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a imagem de d. fernando na crônica de fernão lopes - Universidade ...

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A IMAGEM DE D. FERNANDO NA CRÔNICA DE FERNÃO<br />

LOPES<br />

Lukas Gabriel Grzybowski<br />

Prof.ª Dr.ª Fátima Regi<strong>na</strong> Fer<strong>na</strong>n<strong>de</strong>s<br />

Palavras-chave: Crônicas <strong>de</strong> Fernão Lopes; D. Fer<strong>na</strong>ndo <strong>de</strong> Portugal; Baixa Ida<strong>de</strong> Média<br />

Portuguesa<br />

O autor da Crônica <strong>de</strong> D. Fer<strong>na</strong>ndo, com a qual trabalhamos para <strong>de</strong>senvolver este<br />

trabalho <strong>de</strong> conclusão <strong>de</strong> curso, é Fernão Lopes. A respeito <strong>de</strong> sua vida não muito se sabe.<br />

Presume-se que ele tenha <strong>na</strong>scido entre 1380 e 1390 e que, portanto, viveu muito, uma vez<br />

que o último relato que se tem a respeito <strong>de</strong> sua pessoa é <strong>de</strong> 1459. Na ausência <strong>de</strong> dados a<br />

respeito da vida do cronista, faltam-nos também as informações sobre a formação <strong>de</strong><br />

Fernão Lopes. Associamo-nos então à tese <strong>de</strong> Marcella Lopes Guimarães que alinha a<br />

figura <strong>de</strong> Fernão Lopes à categoria <strong>de</strong> “homem <strong>de</strong> saber”, <strong>de</strong> Jacques Verger. Este “homem<br />

<strong>de</strong> saber” é provável que tenha recebido algum tipo <strong>de</strong> educação formal em escolas<br />

elementares ou <strong>de</strong> educação ligada à uma profissão, o que era possível num cenário<br />

urbano, on<strong>de</strong> acredita-se, o cronista tenha <strong>na</strong>scido e vivido. 1<br />

A partir <strong>de</strong>sta formação Fernão Lopes pô<strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenhar diversas funções <strong>na</strong><br />

carreira burocrática <strong>de</strong>ntro do Estado português. Presume-se que tenha <strong>de</strong>sempenhado<br />

funções <strong>de</strong> notário e escrivão, até atrair para si, por merecimento ou pressão <strong>de</strong> parentes<br />

seus, a atenção da casa régia. Quando em 1418 o cronista é nomeado ‘guardador das<br />

escrituras do Tombo’ inicia-se a sua carreira ligada mais diretamente à casa régia.<br />

Em 1434 o rei D. Duarte encomenda ao guarda-mor do Tombo que escreva as<br />

<strong>crônica</strong>s dos gran<strong>de</strong>s feitos dos reis portugueses. É por esta época que a ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

redação <strong>de</strong> <strong>crônica</strong>s régias se intensifica em Fernão Lopes, pois vemos que o autor passa a<br />

receber uma tença anual <strong>de</strong> 14000 reais. João Gouveia Monteiro indica, entretanto, que é<br />

possível que Fernão Lopes já se <strong>de</strong>dicasse à tarefa <strong>de</strong> cronista mesmo antes da encomenda<br />

<strong>de</strong> D. Duarte. 2<br />

As obras que surgem a partir <strong>de</strong>ssa encomenda são as três Crônicas dos reis<br />

portugueses: a Crônica <strong>de</strong> D. Pedro I; Crônica <strong>de</strong> D. Fer<strong>na</strong>ndo; e Crônica <strong>de</strong> D. João I, em<br />

dois volumes. Tratadas por muitos como uma trilogia, elas são o núcleo principal da<br />

produção cronística lopea<strong>na</strong>. A estas Crônicas soma-se a Crônica dos Reis Portugueses, <strong>de</strong><br />

1419, que alguns estudiosos atribuem a Fernão Lopes. Dentro da trilogia lopea<strong>na</strong> é preciso<br />

também observar que há um sentido dado <strong>na</strong> sua elaboração. O cronista cria uma<br />

hierarquia nos temas tratados em sua obra, <strong>de</strong> modo que há uma convergência para a<br />

Crônica <strong>de</strong> D. João I, parte primeira, que <strong>na</strong>rra os acontecimentos dos curtos anos do<br />

interregno.<br />

A Crônica <strong>de</strong> D. Fer<strong>na</strong>ndo não é, portanto, o elemento central, nem a parte<br />

principal da obra <strong>de</strong> Fernão Lopes. É, no entanto, singular, pois é diretamente anterior à<br />

primeira parte da Crônica <strong>de</strong> D. João I, e, através do antagonismo que o autor cria entre o<br />

rei D. Fer<strong>na</strong>ndo e seu sucessor, D. João I, relata os acontecimentos que <strong>de</strong>sembocarão <strong>na</strong><br />

crise <strong>de</strong> 1383-85, on<strong>de</strong> se encontra o núcleo do projeto lopeano <strong>de</strong> e<strong>na</strong>ltecimento dos feitos<br />

da di<strong>na</strong>stia <strong>de</strong> Avis.<br />

1 GUIMARÃES, Marcella L. Estudo das representações <strong>de</strong> mo<strong>na</strong>rca <strong>na</strong>s <strong>crônica</strong>s <strong>de</strong> Fernão Lopes (séculos<br />

XIV e XV): O espelho do rei: “- Decifra-me e te <strong>de</strong>voro”. Curitiba, 2004. 275 f. Tese (Doutorado em<br />

História) – Setor <strong>de</strong> Ciências Huma<strong>na</strong>s, Letras e Artes, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Paraná. p. 42-43.<br />

2 MONTEIRO, João Gouveia. Fernão Lopes: texto e contexto. Coimbra: Livraria Minerva, 1988. p. 72.


D. Fer<strong>na</strong>ndo reinou em um cenário bastante conturbado. Durante seu rei<strong>na</strong>do, que<br />

vai <strong>de</strong> 1367 a 1383 o rei português teve que lidar com três guerras luso-castelha<strong>na</strong>s,<br />

<strong>de</strong>sdobramentos ibéricos da guerra dos cem anos, com um grave problema frumentário<br />

<strong>de</strong>ntro do reino, com as pretensões da nobreza e dos povos, e com um casamento malsucedido.<br />

Ao fi<strong>na</strong>l <strong>de</strong> sua vida, encurtada pela doença, D. Fer<strong>na</strong>ndo <strong>de</strong>ixa o reino sem<br />

her<strong>de</strong>iro varão, sob a regência da rainha, D. Leonor Teles, membro <strong>de</strong> uma nobreza exilada<br />

castelha<strong>na</strong>, que não tem muitos apoios <strong>de</strong>ntro do reino, e sob forte ameaça <strong>de</strong> D. Juan I <strong>de</strong><br />

Castela, genro <strong>de</strong> D. Fer<strong>na</strong>ndo, que reclama para si o trono português. No <strong>de</strong>correr <strong>de</strong>ste<br />

interregno ascen<strong>de</strong>rá ao trono a di<strong>na</strong>stia <strong>de</strong> Avis através <strong>de</strong> D. João I, mestre <strong>de</strong> Avis,<br />

meio-irmão <strong>de</strong> D. Fer<strong>na</strong>ndo, que surge como o “mexias” <strong>de</strong> Lisboa 3 e “salva” o reino do<br />

difícil interregno.<br />

Fernão Lopes cria então em sua Crônica a respeito <strong>de</strong> D. Fer<strong>na</strong>ndo uma<br />

<strong>de</strong>termi<strong>na</strong>da <strong>imagem</strong> do rei que justifique a mudança dinástica e legitime a di<strong>na</strong>stia <strong>de</strong><br />

Avis no trono português. Dois elementos que fazem parte <strong>de</strong>sta construção nós <strong>de</strong>stacamos<br />

para fins <strong>de</strong> análise em nosso trabalho: o perfil do mo<strong>na</strong>rca e o casamento <strong>de</strong> D. Fer<strong>na</strong>ndo.<br />

Em relação ao perfil do mo<strong>na</strong>rca vemos dois momentos distintos <strong>na</strong> obra lopea<strong>na</strong>.<br />

Em um primeiro momento, que localizamos entre o prólogo e os primeiros capítulos da<br />

Crônica, on<strong>de</strong> o rei é retratado como um bom rei, equilibrado e justo. Tal perfil se cria<br />

através do relato que Fernão Lopes cria em torno da figura do mo<strong>na</strong>rca. Quatro elementos<br />

nós <strong>de</strong>stacamos como compositores <strong>de</strong>sse perfil. As características físicas, as habilida<strong>de</strong>s,<br />

as atitu<strong>de</strong>s e a perso<strong>na</strong>lida<strong>de</strong> do rei. Estes elementos aparecem em diferentes graus <strong>de</strong><br />

intensida<strong>de</strong> <strong>na</strong> obra, mas em seu conjunto pintam um <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>do quadro do rei.<br />

Quanto às características físicas do rei os comentários são escassos, concentrados<br />

no prólogo da obra e no capítulo 172. No prólogo vemos Fernão Lopes <strong>de</strong>screver um rei <strong>de</strong><br />

“bem composto corpo e <strong>de</strong> razoada altura, fremoso em parecer e muito vistoso; tal que<br />

estando acerca <strong>de</strong> muitos homeens, posto que conhecido nom fosse, logo o julgariam por<br />

Rei dos outros”. 4 A esta <strong>imagem</strong> bastante positiva opõe-se aquela <strong>de</strong>scrita no capítulo 172,<br />

quando o cronista escreve que “jouve elRei per dias doemte , muj <strong>de</strong>sasemelhado <strong>de</strong><br />

quamdo el começou <strong>de</strong> rei<strong>na</strong>r; ca el estomçe parecia Rei amtre todollos homeens aimda<br />

que conheçido nom fosse, e agora era assi mudado, que <strong>de</strong> todo pomto nom pareçia<br />

aquelle”. 5<br />

Oposições semelhantes observamos também com os outros elementos que<br />

<strong>de</strong>stacamos para fins <strong>de</strong> análise. O rei que no início da Crônica é <strong>de</strong>scrito como habilidoso<br />

com o cavalo e com a espada, como se vê no prólogo, elementos da construção i<strong>de</strong>al <strong>de</strong><br />

cavaleiro medieval, aparece mais adiante cometendo erros estratégicos em suas guerras<br />

contra Castela. O mesmo suce<strong>de</strong> com a perso<strong>na</strong>lida<strong>de</strong> <strong>de</strong> D. Fer<strong>na</strong>ndo que o cronista cria.<br />

Nos primeiros capítulos da <strong>crônica</strong> o rei é retratado como valente, arrojado, justo, amador<br />

<strong>de</strong> seu povo 6 ; o rei era “gamdioso <strong>de</strong> voonta<strong>de</strong> e queremçoso daquello que todollos<br />

homeens <strong>na</strong>turallmente <strong>de</strong>seiam, que he acreçemtamento <strong>de</strong> sua boa fama, e homrroso<br />

estado”. 7 Em contrapartida, mais adiante <strong>na</strong> Crônica vemos o mo<strong>na</strong>rca sendo <strong>de</strong>scrito<br />

como covar<strong>de</strong>, inconstante e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, ardiloso, temeroso <strong>de</strong> seu povo e <strong>de</strong>sonrado. 8<br />

3<br />

GUIMARÃES, Marcella L. Op. Cit.<br />

4<br />

LOPES, Fernão. Crónica do senhor rei Dom Fer<strong>na</strong>ndo nono rei <strong>de</strong>stes regnos. Porto: Livraria Civilização.<br />

1979. p. 3<br />

5<br />

I<strong>de</strong>m p. 475. Grifo meu.<br />

6<br />

I<strong>de</strong>m p. 3<br />

7<br />

I<strong>de</strong>m. p. 77<br />

8<br />

I<strong>de</strong>m. caps. 45, 64, 83, 93, 115, 126, 191, entre outros.


Atingimos assim um elemento chave para enten<strong>de</strong>rmos a construção <strong>de</strong> Fernão<br />

Lopes acerca da <strong>imagem</strong> do rei <strong>na</strong>s suas três Crônicas. A justiça é esse elemento crucial<br />

que transpassa toda a produção lopea<strong>na</strong>. E é no prólogo da Crônica <strong>de</strong> D. Pedro I que o<br />

cronista nos apresenta seu conceito <strong>de</strong> justiça, associado ao bom governo, e que perpassará<br />

toda a obra <strong>de</strong> Fernão Lopes. Encontramos então no próprio Fernão Lopes uma possível<br />

resposta para alguns dos questio<strong>na</strong>mentos que nos colocamos no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong>ste projeto. O<br />

cronista amarra sua <strong>na</strong>rrativa em torno do tema da justiça, pois a justiça é que confere a<br />

legitimida<strong>de</strong> ao rei.<br />

D. Fer<strong>na</strong>ndo, <strong>de</strong> acordo com o que Fernão Lopes escreve, “Amava a justiça” 9 ao<br />

começo <strong>de</strong> seu rei<strong>na</strong>do. O rei que pela <strong>de</strong>scrição lopea<strong>na</strong> seria formoso e justo, ao fi<strong>na</strong>l do<br />

seu rei<strong>na</strong>do transforma-se em doente e injusto, per<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong>ssa maneira o elemento<br />

principal que legitimava a sua ação à frente do reino, pois o cronista escreve que “a justiça<br />

nom tam soomente afremosenta os Reis <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong> corporal mas ainda spiritual, pois<br />

quanto a fremusura do spiritu tem avantagem da do corpo: tanta a justiça em no Rei he<br />

mais neçessaria que outra fremosura”. 10<br />

A Crônica surge em meio a um contexto <strong>de</strong> reformulação dos po<strong>de</strong>res em Portugal.<br />

Esse momento refletirá <strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa <strong>de</strong> Fernão Lopes, que enfatiza as ações da mo<strong>na</strong>rquia e<br />

dos Concelhos – estes muitas vezes interpretados como o “povo”, dando ao cronista a fama<br />

<strong>de</strong> escrever <strong>crônica</strong>s do povo português – em <strong>de</strong>trimento das ações da nobreza cujas ações<br />

são vistas muitas vezes como prejudiciais para o conjunto do reino. Segundo Marcella<br />

Lopes Guimarães esta intencio<strong>na</strong>lida<strong>de</strong> presente no texto <strong>de</strong> Fernão Lopes não se trata <strong>de</strong><br />

uma premeditação da <strong>na</strong>rrativa a ser construída a respeito da mo<strong>na</strong>rquia portuguesa. O<br />

discurso lopeano surge <strong>de</strong>sta maneira, pois “o po<strong>de</strong>r cria a verda<strong>de</strong>, e, portanto, a sua<br />

legitimação”. 11 Po<strong>de</strong>mos afirmar com isso que a análise dos acontecimentos levada a cabo<br />

por Fernão Lopes é fruto da “verda<strong>de</strong>” <strong>na</strong> qual se cria <strong>na</strong>quele momento.<br />

Que verda<strong>de</strong>s eram estas? Este questio<strong>na</strong>mento nos leva novamente ao início <strong>de</strong>ssa<br />

discussão, ou seja, à crença <strong>de</strong> que D. Fer<strong>na</strong>ndo foi um mal rei. Quero ressaltar novamente<br />

aqui um elemento que ficou bastante explícito durante a exposição dos dados extraídos da<br />

Crônica em relação ao perfil do rei. São dados antagônicos. Eles mostram duas realida<strong>de</strong>s.<br />

Dois reis.<br />

Primeiramente um D. Fer<strong>na</strong>ndo mostrado como rei i<strong>de</strong>al, continuador do projeto<br />

começado por seu pai, D. Pedro I, que trouxera estabilida<strong>de</strong> novamente ao reino, e que, em<br />

vistas das circunstâncias <strong>na</strong>s quais D. Fer<strong>na</strong>ndo assume o trono, tinha todas as condições<br />

para ser continuado por seu sucessor. Em contrapartida vemos surgir um segundo D.<br />

Fer<strong>na</strong>ndo, que em oposição ao primeiro, se mostra <strong>de</strong>sastroso, impru<strong>de</strong>nte e incapaz <strong>de</strong> dar<br />

continuida<strong>de</strong> à atuação política <strong>de</strong> seu pai.<br />

Oliveira Marques nos dá pistas sobre as razões que geraram tal diferença entre o<br />

rei<strong>na</strong>do <strong>de</strong> D. Fer<strong>na</strong>ndo e <strong>de</strong> seu antecessor, D. Pedro I. segundo o historiador “ao<br />

contrário <strong>de</strong> D. Pedro, [D. Fer<strong>na</strong>ndo] <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhava da companhia <strong>de</strong> populares, preferindolhes<br />

a nobreza”. 12 Esta preferência pela nobreza, teoria à qual nos aproximamos, verificase<br />

através do casamento do D. Fer<strong>na</strong>ndo com D. Leonor Teles.<br />

O casamento com D. Leonor Teles é tido pela historiografia como o marco da<br />

mudança <strong>na</strong> atuação do mo<strong>na</strong>rca. Porém nossa pesquisa aponta em outra direção, que não<br />

seja pura e simplesmente um marco, ou um ponto a partir do qual a ação gover<strong>na</strong>tiva <strong>de</strong> D.<br />

9<br />

I<strong>de</strong>m. p. 3.<br />

10<br />

LOPES, Fernão. Crónica do senhor rei Dom Pedro oitavo rei <strong>de</strong>stes regnos. Porto: Livraria Civilização.<br />

1979. p. 5. Grifo meu.<br />

11<br />

O’BRIEN, Patrícia. Apud GUIMARÃES, Marcella Lopes. Op. Cit. Grifo meu.<br />

12<br />

MARQUES, A. H. <strong>de</strong> Oliveira. Nova História <strong>de</strong> Portugal. Vol. IV: Portugal <strong>na</strong> crise dos séculos XIV e<br />

XV. [s.l.]: Presença. [s.d.]. p. 510. Grifo meu.


Fer<strong>na</strong>ndo muda. Cremos que o casamento <strong>de</strong> D. Fer<strong>na</strong>ndo com D. Leonor Teles representa,<br />

e em certa medida coroa, todo o sentido da atuação do mo<strong>na</strong>rca.<br />

Algumas interpretações surgidas no âmbito da nova história política nos levam a<br />

consi<strong>de</strong>rar que o casamento <strong>de</strong> D. Fer<strong>na</strong>ndo com D. Leonor Teles era parte <strong>de</strong> manobras<br />

políticas <strong>de</strong> famílias da nobreza recém instalada em Portugal. E sendo assim, apresentavase<br />

como parte visível das disputas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, como Oliveira Marques afirma ao escrever<br />

que “no fundo, era mais um episódio da luta surda travada entre grupos e famílias rivais,<br />

neste caso os Teles <strong>de</strong> Meneses contra os po<strong>de</strong>rosos Castros”, 13 idéia comprovada, em<br />

certo sentido pela obra <strong>de</strong> Fátima Fer<strong>na</strong>n<strong>de</strong>s – e a Crônica <strong>de</strong> D. Fer<strong>na</strong>ndo evi<strong>de</strong>ncia este<br />

processo – que mostra como a ascensão <strong>de</strong> Leonor Teles ao posto <strong>de</strong> rainha <strong>de</strong> Portugal,<br />

foi fundamental para o <strong>de</strong>slocamento dos Castro do núcleo <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, apesar <strong>de</strong> possuírem<br />

estes um ramo <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> D. Pedro I. 14<br />

Também aceita <strong>de</strong>ntro da historiografia portuguesa é a interpretação que <strong>de</strong> certa<br />

maneira se liga a esta primeira, e diz respeito à intenção <strong>de</strong> D. Fer<strong>na</strong>ndo <strong>de</strong> dar<br />

prosseguimento aos sucessos conseguidos por seu pai, D. Pedro I, em matéria <strong>de</strong><br />

neutralida<strong>de</strong> nos assuntos referentes à Guerra dos Cem Anos. Casar-se com uma<br />

representante da nobreza local seria uma estratégia para impedir um vínculo externo ao<br />

reino, o que po<strong>de</strong>ria forçar Portugal a tomar partido por um dos grupos conflitantes.<br />

Sendo a motivação do casamento <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m política, como a supracitada, que<br />

buscava a neutralida<strong>de</strong> do reino frente ao <strong>de</strong>senrolar ibérico do conflito entre França e<br />

Inglaterra, teria Fernão Lopes, então, razão em apontar o casamento como uma escolha<br />

equivocada do rei. Isso por que ao invés <strong>de</strong> trazer neutralida<strong>de</strong> a Portugal, sua associação à<br />

nobreza exilada Castelha<strong>na</strong> – é o caso do Teles – o coloca <strong>de</strong>ntro do círculo <strong>de</strong> influência<br />

<strong>de</strong> uma nobreza beligerante que possui pretensões no reino vizinho. Esta nobreza pressio<strong>na</strong><br />

o rei a entrar em guerra contra Castela para suprir as necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>la, e o rei se vê<br />

obrigado a respon<strong>de</strong>r a tais anseios por ser esta nobreza a base <strong>de</strong> sustentação do rei no<br />

po<strong>de</strong>r.<br />

Na convergência <strong>de</strong>ssas duas interpretações recentes que a historiografia nos<br />

apresenta é que colocamos a nossa própria análise do casamento <strong>de</strong> D. Fer<strong>na</strong>ndo,<br />

relacio<strong>na</strong>ndo-o com a construção da <strong>imagem</strong> do rei <strong>na</strong> Crônica lopea<strong>na</strong>.<br />

Se seguimos a tendência que diz que D. Fer<strong>na</strong>ndo casou-se com Leonor Teles para<br />

afirmar sua autonomia frente aos <strong>de</strong>mais reinos ibéricos, também cremos que o casamento<br />

foi uma estratégia do mo<strong>na</strong>rca para encontrar uma base <strong>de</strong> sustentação <strong>na</strong> nobreza que<br />

apoiasse sua ação gover<strong>na</strong>tiva no sentido da centralização do po<strong>de</strong>r. Por isso o rei teria se<br />

casado com uma representante da nobreza recém instalada no reino português, logo<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte das doações régias e sem gran<strong>de</strong>s bases <strong>de</strong> sustentação local. Por outro lado,<br />

estando os Teles inseridos <strong>na</strong>s disputas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r da nobreza portuguesa, havia um interesse<br />

por sua parte <strong>de</strong> uma consolidação da família nos quadros nobiliárquicos portugueses, o<br />

que os levava a apoiar um plano senhorialista, que ia <strong>de</strong> encontro a ambições<br />

centralizadoras.<br />

O impasse que se coloca entre estes dois projetos políticos perpassa todo o rei<strong>na</strong>do<br />

<strong>de</strong> D. Fer<strong>na</strong>ndo, e, po<strong>de</strong>mos afirmar, vai além <strong>de</strong>le, perpassando todo o conjunto das<br />

Crônicas <strong>de</strong> Fernão Lopes. Reflexo do momento em que o autor vive, marcado por<br />

disputas do mesmo tipo, que será projetado <strong>na</strong>s Crônicas através da <strong>na</strong>rrativa dos feitos dos<br />

reis <strong>de</strong> Portugal. Narrativas que, através da criação <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>da <strong>imagem</strong> <strong>de</strong> rei,<br />

busca apontar para uma justificativa da legitimida<strong>de</strong> da casa <strong>de</strong> Avis.<br />

13 I<strong>de</strong>m. p. 514.<br />

14 FERNANDES, Fátima R. Socieda<strong>de</strong> e Po<strong>de</strong>r <strong>na</strong> Baixa Ida<strong>de</strong>-Média portuguesa. Dos Azevedo aos<br />

Vilhe<strong>na</strong>: as famílias da nobreza medieval portuguesa. Curitiba: Ed. UFPR. 2003.


Como já dissemos a sua associação à nobreza o tornou refém, em certa medida, dos<br />

<strong>de</strong>sejos <strong>de</strong>ssa nobreza, que possuía ambições no reino <strong>de</strong> Castela. E o rei ao se <strong>de</strong>parar com<br />

essa realida<strong>de</strong> mostra-se arrependido <strong>de</strong> ter-se casado e queixa-se aos seus privados, como<br />

escreve o cronista. D. Fer<strong>na</strong>ndo:<br />

Disse huum dia a huum <strong>de</strong> seu conselho, como se repremdia <strong>de</strong> teer casado com<br />

ella; o outro respom<strong>de</strong>o disse: .. [...] [D. Afonso IV foi ameaçado <strong>de</strong> <strong>de</strong>stituição pelos<br />

seus privados, pois não dava a <strong>de</strong>vida atenção aos assuntos do reino, preferindo a caça ao<br />

conselho] E eu assi quisera que vos outros do meu comsselho fezerees a mim: pois que<br />

viees que nom era minha homrra tal casamento, nom me comssemtisses que o fezesse. 15<br />

Desse modo, pois, evi<strong>de</strong>ncia-se aquilo que nós cremos talvez possa ser entendido<br />

como uma possível síntese da criação <strong>de</strong> Fernão Lopes a respeito da figura do rei D.<br />

Fer<strong>na</strong>ndo <strong>de</strong> Portugal.<br />

A socieda<strong>de</strong> política medieval, em seus mais altos círculos, era formada pelo rei e<br />

um grupo restrito <strong>de</strong> pessoas que formavam os privados do rei e o Conselho régio. Os<br />

privados eram pessoas próximas do rei e atuavam como conselheiros pessoais <strong>de</strong>ste. O<br />

Conselho régio, que aqui mais nos interessa, era formado por vassalos diretos do rei e era<br />

convocado periodicamente para auxiliar o rei <strong>na</strong>s <strong>de</strong>cisões <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m política e para traçar<br />

os rumos da ação gover<strong>na</strong>tiva no reino. Sobre o Conselho escreve Marc Bloch:<br />

Em tempo <strong>de</strong> paz, ele [o senhor] reunia a sua “corte”, que, em datas mais ou<br />

menos regulares coinci<strong>de</strong>ntes, em geral, com as principais festas litúrgicas, convocava<br />

com gran<strong>de</strong> aparato: sucessivamente, tribu<strong>na</strong>l, conselho cuja moral política da época<br />

impunha ao senhor a opinião em todas as circunstâncias graves, e também serviço <strong>de</strong><br />

honra. 16<br />

Fernão Lopes aponta para o fato <strong>de</strong> o consilium ser uma das maneiras pelas qual o<br />

rei po<strong>de</strong> atingir a justiça. Em diversos capítulos transparece essa idéia como nos capítulos<br />

45, 53, 64, 72, 80, 101, entre outros. Lembremo-nos pois que a justiça é para o cronista a<br />

virtu<strong>de</strong> que caracteriza o rei i<strong>de</strong>al, conforme o prólogo da Crônica <strong>de</strong> D. Pedro I. D.<br />

Fer<strong>na</strong>ndo figura então, <strong>na</strong> criação <strong>de</strong> Fernão Lopes, como um mau rei por fugir ao mo<strong>de</strong>lo<br />

<strong>de</strong> justiça também ao ignorar o Conselho régio.<br />

Po<strong>de</strong>mos, <strong>de</strong>ssa maneira, concluir que há um fio que conduz todo o conjunto das<br />

Crônicas <strong>de</strong> Fernão Lopes, e que serve como legitimador da di<strong>na</strong>stia <strong>de</strong> Avis. Este<br />

elemento é, segundo nossa interpretação, a justiça. Elemento que aparece primeiramente <strong>na</strong><br />

construção do perfil <strong>de</strong> D. Pedro I, que além <strong>de</strong> justo é tido como justiceiro, como um<br />

pequeno <strong>de</strong>svio da qualida<strong>de</strong> da justiça; que escapa a D. Fer<strong>na</strong>ndo, <strong>de</strong> acordo com a<br />

criação lopea<strong>na</strong>, quando este prefere a nobreza em <strong>de</strong>trimento do povo, gerando<br />

<strong>de</strong>sequilíbrio e crise; e que se manifesta <strong>de</strong> maneira ple<strong>na</strong> e equilibrada, <strong>na</strong> pe<strong>na</strong> <strong>de</strong> Fernão<br />

Lopes, em D. João I, que é justo, mas não justiceiro, e que rei<strong>na</strong> em busca do bem do reino,<br />

e não somente <strong>de</strong> um grupo restrito.<br />

15 LOPES, Fernão. Crónica do senhor rei Dom Fer<strong>na</strong>ndo... pp. 169-170.<br />

16 BLOCH, Marc. A socieda<strong>de</strong> feudal. Lisboa: Edições 70, 1982. p. 250.

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