julia augusta boni peruchi alceu chichôrro - Universidade Federal ...
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JULIA AUGUSTA BONI PERUCHI<br />
ALCEU CHICHÔRRO:<br />
E A CONSTRUÇÃO DA MULHER MODERNA, EM 1923.<br />
Monografia apresentada à disciplina de Estagio<br />
Supervisionado em Pesquisa Histórica, como<br />
requisito parcial da conclusão do Curso de<br />
Bacharelado e Licenciatura em História, Setor<br />
de Ciências Humanas, Letras e Artes,<br />
<strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> do Paraná.<br />
Orientador: Prof.º Dr. Magnus Roberto de Mello<br />
Pereira.<br />
CURITIBA<br />
2006
SUMÁRIO<br />
LISTA DE ILUSTRAÇÕES.............................................................................iii<br />
RESUMO.........................................................................................................iv<br />
ABSTRACT.....................................................................................................v<br />
1 INTRODUÇÃO.............................................................................................1<br />
2 O PERSONAGEM: ALCEU CHICHÔRRO..................................................4<br />
2.1 O OFICIO DO JORNALISMO...................................................................10<br />
2.2 A CRÔNICA..............................................................................................13<br />
3 O TANQUE DE JERUSALÉM.....................................................................18<br />
3.1 A MODA....................................................................................................19<br />
3.2 O ADULTÉRIO..........................................................................................24<br />
AS PUBLICAÇOES LOCAIS...........................................................................28<br />
4 CONCLUSÃO..............................................................................................31<br />
REFERÊNCIAS..............................................................................................33<br />
ii
LISTA DE ILUSTRAÇÕES<br />
FIGURA 1 - CHARGE PROPAGANDA DO FILME “OS TRÊS AMORES”...........10<br />
FIGURA 2 - CAPA DE “OTANQUE DE JERUSALÉM”…………………………….11<br />
FIGURA 3 - CHARGE “A PINTADA” ………………………………........................15<br />
FIGURA 4 - CHARGE “RAIO X”………………………………………………………..22<br />
iii
ALCEU CHICHÔRRO: E A CONSTRUÇÃO DA MULHER MODERNA, EM 1923.<br />
Resumo<br />
Através da análise estrutural de algumas crônicas que compõe O Tanque de<br />
Jerusalém, o presente trabalho busca rastrear a percepção do jornalista e literato<br />
Alceu Chichôrro sobre a construção de uma nova imagem da mulher, na década de<br />
1920. A monografia foi elaborada em três capítulos, e seu desenvolvimento busca<br />
demonstrar como uma obra literária participa de uma consciência coletiva, por que,<br />
recapitula e desconstrói o discurso mítico da Virgem Maria. Na década de 1920, há<br />
a constatação da emergência de uma nova mulher que se expõe aos olhares<br />
masculinos em trajes e comportamentos desafiadores, e a literatura “fin-de-sciécle”,<br />
com a qual nosso autor mantém contato, era profícua na construção de tipos<br />
femininos “decadentes”, cristalizados na figura da “feme fatale”, o que gera uma<br />
tensão entre os mitos da Virgem Maria e de Salomé. Chichôrro através de seu<br />
discurso faz uma releitura da figura de Virgem Maria como antônimo da mulher<br />
moderna. Caracterizando uma relação de afirmação da imagem da mulher moderna,<br />
sobre a mulher romântica idealizada.<br />
Palavras-chave<br />
Mulheres, modernidade, literatura<br />
iv
Abstract<br />
Through a structural analysis of some of the “Tanque de Jerusalém” (Jerusalem’s<br />
Tank) chronics, this work attempts to capture the perception of literate Alceu<br />
Chicôrro about the construction of a new woman image over the twenties. This work<br />
is divided in three chapters, trying to show the way a literary work takes part in a<br />
collective conscience, as it recapitulates and destroys the mythical speech of Virgin<br />
Mary. In the twenties there’s the sense of an incoming women who exposes herself<br />
to male looks in sensual clothing and behavior, and the “fin-de-sciécle” literature,<br />
which is read by the author in question, was full of decadent female roles,<br />
crystallized in the “feme fatale” figure, which creates a tension between the Virgin<br />
Mary and Salomé myths. Through his speech, Chicôrro sees Virgin Mary as an<br />
antonymous of the modern woman, affirming the image of the modern woman over<br />
the idealized romantic one.<br />
Keywords<br />
Women, modernity, literature<br />
v
INTRODUÇÃO<br />
O livro O Tanque de Jerusalém, de 1923, escrito por Alceu Chichôrro é um<br />
apanhado de crônicas que têm em comum o tema a mulher moderna e as<br />
transformação do comportamento feminino. As crônicas em questão podem ser<br />
consideradas análogas aos mitos etnológicos estudados pela antropologia. Assim, a<br />
metodologia aqui utilizada para seu estudo segue o modelo de Claude Lévi-Strauss<br />
de “análise estrutural do mito”.<br />
Um mito diz respeito, sempre, a acontecimentos passados: “antes da criação do mundo”,<br />
ou “durante os primeiros tempos”, em todo caso, “faz muito tempo”. Mas o valor intrínseco<br />
atribuído ao mito provém de que este acontecimento , que decorreram supostamente em<br />
um momento do tempo, formam também uma estrutura permanente. 1<br />
A mitologia relata os acontecimentos que permanecem na memória, e que<br />
tem uma natureza coletiva, ou seja, que se reproduzem em diferentes regiões e<br />
culturas, e mantêm a capacidade de renovação.<br />
Um mito tem múltiplas versões, Segundo Claude Lévi-Strauss não existe um<br />
relato mítico original ou uma versão “boa” do mito em detrimento das demais. O que<br />
existe, é um mesmo “dispositivo mental” que dá origem as versões de um mito e são<br />
as variações deste que permitem chegar a uma estrutura comum. E é esta estrutura<br />
invariável que nos possibilita compreender a consciência que uma cultura faz de si<br />
mesma.<br />
O caráter repetitivo ou previsível do mito é fundamental, pois é através da<br />
recorrência de elementos que é possível determinar as relações estabelecidas entre<br />
eles, e assim, compreender o sentido do mito.<br />
Os mitos são formados por sistemas simbólicos relacionados entre si. Um<br />
relato mitológico só tem sentido estrutural se for percebido no seu todo, na maneira<br />
com que os elementos combinam entre si.<br />
A noção de estrutura em ciências humanas não difere muito do que em matemática se<br />
denomina um conjunto: um todo constituído por partes articuladas. As partes são chamadas<br />
elementos, as articulações definidas por uma expressão indicadora de relações, por meio<br />
1 LÉVI-STRAUSS, Claude. A estrutura dos mitos. In:___. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro :<br />
Tempo Brasileiro. 1973., p.241.<br />
1
da qual é possível obter qualquer elemento do conjunto. Esta expressão recebe o nome de<br />
modelo. 2<br />
A análise estrutural do mito, segundo Lévi-Strauss 3 , organiza-se de acordo<br />
com o seguinte modelo:<br />
1. Prioridade do todo sobre as partes: O mito só tem sentido quando seus<br />
elementos se encontram combinados.<br />
mitemas.<br />
2. O mito é formado por grandes unidades constitutivas.<br />
3. E necessário reconhecer e isolar as grandes unidades constitutivas ou<br />
4. Os mitemas constituem relações entre unidades menores e organizam o<br />
mito em feixes de relações.<br />
5. A narrativa, concebida como uma sucessão de acontecimentos, possui<br />
uma dimensão temporal: os elementos que o constituem mantêm entre si relações<br />
de anterioridade e posterioridade.<br />
O procedimento de análise empregado nas crônicas literárias de Alceu<br />
Chichôrro, será análogo ao do mito, busca contemplar tanto os aspectos intrínsecos<br />
do texto quanto a dimensão cultural, do impacto da modernidade, nas relações de<br />
gênero.<br />
A monografia foi elaborada em três capítulos, e seu desenvolvimento busca<br />
demonstrar como uma obra literária, que obviamente não constitui em si um mito,<br />
participa de uma consciência coletiva, a qual retira do repertório mítico recursos para<br />
a sua composição.<br />
No início do século XX, temos a emergência de uma cidade urbanizada, na<br />
qual os aspectos morais e as relações humanas passam por sensíveis mudanças.<br />
Neste contexto, o discurso tradicional moralista, a ideologia católica, e os romances<br />
românticos definem o comportamento feminino ideal, alicerçado sobre a idéia de<br />
pureza e virgindade.<br />
Há uma necessidade de normalizar o comportamento feminino e isso se dá<br />
através do estabelecimento de modelos de conduta, o principal deles é o mito cristão<br />
2<br />
PINTO, Milton José. Mensagem Narrativa. In:__. Análise Estrutural da Narrativa. Rio de Janeiro.<br />
VOZES LTDA. 1972. p. 8<br />
3<br />
LÉVI-STRAUSS, Claude. A estrutura dos mitos... p.243.<br />
2
da Virgem Maria, que estabelece a idealização do papel da mulher: como mãe,<br />
responsável pela educação dos filhos; a esposa benevolente; a dona-de-casa.<br />
As narrativas literárias da época, apropriam-se deste mito de formas<br />
variadas, de acordo com o seu objetivo: reforçar convenções sociais e culturais ou<br />
questioná-las. Deste modo, o Tanque de Jerusalém participa do mito da Virgem<br />
Maria com o intuito de desconstruí-lo.<br />
O primeiro capítulo é um breve comentário sobre o escritor Alceu Chichôrro,<br />
suas influencias literárias, obras publicadas. O segundo capítulo trata do oficio de<br />
jornalista exercido por Chichôrro, destacamos neste ponto a adoção por Alceu de<br />
uma linguagem técnica própria do jornalismo, perceptível na preferência de pelas<br />
frases curtas e objetivas, e no formato literário da crônica, que mereceu uma<br />
atenção especial de nosso escritor.<br />
O terceiro capítulo inicialmente busca compreender a estrutura das crônicas<br />
em questão, foram selecionadas seis crônicas das vinte que compõe a obra O<br />
Tanque de Jerusalém, a partir desta escolha foi feito uma análise comparativa dos<br />
elementos significativos, e por conseqüência recorrentes, nas narrativas. Através de<br />
um processo descritivo a narrativa é dividida em uma seqüência, na qual existe uma<br />
articulação previsível dos conteúdos.<br />
Em seguida a descrição do mito-ocorrência é pensado em relação a<br />
informações extratextuais, comparando-o com dois outros mitos, o mito da Virgem<br />
Maria e o mito da Salomé. Em relação ao primeiro existe a construção de um<br />
discurso inverso, ou seja, as narrativas constituem uma oposição ao mito da Virgem<br />
Maria, já em relação ao segundo ocorrerá uma identificação.<br />
Ao final buscamos situar as narrativas de nosso autor em um momento<br />
literário amplo, influenciado pela literatura “decadente” do “fin-de-sciécle”, fazem<br />
parte do mesmo imaginário outras produções locais como a novela escrita por<br />
Octávio de Sá Brito, e inúmeras crônicas, contos e causos publicados nos periódicas<br />
locais.<br />
O intuito deste trabalho é perceber como se dá a relação entre os mitos de<br />
Maria e Salomé e as narrativas analisadas. Cada crônica constrói uma história<br />
particular sobre a mudança no comportamento feminino. Contudo, o conteúdo<br />
significativo que estas narrativas pretendem comunicar as aproximam: são “versões”<br />
de um mesmo mito.<br />
3
O PERSONAGEM: ALCEU CHICHÔRRO.<br />
Alceu Chichôrro Júnior, nasceu em 21 de junho de 1896, filho de Francisca<br />
Hosana Rodrigues e seu esposo Joaquim Procópio Pinto Chichôrro. Seu pai era um<br />
homem de letras, jornalista, administrador, político atuante, filósofo, polemista e<br />
fundador do Centro de Letras do Paraná 4 . Chichôrro teve origem em um ambiente<br />
intelectualizado, contudo passou por dificuldades financeiras em uma família<br />
numerosa com onze irmãos.<br />
Seu pai faleceu paupérrimo, com sessenta anos de idade, sem deixar nem<br />
o numerário para seu funeral. Sua única herança foi uma vasta biblioteca,<br />
posteriormente incorporada ao acervo da Biblioteca Pública do Paraná.<br />
Chichôrro cursou o Ginásio Paranaense 5 , estudou desenho com o pintor<br />
Alfredo Andersen e escultura com Pascoal Rispoli. Começou a trabalhar jovem, com<br />
pouco mais de dezessete anos, como repórter fotográfico no periódico A Tribuna,<br />
em 1913. Três anos depois iniciou sua colaboração humorística com a publicação de<br />
versos, charges e caricaturas. Seus desenhos ganharam popularidade e um espaço<br />
diário no jornal. Assinados sob o pseudônimo de Eloy, abordavam temas diversos,<br />
desde reivindicações populares locais, até noticiários internacionais.<br />
Jornalista atuante, Alceu colaborou em inúmeros jornais e revistas, foi<br />
redator do Diário da Tarde, na Gazeta do Povo e no O Dia. Usando apenas as<br />
iniciais A.C. assinava as crônicas humorísticas, em 20 de janeiro de 1923 edita seu<br />
primeiro livro, uma coletânea de crônicas, intitulada o Tanque de Jerusalém. Em<br />
maio de 1924 assume o cargo de Auxiliar de Administração nos Correios do Paraná.<br />
Criou seu primeiro boneco Tancredo, em 1925 e, no ano seguinte, pelas<br />
páginas de O Dia, surgiu sua personagem mais conhecida, Chico Fumaça, que caiu<br />
no gosto do público e invadiu vários periódicos da Capital. Alceu, com seu tom<br />
desbocado e um jornalismo combativo, sofreu ameaças de prisão, tirou férias<br />
forçadas em Guaratuba, em 1923, e mais tarde, em 1931, foi ameaçado de<br />
deportação para Minas Gerais.<br />
Em 1960, lançou um livro de versos: Quando caem as trevas. No ano<br />
4 BÓIA, Wilson. Alceu Chichorro. Curitiba: SEEC, 1998, p. 21.<br />
5 O atual Colégio Estadual do Paraná.<br />
4
seguinte, após quarenta e oito anos de jornalismo consciente, aposentou-se da lida<br />
diária nos jornais. Em 1964, editou ainda o livro de crônicas selecionadas Mulheres<br />
e mais Mulheres. Faleceu em 30 de abril de 1977, recebendo homenagens<br />
póstumas da Academia Paranaense de Letras e do Centro de Letras do Paraná. 6<br />
Alceu Chichôrro fez parte do movimento futurista juntamente com Alcindo<br />
Lima, Ada Macaggi, Correia Júnior, Jaime Balão Junior, Lacerda Pinto, Octávio de<br />
Sá Barreto, Valfrido Pilotto e Odilon Negrão. Este empreendimento literário de<br />
curtíssima duração teve o mérito de abalar estruturas exaustivamente repetidas e<br />
arejar o clima da província 7 , empunhando bandeiras, tais como: a liberdade de<br />
expressão, o repúdio à métrica e às formas fixas, o culto ao moderno, a oposição ao<br />
passado e o abandono da sintaxe.<br />
O Movimento Futurista chegou aos intelectuais curitibanos sem pretender<br />
nenhum método ou técnica duradouros, apenas como um grito contra as escolas<br />
parnasiana e simbolista que monopolizavam a produção literária até então. Nas<br />
palavras de Erasmo Pilotto, a intenção era “... escrever versos sem rimas e colocá-<br />
los de maneira arrevesada rebelar-se contra as pontuações, as maiúsculas, a<br />
gramática, começar livros de trás para a diante, enfim abalançar-se de tudo que<br />
fosse encenação estrambólica” 8 .<br />
A irreverência aparece nos títulos dos poemas assim como nas dedicatórias<br />
e pseudônimos utilizados pelos autores. Alceu escreveu seus poemas sob o<br />
pseudônimo de Charles Xuxu, com títulos como: "Versos a um Bonde que Passou<br />
em Disparada" ou "A Cidade sem Luz", ou ainda:<br />
Poema Concreto e Anabatístico do Meu Amigo Asfalto<br />
A rua 15<br />
sonho, sonhando, num sonho soturno<br />
o asfalto foi inaugurado<br />
esparramado<br />
pixamente negro<br />
bem diferente ao central...<br />
O Romário está apressado,<br />
o Dr. Goulin já fumou três<br />
caixas de charutos de uma só vez...<br />
Passa o primeiro automóvel...<br />
Passa o segundo automóvel...<br />
...........................................................................<br />
6<br />
Todos os dados bibliográficos contidos neste trabalho foram retirados do livro: BÓIA, Wilson. Alceu<br />
Chichorro. Curitiba: SEEC, 1998, p. 21.<br />
7<br />
SAMWAYS, Marilda Binder. Introdução à literatura paranaense. Curitiba: Livros HDV, 1988.<br />
8 Ibid., p. 35.<br />
5
E agora não é automóvel<br />
É um caminhão,<br />
andando contra a mão!...<br />
É tarde ...<br />
.............................................................................<br />
Escuridão ...<br />
Escuridões...<br />
Holofoticamente<br />
negramente<br />
Fon! Fon!<br />
Fon! Fon!<br />
A chuva caiu<br />
que frio...<br />
Chuaá...Chuaaá<br />
E o asfalto ficou mais liso<br />
do que um funcionário público no fim do mês...<br />
Mas o que me deixou triste<br />
o que me penalizou<br />
mais...muito mais... mais ainda<br />
foi aquela mocinha<br />
rechonchudinha<br />
de sapato<br />
de salto<br />
alto<br />
que escorregou no asfalto...<br />
......................................................................<br />
(de nenhuma Academia de Letras)<br />
(Alceu Chichorro, 1926) 9<br />
Alceu, assim como outros escritores, não abandonou totalmente a rima.<br />
Além do visível abuso de onomatopéias e aparelhos, seus versos estão abarrotados<br />
de situações ou comportamentos modernos: (o salto alto), a mulher ocupando os<br />
espaços públicos, a rua, os automóveis, o asfalto. A questão do asfalto na poesia de<br />
Chichôrro é tanto uma temática futurista – como signo de urbanização e<br />
modernização –, quanto uma reivindicação bem humorada pela melhoria do<br />
calçamento.<br />
O primeiro plano de urbanização implantado em Curitiba data da segunda<br />
metade do século XIX, ocasião em que a cidade foi elevada a Capital, tornando-se o<br />
centro do poder e para onde convergia o desenvolvimento do Estado.<br />
Mais ou menos na mesma época [1885], Curitiba passou a contar com água<br />
encanada e, antes do fim do século, com eletricidade. Também são do mesmo período o<br />
9 Alceu Chichorro. Poema Concreto e não Anabatístico do Meu Amigo Asfalto. Gazeta do Povo,<br />
Curitiba, 20 out. 1926. apud: BÓIA, Alceu Chichorro...<br />
6
Passeio Público e os ‘bonds’, puxados a burro que iam inicialmente da casa do Barão do<br />
Cerro Azul no Fontana, a seus engenhos no Batel. 10<br />
As melhorias se concentraram apenas nas ruas centrais, sem acompanhar<br />
o crescimento urbano gerado pela ascensão financeira dos industriais e<br />
comerciantes do mate, pela proliferação de uma população urbana de profissionais<br />
liberais e funcionários públicos e pelas políticas de imigração (iniciadas em 1855).<br />
Portanto, as reclamações envolvendo a melhoria da infra-estrutura continuavam a<br />
ser os principais temas abordados nos jornais, nas formas de charge, crônica e<br />
poesia, entre outros.<br />
Em 1913, o então prefeito Cândido de Abreu iniciou uma fase de<br />
saneamento urbano, com a proibição da construção de casa de madeira e a<br />
intensificação de desapropriações no perímetro urbano, necessárias ao<br />
embelezamento da cidade,<br />
(...) todo o centro é pavimentado com paralelepípedos, a Rua XV e a Barão do Rio Branco<br />
alargadas, os bondes puxados a mulas são substituídos pelos bondes elétricos, o Passeio Público<br />
passou por uma ampla reforma (...) 11<br />
Os intelectuais curitibanos, por sua vez, estão compromissados em<br />
alavancar a transformação do espaço urbano de Curitiba, de acordo com o modelo<br />
parisiense, ou ainda, das duas grandes capitais brasileiras, São Paulo e Rio de<br />
Janeiro. São inúmeros os artigos divulgados pela imprensa incentivando a<br />
construção de espaços de sociabilidade como teatros, cinemas e parques, e a<br />
abertura de clubes e agremiações, como também são comuns as reivindicações por<br />
um calçamento eficaz que permita uma locomoção mais ágil, um andar apressado<br />
ou "à inglesa”, por “bulevares” ou largas avenidas que incitam o acúmulo de pessoas<br />
e por luz elétrica, que significa a possibilidade de ampliar o espaço de circulação<br />
para além da rua XV.<br />
A idéia de modernidade estava diretamente ligada às cidades,<br />
principalmente no que diz respeito à efervescência da vida urbana. Por isso são tão<br />
comuns as construções literárias que identificam o ambiente curitibano, ainda<br />
10 PEREIRA, Magnus Roberto de Mello. Rigores e método da cidade brasileira entre os séculos XVI e<br />
XIX. Revista de Ciências Humanas, Curitiba, UFPR, 1993. p. 214<br />
11 BARTZ, Elton Luiz, apud BERBERI, Elizabete. IMPRESSÕES: A Modernidade Através Das<br />
Crônicas No Início Do Século Em Curitiba. UFPR. 1996. p. 48.<br />
7
provinciano, com os fenômenos de modernidade típicos dos grandes centros<br />
urbanos, pois se a belle époque não se realiza fisicamente, encontra eco na<br />
produção cultural.<br />
A ânsia por parecer moderno e adquirir hábitos correspondentes é<br />
característica dos jovens intelectuais. Percebe-se que Alceu constrói sua imagem de<br />
“flâneur”, de acordo com a definição presente nas obras de Baudelaire “E eu amo e<br />
quero e idolatro a boemia descuidada, que tem as ruas como salas de visita e os<br />
bancos da praça sob o copado das árvores, como alcovas sombrias...” 12<br />
Walter Benjamin, na obra Charles Baudelaire; um lírico no auge do<br />
capitalismo, escreve uma definição, que de tantas vezes reproduzida, torna-se uma<br />
referência para a definição de “flanêur”:<br />
A rua se torna moradia para o flâneur que entre as fachadas dos prédios, sente-<br />
se em casa tanto quanto o burguês entre suas quatro paredes. Para ele, os letreiros<br />
esmaltados e brilhantes das firmas são um adorno de parede tão bom, ou melhor, que a<br />
pintura a óleo no salão do burguês; muros são a escrivaninha onde apóia o bloco de<br />
apontamentos; bancas de jornais são suas bibliotecas, e os terraços dos cafés, as sacadas<br />
de onde, após o trabalho observa o ambiente. 13<br />
Segundo Baudelaire, o “flâneur” é o homem adaptado aos novos<br />
sentimentos incitados pela “urbs”, e regogiza-se com a multidão, o “homem do<br />
mundo”. Não apenas um transeunte ocioso, mas o detetive, o observador, o herói,<br />
ou ainda, o pintor do circunstancial e tudo o mais que julga eterno. 14<br />
Em Curitiba, contudo, esta modernidade pretendida nos discursos e nos<br />
hábitos é mais uma liberdade poética do que uma realidade. Daí, o futurismo ter a<br />
renovação como principal emblema, e atacar insistentemente as duas instituições<br />
literárias locais o Centro Paranaense e a Academia de Letras do Paraná. Apontando<br />
seus membros como os responsáveis pela perpetuação de uma imagem estática do<br />
Estado.<br />
12<br />
BÓIA, Wilson. Alceu Chichorro. Curitiba: SEEC, 1998, p.14.<br />
13<br />
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire; um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense,<br />
1991. p. 35.<br />
14<br />
BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade: O pintor da vida moderna. Rio de Janeiro: Paz e<br />
Terra, 1996.<br />
8
Em 1935, Alceu foi eleito para ocupar uma cadeira no Centro de Letras do<br />
Paraná, e no ano seguinte, para participar da Academia de Letras do Paraná. Anos<br />
mais tarde, quando questionado pela repórter Rosinere Gamael se não havia<br />
incoerência em tal atitude, Alceu respondeu: “Não senhora, (...). Como humorista<br />
sou um, como poeta, sou outro. (...)” 15<br />
O literato Alceu Chichôrro participou do momento futurista, mas assim como<br />
seus pares, acabou migrando para o Movimento Modernista, tanto pela vinculação<br />
do Futurismo à figura de Marinetti e pela ideologia Fascista, quanto pelo movimento<br />
apresentar características indefinidas e desagregadoras.<br />
O Modernismo encabeçado pela intelectualidade paulista apresenta feições<br />
nacionalistas e conceitos mais profundos; mantém a ênfase na liberdade de<br />
expressão e na conotação individualista, além de aspectos como o poema-piada, o<br />
verso livre (quando imbuído de funcionalidade); evita as formas fixas parnasiano-<br />
simbolistas, dando preferência aos poemas sintéticos como “tankas” e “hai-kais” e<br />
tem o seu maior empreendimento na busca de uma língua nacional.<br />
A produção de Alceu Chichôrro guarda influências modernistas,<br />
empréstimos de suas leituras e, principalmente, a linguagem técnica do seu ofício de<br />
jornalista, exprimida na sua preferência pelas frases curtas, dicção objetiva,<br />
linguagem displicente e a predominância das crônicas satíricas, quase anedóticas.<br />
Sob o influxo do modernismo Chichôrro publicou apenas o Tanque de Jerusalém,<br />
livro de crônicas. Anunciou a edição em 1923 de um livro de versos Futuristas, com<br />
o título: O Mata-borrão da Vida, que não se concretizou.<br />
A minguada edição de livros devia-se em parte à falta de leitores, já que a<br />
maioria da população era constituída de analfabetos, e igualmente pela falta de<br />
recursos e a dificuldade de impressão, pelo altíssimo custo do papel importado. Pois<br />
em decorrência da Primeira Guerra Mundial houve dificuldade em obter vários<br />
produtos importados, o que por um lado incentivou a ainda incipiente<br />
industrialização. Contudo, a economia brasileira, ainda atrelada à exportação de<br />
café, sofreu todas as flutuações e crises do mercado internacional. Sendo a classe<br />
15 Rosirene Gamael. Depoimento de Alceu Chichorro. Casa Romário Martins. 04/07/1975.<br />
9
média assalariada, inclusive o funcionalismo público da qual fazia parte a maioria<br />
dos nossos literatos, a principal atingida. 16<br />
O OFÍCIO DO JORNALISMO<br />
No Brasil, da década de 1920 eram poucos os escritores que conseguiam<br />
manter seu sustento apenas com a remuneração da atividade literária. Segundo a<br />
pesquisa empreendida por Regina Elena Sabóia Iório sobre a literatura em Curitiba,<br />
é possível identificar algumas características comuns à maioria dos literatos<br />
curitibanos, como a “procedência de famílias pertencentes às camadas médias e<br />
baixas da população”, “a inserção precoce no jornalismo local e o vínculo a<br />
empregos públicos modestos”. 17<br />
Alceu não era exceção, após a jornada de trabalho nos correios, ia para<br />
uma segunda jornada na redação do jornal, a qual seguia madrugada adentro, e era<br />
trabalho estafante e mal remunerado. Chichôrro acumulou profissões como<br />
jornalista, repórter-fotográfico, chargista, literato, funcionário concursado dos<br />
correios e, para aumentar seus rendimentos, desenvolvia anúncios publicitários. Por<br />
causa da alta qualidade de suas gravuras, em pouco tempo tornou-se o mais<br />
requisitado por empresas e estabelecimentos da capital.<br />
As propagandas tinham em sua maioria a forma de charge com as<br />
personagens já consagradas Chico Fumaça e Dona Marcolina e, mesmo tais<br />
charges tendo fundo comercial, mantinham-se as características de uma charge<br />
humorística, num processo de chamar a atenção e ganhar a simpatia do leitor<br />
consumidor para uma propaganda que não parece propaganda:<br />
16 IORIO, Regina Elena Sabóia; Pereira Magnus Roberto Mello. Intrigas e Novelas: Literatos e<br />
Literatura em Curitiba na década 1920. Curitiba 2004. Dissertação, Doutorado em História<br />
<strong>Universidade</strong> <strong>Federal</strong> do Paraná. Setor de Ciências humanas, Letras e Arte.<br />
17 Ibid., p. 229.<br />
10
O livro também passa a ser pensado como um produto, com título,<br />
capitulações, ilustrações e toda uma diagramação que agrade o público, além de<br />
sua publicação começar a ser anunciada, a fim de divulgar a obra e atrair o leitor. O<br />
Tanque de Jerusalém é um exemplo, as crônicas seguem um padrão: não excedem<br />
uma página e meia; cada uma é precedida de uma ou mais ilustrações; os títulos<br />
são atraentes; a capa é colorida e ricamente ilustrada, utilizando também uma<br />
tipografia elegante. As ilustrações obviamente são do próprio Alceu, assinadas como<br />
Eloy de Montalvão.<br />
Segue a foto da capa de O Tanque de Jerusalém.<br />
11<br />
Propagando do filme “Os<br />
Três Amores”<br />
CAPA - CHICHORRO, Alceu.<br />
O Tanque De Jerusalém.<br />
Curitiba. PR.; Placido e<br />
Silva & Comp. LTDA,<br />
1923.
Na obra Cinematógrafo de Letras, Flora Sussekind aborda a complexa<br />
relação entre a literatura e a técnica, no período entre o fim do século XIX e<br />
primeiras décadas do século XX. A revolução tecnológica opera uma transformação<br />
no próprio modo de perceber o ambiente ao redor, os aparatos mecânicos como o<br />
automóvel, o bonde elétrico, o trem, o fonógrafo – encurtando distâncias – e o<br />
instantâneo fotográfico – congelando o tempo em um instante –, ofereciam a<br />
impressão “de um controle possível sobre o tempo”.<br />
Dessa maneira, se o cinematógrafo habituava o olhar à reprodução mecânica do<br />
movimento, a popularização do automóvel automatizava, via movimentação mecânica, um<br />
modo de olhar as coisas em volta como se fossem puras imagens passando ao lado.<br />
Enquanto o cinema parecia tornar ainda mais verazes as imagens técnicas, a<br />
movimentação dos automóveis, bondes e trens dava ao objeto cotidiano contornos meio<br />
mágicos. 18<br />
A transformação no modo de olhar o ambiente ao redor, a percepção de<br />
tempo acelerada, a construção de uma passividade do espectador perante o<br />
cinematógrafo, a possibilidade de uma percepção desatenta, a imprensa diária que<br />
exige a “condensação da História” na tentativa de captar o transitório mesmo que<br />
sob a perspectiva do descarte, e por fim a profissionalização dos literatos via<br />
imprensa, traduz-se na incorporação dos aparatos mecânicos em voga pela<br />
literatura, o que pode ser percebido na aproximação do texto literário com o<br />
instantâneo fotográfico ou o cinematógrafo, a leitura de fácil digestão, os enredos e<br />
personagens simplificados que “passam-sem-deixar-marcas”. Isto não significa uma<br />
desqualificação da narrativa literária do período, nem tão pouco a apropriação<br />
arbitrária dos escritores por essas práticas, mas sim um registro consciente: “Diante<br />
de um novo horizonte técnico em configuração interferindo diretamente nas formas<br />
de percepção da população, assim como nos modos de impressão e veiculação de<br />
textos”. 19<br />
Os jornais se utilizam cada vez mais de uma grande quantidade de textos<br />
curtos, registros fotográficos, de modo a inculcar nos leitores uma “percepção<br />
baseada na superfície”.<br />
18 SUSSEKIND, Flora. Cinematógrafo de letras – literatura, técnica e modernização no Brasil. São<br />
Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 50.<br />
19 Ibid. p. 86<br />
12
Por causa dos enredos concisos e simplificados, assim como pelas próprias<br />
personagens, há uma proliferação de denominações como “personagem-charge”,<br />
“personagem-ilustração”, “personagem-crônica”, “personagem-figurino” e<br />
“personagem-rótulo”, inúmeras variações da “personagem-só-superfície”, que<br />
apresenta somente duas dimensões, assim como uma fotografia ou um cartaz,<br />
podendo ser descrito com poucas palavras, e prestando-se a uma leitura de “meia-<br />
atenção”.<br />
Chichôrro, em 1929, anunciou a “estréia” de sua nova seção de crônicas<br />
chamada Gravetos e Fagulhas no jornal O Dia:<br />
Vai começar a função do teatro moderníssimo Gravetos e Fagulhas. Esse teatro não tem<br />
‘ponto’ e se agradar, se tiver sucesso de bilheteria, quem sabe se vai dar ‘ponto’... Ele não<br />
tem gênero certo. Não tem preço fixo, nem hora marcada. No geral, abre-se pela manhã,<br />
como todo café que se preza. Mas isso não quer dizer que o respeitável público seja<br />
obrigado a assistir pela manhã. Não! O espectador que quiser pode guardar no bolso, na<br />
pasta, debaixo do braço ou mesmo na mão e à noite saboreá-lo da forma que lhe convier.<br />
É uma questão de gosto e comodidade... Está assim, feita a apresentação de Gravetos e<br />
Fagulhas, teatro noticioso, informativo, comercial e político, humorístico, clerical, lírico,<br />
apaixonado, independente, filosófico, variado, ilustrado, esportivo e tudo o mais que for<br />
inventado. 20<br />
Perceba que Chichôrro anuncia sua nova seção como uma mercadoria ou<br />
uma peça de teatro, cuja longevidade está diretamente ligada ao “sucesso de<br />
bilheteria” e que pode ser consumida como um divertimento, tal qual a apresentação<br />
circense, ou como pode também ser “saboreada”, como sugere o autor. Chichôrro<br />
compreende a natureza da crônica, sua “senilidade precoce” e coloquialidade,<br />
aproximando-se ao causo de botequim, que brilha e encanta no instante em que é<br />
lida ou consumida, para logo em seguida dissipar-se junto com o jornal do dia.<br />
A CRÔNICA<br />
O formato narrativo da crônica moderna alcança enorme popularidade,<br />
porque é baseado no cotidiano, no circunstancial, um registro individual de seu<br />
tempo, com espaço para comentários e sensações do autor. A crônica pode ou não<br />
20 Alceu Chichorro, Gravetos e Fagulhas. O Dia. 02 abr. 1929. apud. BÓIA, Wilson. Alceu Chichorro.<br />
. . p.22<br />
13
abordar um acontecimento de conhecimento público, mas busca sempre estabelecer<br />
uma identidade com o leitor, utilizando a cor local, situações familiares ou que<br />
indiquem a alteração no tempo vivido.<br />
A crônica é um texto breve, geralmente veiculado em jornais. Assim sendo,<br />
não tem pretensões de perenidade, “oscila entre a reportagem e a Literatura”, num<br />
movimento de “recriação do cotidiano por meio da fantasia”. Marcada pela utilização<br />
da primeira pessoa, “o ‘eu’ está presente de forma direta ou na transmissão do<br />
acontecimento segundo sua visão pessoal”, portanto, é subjetiva. Nas palavras de<br />
Drummond, um “monodiálogo”, ao mesmo tempo diálogo e monólogo. 21<br />
No caso de O Tanque de Jerusalém, as crônicas foram escritas por Alceu<br />
Chichôrro para compor o livro, portanto perde-se muito da ligação com o<br />
acontecimento diário, aproximando a crônica do conto. Com exceção de algumas<br />
crônicas como No Céu, Nas Entranhas da Terra, O Aroma Delicioso e As Vantagens<br />
do Decóte, nas quais o eu lírico está na primeira pessoa, o restante utiliza-se do<br />
“não eu”, ou seja, da terceira pessoa, como definiria Moisés Nassaud:<br />
A crônica voltada para o horizonte do conto prima pela ênfase posta no “não-eu”, no<br />
acontecimento que provocou a atenção do escritor. (...) Não significa que o escritor se<br />
alheia do acontecimento, pois que a própria crônica testemunha uma adesão interessada –<br />
mas que o acontecimento tão-somente requer o seu cronista, inclusive no sentido<br />
etimológico do termo, ou seja, o seu historiador 22 .<br />
Alceu assemelha-se a um contador de causo, com uma narrativa fluida,<br />
despreocupada, e faz uso de todos os dispositivos possíveis para ampliar a<br />
comicidade das personagens, recorre ao riso fácil sem nenhum remorso.<br />
A crônica acaba por incorporar o mesmo processo mimético de fácil<br />
decodificação das charges. As personagens e as situações são descritas com<br />
poucas palavras, a ponto de deixar propositalmente explícito desde o início, sua<br />
função cômica na trama. Muitas vezes a própria ilustração, tipo charge, já antecipa a<br />
mensagem do texto.<br />
21 MASSAUD, Moisés. A criação literária: Prosa. São Paulo: Melhoramentos, 1967.<br />
22 Ibid. p. 254.<br />
14
Veja o exemplo da charge a seguir, ela antecede a mensagem da narrativa,<br />
na crônica intitulada A Pintada um senhor procura por sua vaca leiteira chamada<br />
pintada, ao perguntar a uma vizinha se esta sabia onde a pintada poderia estar, A<br />
vizinha leva-o até a pintada<br />
Com o objetivo de aproximar a crônica ao gênero cinematográfico, Alceu<br />
utiliza o procedimento literário da “imitação” 23 , abusa dos diálogos para dar<br />
velocidade e ressaltar o imprevisto da narrativa, utiliza uma chuva de exclamações e<br />
reticências para teatralizar a fala das personagens, com ênfase no espanto e na<br />
hesitação dissimulada. As crônicas de Chichôrro trabalham com a percepção de<br />
tempo voltada para o instante, toda a crônica se desenrola num curto espaço de<br />
tempo, tendo em vista o momento inusitado, que dá sentido à narrativa.<br />
A modernização tecno-industrial ocorrida na virada do século XIX,<br />
juntamente com as transformações do ambiente citadino e a rápida alteração dos<br />
costumes, são fatores vivenciados pelos literatos, que assim como o desejo do vir-a-<br />
ser, concretizado nas leituras dos grandes escritores em voga no período,<br />
influenciaram a escrita de nossos autores.<br />
Portanto, o levantamento das possíveis influências de algumas leituras<br />
empreendidas por Alceu Chichôrro é útil no sentido de balizar e indicar qual seria a<br />
forma mais autorizada de ler seus escritos.<br />
23 SUSSEKIND, Cinematógrafo. . . p. 90<br />
15<br />
CHARGE -CHICHORRO,<br />
Alceu. O Tanque De<br />
Jerusalém. Curitiba.<br />
PR.; Placido e Silva &<br />
Comp. LTDA, 1923.<br />
p.22
Wilson Bóia, na biografia escrita sobre Alceu Chichôrro, elenca os títulos de<br />
parte da biblioteca pessoal de Chichôrro. Entre 688 títulos, os dois escritores de<br />
maior recorrência são Eça de Queirós e Honoré Balzac. O primeiro com as obras: A<br />
Cidade e as Serras (1915), Alves e CIA (1926), Cartas de Inglaterra (1915), Cartas<br />
Familiares e Bilhetes de Paris (1925), Ecos de Paris, O Egito (1927), Os Maias<br />
(1930) e Ultimas Páginas (1922), e as obras sobre Eça: Eça de Queirós (Alberto<br />
Oliveira/ 1951), As idéias de Eça de Queirós (Francisco Werneck) e Os tipos de Eça<br />
de Queirós (J. De Melo Jorge/ 1944). As obras de Honoré Balzac são: A mulher de<br />
trinta anos (1961) e Luz interior (1935), e as obras sobre Balzac: A vida prodigiosa<br />
de Balzac (René Benjamin/ 1961) e Dois Mestres – Dickens e Balzac (Stefan Zweig/<br />
1935).<br />
Ambos eram escritores Realistas, que almejavam construir por meio de<br />
suas obras, um amplo painel da sociedade, ao abordar uma gama diversa de<br />
assuntos e uma variedade de tipos urbanos em seus romances.<br />
Balzac (1799-1850) trata, em boa parte de sua obra, da vida aristocrática<br />
francesa e da pequena burguesia, dando ênfase às relações humanas. Em suas<br />
obras, as mulheres são a “pedra angular” e, independente se heroínas ou vilãs,<br />
agem no intento da satisfação de seus próprios interesses. Este seria, portanto, o<br />
fator crucial para a caracterização de seus tipos femininos. 24<br />
Eça de Queirós (1845-1900) tem como influência a literatura realista<br />
francesa e, entre outros, Balzac. Eça é dono de uma observação crítica e minuciosa<br />
e atendo-se aos detalhes, retrata os costumes da sociedade de seu tempo. Em Os<br />
Maias (1888), o subtítulo é “episódios da vida romântica”, mas para além do<br />
romance surge a discussão sobre as relações entre a alta burguesia e a fidalguia.<br />
Em “A cidade e as Serras” (1901), aborda a sociedade parisiense e descreve-a<br />
através dos costumes, dos passeios pelo “Boulevard”, do gosto pela tecnologia, da<br />
ânsia pelo progresso decaindo em um desânimo, ou ainda através de certo niilismo.<br />
A crítica aos costumes de Eça de Queirós prima pela ironia, e sua<br />
capacidade de destruir instituições e comportamentos arraigados. A definição de<br />
ironia proposta pelo crítico José Maria Bello a Eça:<br />
24 BALZAC, Honoré de. A Comédia Humana XVII. Fisiologia do Casamanto: Pequenas misérias da<br />
vida conjugal. Trad. Luís Lambert Seráfita. Rio de Janeiro: 1955.<br />
16
Opomos naturalmente, no campo da estética, o irônico ao grave, ao solene, ou,<br />
ao sublime. Pela ironia, procuramos fugir à grandeza, ao dramático contingente das que nos<br />
esmagam e que, portanto, nos diminuem em nosso próprio orgulho. Despertando o riso, a<br />
ironia corrige ou destrói, pela sensação agradável que proporciona, a emoção inversa de<br />
tristeza e de acabrunhamento que possa derivar-se da gravidade trágica da vida. 25<br />
Definição que serve também para Alceu Chichôrro, pois suas crônicas em O<br />
Tanque de Jerusalém utilizam-se de um exagero caricatural nas personagens para<br />
desnudá-las sem misericórdia às gargalhadas do leitor, para sorrir das tolices, dos<br />
enganos humanos e acreditar na capacidade construtiva da ironia. Isto é marca<br />
patente em sua obra. Não importa se na literatura ou na caricatura, ele tem o riso<br />
como a forma mais elaborada de crítica.<br />
25 BELLO, José Maria. Retrato de Eça de Queirós. São Paulo: Nacional, 1977. p. 148.<br />
17
O TANQUE DE JERUSALÉM<br />
Alceu Chichôrro escreveu O Tanque de Jerusalém 26 , em 1923, o livro é<br />
composto por vinte crônicas humorísticas que falam sobre as mudanças dos<br />
costumes, com ênfase na transformação do comportamento feminino. Neste<br />
trabalho, serão analisadas apenas seis crônicas que foram subdivididas em dois<br />
temas: a moda e o adultério.<br />
As crônicas selecionadas: Raio X..., As vantagens do decóte, A valsa de<br />
Chopin, Cachimbadas, O Capeta e A velha myopia, possuem unidades funcionais<br />
em comum, o que possibilita pensarmos em significados gerais para alguns<br />
elementos, como por exemplo: o espaço em que se passam as crônicas são os<br />
locais públicos de lazer ( praças, bailes, jogo de “football” ou saindo de casa), o que<br />
remete ao processo de deslocamento da mulher do ambiente privado para o público.<br />
Já o espaço em que se passam as narrativas de adultério e os próprios adultérios<br />
femininos é a casa, ou seja, as dicotomias existentes entre público/privado, entre<br />
locais de sedução/reclusão, entre homem/mulher são amenizadas, em uma crítica à<br />
construção de regras morais que enclausuraram a mulher no lar, sob a pretensa<br />
vigilância do esposo. As recorrentes descrições do caráter das personagens<br />
(volúvel, namoradeira, formosa, vaidosa) implicam na tentativa de construir um tipo<br />
feminino específico a “melindrosa”, cujas qualidades são o oposto do ideal de mãe e<br />
mulher, que constituíam os discursos tradicionais na época. O vestuário (fator<br />
desencadeante de varias tramas) é um dos elementos em destaque, pois as<br />
transparências e os decotes ousados são um indicativo das alterações no<br />
comportamento feminino, e denotam a emergência de uma sexualidade feminina,<br />
até então, oculta.<br />
A ação das narrativas se articula em meio à tensão entre a tentativa de<br />
afirmação dos comportamentos modernos (o uso de transparências, decotes, e o<br />
adultério feminino), e a permanência da tradição (desaprovação e censura). As<br />
26 CHICHÔRRO, Alceu, O Tanque de Jerusalém. Curitiba. PR.; Placido e Silva & Comp. LTDA, 1923.<br />
18
crônicas têm seu desfecho ou com a complacência do homem em relação ao novo<br />
comportamento feminino, o que denota certa passividade dos personagens em<br />
relação às transformações trazidas pela modernidade, ou ainda, as histórias<br />
terminam em um impasse de efeito humorístico, quando a narrativa bifurca-se do<br />
“sério” para o “cômico” revelando a existência de uma narrativa paralela disjunta.<br />
A MODA.<br />
O tema das narrativas a seguir é a moda e a insurreição da mulher no<br />
espaço público. A crônica intitulada Raio X. . . é iniciada com a espera dos pais d.<br />
Gioconda e dr. Aragão pelo termino da “toilette” de sua filha, senhorita Aida.<br />
27 Ibid. p. 12<br />
O dr. Aragão a esperava pacientemente, consultando de momento a momentos o “Omega”<br />
de algibeira, e olhava por entre as cortinas de renda e os vidros da janella a “limousine<br />
marin” de carrosserie” brilhante, estacionada defronte o portão. (...)<br />
Nessa occasião entrou na sala, radiante e linda, a senhorita Aida, vestindo uma bella<br />
“toilette” de sêda lavável, muito leve, transparente e “roseclair”.<br />
E notando a visível contrariedade do pae, falou com acanhamento:<br />
-- Estou prompta, papae...<br />
-- Prompta? Parece que tu não usas roupa branca?<br />
-- É moda, papae... respondeu Aida, depois de morder os labios de carmim.<br />
--É moda, sim, Aragão – continuou d. Gioconda.<br />
-- Não aprovo esta moda : andar agora uma moça, com vestido transparente, em cima da<br />
carne...<br />
-- É pra fazer Raio X, papae ...<br />
-- Raio X ? Que coisa é esta ?<br />
-- É passear na Avenida Xavier à hora em que o sol, no occaso, atira lá da linha do<br />
horizonte os seus raios de luz sobre os vestidos transparentes.<br />
-- E tu achas <strong>boni</strong>to isso?<br />
-- Eu não, papai, mas a moda não é para que usa, e sim para quem a vê, E os moços<br />
dizem que a moda mais <strong>boni</strong>ta é a do Raio X. . . 27<br />
A valsa de Chopin é uma narrativa que se desenrola no salão de um baile:<br />
Mlle. Carmen, que havia interrompido o dialogo, percebendo a inércia do meio masculino e<br />
não resistindo á tentação da música, cujos accordes se casavam perfeitamente com a sua<br />
alma romântica, iniciou o baile, dirigindo-se ao dr. Oliveira Martins, cavalheiro edoso, a<br />
quem convidou para dansar. Isto bastou para que logo affluísse aos magestosos salões<br />
grande numero de pares, agora por solicitação dos cavalheiros contagiados pelos<br />
enthusiasmos da romântica senhorita.(...)<br />
A valsa parecia tanto mais interminável, quanto era visível o cansaço de todos (...)<br />
Desalentado, exausto, quasi morto, o conselheiro arriscou expressões muito fora de seus<br />
moldes:<br />
19
-- Senhorinha deante do fausto pagão desse decóte, eu sinto toda a indigencia do meu<br />
esforço, toda a miséria da minha inferioridade. A patina do tempo acaba sempre<br />
desgastando o ardor juvenil. Estou offegante. Sentemo-nos, que o maestro Zarath não<br />
termina mais.<br />
Mlle. Carmen, contrariada e disposta a esperar que o maestro desse fim à marca,<br />
interpellou-o:<br />
-- Como, dr.? não acabamos? (…)<br />
-- Na minha idade, senhorita, não se acaba mais ... 28<br />
A crônica As Vantagens do Decóte, se passa na arquibancada de um<br />
“match de football”, local em que o narrador ouve a conversa de duas senhoritas.<br />
E lá sentado entre senhoritas, qual uma magriça nesga de presunto apertado por duas<br />
cheirosas fatias de pão branco, gostoso e delicado, estava eu – original sandewiche! –<br />
olhando os britannicos garbosos e valentes a baterem-se em lucta com os intrépidos<br />
esforçados internacionaes. (...)<br />
E como pouco, muito pouco, eu comprehendesse daquella peleja, puz-me a ouvir a<br />
conversa de duas vizinhas minhas.<br />
Falavam ellas interessadas e intimamente:<br />
-- Não vês. Eunice, como Rachel está exageradamente decotada? Repara que quando ella<br />
se agita para aplaudir os internacionaes, os seus seios quasi saltam por cima da linha<br />
divisória do decóte...<br />
-- Mas que quéres, Lady. . . A Rachel anda na última moda . . e eu mesma creio que o<br />
decóte exagerado é vantajoso?<br />
-- Vantajoso?<br />
-- Sim. Imagina tu que difficuldades encontra uma senhora que não usa vestido decótado,<br />
quando tem necessidade de ammamentar o filhinho. . .<br />
-- Mas a Rachel é solteira. . . não tem filho!...<br />
Nesta ocasião, a moça chegou-se mais para perto da amiga e balbulciou:<br />
-- Mas. . . tem namorado! . . . 29<br />
A década de 1920, momento em que foram escritas as crônicas, é marcada<br />
pela ascensão econômica da classe burguesa, e a construção de um discurso<br />
disciplinador dos costumes e do comportamento, baseado no controle dos instintos.<br />
A urbanização da cidade surge como uma tentativa de disciplinar a população em<br />
torno de uma idéia de civilização, e das idéias positivistas.<br />
No pensamento positivista disseminado por Augusto Comte, o modelo de<br />
conduta estabelecido para a mulher tem: a moral, o casamento, a submissão e a<br />
castidade como características desejáveis. À mulher, devido a sua “natureza”<br />
altruísta, cabia o papel regenerador da sociedade, seu dever era educar os filhos e<br />
zelar pelo bem estar da família.<br />
28 Ibid..p.25<br />
29 Ibid. p. 28<br />
Um conjunto de normas, deveres e obrigações foi formalmente estabelecido para regrar o<br />
vínculo conjugal, a fim de assegurar a ordem familiar. A cada representante da sociedade<br />
matrimonial conferiu-se um atributo essencial. Assim, se ao marido cabia promover a<br />
20
manutenção da família, à mulher restava a identidade social como esposa mãe. A ele a<br />
identidade pública; a ela, a doméstica 30 .<br />
A maternidade aproximará a mulher ao modelo de Maria, e à medida que o<br />
sexo feminino é construído como símbolo de pureza e castidade, a mulher era<br />
definida em função dos valores masculinos, devia ser boa esposa e mãe extremada.<br />
O ideal de mulher/mãe foi construído, nos discursos tradicionais, tendo como<br />
referência o mito da Virgem Maria com seu ideal de pureza, maternidade e<br />
redenção.<br />
As crônicas de Chichôrro são escritas num momento em que Curitiba<br />
passava por uma intensa urbanização, e a dinâmica da cidade sofria alterações<br />
perceptíveis inclusive no comportamento feminino. A mulher até então, reclusa ao<br />
lar, passava a ter mais liberdade para ocupar os espaços públicos.<br />
Neste ponto a cidade moderna, exerce um papel fundamental, pois inaugura<br />
espaços de convivência mútua entre homens e mulheres, o espaço público passa a<br />
ter um novo significado, o dos jogos de sedução, como o flerte. A mulher assume<br />
posturas muitas vezes consideradas difamadoras pelo discurso conservador: passa<br />
a ocupar as salas escuras dos cinemas e os locais destinados à diversão, como os<br />
bailes e pratica danças provocantes como o maxixe e o tango.<br />
A mulher, ao ganhar o espaço urbano, atinge maior visibilidade e com isso<br />
multiplicam-se as preocupações com o embelezamento do corpo. Paralelo a isso,<br />
deu-se um processo de incentivo ao consumo, devido à ampliação do mercado e<br />
dos produtos importados, como os “...perfumes, cremes, loções, batons, leques,<br />
jóias, lenços, chapéus, meias de náilon norte americanas...” 31 .<br />
Nas crônicas de Alceu, a mulher moderna aparece como produto de uma<br />
sociedade que se torna cada vez mais superficial e consumista, num movimento<br />
amplo de culto à auto-imagem e de supervalorização da aparência. Nas palavras de<br />
Margareth Rago “Se a aparência feminina era colocada em primeiro plano pela<br />
própria mulher, preocupada em exibir-se como figura sedutora, charmosa e<br />
30 MOTT, Maria Lúcia, Maluf Marina. Recônditos do mundo Feminino: da Belle Èpoque aos<br />
primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p.379.<br />
31 Ibid. p. 66<br />
21
sofisticada, sobretudo no caso das mais privilegiadas socialmente, tudo levava e<br />
exigia que assim fosse” 32 .<br />
A elite urbana local se identificava com um gênero de vida europeu ou<br />
cosmopolita e tinha a preocupação de adequar-se à penetração da cultura moderna.<br />
Perceba como o autor recorre ao emprego dos estrangeirismos, afim de demonstrar<br />
este pretenso cosmopolitismo nos seus personagens. Na crônica Raio X... há um<br />
cômico abuso das palavras em francês como: “biseauté”, para referir-se ao espelho,<br />
“limousine marin” de “carrosserie” brilhante e das marcas para referir-se ao objeto<br />
“lencinho ‘gris’ perfumado a Coty” e o “Omega” de algibeira. Devemos ter em vista<br />
que nas cidades brasileiras de uma forma geral: “A transformação cultural precede a<br />
industrialização, a urbanização e a modernização de fato. As cidades passam a<br />
imitar a maneira de ser européia, passam a desejar esse novo gênero de vida”.<br />
Em relação á moda Chichorro dá destaque para a progressiva minimização<br />
do vestuário feminino, que pode ser percebida como uma reivindicação por uma<br />
maior igualdade de direitos, e como tentativa de libertação da mulher em relação aos<br />
antigos valores.<br />
32 RAGO, Margareth. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São<br />
Paulo (1890-1930). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 64.<br />
22
CHARGE -CHICHORRO, Alceu. O Tanque De Jerusalém. Curitiba. PR.; Placido e Silva &<br />
Comp. LTDA, 1923. p.12<br />
Os vestidos aparecem extremamente decotados e transparentes “à moda<br />
RaioX...”, o uso de cabelos curtos a “garçoniere”, a maquiagem visível, o ato de<br />
fumar cigarros, São elementos que auxiliam na construção da imagem da mulher<br />
como transgressora, e objeto de desejo, ao mesmo tempo que contribuíam também<br />
para a idéia de liberdade feminina.<br />
Além do vestuário o próprio comportamento feminino ganha novos<br />
contornos, o progressivo deslocamento da mulher do ambiente privado para o<br />
espaço público, constrói a imagem da mulher moderna e sedutora.<br />
A cidade urbanizada, assim como a mulher sedutora constituem a beleza da<br />
civilização moderna. A identificação entre a cidade e a mulher se torna comum no<br />
fin-de-sciécle. “A imagem da mulher desejável se justapunha à imagem da cidade<br />
adornada, e ambas evocavam sentidos sexualizados” 33 .<br />
33 OLIVEIRA. Claudia. A ‘Venus Moderna’: Mulher e sexualidade nas ilustradas cariocas Fon-Fon!,<br />
selecta e para todos…, entre 1900-1930. Disponível em<br />
. Acesso em: 08 nov. 2006.<br />
23
Uma nova imagem da mulher como objeto erótico, fetichizado, e sedutor<br />
ganha espaço na imaginação dos homens. Na crônica As vantagens do decóte, por<br />
exemplo, o narrador da evoca uma imagem sensorial-gustativa, as duas mulheres ao<br />
seu lado aparecem como duas “fatias de pão branco, gostoso e delicado” a serem<br />
devoradas 34 .<br />
Na sociedade do início do século XX, percebida por Chichôrro, a mulher<br />
aparece como uma figura desestabilizadora, os seus “desvios” morais são a<br />
negação dos valores tradicionais. Nosso cronista esmera-se em construir um tipo<br />
feminino específico, a “melindrosa”, em geral, são moças na flor da idade,<br />
“admiráveis” pela futilidade, volúveis à moda e auto-centradas, portanto, a antítese<br />
do mito da Virgem Maria.<br />
A substituição do ideal feminino positivista pela figura da mulher libertina e<br />
transgressora coloca em xeque, não só a instituição familiar, como a própria<br />
organização da sociedade. A mulher passa a questionar o status de esposa, dona<br />
de casa e mãe, para timidamente adentrar o mundo social da diversão e do trabalho.<br />
A imagem da mulher moderna, misteriosa, sedutora e “disponível” ao olhar<br />
masculino, permitiu a emergência de uma narrativa sobre a mulher, que tem como<br />
temática o flerte, a ingenuidade dissimulada, o adultério ou o amante. Enfim, um<br />
conjunto de imagens que apresentam a mulher como transgressora.<br />
O ADULTÉRIO<br />
As narrativas a seguir, são algumas das crônicas, encontradas em O<br />
Tanque de Jerusalém que têm como tema o adultério:<br />
A crônica a Velha Myopia... é a história de um velho Major cuja vista sofria<br />
com a idade e a avançada “myopia”:<br />
34 A relação entre a sexualidade a e alimentação já é abordada, em 1987, por Freud em uma<br />
passagem da obra A Interpretação dos sonhos, “(...) Visto que ‘cama e mesa’ constituem o<br />
casamento, esta muitas vezes ocupa o lugar da primeira nos sonhos, e o complexo de idéias sexuais<br />
é, na medida do possível, transposto para o complexo do comer”. in Obras psicológicas completas de<br />
Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, 1987, vol. V, p. 387. Apud Aline Gurfinkel. Sexualidade<br />
feminina e oralidade: comer e ser comida. Disponível em<br />
. Acesso em: 08 nov. 2006.<br />
24
A esposa do velho major, catita e formosa jovem de 17 annos. (...) pedia ao oculista que<br />
empregasse todos os recursos de sciência ocular... para salvar o marido de uma cegueira<br />
completa.<br />
[Ao oculista, o velho Major queixava-se]<br />
-- O meu maior desgosto, doutor, é ter chegado a tal ponto a minha myopia, que não<br />
enxergo a minha querida Lydia. (...)<br />
-- à noitinha, doutor ... Quando ella vae ao jardim gosar os últimos frescores da tarde no<br />
caramanchão” (...)<br />
-- Tenho a vista tão perturbada, doutor, que, às vezes, as imagens começam a dançar, a<br />
dançar e parece que ao envez de uma pessoa, eu vejo duas!<br />
O dr. Celerino coçou a cabeça e terminou:<br />
-- Parece, major... parece mas não é ... Isso de ver duas pessoas no caramanchão é efeito<br />
de óptica à noite...<br />
E o major convenceu-se. 35<br />
Na próxima crônica intitulada Cachimbadas, os recém casados Miranda e<br />
sua senhora Mme. Carlota, ainda tentando adaptar-se aos costumes um do outro:<br />
Nada mais desagradável para uma senhora, como Mme Carlota, <strong>boni</strong>ta, educada, elegante<br />
e moça, do que aturar um marido que cachimba (...).<br />
-- Meu queridinho, vou pedir-te a primeira cousa. Tu fazes?<br />
-- Eu queria meu amor, que tu não fumasses mais nesse cachimbo. Não posso suportar<br />
este cheiro de fumo. . .<br />
-- E é só isso que pedes, meu anjo?!. . .<br />
-- Só julgava que tu ias brigar com tua Carlotinha, pois és doido por uma cachimbada...<br />
-- Mas bem sabes que eu faço todas as tuas vontades... de hoje em diante prometto que<br />
não mais fumarei no cachimbo em tua frente. . .<br />
-- E dizendo isso, o Miranda já architectava um plano, no cerebro, para sahir todas as<br />
noites com pretexto de ir dar uma cachimbada na rua. . .<br />
Habituando-se com os repetidos pedidos que seu esposo fazia todas as noites para ir dar<br />
uma cachimbada fora de casa, Mme Carlota via nisso uma necessidade como outra<br />
qualquer e não mais reprehendia o marido quando elle chegava pela madrugada ao santo<br />
lar, onde dormia socegada sua querida mulher...<br />
(...) Clemente, voltou para casa muito antes da hora que costumava chegar diariamente.<br />
A casa estava com a porta semi-aberta e no seu interior não havia luzes.<br />
Seriam talvez três horas da madrugada, quando um automóvel parou á esquina(...)<br />
Era Mme. Carlota.<br />
Entrar no quarto e despir-se foi obra de alguns minutos.<br />
-- Onde estivesse até estas horas, Carlota?<br />
Bonita, educada, elegante, e moça, mostrando as linhas esculpturaes de seu corpo, sob a<br />
camisa de sêda creme, temendo uma fúria que viesse prejudicar todo seu futuro, Mme.<br />
Carlota imitou o marido, cheia de mêdo:<br />
-- Fui dar uma cachimbada, meu bem. . .<br />
E desapareceu sob os cobertores. 36<br />
A próxima crônica, de título O Capeta, conta a história de Saturnino, que<br />
sendo muito medroso desde criança, virou motivo de “troça”, tamanho era o medo de<br />
assombrações, capeta, fantasmas, mulas sem cabeça, lobisomem...<br />
35 CHICHORRO, Alceu, O Tanque. . . p.35<br />
36 CHICHÔRRO, Alceu, O Tanque. . . p.37<br />
25
O tempo passou. Saturnino aos vinte e oito annos desposára a Belinha, luxenta filha do<br />
escripturario federal aposentado.<br />
(...)<br />
Faceira, volúvel, namoradeira, a mocinha não podia de forma alguma coadunar com o feitio<br />
do seu marido, que se tornara aos vinte e oito anos o mais perfeito exemplar do burguez, e<br />
além de tudo, do burguez medroso.<br />
Desgostoso com o desprezo da esposa, Saturnino mettia-se todas as noites no club e só<br />
tornava ao lar quando os gallos começavam a amiudar seus cantos e afugentar os<br />
phantasmas...<br />
Chegando em casa, ó tortuta! Bateu, bateu à porta que a criada custou vir abrir...<br />
Nervoso, rangendo os dentes com o chapéo na cabeça, dirigiu-se para o quarto onde<br />
encontrou a Belinha, de pé, em camisa, cabellos, em dasalinho e as faces vermelhamente<br />
lascivas, como si fossem luxuriosamente beijadas...<br />
Ao ver o marido, a faceira e moça Belinha pulou toda melindrosa para a cama e debaixo da<br />
alva colcha de fustão suplicou ao marido<br />
-- Saturnino, fecha a janella, meu amor...(...)<br />
-- Um vulto corria pelo grande quintal deserto, sumia-se, para pouco depois escalar o<br />
muro...<br />
Saturnino não poude refrear a sua admiração e o medo que o tomára:<br />
-- Belinha, anda um vulto a correr pelo quintal!...<br />
-- No quintal? Interrogou a esposa, simulando surpresa.<br />
-- Sim, no quintal, e vae pular o muro!..<br />
-- E homem ou mulher?<br />
-- E homem : está de preto e veste capa....<br />
-- Ah!...Gemeu a Belinha, está de capa, então é um capeta!...Vem deitar...<br />
Num pulo, rapido, sem tirar o chapéo nem a roupa, o Saturnino metteu-se debaixo da colcha<br />
e confessou à esposa:<br />
-- É por isso que eu não gosto de vir antes da madrugada!... 37<br />
A abundância de crônicas a respeito do adultério significa que o discurso<br />
masculino passa a identificar a mulher comum, com a figura da mulher<br />
transgressora. Não por coincidência, as traições femininas acontecem<br />
majoritariamente no âmbito doméstico: na crônica a Velha Myopia... a traição ocorre<br />
no caramanchão do jardim, sob a vista míope do marido; em O Capeta dentro do<br />
próprio quarto, na ausência do marido. A única exceção é a crônica Cachimbadas,<br />
na qual a traição ocorre fora do âmbito doméstico. Observe em que termos é feita a<br />
descrição do lar quando o marido chega: “A casa estava com a porta semi-aberta e<br />
no seu interior não havia luzes.”, a casa na ausência da esposa perde o sentido,<br />
configura um local abandonado, o que só faz reforçar a identificação da mulher com<br />
o espaço doméstico.<br />
O que nos leva a crer que o motivo da desilusão do nosso cronista em<br />
relação ao casamento está relacionado com a percepção de que : “ Salomé e a<br />
37 CHICHÔRRO, Alceu, O Tanque. . . p.52<br />
26
mulher que está em casa são uma mesma pessoa. Isto é entendido como a<br />
destruição do mundo doméstico do homem.” 38<br />
Na versão bíblica, Salomé era apresentada como agente responsável pela<br />
morte do profeta João Batista. Salomé, influenciada pela sua mãe Herodíades, pediu<br />
a cabeça do profeta em troca de uma dança para o rei, ao receber a cabeça de João<br />
Batista das mãos do carrasco Salomé entrega-a a sua mãe.<br />
Na literatura “fin-de-siécle”, contudo, existe uma mudança no tratamento<br />
deste tema, Salomé assume a posição de “fêmea fatal”, altiva e sedutora, ela passa<br />
a ocupar o centro dos conflitos. Na versão de Oscar Wilde, Salomé torna-se um<br />
ícone da mulher moderna, pois inaugura uma feminilidade munida de sexualidade,<br />
uma mulher consciente de seu desejo e que agia no intento de possuir o objeto<br />
fetichizado. Salomé pediu a Herodes a cabeça de João Batista (Jakannan) em uma<br />
bandeja de prata para satisfazer um desejo seu, Nesta versão Salomé sentiu-se<br />
fascinada pelo corpo de João Batista, desejava sua boca e seu beijo, mesmo que o<br />
preço fosse um beijo em uma cabeça morta que em vida a havia rejeitado.<br />
Na versão de Oscar Wilde, o poder de sedução de Salomé está baseado no<br />
olhar, durante a trama existem várias advertências para que os homens não<br />
encarem Salomé: O pajem diz ao soldado apaixonado “Olhas demais para ela. È<br />
perigoso olhar as pessoas dessa maneira. Algo de horrível pode acontecer.”;<br />
Herodíades recrimina o seu marido (Herodes) pela maneira como ele sempre olha a<br />
princesa: ; e por fim Salomé: “” . Sua beleza, sua auto-suficiência, e a<br />
assertividade de suas atitudes estão diretamente ligadas ao seu poder de sedução e<br />
de manipulação do desejo masculino.<br />
O poder de sedução fundado no olhar e a emergência de uma sexualidade<br />
explícita são as características predominantes da Salomé de Oscar Wilde, uma<br />
gama de características transgressoras e perturbadoras que formaram um<br />
imaginário a cerca da figura feminina. E que foram transpostos para a mulher<br />
comum do início do século XX, posto que com o surgimento da cidade urbanizada,<br />
inauguram-se novas possibilidades de exposição e inserção social a essa mulher,<br />
que passou a exibir o prazer de flanar pelas ruas, participar do flerte e dos jogos de<br />
sedução.<br />
38 SANTOS, Antonio César de Almeida.et al. Cortazar, Paz e Sá Barreto: cidade experiência urbana e<br />
estrutura. In:___. Cultura e Cidadania. Coletânea V.1 Curitiba : ANPUH-PR/CNPq. 1996.<br />
27
Pode-se notar que as personagens femininas das crônicas de Alceu,<br />
embora casadas não têm filhos, pois dentro da concepção idealizada de mãe<br />
benevolente e “altruísta”, baseada no mito da Virgem Maria, não cabe a figura da<br />
mulher de elite “sedutora”, “frívola”, “egoísta” e ”vaidosa”.<br />
A figura do esposo, por sua vez, são variações do sujeito “burro”,<br />
“medroso”, “ignorante”, enfim uma série de predicados pejorativos e cômicos, que<br />
servem à crítica da classe burguesa: O burguês como indivíduo egoísta, fechado em<br />
si mesmo, a ponto de não perceber os acontecimentos que o circundam. No caso<br />
das crônicas, as traições ocorridas sob os olhos do esposo são ignoradas.<br />
Daí a grande crítica de nosso autor em relação à classe burguesa, são<br />
homens e mulheres extremamente individualistas, motivo de serem tão raras as<br />
alusões ao relacionamento familiar. Pois na vida do burguês não há espaço para a<br />
cumplicidade da convivência familiar baseada no respeito, fraternidade e ajuda<br />
mútua.<br />
Esta idéia se faz presente no título O Tanque de Jerusalém. Local bíblico<br />
em que eram feitas imersões rituais de cura, o resgate desta parábola, para título de<br />
um livro de sátira dos valores e hábitos de uma elite urbana, tem o objetivo de<br />
enfatizar a desmistificação das relações humanas na sociedade moderna. Nas<br />
palavras de Marx, “(...) A burguesia extirpou da família seu véu sentimental e<br />
transformou a relação familiar em simples relação monetária. (...) ” 39<br />
Chichôrro utilizou em suas crônicas o arquétipo da família burguesa, pois<br />
esta classe, embora tenha buscado estabelecer valores e normas de conduta a<br />
serem seguidos pelas demais classes, foi em grande parte, a responsável por<br />
romper com os pudores morais da sociedade. O triunfo do homem liberal e seu<br />
caráter individualista, afetou a todas as dimensões de sua vida, principalmente a<br />
instituição familiar.<br />
As narrativas de Chichôrro estavam em consonância com as demais<br />
produções literárias da época, principalmente em relação às conjecturas<br />
estabelecidas entre o casamento e a mulher moderna.<br />
39 Marx, O Manifesto. Apud. BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido se desmancha no ar: A<br />
aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. p.122.<br />
28
AS PUBLICAÇÕES LOCAIS<br />
As crônicas de Alceu Chichôrro são frutos de um momento literário profícuo<br />
em imagens femininas “decaídas”, afim de reconhecer o comportamento assumido<br />
pela mulher moderna a literatura “fin-de-sciécle” retoma os mitos de Lilith, Salomé,<br />
Judith, Dalila, entre outros.<br />
Podemos citar como exemplo local a novela escrita por Octávio de Sá<br />
Barreto, uma produção local, intitulada O Automóvel 117, que conta a história de<br />
Carlito, atropelado repetidas vezes por um automóvel de placa 117, tanto em bairros<br />
do centro quanto na periferia da cidade. Carlito apaixona-se por uma mulher<br />
anônima e posteriormente a encontra na praça Osório, eles entram num automóvel e<br />
vão para o Batel, Carlito descobre que ela é uma caveira, desce correndo do<br />
automóvel, tropeça e fere-se, encontra placa no chão e descobre que estivera no<br />
117, e enlouquece.<br />
O homem, desejando a modernidade para si, expõe-se ao acaso no centro da cidade e<br />
acaba deparando-se com a figura nefasta da Salomé (ou Judite). Esta personagem, tão em<br />
moda na virada do século, nada mais é do que a réplica feminina do homem. Ela é nefasta<br />
porque a sua presença no centro da cidade foge aos preceitos rituais. No centro, os efeitos<br />
nefastos do encontro são contidos, pois o centro é um espaço masculino. A tática da<br />
Salomé é levar sua vítima para fora do centro, onde ocorrem os desenlaces trágicos.<br />
Depreende-se desta novela, e de outras histórias de Sá Brito, que aquilo que leva à loucura<br />
é a descoberta de que a Salomé e a mulher que está em casa são uma mesma pessoa.<br />
Isto é entendido como a destruição do mundo doméstico do homem. 40<br />
Na novela de Sá Barreto, assim como as crônicas de Alceu, são texto<br />
produzidos anos 20, a cidade urbanizada é o local que serve a desconstrução das<br />
identidades tradicionais. Em paralelo ao desejo de participar da modernidade e a<br />
aceitação das mudanças trazidas por ela, existe o medo e a ansiedade em relação<br />
ao novo, que se configura na tentativa de perpetuar os valores tradicionais.<br />
A imprensa local, em que nossos escritores atuavam, estava abarrotada de<br />
aforismos, causos, contos e crônicas bem humoradas sobre a desilusão em relação<br />
ao casamento. Através dos textos publicados em jornais e revistas é possível<br />
apreender uma gama de representações acerca do amor e do casamento, a<br />
preferência por enredos sobre amor à primeira vista, paixões avassaladoras que<br />
40 SANTOS, Antonio César de Almeida.et al. Cortazar, Paz e Sá Barreto: cidade experiência urbana e<br />
estrutura. In:___. Cultura e Cidadania. Coletânea V.1 Curitiba : ANPUH-PR/CNPq. 1996.<br />
29
levam jovens incautos ao altar, e a chegada a conclusão de que a paixão inicial que<br />
levou ao casamento, desvanece, e o relacionamento conjugal se transforma em<br />
rotina, tédio, e conflito.<br />
Logo na primeira edição do O Olho D’Rua 41 , um cronista anônimo se<br />
preocupa em dar conselhos aos jovens desavisados, o casamento por interesse ou<br />
levado pelos “caprichos da paixão” são enganos que devem ser evitados, por isso<br />
temos, na primeira página, o conto Um estupor, em que a personagem Elpidio relata<br />
a transmutação que se deu em sua esposa após o casamento a um jovem<br />
apaixonado prestes a casar-se:<br />
Eu tinha mais ou menos a sua idade 20 annos e pouco, quando encontrei Euzebia (...) Eu<br />
estava como diz esse Eça de Queirós que o senhor tanto aprecia, estava caninamente<br />
apaixonado. E Euzébia na flor de seus 16 annos, era uma lindeza. (...)<br />
-- E’ como estou contando parece mentira, mas é verdade. Ninguém dirá que foi <strong>boni</strong>ta<br />
essa que hoje é uma carcassa hedionda, essa megera desdentada coalha, mãos papudas,<br />
sem seios nem ancas, chata como uma taboa, magrizela (...) ignorante, estupida e<br />
desaforada...<br />
-- Àh se tivesse eu naquele tempo, quem me escancarasse os olhos! É certo que o<br />
Ferreira, o mais ajuizado do grupo, malhou por me convencer que eu estava cego (...).<br />
Scena se passou quando eu lhe dei parte de que eu estava disposto a casar.<br />
-- ...Ancelmo (...). Essa mulher não te serve. Entre ela e voçê não há affinidade electiva,<br />
não existe harmonia de idéias e gostos, de aspirações. È doidivanas, superficial, e má.<br />
Bate nas creadas (...), na conversa só pronuncia futilidades e disparates grammaticaes. . .<br />
-- Foi tudo inútil: Dois meses depois eu entrava para o inferno, isto é Eusébia era minha<br />
esposa. Maldicto dia! Oh! Si o senhor pudesse imaginar o que tenho sofrido! Moço, quando<br />
estiver apaixonado, consulte seus amigos sinceros e ouça-lhes os conselhos.<br />
Nesse momento o trem parou. . .<br />
Perceba que a esposa torna-se uma megera após o casamento, perde os<br />
encantos e os atrativos da juventude e torna-se parte de uma rotina medíocre, o<br />
marido passa a sofrer com seus desmandos, completando o quadro do “inferno<br />
conjugal”. E assim como a história de Elpídio, muitas outras se proliferam nas<br />
páginas dos jornais.<br />
Com a crescente urbanização, a dinâmica da cidade sofre alterações, novos<br />
espaços de convivência e de diversão acenavam às mulheres, o que suscitou<br />
uma remodelação nas relações entre gêneros. E diante disso os nossos escritores<br />
trazem à tona discussões sobre a modificação do comportamento das mulheres,<br />
indagações sobre o espaço reservado para a manifestação da sexualidade feminina,<br />
41 Um dos jornais que mais se pronunciou sobre o tema casamento foi o O Olho D’Rua, periódico<br />
quinzenal, auto-intitulado humorístico, que circulou pela capital entre 1907 a 1911.<br />
30
e questionamentos sobre o conceito de respeitabilidade burguesa inerente ao<br />
casamento e à estabilidade social que ele deve proporcionar.<br />
Alceu Chichôrro em suas crônicas, assim como seus contemporâneos,<br />
registrou a modernização do espaço urbano, através da quebra do padrão de<br />
comportamento feminino. A constatação da emergência de uma nova mulher gera<br />
uma tensão entre dois pólos; De um lado, uma percepção sobre o feminino baseada<br />
na tradição romântica; de outro uma nova mulher, que se expõe aos olhares<br />
masculinos em trajes e comportamentos desafiadores.<br />
É possível verificar que os mitos, assim como, as produções literárias<br />
servem como mecanismos para se pensar e refletir sobre a realidade vivida.<br />
Chichôrro através de seu discurso faz uma releitura da figura de Virgem Maria como<br />
antônimo da mulher moderna. Caracterizando uma relação de afirmação da imagem<br />
da mulher moderna, sobre a mulher romântica idealizada.<br />
CONCLUSÃO<br />
Existe um tipo de experiência vital – experiência de tempo<br />
e espaço, de si mesmo e dos outros, das possibilidades e<br />
perigos da vida – que é compartilhada por homens e<br />
mulheres em todo o mundo, hoje. Designarei esse conjunto<br />
de experiências como “modernidade”. Ser moderno é<br />
encontrar-se em um ambiente que promete aventura,<br />
poder, alegria, crescimento e autotransformação e<br />
transformação das coisas em redor – mas ao mesmo<br />
tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo que<br />
sabemos, tudo o que somos.<br />
Marshall Bermanem seu estudo, Tudo que é sólido se desmancha no ar,<br />
busca rastrear como se dá o contato das pessoas com a experiência urbana ou a<br />
“modernidade”, e que todas essas sensações são compartilhadas por pessoas em<br />
todo o mundo, tanto hoje, como no início do século. O que justifica a importância de<br />
31
empreender investigações sobre as mudanças de hábitos e comportamentos<br />
engendrados pela modernidade.<br />
As crônicas escritas por Alceu Chichôrro retratam exatamente essa tensão<br />
entre a experiência ambiental da modernidade e a sensação de perda dos<br />
referenciais, que aos poucos, vai cedendo lugar ao reconhecimento do fenômeno<br />
urbano como natural.<br />
As narrativas selecionadas para compor este trabalho, são analisadas em<br />
termos de uma estrutura única, contendo elementos funcionais comuns, dos quais é<br />
possível apreender algumas oposições significativas.<br />
A primeira oposição categórica que supomos é a tradição versus<br />
modernidade, que se encontra posta em correlação, no interior da narrativa, com<br />
outras categorias como homem versus mulher, público versus privado. Sendo que<br />
este último comporta uma função invertida, pois ao invés de delimitar o espaço<br />
público como restrito ao homem, enquanto o espaço privado era reservado à mulher,<br />
o texto mostra a desconstrução desta dicotomia, os espaços público e privado se<br />
equivalem, tanto no momento, em que, a mulher passa indiscriminadamente a<br />
ocupar os espaços públicos de sociabilidade; quanto na ocasião, em que, o<br />
ambiente doméstico se torna o espaço da sedução e do adultério, tal qual o público.<br />
O mesmo acontece com a oposição entre o permitido e o censurável.<br />
O mote das crônicas é a mudança do comportamento feminino, o confronto<br />
entre a tradição e as atitudes modernas das protagonistas gera um conflito entre o<br />
que é permitido e o que deve ser censurado. A repetição deste conflito, aos poucos,<br />
vai dando lugar à legitimação dos comportamentos modernos, até então, vistos<br />
como transgressores, o que significa, em última instancia, a aceitação da<br />
modernidade e a calcificação de uma nova tradição.<br />
Nas crônicas de Chichôrro a cidade aparece como agente propulsor da<br />
modificação dos comportamentos femininos, e em um movimento dialético a mulher<br />
moderna representa a nova dinâmica da cidade urbanizada.<br />
A nova mulher e a cidade urbanizada são vistas como objetos de desejo e<br />
de temor, paradoxo tão intenso que leva o personagem Carlito, da novela de Sá<br />
Barreto, à loucura. E que faz com que os personagens de Chichôrro se mantenham<br />
inertes frente às situações mais desestabilizadoras.<br />
32
A emergência da mulher no espaço público com a adoção de novos<br />
comportamentos e hábitos, fez com que boa parte dos escritores passassem a<br />
retratar a mulher como fútil, vaidosa, auto centrada, manipuladora e sedutora. A<br />
figura feminina é concebida sob um novo prisma, que se transcendia suas velhas<br />
atribuições de mãe; esposa; e dona- de- casa, e também suscitava a identificação da<br />
mulher comum com a figura “decaída” de Salomé.<br />
No discurso masculino é possível identificar uma descrença em relação ao<br />
amor moderno, pois, essa nova mulher é vista como uma ameaça às tradições. As<br />
narrativas de infernos conjugais são a cristalização da idéia de “disjunção” entre o<br />
homem e a mulher moderna.<br />
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INDICE DE ILISTRAÇÃO<br />
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