. Ressaltou também a certezada punição dos agressores, uma vezque, antes da lei, os crimes deviolência eram julgados pela Lei n.º9.099/95, e as mulheres tinham asensação de impunidade pelo fato deos agressores não ser<strong>em</strong> presos,somente pagar<strong>em</strong> penas pecuniárias,isto é, cestas básicas ou prestação deserviços à comunidade.Outro ponto que merece seranalisado é <strong>em</strong> relação às drogas, poismuitas mulheres, como a promotora deJustiça salientou, sofr<strong>em</strong> violência pelofato de o agressor estar drogado. Noentanto, a verdade é que a drogapotencializa a agressividade, mas nãoé sua causa. Embora um grandenúmero de mulheres atribua à drogaou à bebida o comportamento violentode seu parceiro, n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre elesestão alcoolizados ou drogados naocasião dos desentendimentos,conforme pesquisa realizada porSaffioti e Almeida (1995) e Bandeira(1999).O juiz relata <strong>em</strong> sua ent<strong>revista</strong> afalta de articulação das três esferas degoverno, uma vez que a Lei n.º11.340/06 é um mecanismo decoibição e combate à violência contraa mulher que está entre as questõesde segurança pública; assim, é deresponsabilidade das três esferas degoverno, conforme seu artigo 8.ºcitado anteriormente. O ent<strong>revista</strong>dodestaca que, somente com o apoiodessas três esferas direcionadas paraa erradicação da violência contra amulher, é que obter<strong>em</strong>os resultadossatisfatórios para a efetivação da lei.Na cidade de Mossoró, exist<strong>em</strong>diversos limites para a aplicação daLei Maria da Penha. Segundo dadosda pesquisa, 4 para que realmente sejaefetivada, a Lei Maria da Penha4 De acordo com os resultados da pesquisa: apercepção das mulheres <strong>em</strong> situação deviolência acerca da impl<strong>em</strong>entação da LeiMaria da Penha <strong>em</strong> Mossoró-RN, realizada<strong>em</strong> 2008-2009 pelo Núcleo de Estudos sobrea Mulher (NEM) da Universidade do estadodo Rio Grande do Norte (UERN), não existe<strong>em</strong> Mossoró uma rede integrada de serviçosde proteção às mulheres <strong>em</strong> situação deviolência.


89d<strong>em</strong>anda um conjunto de políticaspúblicas nas áreas de segurança,saúde, habitação, assistência social,entre outras, que contribuam paraatender aos direitos e necessidadesdas mulheres <strong>em</strong> situação deviolência. Assim, no cenáriocont<strong>em</strong>porâneo de retração do Estadonos investimentos sociais, a Lei Mariada Penha enfrenta uma série dedesafios para sair do papel e se tornaruma realidade na vida de milhares d<strong>em</strong>ulheres.Considerações FinaisPesquisar sobre a percepçãodas mulheres <strong>em</strong> situação de violênciae de profissionais do Juizado deViolência Doméstica e Familiar contraa Mulher acerca da aplicação da LeiMaria da Penha <strong>em</strong> Mossoró-RN nosproporcionou perceber quais osmecanismos, as expectativas, oslimites e possibilidades para aplicaçãoda referida lei.Por meio da pesquisa,constatamos que a violência contra amulher é fruto das relações sociais degênero que trata de forma desigualhomens e mulheres e do sist<strong>em</strong>apatriarcal que garante a dominaçãoexploraçãodo gênero f<strong>em</strong>inino pelomasculino, o que t<strong>em</strong> naturalizado ainferioridade f<strong>em</strong>inina e os atos deviolência praticada contra as mulheres.Para entendermos a violênciacontra a mulher e a naturalização daatribuição de papéis diferentes para ossexos, t<strong>em</strong>os como base as categoriasrelações sociais de gênero epatriarcado, por intermédio dasconcepções de Joan Scott e HeleiethSaffioti.A teoria de Scott trabalha asrelações sociais de gênero por meiode quatro dimensões inter-relacionais:simbólica, normativa, organizacional esubjetiva e coloca o gênero no centrodas relações de poder. A autora nãotrabalha com o conceito depatriarcado, o que consideramos umlimite para compreensão da violênciacontra a mulher.Compreend<strong>em</strong>os que opatriarcado como sist<strong>em</strong>a dedominação-exploração do hom<strong>em</strong>sobre a mulher ainda é bastantepresente <strong>em</strong> nossa sociedade, poismesmo depois de anos de luta domovimento f<strong>em</strong>inista e de inúmerasconquistas das mulheres, a sociedadeatual continua com a concepçãomachista-patriarcal de que a mulher épropriedade do hom<strong>em</strong>.Saffioti utiliza a noção de “nó”analítico, compreendendo aconcepção da dominação/opressão


90das mulheres por meio da articulaçãodas categorias gênero, raça/etnia eclasse, estando o poder imbricadonessa relação.Abordamos também asignificativa contribuição que omovimento f<strong>em</strong>inista t<strong>em</strong> dado aoenfrentamento da probl<strong>em</strong>ática daviolência contra a mulher, tornando-aum probl<strong>em</strong>a de ord<strong>em</strong> pública, quenecessita de políticas públicas. Porintermédio das lutas do referidomovimento, tiv<strong>em</strong>os a criação dosSOS Mulher e das DEAMs, formaspioneiras de enfrentamento à violênciacontra a mulher, mas que nãoconseguiram inibir a prática dessaviolência. Vale ressaltar, ainda, que aLei Maria da Penha também foi frutodas reivindicações desse movimento.A plena efetivação da Lei Mariada Penha ainda d<strong>em</strong>anda a superaçãode muitos limites para suamaterialização. Em relação àsmulheres, observamos a falta deconhecimento dos seus direitos,incluindo os previstos na Lei n.º11.340/06, e não sab<strong>em</strong> a qu<strong>em</strong>procurar para que esses sejamgarantidos. Nessa realidade notamosas mulheres conformadas com essequadro atual de negação dos seusdireitos sociais, s<strong>em</strong> perspectiva d<strong>em</strong>udanças. Fato esse que se agravacom a falta de equipe multidisciplinar,profissionais sensibilizados ecapacitados para atender<strong>em</strong> eorientar<strong>em</strong> as mulheres <strong>em</strong> situaçãode violência acerca dos seus direitos.Em relação a profissionais,perceb<strong>em</strong>os a falta de equip<strong>em</strong>ultidisciplinar, Promotoria daViolência Doméstica, capacitação paraprofissionais e outros, para quetenham condição de des<strong>em</strong>penhar umtrabalho de melhor qualidade.A Lei Maria da Penha prevê <strong>em</strong>seu conteúdo diversas inovações,como as medidas protetivas deurgência e políticas públicas nas áreasde saúde, segurança e assistênciasocial, que visam combater e prevenira violência contra a mulher, b<strong>em</strong> comoproteger a mulher que se encontranessa situação. Porém, a realidadelegal se distancia muito da fática, pois<strong>em</strong> Mossoró, assim como <strong>em</strong> todo opaís, existe um grande descaso dasociedade e dos poderes públicos comesse fenômeno, e consequent<strong>em</strong>enteas leis encontram barreiras para suaexecução diante da ausência depolíticas públicas ou precariedadedestas.Outro ponto que observamosconsiste na aplicação de penas nãorestritivas de liberdade, punindo oagressor pelo crime que cometeu, fato


91esse que não ocorria com a aplicaçãoda Lei n.º 9.099/95, b<strong>em</strong> como aobrigação dos agressores decomparecer<strong>em</strong> aos centros deeducação e de reabilitação.Não contamos com uma redeintegrada de serviços voltados aoatendimento das mulheres, conforme aLei Maria da Penha, o que limita aaplicação da lei e a erradicação daviolência contra a mulher. EmMossoró, t<strong>em</strong>os disponível apenasuma DEAM, JVDFM, cinco Centros deReferência da Assistência Social(CRAS), O Centro de ReferênciaEspecializado da Assistência Social(CREAS), O Centro de ReferênciaEspecializado da Assistência Social daMulher (CREAS-Mulher), oAmbulatório Materno Infantil (AMI), OConselho Municipal dos Direitos daMulher (Comdim), Núcleo de Estudossobre a Mulher Simone de Beauvoir(NEM), Grupo Mulheres <strong>em</strong> ação,Centro F<strong>em</strong>inista 8 de Março (CF8),Assistência jurídica gratuita naspráticas dos núcleos universitários daUNP, UERN, Mater Christi, paraprestar um serviço de qualidade paraas mulheres. Não t<strong>em</strong>os casa-abrigo,Defensoria Pública, equip<strong>em</strong>ultidisciplinar e outros; igualmentenão há como determinar a participaçãodos agressores nos centros deeducação e de reabilitação, porquenão exist<strong>em</strong> na cidade de Mossoró.Nesse sentido, a aplicação daLei Maria da Penha está sendoresumida à aplicação das medidasprotetivas de urgência pelainexistência de alguns serviços deproteção para as mulheres <strong>em</strong>situação de violência.Nesse contexto, refletimos <strong>em</strong>relação ao enfrentamento da violênciacontra a mulher e à aplicação da LeiMaria da Penha diante de uma lógicaperversa <strong>em</strong> que o Estado não t<strong>em</strong>nenhuma responsabilidade nocombate às expressões da questãosocial. Perceb<strong>em</strong>os que, para essarealidade ser efetivada, a Lei Maria daPenha necessita de um conjunto depolíticas públicas nas áreas desegurança, saúde, habitação,assistência social, entre outras, quecontribuam para atender aos direitos enecessidades das mulheres <strong>em</strong>situação de violência. Observamos naatual situação que cada vez mais oEstado diminui os investimentossociais. Por conseguinte, a Lei Mariada Penha passa por uma série dedificuldades para ser realmenteefetivada na vida das mulheres.Constatamos todos os dias aperda de diversos direitos, dentreesses, os conquistados com muita luta


92pelas mulheres, pois estamos vivendo<strong>em</strong> uma época <strong>em</strong> que as lutas dosmovimentos sociais são criminalizadospelo Estado e pelas classesdominantes. Pod<strong>em</strong>os constatar issoquando abordamos o desmonte que oEstado e o sist<strong>em</strong>a capitalista vêm, pormeio de estímulos à “onguização”,provocando nos movimentos sociais.Assim, vários desses movimentos,dentre os quais destacamos omovimento f<strong>em</strong>inista, vêm perdendoseu caráter combativo ao setransformar<strong>em</strong> <strong>em</strong> ONG, uma vez qu<strong>em</strong>uitas delas, diferent<strong>em</strong>ente dosmovimentos sociais, não criticam ogoverno, pois depend<strong>em</strong> de seufinanciamento para se manter. Essarealidade traz graves repercussõesnas lutas das mulheres, pois no atualcontexto de desmonte dos direitossociais, das ameaças postas à LeiMaria da Penha e do aumento donúmero de casos de violência contra amulher, tal movimento enfrenta váriosdesafios para se efetivar suasbandeiras históricas, dentre elas o fimdo sist<strong>em</strong>a capitalista-patriarcal e aconstrução da <strong>em</strong>ancipação humanadas mulheres.Nessa perspectiva, há anecessidade de que o movimentof<strong>em</strong>inista retome sua atuação nocenário atual para contribuir cada vezmais na formação política dasmulheres, direcionando-as na buscada garantia de seus direitos eincentivando-as na reivindicaçãodesses.Almejamos que os resultadosda pesquisa possam ser aproveitadosna erradicação da violência contra amulher na cidade de Mossoró, assimcomo esses dados sejam divulgadosou acessados por o maior númeropossível de mulheres.Portanto, é importantereivindicar do Estado mais políticaspúblicas, assim como a capacitação deprofissionais que atuam nessesserviços e investimentos <strong>em</strong> equip<strong>em</strong>ultidisciplinar, uma vez que essaequipe é muito relevante para oatendimento das mulheres.ReferênciasAZEVEDO, Maria Amélia. Mulheresespancadas: violência denunciada.São Paulo: Cortez, 1985.BRASIL. Lei Federal n.º 11.340/2006,de 7 de agosto de 2006. Lei Maria daPenha. Cria mecanismos para coibir aviolência doméstica e familiar contra amulher, nos termos do § 8 o do art. 226da Constituição Federal, daConvenção sobre a Eliminação deTodas as Formas de Discriminaçãocontra as Mulheres e da ConvençãoInteramericana para Prevenir, Punir eErradicar a Violência contra a Mulher;dispõe sobre a criação dos Juizados


93de Violência Doméstica e Familiarcontra a Mulher; altera o Código deProcesso Penal, o Código Penal e aLei de Execução Penal, e dá outrasprovidências. Diário Oficial [da]República Federativa do Brasil, PoderExecutivo. Brasília, DF, 8 ago. 2006.Entrada <strong>em</strong> vigor <strong>em</strong> 22 de set<strong>em</strong>brode 2006.IAMAMOTO, Marilda Vilela. O serviçosocial na cont<strong>em</strong>poraneidade: trabalhoe formação profissional. 9. ed. SãoPaulo: Cortez, 2005.Betânia Ávila. Recife: SOS Corpo,1990.SUÁREZ, M.; BANDEIRA, L. (Ed.).Violência, gênero e crime no DistritoFederal. Brasília, DF: Paralelo 15,1999.TELES, Maria Amélia de; MELO,Mônica de. O que é violência contra amulher. São Paulo: Brasiliense, 2002.(Coleção Primeiros Passos, 314).IZUMINO, Wânia Pazinato. Justiça eviolência contra a mulher: o papel dosist<strong>em</strong>a judiciário na solução dosconflitos de gênero. São Paulo:Annablume; Fapesp, 1998.MÉSZAROS, Istvan. A educação paraalém do capital. São Paulo: Boit<strong>em</strong>po,2005.QUEIROZ, Fernanda Marques de;LOPES, Ana Paula; SILVA, Rita deCássia da; SILVA, Rita Wigna deSouza; SANTOS, Rustânia Nogueirados. A percepção das mulheres <strong>em</strong>situação de violência acerca daimplantação da Lei Maria da Penha <strong>em</strong>Mossoró-RN. Relatório final daPesquisa de Iniciação Científica(PIBIC/CNPq). Mossoró, 2009.SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gêneropatriarcado e violência. São Paulo:Fundação Perseu Abramo, 2004.(Coleção Brasil Urgente).______; ALMEIDA, Suely S. de.Violência de gênero: poder eimpotência. Rio deJaneiro: Revonter, 1995.SCOTT, Joan. Gênero: uma categoriaútil para análise histórica. Tradução:Christiane Rufino Dabat e Maria


94Ivanilda Figueiredo Há dois polos equidistantes nadefinição do direito fundamental aoacesso à justiça (CAPPELLETTI;GARTH, 1992): 1 um, se conecta a umconceito substancial de justiça; 2 outropende para o lado formal e sedireciona ao acesso ao Judiciário <strong>em</strong>suas diversas formas. Entre esses doispolos, há uma miríade de visões quepod<strong>em</strong> ser catalogadas.Como estratégia de trabalho(necessária para operacionalizar osconceitos articulados e extrairMestre (UFPE), doutora (PUC-Rio) <strong>em</strong>Direito e pesquisadora do Ibase. Adissertação versou sobre a realização dedireitos fundamentais sociais; a tese, sobre oacesso a direitos fundamentais por gruposcredores desses direitos na Índia, Brasil eÁfrica do Sul, a qual contou com dados dapesquisa que coordenou com financiamentoda FORD e do Iuperj. E-mail:. Lattes:.1 Cappelletti e Garth (1992, p. 12) assum<strong>em</strong>que acesso à justiça é o direito humano maisimportante para um moderno e igualitáriosist<strong>em</strong>a judicial que pretende garantir e nãosó proclamar direitos.2“A noção de justiça sugere a todos,inevitavelmente, a ideia de certa igualdade.Desde Platão e Aristóteles, passando porSão Tomás, até os juristas, moralistas efilósofos cont<strong>em</strong>porâneos, todos estão deacordo sobre esse ponto. A ideia de justiçaconsiste numa certa aplicação da ideia deigualdade.” (PERELMAN, 2000, p. 1).dimensões observáveis), optamos poradotar uma concepção de acesso àjustiça ligada à ideia de acesso aosist<strong>em</strong>a de justiça. Essa concepçãobusca conciliar as ideias <strong>em</strong> torno doacesso ao Judiciário como acesso àjustiça, mas vai além ao apreciar apermanência do Direito (e do atorsocial) no sist<strong>em</strong>a <strong>em</strong> sua busca porjustiça. Assim, essa concepção afastasede um dos polos <strong>em</strong> que a questãopode ser vista (acesso formal),caminhando para o outro lado(conceito de justiça), analisando atrilha deixada pelas d<strong>em</strong>andas para,enfim, contribuir com a discussão maissubstancial acerca do t<strong>em</strong>a.Diferent<strong>em</strong>ente da maior partedos direitos fundamentais que têmenunciados similares nas maisdiversas normas jurídicas nas quais sefaz<strong>em</strong> presentes, o acesso à justiçaaparece <strong>em</strong> cada documento com umaroupag<strong>em</strong> diferente. “Implícito noestado de direito, que é a pedraangular de toda d<strong>em</strong>ocracia moderna,está o princípio da igualdade deacesso à justiça.” (Tradução livre). 33 No original: “Access to justice has shiftedfrom a moral imperative to a legal right, under


95Como assegura Humberto Ávila(2004), as normas não são osdispositivos (os textos legais), e sim osentido construído a partir deles. Épossível existir um dispositivo s<strong>em</strong>norma, b<strong>em</strong> como um texto do qual seextraíam inúmeras normas. O acessoà justiça se enquadra exatamentenessa multipluralidade. Portanto, suainterpretação exige um esforçointerpretativo maior. O ex<strong>em</strong>plo dasCartas Constitucionais do IBAS ébastante ilustrativo. 4Na Constituição indiana, que ébastante prolixa, encontra-se oenunciado normativo que mais seaproxima de uma concepção “direta”de acesso à justiça ao determinar queo Estado deve assegurar a operaçãode um sist<strong>em</strong>a jurídico que promova ajustiça com igual oportunidade paratodos e prover assistência jurídicagratuita por meio de leis e outrosesqu<strong>em</strong>as que assegur<strong>em</strong> que nãoserá negada a oportunidade de seacessar a justiça a qualquer cidadão ecidadã por motivos econômicos outhe ambit of international Law, constitutionallaw, and national laws. Implicit in the rule oflaw, which is the cornerstone of everymodern d<strong>em</strong>ocracy, is the principle of equalaccess to justice.” (DIAS, 2009, p. 3).4 Utilizei esses ex<strong>em</strong>plos porque o estudodesses três países está na base dos meustrabalhos. Cf. especialmente Figueiredo(2010).outras deficiências (art. 139A, cf.APÊNDICE).No Brasil, a expressão acesso àjustiça aparece <strong>em</strong> três ocasiões nasua Constituição, quando se trata dapossibilidade de descentralização dostribunais regionais federais, regionaisdo trabalho e de justiça “a fim deassegurar o pleno acesso dojurisdicionado à justiça <strong>em</strong> todas asfases do processo” (art. 107, § 3.º; art.115, § 2.º; art. 125 § 6.º). O direitofundamental ao acesso à justiça édeduzido de três incisos do artigo 5.ºque versam sobre o acesso igualitárioao Judiciário, assistência jurídicagratuita e a celeridade processual (art.5.º, XXXV, LXXIV, LXXVIII, cf.APÊNDICE).Na Constituição sul-africana, odireito ao acesso à justiça é inferido daRule 17, que sob o t<strong>em</strong>a sucintamenteverbaliza o direito de todosapresentar<strong>em</strong> petições e a assistênciajurídica sob as expensas do Estado do35 (3) (g) cf. APÊNDICE. Nele háreferência à assistência jurídica a serprestada às pessoas presas ouacusadas. A interpretação dessaexpressão acusada t<strong>em</strong>-se tornadomais abrangente para assim englobaros processos cíveis (LEGAL AIDBOARD, 2008, p. 6).


96A dificuldade de se enquadrar odireito fundamental ao acesso àjustiça, especificando seuscomponentes, perpassa os textoslegais e se reapresenta nasconstruções teóricas.Cappelletti e Garth (2002, p. 15-29) formaram na década de 1970 umgrupo de estudos denominado deProjeto de Florença para investigar ofuncionamento do acesso à justiça <strong>em</strong>diversos países. Por meio deleelaboraram um diagnóstico no qualapresentavam os principais óbicespara a efetivação do acesso: a) valordas custas judiciais; b) valor doshonorários advocatícios e custosderivados da sucumbência; c) aspequenas causas, se não for<strong>em</strong>tratadas diferent<strong>em</strong>ente, envolv<strong>em</strong>mais riscos financeiros que asgrandes; d) longa duração doprocesso; e) aptidão para reconhecerum direito e propor uma ação <strong>em</strong> suadefesa; f) indisposição psicológica derecorrer a um processo judicialconsiderado caro, custoso,complicado, etc.; g) facilidade delitigantes habituais lidar<strong>em</strong> com osist<strong>em</strong>a (<strong>em</strong>presas por ex<strong>em</strong>plo) <strong>em</strong>oposição aos litigantes eventuais(consumidores); h) falta de interesseativo para a defesa dos direitosdifusos.Os autores perceb<strong>em</strong> trêsestágios, mediantes os quais, épossível se galgar o acesso à justiça:assistência legal gratuita, proteção dosinteresses difusos e abordag<strong>em</strong> deacesso à justiça justiça informal,reformas legais (CAPPELLETTI;GARTH, 2002, p. 31 et seq.).É preciso observar, comoaponta Eliane Junqueira (1996, p. 2),que o Brasil não passou pelasquestões sociolegais que levaram osautores a definir<strong>em</strong> as três ondas. 5 Éverdade. A discussão apresentada poreles foi suscitada no bojo dos debatessobre o estado social que o Brasil àépoca estava longe de cogitarimplantar.Ao comentar o processo deinformalização da justiça, ElianeJunqueira ressalva que, com ad<strong>em</strong>ocratização, a estratégia d<strong>em</strong>odernização do Judiciário foicapitaneada pelo Executivo e voltou-seinicialmente para a informalização dajustiça com a criação dos juizadosespeciais. 6 Esses “[...] individualizam o5 O sist<strong>em</strong>a de acesso à justiça definido porCappelletti e Garth é tido como uma respostajudicial aos anseios e d<strong>em</strong>andas geradospelo Welfare.6 Essa tendência dilatou-se t<strong>em</strong>poralmente;dezesseis anos após a Constituição, aReforma do Judiciário foi capitaneada peloExecutivo por meio dos estudos diagnósticos


97conflito, não cab<strong>em</strong> d<strong>em</strong>andascoletivas nestas esferas, portanto,outra faceta dessa reforma foi amanutenção (diria até ampliação) deuma cultura jurídica de matriz liberal”(JUNQUEIRA, 1994, p. 96).Ela destaca ainda que essa nãoera a reivindicação n<strong>em</strong> da Ord<strong>em</strong> dosAdvogados do Brasil n<strong>em</strong> dosmovimentos sociais, os quaisadvogavam pela ampliação dasd<strong>em</strong>andas coletivas e a recuperação“da autonomia e da independência doPoder Judiciário castradas durante operíodo do autoritarismo militar”(JUNQUEIRA, 1994, p. 96. cf.SANTOS, 2009).Além disso, não se podeesquecer que o direito é um campofértil de atuação. A segurança jurídicanão propicia um ambiente de interesseapenas para os cidadãos e cidadãs <strong>em</strong>suas d<strong>em</strong>andas, mas também para as<strong>em</strong>presas, o capital especulativo e osgiros de mercado. Não foi à toa que,afora essa ebulição interna, o Brasilsofreu a pressão de reformas judiciaisencetadas pelo Banco Mundial <strong>em</strong>toda a América Latina que t<strong>em</strong> comosustentáculo: “criar um meio adequadopara o setor privado, <strong>em</strong> particulare das propostas de modificaçõesconstitucionais e legislativas (BRASIL, 2007).para o investimento estrangeiro, efortalecer a d<strong>em</strong>ocracia liberal, pormeio de um Judiciário forte eautônomo.” (DOMINGUES, 2009, p.62).Domingues avalia que o acessoà justiça, especialmente da populaçãocom déficit de acesso a direitos, fazparte dessa agenda apenassecundariamente, sendo uma forma detorná-la mais palatável (DOMINGUES,2009, p. 62-65).Boaventura Santos realça,ainda, a importância dada à celeridadenessas reformas justamente paragarantir a resposta rápida no mundodos negócios. Como ele mesmoafirma: a celeridade <strong>em</strong> si não é algoruim. Pelo contrário, o direito à rapidezprocessual é fundamental, o que podeser decisivo para a garantia dosdireitos mais el<strong>em</strong>entares doscidadãos. No entanto, uma justiçacidadã não se realiza apenas com umrápido desenrolar processual(SANTOS, 2007, p. 23-24).Inúmeros movimentosinfluenciaram as reformas que vêmsendo desenvolvidas nas últimasdécadas. Tendo-se <strong>em</strong> conta oobjetivo deste artigo, identificamos asprincipais:a) as pesquisas <strong>em</strong>píricas comos profissionais do setor


987indicavam a ineficiência doserviço, a burocracia, a falta decumprimento de prazos, a máaparelhag<strong>em</strong> e o déficit derecursos humanos como osprincipais óbices ao acesso àjustiça (JUNQUEIRA, 1994, p.95);b) os debates europeus e norteamericanos<strong>em</strong> torno do acessoà justiça, especialmente, a osprobl<strong>em</strong>as apresentados noProjeto de Florença porCappelletti e Garth. Os autoresestudaram os sist<strong>em</strong>as dejustiça de inúmeros países e daíapresentaram conclusões sobreos principais impedimentos aoacesso e três movimentos, 7pelos quais identificam apossibilidade de se prover umacesso mais efetivo;c) as reformas judiciaisencetadas pelo Banco Mundial<strong>em</strong> toda a América Latina;d) a ampla atenção concedidapela Constituição aos direitosfundamentais, as garantiasprocessuais e institucionaistendentes a realizá-los;Assistência legal gratuita, proteção dosinteresses difusos e abordag<strong>em</strong> de acesso àjustiça justiça informal, reformas legais(CAPPELLETTI; GARTH, 2002, p. 31 etseq.).e) os investimentosdirecionados à estruturação doMinistério Público e daDefensoria Pública e ad<strong>em</strong>anda crescente perante oSupr<strong>em</strong>o Tribunal Federal;f) a adesão do Brasil à maiorparte dos TratadosInternacionais de DireitosHumanos e aos órgãos depromoção, monitoramento eproteção desses direitos,especialmente, a jurisdição doSist<strong>em</strong>a Interamericano deDefesa dos Direitos Humanos.g) o boom da sociedade civilorganizada com a criação deorganizações, fundações <strong>em</strong>ovimentos para areivindicação de direitos(NEDER, 1996, p. 3 et seq.).Visualizamos esses movimentos<strong>em</strong> dois grandes vértices <strong>em</strong>comunicação etensão constantes. Um adere ao“modelo da legitimação pelaperformance” (itens 1 a 3) 8 e o outro8 A prof.ª Eliane Junqueira faz essa análise <strong>em</strong>relação ao processo de informalizaçãocapitaneado pela criação dos juizadosespeciais. Cr<strong>em</strong>os que a observação sejaválida para descrever sucintamente esseprimeiro vértice: “O processo deinformalização da justiça no Brasil traduzia aestratégia do Estado brasileiro de substituir omodelo da legitimação pela performance,esgotado com o fracasso do ‘milagreeconômico’ da década de setenta, por um


99ao modelo de defesa dos direitosfundamentais (itens 4 a 7). Essatensão não significa necessariamenteoposição.Por óbvio, um sist<strong>em</strong>a de justiçamais b<strong>em</strong> aparelhado e mais célerepode contribuir para a realização dedireitos, e o respeito aos direitosfundamentais deve beneficiar todas asclasses. Trata-se de uma via de mãodupla, mas uma via das maisperigosas, nas quais o movimentomuito fluído para um dos lados podeobstar a locomoção do outro. Umsist<strong>em</strong>a de justiça eficiente pode serextr<strong>em</strong>amente elitista, e um sist<strong>em</strong>a dejustiça ativo voltado para a promoçãoda justiça social e dos direitosfundamentais pode ser ineficiente eperder-se dentro das própriasestruturas.Seja pela materialização dosmovimentos defendidos por Cappellettimodelo de legitimação pelo procedimento,com vistas a modernizar institucionalmente opaís. A partir do diagnóstico de que asrelações entre o Estado e a sociedade eramobstaculizadas pela burocracia queimpregnava o quotidiano de nossasinstituições, desburocratização einformalização transformaram-se na bandeiraestatal do início da década de oitenta. Ainformalização do Judiciário representou,portanto, uma estratégia de modernização doPoder Judiciário, <strong>em</strong>preendida dentro desteprojeto de legitimação pelo procedimento,<strong>em</strong> que cabia ao Poder Executivo acondução do processo de modernização.”(JUNQUEIRA, 1994, p. 13).e Garth (2002); seja pelas normasconstitucionais, ou mesmo aspropostas capitaneadas pelo BancoMundial. A perspectiva da “adequadaoferta” é prevalente <strong>em</strong> solo brasileiro.Ou seja, há um foco direcionado paraa criação de estruturas internacionais<strong>em</strong> normativas possibilitadoras do usodo sist<strong>em</strong>a de justiça.Ainda que exista a preocupaçãocom a justiça gratuita, é precisoconsiderar que as mesmas regras dojogo claras e previamente dispostassão necessárias, mas não asseguramigualdade de armas quando oscontendedores estão <strong>em</strong> situação deextr<strong>em</strong>a disparidade. Para seassegurar a equivalência, é precisoexplorar questões sociais, econômicase culturais muito mais amplas(SANTOS, 1996, p. 106).Kim Economides, ao se propor acontinuar o debate proposto porCappelletti e Garth, aponta anecessidade de uma quarta onda naqual se deve olhar para aqueles queprestam a justiça; pensar sobre oconhecimento jurídico, o ensinojurídico e o acesso a posiçõesestratégicas no sist<strong>em</strong>a de justiça(ECONOMIDES, 1999, p. 63). Caberazão ao autor uma discussãoprofunda sobre como o direito éensinado nas faculdades e como o


100sist<strong>em</strong>a de justiça é formado, éessencial para se entender seufuncionamento e propor mudanças(MACHADO, 2009).Boaventura de Sousa Santos vaialém e destaca a necessidade de seconsiderar não apenas a educaçãoformal, 9 mas também açõeseducativas nos meios de comunicaçãoe de trabalho destinadas a gerar odespertar de uma consciência crítica.Sua pr<strong>em</strong>issa se baseia justamente nofato de que obstáculossocioeconômicos não se superamapenas com a oferta de instituições(SANTOS, 2007, p. 177).Pessoas negras na África do Sul,à época do apartheid, poderiam ter aseu lado grandes advogados,organizações não governamentaiscombativas, mas não tinham acesso àjustiça. Não se trata apenas de poderreceber uma decisão do Judiciário,mas auferir uma resposta respeitadorade direitos, que não pratique ou9 Cappelletti e Garth (2002) probl<strong>em</strong>atizamaspectos psicológicos entres os óbices parao acesso, mas não incorporamverdadeiramente esse t<strong>em</strong>a nas ondas parao acesso à justiça. Parece que isso não sedá por descaso, mas simplesmente porqueas três ondas são constatações, e nãoprevisões. O Projeto de Florença, <strong>em</strong> umaanálise comparativa, observou a existência<strong>em</strong> diferentes graus e sob diversosparâmetros das três ondas. Com o t<strong>em</strong>po,elas foram sendo incorporadas noutrossist<strong>em</strong>as e sendo referenciadas como liçõesapreendidas da obra desses autores, o queas fez parecer previsões.ratifique discriminações arbitrárias.Afirma-se que não era sequer umaquestão de apego exagerado à normapositivada; mesmo nos casos <strong>em</strong> quea norma poderia ser usada <strong>em</strong> favorde uma pessoa negra, o Judiciárioatuava referendando as pioresviolações de direitos praticadas peloapartheid. “A negação do acesso àscortes era também realizada por meiodas assim chamadas ouster clauses,que pretendiam colocar as decisões doexecutivo sobre segurança ediscriminação racial fora da revisãodas cortes.” (Tradução livre). 10Na Índia, até hoje as pessoastidas como dalits t<strong>em</strong><strong>em</strong> as instituiçõespoliciais e o Judiciário de primeirograu, pois estes permanec<strong>em</strong> com aaura de instituições meramenterepressivas. Ainda é comum umapessoa denominada de dalit tentardenunciar uma violação de direitos, eno curso da investigação ou doprocesso judicial, ser retirada daposição de vítima para figurar na deagressor. Outra manobra jurídica10 No original: “Denial of Access to the courtswas also accomplished by means of the socalledouster clauses intend to placeexecutive decisions relating to security andracial discrimination behind the review of thecourts.” (DEVENISH, 1999, p. 485). A ousterclauses é uma regra utilizada no direitoinglês e sul-africano que exclui as normassob seu manto da revisão judicial.


101comum é encontrar motivos para nãoenquadrar uma pessoa denunciadapor crimes ou ofensas a pessoas dalitsna Scheduled Castes And ScheduledTribes (Prevention of Atrocities)Act/1989, e então não julgá-la combase <strong>em</strong> nenhuma outra norma. Issoainda ocorre <strong>em</strong> crimes graves como oestupro de uma menina de 11 anosque, por força dessa manobra jurídica,restou impune. 11No Brasil, a situação não é tãodiversa quanto gostaríamos deesperar. Os indígenas brasileiros aindatêm direitos de propriedadediuturnamente negados e processoscujo desenrolar d<strong>em</strong>ora mais de duasdécadas para receber uma respostajudicial (SANTOS, 2007, p. 45). Na11 “A polícia persiste criando obstáculos aoacesso à justiça dos grupos, quer por recusade registro de casos, quer por pressionar asvítimas <strong>em</strong> acordos negociados com osautores mais inventivos. No caso de RunchiMahara, uma menina de 11 anos, dalit, quefoi estuprada e assassinada <strong>em</strong> set<strong>em</strong>bro de2009, apesar das evidências fortes contra osuspeito, a polícia liberou o referido suspeitoe se recusou a registrar um caso ou iniciaruma investigação. "No original: The policehave been creating obstacles to the accessto justice of those groups either by refusing toregister cases or by pressuring victims intonegotiated settl<strong>em</strong>ents with more resourcefulperpetrators. In the case of Runchi Mahara,an 11-year-old Dalit girl who was raped andmurdered in Sept<strong>em</strong>ber 2009, despite strongevidence against the suspect, the policereleased the suspect, refused to register acase or launch an investigation.” AHRC NewWeekly Digest de 27 de maio de 2010.Disponível <strong>em</strong>: pesquisa de 2006 pr<strong>em</strong>iada pelo IPEA,Ivan Ribeiro (2006, p. 2) afirma que os“juízes favorec<strong>em</strong> a parte maispoderosa. Uma parte com podereconômico ou político t<strong>em</strong> entre 34% e41% mais chances de que um contratoque lhe é favorável seja mantido doque uma parte s<strong>em</strong> poder”. Tais dadosratificam a afirmação de BoaventuraSantos segundo a qual:[...] os tribunais não foram feitos parajulgar os poderosos. Eles foram feitospara julgar os de baixo. As classespopulares durante muito t<strong>em</strong>po sótiveram contato com o sist<strong>em</strong>a judicialpela via repressiva, como seusutilizadores forçados. Raramente outilizaram como mobilizadores ativos.A questão da impunidade está inscritana própria matriz do Estado Liberalque, como se sabe, não é um estadod<strong>em</strong>ocrático na sua orig<strong>em</strong>. (SANTOS,2007, p. 22).A estrutura do sist<strong>em</strong>a dejustiça intimida. É verdade, mas comose verifica acima, não apenas pelasuntuosidade dos tribunais, aritualística processual, n<strong>em</strong> aininteligibilidade da linguag<strong>em</strong> jurídica.A intimidação perpassa também porcondutas deliberadas do sist<strong>em</strong>a dejustiça na negação de direitos a essaspessoas.Agregam-se aos ingredientes jáexpostos ainda outros componentesassecuratórios da revoluçãod<strong>em</strong>ocrática da justiça proposta por


102Boaventura Santos, na qual haveráainda maior d<strong>em</strong>anda pelajudicialização da política que terá deser enfrentada não para ser inibida,mas para possibilitar a utilização dasfunções estatais pelos cidadãos epelas cidadãs; favorecendo um estadode direito contramajoritário, compostopor uma cidadania ativa. Para tanto,<strong>em</strong> termos de sist<strong>em</strong>a de justiça,Santos enumera um conjunto denecessidades, as quais brev<strong>em</strong>enteelucidar<strong>em</strong>os com base na realidadebrasileira (SANTOS, 2007, p. 22):1. Profundas reformasprocessuais os debates <strong>em</strong> tornodos recursos procrastinatórios eacerca de como a estrutura do direitoprocessual contribui para a d<strong>em</strong>ora daprestação jurisdicional têm <strong>em</strong>basadoinúmeras e constantes modificaçõesno Código de Processo Civil e no deProcesso Penal nos últimos anos como objetivo de acelerar o desenrolarprocessual.2. Novos mecanismos e novosprotagonismos no acesso ao direito eà justiça a Constituição de 1988trouxe inúmeras garantiasfundamentais e possibilidades decontrole de constitucionalidade, b<strong>em</strong>como edificou a Defensoria Pública ereestruturou o Ministério Público. Noentanto, ainda há muito a serdesenvolvido <strong>em</strong> torno desses novosprotagonismos de que trata o autor. Épreciso, e. g., vencer os óbices <strong>em</strong>torno do acesso de determinadosgrupos e indivíduos à justiça para secriar um ambiente favorável a essesnovos atores “protagônicos” e debelaruma postura salvacionista dasinstituições 12para se engendrar umaconcepção <strong>em</strong>ancipatória de direitos.3. Nova gestão e organizaçãojudiciária é inegável que muitosavanços têm sido obtidos no paísrecent<strong>em</strong>ente por meio dareestruturação de órgãos, do pensar aprática do sist<strong>em</strong>a mediante asPesquisas-Diagnóstico e outrasanálises. 13Além disso, os órgãos doJudiciário estadual e federal têmrevisto sua organização e estruturaçãointerna, inclusive, com a interiorização12 Um ex<strong>em</strong>plo simples é o de juízes e juízasda infância “paternalistas” que passavamsermão nos adolescentes e osencaminhavam para as Fundações de B<strong>em</strong>-Estar do Menor para protegê-los de simesmo e da sociedade por estar<strong>em</strong> <strong>em</strong>situação de risco. Risco de quê? Dedelinquir. Os defensores dos direitos dacriança e do adolescente lutaram duranteanos para a aprovação de um Estatuto noqual se admitisse que aqueles adolescentesnão estavam <strong>em</strong> situação de risco, mas <strong>em</strong>situação de violação de direitos e só ocometimento de ato infracional grave poderiaensejar a internação.13Diagnóstico do Ministério Público, daDefensoria Pública e do Judiciário()


103da Justiça Federal após a Emenda n.º45/04; mas esse repensar institucionaldeve ser contínuo e ter comoprimordial a d<strong>em</strong>ocratização e aqualidade do acesso, s<strong>em</strong> permitir quea sanha por uma justiça eficiente e poríndices de produtividade ger<strong>em</strong>aberrações ao acesso como astest<strong>em</strong>unhadas na extinção <strong>em</strong> massade processos que poderiam ter suasfalhas sanadas apenas para gerarnúmeros favoráveis ao titular da vara.4. Revolução na formação d<strong>em</strong>agistrados desde as Faculdades deDireito até a formação permanente as Faculdades de Direito passarampor inúmeras modificaçõescurriculares, incluindo disciplinasanteriormente não cont<strong>em</strong>pladas comodireitos humanos, direito doconsumidor e direito ambiental. Noentanto, a cruzada <strong>em</strong> torno das vagasprovidas via concurso público t<strong>em</strong>gerado pessoas interessadas no cursode direito apenas para assegurar umcargo público, portanto, oconhecimento da dogmática e dapropedêutica torna-se apenasinstrumental para um objetivo maior.Na vontade desse público, muitasvezes, as instituições dev<strong>em</strong> ter umolhar sobre as provas dos concursos,e não sobre uma formação dequalidade; assim como a necessidadede formação permanente perpassatodo o sist<strong>em</strong>a de justiça por meio dasEscolas de Formação, no entanto, <strong>em</strong>inúmeros estados as Escolas daMagistratura, do Ministério Público, daDefensoria Pública não ministramaulas apenas para seus m<strong>em</strong>bros,mas também para outras pessoasformadas <strong>em</strong> Direito, convertendo-se,muitas vezes, <strong>em</strong> cursinhos précarreira.5. Novas concepções deindependência judicial o ConselhoNacional de Justiça v<strong>em</strong> tentando tirara pecha de extr<strong>em</strong>amentecorporativista historicamente posta noJudiciário. Para isso, não só t<strong>em</strong>aplicado a pena administrativa máximade aposentadoria compulsória quandose d<strong>em</strong>onstram os requisitos, mastambém suscitado o debate se essaseria a adequada penalidadeadministrativa para juízes e juízas quefizeram mau uso de sua função. Ess<strong>em</strong>ovimento deve ser incentivado eperpetuado.6. Uma relação do poder judicialmais transparente com o poder políticoe a mídia, e mais densa com osmovimentos e organizações sociais o sist<strong>em</strong>a de justiça brasileiro t<strong>em</strong> hojeuma relação muito próxima com amídia, para o b<strong>em</strong> e para o mal. Hámaior transparência e monitoramento


104por parte da mídia. O sist<strong>em</strong>a judicialt<strong>em</strong> o próprio canal de televisão/rádio,inserções no youtube e nas mídiassociais, b<strong>em</strong> como releases diáriosdos tribunais. Por outro lado, osensacionalismo e a sanha porpunição geram <strong>em</strong> inúmeros casosuma d<strong>em</strong>anda por aprisionamentosque não são legalmente possíveis; porisso, quando não concedidos, há umatendência a se colocar os magistradossob escrutínio público. Um SGDFpretende que se leve <strong>em</strong> conta,mesmo <strong>em</strong> casos polêmicos deextr<strong>em</strong>a comoção social, anecessidade de diálogo com a mídia eos d<strong>em</strong>ais cidadãos. A relação com osmovimentos sociais ainda é um pontode extr<strong>em</strong>a polêmica. Não só acomunicação entre os movimentos e osist<strong>em</strong>a de justiça é obstada por umaestrutura jurídica de matriz liberal,como também há inúmeras denúnciasde atitudes de criminar os movimentossociais por parte do sist<strong>em</strong>a de justiçabrasileiro (SANSON, 2008).7. Uma cultura jurídicad<strong>em</strong>ocrática e não corporativa osist<strong>em</strong>a de justiça deve estar isento deinterferências políticas, mas não podeser imune ao controle de seus atosquando estes estejam desconexoscom uma postura de preservação dedireitos fundamentais (SANTOS, 2007,p. 33).Ao tentar unir as perspectivasnarradas acima com a interconexãodos direitos fundamentais numasociedade desigual na qual os grupose indivíduos precisam deredistribuição, reconhecimento erepresentação, e considerando queuma postura <strong>em</strong>ancipatória de direitosainda está <strong>em</strong> construção, 14deparamo-nos com a impossibilidadedo sist<strong>em</strong>a de justiça ser responsávelisolado pelo sucesso dessa<strong>em</strong>preitada. Assim nos propus<strong>em</strong>os adefender a necessidade de se pugnarpela integralidade dos direitosfundamentais por uma leitura que dêimpulso a um Sist<strong>em</strong>a de Garantia deDireitos Fundamentais.Dessa forma, ainda queconheça as falhas e os entravesexistentes nesse sist<strong>em</strong>a, inspiramonosno Sist<strong>em</strong>a de Garantia dosDireitos da Criança e doAdolescente, 1514o qual se propõe aUtilizo <strong>aqui</strong> os três conceitos-chave deNancy Fraser (2008).15 Estabelecido pelo artigo 227 da Constituiçãoe destrinchado por meio da Resolução n.º113/06 proveniente do Conselho Nacionaldos Direitos Da Criança e do Adolescente(CONANDA, 2006), “art. 1.º [...] § 2.º:Igualmente, articular-se-á, na forma dasnormas nacionais e internacionais, com ossist<strong>em</strong>as congêneres de promoção, defesa econtrole da efetivação dos direitos humanos,de nível interamericano e internacional,


105integrar a família, a sociedade e oestado para formação de uma rede <strong>em</strong>prol da efetivação dos direitos dessescidadãos. Com base nessa ideia,defend<strong>em</strong>os a articulação de umSist<strong>em</strong>a de Garantia de DireitosFundamentais (SGDF) integrado pelasociedade <strong>em</strong> suas mais diversasfaces (movimentos sociais, ONG,cidadãos e cidadãs individualmente ou<strong>em</strong> grupo, etc.) e pelo Estado. Aatribuição do SGDF se estrutura pormeio da matéria (direitosfundamentais), e não do sujeito(grupos credores de direitos), <strong>em</strong>borase pressuponha que seja maispr<strong>em</strong>ente para determinados grupos aexistência de tal rede protetora. 16Reiteramos, no entanto, que o sist<strong>em</strong>aproposto vale para todas as pessoas eestrutura-se <strong>em</strong> torno dos direitosfundamentais.O SGDF constitui-se naarticulação e integração das funçõesestatais (administração pública, órgãosbuscando assistência técnico-financeira erespaldo político, junto às agências eorganismos que desenvolv<strong>em</strong> seusprogramas no país.”16 Como dito, desde a introdução importasublinhar s<strong>em</strong>pre a importância dos direitosfundamentais para todos e todas. Noentanto, pela situação de maior urgência ecarência, tend<strong>em</strong>os a focar na d<strong>em</strong>onstraçãodo déficit de direitos de determinadosgrupos. Os direitos à saúde, à educação,b<strong>em</strong> como inúmeros outros direitos sociais,não são, <strong>em</strong> geral, do interesse da elite queos obtêm por meios privados.do Legislativo e órgãos do Judiciário),nos três planos federativos, com asociedade civil organizada (ONG,Oscips), e os cidadãos de modoindividual ou grupos de interesse(pessoas idosas, familiares depessoas presas) na formação deinstrumentos normativos e <strong>em</strong> suaaplicação no intuito de prover direitosfundamentais mediante três eixos: apromoção, a defesa e o controle.Nossa proposta, apesar daassumida inspiração no Sist<strong>em</strong>aestabelecido no âmbito do direito dacriança e do adolescente, t<strong>em</strong> umamoldura mais ampla como se verá.Ainda assim, acreditamos serinteressante trazer a contribuição deWanderlino Nogueira, ex-conselheirodo Conanda e um dos artífices daResolução n.º 113/06, que dispõesobre os parâmetros para ainstitucionalização e fortalecimento docitado Sist<strong>em</strong>a. 17 Segundo esse autor:17 “Art. 1.º O Sist<strong>em</strong>a de Garantia dos Direitosda Criança e do Adolescente constitui-se naarticulação e integração das instânciaspúblicas governamentais e da sociedadecivil, na aplicação de instrumentosnormativos e no funcionamento dosmecanismos de promoção, defesa e controlepara a efetivação dos direitos humanos dacriança e do adolescente, nos níveis Federal,Estadual, Distrital e Municipal. § 1º EsseSist<strong>em</strong>a articular-se-á com todos os sist<strong>em</strong>asnacionais de operacionalização de políticaspúblicas, especialmente nas áreas da saúde,educação, assistência social, trabalho,segurança pública, planejamento,orçamentária, relações exteriores e


106[...] as ações das instâncias públicasgovernamentais e nãogovernamentais, que integram esseSist<strong>em</strong>a, precisam ser alavancadorase facilitadoras, visando a uma inclusãoprivilegiada e monitorada dessepúblico de credores de direitos e deconflitantes com a lei, nos serviços eprogramas dos órgãos daAdministração Pública. E, igualmente,alavancadores e facilitadores, visandoà facilitação do acesso dele à Justiça.Para tudo isso operar, os órgãos dosist<strong>em</strong>a de garantia dos direitos dacriança e do adolescente - SGDfuncionam exercendo três tipos defunções estratégicas: (1) promoção dedireitos, (2) defesa (proteção) dedireitos e (3) controle institucional esocial da promoção e defesa dosdireitos. Isso não significa que umdeterminado órgão público ou entidadesocial só exerça exclusivamentefunções de uma linha estratégica.Quando des<strong>em</strong>penham suasatividades legais, cada um delesexerce preponderant<strong>em</strong>ente um tipode estratégia de garantia de direitos(promoção? defesa? controle?), maspod<strong>em</strong> também, <strong>em</strong> carátersecundário, desenvolver estratégiasde outro eixo. (NOGUEIRA NETO,2006, p. 42).Ressalvada a imprescindívelintegração de todos os eixos doSist<strong>em</strong>a de Garantia de DireitosFundamentais, torna-se importanteapresentar os nós estruturantes decada um dos eixos. Destacando queesses foram os identificados nestatese pelo processo retromencionado,mas nada impede que, caso se provenecessário, outros vínculos sejamacrescentados.promoção da igualdade e valorização dadiversidade.” (CONANDA, 2006).São ex<strong>em</strong>plos de atuação <strong>em</strong>torno da promoção de direitosfundamentais: 1) criação de normasprotetoras de direitos; 2) formação eexecução de políticas sociais; 3)participação maciça dos cidadãos nospleitos eleitorais com votos <strong>em</strong> tornoda realização de direitos que valor<strong>em</strong>mais importantes.A defesa dos direitosfundamentais t<strong>em</strong> como eixo base osist<strong>em</strong>a de justiça, mas não apenasele, pois é possível defender direitos,dentre outras ações, por meio de: 1)criação de normas legais nas quais seprevejam instrumentos para a defesade direitos (possibilidade de acessodireto ao STF, e.g.); 2) punição judicialde agentes públicos envolvidos <strong>em</strong>atos contrários aos direitosfundamentais; 3) arbitramento deindenização a vítimas e familiares deatos praticados por agente estatal; 4)articulação da população <strong>em</strong> torno daDefensoria Pública, do MinistérioPúblico ou de advogados privadospara a exigência de direitosfundamentais perante o sist<strong>em</strong>a dejustiça ou extrajudicialmente; 5)atuação proativa do Ministério Públicoe da Defensoria Pública na qual sevalorize a participação dos indivíduose grupos credores do direito pleiteado;6) institutos privados de mediação,


107arbitrag<strong>em</strong>, administração de conflitos;7) atuação da sociedade civil perante osist<strong>em</strong>a de justiça nacional ou peranteos órgãos internacionais incumbidosda defesa de direitos humanos; 8) umsist<strong>em</strong>a de justiça probo e capaz delidar com as d<strong>em</strong>andas jurídicasindividuais ou coletivas, levando <strong>em</strong>consideração a estrutura histórica,política e socioeconômica dedistribuição de direitos.O controle institucional e socialse refere ao que se t<strong>em</strong> acostumado anomear como accountability e severifica por: 1) fiscalização pelasociedade civil, pelos cidadãos e peloMinistério Público do respeito aosdireitos por entes públicos e privados;2) denúncias realizadas pública ouanonimamente pela sociedade civil epelos cidadãos de atuação no poderpúblico ou nas instituições privadasque se configur<strong>em</strong> como ameaça ouviolação de direitos; 3) participação dasociedade civil e dos cidadãos <strong>em</strong>conselhos e órgãos de deliberaçãocom autonomia e olhar voltado para arealização de direitos.Ressaltamos a necessidade departicipação dos titulares de direitos,mesmo <strong>em</strong> ações coletivas propostaspela Defensoria Pública ou peloMinistério Público, e que essa sejauma participação ativa nas quais lhessejam dadas oportunidades reais deter voz nas discussões. O direito àparticipação é essencial para aintegração do poder público e asociedade. Com uma participaçãoativa e dialógica, o direito se converte<strong>em</strong> real instrumento de luta e mudançasocial <strong>em</strong> prol de uma cidadania<strong>em</strong>ancipatória.Como se vê, a proposta doSist<strong>em</strong>a de Garantia de DireitosFundamentais e também a articulada<strong>em</strong> torno de crianças e adolescentesnão propõ<strong>em</strong> a criação de estruturasaté o momento inexistentes, oumesmo não se baseia <strong>em</strong> novidades<strong>em</strong> torno das ações que propõ<strong>em</strong>. Ainovação se verifica pela leituraproposta na qual se defende aintegração de todas as instânciassociais do modo mais articuladopossível, chamando cada um aassumir sua parcela deresponsabilidade <strong>em</strong> torno darealização de direitos fundamentais.O Sist<strong>em</strong>a de Garantia deDireitos Fundamentais não dependeda criação de uma norma que oinstitua, <strong>em</strong>bora sua criação possa serarguida se isso se mostrar necessário.Depende, sim, do modo de encarar osdireitos fundamentais por intermédiode diversos (o poder público, asociedade civil organizada, cidadãos e


108cidadãs) e da articulação deles <strong>em</strong> prolda integral efetivação desses direitos.O poder público <strong>em</strong> todas assuas expressões t<strong>em</strong> de l<strong>em</strong>brar-seque a efetivação de direitosfundamentais é sua obrigaçãoessencial. 18 A sociedade civilorganizada e os cidadãos têm deassumi-los não como direitos de umgrupo ou classe, mas de toda apopulação.Os direitos fundamentais nãorepresentam anteparos ou óbices aodesenvolvimento como por vezes seventila na mídia. Tais direitos são <strong>em</strong>verdade parte de um desenvolvimentohumano de modo socioambiental justo.Não se pode conceber ainterconexão dos direitos fundamentaisapenas a na relação com o Estado. Nocontexto atual, quando o Estadoresponde positivamente areivindicações históricas dosmovimentos sociais e da sociedadecivil organizada <strong>em</strong> prol de direitos,depara-se com intensa rejeição porparte de grande contingente dapopulação. O caso do Programa18Um ex<strong>em</strong>plo seria: a União implantouprograma de saúde para a readequação degênero de indivíduos transgêneros, noentanto, a AGU continuava a propor recursos<strong>em</strong> uma ação cujo pedido era exatamenteeste. Até que a União desista de recursoscontra gratuidade de cirurgias paratransexuais.Nacional de Direitos Humanos 3(BRASIL, 2009), amplamente debatidocom a sociedade civil organizada, éex<strong>em</strong>plar. Quando lançado ao grandepúblico, a reação da mídia e de outrossetores sociais foi feroz.Se defend<strong>em</strong>os um ambiented<strong>em</strong>ocrático, não pod<strong>em</strong>os crer queseja possível se prescindir dessastensões, mas elas pod<strong>em</strong> serminoradas e mais b<strong>em</strong> equalizadaspara não se tornar<strong>em</strong> impeditivas dodesfrute de direitos fundamentais.T<strong>em</strong>os dito que a proposta de umSist<strong>em</strong>a de Garantia de DireitosFundamentais não inova no mundojurídico no sentido de que ele já podeser deduzido da leitura da eficáciavertical (estado e sociedade) e daeficácia horizontal (cidadãos/cidadãs ecidadãos/cidadãs). Sucintamente, aeficácia vertical se refere à relaçãovertical entre estado e sociedadereferente a direitos fundamentais, e ahorizontal se realiza na relação entreas pessoas (cf. SARLET, 2003, p. 145et seq.).T<strong>em</strong>os apenas a pretensão dedeixar mais clara a necessidade detornar tal sist<strong>em</strong>a realidade com aex<strong>em</strong>plificação de algumas de suasfunções. Em páginas acima,apresentamos ex<strong>em</strong>plos de atuaçãodo SGDF. Como nossa proposta


109nesse ponto é repensar o acesso aosist<strong>em</strong>a de justiça, passamos a trazerex<strong>em</strong>plos mais detalhados das tarefasconcernentes ao sist<strong>em</strong>a de justiça <strong>em</strong>cada um desses vértices.Obviamente,nãodesconsideramos que entre osdiferentes grupos sociais e entre eles eo Estado exist<strong>em</strong> conflitos e tensão. Ofuncionamento harmonioso ecompletamente eficaz de qualquersist<strong>em</strong>a que envolva a diversidadehumana é uma pretensão falaciosa ouutópica. No entanto, assumir a defesadesses direitos como sist<strong>em</strong>a é <strong>em</strong> sium ganho, porque d<strong>em</strong>onstra umatentativa de harmonização. Ad<strong>em</strong>ais, osist<strong>em</strong>a de justiça entra nessescenários justamente como ummediador qualificado que dispõe deum corpo técnico especializado e dopeso das normas jurídicasconstitucionais para atuar.No eixo da promoção a)assumir o déficit histórico no acessoaos mais diversos direitosfundamentais de certos grupos,legitimando tratamentos processuais <strong>em</strong>ateriais diferenciados <strong>em</strong> favor daequalização de sua posição socialperante os d<strong>em</strong>ais m<strong>em</strong>bros dacomunidade; 19b) decisões baseadasnuma leitura crítica do direito nas quaisseja levada <strong>em</strong> consideração anecessidade de superação dasdebilidades sociais e haja apossibilidade de parte hipossuficientesair vencedora no processo, 20b<strong>em</strong>como seja incentivada a composiçãoentre as partes; 21c) o sist<strong>em</strong>a dejustiça se estruture de modo aassegurar a inexistência de obstáculosjurídicos, sociais ou pessoais para ouso do sist<strong>em</strong>a judicial; 22 d) desfecho1920O conceito de comunidade pode servisualizado de um plano local ou global. Essaabrangência está cont<strong>em</strong>plada nasdiscussões trazidas por Nancy Fraser (2008)sobre as escalas de justiça na qual traz anecessidade de se considerar esses trêsaspectos (redistribuição, reconhecimento erepresentação).Jamais defenderia que a parte maisdebilitada t<strong>em</strong> de s<strong>em</strong>pre sair vencedora dacontenda; apenas, a necessidade de existirchances reais de ela sair favorecida.Observação sobre o apartheid: mesmoquando não era preciso, juízes defendiam oapartheid.21 Numa ação coletiva proposta pelo MinistérioPúblico contra a administração de umacidade X <strong>em</strong> favor de um direito social, podeser acordado entre as partes uma propostade realização progressiva por meio d<strong>em</strong>etas, com a mediação do Judiciário quepoderá arbitrar punições pelodescumprimento. Trabalhadores de uma<strong>em</strong>presa ou fornecedores têm também seusconflitos mediados.22 Marta Nussbaum (2000, p. 225), defensorade uma versão da teoria da capacitação,ex<strong>em</strong>plifica que não adianta ser asseguradoo direito de voto das mulheres se elas vãosofrer violência doméstica se ousar<strong>em</strong> sairde casa para exercê-lo e serão hostilizadaspela população local. Um ex<strong>em</strong>plo b<strong>em</strong>brasileiro seria o constrangimento detrabalhadores que já utilizaram a Justiça doTrabalho para reclamar direitos.


110judicial rápido (cf. ANNONI, 2008, p.175-304); e) isenção de custas e dehonorários da sucumbência quandonecessários à garantia da paridadeprocessual (direito de d<strong>em</strong>andar oudireito de acesso à justiça strictusensu); f) promoção de campanhas deconscientização e incentivo para queos indivíduos utiliz<strong>em</strong> os sist<strong>em</strong>asoficiais de resolução de conflitos <strong>em</strong>vez de apelar para soluçõesintragrupos nas quais há o desrespeitoa direitos fundamentais ou a utilizaçãoda força de modo desmedido aoarrepio de todo o sist<strong>em</strong>aconstitucional sob o qual oordenamento brasileiro estáedificado; 23g) descentralização dosist<strong>em</strong>a de justiça para possibilitar quepessoas que viv<strong>em</strong> <strong>em</strong> locais isoladospossam dele usufruir (direito ded<strong>em</strong>andar ou direito ao acesso àjustiça strictu sensu); h) Os m<strong>em</strong>brosdo sist<strong>em</strong>a de justiça como formadores23Trata-se <strong>aqui</strong> de destacar que meiosextralegais (e até ilegais) provêm soluçãopara questões que, por motivos diversos,algumas pessoas consideram difícil ouimpossível obter pela via judicial. Osex<strong>em</strong>plos são amplos e diversificados,segu<strong>em</strong> desde casos de linchamento que setêm tornado cada dia mais comuns(NASCIMENTO, 2010); até o ex<strong>em</strong>ploclássico da “adoção à brasileira” na qualalguém registra filho de outr<strong>em</strong> como seu(com a autorização verbal dos verdadeirospais) para fugir de um processo judicial deadoção tido como lento e burocrático, qu<strong>em</strong>uitas vezes fere os direitos da criança e dafamília biológica.de opinião nos meios jurídicos,acadêmicos e autores de obrasjurídicas incentiv<strong>em</strong> a afirmação doSGDF e de um ensino jurídico crítico,que prepare os futuros operadores daJustiça para lidar com aconflituosidade das relações sociaisnum mundo desigual no qual aredistribuição, o reconhecimento e arepresentação dos grupos depende darealização de direitos fundamentaisque se confrontarão com a realidadeestabelecida.No eixo da defesa a) umaCorte Supr<strong>em</strong>a acessível diretamenteà população quando o que estiver <strong>em</strong>jogo se referir a direitos fundamentaisde cidadãos e cidadãs, estruturantesde um Estado d<strong>em</strong>ocrático de direito;b) a atuação do Ministério Público e daDefensoria Pública tenha <strong>em</strong>consideração a necessidade deincentivar autogestão de direitos, ouseja, a capacidade de cada pessoalidar com anseios e probl<strong>em</strong>as, seja naesfera privada, seja na estatal, s<strong>em</strong>esperar passivamente uma soluçãomilagrosa de qualquer tipo deinstituição. Os cidadãos e as cidadãsdev<strong>em</strong> ser incentivados a utilizar oauxílio técnico de órgãos e instituições,mas não ficar na dependência dequalquer desses entes para arealização de direitos que pod<strong>em</strong>


111pleitear por si por intermédio dasesferas jurisdicionais, sociais,eleitorais, econômicas; c) não sejampermitidos recursos meramenteprocrastinatórios; d) haja cumprimentodos prazos processuais (inclusive porparte de juízes, des<strong>em</strong>bargadores,ministros e m<strong>em</strong>bros do MinistérioPúblico, da Defensoria, da FazendaPública, etc.; e) instituições capazesde prover a assessoria jurídica gratuitade qualidade por meio de ações(individuais ou coletivas), consultoriajurídica, mediação de conflitos e outrosmeios possíveis de solução decontendas.No eixo do controle a)sist<strong>em</strong>as de justiça e controle social(polícias) independentes de influênciade interesses particulares e dignos deconfiança da população, que cont<strong>em</strong>com sist<strong>em</strong>as de ouvidoria eaccountability eficientes (direito aoacesso à justiça strictu sensu, direito àtransparência e à probidadeadministrativa); b) curso de formaçãocontinuada obrigatórios para todos osm<strong>em</strong>bros do sist<strong>em</strong>a de justiça econtrole social (polícias, agentes deinstituições totais, penitenciárias,sist<strong>em</strong>as socioeducativos, etc.)tendentes a assegurar a efetividade de“novos” e “velhos” direitos; 24 c)desmistificação dos procedimentosjudiciais e uso de uma linguag<strong>em</strong> maiscoloquial pelos operadores do sist<strong>em</strong>a,tornando possível o entendimentogeral dos processos, procedimentos edecisões para a população <strong>em</strong> geral;d) capacitação permanente doJudiciário; como afirmado, a maiorparte das propostas relativas ao SGDFse relaciona mais com o modo de serealizar os direitos fundamentais doque com a criação de institutos;entretanto, ao apresentar a inserçãodo sist<strong>em</strong>a de justiça no SGDF,traz<strong>em</strong>os sim duas propostas inéditas:o acesso direto à Corte Constitucionalde grupos historicamente credores dedireitos e as decisões judiciais commediação entre as partes.Considerações Finais24 A <strong>em</strong>ergência de novos e velhos direitos porgrupos e indivíduos que por força decontingências histórico-sociais sóconseguiram entender-se como grupotardiamente ou unir-se <strong>em</strong> torno ded<strong>em</strong>andas próprias com a superação debarreiras culturais (comunidade LGBTT é umex<strong>em</strong>plo). Um dos focos do Capítulo 3 foitratar dos obstáculos histórico-culturais quetêm tornado tão melindrosa a real efetivaçãode direitos sociais pelo Judiciário <strong>em</strong>diversos países, especialmente aqueles comdéficit de acesso a direitos por grande partede sua população e que elegeram taisdireitos como baluartes de uma mudança deparadigmas sociais.


112Uma postura crítica,<strong>em</strong>ancipatória e cont<strong>em</strong>porânea <strong>em</strong>relação aos direitos fundamentais nãopermite que se fale <strong>em</strong> beneficiáriosde políticas sociais, mas <strong>em</strong> titularesde direitos. Não permite que os direitosfundamentais sejam vistos comobandeiras isoladas pertencentes aapenas certos grupos, <strong>em</strong> geral,grupos historicamente desfavorecidos.Não permite que se vejam essesdireitos de modo compartido: de umlado, direitos civis e políticos; de outro,direitos econômicos, sociais eculturais. Ao contrário, requer que seintegr<strong>em</strong> cada vez mais todos ossetores sociais, que se apresent<strong>em</strong>tais direitos como uma bandeira deluta conjunta que pode beneficiartodos os m<strong>em</strong>bros da sociedade, quea indivisibilidade, interdependência einter-relação sejam propriedadesefetiváveis.Defend<strong>em</strong>os ser possível sepassar de um polo a outro permitindoseum salto qualitativo substancial nacidadania ativa, com a criação de umdiálogo <strong>em</strong> torno de um Sist<strong>em</strong>a deGarantia de Direitos Fundamentais.Assumir o Sist<strong>em</strong>a de Garantia deDireitos Fundamentais proposto éparte da formação de uma proposta naqual os direitos fundamentais sejampostos como valores da sociedade quedev<strong>em</strong> nortear a vida cotidiana, arelação entre entes privados epúblicos.Inibir o uso de direitosfundamentais como exortações vãs,passar por uma educação <strong>em</strong> direitospara toda a população, entretantorepresenta muito mais. Se o aluno vaià escola e é ensinado sobre todas asnormas a respeito do t<strong>em</strong>a, mas sedepara apenas com violações a essasnormas no seu dia a dia, e não as vêjamais ser<strong>em</strong> utilizadas para reparar,proteger ou até punir, de nadaadiantará acrescentar a matéria nocurrículo escolar.Nada t<strong>em</strong>os a ganhar comisolamento e compartimentação.Logicamente propor um sist<strong>em</strong>adialógico exige esforço de todas aspartes envolvidas. Ora, todos os qu<strong>em</strong>ilitam no dia a dia na busca pordireitos fundamentais neste país sabeque a relação entre os diversossetores do poder público e dasociedade é, <strong>em</strong> geral, extr<strong>em</strong>amentetensionada. T<strong>em</strong>-se conhecimentotambém de que o modo defuncionamento de qual sist<strong>em</strong>a dejustiça está orquestrado é, por vezes,um impeditivo à comunicação.No entanto, se não for possívelocupar os espaços que nos sãodisponibilizados com discussões como


113esta, que se propõe a repensar omodo de se olhar (e lidar com) osist<strong>em</strong>a de justiça, jamais chegar<strong>em</strong>osa um Sist<strong>em</strong>a de Garantia de DireitosFundamentais, ou à garantia dedireitos fundamentais. Portanto, seneste pequeno texto conseguirmoscontribuir, ainda que minimamente,para o s<strong>em</strong>pre florescente debatesobre a posição do sist<strong>em</strong>a de justiçana efetivação dos direitosfundamentais, ter<strong>em</strong>os cumprido opapel a que nos propus<strong>em</strong>os.ReferênciasANNONI, Danielle. O direito humanode acesso à justiça no Brasil. PortoAlegre: Sergio Antonio Fabris, 2008.ÁVILA, Humberto. Teoria dosprincípios: da definição à aplicaçãodos princípios jurídicos. 4.ª ed. SãoPaulo: Malheiros, 2004.BANDIDO é linchado por popularesapós assalto. Diário do Pará, 8 abr.2010. Polícia. Disponível <strong>em</strong>:. Acesso <strong>em</strong>: 26abr. 2010.BRASIL. Ministério da Justiça.Reforma do Judiciário. Brasília, 2007.Disponível <strong>em</strong>:. Acesso <strong>em</strong>:13 mar. 2010.______. Secretaria Especial dosDireitos Humanos. Programa Nacionalde Direitos Humanos 3. Brasília, 2009.CONANDA. Resolução n. 113, de 19de abril de 2006. Dispõe sobre osparâmetros para a institucionalização efortalecimento do Sist<strong>em</strong>a de Garantiados Direitos da Criança e doAdolescente. Disponível <strong>em</strong>: Acesso <strong>em</strong>: 12 mar. 2010.CAPPELLETTI, Mauro; GARTH,Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre:Sergio Fabris, 2002.DEVENISH, G. E. A Commentary onthe South African Bill of Rights.Durban: LexisNexis, 1999.DIAS, Ayesha Kadwani. Internationallaw and sources of access to justice.In: DIAS, Ayesha Kadwani; WELCH,Gita Honwana. Justice for the poor.New Delhi: Oxford University Press,2009.DOMINGUES, José Maurício. AAmérica Latina e a modernidadecont<strong>em</strong>porânea: uma interpretaçãosociológica. Belo Horizonte:Humanitas, 2009.ECONOMIDES, Kim. Lendo as ondasdo Movimento de Acesso à Justiça:epist<strong>em</strong>ologia versus metodologia? In:PANDOLFI, Dulce Chaves;CARVALHO, José Murilo de;CARNEIRO, Leandro Piquet;GRYNSZPAN, Mario. (Org.).Cidadania, justiça e violência. Rio deJaneiro: Fundação Getulio Vargas,1999. p. 61-76. Disponível <strong>em</strong>:. Acesso <strong>em</strong>: 23 jan.2011.


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115(Org.). Justiça: promessa e realidade:o acesso à justiça <strong>em</strong> países iberoamericanos.Tradução Carola AndréaSaavedra Hurtado. Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 1996.______. Para uma revoluçãod<strong>em</strong>ocrática da justiça. Perdizes, SP:Cortez, 2007.SANTOS, Marcelo Paiva dos. Ahistória não contada do Supr<strong>em</strong>oTribunal Federal. Porto Alegre: SergioAntonio Fabris Editor, 2009.SARLET, Ingo Wolfgang. A eficáciados direitos fundamentais. 3. ed. PortoAlegre: Livraria do Advogado, 2003.


116APÊNDICE Artigo da Constituição indiana, brasileira e sul-africana que mais seaproxima da concepção direta de acesso à justiçaConstituição indiana Constituição brasileira Constituição sul-africana“39A. O Estado deveassegurar que a operaçãodo sist<strong>em</strong>a legal promovajustiça, com base <strong>em</strong>igualdade de oportunidades,e deve, <strong>em</strong> particular,prover assistência jurídicagratuita, através de legislaçãoadequada ou esqu<strong>em</strong>asou de qualquer outromodo, para assegurar queoportunidades para garantirjustiça não sejam negadasa nenhum cidadão <strong>em</strong>razão de condição econônômicaou qualquer outradeficiência.”Texto original: “39A. TheState shall secure that theoperation of the legalsyst<strong>em</strong> promotes justice, ona basis of equalopportunity, and shall, inparticular, provide free legalaid, by suitable legislationor sch<strong>em</strong>es or in any otherway, to ensure thatopportunities for securingjustice are not denied toany citizen by reason ofeconomic or otherdisabilities.”“Art. 5. o , [...]XXXV “a lei não excluirá daapreciação do PoderJudiciário lesão ou ameaça adireito”; [...]LXXIV o Estado prestaráassistência jurídica integral egratuita aos que comprovar<strong>em</strong>insuficiência de recursos;[...]XXVIII “a todos, no âmbitojudicial e administrativo, sãoassegurados a razoávelduração do processo e osmeios que garantam a celeridadede sua tramitação”. [...]Art. 107, § 3.º Os TribunaisRegionais Federais poderãofuncionar descentralizadamente,constituindo Câmarasregionais, a fim de asseguraro pleno acesso dojurisdicionado à justiça <strong>em</strong>todas as fases do processo.(Incluído pela EmendaConstitucional nº 45, de2004).” [O texto se repete <strong>em</strong>relação aos Tribunais deJustiça (Art. 115, § 2.º) eTribunais Regionais doTrabalho (Art. 115, § 2.º).]17. Ass<strong>em</strong>bleia, d<strong>em</strong>onstração,greve e petição – todostêm o direito, de formapacífica e desarmada, de s<strong>em</strong>obilizar, d<strong>em</strong>onstrar, fazergreve e apresentar petições.Texto Original: “17.Ass<strong>em</strong>bly, d<strong>em</strong>onstration,picket and petition. -Everyonehas the right, peacefully andunarmed, to ass<strong>em</strong>ble, tod<strong>em</strong>onstrate, to picket and topresent petitions.”


117Valdênia Brito Monteiro *O grande jurista latinoamericano,o argentino Zaffaroni, ePierangeli, (1996), ao se posicionar<strong>em</strong>sobre o sist<strong>em</strong>a penal, diz<strong>em</strong> que eleopera como uma epid<strong>em</strong>ia que afetaqu<strong>em</strong> t<strong>em</strong> as defesas baixas. Aofazer<strong>em</strong> essa declaração sobre osist<strong>em</strong>a, desejam afirmar que osgrupos vulneráveis, pertencentes agrupos desprovidos de poder – negros,índios, jovens pobres –, enfim, setoresconsiderados marginais, social eeconomicamente, são selecionadospelo sist<strong>em</strong>a por ser<strong>em</strong> despidos daproteção e de privilégios normais dalei. O sist<strong>em</strong>a penal <strong>em</strong>pregado <strong>aqui</strong>diz respeito às instituiçõesencarregadas do papel do controlepunitivo institucionalizado, tais comopoder político (Legislativo, Executivo,entre outros), a instituição policial, oMinistério Público, a instituiçãojudiciária e a instituição penitenciária.Baseado nessa concepçãosobre a seleção pelo sist<strong>em</strong>a desetores com baixa imunidade, este*Mestra <strong>em</strong> Direito Público, Professora daUniversidade Católica de Pernambuco(Unicap) e da Universidade Salgado deOliveira (Universo), coordenadora do ProjetoJustiça Cidadã do <strong>Gajop</strong>, entidade dedireitos humanos.texto parte da experiência práticarealizada por uma entidade de direitoshumanos, chamada Gabinete deAssessoria Jurídica às OrganizaçõesPopulares (<strong>Gajop</strong>), com seu trabalhode educação <strong>em</strong> direitos. A atividadedá-se especificamente no Ibura, bairroperiférico da cidade do Recife, do qualse evita apresentar o nome dos jovenspor motivo de segurança. Destaca-seque o constrangimento vivido pelosjovens daquele bairro refere-se àrealidade de muitos outros, vítimas daatuação do sist<strong>em</strong>a penal.Naquele bairro exist<strong>em</strong> váriosgrupos de jovens que tentam suaafirmação como moradores daquelalocalidade, organizando-se <strong>em</strong> redesna busca pelo reconhecimento dedireitos e afirmação de sua identidade.Dentre vários conflitos existentes, deque mais esses jovens reclamam é daatuação policial. Contam que quando apolícia chega para realização de blitz,popularmente chamada “batidapolicial”, os jovens são <strong>revista</strong>dos, e osque estão com seu celular sãoobrigados a comprovar que o b<strong>em</strong> éde sua propriedade, apresentando anota fiscal, caso contrário, seuaparelho será levado pela polícia. Pelamesma situação, passam os jovensque vão trabalhar de bicicleta, pois,


118nesse caso, a nota fiscal do objetotambém é exigida. Eis osdepoimentos:− Meu primo estava s<strong>em</strong> a nota, e seubraço foi queimado com cigarro, alémde levar<strong>em</strong> o celular.− Morar na favela é o t<strong>em</strong>po todo ter deprovar que é honesto.− Eu não aguento ser <strong>revista</strong>do o t<strong>em</strong>potodo. Tenho medo. Trabalho cedo. Anota fiscal da minha bicicleta precisa serplastificada. São os mesmos policiaisque me <strong>revista</strong>m.− A polícia já v<strong>em</strong> dizendo que somosenvolvidos com o tráfico. É melhor ficarcalado para não apanhar. T<strong>em</strong>os medode reivindicar direitos. Estamos nacomunidade. Pod<strong>em</strong>os ser a próximavítima a ser encontrada morta.− Sou honesto, quero viver. Para isso,tenho de ficar calado. Reivindico outrosdireitos, mas, no caso da violênciapolicial, só se for através de umainstituição fazendo denúncia s<strong>em</strong> dizernosso nome.− A gente veio <strong>aqui</strong> [<strong>Gajop</strong>] para quevocês ajud<strong>em</strong> a gente. Precisamos dealguém forte. Não quer<strong>em</strong>os nossonome exposto.− Tenho medo que coloqu<strong>em</strong> aresponsabilidade <strong>em</strong> nós por algunscrimes. Não trabalho, então, souchamado de vagabundo e vadio.Essa narrativa d<strong>em</strong>onstra que osist<strong>em</strong>a, enfim, cria e reforça asdesigualdades sociais, conservando aestrutura vertical de dominação epoder. O discurso de cada segmentodo sist<strong>em</strong>a é de proclamação dafunção preventiva, mas, na prática,ignora o discurso jurídico penal – <strong>em</strong>regra, garantidor, legalista, pragmáticoe regulador – e a atividade quejustifica.No caso específico da políciacom suas rotineiras blitze, infelizmentea prática da intimidação dosmoradores daquela e de outrascomunidades pobres disparaindiscriminadamente, gerando umcampo de guerra – uma invasãomilitar. O sist<strong>em</strong>a começa a perseguilosantes mesmo da consumação doato delituoso.A criminalização da pobrezaatinge, particularmente, jovens enegros da periferia urbana. Morar nafavela traz, no imaginário social, algode pejorativo, do lugar da violência edo inimigo interno. Logo, o medoimobiliza sua população para enfrentaro probl<strong>em</strong>a. O fantasma do medoreduz a esperança de dias melhores.Esse fantasma não é da ord<strong>em</strong> dovisível, mas sim do vivenciado pelaspercepções coletivas.Vive-se a “cidade partida”(cidade bipolar) como diz Ventura(1994); de um lado, o poder dostraficantes de droga, que trazinsegurança à comunidade com suasameaças e, de outro, a cidade sitiada,com medo das favelas, afastando-secada vez mais da convivência pacífica.Para Caldeira (2000, p. 34), “aviolência e o medo combinamprocesso de mudanças, alterando aarquitetura urbana, segregando e


119discriminando grupos sociais <strong>em</strong>enclaves fortificados”.No caso das agências penais,elas acentuam a ideia de que existeuma “classe perigosa”, formada porvagabundos, vadios, marginais, entreoutros. Na realidade, a seletividadeestrutural da criminalização dá-se commaior ênfase pela polícia. Tambémnão há sist<strong>em</strong>a no mundo que nãofaça a criminalização a partir davulnerabilidade de pessoas. O quediferencia é o grau de seletividade.Quanto mais a sociedade forestratificada, concentradora deriqueza, preconceituosa, de baixo graude Estado d<strong>em</strong>ocrático de direito,maior será a atuação violenta dasagências de criminalização.Quanto aos “discursos-penais”(ZAFFARONI, 2006, p. 69), 1nãoescond<strong>em</strong> a crueldade <strong>em</strong> que seconstitui o sist<strong>em</strong>a penal máximo quesubscreve por meio de uma política domedo.Nesse sentido, os discursospunitivos e com diretos reflexos napolítica criminal levam alguns grupos aviver <strong>em</strong> um verdadeiro estado deexceção, do que se pode chamar decidadania mínima ou cidadania de1Os discursos têm efeitos de centrar aatenção sobre certos fenômenos, e seusilêncio <strong>em</strong> relação a outros os condena àignorância ou à indiferença.segunda classe. Como resultado doalargamento do campo de atuação dosist<strong>em</strong>a penal, é perceptível o arbítrioseletivo de seus agentes, que atuam,muitas vezes, s<strong>em</strong> nenhum respaldolegal, atingindo basicamente aspessoas mais vulneráveis do meiosocial. Esse sist<strong>em</strong>a penal, segundoZaffaroni e Pierangeli (2006), échamado de subalterno, por exercerum poder discricionário queinstitucionaliza as execuçõessumárias, torturas, tráfico, etc.Há uma crença por parte dosoperadores das agências penais deque há um segmento que comete maisdelito, que são pessoas que faz<strong>em</strong>parte de camadas socialmentedesfavorecidas, e o poder coercitivot<strong>em</strong> de agir. Por isso, ações comotolerância zero, leis mais severas,restrição de direitos fundamentais,bandeira do movimento lei e ord<strong>em</strong>,faz<strong>em</strong> sucesso. O discurso é reforçadopela mídia e incorporado pelo sensocomum, consolidando na sociedadecertos “estigmas/ etiquetamentos”(BISSOLI FILHO, 1998, p. 190). 22 “O termo “estigma” t<strong>em</strong> sua orig<strong>em</strong> grega esignifica “sinais corporais com os quais seprocurava evidenciar alguma coisa deextraordinário ou mau sobre status moral dequ<strong>em</strong> apresentava”. Explica o autor que hátrês tipos de estigmas: As abominações docorpo, ou seja, as várias deformidadesfísicas; as culpas de caráter individual,precedidas como vontade fraca, paixões


120“A mídia encarrega-se deencenar, entre o misto do drama e doespetáculo, uma sociedadecomandada pelo banditismo dacriminalidade, e de construir umimaginário social amedrontado.”(ANDRADE, 2003, p. 54).O fato é que existe uma imag<strong>em</strong>compartilhada socialmente, a de que o“criminoso” ou “bandido” é latente <strong>em</strong>determinadas pessoas, as quaisacabarão por delinquir (positivismocriminológico). A concepção de que“bandido bom é bandido morto” é umdiscurso incorporado por parte dosist<strong>em</strong>a penal brasileiro.De um modelo de sociedade“que não se probl<strong>em</strong>atiza o DireitoPenal – visto como expressão dointeresse geral – mas os indivíduos,diferenciados, que o violam”(ANDRADE, 2003, p. 38).Infelizmente, aos pobress<strong>em</strong>pre foi designado o título de classeperigosa e motivo de terror para asociedade. Como diz Benevides:tirânicas ou não naturais, crenças falsas erígidas, desonestidade, sendo essasinferidas por meio de relatos conhecidos de,por ex<strong>em</strong>plo, distúrbio mental, prisão, vício,alcoolismo, homossexualismo, des<strong>em</strong>prego,tentativas de suicídio e comportamentopolítico radical; finalmente, há os estigmastribais de raça, nação e religião, que pod<strong>em</strong>ser transmitidos por meio da linhag<strong>em</strong> porigual a todos os m<strong>em</strong>bros de uma família.São ameaçadoras pela feiúra damiséria, são ameaçadoras pelo grandenúmero, pelo medo atávico das‘massas’. Assim, de certa maneira,parece necessário às classesdominantes criminalizar as classespopulares associando-as aobanditismo, à violência e àcriminalidade; porque esta é umamaneira de circunscrever a violência,que existe <strong>em</strong> toda a sociedade,apenas aos ‘desclassificados’, que,portanto, mereceriam todo o rigor dapolícia, da suspeita permanente, daindiferença diante de seus legítimosanseios. (BENEVIDES, 2004, p. 3-4).Assim, o sist<strong>em</strong>a com suacaracterística seletiva vai nacontramão da perspectiva dos direitoshumanos como reconhecimento dadignidade humana. “Há um grupo ques<strong>em</strong>pre pode virar o bode expiatório. Éo grupo dos delinquentes comuns. Éum candidato a inimigo residual quesurge quando não há outro inimigomelhor.” (ZAFFARONI, 2009).Quando se reflete sobre oDireito Penal, não se pode maisconsiderá-lo como sist<strong>em</strong>a estático denormas, mas sim como sist<strong>em</strong>adinâmico que comporta mecanismosque objetivam a produção de umprocesso de criminalização. SegundoBaratta (1999, p. 162), esse processot<strong>em</strong> três características básicas:a) o mecanismo da produção dasnormas, conhecido por criminalizaçãoprimária; b) o mecanismo da aplicaçãodas normas, isto é, o processo penal,compreendendo a ação dos órgãos deinvestigação e culminando com ojuízo, conhecido do processo decriminalização secundária; e


121finalmente, c) o mecanismo daexecução da pena ou das medidas desegurança.Como reflexo dessa ânsiapunitiva, denominada de populismopenal, reproduz-se uma lógica racionaltotalitária. Nesse sentido, adiscriminação não é simplesmente depessoas envolvidas com o crime e quepertenc<strong>em</strong> às classes menosfavorecidas, mas também das vítimas– por sua raça, etnia, situaçãogeracional e estrato social –, como é ocaso dos jovens que têm de andarcom a nota fiscal e são postos à provasobre a “honestidade”, vivendosituações de discriminação, racismo epreconceito. O curioso é que muitosagentes da agência punitiva vêm deum meio social dessas vítimas. Essascontradições colaboram para areprodução de antagonismo entrepessoas da mesma classe social.Para Castro (1981), o sist<strong>em</strong>ade classes influi nos processos decriminalização. Três são as viashabituais para fazê-lo:1. Criminalizam-se condutas quepertenc<strong>em</strong>, preferent<strong>em</strong>ente, àmaneira e às condutas de vida dossetores marginais; 2. Criminalizam-seindivíduos, preferent<strong>em</strong>ente,pertencentes a estes setores, assimcomo os que pertenc<strong>em</strong> a grupossubculturais desprovidos de poderquando a polícia dirige sua atenção eseus recursos, precisamente, paraesses indivíduos; 3. Outra forma decriminalização ocorre através do tipode tratamento ou de sançãoselecionada. (CASTRO, 1981, p. 12).Pela afirmação de Castro(1981), conclui-se que a criminalizaçãode determinadas condutas éd<strong>em</strong>asiadamenteestigmatizante,porque a probabilidade de ser<strong>em</strong>praticadas pelas pessoas pertencentesàs camadas mais baixas da sociedadeé muito maior. São as que vão para ascadeias e, assim, permanec<strong>em</strong>excluídas. No processo de“criminalização da pobreza”, queaponta os ricos como cidadãos de b<strong>em</strong>e os pobres como criminosospotenciais, “áreas de guerra”.Háinvisibilidade e inviabilização dessessujeitos sociais.O sist<strong>em</strong>a criminal é eficiente(na apuração) quando está <strong>em</strong> jogo aclasse média, mas é muito maiseficiente quando é necessário“etiquetar” e “estigmatizar” certaspessoas consideradas de “classeperigosa”, enquanto a maior parte doestrato social médio e altoregularmente fica imune ou impune aqualquer delito. Wacquant (1999) dizque é mais fácil fazer a assepsia doscrimes cometidos pelos pobres do quepunir os crimes praticados pelospoderosos.


122Para Chauí (2006), nasociedade brasileira, as leis s<strong>em</strong>preforam para preservar privilégios e omelhor instrumento para a repressão ea opressão, jamais definindo direitos edeveres concretos e comprometidospara todos. Acrescenta: “Atransgressão popular é violentamentereprimida e punida, enquanto aviolação pelos grandes e poderososs<strong>em</strong>pre permanece impune.” (CHAUÍ,2006, p. 105).Zaffaroni e Pierangeli (1996, p.26) diz<strong>em</strong> que “a clientela do sist<strong>em</strong>apenal é constituída de pobres, nãoporque tenha a maior tendência adelinquir, mas precisamente t<strong>em</strong> maischances de ser<strong>em</strong> criminalizados eetiquetados”. Por essa razão, Baratta(1999) considera o direito penaligualitário um mito, e diz:a) o direito penal não defende todos esomente os bens essenciais, nosquais estão igualmente interessadostodos os cidadãos, e quanto pune asofensas aos bens essenciais faz comintensidade desigual e de modofragmentário; b) a lei penal não é igualpara todos; o status de criminoso édistribuído de modo desigual entre osindivíduos; e c) o grau efetivo de tutelae distribuição do status de criminoso éindependente da danosidade socialdas ações e da gravidade dasinfrações à lei, no sentido de que estasnão constitu<strong>em</strong> a variável principal dareação criminalizante e da suaintensidade. (BARATTA, 1999, p. 162).Zaffaroni e Pierangeli diz<strong>em</strong> quea lei penal estabelecia tratamentodiferenciado de censura de pessoas,dependendo do papel que elasocupass<strong>em</strong> na estrutura social,notadamente, <strong>em</strong> virtude de poder doconsumo:[...] reprovar com a mesma intensidadepessoas que ocupam situações deprivilégio e outras que se encontram<strong>em</strong> situações de extr<strong>em</strong>a pobreza éuma clara violação do princípio daigualdade corretamente entendido,que não significa tratar todosigualmente, mas tratar com isonomiaqu<strong>em</strong> se encontra <strong>em</strong> igual situação.(ZAFFARONI; PIERANGELI, 2006, p.421).No caso específico da violênciapolicial incidindo diretamente nasclasses mais pobres, trata-os como“suspeitos” e “provocadores”. Arotulação degradante torna essasvítimas duplamente vitimizadas pelosist<strong>em</strong>a.Caldeira (2000, p. 142) afirma:“[...] ambiguidades, tratamentosdiferenciados, regras e legislaçõesexcepcionais, privilégios, impunidade elegitimação de abusos são intrínsecosàs instituições da ord<strong>em</strong> e nãoexternos a elas, ou seja,manifestações de uma práticadesvirtuada.”Para Zaffaroni (2009):O rico, às vezes, vai para a cadeiatambém. Isso acontece quando ele se


123confronta com outro rico, e perde abriga. Tiram a cobertura dele. É umabriga entre piratas. Nesse caso, osist<strong>em</strong>a usa o rico que perdeu. E,excepcionalmente, o derrotado acabana cadeia. Mas ter um VIP na prisão éusado pela mídia para comprovar queo sist<strong>em</strong>a penal é igualitário.Em síntese, quando algumaspessoas dos setores heg<strong>em</strong>ônicos sãocriminalizadas, as d<strong>em</strong>ais buscamcerta distância, para que suascondutas não sejam prejudiciais aosseus interesses.Na realidade, nãoexiste um modelo penal ideal nomundo.“Pensar no melhor sist<strong>em</strong>apenal é como perguntar pela melhorguerra. É um dado estrutural, nãoacidental, mas o sist<strong>em</strong>a penal (e odireito penal como contra-poder decontenção) pode diminuir o grau daseletividade.” (ZAFFARONI, 2007, p.136). Nesse sentido, é preciso estaralerta para não se construir o inimigo;a clara ideia da conspiração, atéporque, se for verdade que todosist<strong>em</strong>a t<strong>em</strong> o grau de seletividade,também é verdade que não se podecolocar a responsabilidade do crimenos vulneráveis.De acordo com a época, acriminalização vai tendo outrasroupagens. Através da história, foramconstruindo vários inimigos, a ex<strong>em</strong>plodos hereges, prostitutas,homossexuais, negros, judeus, entreoutros. Tudo t<strong>em</strong> a ver com umaord<strong>em</strong> jurídica intolerante eexcludente; um sist<strong>em</strong>a penal quepenaliza o autor <strong>em</strong> detrimento do fato.A vadiag<strong>em</strong>, mendicância, capoeira e<strong>em</strong>briaguez, situações querepresentavam incômodo para aselites, fizeram encher as prisõesbrasileiras. Para as referidas elites, apopulação que estava nos principaiscentros do país, perambulando dianteda pobreza urbana, pareciad<strong>em</strong>asiadamente insubordinável, aex<strong>em</strong>plo da Revolta da Vacina no Riode Janeiro, período da República.Como diz Zaffaroni (2007), as forçasdo poder punitivo fora de controlecomet<strong>em</strong> um verdadeiro massacre.Situação como a dos jovens queprecisam estar com a nota fiscal àmão, com medo de ser preso pelapolícia, contribui para que a denúnciaseja deixada de lado, por sentir<strong>em</strong> quetal situação é d<strong>em</strong>asiadamentedesigual e desproporcional. Sent<strong>em</strong>-seinseguros diante de sua condiçãosocial. A opção comum das vítimas, denão denunciar tal atrocidade, colaboraainda para a impunidade earbitrariedade. Essa cerimôniadegradante viola os direitosfundamentais, porque parte da


124pr<strong>em</strong>issa de que um grupo social écriminoso por antecipação.Vale destacar que orenascimento da d<strong>em</strong>ocracia no Brasil,<strong>em</strong> face do regime militar de exceção,não implicou a d<strong>em</strong>ocratização dasinstituições, que têm o papel docontrole da violência.Falar <strong>em</strong> d<strong>em</strong>ocracia, <strong>em</strong> tolerância,<strong>em</strong> direitos humanos e paz pode serentendido como redundância, uma vezque não pod<strong>em</strong>os imaginard<strong>em</strong>ocracia s<strong>em</strong> respeito aos direitoshumanos, d<strong>em</strong>ocracia comintolerância, seja de que tipo for,d<strong>em</strong>ocracia s<strong>em</strong> justiça, e a justiça,como sab<strong>em</strong>os, é uma condição paraa paz (BENEVIDES, 2004, p. 1).Apesar de o Brasil encontrar-seno Estado d<strong>em</strong>ocrático de direito, nocampo do sist<strong>em</strong>a criminal, é propícioao Estado Penal – controle da ord<strong>em</strong>pública com mais repressão –, comocapaz de manter a “segurança”, sob aégide da coação, diante da atualincapacidade do Estado-Nação de darsegurança aos cidadãos, existindo umrebatimento nos direitos humanos.Projeto penal neoliberal é claro naconcepção de mais Estado Penal.O mais probl<strong>em</strong>ático é que o momentotorna-se propício para o surgimento d<strong>em</strong>ovimentos repressivos e estímulopara a efetivação do direito penal doinimigo. O autor da teoria, Günther,refere-se ao inimigo como alguém quenão admite ingressar no Estado eassim não pode ter o tratamentodestinado ao cidadão, não podendobeneficiar-se dos conceitos de pessoacomo forma de justificar o controle dacriminalidade. (MONTEIRO, 2009, p.1).A Consolidação do Direito Penalmínimo (última razão e possibilidadede aplicação) é importante no Estadod<strong>em</strong>ocrático de direito.Zaffaroni(2007) diz que o modelo ideal deEstado de Direito depende da força decontenção do Estado Policial.“Em um Estado D<strong>em</strong>ocrático deDireito, o controle sobre os atos dosgovernantes, o controle sobre oexercício de poder, há de ser s<strong>em</strong>pr<strong>em</strong>áximo, enquanto restrições àliberdade dos indivíduos s<strong>em</strong>predev<strong>em</strong> ser mínimas.” (KARAM, 2009,p. 8).Também não se pode esquecerque o sist<strong>em</strong>a punitivo é reflexo dacapacidade dos cidadãos, dedeterminada sociedade, de exercercom plenitude sua cidadania e ser<strong>em</strong>sujeitos de direitos. A história brasileiraé marcada por alto grau dedesigualdade, pobreza e falta decidadania.DaMatta (1979) diz que o Brasilé um país teoricamente igualitário,mas, na realidade, fort<strong>em</strong>entehierarquizado e autoritário, e cada qualtenta estabelecer com outr<strong>em</strong> relaçõesassimétricas. Sua frase: “Você sabecom qu<strong>em</strong> está falando?”, implica


125s<strong>em</strong>pre uma relação autoritária deduas posições sociais distintas, <strong>em</strong>que a parte que diz a expressão tentainferiorizar seu interlocutor; de ummundo das “pessoas”, socialmentereconhecidas <strong>em</strong> seus direitos eprivilégios, e um universo igualitáriodos indivíduos, <strong>em</strong> que as leisimpessoais funcionam comoinstrumentos de opressão e decontrole “para os amigos, tudo; para osinimigos, a lei”.A crítica ao sist<strong>em</strong>a penal t<strong>em</strong>de ser contínua, na busca do seucontrole sobre o exercício de poder.Como diz Karam (2009, p. 8): “Ocontrole do poder t<strong>em</strong> que ser máximo,enquanto restrições à liberdade dosindivíduos s<strong>em</strong>pre dev<strong>em</strong> sermínimas.”Assim, faz-se necessário pensaro direito penal à luz dos direitoshumanos, s<strong>em</strong>pre fazendo uma críticanecessária sobre a seletividade degrupos vulneráveis, dos níveis deinjustiça das estruturas de poder. Oexercício da cidadania é defundamental importância para diminuiro grau de violações aos direitoshumanos. O caso apresentado éex<strong>em</strong>plar para mostrar que se precisaavançar muito. Na realidade, osimpasses à construção da cidadania ede uma esfera pública d<strong>em</strong>ocráticaainda imped<strong>em</strong> que o Brasil consigadar o salto de qualidade para superaros abismos de apartação social. Nãobasta só a positivação para que adignidade humana seja respeitada. Acondição de sujeitos de direitossignifica atuar para alterar a situaçãode exclusão. “T<strong>em</strong>os direito de seriguais quando a diferença nãoinferioriza e direito de ser diferentesquando a igualdade nosdescaracteriza.” (SANTOS, 1999).Enfim, o papel incessante dosestudiosos comprometidos com osdireitos humanos é estar alerta aofuncionamento do sist<strong>em</strong>a punitivo,buscando, principalmente, denunciar oEstado Penal como forma deresponder às desordens, fruto dadesregulação da economia.ReferênciasANDRADE, Vera Regina Pereira de.Sist<strong>em</strong>a penal á i o idadaniani a. Porto Alegre: Livraria doAdvogado, 2003.BARATTA, Alessandro. Criminologiacrítica e crítica do direito penal:introdução à sociologia do direitopenal. Rio de Janeiro: Revan, 1999.BENEVIDES, Maria Victória.Cidadania e direitos humanos.Institutos de Estudos Avançados daUniversidade de São Paulo (IEA).2004. Disponível <strong>em</strong>:.Acesso <strong>em</strong>: 23 set. 2010.


126BISSOLI FILHO, Francisco. Estigmasda criminalização: dos antecedentes áreincidência penal. Florianópolis: ObraJurídica, 1998.CALDEIRA, Teresa Pires do Rio.Cidade de muros: crime, segregação ecidadania <strong>em</strong> São Paulo. 34. ed. SãoPaulo: Edusp, 2000.CASTRO, Lola Aniyar de. Sist<strong>em</strong>apenal e sist<strong>em</strong>a social: acriminalização e a descriminalizaçãocomo funções de um mesmoprocesso. Revista de Direito Penal, Riode Janeiro, Forense, n. 29, p. 12,1981.CHAUÍ, Marilena de Souza. Simulacroe poder: uma análise da mídia. SãoPaulo: Fundação Perseu Abramo,2006.DAMATTA, Roberto. Carnavais,malandros e heróis. São Paulo: Rocco,1979.KARAM, Maria Lúcia. Recuperar odesejo da liberdade e conter o poderpunitivo: escritos sobre a liberdade.Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2009.MONTEIRO, Valdênia Brito. Acriminalização dos defensores dedireitos humanos. Algo Mais, 23 abr.2009. Disponível <strong>em</strong>:. Acesso <strong>em</strong>: 23 set. 2010.SANTOS, Boaventura de Souza. Embusca da cidadania global. S<strong>em</strong>Fronteiras, 1999. Ent<strong>revista</strong>.Disponível<strong>em</strong>:Acesso <strong>em</strong>: 20 set. 2010.VENTURA, Zuenir. Cidade partida.São Paulo: Companhia das Letras,1994.WACQUANT, Loïc: A criminalizaçãoda pobreza. Tradução de SuelyGomes Costa. Mais Humana, dez.1999. Ent<strong>revista</strong>. Disponível <strong>em</strong>:. Acesso <strong>em</strong>: 23 ago.2003.ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Aesquerda t<strong>em</strong> medo, não t<strong>em</strong> políticade segurança pública. RevistaBrasileira de Segurança Pública, SãoPaulo, ano 1, edição 1, p. 130-139,2007.______. Função do direito penal élimitar o poder punitivo. Conjur, 25 jul.2009. Ent<strong>revista</strong>. Disponível <strong>em</strong>:.Acesso <strong>em</strong>: 22 set. 2010.______; PIERANGELI, José Henrique.Em busca das penas perdidas: a perdade legitimidade do sist<strong>em</strong>a penal. 2.ed. Rio de Janeiro: Revan, 1996.______. Manual de direito penalbrasileiro: parte geral. 6. ed. SãoPaulo: Revista dos Tribunais, 2006.


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128Lutas pela terra-segurança e estadono Brasil Cecília MacDowell Santos IntroduçãoO grande obstáculo é que a PolíciaFederal diz que só t<strong>em</strong> condições de darproteção ao Xucuru se for instalando umabase, um escritório, uma delegacia ou oque quer que seja dentro da comunidade.A comunidade diz que dessa forma vaisentir-se vigiada. A Polícia Federal é vistapelos Xucurus como um aliado dos Artigo publicado no livro “Direitos Humanos:debates cont<strong>em</strong>porâneos”, organizado porJayme Benvenuto (2009) e a ser publicado<strong>em</strong> “Pós-Colonialismos: cidadania global”,organizado por Boaventura de SousaSantos, António Sousa Ribeiro, Maria PaulaMenezes e Margarida Calafate Ribeiro. Asideias iniciais e os dados <strong>aqui</strong> incluídosforam apresentados na conferência “Estado,Direito e Pluralismo Jurídico – perspectivas apartir do Sul Global”, realizada no Centro deEstudos Sociais, <strong>em</strong> 10 de maio de 2007.Sou grata pelos comentários dosparticipantes nessa conferência. Uma versãopreliminar deste texto foi apresentada nasessão plenária “Law, Counter-Heg<strong>em</strong>onicGlobalization and Post-colonial Diversity:Latin America and Africa”, do EncontroInternacional Conjunto da Law and SocietyAssociation (LSA) e do Research Committeeon Sociology of Law (ISA), <strong>em</strong> Berlin, de 25 a28 de julho de 2007. A pesquisa <strong>em</strong> que sebaseia este texto contou com o apoio doFaculty Development Fund da Universidadede São Francisco (Califórnia, EUA). Recebeutambém o apoio da Fundação para a Ciênciae Tecnologia (FCT) de Portugal, mediante ocontrato de Laboratório Associado com oCentro de Estudos Sociais da Universidadede Coimbra. Agradeço a todas as pessoasque me concederam ent<strong>revista</strong>s eforneceram dados e comentários para apreparação deste texto. Professora de Sociologia da Universidade deSão Francisco (Califórnia, EUA) epesquisadora associada do Centro deEstudos Sociais da Universidade deCoimbra. E-mail: santos@usfca.edu.latifundiários, do prefeito. A proteçãoproposta pelos Xucurus era que a PolíciaFederal fizesse a guarda externa da área,e toda vez que os índios, principalmente ocacique, precisass<strong>em</strong> sair seriamescoltados pela Polícia Federal. A PolíciaFederal disse que não aceitaria, porque aárea é grande e se torna vulnerável, ealguém poderia entrar, e qu<strong>em</strong> seriaresponsável por alguma violência acabariasendo a Polícia Federal. Ficou realmentenesse impasse. Aí, existe um jogo durocom o governo. Eu me l<strong>em</strong>bro de umaaudiência <strong>em</strong> Washington [na ComissãoInteramericana de Direitos Humanos], <strong>em</strong>que nós levamos o índio Xucuru, levamosElma também. Aliás, foi para discutir osdois casos. [...]No caso de Elma, tinha proteção daPolícia Militar, proteção determinada noplano local, mas ela estava s<strong>em</strong>prevulnerável, porque foram policiais militaresque mataram o filho dela. Então nósconseguimos, por meio da CIDH, umamedida cautelar, determinando ourecomendando a proteção pela PolíciaFederal. Foi feita de forma muito diligente,por três anos, policiais federais 24 horaspor dia com ela, na casa dela, aonde elaprecisasse ir. [...] É mais b<strong>em</strong>-sucedido,b<strong>em</strong> mais significativo o resultado do casoElma. Ela conseguiu a condenação de 3dos 4 acusados e hoje ela não está maisno estado de Pernambuco. N<strong>em</strong> eu seionde ela está, porque não pod<strong>em</strong>ossaber. Nós conseguimos viabilizar umasituação de proteção específica paradefensores de direitos humanos naSecretaria Especial de Direitos Humanos,para que ela fosse levada de Caruarupara outro lugar do Brasil. 1Esses dois pedidos de medidacautelar foram encaminhados namesma época, no fim de 2002, pelo1Coordenador colegiado do Gabinete deAssistência Jurídica às OrganizaçõesPopulares (<strong>Gajop</strong>), advogado JaymeBenvenuto, <strong>em</strong> ent<strong>revista</strong> concedida àautora, Recife, 4 de agosto de 2006.


129<strong>Gajop</strong>, entre outros peticionários, àComissão Interamericana de DireitosHumanos (CIDH). Nos dois casos, oEstado ocupa um papel central econtraditório no reconhecimento dosdireitos humanos, figurando quer comogarantidor, quer como violador dessesdireitos; os dois casos refer<strong>em</strong>-se àgarantia do direito humano àsegurança; os conflitos que lhes deramorig<strong>em</strong> ocorr<strong>em</strong> no interior do estadode Pernambuco, situado no Nordestedo Brasil; a CIDH fornece respostapositiva aos dois pedidos,recomendando que a Polícia Federaldê a proteção necessária aos líderesindígenas da Comunidade Xucuru doOrorubá, b<strong>em</strong> como à advogada ElmaNovais e sua família; o governobrasileiro concorda com arecomendação.Todavia, a natureza dessesconflitos é tão distinta que pareceóbvia a necessidade de se criar<strong>em</strong>diferentes modalidades de proteção àluz das condições sociais,econômicas, culturais e políticas dasvítimas, como reivindicado pelosXucurus. Seria absurdo, do ponto devista da segurança da comunidadeindígena, levar o cacique Marcos deAraújo e sua mãe, Zenilda de Araújo,para um lugar desconhecido no Brasil,como ocorreu com Elma Novais e osfilhos. A existência da comunidadeindígena e a segurança individual dosseus m<strong>em</strong>bros não pod<strong>em</strong> serdissociadas do seu vínculo a terra, queé objeto de conflito entre fazendeiros e“índios” – ou “indígenas”. 2O direitoindividual à segurança dos índios étambém coletivo, atinge toda acomunidade, sendo impossível separálodo direito coletivo a terra, daí aexpressão “terra-segurança” serutilizada no título deste texto.Predomina uma abordag<strong>em</strong> liberal,individualista e de divisibilidade dessesdireitos na prática judicial e política <strong>em</strong>escala local, nacional e internacional.O próprio <strong>Gajop</strong>, que defende a teseda indivisibilidade dos direitoshumanos, não t<strong>em</strong> obtido êxito <strong>em</strong>articular essa tese no caso Xucuru. 3Embora uma análisecomparativa destes e de outros casoslevados à CIDH mereça atenção maisaprofundada, este artigo t<strong>em</strong> um2 O termo “indígena” t<strong>em</strong> sido utilizado peloscientistas sociais na América Latina parasubstituir a designação “índio”, de orig<strong>em</strong>colonial (PEÑA, 2005). Neste texto, uso osdois termos, uma vez que os Xucurus doOrorubá se autodesignam por “índios” etambém qualificam de “indígenas” a sua luta,seu povo e seus direitos. Tais designaçõesaparec<strong>em</strong> nas ent<strong>revista</strong>s que realizei comtrês índios e na história contada pelosprofessores, professoras e líderes do povoXucuru do Ororubá (cf. ALMEIDA, 1997).3 Sobre objetivos e missão institucional do<strong>Gajop</strong>,cf..


130escopo mais limitado e propõe-se arefletir, a partir do caso Xucuru, sobreas lutas indígenas e o papeldes<strong>em</strong>penhado pelo Estado noreconhecimento dos direitos indígenasno Brasil cont<strong>em</strong>porâneo. Além deilustrar os limites conceituais e osobstáculos judiciais e políticos para agarantia dos direitos humanos dosindígenas, o caso Xucuru oferece umaoportunidade para se refletir sobre asrelações sociais e jurídico-políticas queestão na base da complexa – e nãoraro contraditória – constituição edefesa dos direitos indígenas noBrasil.Com base <strong>em</strong> dados coletadossobre o caso Xucuru 4 e na legislação epolítica indigenista do Estadobrasileiro, argumentamos que há umasituação de dualismo na culturajurídico-política indigenista: por um4 Os dados foram coletados <strong>em</strong> agosto de2006 e <strong>em</strong> fevereiro e março de 2008, meses<strong>em</strong> que realizamos uma visita a Brasília,duas visitas ao Recife e uma visita a Caruarue Pesqueira. Em Brasília, ent<strong>revista</strong>mos ovice-presidente do Conselho IndigenistaMissionário (CIMI) e um dos advogados daentidade, duas advogadas da SecretariaEspecial de Direitos Humanos. No Recife,ent<strong>revista</strong>mos três advogados do <strong>Gajop</strong>; ummissionário e três advogados do Cimi; e orepresentante do Movimento Nacional deDireitos Humanos do Nordeste. Em Caruaru,ent<strong>revista</strong>mos um líder indígena por ocasiãode uma audiência, a que assistimos na varacriminal da Justiça Federal nessa cidade. EmPesqueira, visitamos duas aldeias dosXucurus do Ororubá, onde ent<strong>revista</strong>mos oCacique Marcos de Araújo e sua mãe,Zenilda de Araújo.lado, verifica-se uma concepçãomonocultural e individualista dedireitos civis dos indígenas,consagrada <strong>em</strong> algumas leis e práticasde agentes do Estado; por outro lado,certas normas e setores do Estadotraduz<strong>em</strong> uma abordag<strong>em</strong> multiculturale coletivista de direitos humanos dosindígenas ou um novo “indigenismomulticultural”, 5que surge no contextoda expansão do movimento indígenados processos de red<strong>em</strong>ocratização,nos anos 1980, e da crescenteabsorção, pelo Estado, ainda queseletiva e setorialmente, das normasinternacionais de direitos humanosdesde o início dos anos 1990.Ao refletir tal dualismo jurídicopolítico<strong>em</strong> diferentes setores deatuação do Estado brasileiro, estepode ser caracterizado como umaespécie de “Estado heterogêneo”,conforme a definição formulada porSantos (2003; 2006a). Para o autor, astransformações políticas nacionais eos processos de globalização têm5Cf. Peña (2005) para uma análise da<strong>em</strong>ergência do “indigenismo” na AméricaLatina no século XIX – identificado comouma política heg<strong>em</strong>ônica estatal comobjetivos liberais e positivistas de“assimilação” dos índios e controle de suasterras –, b<strong>em</strong> como do surgimento de um“indigenismo multicultural” desde os anos1980, no contexto do neoliberalismo e daexpansão dos movimentos indígenas naregião.


131contribuído para a crescenteheterogeneidade da atuação estatal,ao lado do crescente “descentramento”do Estado na vida social e econômica,um fenômeno observável tanto <strong>em</strong>países centrais como <strong>em</strong> paísess<strong>em</strong>iperiféricos e periféricos dosist<strong>em</strong>a capitalista mundial. Nessecontexto:[...] diferentes sectores da actividadeestatal assum<strong>em</strong> lógicas dedesenvolvimento e ritmos diferentes,sendo cada vez mais frequentes asdesconexões e incongruências naactuação estatal, ao ponto de, porvezes, deixar de ser possívelidentificar um padrão coerente paraessa actuação. (SANTOS, 2003, p.56). 6Todavia, a situação deheterogeneidade da atuação doEstado e de dualismo da legislaçãoindigenista do Brasil não significa que,na prática jurídico-política, ocorranecessariamente um equilíbrio entreas abordagens monocultural <strong>em</strong>ulticultural dos direitos indígenas.Cabe, assim, indagar <strong>em</strong> que medida,no caso Xucuru, prevalece aperspectiva monocultural do direito6Santos (2003, p. 56 et seq.) indica osurgimento de novas formas de pluralismojurídico subnacional e supranacional, <strong>em</strong> quediferentes ordens jurídicas operam com uma‘[...] ‘autonomia relativa’ e, <strong>em</strong>bora muitasvezes contraditórias, cada vez mais seinterpenetram e produz<strong>em</strong> ‘hibridaçõesjurídicas’.”indigenista; ou se predomina o novo“indigenismo multicultural”.A seguir, apresentamos, <strong>em</strong>uma perspectiva histórica, algunsex<strong>em</strong>plos da legislação e da políticaindigenista de caráter monocultural,cuja orig<strong>em</strong> r<strong>em</strong>onta ao períodocolonial, mas ainda se faz presente nodireito estatal brasileiro. Em seguida,discutimos a situação de dualismo dodireito indigenista <strong>em</strong>ergente desde adécada de 1980, examinando, nessenovo contexto, a trajetória das lutasdos Xucurus do Ororubá pelos direitosa terra-segurança e as estratégiasestatais de regulação e controledessas lutas.A Monocultura do DireitoIndigenista até 1988 – Tutela eAssimilaçãoAté a red<strong>em</strong>ocratização políticanos anos 1980 e 1990, a legislação e apolítica indigenista do Estado brasileiroconsagravam uma concepçãomonocultural e individualista dosdireitos indígenas, promovendo o queWarren (2001) denomina de“exorcismo indígena” (indian exorcism)– diferentes práticas de extermíniofísico e cultural dos indígenas, comomassacres militares, escravidão,missões de catequese e políticas


132assimilacionistas. No século XIX, oinstituto da tutela veio consagrar aperspectiva da assimilação dos índios,promovendo a perda da posse coletivadas terras indígenas. Refletindo umaherança colonial que se fez presenteno ideal republicano de modernizaçãoe no modelo de desenvolvimento daditadura militar, essa perspectiva,ainda presente no indigenismobrasileiro, assenta <strong>em</strong> um projeto de“civilização” identificado com umacultura europeia dominante no Brasil ecom a ideologia de <strong>em</strong>branquecimentoda população. Contra as práticas deextermínio, assimilação eexpropriação, os índios têm-seinsurgido desde o período colonial,como ilustra a história de resistência eluta dos Xucurus do Ororubá(ALMEIDA, 1997).Os Aldeamentos e as Raízes Coloniaisda TutelaNo período colonial, a liberdadedos índios foi uma questão primordial(PERRONE-MOISÉS, 1998). 7 O7 Além de ineficazes, as leis coloniais queproibiam a escravidão dos índiosestabeleciam exceções (MENDES JÚNIOR,1988). Cf. Perrone-Moisés (1998) para umaexplicação jurídica dessas contradições,baseadas, segundo a autora, <strong>em</strong> divergentesregimes aplicados aos índios “aldeados” econtrole dessa liberdade não seseparava do território, ambosregulados pela constituição dealdeamentos e pela tutela. Osaldeamentos, quer sob o governomissionário, quer sob o governo leigo,tinham um duplo sentido de“subjugação e confinamento territorrial”– a par da catequese e da exploraçãoda mão de obra, tratava-se também da“redução” das terras indígenas(CUNHA, 1998, p. 143). Inicialmente, atutela aplicava-se aos índios aldeados,cuja liberdade e bens ficavam sob ocontrole dos administradores dosaldeamentos. No século XVIII, criaramsedois tipos de tutela: uma, de caráterindividual, era da incumbência dosjuízes de órfãos e referia-se à proteçãoda justa r<strong>em</strong>uneração do trabalho dosíndios não aldeados recém-“amansados” ou “domesticados”; aoutra, de caráter coletivo, cabia aosouvidores, com o objetivo de velarpelos bens dos índios aldeados,nomeadamente suas terras (CUNHA,1998; MELATTI, 2007). 8Os colonizadores portugueseschegaram às terras dos Xucurus do“aliados”, por um lado, e índios “inimigos”,por outro.8 Para uma análise da orig<strong>em</strong> da figura jurídicada tutela, das suas ambiguidades ediferentes significados desde o períodocolonial, ver Mendes Júnior (1988), Cunha(1998) e Melatti (2007).


133Ororubá <strong>em</strong> 1654 – na Serra deOrubá, hoje denominada Ororubá, nointerior do estado de Pernambuco.Dizendo-se donos de sesmariasdessas terras, por concessão real,invadiram-na, passaram a criar gado eescravizaram índios (ALMEIDA, 1997,p. 17). Houve índios que se rebelarame juntaram-se a um movimento,conhecido como Confederação doCariri, que congregava diferentespovos indígenas do Nordeste e foimassacrado pelos colonizadores numaguerra que perdurou entre 1692 e1696 (ALMEIDA, 1997, p. 18). 9Após a Independência do Brasil,<strong>em</strong> 1822, a autonomia, a posse dasterras e a própria autoidentificaçãoindígena tornaram-se muito maisdifíceis. Como assinala Cunha (1998,p. 133), o século XIX, <strong>em</strong>bora marcadopor três regimes políticos (Colônia,Império e República Velha) e umaestrutura social heterogênea (áreas decolonização antiga <strong>em</strong> contraste comnovas frentes de expansão <strong>em</strong>odernização), caracterizou-se, <strong>em</strong>sua totalidade, pelo tratamento daquestão indígena não mais como umaquestão essencialmente de mão deobra, senão como uma questão de9 Sobre a história da conquista colonial e daresistência dos povos indígenas noNordeste, cf. Dantas et al. (1998).terra, <strong>em</strong> que houve o progressivoprocesso de assimilação eexpropriação dos índios.documentosNo início do Império, osgovernamentaisapresentavam a “expectativa de umgrande plano de civilização dos índios”(CUNHA, 1998, p. 138). 10Pouco apouco, os aldeamentos foramtransformados <strong>em</strong> municípios e osantigos aldeados, desprovidos de suasterras, foram amalgamados na nação“brazileira” (MENDES JÚNIOR, 1988,p. 47). Com a dispersão dos índios,eles foram reclassificados pelogoverno como “caboclos” e deixaramde ter direito ao uso comum das terrasdos aldeamentos. Essa reclassificaçãofoi o “último golpe” que marcou a“extinção oficial” dos índios noNordeste (ARRUTI, 2006, p. 51). 1110 O Regulamento das Missões (Decreto n.º246, de 24 de julho de 1845) – “únicodocumento indigenista geral do Império” –“prolongou o sist<strong>em</strong>a de aldeamento”, mas otratou explicitamente como uma “transiçãopara a assimilação completa dos índios”(CUNHA, 1998, p. 139). Apresentavam-se,na época, três correntes a respeito dacolonização dos indígenas: (1) extermíniodos índios que resistiss<strong>em</strong>; (2) conversãoaos cuidados das instituições religiosas; (3)assistência leiga (CUNHA, 1998; MELATTI,2007). O Regulamento das Missões adotou aterceira corrente (CUNHA, 1998).11 No século XVIII, havia 60 aldeamentos noNordeste, com 27 nações indígenas,declaradas oficialmente extintas até os anos1880 (ARRUTI, 2006, p. 51).


134A Tutela e a Assimilação sob oControle do SPIA República, iniciada <strong>em</strong> 1889,deu continuidade ao plano imperial deassimilação dos índios, ancorando-se<strong>em</strong> princípios positivistas eevolucionistas de progresso(MELATTI, 2007, p. 252 et seq.). Oprojeto de colonização da Repúblicaera de expansão nacional e deintegração dos índios na força detrabalho nacional. A construção destaNação baseava-se na eliminação detoda diferença. Aos militares, caberiarealizar esse projeto (LIMA, 1998).Para operacionalizá-lo, o governocriou, <strong>em</strong> 1910, o Serviço de Proteçãoaos Índios e Localização deTrabalhadores Nacionais (SPILTN),presidido pelo então tenente-coronelCândido Rondon. 12A criação desseórgão significou o estabelecimentoinédito no Brasil de uma políticaindigenista estatal, com um aparelhopróprio para executá-la. Ao longo desua existência, esse órgão intentouconverter os índios <strong>em</strong> “pequenosprodutores rurais”, tendo por base aideia de “transitoriedade do índio”(LIMA, 1998, p. 159).12 Para mais detalhes sobre a criação e ofuncionamento do SPI, cf. Lima (1998).A política indigenista daRepública reconhecia formalmente aosíndios os direitos de viver<strong>em</strong> segundosuas tradições e a posse coletiva dasterras que ocupass<strong>em</strong> (MELATTI,2007, 253). No entanto, a “proteção aoíndio” tratava-se de um controlejurídico do SPI sobre os “índios”, queadquiriam um status legal distinto. Oórgão também passava a ter maiorpossibilidade de controle sobre aposse das terras indígenas no âmbitoda jurisdição dos estados (LIMA,1998).A “proteção oficial” do SPI foiimportante por conter a violênciapraticada por grileiros contra os índiose permitir que redes de “caboclos”constituíss<strong>em</strong> um processo de“etnogênese” de grupos indígenas quereivindicavam terras <strong>em</strong> antigosaldeamentos (ARRUTI, 2006, p. 51). 13Na época da criação desse órgão, osXucurus do Ororubá solicitaram ainstalação de um posto do SPI <strong>em</strong>Pernambuco. Em 1944, um funcionáriodo SPI fez o primeiro relatório oficialsobre os Xucurus do Ororubá,13Como explica Arruti (2006, p. 51), aetnogênese, <strong>em</strong> oposição ao etnocídio, ouseja, ao “extermínio sist<strong>em</strong>ático de um estilode vida”, é a “construção de umaautoconsciência e de uma identidade coletivacontra uma ação de desrespeito (<strong>em</strong> geralproduzida pelo Estado nacional), com vistasao reconhecimento e à conquista deobjetivos coletivos”.


135informando que havia 2.191 índios naregião, que eles dançavam o “toré” efaziam seus rituais escondidos, sendoperseguidos e ameaçados pela políciada cidade de Pesqueira (ALMEIDA,1997, p. 22). 14A despeito do processo deetnogênese indígena facilitado peloSPI nos anos 1920-1940, a políticaindigenista era assimilacionista eassistencialista, expressa no regimeda tutela de todos os índios peloEstado com vistas à sua integração à“civilização”. Essa tutela reunia tanto oaspecto da capacidade civil dos índiosquanto à administração coletiva dosseus bens (LIMA, 1998).A ideia de uma capacidade civile tutela vinculada ao “grau decivilização dos índios” foi incorporadaao Código Civil de 1916, que definiu os“silvícolas” como “incapazes,relativamente a certos atos” (art. 147,I) ou “à maneira de os exercer” (art. 6,III). Em consequência dessaincapacidade civil, os índios ficaramsujeitos “ao regime tutelar,estabelecido <strong>em</strong> leis e regulamentosespeciais, o qual cessará à medidaque se for<strong>em</strong> adaptando à civilizaçãodo País” (art. 6, parágrafo único).14 Sobre o ritual do toré, sua criminalização eseu significado para a construção daidentidade coletiva indígena, cf. Neves(2005).Incumbida à União, a tutela eraexercida pelos juízes de órfãos até1928, quando passou para omonopólio legal do SPI. Nos anos1940, esgotaram-se as redes derelações que haviam dado sustentaçãoao processo de etnogênese indígena,que só veio a ser retomado no fim dadécada de 1970 (ARRUTI, 2006, p.52).A Tutela, Emancipação eDesindianização durante a DitaduraO SPI foi extinto <strong>em</strong> 1967 pelogoverno militar, sendo substituído pelaFundação Nacional do Índio (Funai). 15Desde sua criação, a Funai éencarregada, entre outras coisas, de“exercer, <strong>em</strong> nome da União, a tutelados índios e das comunidadesindígenas não integradas àcomunidade nacional” (art. 2, I, doDecreto n.º 4.646, de 25 de março de2003). 16 A nova Constituição Federalde 1988 foi omissa a respeito dacapacidade civil dos índios, e o novoCódigo Civil de 2002, atualmente <strong>em</strong>vigor, não definiu os índios como15 Cf. Lei n.º 5.371, de 5 de dez<strong>em</strong>bro de1967.16 De notar que esse decreto foi aprovado peloCongresso Nacional e sancionado pelo entãopresidente Luiz Inácio Lula da Silva no seuprimeiro mandato (2003-2006 e 2007).


136incapazes relativamente a certos atosou à maneira de os exercer, masdispôs que sua capacidade seráregulada por legislação especial (art.4.º, parágrafo único). Essa é regidapelo Estatuto do Índio – Lei n.º 6.001,de 19 de dez<strong>em</strong>bro de 1973,promulgada durante a ditadura militare ainda <strong>em</strong> vigor, que incorpora eregulamenta as disposições do CódigoCivil de 1916 concernentes à tutelados índios pelo Estado.Durante a ditadura, a Funaiesteve diretamente sob o controle dogoverno militar, que afastavaperiodicamente desse órgãoantropólogos ou outros profissionaisconsiderados simpatizantes dascausas indígenas. Em 1978, o governomilitar promoveu um projeto de<strong>em</strong>ancipação de índios que tinha porobjetivo principal a liberação das terrasdas comunidades <strong>em</strong>ancipadas paracompra por não índios e adesmobilização política dos indígenas(MELATTI, 2007). Esse projeto, contrao qual se insurgiram grupos indígenase seus aliados por todo o Brasil,“consistia na criação de uminstrumento jurídico para discriminarqu<strong>em</strong> era índio de qu<strong>em</strong> não era”, ouseja, para “desindianizar” os índios(CASTRO, 2006, p. 41).Ao comentar esse projeto,Melatti (2007, p. 272 et seq.)argumenta que a tutela enfeixaindevidamente três aspectosfundamentais dos direitos indígenas –a incapacidade civil, a posse coletivada terra e a identidade étnica. A meuver, a tutela e a correlata <strong>em</strong>ancipaçãosão probl<strong>em</strong>áticas não por vincular<strong>em</strong>a capacidade civil dos índios à posseda terra e à identidade étnica. Um dosprobl<strong>em</strong>as do Estatuto do Índio de1973 e do Código Civil de 1916 é suaperspectiva colonial de que osindígenas dev<strong>em</strong> ser tutelados ouprotegidos quando não estiver<strong>em</strong>“integrados à comunhão nacional”, ouseja, quando não fizer<strong>em</strong> parte da“civilização” – moderna, ocidental,branca (ou <strong>em</strong>branquecida) e cristã.Cabendo aos próprios indígenas suaautoidentificação, esta ocorre, comoassinala Castro (2006), por meio deum processo coletivo e relacional nãoapenas <strong>em</strong> confronto com identidadesnão indígenas, como também <strong>em</strong>confronto com os m<strong>em</strong>brosinternamente referenciados ediferenciados dos coletivos indígenas.O reconhecimento dessa identidadepelo Estado é complexo e resulta delutas sociais, políticas e jurídicas. 1717 Para uma discussão sobre a resistência aoreconhecimento da “indianidade” dos índios


137Direito Originário e Terras Indígenasno Estatuto do ÍndioNo fim do século XIX, debatiasese à posse das terras indígenasdeveria ser aplicado o regime jurídicodo indigenato ou o direito civil. Ojurista Mendes Júnior (1988, p. 55 etseq.) afirmava que o direito às terrasindígenas é um direito “originário”,decorrente de um título congênito, enão adquirido, fundado no indigenato.Ao contrário da ocupação, o indigenatoindepende de legitimação e registro. 18A Constituição de 1891 foiomissa a respeito dos direitosindígenas. Conferiu aos estados odomínio das terras devolutas e o poderde reconhecimento dos títulos dedomínio subordinados ao Direito Civil.A partir de então, os estadospassaram muitas vezes a declarar asterras indígenas como devolutas e,nas d<strong>em</strong>andas entre posseiros eindígenas, começaram a exigir destesa legitimação ou apresentação do<strong>em</strong> centros urbanos no Brasil, cf. Nascimento(s.d.). Para análise sobre a construção deidentidades indígenas na América Latina, cf.Jackson e Warren (2005) e Pallares (2003).18 Essa tese se ancora <strong>em</strong> princípios de direitonatural e na tradição jurídica portuguesaatinente ao Brasil, nomeadamente o Alvaráde 1.º de abril de 1680, renovado na Lei de 6de junho de 1755 (MENDES JÚNIOR, 1988,p. 55 et seq.).registro de suas posses (MENDESJÚNIOR, 1988). No processo ded<strong>em</strong>arcação das terras do aldeamentode Cimbres, por ex<strong>em</strong>plo, onde viviamos Xucurus do Ororubá, os fazendeirosregistraram <strong>em</strong> seu favor a posse dasterras indígenas (ALMEIDA, 1997, p.20).A Constituição de 1934estabeleceu que as terras indígenaseram de propriedade da União e osíndios tinham direito a terras queefetivamente ocupass<strong>em</strong>, nãoreconhecendo, portanto, o direito“originário” às terras. Porém, os índiosdo Nordeste já não ocupavamefetivamente suas terras.Até a promulgação daConstituição Federal de 1988, alegislação não reconheceu o direitooriginário da posse das terrasindígenas. O Estatuto do Índio, de1973, define, no artigo 17, três tipos deterra indígena: (1) “terras ocupadas ouhabitadas pelos silvícolas”; (2) “áreasreservadas” nos termos da lei; e (3)“áreas de domínio das comunidadesindígenas ou de silvícolas”,consideradas estas “havidas porqualquer das formas de <strong>aqui</strong>sição dodomínio, nos termos da legislaçãocivil” (arts. 17 e 32). 1919 Nos dois primeiros casos, as terras sãobens inalienáveis da União, resguardando-se


138Cabe à Funai fazer cumpriresse estatuto e promover ad<strong>em</strong>arcação e o registro das terrasidentificadas e reconhecidas comoindígenas. Contudo, a Funai nunca foidotada de recursos suficientes paraexercer essa função com eficiência e,durante a ditadura, sob o controle dogoverno militar, facilitou a intervençãogovernamental nas terras indígenas<strong>em</strong> favor dos interesses econômicosde elites locais e internacionais, aex<strong>em</strong>plo do que ocorreu na área dosYanomami no norte da Amazônia(RABBEN, 2004).Como se verá a seguir, a novaConstituição de 1988 reconheceu odireito originário da posse das terrasindígenas, mas o Estatuto do Índio de1973 ainda está <strong>em</strong> vigor, e oprocesso de d<strong>em</strong>arcação e registrodas terras indígenas t<strong>em</strong> sido marcadopor acirrados conflitos que, não raro,põ<strong>em</strong> <strong>em</strong> risco a integridade física dosindígenas.Da monocultura ao dualismocultural indigenista? Tutela versusreconhecimento dos direitoscoletivos e humanos dos indígenasa posse permanente delas aos índios. Noterceiro caso, as terras são de propriedadedos índios (OLIVEIRA, 1998a).Nas décadas de 1980 e 1990, onovo contexto de expansão dosmovimentos indígenas e dered<strong>em</strong>ocratização política abriucaminho para mudanças na legislaçãoe <strong>em</strong> políticas indigenistas de muitospaíses latino-americanos – quepassaram da perspectiva deassimilação ao reconhecimento, pelomenos retórico, da diferença étnica eda diversidade cultural (SIEDER, 2002;STAVENHAGEN, 2002; JACKSON;WARREN, 2005; PEÑA, 2005). Emresposta às reivindicações indígenaspor direitos coletivos a terra, àautodeterminação, à participaçãopolítica, à identidade étnica e àdiversidade cultural, os processos dereforma constitucional reconheceram,<strong>em</strong> princípio, “a natureza multiculturale multiétnica dessas sociedades”(SIEDER, 2002, p. 3).Contudo, a literatura sobr<strong>em</strong>ovimentos indígenas na AméricaLatina questiona até que ponto o novo“indigenismo multicultural” representaum novo tipo de cidadania e pode teralgum potencial transformador <strong>em</strong> faceda onda neoliberal que domina aspolíticas econômicas e impede aimpl<strong>em</strong>entação de políticas sociais eculturais (BRYSK, 2002; LAURIE;ANDOLINA; RADCLIFFE, 2002;JACKSON; WARREN, 2005; PEÑA,


1392005; RODRÍGUEZ-GARAVITO;ARENAS, 2005; FIGUEROA, 2006).Como assinalam Jackson e Warren(2005), além das ambiguidades nasnormas constitucionais e nos acordosde paz ou de transição políticamediados pelo Estado, persist<strong>em</strong> asestruturas de poder que sustentavamos regimes autoritários e adiscriminação racial e étnica. Nessecontexto, o reconhecimento do direitocoletivo a terra continua a ser oprincipal objetivo das organizaçõesindígenas (JACKSON; WARREN,2005, p. 566).O Brasil é um bom ex<strong>em</strong>plodessa luta e das contradições narelação entre o Estado e os gruposindígenas. Todavia, além dosprobl<strong>em</strong>as de impl<strong>em</strong>entação dasnovas normas constitucionais queabsorveram um novo “indigenismomulticultural”, a legislação de carátermonocultural e individualista não foi detodo abolida, daí uma situação dedualismo cultural do direito indigenistabrasileiro. Torna-se, assim, relevanteindagar que tipo de cultura jurídicaindigenista t<strong>em</strong> predominado nasdisputas que envolv<strong>em</strong> os direitosindígenas.Expansão das Lutas dos “PovosIndígenas Resistentes”Nas décadas de 1970 e 1980,expandiram-se no Brasil as lutasindígenas pela terra e pela reafirmaçãode uma identidade étnica (WARREN,2001; RABBEN, 2004; ARRUTI, 2006).Nesse período, teve início um segundomomento de etnogênese indígena, nãomais ligado, como nos anos 1920-1940, às terras dos antigosaldeamentos, senão à constituição deum “campo indigenista no Brasil”,marcado por lutas indígenas com oapoio de novos setores da IgrejaCatólica, que passavam a promover aformação política de líderes indígenas(ARRUTI, 2006, p. 52). No início dosanos 1970, foi criado o ConselhoIndigenista Missionário (CIMI), que fazparte da Confederação Nacional dosBispos do Brasil. Com enfoque narecuperação da terra indígena naperspectiva da Teologia da Libertaçãoe dos direitos humanos, o Cimi t<strong>em</strong>desde então sido um aliadofundamental nas lutas indígenas nopaís. 2020No final dos anos 1970, foram criadasentidades indigenistas não governamentais enão confessionais que também têm dadoapoio às lutas indígenas, nomeadamente aComissão Pró-Índio (CPI) e a Associação deApoio ao Índio (ARRUTI, 2006).


140Em consequência da expansãodas lutas indígenas e do processo dered<strong>em</strong>ocratização política nos anos1980, a população autoidentificadacomo “indígena” cresceusignificativamente – um fenômeno queo movimento indígena considera serresultado das lutas dos “povosindígenas resistentes”, <strong>em</strong> oposição àtendência de ser<strong>em</strong> designados por“ressurgidos”,“ressurgentes”,“<strong>em</strong>ergentes” ou “r<strong>em</strong>anescentes”. 21Em 1995, a Funai revelou a existênciade 325.000 indivíduosautoidentificados como “indígenas”, ouseja, 0,2% da população do Brasil(WARREN, 2001). Em 2006, aPesquisa Nacional por Amostra deDomicílios indicou que a populaçãobrasileira era de 187.228.000habitantes, dos quais 0,4% (748.912)se autodesignavam “indígenas” (IBGE,2006). 22 No Nordeste, região onde apopulação indígena fora considerada21 Carta dos Povos Indígenas Resistentes,Olinda, 20 de maio de 2003. Ecoando omovimento indígena, Arruti (2006) argumentaque essas designações convert<strong>em</strong>processos sociais e históricos de construçãode grupos sociais <strong>em</strong> categorias deidentificação estáticas e anistóricas.22 O censo realizado <strong>em</strong> 1990 pelo InstitutoBrasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)incluiu pela primeira vez no país a categoria“indígena” na variável “cor” e contou 220.000pessoas autoidentificadas como “indígenas”.Em 2000, o censo nacional realizado peloIBGE computou que 700.000 indivíduos seidentificaram como “indígenas” (WARREN,2001).extinta, há estimativa de cerca de80.000 indivíduos que seautoidentificam como “indígenas”(RABBEN, 2004), sendo o Ceará oestado com o maior número de gruposindígenas (ARRUTI, 2006; DANTAS;SAMPAIO; CARVALHO, 1998).Com uma população deaproximadamente 8.500 habitantes, opovo Xucuru do Ororubá viveatualmente <strong>em</strong> 23 aldeias ou núcleoshabitacionais, numa área de 27.555hectares de terras d<strong>em</strong>arcadas noantigo aldeamento de Cimbres, situadono município de Pesqueira, agreste doestado de Pernambuco, a 216 km dacidade do Recife. Como os d<strong>em</strong>aispovos indígenas do Nordeste, <strong>em</strong>meados dos anos 1970 suas lutas peloreconhecimento do território e peladiversidade cultural começaram afortalecer-se. Nos anos 1980, osXucurus do Ororubá assumiram umpapel de destaque nas mobilizaçõesindígenas no Nordeste e contribuírampara levar suas reivindicações aogoverno federal <strong>em</strong> Brasília,participando, desde então, doprocesso de elaboração de leis epolíticas indigenistas (ALMEIDA, 1997;RABBEN, 2004). Desde os anos 1970,os Xucurus do Ororubá têm contadocom o apoio do CIMI nas suas lutasterritoriais, além de outras


141organizações que se foram aliando aessa causa ao longo do t<strong>em</strong>po, comoo Centro de Cultura Luiz Freire e o<strong>Gajop</strong>.Os Direitos Coletivos Indígenas naConstituição de 1988Durante os trabalhos daAss<strong>em</strong>bleia Constituinte que elaboroua nova Constituição Federal de 1988,os Xucurus do Ororubá participaramativamente das mobilizações dasorganizações indígenas, as quaislograram incluir muitas das suasreivindicações no novo textoconstitucional. Como rel<strong>em</strong>brou JoséRoberto Saraiva dos Santos,missionário do Cimi <strong>em</strong> Pernambuco:Chicão [cacique dos Xucurus entre1986 e 1998] gostava de dizer que ocapítulo da Constituição e os artigos231 e 232 [sobre os índios] são frutodo suor, das lágrimas e do sangue dospovos indígenas. Ele decorou, ficoumuito t<strong>em</strong>po lá discutindo isso, naelaboração, e ele gostava de repetir,às vezes, os artigos, os parágrafos eos incisos. (Informação verbal). 23A Constituição de 1988reconheceu “aos índios suaorganização social, costumes, línguas,crenças e tradições, e os direitosoriginários sobre as terras que23Informação fornecida por José RobertoSaraiva dos Santos <strong>em</strong> ent<strong>revista</strong>, Recife, 4de agosto de 2006.tradicionalmente ocupam, competindoà União d<strong>em</strong>arcá-las, proteger e fazerrespeitar todos os seus bens” (art. 231.Grifos nossos). As terras continuarama ser de propriedade da União,<strong>em</strong>bora se destinando à possepermanente dos índios (§ 2.º art. 231Constituição de 1988). Nainterpretação de constitucionalistas(TOURINHO NETO, 1993; SILVA,1998) e antropólogos (CUNHA, 1988;OLIVEIRA, 1998a; 1998b), o direitooriginário foi assim reconhecido porlei. 24 Mais do que isso, foramreconhecidos os direitos coletivos <strong>em</strong>ulticulturais à posse das terrasindígenas e à sua organizaçãosociocultural (OLIVEIRA, 1998a).Apesar do reconhecimentoconstitucional de um novo indigenismomulticultural, surgiu uma situação dedualismo da legislação indigenista,uma vez que o Estatuto do Índio, de1973, permaneceu <strong>em</strong> vigor. Desde1991, tramita no Congresso o Projetode Lei n.º 2.057/1991 para instituir umnovo texto para o Estatuto do Índio,24 O advogado do Cimi que acompanha aslutas dos Xucurus do Ororubá, SandroHenrique Calheiros Lobo, também defendeuo direito originário das terras indígenas naent<strong>revista</strong> que nos concedeu no Recife <strong>em</strong>28 de fevereiro de 2008. No mesmo sentido,já se haviam manifestado o vice-presidentedo CimiI <strong>em</strong> Brasília, Saulo Feitosa, e outroadvogado da entidade, Cláudio Luis Beira,na ent<strong>revista</strong> conjunta concedida <strong>em</strong> Brasília<strong>em</strong> 22 de agosto de 2006.


142mais compatível com a Constituição de1988. Entretanto, a tramitação desseprojeto encontra-se paralisada desde1994, quando foi aprovado umsubstitutivo proposto pelo PartidoSocial D<strong>em</strong>ocrático Brasileiro (PSDB),fundado pelo ex-presidente FernandoHenrique Cardoso. Há também umatentativa, por parte de mineradoras erepresentantes do agronegócio, deindividualizar a disputa legislativa efragmentar os projetos de leiindigenistas. Como assinala o vicepresidentedo Cimi, Saulo Feitosa:As <strong>em</strong>presas mineradoras e o setor doagronegócio pretend<strong>em</strong> desm<strong>em</strong>brar oEstatuto, apresentar um projeto de leireferente à mineração, um àd<strong>em</strong>arcação, etc., tentar aprovar deforma isolada, porque aí os índios nãovão ter poder nenhum de mobilização,porque isso fica sendo negociado deforma isolada e aí funcionam oslobbies, os grandes lobbies. A nossabriga é para evitar que um dessesprojetos seja aprovado. Acho quetramitam 132 [no Congresso].(Informação verbal). 25Morosidade e Violência nos Processosde D<strong>em</strong>arcaçãoA Constituição Federal de 1988estabeleceu que as terras indígenasdeveriam ser d<strong>em</strong>arcadas pela União“no prazo de cinco anos a partir dapromulgação da Constituição” (art. 67,25 Informação fornecida por Saulo Feitosa <strong>em</strong>ent<strong>revista</strong> concedida à autora, Brasília, 22 deagosto de 2006.Ato das Disposições ConstitucionaisTransitórias). Esse prazo, no entanto,não foi cumprido e muitos gruposindígenas continuam lutando pelad<strong>em</strong>arcação de suas terras. 26O procedimento administrativode d<strong>em</strong>arcação das terras indígenas écomplexo e moroso, incluindo cincofases: (1) identificação edelimitação, feitas, sob a iniciativa edireção da Funai, por um GrupoTécnico de antropólogos e outrosprofissionais designados por esseórgão; (2) declaração, medianteportaria do Ministério da Justiça, doslimites da terra indígena edeterminação de sua d<strong>em</strong>arcação; (3)d<strong>em</strong>arcação física feita pela Funai;(4) homologação mediante decreto daPresidência da República; (5) registroprovidenciado pela Funai <strong>em</strong> cartórioimobiliário da comarca onde seencontra a terra, b<strong>em</strong> como naSecretaria do Patrimônio da União doMinistério da Fazenda. 27Embora a Constituição de 1988determine que as terras indígenassejamd<strong>em</strong>arcadasindependent<strong>em</strong>ente da posse efetiva26 Até 2000, somente 260 das 575 áreasidentificadas como indígenas tinham sidod<strong>em</strong>arcadas (RABBEN, 2004, p. 97).27 Cf. Oliveira e Almeida (1998) para umaanálise antropológica e crítica de cada fasedesse procedimento <strong>em</strong> meados de 1980.


143pelos índios, as situações variam nasdiferentes regiões do país. Comoexplica Saulo Feitosa:Há situações <strong>em</strong> que os índios estãona posse e há a invasão e expulsão,mais na região norte do Brasil. Nocaso da região Nordeste, mesmo noSul e no Sudeste, a maioria das terrasindígenas foi invadida há muitos anos.Assim era a situação dos Xucurus. Nocaso do Nordeste, <strong>em</strong> geral, os índiosé que efetivam a posse. O governo sócomeça a atuar na d<strong>em</strong>arcação depoisque os índios se expõ<strong>em</strong> no confrontodireto com os invasores e retomam asterras. 28O processo de identificação ed<strong>em</strong>arcação das terras dos Xucurusdo Ororubá teve início <strong>em</strong> 1989 e foiconcluso <strong>em</strong> 2005, após dezesseisanos: <strong>em</strong> 1992, foi publicada a PortariaMinisterial, declarando os limites doterritório indígena; <strong>em</strong> 1995, foirealizada a d<strong>em</strong>arcação física; <strong>em</strong>2001, foi publicado o decreto dehomologação; <strong>em</strong> 2005, foi feito oregistro. Além da morosidade, cadafase desse processo foi acompanhadade violências. Nesse período, foramassassinados cinco índios, incluindo ocacique Francisco de Assis Araújo,conhecido por Chicão, e um advogadoda Funai, ativo defensor dos direitosindígenas.28 Informação fornecida por Saulo Feitosa <strong>em</strong>ent<strong>revista</strong> concedida à autora, Brasília, 22 deagosto de 2006.Em 1988, o governo federalaprovou a implantação de um projetoagropecuário <strong>em</strong> favor do fazendeiroOtávio Carneiro Leão na região ondehoje viv<strong>em</strong> os Xucurus do Ororubá.Liderados pelo cacique Chicão e pelopajé Zequinha, os índios mobilizaramsee solicitaram ao Ministério PúblicoFederal que instaurasse um inquéritocivil público para apurar a omissão daFunai relativamente à d<strong>em</strong>arcação dasterras indígenas. Esse inquéritopressionou a Funai a criar um Grupode Trabalho <strong>em</strong> 1989, o qual deu inícioà identificação e d<strong>em</strong>arcação dasterras indígenas, onde havia 282imóveis ocupados por não índios,muitos dos quais eram fazendeiros efamiliares de políticos (ALMEIDA,1997, p. 25). Esses imóveiscorrespondiam a 56,2% do territórioindígena e os ocupantes não índiosteriam de ser r<strong>em</strong>ovidos e indenizadospelas benfeitorias. 29Em 1992, foipublicada a Portaria n.º 259 doMinistro da Justiça reconhecendo aárea indígena, 30o que gerou muitastensões. Os ocupantes não haviamsido retirados do local. Os índiosXucurus do Ororubá, liderados pelo29 Informação fornecida por Saulo Feitosa <strong>em</strong>ent<strong>revista</strong> concedida à autora, Brasília, 22 deagosto de 2006.30 Na época, o procedimento administrativo dad<strong>em</strong>arcação era regido pelo Decreto n.º22/1991.


144cacique Chicão, deram início a açõesde “retomada”. 31Ocorreu, então, aprimeira morte relacionada com oconflito fundiário: José EveraldoRodrigues, filho do pajé Zequinha, foiassassinado. 32 Em 1995, concluiu-se ad<strong>em</strong>arcação física da área. Nesse ano,foi assassinado o advogado da Funai,Geraldo Rolim. 33Em 1996, o então PresidenteFernando Henrique Cardoso (1995-1999 e 1999-2002) estabeleceu oDecreto n.º 1.775/1996, ainda <strong>em</strong>vigor, que mudou o procedimentoadministrativo de d<strong>em</strong>arcação deterras indígenas. O decreto introduziu<strong>em</strong> diversas fases desse procedimentoo “princípio do contraditório”, que jáestava assegurado <strong>em</strong> juízo. Essamudança surtiu uma série deconsequências protelatórias nosprocessos d<strong>em</strong>arcatórios, promovendoo aumento de violências contraindígenas <strong>em</strong> decorrência de conflitos31 Com base na tese do direito originário àposse das terras indígenas, os índiosdesignam suas ações por “retomadas”,fazendo uma distinção entre estas e as“ocupações” realizadas pelo Movimento dosS<strong>em</strong>-Terra (MST), o qual legitima suas açõescom base no dispositivo constitucional queestabelece a função social da propriedade.32 O inquérito policial para a apuração dessecrime não foi concluso, e o assassino nuncafoi levado a júri.33 O assassino foi absolvido pelo júri, combase no argumento da legítima defesa.territoriais. 34 Em alguns casos, houveum retrocesso nos processos que seencontravam <strong>em</strong> fase de declaração;noutros, o decreto foi usado para aparalisação judicial de d<strong>em</strong>arcações<strong>em</strong> curso; 35 foi usado, também, comoredutor de terras indígenas (FEITOSA,2006, p. 13). 36“A d<strong>em</strong>arcação das terras dosXucurus, na época, teve 272contestações, quer dizer, você t<strong>em</strong> aFunai trabalhando sob a pressão de272 invasores”, explicou SauloFeitosa. 37 Dentre os que contestaram,incluíam-se a Prefeitura de Pesqueira,a Câmara Municipal e fazendeiros34 Entre 1995 e 2005, o Cimi (2006, p. 13)registra que foram assassinados 287indígenas. No período de oito anos dogoverno Fernando Henrique, foramassassinados 165 indígenas, enquanto nosdois primeiros anos do governo Lulaocorreram 122 assassinatos. Até 2005, amédia de assassinatos por ano no governoLula foi o dobro da média no governoFernando Henrique.35 Cf. Lauris (2006) para uma análise dosefeitos protelatórios dos mandados desegurança julgados <strong>em</strong> 2006 pelo Supr<strong>em</strong>oTribunal Federal, impetrados por particularescontra atos do presidente da República e doMinistério da Justiça que determinaram ad<strong>em</strong>arcação das terras indígenas.36 O Cimi indica que a média anual do númerode Portarias Declaratórias publicadas peloEstado brasileiro, reconhecendo uma porçãode terra como terra indígena, foi maior nosgovernos de Fernando Collor de Melo (1990-1992) e de Itamar Franco (1992-1995),equivalendo a 13 por ano, do que no governoFernando Henrique, contando-se 11 por ano.Até 2005, contaram-se 6 por ano nos doisprimeiros anos do governo Lula (CIMI, 2006,p. 14).37 Informação fornecida por Saulo Feitosa <strong>em</strong>ent<strong>revista</strong> concedida à autora, Brasília, 22 deagosto de 2006.


145locais. O Ministro da Justiça julgouimprocedente todas as contestações(Despacho n.º 32, de 10 de julho de1996). Os fazendeiros impetraram umaAção de Mandado de Segurança noSuperior Tribunal de Justiça (STJ), oqual julgou procedente essa medida<strong>em</strong> maio de 1997 e determinou que seabrisse novo prazo para contestações.Com base <strong>em</strong> parecer da Funai, oentão Ministro da Justiça José Gregori,sob o governo Fernando Henrique,julgou improcedente as novascontestações.A decisão protelatória do STJpossibilitou maior tensão e violênciacontra os índios. Embora a áreaindígena já tivesse sido fisicamented<strong>em</strong>arcada pela Funai, foi invadida pornovos ocupantes e familiares defazendeiros, além de ter havidocompra e venda, e repasse de terras.Em reação, os Xucurus do Ororubáreiniciaram as “retomadas”, o queacirrou os conflitos. Em 21 de maio de1998, foi assassinado o caciqueChicão, após haver recebido váriasameaças desde 1986. Como recordasua esposa e viúva, Zenilda de Araújo:“A partir do momento <strong>em</strong> que eleentrou como cacique, aí começou aameaça por parte dos fazendeiros.Mas ele não t<strong>em</strong>ia. Teve uma épocaque ele pediu segurança à Justiça,denunciou o caso, que ‘tava’ameaçado, mas a Justiça não levou asério.” (Informação verbal). 38O assassinato do caciqueChicão foi devastador para amobilização política da comunidade,que ficou sob a liderança do vicecaciqueJosé Barbosa dos Santos,conhecido por Zé de Santa, até queum dos filhos do cacique Chicão,Marcos de Araújo, atingisse amaioridade. Diante das ameaçassofridas pelo cacique Chicão, essefilho já vinha sendo preparado pelopai, pelos líderes da comunidade epelo Cimi para assumir a posição decacique. Além do apoio do Cimi e doCentro de Cultura Luiz Freire àcomunidade, a morte do caciqueChicão atraiu o apoio de novos aliadoslocais, nacionais e internacionais,como o <strong>Gajop</strong>, o Movimento Nacionalde Direitos Humanos de Pernambuco,artistas locais, a Secretaria Especialde Direitos Humanos, a AnistiaInternacional, a Organização dasNações Unidas (ONU), entre outros. 3938 Informação fornecida por Zenilda de Araújo<strong>em</strong> ent<strong>revista</strong> concedida à autora na aldeiade São José, território indígena Xucuru doOrorubá, Pesqueira, 29 de fevereiro de 2008.39 O grupo musical Mundo Livre compôs umacanção e um videoclipe, intitulado “O OutroMundo de Xicão Xucuru”, cujo refrão – “elesnão quer<strong>em</strong> vingança, eles só quer<strong>em</strong>justiça, justiça!” – tornou-se famoso <strong>em</strong>Pernambuco.


146Criminalização, Divisão e Cooptaçãodos ÍndiosA situação de violência geradapelos conflitos fundiários continuouapós a morte do cacique Chicão. Atentativa de desmobilização política dacomunidade ganhou novascaracterísticas: os fazendeiros epolíticos locais começaram a usarestratégias de criminalização, divisão ecooptação dos índios. Em notóriaaliança com a elite política eeconômica local, a Polícia Federal e oMinistério Público Federal <strong>em</strong>Pernambuco passaram a desenvolvera tese de conflitos internos entre osíndios nas investigações e açõescriminais destinadas à apuração doassassinato do cacique Chicão e deoutros índios assassinadosposteriormente. Como explica Zenildade Araújo: “Quando mataram Chicão,a perseguição passou a ser para mime meu filho, Marquinho. Então, durantequatro anos, eu fui perseguida pelaJustiça como uma das mandantes docaso.” (Informação verbal). 40 Essa foraa tese adotada pela Polícia Federal <strong>em</strong>40 Informação fornecida por Zenilda de Araújo<strong>em</strong> ent<strong>revista</strong> concedida à autora na aldeiade São José, território indígena Xucuru doOrorubá, Pesqueira, 29 de fevereiro de 2008.Pernambuco, que alegara ter havidoum crime passional.Em abril de 2001, o presidenteFernando Henrique expediu o decretode homologação da d<strong>em</strong>arcação daterra indígena dos Xucurus doOrorubá. Em maio de 2001, nomomento de registrar o imóvel, oOficial do Registro de Imóveis daComarca de Pesqueira-PE promoveuuma Ação de Suscitação de Dúvida,questionando a regularidade doregistro, o que só foi resolvido <strong>em</strong>agosto de 2005. Em julho de 2001,dois meses depois de a Funai haversolicitado o registro da terra indígena,foi assassinado o líder da aldeia Pé deSerra do Oiti, Francisco de AssisSantana, conhecido por Chico Quelé.O delegado federal Marcos Cotrim,especialmente designado parainvestigar o caso, adotou a tese deconflito interno e indiciou dois índios –um dos quais era o vice-cacique Zé deSanta.A mesma tese de conflitointerno foi adotada na época daapuração do incêndio e danosresultantes da revolta da comunidadecontra o assassinato de dois índios,José Ad<strong>em</strong>ilson Barbosa e JosenilsonJosé dos Santos, os quais protegiam ocacique Marcos de Araújo por ocasiãode um atentado que este veio a sofrer


147<strong>em</strong> 7 de fevereiro de 2003 no territóriodos Xucurus do Ororubá. Para apurara revolta, a Polícia Federal e oMinistério Público Federal <strong>em</strong>Pernambuco instauraram seteinquéritos policiais e respectivas açõescriminais contra 35 índios, incluindovários líderes indígenas e a própriavítima do atentado, o cacique Marcosde Araújo.Tiv<strong>em</strong>os a oportunidade deassistir a uma audiência para ouvidados indiciados <strong>em</strong> uma dessas açõesjudiciais, realizada <strong>em</strong> 3 de agosto de2006, no Fórum da Justiça Federal <strong>em</strong>Caruaru. Na audiência, verificamos apressão do juiz e do representante doMinistério Público Federal sobre osíndios. Os efeitos de nossa presençaforam referidos ao vice-presidente doCimi <strong>em</strong> Brasília, Saulo Feitosa, queassim comentou o episódio:Em Pernambuco, nós s<strong>em</strong>pre nospreocupamos bastante com oprocedimento que é adotado pelosjuízes, tanto os juízes federais,procuradores da República, <strong>em</strong>primeira instância, e pela políciafederal. Nós sab<strong>em</strong>os que pelaocasião da sua presença durante aaudiência <strong>em</strong> Caruaru, o juiz teriainclusive adotado uma postura maiseducada, e os índios não se sentiramtão pressionados. A maneira como eleelabora as perguntas s<strong>em</strong>pre éintimidatória, que inibe ou coíbe osíndios a responder<strong>em</strong> o que ele achaque os índios deviam responder.(Informação verbal). 41Em resposta à pressão daJustiça Federal, os índios procurammobilizar-se durante as audiências.Assim ocorreu quando o caciqueMarcos de Araújo foi chamado a deporna ação criminal para apuração doduplo assassinato dos índios. Nessaaudiência, realizada <strong>em</strong> 7 de agostode 2003, o cacique foi acompanhadode diversos aliados da Igreja Católica,de órgãos governamentais e dasociedade civil organizada. 42A par da tentativa decriminalização dos índios, osfazendeiros e políticos locais têmtambém procurado dividi-los e cooptálospor meio de propostas de projetoseconômicos, como o Projeto deTurismo Religioso elaborado pelaPrefeitura de Pesqueira e defendidopelo Bispo da região, cujas obrasseriam construídas dentro da áreaindígena. O povo Xucuru do Ororubánão concorda com esse projeto. No41 Informação fornecida por Saulo Feitosa <strong>em</strong>ent<strong>revista</strong> concedida à autora, Brasília, 22 deagosto de 2006.42 Estiveram presentes, entre outros, D. PedroCasaldáliga Bispo de São Félix doAraguaia , deputados estaduais, o novoadministrador regional da Funai, ManoelLopes, representantes do Centro de CulturaLuiz Freire, da Comissão Pastoral da Terra,do Movimento Tortura Nunca Mais, doCentro pela Justiça e Direito Internacional.


148entanto, <strong>em</strong> 2001, surgiu um grupo deíndios dissidentes <strong>em</strong> defesa desseprojeto, aliando-se também aosfazendeiros locais nas ações deviolência cometidas contra os líderesdos Xucurus do Ororubá.Pressão Internacional para oReconhecimento dos DireitosHumanos dos IndígenasEm 2000, o Cimi e o <strong>Gajop</strong>começaram a articular a possibilidadede encaminhar à ComissãoInteramericana de Direitos Humanos adenúncia das ameaças de morterecebidas pelo cacique Marcos deAraújo e Zenilda de Araújo. 43 Marcosde Araújo tornou-se o novo caciquedos Xucurus do Ororubá <strong>em</strong> 6 dejaneiro de 2000, e logo depoiscomeçou a ser ameaçado de mortepor fazendeiros locais. Na época, 70%das terras indígenas estavamocupadas por posseiros e fazendeiros.Desmobilizada e fragilizadadesde a morte do cacique Chicão, acomunidade esperava que o novo43 Em 1999, o <strong>Gajop</strong> criara, <strong>em</strong> parceria com oMovimento Nacional de Direitos Humanos, oPrograma Direitos Humanos Internacional,com o objetivo de mobilizar o direitointernacional dos direitos humanos no âmbitodo Sist<strong>em</strong>a Interamericano de DireitosHumanos.cacique reiniciasse ações de“retomada” <strong>em</strong> resposta àcomercialização das terras por partedo fazendeiro José Cordeiro deSantana, conhecido por Zé de Ribas.O novo cacique determinou as“retomadas”, passando a sofrerameaças de morte.“A partir daí, foi que começouuma articulação do Cimi e o <strong>Gajop</strong>para se trabalhar essa questão daproteção, para mim e para minha mãe,na época”, conta o cacique Marcos deAraújo (Informação verbal). 44 Naépoca, a falta de segurança docacique e de sua mãe também foidenunciada à Organização dasNações Unidas (ONU) e à AnistiaInternacional. Em 2002, o caso Xucurufoi encaminhado à ComissãoInteramericana de Direitos Humanos(CIDH).Essas denúncias situam-se <strong>em</strong>um contexto de absorção, ainda queparcial e seletiva, de algumas normasinternacionais de direitos humanos pordeterminados setores do Estado naAmérica Latina. Desde os anos 1980,os povos indígenas da América Latinatêm reivindicado o reconhecimento dosseus direitos como direitos humanos44 Informação fornecida por Marcos de Araújo<strong>em</strong> ent<strong>revista</strong> concedida à autora no territórioindígena Xucuru do Ororubá, Pesqueira, 29de fevereiro de 2008.


149de “grupos” definidos porcaracterísticas históricas, étnicas eculturais. 45 A ênfase nos direitoscoletivos dos povos indígenas ou deoutros grupos sociais pretende refutara tese da “geração” dos direitoshumanos e a supr<strong>em</strong>acia dos direitoscivis e políticos, caracterizados comoindividuais, sobre os direitoseconômicos, sociais e culturais,caracterizados como coletivos. Contraessa tese da “geração” de direitoshumanos, defende-se a tese da“indivisibilidade” desses direitos, ouseja, a proteção dos direitosindividuais não pode ser asseguradas<strong>em</strong> a proteção dos direitos coletivos(LIMA JÚNIOR; GORENSTEIN;HIDAKA, 2003; PIOVESAN, 2004). 46Em 1989, a OrganizaçãoInternacional do Trabalho incorporou a45 É importante destacar que, por diferentesmotivos e <strong>em</strong> diferentes contextos, hácríticas a respeito da universalidade dosdireitos humanos, sobretudo por não se levar<strong>em</strong> conta as condições locais e os aspectosculturais que confer<strong>em</strong> significados variáveisaos direitos humanos por todo o mundo.Para uma crítica antropológica de contextoslocais no continente africano, cf. An-Na´im(2002). Para uma concepção interculturaldos direitos humanos, cf. Santos (2006b).46 Essa tese predominou na Conferência deDireitos Humanos realizada pela ONU <strong>em</strong>Viena, <strong>em</strong> 1993, e orientou ascom<strong>em</strong>orações do cinquentenário daDeclaração Universal dos Direitos Humanosda ONU <strong>em</strong> 1998. Nesse ano, a entãoComissão de Direitos Humanos da ONU,atualmente transformada no Conselho deDireitos Humanos, lançou o slogan “Todosos direitos humanos para todos”(DONNELLY, 2002).abordag<strong>em</strong> multicultural e coletivistados direitos indígenas com a adoçãoda Convenção sobre os PovosIndígenas e Tribais, a Convenção n.º169 (HANNUN, 2003). 47 A despeito desuas ambiguidades e dificuldades deaplicação, muitos países da AméricaLatina ratificaram a Convenção n.º 169e outras normas internacionais dedireitos humanos. 48Crescent<strong>em</strong>enteacionadas por organizações nãogovernamentais, a ComissãoInteramericana de Direitos Humanos ea Corte Interamericana de DireitosHumanos passaram a firmar umajurisprudência que reconhece osdireitos das comunidades indígenascomo direitos coletivos <strong>em</strong> virtude desuas particularidades étnicas eculturais (MELO, 2006). 49A Constituição brasileira de1988 abriu caminho para a47A Declaração dos Direitos dos PovosIndígenas, adotada pela ONU <strong>em</strong> 13 deset<strong>em</strong>bro de 2007, após vinte anos dediscussão, também incorporou a perspectivamulticultural e coletivista dos direitosindígenas.48 Até 25 de janeiro de 2005, 17 países haviamratificado a Convenção n.º 169; dentre eles13 da América Latina (MAGALHÃES, 2003,p. 34, nota 7).49 Vale l<strong>em</strong>brar que, já <strong>em</strong> 1985, a ComissãoInteramericana de Direitos Humanos (CIDH)publicou um relatório de mérito sobre o casoYanomami, considerando o Estado brasileiroresponsável pela violação de direitoshumanos da população indígena Yanomami.Esse foi o segundo caso, no período de 1970a 1985, <strong>em</strong> que o Brasil recebeu esse tipo derepreensão da CIDH (SANTOS, 2007).


150incorporação dessas normas aoestabelecer que, nas suas relaçõesinternacionais, o Estado deve reger-sepelo princípio da “prevalência dosdireitos humanos” (art. 4, II). Em 1996,no mesmo ano <strong>em</strong> que estabelecera oDecreto n.º 1.775/1996 dificultando oprocedimento administrativo ded<strong>em</strong>arcação das terras indígenas, ogoverno Fernando Henrique criou oPrograma Nacional de DireitosHumanos (Decreto n.º 1.094/1996). Noque respeita aos direitos indígenas,esse programa estabeleceu metaspara, entre outras coisas, formular edesenvolver uma nova políticaindigenista “<strong>em</strong> substituição a políticasassimilacionistas e assistencialistas”;“apoiar a revisão do Estatuto do Índio”;“dotar a Funai de recursos suficientespara a realização de sua missão dedefesa dos direitos das sociedadesindígenas, particularmente noprocesso de d<strong>em</strong>arcação das terrasindígenas” (BRASIL, 1996, p. 31 etseq.).Para impl<strong>em</strong>entar esseprograma, Fernando Henrique criou,<strong>em</strong> 1997, a Secretaria Nacional deDireitos Humanos (SNDH), naestrutura do Ministério da Justiça, aqual foi transformada, <strong>em</strong> 1999, naSecretaria de Estado dos DireitosHumanos, com assento nas reuniõesministeriais. Em 2003, Lula criou aSecretaria Especial de DireitosHumanos, com status de ministério(Lei n.º 10.683, de 28 de maio de2003).Todavia, comparado com outrospaíses da América Latina, o Brasild<strong>em</strong>orou mais de uma década pararatificar a Convenção n.º 169, somenteo fazendo <strong>em</strong> 2002, no fim do governoFernando Henrique (Decreto-Lei n.º143, de 20 de junho de 2002). 50 Alémdisso, na prática judicial e política, agarantia dos direitos coletivos dosindígenas encontra reações por partetanto do sist<strong>em</strong>a interestatal como dosEstados. 51O Impasse do Caso Xucuru na CIDHe a Alternativa do Governo EstadualComo mencionado no iníciodeste artigo, a medida cautelar deproteção aos índios, recomendadapela Comissão Interamericana deDireitos Humanos ao Estado brasileiro,50 Enquanto vários países da região ratificarama Convenção Americana de DireitosHumanos nos anos 1980, o Brasil só o fez<strong>em</strong> 1992. Foi também um dos últimos areconhecer a jurisdição da CorteInteramericana de Direitos Humanos <strong>em</strong>1998 (SANTOS, 2007).51 A disputa judicial <strong>em</strong> torno da d<strong>em</strong>arcaçãoda área indígena Raposa Serra do Sol éex<strong>em</strong>plo dessa reação, apoiada, muitasvezes, pela imprensa dominante, comod<strong>em</strong>onstra reportag<strong>em</strong> da Revista Isto É(SOBERANIA..., 2008, p. 36-40).


151encontrou entraves no plano local <strong>em</strong>razão dos conflitos de interesse entreos Xucurus do Ororubá e importantesatores políticos, econômicos ejurídicos no estado de Pernambuco. Amedida foi solicitada <strong>em</strong> outubro de2002 e concedida imediatamente pelaCIDH. Ilustrando uma situação deheterogeneidade na atuação estatal, aSecretaria Especial de DireitosHumanos (SEDH) mostrou-se aberta anegociações, <strong>em</strong>bora inicialmente nãotenha reconhecido a impossibilidadede a proteção ser dada nos termosestabelecidos pela Polícia Federal.Em fevereiro de 2003, logoapós o cacique Marcos de Araújo tersido vítima de um atentado, a SEDHenviou seu segundo relatório sobre ocaso Xucuru à CIDH, declarando que,“no que respeita à proteção policialfederal pretendida, seu modus faciendirevelou-se extr<strong>em</strong>amente complexo,por envolver relação entre, de um lado,a autonomia constitucionalmenteassegurada às comunidades indígenase, de outro, as atribuições da PolíciaFederal”. Ou seja, a Polícia Federalnão absorveu o novo “indigenismomulticultural” previsto na Constituiçãoe no Programa Nacional de DireitosHumanos. A SEDH tambémreconheceu que o impasse para ofornecimento da efetiva proteção pelaPolícia Federal foi resultado do poderde influência exercido pelos“fazendeiros locais que se opõ<strong>em</strong> aoprocesso de efetiva d<strong>em</strong>arcação daterra indígena”. Por último, a SEDHreconheceu que:[...] o relacionamento da comunidadeXucuru com representantes doMinistério Público Federal <strong>em</strong>Pernambuco e com aSuperintendência Regional da PolíciaFederal naquele Estado tornou-sebastante conflituoso a partir deinvestigações, ainda inconclusas,sobre a morte do índio Chico Quelé<strong>em</strong> 2001, o que dificultou sobr<strong>em</strong>odo oprocesso de negociação e deimpl<strong>em</strong>entação das medidascautelares. (BRASIL, 2003).Para acompanhar as medidasrelacionadas com o cumprimento darecomendação da CIDH no sentido dese proteger a vida e a integridadefísica dos índios Xucurus do Ororubá,a Procuradoria da República <strong>em</strong>Pernambuco instaurou umprocedimento administrativo. Em 3 dejulho de 2007, o Ministério PúblicoFederal <strong>em</strong> Pernambuco decidiuarquivar o processo, alegando que“não houve suficiente colaboração dosbeneficiados <strong>em</strong> torná-la efetiva”.Até março de 2008, a maiorparte das terras indígenas ocupadaspor não índios havia sido desocupadae os ocupantes haviam recebido adevida indenização, mas a situação de


152ameaça aos líderes indígenaspersistia. Em meados de 2007, um dosresponsáveis pelo atentado contra ocacique Marcos de Araújo foi posto <strong>em</strong>liberdade e passou a fazer ameaçascontra a vida do cacique. Este recorreuao governador de Pernambuco,Eduardo Campos, cujo avô, ogovernador Miguel Arraes, fora umantigo aliado do cacique Chicão. Como apoio do governador e da AnistiaInternacional, o cacique Marcos deAraújo foi cont<strong>em</strong>plado, <strong>em</strong> março de2008, pelo recém-criado ProgramaEstadual de Proteção aos Defensorese Defensoras de Direitos Humanos(PEPDDH), recebendo a proteção dedois policiais militares indígenas desua confiança. Sua segurança, <strong>em</strong>boragarantida, continuou, assim, a sertratada por uma perspectiva individualdos direitos humanos; e a proteção foidada <strong>em</strong> virtude do seu ativismo comodefensor de direitos humanos, nãocomo um líder indígena.De referir, por fim, que, <strong>em</strong>2009, o cacique Marcos de Araújo e 35líderes indígenas foram condenadospela Justiça Federal <strong>em</strong> Caruaru, naação criminal ajuizada contra ele econtra esses líderes <strong>em</strong> função dareação da comunidade ao atentadoque o cacique sofreu <strong>em</strong> 2003. Adefesa apresentou recurso contra essadecisão, e o caso se encontra <strong>em</strong>andamento na Justiça Federal <strong>em</strong>Recife. 52Essa situação ex<strong>em</strong>plifica acriminalização dos movimentos sociaise a heterogeneidade da atuaçãoestatal no campo dos direitoshumanos.ConclusãoSegundo Sousa Santos (2003),a heterogeneidade da atuação estatalpode levar a uma situação extr<strong>em</strong>a de“pluralismo jurídico interno”, definidacomo uma “condição sócio-jurídica quese auto-define como oficial, formal,moderna e nacional, mas <strong>em</strong> cujaprática interna se detecta a presençade alguns ou de todos os pólos dasdicotomias, do informal, do tradicional,do local ou do global” (SANTOS, 2003,p. 63). Essa situação tende a serprovocada pela presença de, pelomenos, um dos seguintes fatores:52 Cf. Processo n.º 2006.83.02.000366-5, quetramitou na Justiça Federal no Fórum deCaruaru, Pernambuco. A pena imposta aocacique Marcos de Araújo foi de 10 anos, 4meses e 13 dias de prisão, além de multapecuniária, de valor definido pela execuçãopenal. O recurso de apelação dessa decisãoestá registrado sob o número ACR6962-PEno Tribunal Regional Federal da 5.ª Região.


153Disjunção entre o controle político e ocontrole administrativo do território edas populações; deficientesedimentação de diferentes culturaspolítico-jurídicas no interior do Estadoe do direito oficial; grande turbulênciapolítica e institucional, feitas d<strong>em</strong>últiplas rupturas sucedendo-se <strong>em</strong>seqüências rápidas; crise aguda doEstado, próxima da implosão(SANTOS, 2003, p. 64).Além desses fatores, o autortambém destaca que “n<strong>em</strong> todas asformas de heterogeneidade estatalconfiguram uma situação de pluralismojurídico interno. Este último requer acoexistência de diferentes lógicas deregulação executadas por diferentesinstituições do Estado com muitopouca comunicação entre si”(SANTOS, 2003, p. 56). Ao analisar oEstado moçambicano, o autor afirmaque se apresentam quase todos osfatores acima mencionados e, nessestermos, trata-se de um Estadoheterogêneo cujo direito caracteriza-sepela situação extr<strong>em</strong>a de pluralismojurídico interno.No Brasil, a análise do casoXucuru permite a identificação de duasculturas político-jurídicas <strong>em</strong> conflitono interior do Estado e do direito oficial<strong>em</strong> matéria de direitos indígenas. Noentanto, os setores do Estadobrasileiro que atuam no campo dosdireitos indígenas estão <strong>em</strong>comunicação entre si e, dependendodo contexto político local, pod<strong>em</strong>abraçar uma ou outra cultura jurídicopolíticaindigenista. Nesse sentido,essa situação não parececorresponder a um pluralismo jurídicointerno, ainda que o Estado apresentetraços de heterogeneidade <strong>em</strong> suaatuação política, administrativa ejudicial.No caso Xucuru, a atuação deum mesmo setor, como o MinistérioPúblico Federal ou a Polícia Federal<strong>em</strong> Pernambuco, não se caracterizapela fraca sedimentação de diferentesculturas jurídico-políticas indigenistas.Ao contrário, verifica-se, nessessetores, uma forte sedimentação eheg<strong>em</strong>onia de uma perspectivamonocultural e individualista dosdireitos indígenas. Essa perspectiva érespaldada por leis do período daditadura militar, que ainda estão <strong>em</strong>vigor e carregam a herança colonial eautoritária das estruturas de poder noEstado e na sociedade brasileira. Poroutro lado, não se pode generalizar apartir do caso Xucuru e afirmar que oMinistério Público Federal atua damesma maneira <strong>em</strong> todos os estadosdo Brasil. Valeria a pena comparar aatuação deste ou de outros órgãosestatais <strong>em</strong> diferentes estados eregiões do país – e entre o Brasil e


154outros países –, examinando-se ascondições sociais e jurídico-políticasque geram diferentes situações ougraus de heterogeneidade da atuaçãoestatal. Esse tipo de pesquisa seriaespecialmente importante para acompreensão dos obstáculos econdições de possibilidade para aconstrução dos direitos humanos dosindígenas ou de outros grupos sociaisque sofr<strong>em</strong> violação de direitoshumanos.O caso Xucuru mostra que oreconhecimento dos direitos humanosdos indígenas como direitos de um“grupo” não elimina os obstáculosjudiciais e políticos para a aplicação datese de indivisibilidade dos direitoshumanos. Esse probl<strong>em</strong>a não seráresolvido apenas por meio doreconhecimento constitucional dosdireitos humanos dos indígenas. NaAmérica Latina, além das dificuldadesno processo de constitucionalizaçãodesses direitos, tais normas <strong>em</strong> regranão são acompanhadas de leisinfraconstitucionais regulamentando amatéria. 53 Por outro lado, a legalizaçãodos direitos humanos dos indígenasnão é suficiente para a transformação53 Para uma análise jurídica das dificuldadesno processo de constitucionalização dosdireitos indígenas na América Latina, cf.Carbonell (2003).das estruturas sociais e das relaçõesdesiguais de poder. Como assinalaÁlvarez Molinero (2006, p. 175), essetipo de reconhecimento “não significauma (re)constituição do Estado, umarevisão das estruturas que consolidame perpetuam a subordinação e adiscriminação”.ReferênciasALMEIDA, Eliene Amorim de. Xucuru,filhos da mãe natureza: uma históriade resistência e luta. Olinda: Centro deCultura Luiz Freire, Projeto Xukuru,1997.ÁLVAREZ MOLINERO, Natalia. Fromthe theory of discovery to the theory ofrecognition of indigenous rights.Conventional international law insearch of homeopathy. In: MECKLED-GARCÍA, Saladín; ÇALI, Basak (Org.).The legalization of human rights:multidisciplinary perspectives onhuman rights and human rights law.New York: Routledge, 2006. p. 165-181.AN-NA´IM, Abdullahi A. (Org.). Culturaltransformation and human rights inAfrica. London: Zed Books, 2002.ARRUTI, José Maurício. Etnogênesesindígenas. In: RICARDO, Beto;RICARDO, Fany (Org.). Povosindígenas no Brasil 2001-2005. SãoPaulo: Instituto Socioambiental, 2006.p. 50-54.BENVENUTO, Jayme (Org.). Direitoshumanos: debates cont<strong>em</strong>porâneos.Recife: Edição do Autor, 2009.


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159Análise geográfica do trabalho doProjeto Justiça Cidadã <strong>em</strong> Recife Willian Magalhães de Alcântara IntroduçãoNo processo de formaçãoterritorial do Brasil, é certo queinúmeras desigualdades foramconstruídas. Mais recent<strong>em</strong>ente, osprocessos de industrialização,urbanização e globalizaçãoaprofundaram essas desigualdades:entre regiões, entre áreas rurais eáreas urbanas, entre áreas ricas epobres das cidades. Em um país comelevada concentração de renda,poucas são as pessoas que têmacesso a bens e serviços dequalidade, quer pela falta de acesso àrenda, quer por sua marginalização <strong>em</strong>relação ao acesso a serviços públicosbásicos.“São direitos sociais aeducação, a saúde, o trabalho, amoradia, o lazer, a segurança, aprevidência social, a proteção àmaternidade e à infância, a assistênciaaos desamparados, na forma destaConstituição.” (BRASIL, 2007, art. 6.º).Quantos são os brasileiros que têmassegurados esses direitosfundamentais? Ou ainda, quantos aomenos sab<strong>em</strong> que têm direito a essesdireitos? A desigualdade resultatambém <strong>em</strong> disparidades no acesso àsinformações e nas possibilidades d<strong>em</strong>aterialização dos direitos. Aspessoas mais pobres, além dedesconhecer<strong>em</strong> seus direitos,desconhec<strong>em</strong> as instituiçõesresponsáveis por garanti-los. Assimocorre com o Sist<strong>em</strong>a de Justiça que,historicamente, t<strong>em</strong> servido, por umlado, à garantia dos direitos dasclasses heg<strong>em</strong>ônicas e, nesse sentido,para assegurar a ord<strong>em</strong> vigente. Umenorme desafio se apresenta, então, ànossa sociedade: promover auniversalização do acesso à Justiça.Este artigo resulta de pesquisa dedissertação sobre o acesso à justiça <strong>em</strong>Recife, realizada no seio do Programa dePós-Graduação <strong>em</strong> Geografia daUniversidade Federal de Pernambuco(UFPE) com o apoio da Fundação deAmparo à Ciência e Tecnologia do Estado dePernambuco (Facepe). Mestre <strong>em</strong> Geografia pela UniversidadeFederal de Pernambuco.1 ACESSO À JUSTIÇA E USO DOTERRITÓRIOSegundo o próprioentendimento jurídico mais moderno, o


160acesso à justiça não pode ser maiscompreendido como o mero acessoaos tribunais. Em outras palavras, ofato de os tribunais estar<strong>em</strong> àdisposição de qualquer pessoa nãosignifica acesso à justiça, uma vez queexiste uma série de obstáculos entreos probl<strong>em</strong>as de cada indivíduo e umasolução judicial. Segundo Nalini(2007), dentre esses <strong>em</strong>pecilhos,destacam-se: a falta de informação damaioria das pessoas <strong>em</strong> relação aodireito; a pobreza (os processosjudiciais exig<strong>em</strong> o pagamento decustas n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre acessíveis atodos) 1e, ainda, a lentidão dosprocessos judiciários. Desse modo,por acesso à justiça, deve-se ter, naverdade, um entendimento maisamplo. Nesse sentido, conformedefinição de Ramos (2000, p. 38-39):Hoje, muito mais do que acesso oacesso aos tribunais, de fundamentalimportância, mas não apto a esgotartodas as vias política e socialmentedesejáveis de resolução de conflitos, ofenômeno do acesso à justiça deve sercompreendido como a possibilidad<strong>em</strong>aterial do ser humano conviver <strong>em</strong>uma sociedade onde o direito érealizado de forma concreta, seja <strong>em</strong>decorrência da manifestação soberanada atuação judiciária do organismoestatal, seja, também, como reflexo daatuação das grandes políticas públicasa ser<strong>em</strong> engendradas pela respectivaatuação executiva, não olvidando-se, é1 Custas são as diversas taxas que as partessão obrigadas a pagar num processo judicial.claro, o escorreito regramento a serimprimido pela atuação legiferante. 2Pereira, Rocha e Loureiro(2005, p. 35) observam, ainda, que oacesso à justiça deve sercompreendido como “o acesso àefetividade dos direitos fundamentaisque garantam uma vida digna àpopulação.” Contudo, apontam umsério probl<strong>em</strong>a à concretização desseacesso: o desconhecimento dosdireitos pela sociedade. A efetividadedos direitos fundamentais depende daconscientização do indivíduo comosujeito de direitos. Essaconscientização, entretanto, não chegaàs pessoas que mais têm seus direitosviolados: as populações pobres.Percebe-se, assim, que oacesso à justiça, além do acesso aostribunais, passa pelo conhecimentodos direitos, b<strong>em</strong> como pelapossibilidade de alcançá-los. No Brasil,parece haver um círculo vicioso noqual a pobreza impede o acesso àjustiça, e a falta desse acesso acentuao quadro de pobreza. A respeito dessalógica da acessibilidade, Boaventurade Sousa Santos (2008, p. 170) nosl<strong>em</strong>bra que:[...] quanto mais baixo é o estratosócio-econômico do cidadão, menos2 Que define as leis.


161provável é que conheça advogado ouque tenha amigos que conheçamadvogados, menos provável é quesaiba onde, como e quando contactaro advogado, e maior é a distânciageográfica entre o lugar onde vive outrabalha e a zona da cidade onde seencontram os escritórios de advocaciae os tribunais.Essas ideias aproximam-se dasde Milton Santos quando afirma:O valor do indivíduo depende, <strong>em</strong>larga escala, do lugar onde está [...].Em nosso país, o acesso aos bens eserviços essenciais, públicos e atémesmo privados é tão diferencial econtrastante, que uma grande maioriados brasileiros, no campo e na cidade,acaba por ser privada desses bens eserviços. Às vezes, tais bens eserviços simplesmente não exist<strong>em</strong> naárea, às vezes não pod<strong>em</strong> seralcançados por questão de t<strong>em</strong>po oude dinheiro. (SANTOS, 2007, p. 139).Uma pesquisa que pretendecompreender a relação entre acesso àjustiça e uso do território não podeprescindir de uma fundamentaçãoconceitual que b<strong>em</strong> defina o espaçogeográfico. Nesse sentido,acreditamos que entender o espaçogeográfico como “conjuntoindissociável de sist<strong>em</strong>as de objetos esist<strong>em</strong>as de ações” (SANTOS, 1994,p. 90) nos fornece o instrumentalteórico necessário à análise quepretend<strong>em</strong>os realizar. Compreendendoque o espaço geográfico é a totalidadeabstrata e, na verdade, os territóriossão seus recortes <strong>em</strong>píricos,perceb<strong>em</strong>os que, quando, <strong>em</strong> nossaanálise, falamos <strong>em</strong> uso do território,estamos nos referindo ao uso que oshomens e as instituições faz<strong>em</strong> dossist<strong>em</strong>as de objetos (fixos e móveis) edos sist<strong>em</strong>as de ações.Diante dessas considerações,<strong>em</strong> um país como o Brasil, cujapopulação é na maioria constituída depobres, e onde se observa nãosomente a proliferação de uma sériede injustiças, mas também a criaçãode um grande número de instituições,fica clara a necessidade daorganização de um serviçojurisdicional eficiente que, conhecendoo território no qual instala seus fixos erealiza suas ações, consiga usá-lo d<strong>em</strong>aneira a alcançar, de fato, auniversalidade do atendimento.Não se deve, portanto, deixarde considerar o fato de que, para queas instituições que buscam promover oacesso à justiça aproxim<strong>em</strong>-se de fatodas populações pobres, é precisopensar e usar o território de modocompatível com as necessidades daspessoas. Não se pode esquecer quegrande parte das populações pobresnão dispõe sequer de recursos paraarcar com os custos com transporte,meios s<strong>em</strong> os quais, por sua vez,torna-se difícil se deslocar no território.Desse modo, a proximidade territorialconstitui, também, uma estratégia


162fundamental das instituiçõesprestadoras desses serviços.Dito isso, <strong>em</strong>bora o acesso àjustiça apresente um conceito amplo,pretend<strong>em</strong>os analisá-lo como umserviço de interesse social que deveser pensado considerando-se suadimensão territorial, relacionado com abusca da sua proximidade àsnecessidades das pessoas.2 O PROJETO JUSTIÇA CIDADÃConstitucionalmente, no Brasil,não está previsto que a execução datutela jurisdicional seja feita pelaalçada municipal. Tal responsabilidadecaberia à Defensoria Pública.Entretanto, diante do quadro deinsuficiência da prestação do serviçopor parte da Defensoria <strong>em</strong> Recife,surgiu, <strong>em</strong> 2002, sob a gestãomunicipal do Partido dosTrabalhadores (PT), o Projeto JustiçaCidadã (iniciativa da Prefeitura doRecife), com o objetivo de prestarassistência judiciária gratuita àpopulação.O Projeto Justiça Cidadã é umaação desenvolvida e executada pelaPrefeitura do Recife, por meio daSecretaria de Assuntos Jurídicos(SAJ), <strong>em</strong> parceria com o Gabinete deAssessoria Jurídica às OrganizaçõesPopulares (<strong>Gajop</strong>). A SAJ já realizavaaté 2001 um serviço de assistênciajudiciária que funcionava <strong>em</strong> sua sede.Em 2002, reuniu-se com o <strong>Gajop</strong> paradesenvolver um programa no qualesse atendimento fossedescentralizado. Depois dessaprimeira reunião, o Projeto foiimplantado e foram estabelecidos,inicialmente, cinco núcleos deatendimento distribuídos pelos bairrosTotó, Beberibe, Pina, Caxangá e Ibura.A intenção inicial era atender ad<strong>em</strong>andas relativas ao Direito Penal,Direito Previdenciário, Direito Civil eDireito da Criança e do Adolescente.No fim de cada ano, o <strong>Gajop</strong>organiza um relatório consolidando osdados sobre os atendimentosrealizados. O relatório de 2003 (poucomais de um ano após a instalação doProjeto Justiça Cidadã) fez algumasimportantes revelações sobre o perfilda população e os tipos deatendimento (GAJOP, 2004). Foramatendidas 3.244 pessoas nos cinconúcleos, das quais 89% necessitavamsomente de algum tipo deesclarecimento sobre direitos,procedimentos ou documentação parasolicitar algum serviço diante deórgãos públicos. Registrou-se tambémque a maior parte dos atendidos (74%)


163era constituída por mulheres entre asfaixas etárias de 22 a 49 anos.Quanto à escolaridade, 63,5%dos atendidos não concluíram o ensinofundamental e apenas 3% chegou aoensino superior. Naquele ano, oProjeto realizou ao todo 542conciliações (acordos extrajudiciais) ehouve 318 ações propostas. Dentre asconciliações, 88% eram relativas apensão alimentícia, 6% referiam-se adivórcio ou separação consensual, 2%correspondiam a investigação depaternidade e 4% estavam ligadas aoutros tipos de questão. Quanto àsações propostas, a distribuição mudaum pouco, uma vez que os divórcios,assim como outros probl<strong>em</strong>as, exig<strong>em</strong>intervenção judicial. Sendo assim, 28%das ações foram de alimentos, 24%foram de divórcio ou separação, 8% deinvestigação de paternidade e 40% deoutros casos.Essa maior d<strong>em</strong>anda pelasquestões alimentícias, e a sobrecargade trabalho referente às ações queestavam sendo ajuizadas e cujad<strong>em</strong>anda era crescente, levou aorganização do projeto a repensarsuas ações, o que se reflete <strong>em</strong>algumas das estratégias para 2004expostas no relatório do Projeto, asquais envolv<strong>em</strong> a preocupação commediação, atendimento coletivo ecapacitação de grupos dascomunidades <strong>em</strong> direitos (GAJOP,2004). Tratou-se de uma adaptaçãotanto às necessidades dos atendidos,b<strong>em</strong> como um reconhecimento de queo Projeto Justiça Cidadã apresentavalimitações na prestação de um serviçode assistência judiciária, não dandoconta da enorme d<strong>em</strong>anda.O Projeto Justiça Cidadã foimarcado <strong>em</strong> 2005 por probl<strong>em</strong>as nainfra-estrutura dos núcleos deBeberibe e do Totó, que foramfechados. A população que eraatendida naqueles núcleos foiencaminhada para o Núcleo Caxangá.Desde então, segundo informaçõesobtidas do <strong>Gajop</strong>, apesar de aPrefeitura ter-se comprometido <strong>em</strong>resolver o probl<strong>em</strong>a e fazer os núcleosvoltar<strong>em</strong> a funcionar, não foi isso oque ocorreu. A análise dasinformações obtidas até agora nospermite afirmar que é algo a lamentar,uma vez que tais núcleos estavamestrategicamente instalados <strong>em</strong>relação a áreas de alta vulnerabilidadesocial. O Projeto funciona hoje com osoutros três núcleos, que foram objetode nossa pesquisa. O relatório de2005 apontou dados similares aosrelatórios anteriores <strong>em</strong> relação aoperfil da população atendida (GAJOP,2006). Sobre a distribuição dos


164atendidos, o Ibura passou a ser onúcleo com o maior número deatendimentos.O Projeto passou também aintensificar os acordos extrajudiciaiscomo meio de solução de conflitos,priorizando as questões referentes àpensão alimentícia. Além disso,intensificou as ações de formaçãopedagógica dos profissionaisenvolvidos nos atendimentos coletivos,que se constitu<strong>em</strong> <strong>em</strong> um importanteinstrumento, uma vez que muitos dosatendidos só buscam informações.Dessa forma, o Projeto Justiça Cidadãpassou a ter uma atuação b<strong>em</strong>específica ao contrário das intençõesiniciais.O Projeto Justiça Cidadã hojeatua num campo importantíssimo que,apesar de constitucionalmente ser dacompetência da Defensoria Pública,apresenta uma d<strong>em</strong>anda muito grandeque não v<strong>em</strong> sendo suprida. Aredução do seu âmbito de atuaçãoresultou das limitações e dificuldades,contudo suas ações hoje são maisespecíficas, promovendo a educação<strong>em</strong> questões mais restritas (pensãoalimentícia, principalmente), evitandoque muitos casos chegu<strong>em</strong> até asestruturas do Judiciário, jásobrecarregado. Trata-se de umprojeto importante, mas não t<strong>em</strong>recebido a devida atenção por parte daprópria Prefeitura, o que se evidenciapelo fato de os núcleos deatendimento do Totó e de Beberibenão ter<strong>em</strong> sido reabertos, porex<strong>em</strong>plo.3 METODOLOGIAO objetivo deste trabalho foianalisar a atuação do Projeto JustiçaCidadã, a partir da análise de suasestratégias espaciais, ou seja, de qu<strong>em</strong>aneira a organização espacialadotada proporciona uma efetivaproximidade com o público-alvo. Paraalcançar tal objetivo, três tarefasprincipais foram necessárias: saber operfil das pessoas atendidas,estabelecer um padrão da distribuiçãodessas pessoas no território da cidadee as estratégias espaciais adotadaspelas instituições. Com a análisedessas informações, pud<strong>em</strong>os verificar<strong>em</strong> que medida as ações do JustiçaCidadã se realizam <strong>em</strong> consonânciacom as necessidades reaisapresentadas pela população pobre domunicípio.Para realização da primeiratarefa, verificamos na instituição aexistência de arquivos cominformações cadastrais a respeito daspessoas atendidas. O Projeto Justiça


165Cidadã t<strong>em</strong> arquivos com osformulários que são preenchidos porocasião dos atendimentos. Taisdocumentos reún<strong>em</strong> dados sobreidade, estado civil, grau deescolaridade, renda, local deresidência, número de filhos, númerode pessoas com qu<strong>em</strong> o atendidoconvive, com quantas pessoasconviv<strong>em</strong>, atendimento buscado, etc.Dada à existência desses dados,solicitamos à coordenação do Projetosua disponibilização, o que foigentilmente concedido.Embora o Projeto tenha dadosde anos anteriores, adotamos comocritério analisar os dados referentes a2008, uma vez que também o númerode questionários permitia a realizaçãodessa tarefa. Outro fator que nospermitiu proceder dessa forma foi ofato de que os documentos encontramseorganizados e separados por ano,facilitando nosso trabalho. Assimsendo, coletamos dados dos trêsnúcleos: 197 questionários no NúcleoCaxangá, 158 no núcleo do Pina e 235no do Ibura. Esse foi o número dequestionários que transcrev<strong>em</strong>os,cujos dados tratamos eapresentar<strong>em</strong>os. Entretanto, valeressaltar que o total de atendimentosnão é necessariamente esse, uma vezque exist<strong>em</strong> alguns atendimentos paraos quais não foram preenchidosquestionários, os casos de orientação,por ex<strong>em</strong>plo. Contudo, trata-se de umvalor aproximado, a partir do qual,pud<strong>em</strong>os traçar o perfil dos atendidospelo serviço. Outra ressalva a ser feitaé que não coletamos as informaçõesde todos os questionários do núcleo doIbura <strong>em</strong> virtude de algumasdificuldades de organização dosdados. Sendo assim, 177questionários foram apenascontabilizados.Bezerra (2008), ao analisar aterritorialização dos Agentes de SaúdeAmbiental (ASA) no contexto doPrograma de Saúde Ambiental (PSA)executado pela Prefeitura do Recife(PR), elaborou um mapa devulnerabilidade social para a cidade.Partindo do cruzamento de dados deÍndice de Desenvolvimento Humano(IDH) com os dados de renda do chefede domicílio, esse pesquisadorestabeleceu três faixas para classificaras quadras do município: baixa (acimade 9 salários e IDH acima de 0,9),média (entre 3 e 9 salários e IDH entre0,75 e 0,9) e alta vulnerabilidade (até 3salários e IDH abaixo de 0,75). Acomparação dos dadossocioeconômicos obtidos sobre osatendidos pelo Justiça Cidadã com asfaixas estabelecidas por Bezerra nos


166levou a concluir que a distribuição dopúblico-alvo desse serviço estáfort<strong>em</strong>ente ligada às áreas de altavulnerabilidade social.A terceira tarefa consistiu <strong>em</strong>verificar os critérios adotados pelasinstituições para localizar seus núcleosde atendimento, alocar atendentes e,principalmente, estabelecer osterritórios que iriam atender. Tallevantamento partiu da realização deconversa com as pessoasresponsáveis pela gestão ecoordenação dos serviços. Em relaçãoao Projeto Justiça Cidadã, entramos<strong>em</strong> contato com o Secretário deAssuntos Jurídicos da Prefeitura doRecife, que afirmou não conhecersuficient<strong>em</strong>ente o programa e nosorientou a conversar com o <strong>Gajop</strong>.Essa instituição também não soubeinformar exatamente os critériosutilizados para localização dosnúcleos. Um possível motivoapontado, mas s<strong>em</strong> certeza, foilocalizar os núcleos nos bairros commaiores índices de violência. A análisedo relatório de criação do Projetotambém não menciona as razões daslocalizações dos núcleos. Tampoucofoi possível descobrir se havia algumaestratégia pela qual se criass<strong>em</strong> áreasde abrangência das ações de cadanúcleo.De posse de todos os dados,utilizamos o software Microsoft Excelpara organizá-los <strong>em</strong> tabelas.Utilizamos também o Mapinfo 7.5 paraproduzir mapas que permitiss<strong>em</strong>visualizar a distribuição espacial noterritório do Recife, por local deresidência das pessoas atendidas peloProjeto Justiça Cidadã. A análise dosmapas permitiu perceber aabrangência espacial da atuação decada núcleo, b<strong>em</strong> como confirmar acorrespondência entre o bairro deorig<strong>em</strong> das pessoas com as áreas dealta vulnerabilidade social.Nosso trabalho foi, então,realizado por meio do cruzamentodessas três informações: perfil dosatendidos, áreas de altavulnerabilidade e estratégias espaciaise de territorialização das açõespromovidas pelas duas entidades <strong>em</strong>questão. Os dados fornecidos peloProjeto Justiça Cidadã nos permitiramverificar o enquadramento do perfildessas pessoas com os parâmetrosestabelecidos por Bezerra paracaracterizar as áreas de altavulnerabilidade social. Esseenquadramento foi feito pelascaracterísticas socioeconômicas e pelacoincidência dos lugares de residênciados atendidos com as áreas de altavulnerabilidade. A partir de então,


167analisamos as ações do Projetocomparando-as com os dados devulnerabilidade.


1684 PERFIL SOCIOECONÔMICO DOSATENDIDOS PELO JUSTIÇACIDADÃenvolvidas, entretanto, apesar de <strong>em</strong>alguns casos os questionáriosapresentar<strong>em</strong> os dados de ambas,optamos por registrar apenas os dados4.1 Sexodas pessoas que procuraram o serviçoe traçar seu perfil.Portanto, há aA distribuição por sexo estáfort<strong>em</strong>ente relacionada com a naturezado probl<strong>em</strong>a a ser solucionado. Comopredominam os casos de pensãoalimentícia, de guarda e visita aosfilhos, há o predomínio das mulheresno total de atendidos. Nesses tipos depredominância do sexo f<strong>em</strong>inino(85%), na maioria mulheres quebuscam pensão alimentícia para osfilhos. Convém reiterar que os dadosapresentados nas tabelas tiveramcomo fonte os arquivos do ProjetoJustiça Cidadã.conflito, há s<strong>em</strong>pre duas partesTabela 1 − Distribuição dos atendimentos do JustiçaCidadã por sexoSexoNúmero de atendidos por núcleoCaxangá Pina Ibura Total Total (%)F<strong>em</strong>inino 160 136 210 506 85,6Masculino 37 23 25 85 14,44.2 Grau de escolaridadeáreas de alta vulnerabilidade social.Verificamos que 50% dos atendidosO grau de escolaridade é outroíndice que confirma a relação entre operfil das pessoas que buscamatendimento no Justiça Cidadã e osnão têm o 1.º grau completo, aquelesque têm o 2.º grau completo são 23%e os que chegaram ao 3.º graucorrespond<strong>em</strong> a apenas 6,5%.parâmetros estabelecidos para as


169Tabela 2 - Distribuição dos atendimentos do Justiça Cidadã por grau de escolaridadeEscolaridadeNúmero de atendidos por núcleoCaxangá Pina Ibura Total Total (%)Não alfabetizado 0 0 9 9 1,5Alfabetizado 0 0 4 4 0,71.ª à 4.ª série do 1.º grau 23 16 28 67 11,35.ª à 8.ª série do 1.º primeiro grau 79 48 89 216 36,51.º grau completo 5 26 17 48 8,12.º grau incompleto 18 13 33 64 10,82.º grau completo 53 34 49 136 23,03.º grau incompleto 5 11 2 18 3,03.º grau completo 13 5 3 21 3,6Não informado 0 6 1 7 1,24.3 Situação de <strong>em</strong>pregonúmeros, aliados aos dados sobreescolaridade e sexo, reflet<strong>em</strong> o fato deOs questionários do JustiçaCidadã apresentavam a possibilidadede que o atendido assinalasse a opção“do lar” <strong>em</strong> relação a <strong>em</strong>prego. Ocorreque essa opção pode ser consideradacomo “des<strong>em</strong>pregado”, uma vez que oindivíduo não aufere renda. O mesmoprobl<strong>em</strong>a ocorre com as opções de“autônomo” e “serviços eventuais” que,na prática, <strong>em</strong> Recife, resultam nomesmo probl<strong>em</strong>a: renda eventual. Ésignificativo o número de atendidosque responderam que sua situação de<strong>em</strong>prego é “do lar” (150 pessoas) e“des<strong>em</strong>pregado” (151 pessoas). Taisque, nas camadas mais pobres, aindaé comum que as mulheres nãotrabalh<strong>em</strong> e fiqu<strong>em</strong> com as tarefasdomésticas. Sendo assim, quandoconsideramos o número de pessoass<strong>em</strong> <strong>em</strong>prego ou aquelas cujacondição de trabalho não propicia umarenda regular, t<strong>em</strong>os que 73% dosatendidos pelos serviços <strong>em</strong> causa seencontram nessa situação, o que,mais uma vez, aponta para aimportância de se considerar as áreasde alta vulnerabilidade social comoparâmetro para melhoria da prestaçãodos serviços de interesse social.


170Tabela 3 - Distribuição dos atendimentos do Justiça Cidadã porsituação de <strong>em</strong>pregoSituação de <strong>em</strong>pregoNúmero de atendidos por núcleoCaxangá Pina Ibura Total Total (%)Des<strong>em</strong>pregado 53 64 34 151 25,5Empregado 48 40 44 132 22,3Do lar 38 17 95 150 25,4Autônomo 25 20 20 65 11,0Serviços eventuais 24 6 37 67 11,3Aposentado 3 8 3 14 2,4Outras 0 2 0 2 0,3Não informado 3 2 2 7 1,24.4 Renda41% dos atendidos e 39% delesaufer<strong>em</strong> até um salário mínimoOs dados sobre renda reflet<strong>em</strong>a situação de <strong>em</strong>prego dosent<strong>revista</strong>dos e justificam que aprocura pelos serviços do JustiçaCidadã seja, predominant<strong>em</strong>ente, abusca por pensão alimentícia.mensal. Trata-se de condições muitodifíceis de vida que implicam poucoconhecimento sobre direitos, b<strong>em</strong>como grande dificuldade dedeslocamento até os núcleos deatendimento.Informaram não auferir renda algumaTabela 4 - Distribuição dos atendimentos do Justiça Cidadã porfaixa de rendaRendaNúmero de atendidos por núcleoCaxangá Pina Ibura Total Total (%)S<strong>em</strong> renda 80 37 125 242 40,9Até 1/2 salário 46 35 43 124 21,0Até 1 salário 40 19 46 105 17,8Até 2 salários 10 12 14 36 6,1Até 3 salários 5 3 4 12 2,0Mais de 3 salários 4 1 3 8 1,4Não informada 12 51 0 63 10,7


1715 DISTRIBUIÇÃO DOS NÚCLEOS EÁREAS DE ALTAVULNERABILIDADE SOCIALUma vez verificado o perfil dosatendidos pelo Projeto Justiça Cidadãe conhecidas as áreas de altavulnerabilidade social do Recife,elaboramos o Mapa 1 que revela arelação entre os núcleos deatendimento e a distribuição espacialdas populações mais vulneráveis. Omapa indica os bairros de localizaçãodos três núcleos e o número deatendimentos(questionárioscontabilizados): o da Caxangá(localizado no bairro da Iputinga), onúcleo do bairro do Pina e o do bairrodo Ibura.Comomencionamosanteriormente, o núcleo do Ibura foi oque realizou o maior número deatendimentos <strong>em</strong> 2008, o queacreditamos estar diretamenterelacionado com sua localização:próxima a uma grande área de altavulnerabilidade da cidade (porçãosudoeste do Recife: bairros do Ibura,Cohab e Jordão). O mapa permiteidentificarmos, ainda, outras áreas dealta vulnerabilidade, com destaquepara a grande área no norte doterritório recifense que corresponde àsáreas de morros. As duas áreas(sudoeste e norte) são de ocupaçãomais recente e se caracterizam porter<strong>em</strong> sido ocupadas principalmentepor populações pobres expulsas dasáreas centrais e também por aquelasque migraram de áreas rurais durantea segunda metade do século XX.Figura 1 – Mapa de atendimentos dosnúcleos do Projeto JustiçaCidadã e áreas de altavulnerabilidade social, Recife,20085.1 Núcleo Caxangá


172O Núcleo Caxangá localiza-sena Avenida Caxangá (Figuras 2 e 3).Uma vez que não há restrições deatendimento <strong>em</strong> razão do bairro deorig<strong>em</strong> das pessoas que procuram oserviço, há, portanto, uma grandevariedade nesse aspecto. Apesar dadiversidade, é significativo o númerode atendidos residentes nos bairrosmais próximos ao núcleo (Figura 2). AIputinga (bairro que sedia o núcleo)responde por 83 pessoas, o queequivale a 42% dos atendimentos donúcleo. Além deste, os bairros daVárzea e do Cordeiro (também maispróximos ao núcleo e cortados pelaAvenida Caxangá) juntos respond<strong>em</strong>por 46 atendimentos (22% do total).Fica evidente que há umaconcentração dos atendimentos (68%)correspondente às pessoas residentesnos bairros mais próximos, o queindica limitação no alcance das açõesdo núcleo.Figura 2 – Foto do prédio do núcleo doJustiça Cidadã da CaxangáWillian Alcântara, 5 out. 2009Figura 3 – Foto do trecho da AvenidaCaxangá <strong>em</strong> frente ao núcleo do JustiçaCidadãWillian Alcântara, 5 out. 2009


173Figura 4 – Mapa representativo da orig<strong>em</strong> dos atendidos pelo Projeto Justiça Cidadã noNúcleo Caxangá, Recife, 2008Quando comparamos o mapada Figura 4 com o mapa da Figura 1,perceb<strong>em</strong>os ainda que os bairros maisatendidos pelo Núcleo Caxangá(Iputinga e Várzea) têm significativasáreas de alta vulnerabilidade social.Os d<strong>em</strong>ais bairros, que respond<strong>em</strong>,individualmente, por menor número deatendimentos, revelam tambémalgumas concentrações de altavulnerabilidade. Pela análise do perfilsocioeconômico dos atendidos peloprograma, verificamos que a rendamuito baixa dificulta o deslocamento, oque contribui para que haja apredominância dos bairros maispróximos ao núcleo no número deatendimentos. Esse indicativo conduzà necessidade de pensar soluçõespara que o atendimento possa chegara todos que dele necessitam.Perceb<strong>em</strong>os que os dadosreforçam o argumento de que aspessoas mais necessitadas dosserviços <strong>em</strong> questão têm seu local d<strong>em</strong>oradia associado às áreas de altavulnerabilidade. Também se tornaevidente que essas populações têmdificuldade de chegar aos núcleos,ainda que eles sejam b<strong>em</strong> localizados<strong>em</strong> relação às vias de circulação detransportes públicos. Essa constatação


174se apresenta como um importantesubsídio, possibilitando umplanejamento mais eficiente por partedos gestores do Justiça Cidadã, nosentido de torná-lo, de fato, acessívela todos os cidadãos. Se osnecessitados não tiver<strong>em</strong> condiçõesde chegar aos núcleos deatendimento, o serviço t<strong>em</strong> de chegaraté eles de algum modo.5.2 Núcleo do IburaFigura 5 – Foto do núcleo do JustiçaCidadãdo IburaWillian Alcântara, 5 out. 2009O núcleo do Ibura localiza-se naAvenida Dois Rios (Figuras 3 e 4),importante eixo de circulação do bairrodo Ibura. As principais linhas de ônibusque realizam itinerário que liga osbairros da Cohab e do Ibura ao centrodo Recife passam pela referidaavenida, o que contribui para que onúcleo tenha uma localizaçãoestratégica. Esse núcleo apresentauma significativa vantag<strong>em</strong> deproximidade: está localizado no centroda grande área de alta vulnerabilidadesocial, representada pelos bairros doIbura, Cohab e Jordão.Figura 6 – Foto do trecho da AvenidaDois Rios <strong>em</strong> frente ao núcleo do JustiçaCidadãWillian Alcântara, 5 out. 2009


175Pela análise dos 235questionários, o que observamos parao Núcleo Caxangá é válido, e de formamais evidente, também para o núcleodo Ibura: há maior concentração nosbairros mais próximos ao núcleo <strong>em</strong>relação à orig<strong>em</strong> dos atendidos. Essaconcentração ratifica o argumento deque o maior número de atendidosresidentes nos bairros mais próximosestá fort<strong>em</strong>ente relacionado com abaixa renda, consequent<strong>em</strong>ente comas dificuldades <strong>em</strong> custos dotransporte público.Na análise da distribuição dosatendidos do núcleo do Ibura <strong>em</strong>relação ao seu bairro de orig<strong>em</strong> (mapada Figura 7), a relação com as áreasde alta vulnerabilidade social se tornamais evidente. O mapa revela essacorrespondência: Cohab, Ibura eJordão respond<strong>em</strong> por 85% dosatendimentos do núcleo do Ibura. Obairro da Cohab responde por 108atendimentos (46%), o Ibura é o bairrode orig<strong>em</strong> de 76 pessoas (32% dototal), e o Jordão contribui com 16atendimentos (7%). Essaconcentração tão significativa revela anecessidade de que os serviços deacesso à justiça repens<strong>em</strong> suasestratégias territoriais, principalmente<strong>em</strong> relação aos grandesadensamentos de áreas de altavulnerabilidade social.Figura 7 – Mapa representativo da orig<strong>em</strong> dos atendidos pelo Projeto Justiça Cidadã nonúcleo do Ibura, Recife, 2008


1765.3 Núcleo do PinaO núcleo do Pina situa-se naAvenida Herculano Bandeira (Figuras8 e 9), importante via de circulação doRecife. Os ônibus que faz<strong>em</strong> oitinerário ligando o bairro de BoaViag<strong>em</strong> ao centro do Recife passampela referida avenida quando nosentido do bairro. No sentido centro,tais linhas passam pela AvenidaEngenheiro Antônio de Goes (paralelaà Herculano Bandeira). Apesar disso,o bairro de Boa Viag<strong>em</strong> t<strong>em</strong> porcaracterística principal ser residênciade população de classe média e alta,apresentando poucas áreas de altavulnerabilidade social. Sendo assim,acreditamos que a localização dessenúcleo <strong>em</strong> relação à circulação detransportes públicos não se apresentacomo vantag<strong>em</strong> para as pessoas queresid<strong>em</strong> mais distante.Figura 9 – Foto do trecho da AvenidaHerculano Bandeira <strong>em</strong> frente ao núcleodo Justiça CidadãWillian Alcântara, 5 out. 2009Por outro lado, o mapa daFigura 10 indica que Pina e BrasíliaTeimosa (os bairros mais próximos donúcleo) são responsáveis pelo maiornúmero dos atendimentos. Enquanto oPina apresenta 76 atendimentos(47,8% do total), Brasília Teimosaresponde por 32 atendidos (20,1% dototal). Desse modo, os dois bairrosjuntos representam, aproximadamente,68% de todos os atendimentosrealizados no núcleo, revelando oalcance espacialmente limitado dasações, de maneira s<strong>em</strong>elhante aosd<strong>em</strong>ais núcleos. Perceb<strong>em</strong>os tambémser a baixa renda o principal fatorresponsável por essa maiorconcentração, o que revela a


177importância da proximidade espacialdo serviço para essas pessoas.núcleos de atendimento, ainda queesses objetos tenham localizaçãoestratégica, necessitando, assim, queo atendimento esteja realmentepróximo delas.Considerações FinaisFigura 10 – Mapa representativo daorig<strong>em</strong> dos atendidos pelo Projeto JustiçaCidadã nonúcleo do Pina, Recife,2008Esse mapa, quando comparadocom o mapa da Figura 1, revela arelação entre os bairros que maisd<strong>em</strong>andam os serviços e as áreas dealta vulnerabilidade social. Pina eBrasília Teimosa são bairros comessas características e também porisso são responsáveis por mais dedois terços dos atendimentos nonúcleo do Pina. Essa relaçãoevidencia que há uma granded<strong>em</strong>anda por serviços de acesso àjustiça, e as pessoas não dispõ<strong>em</strong> derecursos para chegar<strong>em</strong> até osAo iniciarmos este trabalho,partimos da hipótese de que adistribuição do público-alvo dosserviços de promoção do acesso àjustiça estava diretamente relacionadacom as populações de altavulnerabilidade social. O objetivo era,então, verificar a veracidade dahipótese e, a partir daí, analisar oProjeto Justiça Cidadã <strong>em</strong> função dadistribuição dos seus fixos peloterritório da cidade e do uso doterritório do Recife <strong>em</strong> consonânciacom os territórios mais concentradoresde pessoas enquadradas no perfil dealta vulnerabilidade.A análise que realizamospermitiu d<strong>em</strong>onstrar que o perfil dopúblico que busca os serviços deacesso à justiça está diretamenterelacionado com o perfil definido porBezerra (2008) para as áreas de altavulnerabilidade social. Os dados doJustiça Cidadã revelaram um público<strong>em</strong> condições de vida muito baixas eresidente <strong>em</strong> bairros de alta


178vulnerabilidade social. Além disso,verificamos que a maior parte dosatendidos pelo Justiça Cidadã reside<strong>em</strong> bairros muito próximos aosnúcleos, o que indica que essaspessoas, provavelmente, beneficiamsedesse fator. Tais dados revelam aimportância da proximidade espacialpara a promoção do acesso à justiçaaos mais necessitados. Há <strong>em</strong> Recifeuma enorme d<strong>em</strong>anda por essesserviços que, conformed<strong>em</strong>onstramos, relaciona-se com asáreas de alta vulnerabilidade. Talconhecimento permite aos gestoresdos serviços organizar<strong>em</strong> melhor suasações.Verificada a hipótese, partimospara a análise das ações do ProjetoJustiça Cidadã, procurandocompreender suas possíveisestratégias territoriais, b<strong>em</strong> como oalcance de suas ações <strong>em</strong>consonância com a distribuiçãoespacial das populações maisvulneráveis. Descobrimos pontospositivos na prestação dos serviços,entretanto também algumas possíveiscorreções. Os serviços <strong>em</strong> questãoainda estão aquém da granded<strong>em</strong>anda e muitas melhoriasnecessitam ser feitas.Vale l<strong>em</strong>brar que esse é umserviço de iniciativa da Prefeitura doRecife e, nesse sentido, pod<strong>em</strong>osquestionar o porquê de não obedeceraos critérios de territorialização dosd<strong>em</strong>ais serviços municipais. Aadministração municipal considera,para fins de execução de políticaspúblicas, a divisão do território dacidade <strong>em</strong> seis Regiões Político-Administrativas (RPAs). A Secretariade Saúde do município, por ex<strong>em</strong>plo,realiza suas ações de acordo comessa divisão. Entretanto, o JustiçaCidadã não t<strong>em</strong> uma estratégia queleve <strong>em</strong> conta uma divisão territorialque obedeça a algum critério dedelimitação dos territórios que serãoatendidos por núcleo.Essa ausência de definição,aliada ao pouco conhecimento sobreas populações que são o público-alvo,limita o alcance das ações do Projeto.Por outro lado, dev<strong>em</strong>os considerarque os cinco núcleos iniciais, Totó,Beberibe, Caxangá, Pina e Ibura,apresentavam uma dispersãosignificativa, assim como estavammais próximos das grandes áreas dealta vulnerabilidade social,principalmente os núcleos de Beberibee do Ibura.A análise da atual organização<strong>em</strong> três núcleos (Caxangá, Pina eIbura) d<strong>em</strong>onstra que os atendimentosestão relacionados com os bairros de


179maior vulnerabilidade e mais próximosdos núcleos. Também dev<strong>em</strong>osconsiderar que os núcleos Caxangá ePina, por se localizar<strong>em</strong> próximos anúcleos da Defensoria Pública,divid<strong>em</strong> com esses a d<strong>em</strong>anda daspopulações mais pobres do entorno.Sendo assim, os núcleos da Caxangáe do Pina realizam menosatendimentos <strong>em</strong> relação ao núcleo doIbura, que se localiza numa grandeárea de alta vulnerabilidade onde nãohá núcleo da Defensoria próximo. Issod<strong>em</strong>onstra a relação entre o públicoalvoe a grande d<strong>em</strong>andarepresentada pelas áreas de altavulnerabilidade. Sendo assim, parecenosinjustificável que o núcleo deBeberibe (localizado na porção nortedo território do Recife) não esteja maisfuncionando, uma vez que, como jádiss<strong>em</strong>os, trata-se de uma importanteárea de d<strong>em</strong>anda por esses serviços.Também não nos parecerazoável que não exista umaestratégia territorial que responda àsd<strong>em</strong>andas das áreas de altavulnerabilidade social e que seja,desse modo, capaz de tornar o serviçomais ativo. Em função dos resultadosdesta pesquisa, também pareceinconcebível que não haja um núcleodo Justiça Cidadã para atender aosbairros da zona norte, maior área dealta vulnerabilidade social do Recife.Constitucionalmente, cabe àDefensoria Pública a assistênciajudiciária a todos os necessitados,entretanto essa instituição não v<strong>em</strong>dando conta da d<strong>em</strong>anda existente.Desse modo, faz-se necessário osurgimento de ações como a doProjeto Justiça Cidadã que, apesardas limitações, promove um serviçoque permite o acesso das pessoasmais pobres a alguns direitosfundamentais. Esse projeto promovesoluções extrajudiciais mais rápidaspara probl<strong>em</strong>as que dificilmenteseriam solucionados por outros meios,considerando a atual situação dosserviços do sist<strong>em</strong>a de justiça.As informações obtidas comeste trabalho pod<strong>em</strong> ser úteis aoProjeto Justiça Cidadã uma vez qued<strong>em</strong>onstra os resultados de suaatuação <strong>em</strong> termos de alcanceespacial, b<strong>em</strong> como sua importânciapara aquelas pessoas que não têmacesso ao sist<strong>em</strong>a de justiça.Esperamos que tais consideraçõesofereçam uma relevante contribuiçãopara que a Prefeitura perceba agrande importância do Justiça Cidadãe, por conseguinte, possa aperfeiçoarsuas ações.


180ReferênciasBEZERRA, Anselmo CésarVasconcelos. Subsídios à gestãoterritorial do programa de saúdeambiental: contribuição da geografia àconstrução de mapas operacionaispara territorialização dos agentes desaúde ambiental no Recife-PE.Dissertação (Programa de Pós-Graduação de Geografia) – Centro deFilosofia e Ciências Humanas,Universidade Federal de Pernambuco,Recife, 2008.BRASIL. Constituição (1988).Constituição da República Federativado Brasil de 5 de outubro de 1988.Organização do texto: Alexandre deMoraes. 28. ed. São Paulo: Atlas,2007. (Série Manuais de LegislaçãoAtlas).GAJOP. Relatório 2003: ProjetoJustiça Cidadã. Recife: 2004.Disponível<strong>em</strong>:. Acesso <strong>em</strong>: 19dez. 2007.______. Relatório 2005: ProjetoJustiça Cidadã. Recife: 2006, jan.Disponível<strong>em</strong>:. Acesso <strong>em</strong>: 19dez. 2007.NALINI, José Renato. Novasperspectivas no acesso à justiça.Revista CEJ, v. , n. 3, p. 61-69,set./dez. 2007. Disponível <strong>em</strong>:. Acesso <strong>em</strong>: 19mar. 2011.PEREIRA, Diana Melo; ROCHA,Felipe José Nunes; LOUREIRO,Nathália Freitas. O diálogo entre acultura jurídica e a popular através daassessoria jurídica universitária: oprograma de pesquisa e extensãouniversitária NAJUP Negro Cosme.COLÓQUIO INTERNACIONALPAULO FREIRE, 5., 2005, Recife.Anais... Recife, 2005.RAMOS, Glauco Gumerato. Realidadee perspectivas da assistência jurídicaaos necessitados no Brasil. In: ______et al. Acesso à justiça e cidadania. SãoPaulo: Fundação Konrad Adenauer,2000. p. 31-51.SANTOS, Boaventura de Sousa. Pelamão de Alice: o social e o político napós-modernidade. 12. ed. São Paulo:Cortez, 2008.SANTOS, Milton. O espaço docidadão. 7. ed. São Paulo: Ed. daUniversidade de São Paulo, 2007.______. Técnica, espaço, t<strong>em</strong>po,globalização e meio técnico-científicoinformacional. São Paulo: Hucitec,1994.Bibliografia recomendadaALCÂNTARA, Willian Magalhães de.O acesso a serviços de justiça nacidade do Recife: uma análisesocioespacial da atuação daDefensoria Pública e do ProjetoJustiça Cidadã. 2010. Dissertação(Mestrado <strong>em</strong> Geografia) – Centro deFilosofia e Ciências Humanas,Universidade Federal de Pernambuco,Recife, 2010.GAJOP. Planejamento estratégico dosnúcleos descentralizados daassistência judiciária do município doRecife. In: ______. Relatório anual deatividades 2002. Recife: 2002.Disponível<strong>em</strong>:


181. Acesso <strong>em</strong>: 19 dez. 2007.caCidada/rel2005.<strong>pdf</strong>>. Acesso <strong>em</strong>: 19dez. 2007.______. Relatório 2004: ProjetoJustiça Cidadã. Recife: 2005.Disponível<strong>em</strong>:


182A mediação como princípio e aconcretização do acesso à justiçaGustavo Henrique Baptista Andrade Há pelo menos quinze anos, oestudo da mediação v<strong>em</strong> crescendode maneira vertiginosa, ocupandoatualmente a pauta de diversasdiscussões acadêmicas e chamando aatenção do poder público.Em congresso realizado <strong>em</strong>Brasília-DF, de 3 a 5 de março de2008, a professora da Universidade deGeorgetown <strong>em</strong> Washington, DC,palestrante norte-americana CarrieMenkel-Meadow (2008), definiu amediação como o próximo estágio dodesenvolvimento humano. Além doimpacto, tal declaração traz consigo anítida convicção da necessidade deser desenvolvida uma cultura de pazapta a criar um ambiente propício àsua diss<strong>em</strong>inação.O caminho jurídico para oalcance desse objetivo passa,indubitavelmente,pelaMestre <strong>em</strong> Direito Civil pela UniversidadeFederal de Pernambuco; especialista <strong>em</strong>Direito Privado pela Escola da Magistraturade Pernambuco; professor da FaculdadeSalesiana do Nordeste; procurador judicialdo Município do Recife.constitucionalidade do instituto damediação, mas não somente por isso.É possível caracterizar a mediaçãocomo um princípio, entendido <strong>aqui</strong>como norma de conduta.No ordenamento brasileiro pós-1988, uma das transformações maissignificativas foi o potencial acesso docidadão ao Poder Judiciário na buscapela efetividade da justiça.De fato, após duas décadas deautoritarismo, quando parcos foram osinvestimentos <strong>em</strong> mecanismos ded<strong>em</strong>ocratização na relação entre ocidadão e os organismos de poder, aConstituição de 1988 fez renascer oexercício da cidadania, e surgir, porconsequência, forte expectativa nasociedade de que o Poder Judiciárioteria solução para todas as mazelassociais, todos os probl<strong>em</strong>asenfrentados pela população.Essa expectativa traduziu-se<strong>em</strong> uma incessante e progressivabusca pelo acesso formal ao PoderJudiciário.No entanto, fatores ligados àausência do Estado brasileiro <strong>em</strong>áreas fundamentais como educação,saúde e segurança, à difícil percepção


183do cidadão acerca de seus direitos e àquase inexistente participação social,além do abismo entre as classessociais, ainda a massificação doconsumo, conjuntamente vêmcolaborando para uma imensurávelconcentração de d<strong>em</strong>andas sob aexclusiva tutela estatal.Iniciativas do ConselhoNacional de Justiça (CNJ) vêmpromovendo uma radiografia dofuncionamento do Poder Judiciário.Um ex<strong>em</strong>plo é o Programa Justiça <strong>em</strong>Números, consubstanciado <strong>em</strong> umsist<strong>em</strong>a que funciona por meio dacoleta e da sist<strong>em</strong>atização de dadosestatísticos e do cálculo deindicadores capazes de retratar odes<strong>em</strong>penho dos tribunais do país.Esses dados envolv<strong>em</strong>, entre outrascategorias, o grau de litigiosidade, acarga de trabalho, o acesso à justiça eo perfil das d<strong>em</strong>andas (ENTENDA...,2010).Desde 2005, <strong>em</strong> cumprimentoao disposto <strong>em</strong> preceito constitucional(artigo 203-B, § 4.°, VII) acrescentadopela Emenda de n.° 45, o CNJ elaborarelatórios anuais com a descrição desuas atividades, apresentação eanálise da situação do PoderJudiciário, além de recomendaçõescom o objetivo de aprimorar a atuaçãoe efetividade desse poder.O relatório de 2008 indica que ataxa média de congestionamento daJustiça dos Estados naquele ano foide 74%, chegando a 80,5%, se for<strong>em</strong>considerados apenas os processosque tramitam no 1.° grau de jurisdição,instância que concentra 79% de todosos processos da Justiça Estadual. Oindicador de carga de trabalho, porsua vez, mostra que cada magistradoda Justiça dos Estados contava comquase 5 mil processos <strong>em</strong> tramitaçãodurante o ano, número que aumentapara 9 mil <strong>em</strong> se tratando de JuizadosEspeciais, paradoxalmente criadoscom a finalidade de acelerar aprestação jurisdicional (CONSELHONACIONAL DE JUSTIÇA, 2009).Outro fator que contribuienorm<strong>em</strong>ente para a dificuldade de sebuscar caminhos que respondam, d<strong>em</strong>aneira mais profunda e perene, àpacificação dos conflitos é a existênciade uma cultura “adversarial” para acompreensão e a solução dessesconflitos.A formação do próprio jurista écomprometida com essa culturaadversarial, estimulando-se nasbancas universitárias a concepção daspartes de uma pretensão resistidaapenas como ganhador ou perdedor,autor ou réu, etc.


184Há igualmente uma visãodeturpada do acesso à justiça como osimples protocolar de petições edocumentos nos balcões do Judiciário;e, por óbvio, o acesso à justiça éd<strong>em</strong>asiado abrangente, restandoconstatada a ineficiência do modelo deprestação jurisdicional hoje oferecida,<strong>em</strong> que o elevado custo e umaestrutura deficiente, entre outrascausas relevantes, compromet<strong>em</strong> arapidez na resolução das lides.Além disso, a preocupação como conflito deve ocorrer <strong>em</strong> momentoanterior à propositura de uma açãojudicial. Para tanto, a prática damediação representa também um forteinstrumento de exercício da cidadaniae uma promissora expectativa parapromoção do diálogo e aautodeterminação dos envolvidos <strong>em</strong>eventual conflito.A propósito, Carla CristinaCampos de Moura sugere odesenvolvimento de projetoseducacionais para a consolidação damediação como prática no Brasilcont<strong>em</strong>porâneo:Entretanto, para sua consolidaçãocomo realidade, ainda faz-seimperioso o desenvolvimento deprojetos educacionais d<strong>em</strong>ocráticos <strong>em</strong>ultidisciplinares, voltados para aspráticas da promoção da cidadaniacomo caminho para a ‘construção’ deindivíduos que consigam avaliarcriticamente a conjuntura econômicopolítico-socialna qual estão inseridose, destarte, contribuir para areestruturação da ord<strong>em</strong> social e daconsciência d<strong>em</strong>ocrática. (MOURA,2007, p. 117).Essa prática t<strong>em</strong> forte presençano Canadá, onde os educadoresestimulam o exercício da mediaçãodesde as escolas do ensinofundamental.Outros países têm d<strong>em</strong>onstradointeresse na mediação escolar. É ocaso de Portugal, onde se defende aadoção de planos de educação quevis<strong>em</strong> não somente a resolução deconflitos no ambiente escolar, mastambém sua prevenção (ESCOLAS...,2008).O fenômeno social conhecidointernacionalmente como bullying, quecorresponde às agressões sofridas porcrianças e adolescentes na escola,serve de alarme para oaprofundamento da questão. Pesquisarealizada <strong>em</strong> 2002, pela AssociaçãoBrasileira Multiprofissional de Proteçãoà Infância e à Adolescência (Abrapia),divulgada no Portal do Governo doEstado do Rio de Janeiro, revela queesse distúrbio afeta a vida de 40,5%da população infantil carioca(BULLYING ..., 2009.A mediação como princípiojurídico figura no ordenamentobrasileiro, ainda que de maneira


185implícita, desde o advento da ord<strong>em</strong>constitucional estabelecida <strong>em</strong> 1988.Isso é depreendido logo quandoda leitura do preâmbulo daConstituição, no qual é proclamada ainstituição de um Estado d<strong>em</strong>ocráticodestinado a assegurar o exercício dosdireitos sociais e individuais, aliberdade, a segurança, o b<strong>em</strong>-estar, odesenvolvimento, a igualdade e ajustiça como valores supr<strong>em</strong>os de umasociedade fraterna, pluralista e s<strong>em</strong>preconceitos, fundada na harmoniasocial e comprometida, na ord<strong>em</strong>interna e internacional, com a soluçãopacífica das controvérsias.Verifica-se, de imediato, já queinsculpida com destaque no exórdio dotexto legal, a opção do legisladorconstituinte pela formação de umEstado de direito pautado ecompromissado, entre outros valores,com a pacificação de conflitos.Tanto é que, na ord<strong>em</strong>internacional, o princípio éexpressamente manifestado no incisoVII do artigo 4.° da Constituição daRepública: “Art. 4.°- A RepúblicaFederativa do Brasil rege-se nas suasrelações internacionais pelosseguintes princípios: [....] VII - soluçãopacífica dos conflitos; [....].” (BRASIL,2010).No entanto, no que concerne àord<strong>em</strong> interna, a orientação contida notexto preambular é clara no sentido deque a sociedade que se quer construirdeve buscar continuamente a soluçãopacífica das controvérsias de forma afazer valer seu caráter fraterno,pluralista e s<strong>em</strong> preconceitos, b<strong>em</strong>como os valores supr<strong>em</strong>os aliindicados.Nessa busca, nesse propósito,está incluso implicitamente, como sepretende d<strong>em</strong>onstrar, o princípio damediação.Platão, já <strong>em</strong> suas leis, defendea legislação como princípio educativopara torná-la seu instrumento. Paratanto, utiliza-se do preâmbulo das leis,a que dedica uma atenção especial.É por meio dos preâmbulos quePlatão exige que não se formul<strong>em</strong>somente preceitos, mas que seinduzam os homens a uma açãocorreta. A legislação deve encarnartudo <strong>aqui</strong>lo que se refira e brote da“Paidéia”. 1 Para o filósofo grego, todaa pesquisa ulterior deve orientar-sepelo espírito contido no preâmbulo dalei, <strong>aqui</strong> entendido como todas asconsiderações anteriores à autêntica1 A expressão, derivada da palavra arete (quepode ser traduzida como o equivalente avirtude) traz o significado do ideal deeducação e de cultura na Grécia antiga (cf.JAEGER, 2003).


186legislação, o texto que irá discorrersobre cargos públicos e sobre aestrutura política fundamental doEstado (JAEGER, 2003, p. 1.345).Peter Häberle (2003) alude àimportância do preâmbulo dasConstituições, entendendo que eleexerce a função de “ponte no t<strong>em</strong>po”,já que seus el<strong>em</strong>entos são expressõesda dimensão t<strong>em</strong>poral. O preâmbulopode invocar o passado de maneiranegativa ou positiva, sejarepresentando uma rejeição a umpassado determinado ou marcando avolta de certas tradições e períodos;pode referir-se ao presente naconsecução de desejos que setornaram realidade; ou pode, ainda,projetar-se rumo ao futuro,ex<strong>em</strong>plificando nesse último caso:O preâmbulo introduz um pedaço dafrutífera tensão entre o desejo e arealidade na Constituição (e napolítica), como se pode comprovartambém <strong>em</strong> outras partes dos textosconstitucionais, por ex<strong>em</strong>plo, nosmandamentos constitucionais. Comfreqüência, um povo t<strong>em</strong> que terpaciência com vistas aos desejos eesperanças dos preâmbulos. Umex<strong>em</strong>plo feliz é o do preâmbulo da LFde 1949 <strong>em</strong> relação a reunificação daAl<strong>em</strong>anha (1990): é, ao mesmot<strong>em</strong>po, amostra de uma históriaexitosa da Lei Fundamental al<strong>em</strong>ã.(HÄBERLE , 2003, p. 276-277,tradução livre). 22 Tradução livre de: “El preâmbulo introduceun pedazo de la fructífera tensión entredeseo y realidad en la Constitución (y lapolítica), como se puede comprobar tambiénPara Häberle, a característicado conteúdo dos preâmbulos é aformulação de posturas valorativas,ideais, convicções, motivos, isto é, aprópria imag<strong>em</strong> do poder constituinte.O autor considera o preâmbulo comouma Constituição da Constituição(HÄBERLE, 2003).A força normativa dopreâmbulo, no entanto, t<strong>em</strong>despertado debates na doutrina, quedispõe hoje de três correntes depensamento: a tese da irrelevânciajurídica, segundo a qual o preâmbulonão se situa no domínio do direito,mas da política ou da história; a teseda eficácia idêntica a de quaisquerdisposições constitucionais, pela qualo preâmbulo v<strong>em</strong> a ser também umconjunto de preceitos; e a tese darelevância jurídica específica ouindireta, a qual preceitua que opreâmbulo participa dascaracterísticas jurídicas daConstituição, mas s<strong>em</strong> se confundircom o articulado (MIRANDA apuden otras partes de los textosconstitucionales, por ej<strong>em</strong>plo, en losmandatos constitucionales. Con frecuenciaun pueblo tiene que tener paciencia convistas a los deseos y esperanzas de lospreámbulos. Un ej<strong>em</strong>plo afortunado es el delpreámbulo de la LF de 1949 en relación conla reunificación al<strong>em</strong>ana (1990): es al mismoti<strong>em</strong>po muestra de una historia exitosa de laLey Fundamental al<strong>em</strong>ana.”


187MENDES, COELHO; BRANCO, 2009,p. 31).Os que compreend<strong>em</strong> opreâmbulo como parte integrante dotexto constitucional afirmam que adistinção entre ambos reside apenasna eficácia ou no papel quedes<strong>em</strong>penham. O preâmbulo é textoautonomamente aplicável, separadoda Constituição instrumental pormotivos técnicos. Não é um conjuntode preceitos, mas um conjunto deprincípios que se projetam sobre ospreceitos e sobre os restantes setoresdo ordenamento (MIRANDA apudMENDES, COELHO; BRANCO, 2009,p. 32).Canotilho e Moreira (2007, v. 1,p. 181), para qu<strong>em</strong> o preâmbulo não éjuridicamente irrelevante, tendo, nocaso da Constituição de Portugal,valor jurídico subordinado ao própriotexto constitucional, l<strong>em</strong>bram que opreâmbulo da Constituição francesat<strong>em</strong> força normativa já que vinculadoaos princípios da Declaração dosDireitos do Hom<strong>em</strong> e do Cidadão de1789. Para Canotilho (2003, p. 1.135),“vários textos fora do documentoconstitucional são, assim, inclusos nocorpus constitucional”.O Supr<strong>em</strong>o Tribunal Federal(STF), entretanto, firmou entendimentode que o preâmbulo não é preceitocentral da Constituição, por isso,carece de força normativa. Poucos, noentanto, foram os casos <strong>em</strong> que ot<strong>em</strong>a foi enfrentado, a ex<strong>em</strong>plo daAção Direta de Inconstitucionalidadepromovida pelo Partido Social Liberal(PSL) <strong>em</strong> face da omissão daexpressão “sob a proteção de Deus”no preâmbulo da Constituição doEstado do Acre, cuja <strong>em</strong>enta abaixose transcreve:EMENTA: CONSTITUCIONAL.CONSTITUIÇÃO: PREÂMBULO. NORMASCENTRAIS. Constituição do Acre.I. – Normas centrais da ConstituiçãoFederal: essas normas são dereprodução obrigatória na Constituiçãodo Estado-, mesmo porque,reproduzidas ou não, incidirão sobre aord<strong>em</strong> local. Reclamações 370-MT e383-SP (RTJ 147/404).II. – Preâmbulo da Constituição: nãoconstitui norma central. Invocação daproteção de Deus: não se trata denorma de reprodução obrigatória naConstituição estadual, não tendo forçanormativa.III. – Ação Direta deInconstitucionalidade julgadaimprocedente. (BRASIL, 2002).Adota-se, neste artigo, a ideiade que o preâmbulo da Constituiçãobrasileira carrega <strong>em</strong> si a direção doque se quis estabelecer com ainstituição de uma nova ord<strong>em</strong>jurídica, assim como os princípios e osinstrumentos a ser<strong>em</strong> utilizados naconsecução dessa ord<strong>em</strong> – entre osprimeiros, a solução pacífica dos


188conflitos –, o que não pode serdesprezado pelo operador do Direito.Além da inserção clara dasolução pacífica de conflitos nopreâmbulo da Constituição, háigualmente outras normas quereforçam o caráter “principiológico” damediação.Oconstitucionalismocont<strong>em</strong>porâneo, também denominadode pós-positivismo, infenso à ideia deque as normas jurídicas traz<strong>em</strong> <strong>em</strong> sium sentido único, válido para qualquersituação sobre a qual incidam, peloque caberia ao intérprete tão somenterevelar esse conteúdo preexistentes<strong>em</strong> des<strong>em</strong>penhar papel criativo naconcretização, trouxe nova concepçãopara a interpretação constitucional. Asnormas − de conteúdo aberto edependentes da realidade subjacente− não mais se prestam a dito sentidounívoco e objetivo da antiga tradiçãoexegética. Diz-se que “o relato danorma, muitas vezes, d<strong>em</strong>arca apenasuma moldura dentro da qual sedesenham diferentes possibilidadesinterpretativas”(BARROSO;BARCELLOS, 2006, p. 332).O sentido da norma será, então,determinado por meio da análise docaso concreto, dos princípios a ser<strong>em</strong>observados e dos fins a ser<strong>em</strong>realizados, tudo com vista ao resultadoda solução adequada ao probl<strong>em</strong>aposto.No dizer de Perlingieri (2002, p.72,) “a norma nunca está sozinha, masexiste e exerce a sua função unida aoordenamento e o seu significado mudacom o dinamismo do ordenamento aoqual pertence”.Com a finalidade de indicar ocaráter essencial do direito dosEstados constitucionais da atualidade,Zagrebelsky (2008) utiliza o sentido deductilidade e defende a exigência deuma dogmática jurídica “líquida” ou“fluida”, que possa conter osel<strong>em</strong>entos do direito constitucionalcont<strong>em</strong>porâneo, ainda que sejamheterogêneos, agrupando-os <strong>em</strong> umaestrutura maleável que apresentecombinações com a políticaconstitucional:Creio, portanto, que a condiçãoespiritual do t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que viv<strong>em</strong>ospoderia descrever-se como aaspiração não a um, senão aos muitosprincípios ou valores que conformam aconvivência coletiva: a liberdade dasociedade, mas também as reformassociais; a igualdade perante a lei e,portanto, a generalidade de tratojurídico, mas também a igualdade arespeito das situações e, portanto, aespecialidade das regras jurídicas; oreconhecimento dos direitos dosindivíduos, mas também dos direitosda sociedade; a valoração dascapacidades materiais e espirituaisdos indivíduos, mas também aproteção dos bens coletivos frente àforça destruidora daqueles; o rigor naaplicação da lei, mas também apiedade ante suas conseqüências


189mais rígidas; a responsabilidadeindividual na determinação da própriaexistência, mas também a intervençãocoletiva para o apoio dos mais débeis,etc. (ZAGREBELSKY, 2008, p. 16). 3Nessa nova teoriaconstitucional, que, superando ojusnaturalismo, se opõe ao positivismojurídico, os princípios conquistaramstatus de norma jurídica, <strong>em</strong>contraposição a uma dimensãomeramente axiológica, atingindo,assim, o centro do sist<strong>em</strong>a. Hoje jáestá avalizado o entendimento de queas normas jurídicas estão divididas <strong>em</strong>duas grandes categorias, as regras eos princípios.Ultrapassada a euforia inicial eo deslumbramento com os estudoslevados a efeito por Ronald Dworkin(2002) e desenvolvidos por Robert3 Tradução livre de: “Creo, por tanto, que lacondición espiritual del ti<strong>em</strong>po en quevivimos podría describirse como laaspiración no a uno, sino a los muchosprincipios o valores que conforman laconvivencia colectiva: la libertad de lasociedad, pero también las reformassociales; la igualdad ante la ley, y por tantola generalidad de trato jurídico, pero tambiénla igualdad respecto a las situaciones, y portanto la especialidad de las reglas juridicas;el reconocimiento de los derechos de losindividuos, pero también de los derechos dela sociedad; la valoración de las capacidadesmateriales y espirituales de los individuos,pero también la protección de los bienescolectivos frente a la fuerza destructora deaquéllos; el rigor en la aplicación de la ley,pero también la piedad ante susconsecuencias más rígidas; laresponsabilidad individual en ladeterminación de la propia existencia, perotambién la intervención colectiva para elapoyo a los más débiles, etc.”Alexy (2007), cuja conjugação deideias passou a representar oconhecimento convencional damatéria, inúmeros trabalhos críticosforam surgindo e a doutrina v<strong>em</strong>dedicando-se aos probl<strong>em</strong>as e àsdificuldades que vêm apresentandose.O fato é que o modelotradicional de subsunção no qual,enquadrando-se os fatos na previsãoabstrata, produz-se uma conclusão, eque foi concebido para a interpretaçãoe aplicação de regras não maisconsegue atender sozinho ao papelque hoje é reservado às normasjurídicas, <strong>em</strong> especial às normasconstitucionais, já que os juízos queformula são de fato e não de valor,faltando-lhe a função criativa dodireito.A subsunção como atividadetécnica, no entanto, ainda é de grandeajuda para boa parte dos probl<strong>em</strong>asjurídicos, porém n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre ésuficiente para algumas questões deord<strong>em</strong> constitucional, a ex<strong>em</strong>plo dacolisão de direitos fundamentais.No dizer de Barroso e Barcellos(2006, p. 339-340):[...] o sist<strong>em</strong>a jurídico ideal seconsubstancia <strong>em</strong> uma distribuiçãoequilibrada de regras e princípios, nosquais as regras des<strong>em</strong>penham o papel


190referente à segurança jurídica –previsibilidade e objetividade dascondutas – e os princípios, com suaflexibilidade, dão marg<strong>em</strong> à realizaçãoda justiça do caso concreto.De fato, difícil é crer napossibilidade de realizar o projetoconstitucional de um Estado social ed<strong>em</strong>ocrático s<strong>em</strong> lançar mão de umsist<strong>em</strong>a jurídico norteado porprincípios, como indica Zagrebelsky(2008, p. 125-126):Não resulta muito difícil compreenderque a dimensão do direito porprincípios é a mais idônea para asuperveniência de uma sociedadepluralista, cuja característica é ocontínuo reequilíbrio através detransações de valores. Provaeloqüente disso é a tendência, maisou menos conscient<strong>em</strong>ente adotadapela maior parte das jurisdiçõesconstitucionais, a conceber todoconteúdo das constituições (incluídosos direitos fundamentais) comodeclarações de valores. 4Dworkin, no que chama deataque geral ao positivismo,estabelece que os juristas debat<strong>em</strong> eraciocinam não exclusivamente <strong>em</strong>torno de regras, mas também <strong>em</strong>4 Tradução livre de: “No resulta muy difícilcomprender que la dimensión del derechopor principios es la más idónea para lasuperveniencia de una sociedad pluralista,cuya característica es el continuo reequilibrioa través de transacciones de valores. Pruebaelocuente de ello es la tendencia, más omenos conscient<strong>em</strong>ente adoptada por lamayor parte de las jurisdiccionescontitucionales, a concebir todo contenido delas Constituciones (incluidos los derechosfundamentales) como declaraciones devalores.”função de “princípios, políticas eoutros padrões”, utilizando-se dotermo princípio de forma ampla, asignificar o “conjunto de padrões quenão são regras” e do vocábulo políticapara indicar o padrão que determinaum “objetivo a ser alcançado” nocampo econômico, político e social deuma comunidade. Para o autor norteamericano,o princípio é um padrão aser observado por uma “exigência dejustiça ou equidade ou alguma outradimensão da moralidade” (DWORKIN,2002, p. 36).Na distinção entre regras eprincípios, que afirma ser de naturezalógica, Dworkin aponta o critério daorientação, que ditos padrõesoferec<strong>em</strong>, como a principal diferença,sendo a regra aplicável à maneira do“tudo ou nada” (all-or-nothing), isto é,ou a regra é válida ou é inválida, e oprincípio como uma razão que inclina<strong>em</strong> uma ou outra direção. Osprincípios teriam, assim, umadimensão que as regras não têm: adimensão do peso e da importância,devendo ser levados <strong>em</strong> conta pelasautoridades públicas. Dessa maneirades<strong>em</strong>penham papel fundamental nasdecisões judiciais, por meio dosargumentos que a sustentam(DWORKIN, 2002, p. 42).


191Na aplicação dos princípios, háde se enxergar que sua função não éapenas a de explicitar valores, mastambém, e indiretamente, a deestabelecer espécies precisas decomportamento:Os princípios institu<strong>em</strong> o dever deadotar comportamentos necessários àrealização de um estado de coisas ou,inversamente, institu<strong>em</strong> o dever deefetivação de um estado de coisas pelaadoção de comportamentos a elenecessários. Essa perspectiva deanálise evidencia que os princípiosimplicam comportamentos, ainda quepor via indireta e regressiva. Mais ainda,essa investigação permite verificar queos princípios, <strong>em</strong>bora indeterminados,não o são absolutamente. Pode atéhaver incerteza quanto ao conteúdo docomportamento a ser adotado, mas nãohá quanto à sua espécie: o que fornecessário para promover o fim édevido. (ÁVILA, 2006, p. 80).Baseado nas considerações deDworkin, Alexy tentou desenvolver umconceito mais preciso de princípios.Afirmando que as diferenças entreregras e princípios até entãoapresentadas careciam de clareza,Alexy adota a tese de que entreambos não existe apenas umadistinção gradual, mas uma “diferençaqualitativa.” Assevera, então, queprincípios são normas que detêmcomando para que “algo seja realizadona maior medida possível”,considerando as possibilidades fáticase jurídicas existentes, e que as regrassão normas que ou b<strong>em</strong> sãosatisfeitas ou não são. Reserva o autoral<strong>em</strong>ão para os princípios o cunho de“mandamentos de otimização”(mandatos de optimización) (ALEXY,2007, p. 67-68).Utilizando-se da jurisprudênciado Tribunal Constitucional Al<strong>em</strong>ão,Alexy d<strong>em</strong>onstra não só a tensãoexistente entre princípios no caso decolisão entre eles, mas também queesse probl<strong>em</strong>a deve ser resolvido pormeio de técnica da ponderação entreos princípios colidentes.Diferent<strong>em</strong>ente do que ocorre com asregras, a solução <strong>em</strong> caso de colisãoentre princípios não se apresenta coma determinação imediata daprevalência de um princípio sobre ooutro, porém com o uso daponderação, pelo que, <strong>em</strong>determinadas circunstânciasconcretas, um desses princípiosrecebe a prevalência (ÁVILA, 2006, p.37).Zagrebelsky, por sua vez,afirma que a distinção essencial entreregras e princípios é que as primeirasdiz<strong>em</strong> o que se deve e o que não sedeve fazer, enquanto os segundosmostram uma direção que proporcionacritérios para uma “tomada deposição” diante de situaçõesconcretas, mas que, a priori, parec<strong>em</strong>indeterminadas:


192Os princípios geram atitudesfavoráveis ou contrárias, de adesão eapoio ou de dissenso e repulsa a tudoque pode estar implicado <strong>em</strong> suasalvaguarda <strong>em</strong> cada caso concreto.Posto que carec<strong>em</strong> de ‘suposto defato’, aos princípios, diferent<strong>em</strong>ente doque acontece com as regras, somentese lhes pode dar algum significadooperativo, fazendo-lhes reagir ante umcaso concreto. Seu significado nãopode ser determinado <strong>em</strong> abstrato,mas somente nos casos concretos; esó nos casos concretos se podeentender seu alcance.(ZAGREBELSKY , 2008, p. 110-111). 5Para Zagrebelsky, o “ser”iluminado pelo princípio ainda nãocontém <strong>em</strong> si “o dever ser”, a regra,mas indica ao menos a direção quedita regra deve colocar-se para nãoinfringir o valor contido no princípio:A realidade, ao se pôr <strong>em</strong> contato como princípio, se vivifica, por assim dizer,e adquire valor. Em lugar de seapresentar como matéria inerte, objetomeramente passivo de aplicação deregras, caso concreto a enquadrar nosuposto de fato normativo previsto naregra – como determina o positivismojurídico –, a realidade iluminada pelosprincípios aparece revestida dequalidades jurídicas próprias. O valorse incorpora ao fato e impõe a adoção5 Tradução livre de: “Los principios generanactitudes favorables o contrarias, deadhesión y apoyo o de disenso y repulsahacia todo lo que puede estar implicado ensu salvaguarda en cada caso concreto.Puesto que carecen de ‘supuesto de hecho’,a los principios, a diferencia de lo quesucede con las reglas, sólo se les puede daralgún significado operativo haciéndoles‘reaccionar’ ante algún caso concreto. Susignificado no puede determinarse enabstracto, sino sólo en los casos concretos, ysólo en los casos concretos se puedeentender su alcance.”de ‘tomadas de posição’ jurídicasconformes a ele (ao legislador, àjurisprudência, à administração, aosparticulares e, <strong>em</strong> geral, aosintérpretes do direito).(ZAGREBELSKY , 2008, p. 118). 6A mudança paradigmáticarepresentada pela valorização dosprincípios jurídicos no Brasil após apromulgação da Constituição de 1988,além de servir de base a umaefervescente produção doutrinária nodireito constitucional, v<strong>em</strong> sendosalientada pelos privatistas.Paulo Luiz Netto Lôbo (2009, p.67) salienta que, antes da Constituiçãode 1988, os princípios tinham eficáciameramente simbólica, apesar defigurar<strong>em</strong> expressamente no artigo 4.°da Lei de Introdução ao Código Civil,porém como fontes supletivas esubsidiárias. Isso se deu pelaresistência do individualismo jurídico edo liberalismo reinante no Brasil porquase todo o século XX, ainda que o6 Tradução livre de: “La realidad, al ponerse encontacto con el principio, se vivifica, por asídecirlo, y adquiere valor. En lugar depresentarse como materia inerte, objetomeramente pasivo de la aplicación de reglas,caso concreto a encuadrar en el supuesto dehecho normativo previsto en la regla – comorazona el positivismo jurídico –, la realidadiluminada por los principios aparecerevestida de cualidades jurídicas proprias. Elvalor se incorpora al hecho e impone laadopción de ‘tomas de posición’ jurídicaconformes com él (al legislador, a lajurisprudencia, a la administración, a losparticulares y, en general, a los intérpretesdel derecho).”


193Estado social tenha sido inauguradocom a Constituição de 1934, com oadvento da intervenção estatal nasrelações privadas, <strong>em</strong> especial naord<strong>em</strong> econômica. Respondendo aosanseios da sociedade, a Carta de1988 consolida definitivamente oEstado social no país, trazendoconsigo a consagração dos princípioscomo fontes normativas etransformando totalmente a funçãodos poderes públicos, <strong>em</strong> especial doJudiciário, que deixou de atuar comomero aplicador da lei para exerceruma atividade criadora de direitos, pormeio da concretização dessesprincípios.O novo modelo proporcionou odesenvolvimentodaconstitucionalização do Direito Civil,movimento que revolucionou o modusoperandi do Direito Privado,promovendo mudanças substanciaisque vêm contribuindo para os avançossociais.Para Lôbo (2009, p. 68), adistinção entre regras e princípiosreside <strong>em</strong> seu conteúdo s<strong>em</strong>ântico e,por consequência, pelo modo deincidência e aplicação. Assim, asregras comportariam suporte fáticohipotético mais fechado e osprincípios, necessariamente, abertos eindeterminados. No caso dosprincípios, sua incidência depende damediação concretizadora do intérprete,este orientado pela regra instrumentalda justiça do caso concreto. Já asregras, têm sua incidênciaconcretizada pela realidade da vida,confirmando-a o intérprete mediante omodo tradicional da subsunção.Assevera o autor alagoano queos princípios constitucionais pod<strong>em</strong>ser expressos ou implícitos: “Osimplícitos pod<strong>em</strong> derivar dainterpretação do sist<strong>em</strong>a constitucionaladotado ou pod<strong>em</strong> brotar dainterpretação harmonizada de normasconstitucionais específicas.” (LÔBO,2009, p. 70). Cita como ex<strong>em</strong>plo oprincípio da afetividade no Direito deFmília.O princípio da afetividade hojejá está consolidado na doutrina e najurisprudência, e corresponde ao deverjurídico oponível a pais e filhos e aosparentes entre si, <strong>em</strong> caráter definitivo,independent<strong>em</strong>ente dos sentimentosque cada qual nutra <strong>em</strong> face do outro,e aos cônjuges e companheirosenquanto durar a convivência (LÔBO,2008, p. 47-49).Assim como a afetividade, háoutros princípios que não seencontram explicitados nos textosnormativos, a ex<strong>em</strong>plo do princípio dasegurança jurídica, norma s<strong>em</strong>


194dispositivo específico que lhe dêsuporte físico.No que concerne aos valores,este artigo se filia à doutrina que osconcebe como ideais que, “quando seimpõ<strong>em</strong> e são absorvidos pelo direito,convert<strong>em</strong>-se <strong>em</strong> princípios” (LÔBO,2009, p. 70). Os valores inspiram aord<strong>em</strong> jurídica e os princípios são asua assunção <strong>em</strong> forma de preceitosjurídicos.A partir da teoria dos princípios,este artigo aproxima o leitor de umaconclusão insofismável.Resta clarificado que a soluçãopacífica dos conflitos é um“mandamento de otimização”, umadireção a indicar de que forma asregras dev<strong>em</strong> ser aplicadas. Mais: asolução pacífica dos conflitos é o nortepara uma “tomada de posição” diantede situações concretas e deve serobservada por todos como normafinalística que institui o dever deadoção de comportamentosnecessários à efetivação de um estadode coisas, qual seja, a paz social.Esses comportamentos dev<strong>em</strong>perpassar desde a impl<strong>em</strong>entação depolíticas públicas necessárias a taldesiderato, como a inserção damediação não somente nos currículosescolares desde o ensinofundamental, mas também na práticaeducacional, além de umaorganização administrativa capaz deproporcionar aos cidadãos o máximopossível de procedimentos que façamvaler o princípio <strong>em</strong> questão. Na searado Poder Legislativo, há de sepromover amplas discussões visandoà inserção da mediação <strong>em</strong> todas asinstâncias, além de umdisciplinamento específico damediação, de preferência por meio decláusulas gerais e conceitos jurídicosindeterminados, mais consentâneoscom a diversidade de formas econteúdos de seu âmbito de aplicação.Menos pela falência da justiçaenquanto instituição do que pelanecessidade mesma de reverberar oprojeto constitucional vigente, é nãosomente salutar, mas principalmenteimperiosa, a adoção de medidas quevis<strong>em</strong> desenvolver de forma definitivaa pacificação dos conflitos.Em verdade, tanto oslegisladores quanto os juízes, assimcomo também os administradores e,de resto, todos os operadores doDireito, hão de proporcionar os meiosnecessários à sua concretização,proporcionando às partes envolvidas<strong>em</strong> um conflito a possibilidade deutilizar-se da mediação como umamaneira pacífica de dissolver esseconflito.


195As normas constitucionais quereforçam a tese da mediação como umprincípio são as cláusulas dadignidade da pessoa humana e dasolidariedade.Na verdade, os princípiosfundamentais da dignidade da pessoahumana e da solidariedade densificamo princípio da mediação.A dignidade da pessoa humana,norte de todo o ordenamento jurídico,incrustado logo no inciso III do artigo1.° da Constituição como um dosfundamentos da República, é a linhaque produz todo o tecido normativosobre o qual são ornamentados osd<strong>em</strong>ais princípios.A dignidade, na clássica visãokantiana que a concebe como tudo<strong>aqui</strong>lo que não pode ser precificado, 7permeia a maior parte dos Estadosconstitucionais da atualidade, mas t<strong>em</strong>sua orig<strong>em</strong>, para o direito, naDeclaração Universal dos Direitos doHom<strong>em</strong> da Organização das NaçõesUnidas (ONU) de 1948 (Resolução217-A, de 10 de dez<strong>em</strong>bro de 1948).Convém l<strong>em</strong>brar, no entanto,que a dignidade é um dado prévio e a7 Segundo Kant (2008, p. 81, grifos do autor):“No reino dos fins tudo t<strong>em</strong> um preço ouuma dignidade. Quando uma coisa t<strong>em</strong> umpreço, pode-se pôr <strong>em</strong> vez dela qualqueroutra como equivalente; mas quando umacoisa está acima de todo o preço, e,portanto, não permite equivalente, então elat<strong>em</strong> dignidade.”noção de dignidade da pessoahumana representa uma categoriaaxiológica aberta, um conceito jurídico<strong>em</strong> permanente processo deconstrução e desenvolvimento, queexige uma constante concretização edelimitação pela práxis constitucional,tarefa de todos os órgãos estatais(SARLET, 2003).O princípio fundamental dasolidariedade está insculpido no incisoI do artigo 3.° da Constituição de 1988e também permeia todo o Capítulo VIIdo Título VIII.No dizer de Lôbo (2008, p. 39):A solidariedade, como categoria éticae moral que se projetou para o mundojurídico, significa um vínculo desentimento racionalmente guiado,limitado e autodeterminado quecompele à oferta de ajuda, apoiandose<strong>em</strong> uma mínima similitude decertos interesses e objetivos, de formaa manter a diferença entre osparceiros na solidariedade.Para Lôbo (2008, p. 40), asolidariedade é o el<strong>em</strong>entoconformador dos direitos subjetivos dacont<strong>em</strong>poraneidade na busca peloequilíbrio entre os espaços privados epúblicos e pela interação necessáriaentre os sujeitos.O princípio da mediação, dessaforma, é absolutamente compatívelcom os princípios fundamentais da


196dignidade da pessoa humana e dasolidariedade.Todos, família, sociedade eEstado, dev<strong>em</strong> estar envolvidos <strong>em</strong>otivados pela busca dessa prática epelo efetivo desenvolvimento de umt<strong>em</strong>po e um espaço para a reflexão,para a tolerância, para a mediação.ReferênciasALEXY, Robert. Teoria de losderechos fundamentales. Madrid:Centro de Estudios Politicos yConstitucionales, 2007.ÁVILA, Humberto. Teoria dosprincípios: da definição à aplicaçãodos princípios jurídicos. São Paulo:Malheiros, 2006.BARROSO, Luís Roberto;BARCELLOS, Ana Paula de. Ocomeço da história. A novainterpretação constitucional e o papeldos princípios no direito brasileiro. In:BARROSO; Luís Roberto (Org.). Anova interpretação constitucional:ponderação, direitos fundamentais erelações privadas. Rio de Janeiro:Renovar, 2006.BRASIL. Constituição (1988).Constituição da República Federativado Brasil. 9. Ed. São Paulo: Saraiva,2010.______. Supr<strong>em</strong>o Tribunal Federal.Ação Direta de Inconstitucionalidade:Adi 2.076 Ac. Requerente: PartidoSocial Liberal (PSL). Advogado:Wladimir Sérgio Reale. Requerida.Ass<strong>em</strong>bléia Legislativa do Estado doAcre. Relator: Ministro Carlos Velloso.Órgão Julgador: Tribunal Pleno.Julgado <strong>em</strong> 14 de agosto de 2002.Diário da Justiça, Brasília, DF, 8 ago.2003, PP-00086 EMENT VOL-02118-01 PP-00218. Disponível <strong>em</strong>:. Acesso <strong>em</strong>: 28 jun.2010.BULLYING: do conto infantil à tragédiasocial. Conexão Professor, 2009.Disponível<strong>em</strong>:. Acesso <strong>em</strong>:28 jun. 2010.CANOTILHO, José Jo<strong>aqui</strong>m Gomes.Direito constitucional e teoria daconstituição. Coimbra: Almedina,2003.______; MOREIRA, Vital. Constituiçãoda República Portuguesa anotada.São Paulo: RT, 2007. v. 1.CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA.Relatório anual 2008. Brasília, DF,2009. Disponível <strong>em</strong>:http://www.cnj.jus.br/images/conteudo2008/relatorios_anuais/relatorio_anual_cnj_ 2008.<strong>pdf</strong>>.Acesso <strong>em</strong>: 28 jun. 2010.DWORKIN, Ronald. Levando osdireitos a sério. São Paulo: MartinsFontes, 2002.ENTENDA o relatório Justiça <strong>em</strong>Números. Agência CNJ de Notícias,2010. Disponível <strong>em</strong>:.Acesso <strong>em</strong>: 28jun. 2010.ESCOLAS dev<strong>em</strong> educar para aconvivência para prevenir conflitos, dizespecialista <strong>em</strong> mediação escolar.


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198Debate sobre a f<strong>em</strong>inização dapobreza e a existência f<strong>em</strong>ininaKelly Regina Santos da Silva Introdução: mediação de conflitocomo prática pedagógica dereconhecimento do OutroA mediação do conflito se t<strong>em</strong>colocado cada vez mais como umaalternativa viável para a resolução dosdiversos entraves nas relações sociaisno contexto atual. T<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre comopr<strong>em</strong>issa norteadora oreconhecimento do Outro como sujeitode direito capaz detransformar/reconfigurarrelações.suasAnálises atuais mostram que asmudanças ocorridas pelos processosde globalização têm afetadoprofundamente as relações humanas<strong>em</strong> sua totalidade. Essas mudanças,que perpassam as relações políticasde Estado, estão no âmbito cultural eaté mesmo nas relações de produção,ou seja, nas relações de trabalho <strong>em</strong>que persiste a lógica da pessoaoprimida/opressora, e pessoaexploradora/explorada, que geraconflitos subjetivos e objetivos; são astransformações da globalização, Graduada <strong>em</strong> Filosofia. Técnica do ProjetoJustiça Cidadã.fragilizando as relações interpessoaise sociais, como observa BenedettoVecchi (2005, p. 11), parafraseandoBauman (2005):Bauman a vê como uma ‘grandetransformação’ que afetou asestruturas estatais, as condições detrabalho, as relações entre osEstados, a subjetividade coletiva, aprodução cultural, a vida quotidiana eas relações entre o eu e o outro. 1Contudo, torna-se aindapertinente observar as condições deexistência que passam por questõesde sobrevivência, a ex<strong>em</strong>plo dasdiversas formas de discriminação eviolência no campo do racismo,machismo e de geração, quefragmentam muito mais as relaçõessociais, pondo socialmente as pessoas<strong>em</strong> locais distintos, seja nos postos detrabalho, seja no acesso à escola, àsaúde, e diversos espaços públicos eprivados de socialização e relaçãocom o Outro.São questões e dil<strong>em</strong>as queestão no “mundo da vida”, sãoconflitos vividos cotidianamente pelapopulação <strong>em</strong> geral; entretanto, mais1 No original: “He perceives it as a ‘greattransformation’ that has affected stateestructures, working conditions, interstaterelations, collective subjectivity, culturalproductions, daily life and relations betweenthe self and the other.” (BAUMAN, 2004, p.5).


199fort<strong>em</strong>ente vivenciados pelaspopulações <strong>em</strong> condições devulnerabilidade e as minorias sociais,a ex<strong>em</strong>plo das mulheres, populaçãonegra e juventude, que são desafiadasa dar respostas e mostrar alternativasde vida que possibilitam o viver nessarealidade de exclusão a que estãosubmetidas. Nesse sentido, constataseque, na conjuntura que seapresenta com diversas fragilidadesnas relações sociais e interpessoais,são d<strong>em</strong>asiadamente frequentes osconflitos, uma vez que essa conjunturapor si só já favorece relações esituações conflituosas que colocam<strong>em</strong> reflexão nosso “estar-no-mundo”.Com isso, não afirmamos d<strong>em</strong>odo algum a necessidade daausência de conflito como modelo,muito pelo contrário, os conflitos nametodologia da mediação são tratadospor outro paradigma que vai deencontro às lutas travadas e aosafastamentos causados. Nessesentido a mediação t<strong>em</strong> comofinalidade agregar e favorecer relaçõespautadas no reconhecimento do Outrocomo sujeito de direitos.É uma mudança paradigmáticaimportante do ponto de vista davivência cotidiana, uma vez que oconflito é normal como processo deconstrução, afirmação e autoafirmaçãodas identidades que se encontram deforma estranha ou próximacotidianamente. Além de ser umdebate conceitual sobre o conflito, esterequer uma prática pedagógicaconstante, sendo importante afirmarque os conflitos faz<strong>em</strong> parte de umasociedade d<strong>em</strong>ocrática, ou seja, asrelações humanas são estabelecidaspor meio das lutas dos contrários, oudas visões contrárias ecompl<strong>em</strong>entares sobre o “mundo davida”.Posto isso, percebe-se então aproposta propriamente dita d<strong>em</strong>ediação de conflito, que v<strong>em</strong>pautada no diálogo e reflexão, como agestão dos conflitos com seusdiversos motivos e condições quetrarão outra perspectiva com vista àafirmação e garantia dos processosd<strong>em</strong>ocráticos. Fiorelli, Malhadas eMoraes (2004, p. 15) afirmam que aperspectiva da gestão do conflito,entre outras coisas: “[...] é a aplicaçãode um conjunto de estratégiascapazes de identificá-lo, compreendêlo,interpretá-lo e utilizá-lo parabenefício da homeostase dinâmica decada indivíduo, das famílias, dosgrupos sociais, das organizações e,enfim, da sociedade.”Desse modo, antes depensarmos no processo de mediação


200como algo que venha solucionar oprobl<strong>em</strong>a apresentado, esse espaçodeve ser percebido como umapossibilidade de reconhecimento eafirmação das pessoas, ou seja, oreconhecimento do Outro sujeito dedireito que decide tomar as “rédeas dasituação” no exercício da cidadania,sendo a mediação um instrumentodesse processo.1 Conflitos na realidade de atuaçãodo Projeto Justiça Cidadã: não sóuma questão de sobrevivência,mas uma questão de existênciaPartindo para a experiência doPrograma Justiça Cidadã, adentramosuma complexa conjuntura que t<strong>em</strong> umperfil de acesso e uma d<strong>em</strong>anda muitofocada, o que nos coloca além dosdesafios de ultrapassar s<strong>em</strong>pre asbarreiras de uma prestação de serviço,uma necessidade de atentar ao fato denão perder de vista a prática d<strong>em</strong>ediação como processo educativocom vista ao exercício da cidadania,garantia e acesso à justiça, levandos<strong>em</strong>pre <strong>em</strong> consideração as questõesestruturantes das desigualdades, que<strong>aqui</strong> destacamos a raça/etnia egênero.O que t<strong>em</strong> movido muito asreflexões no contexto trabalhado, alémdas situações de violência e violaçõespercebidas, é o perfil das pessoas quetêm buscado o atendimento paramediação, e, por meio deste,deparamo-nos com el<strong>em</strong>entos que sóvêm confirmar a necessidade denovas formas de intervenção e depolíticas públicas para as mulheres.É expressivo o número d<strong>em</strong>ulheres que buscam a resolução dosconflitos, a maioria deles situados nopagamento de pensão alimentícia. Emum universo de 378 pessoas quepassaram pelo atendimento, quecompreende o primeiro s<strong>em</strong>estre de2010, são mulheres 89% (Figura 1),das quais 76% se autoclassificamcomo negras, pretas e pardas (Figura2).Pessoas que buscam o atendimento100%90%80%70%60%50%40%30%20%89%11%


201Figura 1 – Gráfico do percentual de mulheres atendidas no primeiro s<strong>em</strong>estre 2010Fonte: Banco de dados do <strong>Gajop</strong>Autoclassificação60%56%50%40%30%20%10%0%20%22%2%Preta Parda Branca OutrasFigura 2 – Gráfico do percentual de mulheres que se autoclassificam <strong>em</strong> relação àcor, primeiro s<strong>em</strong>estre 2010Fonte: Banco de dados do <strong>Gajop</strong>Os dados apresentados indicamque a situação de desigualdade socialt<strong>em</strong> como questão estruturante aclasse, a raça/etnia e o gênero. Outrosel<strong>em</strong>entos que estão no campohomoafetivo e geracional tambémformam esse quadro de desigualdadesocial que não são el<strong>em</strong>entos a ser<strong>em</strong>tratados neste texto, mas são pontos aser<strong>em</strong> refletidos posteriormente.Nesse sentido, é pertinenteobservar que a desigualdade e amiserabilidade social estãoestruturadas <strong>em</strong> outros el<strong>em</strong>entos.Sendo assim, não se limita àsquestões econômicas, entretanto,suas raízes não são atuais, muito pelocontrário; ao retornarmos um pouco nahistória brasileira, observar<strong>em</strong>os queos núcleos duros de desigualdadesforam fundados e fincados noprocesso de construção do Estado,perpetuando-se, até os dias atuais, porparadigmas ditados pela sociedadefort<strong>em</strong>ente marcada pelo racismo epatriarcado, que privaram e aindaprivam as mulheres negras de umconjunto de direitos básicos.Sob esse aspecto, adentramoso universo da “F<strong>em</strong>inização da


202Pobreza” como um debate importanteno processo da mediação de conflitosà luz dos direitos humanos, uma vezque, somado ao fator étnico/racial,encontramos cotidianamente mulherescom baixa escolaridade, s<strong>em</strong>frequentar a escola, trabalhando s<strong>em</strong>as condições mínimas, s<strong>em</strong> garantiados direitos trabalhistas, tendo comoprincipal atividade, o serviçodoméstico, que funciona como umaextensão do lar.Nossa construção históricaagregou diversas formas de opressãoà mulher, sendo a elas colocadas as“obrigações” de casar, garantir aestabilidade moral familiar, amar osfilhos e o marido a qualquer custo,abdicar da vida social para garantir ob<strong>em</strong>-estar da família. Nesse sentido,acrescenta Lima (2002, p. 38): “[...] osconflitos de vizinhança, a preocupaçãocom os filhos entrar<strong>em</strong> no caminhos<strong>em</strong> volta da marginalidade, acarência alimentar, o alcoolismo domarido, a traição do marido queconstitui uma segunda residência.”Essas e outras obrigaçõessubmeteram as mulheres a um espaçode “importância” se pensar nas novasconfigurações familiares, porém,invisibilizado socialmente. Beauvoir jáchamara a atenção <strong>em</strong> relação ànaturalização do “ser f<strong>em</strong>inino”,ressaltando que, longe de ser natural,ser mulher é uma questão socialmenteconstruída.A passividade que caracterizaráessencialmente a mulher ‘f<strong>em</strong>inina’ éum traço que se desenvolve neladesde os primeiros anos. Mas é umerro pretender que se trata de umdado biológico: na verdade, é umdestino que lhe é imposto por seuseducadores e pela sociedade. Aimensa possibilidade do menino está<strong>em</strong> que sua maneira de existir paraoutr<strong>em</strong> encoraja-o a pôr-se para si.(BEAUVOIR, 1980, p. 21).Contudo, cabe ressaltar que,nesse prisma, o papel de “chefe dafamília” muda de acordo com ogênero; <strong>em</strong> sendo um hom<strong>em</strong> o chefeda família, a ele é cobrado o sustentoe as representações externas ao lar.No caso das mulheres, essassituações mudam, sendo elasrechaçadas da vida pública (queenvolvesocialização,<strong>em</strong>pregabilidade, escolaridade), sendopermitidas as obrigações do lar. Nessesentido, as mulheres estão maispróximas das situações devulnerabilidade social e têm apermanente obrigação de lidar com ainsalubridade, fome e violênciacotidianamente.Essa relação patriarcal vai dizermuito sobre a existência f<strong>em</strong>inina, umavez que as mulheres são “preparadas”desde cedo para a vida no lar,


203caracterizando os probl<strong>em</strong>asexistenciais que vão perpetuar-se aolongo da vida. Beauvoir (1980)ressalta que os primeiros conflitosexistenciais ocorr<strong>em</strong> no período daadolescência e juventude, momentode escolhas e de percepção das falhasdos paradigmas intocáveis, a ex<strong>em</strong>plodos pais e da religião, sendo ajuventude f<strong>em</strong>inina consumida pelaespera: de um hom<strong>em</strong>.A grande crítica encontrada éque, ao longo da história, a mulher foiinstrumentalizada a ser um Ser paraUM OUTRO, HOMEM, e não para simesma. O probl<strong>em</strong>a existencial entãocolocado é: de que modo se conceberlivre se todas as estruturas feitas paraprendê-la, seja de forma subjetiva(legitimando a mulher comosensibilidade e paixões), seja objetivaquando ela só pode SER ao lado deoutro Ser que é o masculino? Por isso“o segundo sexo”, ou seja, aquele queespera, que obedece, que existe <strong>em</strong>função do Um.Ainda é muito frequentedeparar-se com situações de violênciacontra a mulher durante o processo deacolhida e atendimento, d<strong>em</strong>onstrandoque, para além das questõesestruturais e de garantia de direitospara filhos e filhas, a procura damediação como possibilidade pararesolver conflitos ultrapassa o querergarantir a existência da criança; é umespaço de autoafirmação de suaidentidade, é o cume de conflitosexistenciais e de violência ocorridos,que não possibilita mais nenhum tipode relação com o Outro com qu<strong>em</strong>passou parte da vida, ou algumasvezes apenas alguns momentos <strong>em</strong>eses, deixando de ser uma situação<strong>em</strong> que a mediação poderia ser uminstrumento.Esse momento deve serobservado como uma probl<strong>em</strong>atizaçãoda própria vivência, daresponsabilidade que t<strong>em</strong>os pornossas escolhas, é o momento decriar e recriar valores. Longe de quererminimizar a probl<strong>em</strong>ática trabalhadano Programa, pod<strong>em</strong>os perceber quea crise existencial é, então, apossibilidade que se opõe à angústiado existir, que levaria a transvalorizaro existir, como observa BarbaraAndrew:A crise existencial é maisfreqüent<strong>em</strong>ente vista como apercepção de que cada indivíduo deveagir por si mesmo, tomar suaspróprias decisões e assumirresponsabilidade por suas própriasdecisões e ações − sozinho, s<strong>em</strong> aajuda dos pais ou do significado prédadodos costumes religiosos ousociais. Isso cria ansiedade enorme,muitas vezes, a paralisia. De repente,ninguém sabe mais o que fazer, masdeve decidir. Para Beauvoir, esta criseenvolve também o probl<strong>em</strong>a do outro.


204Uma delas é só na escolha.(ANDREW, 2006. p. 27, traduçãolivre). 2Pod<strong>em</strong>os findar ressaltando quea relação de opressão de homenssobre mulheres não será resolvida,apenas, pelas mudanças ocorridasnas estruturas econômicas, pois,mesmo <strong>em</strong> países e partidossocialistas, por ex<strong>em</strong>plo, as mulheressão subjugadas, por se tratar de umaopressão que está no campo daconstrução social das relações degênero. Nesse caso, mesmo que hajauma “revolução” econômica quefavoreça outro tipo de relação entr<strong>em</strong>ulheres e homens, é preciso que asmulheres assumam os probl<strong>em</strong>asexistenciais f<strong>em</strong>ininos diante de outrasesferas de relação – por ex<strong>em</strong>plo, ainstituição familiar que t<strong>em</strong> seuspapéis definidos; e, mesmo se for<strong>revista</strong>, ainda assim pode manter ocerne da família feudal.Referências2 The existential crisis is most often thought ofas the realization that each individual mustact for herself, make her own decisions, andbear responsibility for her own decisions andactions - alone, without the help of parents orthe pregiven meaning of religious or socialmores. This creates enormous anxiety, oftenparalysis. Suddenly, one no longer knowswhat to do but must decide. For Beauvoir,this crisis also involves the probl<strong>em</strong> of theOther. One is alone in choosing.” (ANDREW,2006. p. 27).ANDREW, Barbara S. Beauvoir’s placein philosophical thought. In: CARD,Claudia (Ed.). The CambridgeCompanion to Simone de Beauvoir.Cambridge: Cambridge UniversityPress. p. 24-44.BAUMAN, Zygmunt. Identidade:ent<strong>revista</strong> a Benedetto Vecchi.Tradução de Carlos Alberto Medeiros.Rio de Janeiro: J. Zahar, 2005.______. Identity: conversations withBenedetto Vecchi. Cambridge: PolityPress, 2004.BEAUVOIR, Simone de. O segundosexo. 3. ed. Rio de Janeiro: NovaFronteira, 1980.FIORELLI, José Osmir; MALHADASJÚNIOR, Marcos Júlio Olivé;MORAES, Daniel Lopes de. Psicologiana mediação: inovando a gestão deconflitos interpessoais eorganizacionais. São Paulo: LTr, 2004.LIMA, Marcos Costa. Raízes damiséria no Brasil. In: LIMA JR, JaymeBenvenuto; ZETTERSTRÖM, Lena.Extr<strong>em</strong>a pobreza no Brasil: a situaçãodo direito à alimentação e moradiaadequada. São Paulo: Edições Loyola,2002. p. 11-49.VECCHI, Benedetto. Introdução. In:BAUMAN, Zygmunt. Identidade:ent<strong>revista</strong> a Benedetto Vecchi.Tradução de Carlos Alberto Medeiros.Rio de Janeiro: J. Zahar, 2005. p. 7-14.


205


206Análise crítica de uma experiência <strong>em</strong>IntroduçãoMinas GeraisBráulio de Magalhães Santos O contexto de d<strong>em</strong>ocracia esuas facetas exig<strong>em</strong> do Estado acapacidade de agregar todas asexpressões sociais, e nesse sentido,toda a diversidade de interesses edesejos de seus m<strong>em</strong>bros. Essacomplexidade requer instrumentos, eaté mesmo certo grau deinstitucionalização que permita atuarna perspectiva de solução de conflitossociais, ou mesmo noencaminhamento adequado dasdiversas d<strong>em</strong>andas e pluraisinteresses.Desenvolvendo um conceitopreliminar de políticas públicas, Rua(1997, p. 1) entende que decisãopolítica – uma escolha entre váriasopções adequando preferênciasGraduação <strong>em</strong> Direito, Pós-Graduação <strong>em</strong>Direitos Humanos, Mestre <strong>em</strong> CiênciasSociais, Doutorando <strong>em</strong> Direito Público.Conselheiro do Movimento Nacional deDireitos Humanos 2009-2011; m<strong>em</strong>bro doInstituto Latino-Americano de Estudos ePesquisas, coordenador do ProgramaMediação de Conflitos 2005-2007.conforme escala hierárquica − é umcomponente na compreensão depolítica pública. Contudo, n<strong>em</strong> todadecisão política se constitui umapolítica pública e, assim, v<strong>em</strong>os queesta envolve a decisão política eoutras diversas ações estratégicasalinhadas para desenvolver aquelasdecisões políticas.Além disso, por mais óbvio que possaparecer, as políticas públicas são‘públicas '- e não privadas ou apenascoletivas. A sua dimensão 'pública' édada não pelo tamanho do agregadosocial sobre o qual incid<strong>em</strong>, mas peloseu caráter ‘imperativo’. Isto significaque uma das suas característicascentrais é o fato de que são decisõese ações revestidas da autoridadesoberana do poder público. (RUA,1997, p. 2).É conclusiva a constatação deque é necessário não somente açõesou programas institucionais desegurança pública, mas políticaspúblicas de segurança. Issorepresenta uma mudançaparadigmática na concepção desegurança social, o que faz refletirimediata e diretamente nas políticas enas instituições que dev<strong>em</strong> atuar antea violência e criminalidade.Dada a multifatorialidade queenvolve a violência e criminalidade,por certo, também multifatoriais são aspolíticas necessárias para agir nesse


207fenômeno. Assim, há de se avançarsobre discussões retóricas que sesustentam <strong>em</strong> uma noção repressivano trato da violência e criminalidade,inovando <strong>em</strong> políticas públicas; comotambém convém ordenar tais políticasnão somente <strong>em</strong> uma ord<strong>em</strong>pragmática, mas, sobretudo,elaborando tais políticas até com anecessária pedagogia institucional,dado que, <strong>em</strong> se tratando de políticapública, requer sustentação teórica econceitual.Desse modo, far<strong>em</strong>os umaanálise aplicada sobre a violência ecriminalidade, apontando suasdiferenças e inter-relações, ainda seusconceitos e teorias, e inferindoalgumas observações para alinharnosso estudo, especialmente <strong>em</strong> facedo cenário socioeconômico e culturalque deve ser, inexoravelmente,considerado na implantação depolíticas públicas e de segurança.Trabalhando as referências deprevenção à violência e criminalidade,tecer<strong>em</strong>os algumas consideraçõesgerais sobre a concepção daprevenção <strong>em</strong> tal contexto,especialmente como uma novaorientação na tentativa de conter aescalada da violência e, por sua vez,as respostas também, única ouisoladamente, repressivas.Finalmente, far<strong>em</strong>os especialabordag<strong>em</strong> à mediação, queatualmente t<strong>em</strong> sido um t<strong>em</strong>aimportante não somente comoconteúdo na formação de agentesestatais voltados para a segurançapública, como também umaexperiência <strong>em</strong>preendida <strong>em</strong> ações eprogramas de atendimento, tanto noPoder Executivo como no PoderJudiciário, 1 de modo a ofereceralternativa à população para resolverseus conflitos. Cabe, assim, umaanálise mais detida para apontaralguns equívocos que verificamos notrato da mediação e dos potenciaisque uma readequada utilização podecontribuir ao país, maisespecificamente na sua inserção comopolítica pública. Utilizar<strong>em</strong>os, ainda,uma experiência <strong>em</strong> Minas Geraispara fundamentar os componentesteóricos, conceituais e práticos parasustentar a mediação de conflitoscomo política pública.De modo generalizado, quandose apontam os probl<strong>em</strong>as enfrentadospelo Estado no tratamento dado àviolência e criminalidade, a dimensãopenal ou repressiva ocupa, à primeiravista, o meio mais procurado, e o que1 Tramita no Congresso Nacional o Projeto deLei n.º 94, de 2.002, de autoria da deputadaZulaiê Cobra, que introduz a mediação noJudiciário.


208orienta a atuação estatal, paraestabelecer e desenvolver políticas desegurança pública, cabe dizer,também tendo como único referencialo sist<strong>em</strong>a de justiça criminal.Entretanto, nos últimos anos, ante asinúmeras evidências que se verificam<strong>em</strong> experiências de outros países,como a própria realidadesocioeconômica e histórica do país, háuma visível tendência <strong>em</strong> ampliar aanálise e compreensão da violência ecriminalidade não somente comodimensão de ord<strong>em</strong> da segurançapública, isolada e desconexa dosd<strong>em</strong>ais fatores que envolv<strong>em</strong> aviolência, <strong>em</strong> suas origens e causassociais.A Organização das NaçõesUnidas (ONU), especialmente desdeos anos 1970, v<strong>em</strong> intensificandoações com orientação paraalternativas penais, sobretudo,medidas não privativas de liberdadepara o tratamento da criminalidade eviolência e, no caso, tratamento dodelinquente. Tais ações vêmconstituindo-se como uma Política dasNações Unidas sobre AlternativasPenais.Citamos, como ex<strong>em</strong>plo, asRegras Mínimas das Nações Unidaspara a Elaboração de Medidas nãoPrivativas de Liberdade (Regras deTóquio), 2que orienta os estadosm<strong>em</strong>bros da ONU <strong>em</strong> várias formaspreventivas na composição dosconflitos e no tratamento das pessoasque comet<strong>em</strong> crimes.Um ponto de partida do estudode Wacquant (2004) é a relação diretae imediata das condições ou falta decondições sociais mínimas que levamao aumento da população carcerária.Para ele, o modelo econômiconeoliberal apresenta consequênciasdiretas na população, sobretudo apopulação pobre, mais propensa aocometimento de delitos pela falta epela busca da sobrevivência.Também, apresenta consequências naatuação do Estado, que se vêpressionado pela população <strong>em</strong>resolver os probl<strong>em</strong>as de insegurançapública, adotando medidas quases<strong>em</strong>pre repressivas e punitivas,aumentando, por sua vez, ascondições jurídico-legais depenalização e de aprisionamento. Daí,o aumento da população carcerária,mas a não redução da violência ecriminalidade.Para o autor:2 Adotada pela Ass<strong>em</strong>bleia Geral das NaçõesUnidas na sua Resolução n.º 45/110 de 14de dez<strong>em</strong>bro de 1990.


209A penalidade neoliberal apresenta oseguinte paradoxo: pretende r<strong>em</strong>ediarcom um ‘mais Estado’ policial epenitenciário o ‘menos Estado’econômico e social que é a própriacausa da escalada generalizada dainsegurança objetiva e subjetiva <strong>em</strong>todos os países, tanto do Primeirocomo do Segundo Mundo [...].(WACQUANT, 2004, p. 4).Os reflexos disso no acesso àjustiça e no Poder Judiciário sãoextr<strong>em</strong>amente importantes. Não rarose ve<strong>em</strong> informações sobre aincapacidade do Judiciário <strong>em</strong>responder às d<strong>em</strong>andas processuaisda população, como também nad<strong>em</strong>ora na prestação jurisdicional e asensação de impunidade. T<strong>em</strong>os vistoainda muitas campanhas para diminuira quantidade de processos, commutirões para conciliações, além d<strong>em</strong>udanças de leis para dar celeridadeaos julgamentos.Contudo, ainda se mantém oitinerário de atuar nos processosjudiciais já formalmente instaurados eresolver situações de conflitos comsentenças, <strong>em</strong> sist<strong>em</strong>a deheterocomposição, ou seja, quandoum terceiro (juiz) põe fim a umad<strong>em</strong>anda com uma sentença a sercumprida, <strong>em</strong> que há um vencedor eum perdedor. Ao contrário, nas formasde autocomposição como se situa amediação, a proposta é atuar com aspessoas envolvidas e buscar a melhorou mais adequada solução, mas,sobretudo, resgatar as relações antesexistentes de modo a cuidar daspessoas, e não de conflituosidades.Entend<strong>em</strong>os, então, tratar-se deuma mudança paradigmática nãosomente na leitura afinada darealidade de desigualdades sociais,como também na prevenção deconflitos decorrentes de tal realidade,agudizada pela carência no acesso àjustiça e incapacidade do Judiciário<strong>em</strong> atuar nas diversas situações deconflituosidade.1 PRECISÕES TEÓRICAS,CONCEITUAIS E CONCEPTUAISSOBRE PREVENÇÃOConvém inferir algumasconsiderações teóricas e conceituaissobre prevenção para, ao fim e aocabo, apontar nossas conclusõesanalítico-críticas sobre a interfaceviolência-prevençãointerdisciplinaridade-mediação-culturade paz. Essa equação não seestabelece como uma equivalênciasimplista, mas como uma perspectiva,o que exige, antes, os devidos critériosconceituais.Prevenção é um termo que t<strong>em</strong>aplicação múltipla <strong>em</strong> várias áreas doconhecimento, mas com umaexpansão na sua aplicação como


210conceito e como perspectiva. Comoconceito, porque traz um sentido deantecipação, de não deixar acontecer,e como perspectiva, como pauta ouagenda de ação permanente. Emambos os casos, no entanto, s<strong>em</strong>prehá questionamentos do tipo:Prevenção a quê? Prevenção contra oquê? Por isso, s<strong>em</strong>pre se vê a palavraprevenção utilizada com algumcompl<strong>em</strong>ento, por ex<strong>em</strong>plo, prevençãoà violência ou prevenção àcriminalidade.Contudo, defend<strong>em</strong>os umadescrição criteriosa de prevenção, d<strong>em</strong>odo autônomo e independente,posto termos prevenção como umaorientação política que conectat<strong>em</strong>áticas e setores ou campos doconhecimento s<strong>em</strong>, entretanto,necessitar compl<strong>em</strong>ento ao utilizar apalavra prevenção. S<strong>em</strong> <strong>em</strong>bargo, oque talvez não sejam devidamenteconsiderados nas discussões sobreprevenção são os condicionantes ouos pressupostos.É dizer que prevenção é umaperspectiva de atuação que significaum processo sequencial que, antes detudo, requer a predefinição do seuobjeto, para o qual se direcionarão asetapas processuais seguintes. Daít<strong>em</strong>os que não se previne contra algo,mas só há prevenção para algo. Nocaso <strong>em</strong> estudo, não se trata deprevenção contra a violência ou contraa criminalidade uma vez que sãofenômenos já ocorrentes. O que mudaa concepção e faz inferir que, paraatuar, preventivamente, é precisocentrar foco nas causas e fatores, como fim de anulação dos efeitosindesejados dessas causas e fatorescom fulcro na eliminação dos riscosque pod<strong>em</strong> atuar na não consecuçãoda paz.Ou seja, não se trata de buscade resultados, mas de mudança deprocedimentos (meios). O sentido deprevenção encontra seu significadomais efetivo, pois não significa atuarpara não deixar acontecer algo, masatuar antes nos fatores originários,antes que aconteça. Não se negam aspossibilidades de resultadosinesperados ou indesejados e, paratanto, identificam-se os riscos,avaliam-se tais riscos e atua-se paracontrolar tais riscos. A prevenção,portanto, não persegue os acidentesou as consequências (resultados),mas os riscos destes. Insere-se,portanto, um fundamental conceitopara elucidar prevenção: fatores derisco.Em sentido estrito, s<strong>em</strong> <strong>em</strong>bargo,prevenir o delito é algo mais − etambém algo distinto − que dificultarseu cometimento ou dissuadir oinfrator potencial com a ameaça do


211castigo. Sob o ponto de vista‘etiológico’, o conceito de prevençãonão pode se desvincular da gênese dofenômeno criminal, isto é, reclamauma intervenção dinâmica e positivaque neutralize suas raízes, suas‘causas’. A mera dissuasão deixaessas raízes intactas. De outro lado, aprevenção deve ser cont<strong>em</strong>plada,antes de tudo, como prevenção‘social’, isto é, como mobilização detodos os setores comunitários paraenfrentar solidariamente um probl<strong>em</strong>a‘social’. A prevenção do crime nãointeressa exclusivamente aos poderespúblicos, ao sist<strong>em</strong>a legal, senão atodos, à comunidade inteira. Não é umcorpo ‘estranho’, alheio à sociedade,senão mais um probl<strong>em</strong>a comunitário.Por isso, também convém distinguir oconceito criminológico de prevenção −conceito exigente e pluridimensional −do objetivo genérico, de pouco êxito,por certo, implicitamente associado aoconceito jurídico-penal de prevençãoespecial: evitar a reincidência docondenado. Pois este último implicauma intervenção tardia no probl<strong>em</strong>acriminal (déficit etiológico); de outrolado, revela um acentuado traçoindividualista e ideológico na seleçãodos seus destinatários e no desenhodos correspondentes programas(déficit social); por fim, concede umprotagonismo desmedido às instânciasoficiais do sist<strong>em</strong>a legal (déficitcomunitário). (GARCÍA-PABLOS DEMOLINA; GOMES, 2006, p. 5).Os fatores de risco sujeitamtodos os segmentos sociais, <strong>em</strong> todosos espaços e setores da sociedade.Exist<strong>em</strong> fatores de risco tanto parapessoas que nunca cometeramnenhum tipo de delito como tambémpara qu<strong>em</strong> t<strong>em</strong> vantagens oumelhores possibilidades no acessoaos bens e serviços públicos e sociais,do mesmo modo para aquelaspessoas que já cometeram algum tipode delito. O que interessa, portanto, é<strong>em</strong> que medida as condições objetivase subjetivas ou os fatores de riscotend<strong>em</strong> de modo a desequilibrar osfatores de proteção, aumentando aprobabilidade de os efeitos negativosagir ou a oportunidade paracometimento dos delitos. 3Uma análise mais detida nosmostra que a palavra violência t<strong>em</strong> sidousada tanto para expressar umfenômeno complexo que age e sereproduz no imaginário social comotambém para descrever situaçõespontuais de violações ou devulnerabilidade individual.O propósito de discutir a violência<strong>em</strong> um contexto de leitura da realidadesocial não deixa de inserir a prevençãoenquanto perspectiva. É dizer, então,que somente pod<strong>em</strong>os investigar aviolência onde ela se produz e sereproduz, o que nos permiteconcluir que a violência se configuraconforme se verifica a realidade social.A predominância dos fatores de risco<strong>em</strong> face dos fatores de proteção(educação, saúde, moradia, trabalho,geração de <strong>em</strong>prego e renda) faz3Beato Filho desenvolve estudo no qualcontesta outras teorias que tentam explicar acriminalidade por fatores biopsicológicos ouaté mesmo sociais pela má distribuição dariqueza. Defende ele a ideia de que háoportunidade para que se cometam oscrimes e defende a prevenção situacional dacriminalidade (BEATO FILHO, 1997, 2000).


212evidenciar a vulnerabilidade social, oque nos permite afirmar que se tornaambiente adequado para ocorrências deviolação.violência:Chauí entende a constituição da[...] como um conjunto de mecanismosvisíveis e invisíveis que v<strong>em</strong> do altopara o baixo da sociedade, unificandoaverticalmente e espalhando-se pelointerior das relações sociais, numaexistência horizontal da família àescola, dos locais de trabalho àsinstituições públicas, retornando aoaparelho do Estado. (CHAUÍ, 1984, p.90).Descrevendo de forma maisdidática e detalhada, Chauí (2007)explica a orig<strong>em</strong> de violência eapresenta uma síntese criteriosa:[...] violência, palavra que v<strong>em</strong> do latime significa: 1) tudo o que age usando aforça para ir contra a natureza dealgum ser (é desnaturar); 2) todo atode força contra a espontaneidade, avontade e a liberdade de alguém (écoagir, constranger, torturar,brutalizar); 3) todo ato de violação danatureza de alguém ou de algumacoisa valorizada positivamente poruma sociedade (é violar); 4) todo atode transgressão contra aquelas coisase ações que alguém ou umasociedade define como justas e comoum direito; 5) conseqüent<strong>em</strong>ente,violência é um ato de brutalidade,sevícia e abuso físico e/ou psíquicocontra alguém e caracteriza relaçõesintersubjetivas e sociais definidas pelaopressão, intimidação, pelo medo epelo terror. (CHAUÍ, 2007, p. 6).Conclui a autora enfatizando ainvisibilidade ou a cegueira dasociedade <strong>em</strong> não identificar que aprodução da violência se dá na própriaestrutura social. Então, no Brasil, aviolência não é percebida ali mesmoonde se origina e ali mesmo onde sedefine como violência propriamentedita; isto é, como toda prática e todaideia que reduz um sujeito à condiçãode coisa, que viola interior eexteriormente o ser de alguém, queperpetua relações sociais de profundadesigualdade econômica, social ecultural.Criminalidade, por todo oexposto, corresponde, então, a uma daspossíveis externalizações da violência, etalvez seja uma resultante inevitável <strong>em</strong>contextos e condições de violência.Dispondo sobre uma facetainvisível da violência, Elise Bouldingenfatiza a violência institucional ouestatal, apresentando o seguinteconceito:[...] o conceito de violênciaestrutural que oferece um marco àviolência do comportamento, seaplica tanto às estruturasorganizadas e institucionalizadasda família como aos sist<strong>em</strong>aseconômicos, culturais e políticosque conduz<strong>em</strong> à opressão dedeterminadas pessoas a qu<strong>em</strong> senegam vantagens da sociedade,tornando-as mais vulneráveis aosofrimento e à morte. Essasestruturas determinam igualmenteas práticas de socialização quelevam os indivíduos a aceitar ouinfligir sofrimentos, de acordo como papel que des<strong>em</strong>penham.


213(BOULDING 1981 apud CRUZNETO; MOREIRA, 1999, p. 38).É dizer que a violência se situae se constitui <strong>em</strong> uma esfera quetranscende unicamente à expressãoda criminalidade, materializando-se,portanto, como um fenômenomultifacetado que assume formas <strong>em</strong>anifestações diferenciadas, sendoainda produto histórico, construídosocialmente.O fenômeno da violência exige,<strong>em</strong> princípio, uma necessáriaabordag<strong>em</strong> interdisciplinar por suacomplexidade etiológica. Contudo, <strong>em</strong>geral, a interdisciplinaridade é utilizadacomo ferramenta ou recursometodológico para estudar ecompreender as causas e origens daviolência e criminalidade. S<strong>em</strong><strong>em</strong>bargo, essa mesma perspectivanão é tão explorada na impl<strong>em</strong>entaçãode políticas para atuar sobre essasmesmas causas e origens, o que s<strong>em</strong>ostra aparente (incoerência) naconstrução dos saberes <strong>em</strong>etodológica, e gerencial.Minayo e Souza (1998, p. 514),inserindo a violência no campointerdisciplinar de estudo e de ação,afirma que “qualquer reflexão teóricometodológicasobre a violênciapressupõe o reconhecimento dacomplexidade, poliss<strong>em</strong>ia econtrovérsia do objeto”. Interessa-nos,sobr<strong>em</strong>aneira, ater aos consensos,mesmo relativos, para superaralgumas práticas, apresentandopossibilidades no que cerca a violênciae criminalidade. Dessa maneira,insistimos na complexidadefenomenológica ante toda diversidadesocial, cultural e teórico-metodológicado t<strong>em</strong>a para inferir nova dimensão,dessa vez interdisciplinar, na análise etratamento da violência ecriminalidade.Disso extraímos que ainterdisciplinaridade é uma base deinteligência que dá elasticidadenecessária à compreensãomultidimensional da diversidade ecomplexidade dos fenômenos sociais,inclusive a violência, ao mesmo t<strong>em</strong>po<strong>em</strong> que garante a manutenção daintegralidade, unicidade ou unidade daanálise de tal fenômeno, o que permit<strong>em</strong>aior acerto nas intervenções. Valecitar:Na interdisciplinaridade a diversidade énecessária à sua unidade e a unidade àsua diversidade, transformando-se, pelaorganização, a diversidade <strong>em</strong> unidade,s<strong>em</strong> anulação, criando-a na e pelaunidade. A complexidade requerintercomunicação pressupondo que osconstituintes têm identidade própria eparticipam da identidade do todo.(SOUZA, 1996, p. 17).


214Com isso, a complexidade queenvolve a violência e criminalidade,sobretudo que envolve a sociedade,exige um olhar sistêmico, ou melhor,uma mudança de olhar sobre nossopróprio entendimento pela “inteligênciada complexidade” na religação dossaberes (MORIN, 1999). Essainteligência integra dificuldades<strong>em</strong>píricas e lógicas e fomenta acompreensão da integralidade eunidade do mundo real queconhec<strong>em</strong>os e das estruturas deconhecimento.Compreendidos e absorvidos taisconceitos e, sobretudo, precisada umadimensão de aplicação de taisconceitos, passar<strong>em</strong>os, a seguir, aoque pod<strong>em</strong>os chamar de etapapropositiva deste estudo que, apretexto das análises teóricas econceituais, além das precisõeselaboradas, t<strong>em</strong> a pretensão deapresentar algumas possibilidades ouapresentar algumas tendências.certamente, a própria etimologia 4 fazcrer: mediação é uma técnica deatuação <strong>em</strong> situações de conflitos −mediar uma situação, intervir parabuscar um acordo, acertar um conflitopelo acordo.Superando esse conceito,estamos acordes com Jean-LouisLascoux (2009), que defende a criaçãode instrumentos específicos para amediação, porque a entende comouma disciplina integral que se inscrevecomo agente de contracultura contraos poderes instituídos, como novaforma de pensar as relações humanase como produto da evolução dopensamento humano.Assim, a mediação se situacomo uma transdisciplina, porqueainda está entre e através dosmultirreferenciais teóricos no qual seergueu e, como todas as disciplinas,nasc<strong>em</strong> de outras áreas limítrofes doconhecimento para depois realizar suaautonomia. Na minha opinião, amediação ainda não está sendo usada2 MEDIAÇÃO DE CONFLITOS COMOORIENTAÇÃOTRANSDISCIPLINAR NOCONTEXTO DE VIOLÊNCIAComo ver<strong>em</strong>os, a bibliografiaexistente dá conta da mediaçãos<strong>em</strong>pre como uma forma que,4 Mediação teria aparecido na enciclopédiafrancesa <strong>em</strong> 1694 para designar aintervenção humana entre duas partes. Araiz “medi” foi utilizada pelos romanos queassociaram o nome de um paísdesaparecido, a Media (para resumir), paísvizinho das terras da antiga Persa. Após, dáseconta da derivação de mediação, do latim(medium, medius, mediator).


215na sua potencialidade total, condizentecom a complexidade social.Ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> queperseguindo essa dimensão analíticada mediação como transdisciplina,como uma prática social autônoma,Six (2001) aponta para a mediaçãocomo uma perspectiva de dinâmica devida coletiva e, desse modo, com umpapel fundamental nodesenvolvimento social, contribuindoaté de modo mais pragmático com amelhoria dos serviços públicosessenciais, a inserção social, cultural,política e econômica. Para ele, amediação é, antes de tudo, política,pois “convida cada um à cidadania, aser ator, isto é, a agir como cidadãoresponsável” (SIX, 2001, p. 239).A compreensão de conflito <strong>em</strong>contexto de violência e criminalidade,além de significar de forma estrita asconflituosidades intersubjetivas,agrega <strong>em</strong> seu conceito asdecorrências da vulnerabilidade social.Assim, entend<strong>em</strong>os que ao conflitoentre partes anteced<strong>em</strong> os conflitosinternos (individuais) e externos(desvantagens sociais), ou asdificuldades de acesso aos bens eserviços essenciais ou mesmo a faltade tais bens e serviços.Portanto, t<strong>em</strong>os de superar acompreensão minimalista e reduzidade mediação como método deresolução de conflitos intersubjetivos etambém de conflito como meraexpressão de <strong>em</strong>bates e agressõesentre as pessoas. Ainda abordar<strong>em</strong>osuma experiência que aproxima talentendimento, 5que julgamos maisevoluído, que propõe concepção deconflito, como apontamos, e aindadesenvolve a mediação pautada nessanova concepção, e incorporando essaconcepção na mediação comoinstrumento ou mecanismo no tratodas conflituosidades interpessoais evulnerabilidade social do conflito.Outro acerto necessário <strong>aqui</strong> dizrespeito à visão ainda vigente queinsere a mediação como técnica oumétodo de resolução de conflitosextrajudiciais. Primeiro que traz umparalelo com o sist<strong>em</strong>a judiciário(jurisdicional) tradicional e tambémreduz o entendimento de mediaçãocomo algo secundário, opcional, comcerta validade, mas não muitoconfiável. Depois, porque tende amarcar a mediação como alternativa,inclusive, para resolver os probl<strong>em</strong>asda administração da Justiça, com o fimde desafogar os juízes e tribunais do5Programa Mediação de Conflitos daSuperintendência de Prevenção àCriminalidade, Secretaria de Estado deDefesa Social do Governo de Minas Gerais,2007.


216volume excessivo de processos queaguardam julgamento. 6 De fato, a crisenão é somente da operacionalizaçãopara prestação jurisdicional da justiça,mas, <strong>em</strong> maior medida, a crise é dedepositar na prestação jurisdicionalconvencional do Estado, a onipotênciade, ao mesmo t<strong>em</strong>po, responder edizer o direito para cada pessoa, paracada d<strong>em</strong>anda pontual, regular esolen<strong>em</strong>ente, processada, e tambémresponder pela pacificação social.Grinover (1988) atribui o nomede “deformalização das controvérsias”à tendência de incentivo à difusão devias alternativas de exercício deacesso à justiça. Ou seja, nãosomente as vias judiciais têm aexclusividade <strong>em</strong> resolver conflitospelo processo.Defend<strong>em</strong>os a ideia de que amediação como orientaçãotransdisciplinar não t<strong>em</strong> no conflito umel<strong>em</strong>ento surpresa ou algo inusitado,que, depois de declarado, precisa serresolvido para encerrar a d<strong>em</strong>anda,mas um acordo não é total nasegurança de que não haverá maisconflitos ou que este não serestaurará. A mediação comoorientação não busca resultados poracordos entre as pessoas, masestabelece processos que envolv<strong>em</strong>técnicas para avanço e superação.Com isso, distintas ascompreensões e feitas as devidasprecisões no uso e concepção d<strong>em</strong>ediação, ao fim, a despeito de aindapersistir o entendimento de meioalternativo de resolução de conflitos,buscamos d<strong>em</strong>onstrar que mediação,como ação pedagógica, principiológicae como transdisciplina, como a<strong>em</strong>pregamos e acreditamos, trata-se,<strong>em</strong> certa medida, de orientação eatuação ante qualquer tipo dealternativa possível de violência e dasviolações.3 PROGRAMA MEDIAÇÃO DECONFLITOS: EXPERIÊNCIA EMMINAS GERAIS6 Boaventura Souza Santos (2005, p. 167),discorrendo sobre a crise mundial daadministração da justiça, que eclodiu nadécada de 1970, diz que decorreu daincapacidade do próprio Estado <strong>em</strong> tutelard<strong>em</strong>anda levada pela explosão de litígios;mas, analisando o contexto histórico de 1970para cá, é inevitável constatar que coincidecom o período denominado por muitosautores como neoliberalismo, sobretudo,pela nova orientação econômica docapitalismo, incr<strong>em</strong>entada pela noção deglobalização.Como antecipado, para ilustrara perspectiva da mediação,apresentar<strong>em</strong>os brev<strong>em</strong>ente umestudo de caso <strong>em</strong> que se relata aexperiência do Programa Mediação deConflitos, desenvolvido pelaSuperintendência da Prevenção àCriminalidade, Secretaria de Estado


217de Defesa Social, Minas Gerais.Ressaltamos apenas que há outrasexperiências bastante estruturadas eainda constatamos um crescimento deiniciativas <strong>em</strong> todo o país. 7Contudo, destacar<strong>em</strong>os nesterelato da experiência <strong>em</strong> Minas Geraiso enfrentamento declarado de proporum programa de mediação a serimplantado com um conceito deprevenção social e situacional daviolência e criminalidade; ou seja,afora a perspectiva de mediação comoargumento na busca da prevençãosocial, também na sua materializaçãocom a implantação de umequipamento dentro das comunidadesidentificadas pelos órgãos de defesasocial como áreas de maior índice deviolência e criminalidade e, portanto,alvo de ação por parte do Estado.Desde 2003, o governo doEstado de Minas Gerais v<strong>em</strong>desenvolvendo ações, projetos eprogramas no sentido de atuar sobrequestões da violência e criminalidade.Numa perspectiva de investir naprevenção social da violência ecriminalidade, e articular tais açõescom a repressão qualificada7Cf. Foley (2010); Freire (2006); França(2007); Braga Neto, (2008); Tânia Almeida,presidente do Mediare/RJ, Centro deAdministração de Conflitos; Ana KarinePessoa Miranda do Núcleo de Mediação deParangaba (Ceará), dentre outros.desenvolvida por outros órgãos dosist<strong>em</strong>a de defesa social, comoPolícias, Judiciário, Ministério Públicoe outros, a Secretaria de Estado deDefesa Social estruturou aSuperintendência de Prevenção àCriminalidade (MINAS GERAIS, 2009).A Superintendência dePrevenção à Criminalidade t<strong>em</strong> aresponsabilidade de impl<strong>em</strong>entartodas as políticas públicas paraprevenção da criminalidade. Sãoações que representam uma novaconcepção no combate à violência.Apoiadas na ideia de “segurançacidadã”, elas procuram garantir àpopulação o acesso aos direitosuniversais e desenvolver políticaspúblicas para os locais com altosíndices de criminalidade violenta. 88 “A Spec é responsável pela coordenação dosprogramas que atuam <strong>em</strong> três níveis deprevenção: Prevenção Primária • Asprimeiras ações são feitas diretamente nasáreas de maior incidência criminal, fazendointervenções antes que o crime aconteça.São realizadas campanhas educativas;formação qualificada; estímulo a iniciativascomunitárias e a práticas pessoaispreventivas contra a violência; atividadescoletivas de cidadania, esporte e cultura;ocupação dos espaços ociosos; atendimentoao público; propostas de educação esocialização. Dois programas integram essenível de intervenção: Programa de Controlede Homicídios – Fica Vivo! e ProgramaMediação de Conflitos. PrevençãoSecundária • A prevenção secundária édirecionada às pessoas que vivenciaramexperiências de determinados crimes, vindoa cumprir penas ou medidas alternativas àprisão. O foco principal é possibilitar ocumprimento da pena ou medida <strong>em</strong>


218Como descrito por Santos(2007, p. 25-26):Este Programa pauta suas açõesatravés da identificação de situaçõesde violações de direitos, restaurandoose integrando as pessoas ecomunidades na perspectiva deimpedir novas violações. Trata-se daprestação de serviços que viabiliz<strong>em</strong> oacesso à justiça na sua melhor forma,isto é, na interlocução entre as partesenvolvidas para que os mesmosconstruam as soluções para seusconflitos de forma d<strong>em</strong>ocrática,colaborativa e dialógica. [...]A idealização do Programa Mediaçãode Conflitos partiu da constatação deque se faz necessária uma revisãodas formas de atuação do Estado <strong>em</strong>relação às questões da exclusãosocial, da violência e do exercício dacidadania <strong>em</strong> comunidades marcadaspelo acesso precário aos serviçossociais básicos e por violaçõesrecorrentes aos direitos fundamentais.[...]O projeto sustenta-se na assunção deuma nova cultura − da d<strong>em</strong>ocraciacotidiana pela qual o sujeito de direitoqualifica-se como cidadão − funda-sena probl<strong>em</strong>atização da questão doacesso à justiça e às políticaspúblicas, ou melhor, na possibilidadede participação ativa da própriacomunidade na solução de grandeparte de seus probl<strong>em</strong>as e conflitos.[...]Uma concepção essencial quefundamenta o Programa Mediação deConflitos é a compreensão de que aprevenção social deve ter acomunidade como foco e que o crimenão é o único fator resultante ouinstituições com finalidade social,trabalhando a inclusão como forma dediminuição da reincidência criminal. Essenível é composto por: Programa Central dePenas Alternativas. Prevenção Terciária • Oobjetivo é diminuir a reincidência, comatuação direta sobre os indivíduos quecometeram delitos ou crimes, egressos dosist<strong>em</strong>a prisional, e pessoas envolvidas comoutros níveis de violência. Um programaintegra a prevenção terciária: Programa deReintegração Social do Egresso do Sist<strong>em</strong>aPrisional.” (MINAS GERAIS, 2011).gerador de violência e criminalidade,ou seja, está relacionado a outrasformas de ‘desvantagens sociais’,principalmente nas comunidades ondehá altas taxas de crime, o queevidencia uma variedade de fatores econdições interconectadas. [...]Para execução de ações e projetos oPrograma conta com equipes deprofissionais de formação diversificadanas áreas de Ciências Sociais eCiências Humanas e SociaisAplicadas, especialmente, Direito,Psicologia e Serviço Social. Paragarantia da efetividade e eficácia desuas ações, o Programa investe nodesenvolvimento técnico-metodológicodas equipes de trabalhoproporcionando espaços periódicos esist<strong>em</strong>áticos de capacitação,habilitação e qualificação <strong>em</strong> t<strong>em</strong>asaplicados às exigências cotidianas doslocais de atuação. Investidos dosprincípios, fundamentos, métodos,recursos e procedimentos, o Programaconforma uma metodologia orientadapara composição de conflitosindividuais, coletivos e comunitáriosvisando prevenir situações concretase/ou potenciais de violência ecriminalidade, com fomento à culturapedagógica de convivência <strong>em</strong>situações de conflitos.[...]O Programa Mediação de Conflitos seestrutura <strong>em</strong> quatro (4) eixosgerenciais para melhor administraçãoe impl<strong>em</strong>entação de suas ações eprojetos. Desta forma, organiza-se <strong>em</strong>(1) Mediação Atendimento, (2)Mediação Comunitária, (3) Ações eProjetos T<strong>em</strong>áticos Locais e (4)Projetos Institucionais.O eixo que descreve aMediação Atendimento caracteriza-sepor dispor de estrutura física <strong>em</strong> cadacomunidade, dotada de equipamentose equipes de atendimento que, d<strong>em</strong>odo geral, realizam mediações eorientações, como gênero, e sedesdobram <strong>em</strong> muitas espécies deatendimentos decorrentes, inclusive


219visando otimizar, ou mesmo, fomentar,uma estrutura de atendimentos <strong>em</strong>rede dentro da própria comunidade,envolvendo os mais diversos agentessociais.O segundo eixo, MediaçãoComunitária, representa uma via d<strong>em</strong>ão dupla; ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> quepermite uma leitura mais coletiva doscasos individuais atendidos no Núcleo,também advém de uma açãoinovadora do programa que atua <strong>em</strong>casos ou situações pautadas pelacomunidade, que são afetas a umnúmero maior de pessoas, ou seja,uma d<strong>em</strong>anda coletiva ou comunitária.Na primeira situação, pod<strong>em</strong>osex<strong>em</strong>plificar como os casos individuaisde violência ou conflitos intrafamiliaresque começam a aparecer no Núcleo e,por uma leitura técnica qualificada,induz<strong>em</strong> a uma ação mais coletiva oucomunitária para atingir maior númerode pessoas na comunidade. Nasegunda situação, pod<strong>em</strong>osex<strong>em</strong>plificar pelas constantesreclamações sobre falta dedeterminado b<strong>em</strong> ou serviço público,que afeta um grande número depessoas, como o caso de falta deatendimento a determinado territórioda comunidade, pelo transportecoletivo, ou pela falta de saneamentobásico, ou falta de coleta de lixo, depavimentação e iluminação de ruas,dentre outros. Tais d<strong>em</strong>andas ou sãolidas pela equipe técnica nosatendimentos individuais realizados ousão originados pelo trabalho com arede local e agentes, e líderescomunitários identificados no cotidianoda Mediação Comunitária.Ainda, como desdobramentotanto dos atendimentos individuaiscomo nos caso coletivos ecomunitários, aparece o eixo Ações eProjetos Locais T<strong>em</strong>áticos. Esse eixose fundamenta no trabalho damediação comunitária, por meio dodiagnóstico local e do trabalho deformação de rede, como também dosatendimentos individuais e sua leitura,os quais permit<strong>em</strong> identificar fatoresde risco individuais, coletivos oucomunitários passíveis de intervenção.Esses fatores de risco representam assituações que afetam determinadacomunidade ou público de modo acontribuir para o recrudescimento dosconflitos. Daí, a necessidade deintervenções para prevenir odesenvolvimento dessas situações.As ações e os projetost<strong>em</strong>áticos locais são dos mais diversosassuntos e buscam atacar osprincipais probl<strong>em</strong>as identificadospelos Planos Locais (instrumento deplanejamento dos Núcleos de


220Prevenção à Criminalidade) e tambémnos atendimentos do ProgramaMediação de Conflitos, comoexplicado. As ações vão desde ageração de renda, educação para oconsumo, teatro e dança até questõesde violência de gênero e outrasmodalidades de violação.Por fim, o eixo de ProjetosInstitucionais são as parceriasdesenvolvidas pelo ProgramaMediação de Conflitos, sobretudo comas instituições governamentais doSist<strong>em</strong>a de Defesa Social e tambémdos outros entes federais. Cabedestacar as parcerias com a PolíciaMilitar, especificamente com oGrupamento Especializado <strong>em</strong>Patrulhamento de Áreas de Risco(Gepar) com o qual o programa realizaencontros de capacitação equalificação do atendimento; oficinas eencontros de discussão nacomunidade de atuação. Com aPolícia Civil, cabe destacar o ProjetoMediar, uma parceria que leva amediação atendimento para asDelegacias de Polícia. Isso implicacapacitação dos policiais e apermanente capacitação e qualificaçãodeles numa constante interlocuçãometodológica e gerencial com oPrograma Mediação de Conflitos e aPolícia Civil.Em linhas gerais, essa é aestruturação e organização doPrograma Mediação de Conflitos.Contudo, interessa-nos <strong>aqui</strong> aconcepção do programa como umaação política aplicada ao contexto deviolência e criminalidade. Desse modo,cab<strong>em</strong> algumas consideraçõesanalíticas e uma breve avaliação dasações <strong>em</strong>preendidas pelo programanas comunidades.Os eixos orientadores doprograma já d<strong>em</strong>onstram que não háexclusividade <strong>em</strong> atendimentoindividual ou somente voltado para asviolações e conflituosidades entrepessoas. Na ação comunitária,desenvolv<strong>em</strong>-se muitas ações eatendimentos coletivos e d<strong>em</strong>andasque são coletivizadas, de modo aintegrar a comunidade. Portanto,estruturam-se como uma políticaampla de expansão.A orientação metodológica doatendimento, mesmo como tantoseixos, segue a fundamentaçãopautada <strong>em</strong> conceitos que articulamintersubjetividade, capital social,mobilização e organizaçãocomunitária, intercompreensão,solidariedade e direitos humanos.Como referenciais teóricos, vale citarBourdieu (1984); Habermas (1989);Putnam (1996), Tocquevile (1998);


221Thiollent (2000); Six (2001); Gustin(2005); Santos (2005).Também, na estruturação doprocedimento no atendimentoprestado, o Programa Mediação deConflitos t<strong>em</strong> um diferencial. Além daequipe interdisciplinar descrita acima,há possibilidades de atendimentoindividual para casos pontuais, mas oprograma investe na coletivização ecomunitarização das conflituosidades,o que reforça o argumento quediferencia violência (social) deviolações (individuais). Ainda, dada aperspectiva do atendimento, hácapacitações, supervisão eacompanhamento das equipes deatendimento de modo periódico,s<strong>em</strong>analmente. Vê-se, portanto, onecessário investimento nosprofissionais compatível com acomplexidade e dinâmica da políticapretendida. Além dos autores acimacitados, os quais referenciam osprocedimentos e métodos noatendimento, há outros que detalhama mediação já como mecanismo outécnica, o que faz traçar algumasorientações operacionais às equipesde atendimento, ao processo e aosatendidos (VEZZULA, 1995;SAMPAIO; WARAT, 2001; SALES,2003; ZAPPAROLLI, 2003; MUSZKAT,2005; BRAGA NETO, 2007 e outros).O programa consegue integrartoda a complexidade que se evidenciade tais fenômenos e, também, todasas possibilidades de sua compreensãoe atuação. É inovador, porque integraos conteúdos, métodos e práticasavançadas da construção teórica damediação e sua práxis.4 MEDIAÇÃO: NOVAS LEITURAS EAPONTAMENTOSPara fins de situar a mediação,convém uma análise mais genérica esist<strong>em</strong>ática, não descritiva, da suacompreensão dimensional de atuação.Utilizando Arnaud Stimec(2007), t<strong>em</strong>os que, na mediação, hátrês níveis de ação: a ação voltadapelo conteúdo (resolução deprobl<strong>em</strong>as), a ação voltada para arelação (restauração da relação) e aação voltada para o processo (modosde funcionamento das comunicações,fases). Essa é uma dimensão maispragmática da mediação, masfundamental, visto que, conforme seapresenta, há um grau de intervençãoadequado. Em suma, <strong>em</strong>bora possahaver algumas orientações básicas,processuais no procedimento damediação, este não deve obedecer auma dinâmica aplicada, sugerida e


222orientada para o caso. Isso, contudo,não descaracteriza a mediação, aocontrário, reforça seu carátertransdisciplinar.Stimec (2007) propõe algumascategorias para fins de compreensãoda ação e orientação das intervençõespossíveis, conforme a complexidade<strong>em</strong> que se inser<strong>em</strong> as conflituosidades(o que é), e não apenas acompreensão das partes (porque) doque seja o conflito. É dizer que não é oque são as coisas que constitu<strong>em</strong> osprobl<strong>em</strong>as, mas as pr<strong>em</strong>issasconstruídas sobre como deveriam seré que constitui o núcleo da questão.Retomando Stimec (2007),apresentamos, então, algumasconsiderações sobre o nível do tipo deintervenção que se pode operar namediação.1. Mediação ‘relacional’ implica umaintervenção voltada à relação e aoconhecimento do outro b<strong>em</strong> como aexpressão dos sentimentos, <strong>em</strong>oçõese desejos das partes. Assim, aresolução de probl<strong>em</strong>as é consideradasecundária e decorre naturalmentedesse trabalho.2. Mediação de ‘apoio na resolução deprobl<strong>em</strong>as’ ou facilitação concentra-senos probl<strong>em</strong>as práticos, técnicos oumateriais para resolver. O mediadorpropõe às partes um certo número deinstrumentos para explorar a situaçãoe procurara soluções. As dificuldadesrelacionais são geridas ou esvaziadaspara que não perturb<strong>em</strong> o trabalho.Não se procura qualquer gestão dasmesmas. A intervenção centra-sesobre os probl<strong>em</strong>as concretos pararesolver.3. Mediação ‘mista’ busca enquadrar aresolução dos probl<strong>em</strong>as materiaisb<strong>em</strong> como o trabalho sobre a relação.O mediador exerce uma intervençãodiretiva sobre a forma (o processo),mas não diretiva sobre o fundo (arelação ou conteúdo). Coordena asintenções tendo como duplo objetivo orespeito mútuo no presente e areestruturação futura da relação,incentivando as partes à imaginação eà concretização das soluçõesrelativamente ao conteúdo. É a formade mediação teoricamente maispreconizada. Todavia, na pratica,conforme os casos e evolução dasessão, a intervenção pode evoluir <strong>em</strong>direção as formas (1), (2) ou (4).4. Mediação ‘prescritiva’ pode focarmais ou menos na relação ou noconteúdo e reveste na práticaessencialmente duas formas:1- O mediador ouve as partesseparadamente e depois <strong>em</strong>iterecomendações (ou um parecer) ounegocia uma resolução amigável. Aspartes não se encontram no quadro damediação.2- O mediador ouve as partes (juntasou não) e depois utiliza a suaexperiência e o seu estatuto parafavorecer uma conciliaçãoproporcionando informações,advertências, sugestões ou mesmopareceres. (STIMEC, 2007, p. 16).Conclui Stimec (2007) que,após numerosas investigaçõesefetuadas no âmbito da eficácia damediação, parece não ser possívelprivilegiar uma forma de intervenção<strong>em</strong> detrimento de outra. Pelo contrário,a eficácia parece contingente, ou seja,dependente dos casos e dasexpectativas das partes.A respeito dos modelos d<strong>em</strong>ediação, convém apenas mencionarque há estudos desse enquadramentoda mediação, mas que nos importacomo registro histórico de sua


223construção, tendo <strong>em</strong> vista que,atualmente, importa mais, como acimadefend<strong>em</strong>os, compreender adimensão e o nível de intervenção damediação. 9No entanto, como t<strong>em</strong>osexposto neste estudo, a concepçãoque se aplica à mediação, e como seinsere no contexto que a adota, dizmais, inclusive orienta suaimplantação e desenvolvimento comopolítica pública. Conforme aconcepção que orienta a mediação, aspossibilidades diversificam.Lascoux (2008) identifica quatrograndes concepções da mediação:Concepção Espiritualista, Concepção9 Zapparolli et al. (2006) traz<strong>em</strong> classificaçãoda mediação conforme os modeloshistoricamente construídos. Contudo, osautores já advert<strong>em</strong> que tais modelos nãosão inflexíveis e pod<strong>em</strong> ser integrados, casoa caso. O primeiro modelo (ModeloTradicional-Linear (Harvard) foi desenvolvido<strong>em</strong> Harvard, que surgiu na década de 1950,<strong>em</strong> razão da necessidade das grandescorporações de tratar<strong>em</strong> questõescomerciais com auxílio de uma terceirapessoa <strong>em</strong> impasses nos negócios, e comintuito de solucionar probl<strong>em</strong>as (busca deacordo) que ocorriam dentro das <strong>em</strong>presas.O modelo transformativo ModeloTransformativo (Bush e Folger) está pautadono tratamento da dimensão relacional daspartes implicadas no processo de mediação.Pressupõ<strong>em</strong> um aumento no protagonismodas pessoas envolvidas no conflito, <strong>em</strong> queelas próprias se percebam como partesintegrantes do conflito e de sua solução. Já omodelo Circular-Narrativo t<strong>em</strong> suas bases nacomunicação, nos el<strong>em</strong>entos verbais e nosel<strong>em</strong>entos paraverbais, corporais, gestuais,entre outros. Não há um único motivo oucausa que produza um determinadoresultado, mas sim a retroalimentação.Jurídica, Concepção Psicologizante eConcepção Científico-Filosófica.A Concepção Espiritualista seliga às correntes religiosas <strong>em</strong> quea mediação é apenas uma vestimentalaica do perdão religioso judaicocristão,promovendo a coesão,compreensão e o respeito mútuo,solidariedade, cooperação, umaqualidade de presença <strong>em</strong>pática. Talconcepção religiosa da mediaçãoparte do pressuposto da bondadefundamental e gentileza do serhumano <strong>em</strong> face da fragmentação dasestruturas tradicionais <strong>em</strong> termosculturais, sociais e familiares, <strong>em</strong> qu<strong>em</strong>ediação aparece com um princípiode estruturação das relaçõeshumanas, de suavização dasfragmentações e da violência.A Concepção Jurídica entendea mediação como a via real para ahumanização e maior d<strong>em</strong>ocratizaçãodiante de um sist<strong>em</strong>a judicial pela suacomplexidade,formalidade,morosidade e custos. Aimpl<strong>em</strong>entação da mediação propõe ahumanização do sist<strong>em</strong>a, chamadojustiça de proximidade ou restaurativo,orientado para as necessidadesconcretas dos autores, queproporciona à vitima, até agoraesquecida, um lugar mais participativo.Propõe a substituição de um modelo


224repressivo e neorretributivo pormodelo participativo e reabilitativo.A Concepção Psicologizantecompreende que o conflito é umsintoma relacionado com a falta dereconhecimento de necessidades, daexpressão dos afetos, das <strong>em</strong>oçõesrelacionadas com as situaçõesconflituosas. Enfatiza que o conflito éum sintoma, uma força destruidora <strong>em</strong>que a intervenção fica centrada noafeto com técnicas de ent<strong>revista</strong> quefocam a <strong>em</strong>patia, o apelo aossentimentos, <strong>em</strong> um quadro facilitadorque propicie a expressão verbal detais necessidades subjacentes.A Concepção Científico-Filosófica entende que a mediação éuma procura constante deindividuação, uma escolha conscientee responsável do sujeito encaradonuma perspectiva sistêmica (quepensa, sente e age, quer <strong>em</strong> relaçãoàs próprias formas de funcionamento,quer <strong>em</strong> relação ao funcionamento dooutro, e coloca o ser humano numanova forma de conceber a relaçãoconsigo próprio e com o outro). Aquise defende os instrumentos d<strong>em</strong>ediação ter<strong>em</strong> uma base científicarelacionada com a evolução dastécnicas de comunicação econhecimento do ser humano.Por fim, entend<strong>em</strong>os que épreciso diferenciar a abordag<strong>em</strong>dessas afirmações. A mediação comoprincípio s<strong>em</strong>pre se aplica. Importa oque frisa Lascoux (2008, p. 2): diz queo desafio da formação <strong>em</strong> mediação étalvez distanciar-se de um modelomultidisciplinar tal como é a maioriadas estruturas de ensino/formaçãopara promover essa necessidade deabordag<strong>em</strong> transdisciplinar, quer <strong>em</strong>relação às outras disciplinas, quer <strong>em</strong>relação aos próprios modelos deintervenção. Com uma análise fina dassuas práticas, dos percursos, dos seusresultados, que não se pode limitar àanálise dos resultados quantificáveisdos acordos (aliás não háacompanhamento da execução deles<strong>em</strong> médio e <strong>em</strong> longo prazos), masuma análise qualitativa sobre areconstrução da qualidade relacionalque não passa necessariamente porum acordo formal. O desafio daformação está <strong>em</strong> introduzir umprocesso reflexivo com investigaçãosist<strong>em</strong>ática, uma abordag<strong>em</strong>metacognitiva da construção dosconhecimentos e da apropriação dosníveis de competência.CONCLUSÃO


225É visto que propus<strong>em</strong>os umaanálise crítica e intercalamos teorias,constatações <strong>em</strong>píricas e lógicas, d<strong>em</strong>odo a tentar reconstruir quadrospragmáticos do tratamento daviolência e criminalidade, comotambém engendrar conteúdos, até d<strong>em</strong>odo epist<strong>em</strong>ológico, pedagógicospara ilustrar a mediação de conflitoscomo política pública.O pragmatismo na construçãoda cultura de paz, pela via da nãoviolência, deve-se ao fato de queencaramos que o contrário daviolência não é a não violência, aausência de guerras, mas sim acidadania, ou seja, combate-se ou setrata a violência (fenômeno social) nãocom ações sobre as violações econflitos, mas com cidadania. Comoinscrito pela Unesco (1994): “Não hápaz s<strong>em</strong> cidadania, pois a harmoniasocial não implica na repressão deconflitos, mas é resultado da reduçãode desigualdades sociais eeconômicas e do respeito aos direitoshumanos.”Extrai-se deste trabalho, umanoção peculiar de prevenção <strong>em</strong> umsentido amplo, que integraliza ocompromisso social <strong>em</strong> todos ossetores, que começa com a tomada deconsciência da população,estruturação e infraestrutura deinstituições e órgãos e, principalmente,a dimensão socioeconômica doprobl<strong>em</strong>a de violência e criminalidade,e sua prevenção que, aos poucos,aparenta certa retomada maiscontextualizada da violência ecriminalidade com as d<strong>em</strong>ais questõesque se conectam, tais como fatoressociais, econômicos, culturais.ReferênciasBEATO FILHO, Cláudio Chaves.Determinantes da criminalidade <strong>em</strong>Minas Gerais. Revista Brasileira deCiências Sociais, v.13, n. 37, p. 74-89,1998.BOURDIEU, Pierre. Homoacad<strong>em</strong>icus. Paris: Minuit, 1984.BRAGA NETO, Adolfo. Mediação deconflitos e políticas públicas: aexperiência com a mediaçãocomunitária <strong>em</strong> distritos de altavulnerabilidade da Grande São Paulo.Revista Brasileira de Arbitrag<strong>em</strong>, ano4, n. 18, p. 81-90, abr.-jun. 2008.CHAUÍ, Marilena. Participando dodebate sobre mulher e violência. Riode Janeiro: J. Zahar, 1984.______. Violência, racismo ed<strong>em</strong>ocracia. In: CICLO DE DEBATESAÇÕES AFIRMATIVAS: Estratégiaspara ampliar a d<strong>em</strong>ocracia, 2007, SãoPaulo. São Paulo: Secretaria dePolíticas de Promoção da IgualdadeRacial, 2007.CRUZ NETO, Otávio; MOREIRA,Marcelo R. (1999). A concretização depolíticas públicas <strong>em</strong> direção àprevenção da violência estrutural.


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229Tentativa de avaliação dos resultadose impactos de uma política d<strong>em</strong>ediação de conflitosJúlia OliveiraPara desatar o nó de um conflito, não bastaestabelecer a verdade objetiva dos fatos, énecessário apreender a verdade subjetiva daspessoas, com suas <strong>em</strong>oções, desejos,frustrações e sofrimentos.IntroduçãoEm 2010, o Projeto JustiçaCidadã completou oito anos deatividade. Neste longo caminhar,período de aperfeiçoamento daprática, de afirmação da experiênciacomo referência nacional, 1o Projetose submeteu ao espinhoso exercíciode sist<strong>em</strong>atização de sua experiênciae de resgate de sua m<strong>em</strong>ória,transformando ambas as práticas <strong>em</strong>pilares de sua proposta políticopedagógica.Em 2004, um primeirolevantamento entre a população foi1 O Projeto Justiça Cidadã foi, por duas vezes,reconhecido nacionalmente pelo seutrabalho. Em 2003, o Projeto foirecompensado com o “Prêmio Inovações deGovernos Locais”, iniciativa da FundaçãoGetúlio Vargas e da Fundação Ford, e <strong>em</strong>2009, foi selecionado como uma das 40experiências inovadoras do País pela suaatuação <strong>em</strong> Educação <strong>em</strong> Direitos, Acesso àJustiça e Prevenção à Violência, a única dePernambuco, a participar da Feira deConhecimentos <strong>em</strong> Segurança Pública comCidadania da 1.ª Conferência Nacional deSegurança Pública, reunida <strong>em</strong> Brasília de27a 30 de agosto de 2009.realizado, com o objetivo de definir operfil socioeconômico e os el<strong>em</strong>entosconstitutivos da d<strong>em</strong>anda. Na época,ainda não se trabalhava com oinstrumento mediação de conflitos,mas essa primeira pesquisa serviucomo ponto de partida para a criaçãode um Banco de Dados permanente.Com o objetivo de retratar o,perfil da população atendida,evidenciar com clareza asnecessidades da d<strong>em</strong>anda, darvisibilidade, legitimidade eresponsabilidade política às suasações, o Banco de Dados do ProjetoJustiça Cidadã se tornou uma preciosafonte de informação no que tange àprática de uma experiênciaconsolidada de mediação de conflitosna perspectiva dos Direitos Humanos.No entanto, apesar do trabalhocotidiano de coleta de dados nos trêsnúcleos descentralizados e daavaliação deles, o Banco de Dadosretrata a vivência da populaçãoatendida e a amplitude do trabalhoefetuado unicamente com base nad<strong>em</strong>anda que chega ao núcleo.Considerando-se o caráterinovador do trabalho <strong>em</strong> mediação deconflitos na perspectiva dos DireitosHumanos do Projeto Justiça Cidadã,foi surgindo a necessidade de poderavaliar e medir, de forma mais


230abrangente, qualitativa ecompl<strong>em</strong>entar ao Banco de Dados jáexistente, o impacto e resultados dotrabalho realizado. Dessa constatação,nasceu o Levantamento dos AcordosRealizados nos Núcleos, realizadoentre nov<strong>em</strong>bro de 2009 e fevereiro de2010.1 APRESENTAÇÃO DOLEVANTAMENTO1.1 ObjetivosA mediação é, por natureza, ummétodo extrajudicial de resolução deconflitos. Em decorrência, o primeiroresultado que há de se esperar dautilização desse instrumento é aresolução dos conflitos <strong>em</strong> questão.Vale destacar que o trabalho <strong>em</strong>mediação do Projeto Justiça Cidadã sefundamenta <strong>em</strong> uma percepção amplado direito ao Acesso à Justiça e aoDireito e busca contribuir para suaefetivação <strong>em</strong> sua dimensãoextrajudicial. Por isso, e para poderd<strong>em</strong>onstrar a eficácia do método paraa efetivação do Acesso à Justiça e aoDireito, o objetivo do levantamento foiavaliar, prioritariamente, o grau derespeitabilidade dos acordosrealizados nos núcleos do ProjetoJustiça Cidadã.O segundo objetivodestevantamento se define peloentendimento próprio do ProjetoJustiça Cidadã, que apreende amediação de conflitos comocontribuição para a prevenção daviolência e fomentadora de umacultura de paz. O instrumentomediação de conflitos, por privilegiar odiálogo e a liberdade das partes <strong>em</strong>solucionar seus conflitos, possibilitarebatimentos sobre as relaçõesinterpessoais para além do momentode construção do acordo. Assim,permite a redefinição das percepçõesdos conflitos tratados e dos que aindaestão suspensos, evitandodesdobramentos mais graves econstruindo formas de se relacionar.Nesse sentido, o levantamento buscouavaliar o rebatimento da mediaçãopara a relação entre as partes e outrosatores envolvidos, como as crianças,no caso de acordos de PensãoAlimentícia.Por último, procurou-se avaliaro grau de satisfação da populaçãousuária com o atendimento d<strong>em</strong>ediação efetuado nos núcleos. Ograu de satisfação não deve ser <strong>aqui</strong>entendido somente <strong>em</strong> termos dedes<strong>em</strong>penho da equipe, mas sim deuma forma abrangente. O trabalho doProjeto Justiça Cidadã se baseia <strong>em</strong>


231um entendimento amplo da mediaçãode conflitos, praticada à luz dosDireitos Humanos, o que significa queela é utilizada não só na busca daresolução rápida e eficaz de umconflito, mas também comoinstrumento de fortalecimento daautonomia das partes, tanto diante deuma a outra como na busca pelaefetivação de seus direitos de modogeral. Assim, a mediação de conflitosé apreendida por meio de umametodologia <strong>em</strong> educação <strong>em</strong> direitos,favorecendo o exercício da cidadania.Por isso, quando da construção doobjeto do levantamento, a noção desatisfação foi definida de forma aavaliar a contribuição do atendimentode mediação e dos d<strong>em</strong>aisatendimentos realizados nos núcleos,para o exercício e a garantia dosdireitos dos cidadãos envolvidos.1.2 Características gerais dolevantamentoO levantamento realizado peloProjeto Justiça Cidadã é de naturezaqualitativa e busca captar o olhar e apercepção de uma das partes doprocesso de mediação, a solicitante.Assim, não se buscou definir amediação, os acordos e suarespeitabilidade <strong>em</strong> termos binários eexcludentes. Ao contrário, optou-sepor uma abordag<strong>em</strong> abrangente dasnuances e complexidades humanasque compõ<strong>em</strong> o trabalho do ProjetoJustiça Cidadã.É necessário desde já explicitarque, na terminologia do Projeto JustiçaCidadã, a solicitante é a pessoa queprocura um dos núcleos de atuação<strong>em</strong> busca da resolução de um conflitofamiliar. Já o solicitado, é a pessoaque, <strong>em</strong> decorrência da iniciativa dasolicitante, vai ser convidado acomparecer ao núcleo para iniciar-seum processo de mediação de conflitos.Graças ao Banco de Dados, mantidode forma sist<strong>em</strong>ática desde 2006, oProjeto Justiça Cidadã já dispunha doperfil completo das categoriassolicitante e solicitado, assim comodas d<strong>em</strong>andas que chegam aosnúcleos. A proporção de mulheres ehomens que solicitam os serviços dosnúcleos é estável ao longo dos anos,com a seguinte tendência: sãomulheres 90% dos solicitantes e 10%,homens. No caso do solicitado, aproporção se inverte. Por isso, desdejá, designamos voluntariamente acategoria solicitante como f<strong>em</strong>inina, ea de solicitado como masculina.Escolheu-se trabalhar de iníciocom um levantamento de campo(survey) <strong>em</strong> cima de acordos


232realizados por meio de mediação <strong>em</strong>2008, ou seja, um universo de 506acordos. Apesar de estes constituír<strong>em</strong>um universo relativamente pequeno,optou-se por aplicar o questionário dolevantamento a uma amostrarepresentativa, por contato telefônico,decisão que se justifica pelaslimitações próprias de um projetosocial <strong>em</strong> termos de recursosfinanceiros e humanos. Na fase depré-teste, quando foram selecionadosos acordos que iriam compor aamostra, a dificuldade <strong>em</strong> estabelecercontato com as solicitantes apareceucomo outro obstáculo a sercontornado. A população atendidapelo Projeto Justiça Cidadã secaracteriza por situações de grandevulnerabilidade socioeconômica,estrutura familiar e domiciliar frágil einstável. Em consequência, muitos dosnúmeros para contato informados naépoca da realização do acordo já nãoeram válidos. Portanto, foi decididolimitar o levantamento a uma amostrade 143 solicitantes, cuja d<strong>em</strong>andaresultou <strong>em</strong> acordo de mediação.Para garantir a confiabilidade dolevantamento, a amostra segue opadrão da repartição dos acordos pornúcleo. O núcleo do Ibura éresponsável por 75% dos acordosrealizados no Projeto Justiça Cidadã;essa mesma proporção foi respeitadana construção da amostra. Emseguida, buscou-se também respeitaruma repartição equitativa <strong>em</strong> 2008,selecionando-se acordos de cadamês. É importante desde já salientarque, na ocasião da realização dolevantamento, todos os acordosdatavam entre um e dois anos.Também se procurou manter adistribuição por sexo que caracteriza ogrupo formado por solicitantes. Aamostra final é, portanto, compostapor uma maioria de mulheres (97%).O levantamento, por terabordag<strong>em</strong> qualitativa, caracteriza-sepor perguntas abertas, permitindoretratar a complexidade dosentendimentos e das percepções daspessoas ent<strong>revista</strong>das. Para permitiruma análise mais objetiva dasrespostas formuladas ao questionário,criaram-se categorias específicas paracada pergunta, utilizadas como gradesde leitura.


2332 DO CONTEÚDO E DARESPEITABILIDADE DO ACORDOO Projeto Justiça Cidadã atendea qualquer tipo de d<strong>em</strong>anda jurídicamediante orientação eencaminhamento. No entanto, seufoco é <strong>em</strong> Direito de Família. Os casosque se enquadram nesse recorte sãoatendidos por mediação de conflitos, 2possibilitando a elaboração de umacordo entre as partes envolvidas.Como d<strong>em</strong>onstrado na Figura 1,tratam de Pensão Alimentícia 99% dosacordos. A questão das visitas, nocontexto de separação, aparece comosecundária, sendo tratada <strong>em</strong> poucomais da metade dos acordosanalisados. Os dados corroboram oque se observa no realizar damediação: a visita não é prioridadepara nenhuma das partes. Os casossão diversos e variados, vão de paique não apresenta nenhum interessepela criança à mãe que o proíbe devê-la, mas é de praxe as partesdecidir<strong>em</strong> não registrar nenhum tipode acordo sobre visita. 32A exceção dos casos com histórico deviolência doméstica. Em tais casos, ad<strong>em</strong>anda é tratada na forma jurídica da açãode alimentos.3 Para desenvolvimento do assunto na práticado Projeto Justiça Cidadã, cf. Oliveira (2009),Lima (2009) e Silva (2009).120%100%80%60%40%20%0%O que foi acordado durante a mediação?99%57%Figura 1 – Gráfico representativo de acordos feitos namediaçãoA categoria “Outros” englobael<strong>em</strong>entos materiais além da pensão,como calçados, roupas de festa, cestabásica, reforçando a centralidade dapreocupação material e financeira paraas solicitantes. Esses dados nãopod<strong>em</strong> ser desvinculados do perfilsocioeconômico da populaçãoatendida, composta pela parcela mais<strong>em</strong>pobrecida da sociedade. Em 2008,36% das solicitantes apresentaramrenda de até meio salário mínimo, e34% declararam não ter<strong>em</strong> renda,sendo estas dependentes dacontribuição de terceiros ou deprograma social (GAJOP, 2008).As respostas dadas à questãocentral do levantamento, que trata darespeitabilidade dos acordosefetuados por mediação de conflitos, eàs modalidades de seu cumprimentochamam a atenção pelas nuances queintroduz<strong>em</strong> e pela diversidade de8%Pensão alimentícia Visitas Outros


234entendimentos e comportamentos quetraduz<strong>em</strong>.Uma primeira análise permitedestacar que <strong>em</strong> dois terços dos casosas solicitantes consideram que oacordo está sendo mantido, pelomenos <strong>em</strong> parte (43% das solicitantesent<strong>revista</strong>das indicam que sim, oacordo está sendo mantido, e 24%que ele está sendo mantido, mas só<strong>em</strong> parte (Figura 2).O acordo está sendo mantido?24%43%SimFigura 2 – Gráfico do percentual de acordosmantidosEm parteNãoA percepção quanto aoresultado da mediação e decorrentesacordos é majoritariamente positiva.Assim mesmo, análises maisdetalhadas e interligadas das formascomo os acordos vêm sendo postos<strong>em</strong> prática permit<strong>em</strong> apreender melhoros fatos por trás das falas e avaliar arespeitabilidade dos acordos commaior precisão e nuances.2.1 Do pagamento da pensãoalimentíciaAs figuras seguintes diz<strong>em</strong>respeito exclusivamente ao it<strong>em</strong>Pensão Alimentícia. Por ser umaquestão quase s<strong>em</strong>pre abordada pelosacordos (99% dos acordadosanalisados), e por constituir-se comopreocupação e reivindicação centraldas solicitantes, a análise dasmodalidades de pagamento da pensãoé particularmente esclarecedoraquanto ao nível de respeitabilidadedos acordos.Os dados concernentes aot<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que o acordo foi cumpridodev<strong>em</strong> ser lidos com o objetivo deavaliar as possibilidades da mediação<strong>em</strong> oferecer uma solução duradourapara um conflito.Segundo relatos dassolicitantes, percebe-se que, <strong>em</strong> 92%dos casos, os acordos resultam <strong>em</strong>algum pagamento, mesmo t<strong>em</strong>porárioou irregular (Figura 3).


235T<strong>em</strong>po de cumprimento do acordo60%50%53%40%30%20%10%0%10%Até 3meses6% 6%Até 6mesesAté 9meses15%Até 1 ano Acima de1 ano2%Pagaquandopode8%NuncapagouFigura 3 – Gráfico do t<strong>em</strong>po de cumprimento do acordoEm 53% dos casos, a pensãoestá sendo paga há mais de um ano.Considerando que os acordosanalisados datam de um a dois anos,pode-se considerar que, nessescasos, a mediação e os acordos quedela resultaram favoreceram certaestabilidade quanto ao pagamento dapensão. Nos outros casos, v<strong>em</strong>os quea mediação e o acordo resultaram <strong>em</strong>uma solução t<strong>em</strong>porária,representando descontinuidade, ou atédescumprimento dos acordosassinados.Da observação detalhada dasmodalidades do pagamento dapensão, puderam ser criadas seiscategorias que esclarec<strong>em</strong> quanto àsformas de respeitabilidade dosacordos (Figura 4). Percebe-se que asrespostas das solicitantes <strong>em</strong> termosde cumprimento ou não cumprimentodo acordo escond<strong>em</strong> realidadesnuançadas, inclusive porque, nestafigura, várias respostas são possíveis.Por ex<strong>em</strong>plo, é possível que a data dopagamento não seja respeitada,tampouco o valor, mas que umapensão, diferente daquela definida noacordo, esteja sendo paga.


236Observações sobre o pagamento da pensão35%30%25%20%25%21%29%15%10%7% 8%10%5%0%S<strong>em</strong>pre pagou certoNão paga o valor acordadoPagou uns meses e parouAtrasa a dataPaga quando podeNunca cumpriu o pagamentoFigura 4 – Gráfico representativo da regularidade de pagamento da pensão alimentíciaÉ interessante destacar quesomente 18% das solicitantes dão aentender que a pensão não estásendo paga (“pagou uns meses eparou” e “nunca cumpriu opagamento”). Nos 82% restantes,mesmo com irregularidades notocante a valores e períodos, existeuma contribuição financeira do pai.Dentre esses, os casos <strong>em</strong> que apensão é paga, mas não nos valoresdeterminados pelo acordo, constitu<strong>em</strong>a maior parte: 29%. Em 25% doscasos, a pensão é paga conforme ostermos do acordo assinado, e, <strong>em</strong>21%, a pensão é paga com atraso.Para apreender esses dados<strong>em</strong> sua globalidade, não se deveperder de vista o contextosocioeconômico no qual são feitos eaplicados os acordos analisados. Onível de renda e de condição detrabalho apresentados pelossolicitados – responsáveis pelopagamento da pensão – indicam setratar de uma populaçãosocioeconomicamente frágil. Em2008, ganhavam até um saláriomínimo 58% deles, e 55% deles nãoapresentavam nenhum vínculo<strong>em</strong>pregatício (GAJOP, 2009). Em talcontexto de instabilidades, o dado de82% de casos <strong>em</strong> que há, de fato,alguma forma de pagamento, éconsiderado como um bom indício derespeitabilidade dos acordos.É revelador o fato de assolicitantes destacar<strong>em</strong> elas mesmasa correlação entre contextosocioeconômico e irregularidades depagamento, apesar de ser<strong>em</strong>, assimcomo seus filhos, os principais


237“perdedores” da situação. A Figura 5apresenta o motivo pelo qual, na visãoda solicitante, o solicitado está ou nãorespeitando os termos do acordo.Como na Figura 4, as categoriasforam criadas com base nas respostasdas solicitantes, já que, na construçãodo questionário, optou-se porperguntas e respostas abertas,privilegiando-se, assim, aespontaneidade de fala das mulheresanalisadas.40%Por que razão o pai cumpre/não cumpre opagamento da pensão?34%30%20%10%0%13%11%17% 17%7%1%O pai t<strong>em</strong> obrigaçãoO pai t<strong>em</strong> medo de ser preso/ da JustiçaO pai gosta da criançaEstá des<strong>em</strong>pregadoNão quer pagarÉ irresponsávelOutrosFigura 5 – Gráfico do motivo que leva o pai a pagar ou não a pensãoAs três primeiras categorias,representadas <strong>em</strong> azul na figura,indicam os motivos que, segundoelas, garant<strong>em</strong> o pagamento dapensão. A noção de dever parental,trabalhada nas diversas etapas dosatendimentos, constitui-se comocategoria de maior expressão, com34%. Interessante notar que apossibilidade da coerção/repressãoser motivadora do pagamento aparececom expressão muito menor, 13%.Se, <strong>em</strong> termos reais, as duascategorias são bastante próximas erelacionadas (existência de umaobrigação e, <strong>em</strong> decorrência, de umapossível punição), a diferença de falaentre as duas categorias traz o focopara um entendimento <strong>em</strong> termos dedireitos e deveres, el<strong>em</strong>entosconstituintes de uma cidadania ativa.É difícil avaliar a dimensão dacontribuição do Projeto Justiça Cidadãpara a construção desse paradigma,mas é possível dizer que osresultados apresentados estão <strong>em</strong>adequação com os objetivos <strong>em</strong>étodos do projeto.


238Da mesma forma, destaca-se,das três seguintes categoriasrepresentadas <strong>em</strong> verde, que 17%das solicitantes justificam o nãopagamento, ou o pagamento irregularda pensão alimentícia, pelo fato de opai estar des<strong>em</strong>pregado, mostrandoassim, não só a relação entre vivênciafamiliar e contexto socioeconômico,mas, principalmente, um grau decompreensão da situação do “outro”,el<strong>em</strong>ento particularmente enfatizadono decorrer do processo de mediação.O total de 24% das respostasformuladas ao questionário (“não pagaporque não quer” e “porque éirresponsável”) denota uma percepçãonegativa do pai e, portanto, umasituação de dificuldade para a mãe(supõe-se que, nesses casos, apensão não está sendo paga), umindício de que o processo d<strong>em</strong>ediação ainda não alcançou osresultados esperados.A Figura 5 ainda ilustra apercepção das solicitantes quanto ànoção de paternidade. Apenas 11%delas destacam o laço afetivo entre opai e a criança como motivo dopagamento. Nesse caso, o viésintroduzido pelo fato de dar vozsomente às solicitantes não pode serignorado. A percentag<strong>em</strong> de 11% deveser contraposta aos dados a seguir,sobre os acordos de visita e asmodalidades de aplicação.2.2 Das visitasComo está o cumprimento das visitas?50%40%39%30%25%20%10%10% 9%14%3%0%VisitaA mãe t<strong>em</strong> de levar o filho para ver o paiA família do pai pega a criançaRaramenteNão visitaA mãe proibiuFigura 6 – Gráfico representativo do cumprimento das visitas


239Como nas Figuras 4 e 5, naFigura 6 apresentam-se categoriasconstruídas a posteriori. É tambémnecessário destacar que nessa figuraretratam-se todos os acordosanalisados, inclusive aqueles <strong>em</strong> quea visita não tinha sido expressamenteacordada. Assim, mais do queinformações estritas sobre arespeitabilidade dos acordos,esclarec<strong>em</strong>-se as formas derelacionamento pai-filho no contextoda existência de um acordo d<strong>em</strong>ediação de conflitos.Em 58% dos casos (quatroprimeiras categorias: “Visita”, “A mãet<strong>em</strong> de levar o filho para ver o pai”, “Afamília do pai pega a criança”,“Raramente”), percebe-se que ovínculo paternal está mantido, mesmode forma frágil, contra 42% <strong>em</strong> que háfalta de visitas. A fragilidade darelação entre os pais e os filhos émuito mais perceptível quando sepercebe que, dentre os 58% de casos<strong>em</strong> que há vínculo paternal, <strong>em</strong> 10%destes, o pai e o filho mantêm contatopor iniciativa da mãe, e, <strong>em</strong> 9%, poriniciativa da família paterna.Esses dados, ainda que seconsidere o viés do olhar materno, sãorepresentativos de uma realidade quev<strong>em</strong> sendo estudada e apontada comopreocupante: a dificuldade deafirmação da figura paterna <strong>em</strong>contextos de pobreza (OLIVEIRA,2009). A título de ilustração, o Quadro1 apresenta algumas das falasrecolhidas no contexto dolevantamento.Quadro 1 – Fala dos ent<strong>revista</strong>dos sobre as visitas do pai a filhosObservações sobre visitas“Os filhos é que vão à casa dele e quando vão é rapidinho, ele praticamenteexpulsa os coitadinhos.”“A filha mais velha não gosta de ir à casa do pai.”“Não foi acordado, mas ele vai ver o filho.”“Eu não estou deixando-o visitar, se ele não está cumprindo, eu também nãocumpro.”“Ele diz que justiça nenhuma o obriga a ver os filhos.”


2403 MEDIAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE CONSOLIDAÇÃO DE UMA CULTURADO DIÁLOGO E DA PAZA escolha metodológica portrabalhar com mediação correspondeà crença de seu potencial comométodo, não só de resolução deconflitos, mas também de prevenção.O diálogo entre as partes éprivilegiado como principal instrumentoda mediação, e, mais além, constituisecomo seu objetivo, já que o conflitomediado nasce, <strong>em</strong> princípio, <strong>em</strong>decorrência da ruptura dos canais decomunicação entre as partes. Por isso,a escolha de um projeto social <strong>em</strong>focar seu trabalho <strong>em</strong> mediação deconflitos se situa também <strong>em</strong> umcontexto mais amplo de políticas deprevenção à violência.A abordag<strong>em</strong> metodológica daproposta do Projeto Justiça Cidadã setorna particularmente relevanteconsiderando-se a implantação deseus núcleos <strong>em</strong> bairroscaracterizados por altos índices deviolência e, particularmente, violênciadoméstica. A título de ex<strong>em</strong>plo, oIbura, bairro de moradia de 75% daspessoas ent<strong>revista</strong>das, era, <strong>em</strong> 2005,apontado como um dos bairros doRecife com maior taxa de homicídios,com 141,94 homicídios por 100.000habitantes, segundo dados de 2003(RIQUE, 2003). A título decomparação, <strong>em</strong> 2001, a taxa dehomicídios para 100.000 habitantes noestado de Pernambuco era de 58,8(LIMA, 2005).A Figura 7 apresenta asrespostas das solicitantes quanto aoimpacto da mediação no diálogo entreas partes. Em um primeiro momento,as respostas foram classificadas <strong>em</strong>três categorias: melhorou, com 44%das respostas; está igual, com 51%das respostas; e piorou, com 5%.


241O diálogo entre as partes5%44%MelhorouEstá igual51%PiorouFigura 7 – Gráfico representativo do impacto da medição no diálogo entre as partesA Figura 8 é esclarecedora quanto ao significado dado pelas solicitantes aoimpacto da mediação. Várias respostas são possíveis.O que melhorou?70%60%50%60%40%30%26%20%10%0%2%8%4%O Diálogo entre os paisAs brigas acabaramO pagamento é feito <strong>em</strong> diaO casal voltouA relação com o filhoFigura 8 – Gráfico representativo de melhoria depois da mediaçãoDas ent<strong>revista</strong>das que estimamque a mediação contribuiu paramelhorar o diálogo, 60% afirmam quea melhoria se deu especialmente narelação entre o pai e a mãe, e 26%delas diz<strong>em</strong> que a mediaçãofavoreceu o diálogo entre pais e filhos.Em 8% dos casos, as solicitantestambém destacam o fim das “brigas”.À luz das Figuras 7 e 8, épossível apontar para as perspectivasoferecidas pela mediação <strong>em</strong> termosde difusão de uma cultura do diálogo.Mudanças <strong>em</strong> paradigmas derelacionamento e comportamentoconstitu<strong>em</strong> um processo progressivo,<strong>em</strong> longo prazo e difícil de medir. Noentanto, considerando as percepçõesexpressas pelas solicitantes, e que


242mais uma vez a atuação se deu nosbairros caracterizados pelos maioresíndices de violência, os resultadosdeste primeiro levantamento sãoparticularmente encorajadores quantoàs potencialidades de um projetoextenso de mediação de conflitos noâmbito familiar. O Quadro 2 dá voz àssolicitantes:Quadro 2 – Fala das solicitantes sobre o impacto da mediação no diálogoObservações das solicitantes sobre o impacto da mediação no diálogo“Entre eu e ele, o diálogo melhorou” [mas] “Ele dá duas palavras com o menino e trêsde tapas.”“No começo, o pai ficou com raiva, mas depois voltou ao normal. O pai frequenta acasa a qualquer hora, inclusive <strong>em</strong> datas com<strong>em</strong>orativas.”“O diálogo entre os pais ficou na mesma, mas mudou com a filha, melhorou. A meninagosta de ir para a casa do pai.”“Com a mãe melhorou o diálogo, mas eu o proibi de ver a menina depois que ele paroude pagar a pensão.”“Todos os conflitos foram resolvidos, até porque surgiam por conta da pensão.”“As brigas diminuíram e agora dá mais atenção à criança.”“Os pais s<strong>em</strong>pre se deram b<strong>em</strong>, mas depois da mediação, melhorou com o filho,s<strong>em</strong>pre o leva para passar o dia com ele.”“O diálogo não melhorou muito, mas agora ele paga direito.”“Agora, até com a esposa atual do pai das crianças, tenho diálogo.”“Com a filha está b<strong>em</strong> melhor, mais amável”“Antes ele não me atendia b<strong>em</strong>, não conversava e brigava. Ele vinha com quatropedras na mão. Agora não, a gente conversa direitinho.”A Figura 9 apresenta aspercepções daquelas que nãoconstataram mudança do diálogo apósa mediação. Portanto, pode serconsiderado como indicativo docontexto no qual se inicia um processode mediação. Um númerorelativamente pequeno de solicitantesdiz que s<strong>em</strong>pre existiu diálogo entre opai e a mãe. No restante dos casos,predominam as situações <strong>em</strong> que nãohá canal de comunicação instaurado.


243O que está na mesma situação?60%50%50%40%30%20%10%18%15%6%8%3%0%Os pais s<strong>em</strong>pre conversaramO pai não t<strong>em</strong> diálogo com o filhoContato só por telefoneO pai não t<strong>em</strong> diálogo com a mãeMuitas brigasO pai ameaça a mãeFigura 9 – Gráfico representativo de não mudança com a mediaçãoUma análise conjunta dasFiguras 8 e 9 fortalece a ideia de queuma melhoria no diálogo, nessecontexto, pode ser avaliada como umareal progressão no sentido dofortalecimento de uma cultura dodiálogo nas famílias atendidas, e, porextensão, nos bairros de atuação.Das solicitantes, apenas 5%,que afirmam haver deterioração dodiálogo entre as partes, destacam asseguintes razões: “o pai ficouchateado com a atitude da mãe <strong>em</strong>procurar o núcleo”; “afastou-se dofilho” e “as brigas aumentaram”.Embora <strong>em</strong> uma porcentag<strong>em</strong>pequena, esses casos de resultadocontrário ao almejado d<strong>em</strong>andammaior atenção por parte dos técnicos,devendo estar s<strong>em</strong>pre atentos duranteo desenrolar da mediação e,eventualmente, estimular as partes ase investir<strong>em</strong> <strong>em</strong> um processo maislongo de mediação.4 DO GRAU DE SATISFAÇÃO DAPOPULAÇÃOA avaliação do atendimentorecebido pelas solicitantes églobalmente positiva. Em primeirolugar, buscou-se avaliar se o objetivo<strong>em</strong> termos de Educação <strong>em</strong> Direitosfoi atingido. As respostas dadas àprimeira pergunta sobre a resoluçãodo direito reivindicado foram vagas eorganizadas <strong>em</strong> três categorias, sendovárias respostas possíveis (Figura 10).


244Em que o atendimento contribui para a resoluçãodo direito reivindicado?45%40%35%30%25%20%15%10%5%0%39%34%É bom/Ajudou muito Ajudou a conhecer osdireitos27%O pai passou a pagarFigura 10 – Gráfico representativo da contribuição do atendimento para aresolução do direito reivindicadoEmbora a maior parte dasent<strong>revista</strong>das considere que oatendimento nos núcleos “ébom/ajudou muito”, sendo este, <strong>em</strong> si,um resultado positivo, pod<strong>em</strong>osconsiderar que as 34% de solicitantesque apontaram para o conhecimentode direitos representam melhor oscasos <strong>em</strong> que o objetivo de<strong>em</strong>poderamento do Projeto JustiçaCidadã se concretizou.As Figuras 11 e 12compl<strong>em</strong>entam e esclarec<strong>em</strong> sobre ograu de satisfação das solicitantes. Asquestões relacionadas maisespecificamente com o atendimentosuscitaram respostas mais objetivas.Em 95% dos casos, destacaram-sepontos positivos ligados a bomatendimento, agilidade e tratamento.Destaques Positivos e Negativos5%PositivoNegativo95%Figura 11 – Gráfico representativo da satisfação das solicitantes com o atendimento


245Atendimento Positivo30%20%16%22%17%25%10%0%9% 10%1%TratamentoTudo foi bomAgilidadeCumprimento dos horáriosAtendimentoÓtimoEquipeFigura 12 – Gráfico representativo dos pontos positivos do atendimentoÉ importante salientar que, aolongo dos seus oito anos de atuação,os núcleos do Projeto se posicionaramcomo referência jurídica dacomunidade e assum<strong>em</strong> a imag<strong>em</strong> dopotencial de Acesso à Justiça e aoDireito, especialmente no caso doIbura, bairro onde a oferta de serviçosé notadamente escassa. A percepçãopositiva dos atendimentos do ProjetoJustiça Cidadã é particularmenteencorajadora para os trabalhos que sededicam a difundir uma cultura deDireitos Humanos e Cidadania,d<strong>em</strong>onstrando a viabilidade de taltrabalho.O reduzido percentual deent<strong>revista</strong>das (5%) que deramdestaque a el<strong>em</strong>entos negativos noatendimento se referiram,principalmente, à questão do nãocumprimento do acordo, o que indica,por um lado, uma distorção do sentidoda pergunta; por outro lado, reforça aboa avaliação do trabalho deatendimento da equipe. De fato, acentralidade das preocupaçõescontinua sendo a pensão alimentícia.CONCLUSÃOA análise dos resultados dolevantamento, efetuada pelo ProjetoJustiça Cidadã, fornece el<strong>em</strong>entos deavaliação do projeto <strong>em</strong> si e,sobretudo, apresenta indícios etendências que permit<strong>em</strong>compreender e mensurar aspotencialidades oferecidas peloinstrumento mediação, utilizado à luzdos princípios dos Direitos Humanos eaplicado a conflitos familiares <strong>em</strong> umcontexto de pobreza urbana.


246Dois pontos fundamentais sedestacam. Em primeiro lugar, apercepção globalmente positiva que asfalas recolhidas revelam confere aoProjeto uma legitimidade moralperante a população dos bairrosatendidos. Nesse sentido, os dados dolevantamento corroboram odiagnóstico da confiança depositadapela população no trabalho efetuado,já constatada pelo fenômeno de “bocaa boca”, maior mobilizador ded<strong>em</strong>anda, que 64% das solicitantesprocuram os núcleos sob orientaçãode pessoas próximas: amigos,vizinhos e familiares (GAJOP, 2009).Essa primeira constataçãotambém qualifica a inserção dosnúcleos na comunidade como pontode referência <strong>em</strong> termos de Acesso àJustiça. Quando 43% das solicitantesdeclaram que o acordo está sendomantido e 34% destacam que oatendimento contribuiu <strong>em</strong> termos de“conhecimento dos direitos”,observamos a materializaçãoprogressiva dos resultados do trabalhopara a efetivação do Acesso à Justiçae ao Direito. Esses resultados sãoparticularmente encorajadores quantoàs potencialidades da mediação deconflitos como instrumento deeducação <strong>em</strong> direitos, contribuindopara a construção de uma práticacidadã.Embora essas informaçõessejam de extr<strong>em</strong>a relevância para osidealizadores do Projeto JustiçaCidadã e o des<strong>em</strong>penho de suaequipe, a maior contribuição destelevantamento se dá nas informaçõessobre o impacto da mediação, aviabilidade dos acordos e a formacomo estes são aplicados.Assim, como segundo ponto,destaca-se do levantamento que amediação à luz dos Direitos Humanosnão pode ser apreendida como umsimples método de resolução deconflitos, alternativo a um processojudicial. Existe uma diferençaessencial de concepção do conflito,que repercute na própria “resolução”.Com a mediação, busca-se “cultivar osentido positivo do conflito,entendendo este como algo naturaldas relações humanas que, quandob<strong>em</strong> estruturado, torna-se capaz depropiciar o amadurecimento e oprogressivo desenvolvimento dasrelações familiares” (PINHEIRO, 2008,p. 1). Desse modo, a resolução formaldo conflito, por uma sentença,condenação ou assinatura de umacordo, passa a ser secundária,dando-se prioridade ao destrinchar doconflito.


247Conflitos familiares dificilmentese resolv<strong>em</strong> <strong>em</strong> um único encontro e,<strong>em</strong> muitos casos, é necessáriogarantir que a mediação seja umprocedimento progressivo. Como asrelações humanas, complexas e <strong>em</strong>constante evolução, a mediação devepermitir a expressão dessasmutações. Por isso, acordosresultantes de uma mediaçãoapresentam uma solução por vezest<strong>em</strong>porária, <strong>em</strong> um processo contínuode diálogo e negociação. A solução aum conflito pode, por vezes, exigirperiódicas rodadas de negociação,resultando <strong>em</strong> diferentes acordos, <strong>em</strong>t<strong>em</strong>pos diferentes, cada um delesrefletindo a realidade do momento.Em decorrência, o nãocumprimento dos termos exatos doacordo não deve ser automaticamenteapreendido como uma quebra deste.Por isso, t<strong>em</strong>os númerosaparent<strong>em</strong>ente contraditórios; noentanto, dialogam entre si: quando43% das mulheres afirmam que oacordo está sendo cumprido, <strong>em</strong>borasomente 25% delas indiqu<strong>em</strong> que apensão está sendo paga nos termosdo acordo, v<strong>em</strong>os o reflexo daspossibilidades de adequação àrealidade incerta <strong>em</strong> que viv<strong>em</strong> aspartes. A compreensão mútua, que sereflete nos relatos de 44% d<strong>em</strong>ulheres que afirmam que o diálogointerpartes melhorou, e 17% delas que“justificam” as irregularidades depagamento pelo des<strong>em</strong>prego do pai,denota um contexto de relaçõesfamiliares menos hostis.A autonomia e oreconhecimento das partes são opostulado maior de um processo d<strong>em</strong>ediação. Por isso, esta busca criaras condições para que o diálogo quese pôde instaurar no momento damediação se perpetue, permitindoeventualmente às partes renegociarentre si, s<strong>em</strong> necessáriaintermediação, os termos do acordo.Mais do que garantir umaconvivência pacífica entre partes, amediação, apreendida de formaampla, permite o estabelecimento deestruturas de convivência pautadas nacultura do diálogo e da paz, que t<strong>em</strong>repercussões nas d<strong>em</strong>ais partesenvolvidas, como os filhos no casodeste levantamento, vizinhos, colegas,etc. Por isso, a mediação pode tornarseinstrumento de uma política deprevenção da violência, sendo assim“considerada como uma das primeirasmodalidades de regulação dosconflitos sociais, como um dosel<strong>em</strong>entos essenciais que participamna constituição do elo social”(MULLER, 2007, p. 154-155).


248ReferênciasGAJOP. Projeto Justiça Cidadã:relatório anual 2008. Recife: <strong>Gajop</strong>,2008.______. Projeto Justiça Cidadã:relatório anual 2009. Recife: <strong>Gajop</strong>,2009.LIMA, Alessandra. A contribuição dapsicologia e suas nuances namediação de conflitos. In: MONTEIRO,Valdênia Brito (Org.). Justiça Cidadã:uma experiência de mediação deconflitos <strong>em</strong> direitos humanos. Recife:<strong>Gajop</strong>, 2009. p. 66-73.LIMA, Maria Luiza C. de; XIMENES,Ricardo A. de A.; FEITOSA, CarlosLuna; SOUZA, Edinilsa Ramos de;ALBUQUERQUE, Maria de Fátima P.Militão; BARROS, Maria Dilma deAlencar et al. Conglomerados deviolência <strong>em</strong> Pernambuco, Brasil.Revista Panamericana de SaludPública, v. 18, n. 2, p. 122-128, ago.2005.. Acesso <strong>em</strong>: 18 fev. 2011.RIQUE, Célia Dantas; AGUIAR, ElaineAparecida; LINS, José Alberto;BARROS, Leonardo Nunes. Acriminalidade no Recife: um probl<strong>em</strong>ade amplitude nacional. Recife: <strong>Gajop</strong>;Bagaço, 2005.SILVA, Ana Lúcia dos Santos;ROSAS, Márcia; MADUREIRA,Vaneska Natazcha Fonseca. Nasentrelinhas da pensão alimentícia:(re)conhecimento das organizaçõesfamiliares a partir da experiência doJustiça Cidadã. In: MONTEIRO,Valdênia Brito (Org.). Justiça Cidadã:uma experiência de mediação deconflitos <strong>em</strong> direitos humanos. Recife:<strong>Gajop</strong>, 2009. p. 91-98.MULLER, Jean-Marie. O princípio danão-violência: uma trajetória filosófica.São Paulo: Palas Athena, 2007.OLIVEIRA, Etiane. A paternidade nocontexto de ruptura conjugal defamílias pobres. In: MONTEIRO,Valdênia Brito (Org.). Justiça Cidadã:uma experiência de mediação deconflitos <strong>em</strong> direitos humanos. Recife:<strong>Gajop</strong>, 2009. p. 46-54.PINHEIRO, Dávila Teresa de GalizaFernandes. Mediação familiar: umaalternativa viável à resolução pacíficados conflitos familiares. IBDFAMAcadêmico, 9 set. 2008. Disponível<strong>em</strong>:

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