07.05.2013 Views

ESTRATÉGIAS DE VIDA E DE MORTE - Departamento de História ...

ESTRATÉGIAS DE VIDA E DE MORTE - Departamento de História ...

ESTRATÉGIAS DE VIDA E DE MORTE - Departamento de História ...

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

LUIZ ADRIANO GONÇALVES BORGES<br />

<strong>ESTRATÉGIAS</strong> <strong>DE</strong> <strong>VIDA</strong> E <strong>DE</strong> <strong>MORTE</strong><br />

RITOS FÚNEBRES E A REPRODUÇÃO SOCIAL EM SÃO JOSÉ DOS<br />

PINHAIS, SÉCULO XIX.<br />

Monografia apresentada<br />

como requisito à conclusão do<br />

Curso <strong>de</strong> <strong>História</strong>, Setor <strong>de</strong> Ciências<br />

Humanas, Letras e Artes,<br />

Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Paraná.<br />

Orientador: Prof. Doutor Carlos Alberto <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros Lima<br />

CURITIBA<br />

2006


Aos meus pais, que não mediram esforços<br />

para que eu continuasse meus estudos<br />

À Mabel, minha companheira, que sempre<br />

me apoiou e viu <strong>de</strong> perto todas<br />

as etapas <strong>de</strong>ste trabalho.<br />

2


Agra<strong>de</strong>cimentos<br />

Primeiramente <strong>de</strong>vo agra<strong>de</strong>cer ao meu orientador Carlos Lima, que me conce<strong>de</strong>u<br />

uma bolsa <strong>de</strong> pesquisa há três anos atrás. Foi meu primeiro contato com as fontes<br />

cartoriais e <strong>de</strong>spertou meu gosto pela “coisa”. Após o término da bolsa, ele continuou a<br />

me orientar no trabalho monográfico, sempre com toques muito pertinentes e indicando<br />

caminhos a trilhar.<br />

Agra<strong>de</strong>ço à Nelci De Paiva e os outros funcionários da empresa que guardava os<br />

inventários, pela sua atenção e paciência.<br />

Também agra<strong>de</strong>ço ao pessoal do Museu Municipal Atílio Rocco, em São José<br />

dos Pinhais, on<strong>de</strong> trabalhei por quase um ano. Lá, apoiado pelo diretor do Museu André<br />

Luis Sada e pela chefe do Patrimônio Histórico <strong>de</strong> São José dos Pinhais, Zelinda Fialla,<br />

<strong>de</strong>senvolvi um trabalho que me ajudou em parte nessa monografia, principalmente no<br />

que se refere aos registros <strong>de</strong> óbitos.<br />

O professor Antonio César, do <strong>de</strong>partamento <strong>de</strong> <strong>História</strong>, leu e fez vastos<br />

comentários sobre um trabalho anterior, que provocaram mudanças <strong>de</strong> direções nesta<br />

monografia. Agra<strong>de</strong>ço a ele pelo tempo concedido a meu trabalho.<br />

Ao colega e amigo Leonardo, com quem troquei idéias e que me ajudaram a<br />

<strong>de</strong>finir a parte teórica <strong>de</strong>ste trabalho.<br />

E à Mabel, pela paciência <strong>de</strong> ouvir meus empolgados comentários sobre minha<br />

pesquisa e pelos seus comentários.<br />

3


Sumário<br />

Introdução..........................................................................................................................6<br />

Capítulo 1. São José Dos Pinhais. Contexto....................................................................11<br />

Seção I. Dominadores e dominados e a reprodução social............................................14<br />

Seção II. Dos proprietários <strong>de</strong> bens. O contexto sãojoseense através dos inventários<br />

post-mortem.....................................................................................................................31<br />

Capítulo 2. Dois casos <strong>de</strong> reprodução familiar: Família Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sá e Família do<br />

Padre Francisco <strong>de</strong> Paulo Prestes....................................................................................41<br />

Seção I. Colcha <strong>de</strong> Retalhos: O caso da família Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sá......................................41<br />

Seção II. Patriarcalismo torto. Estudo do caso do Padre Francisco <strong>de</strong> Paula Prestes.....48<br />

Capítulo 3. Na hora da nossa morte. Ritos fúnebres como subsídio para a compreensão<br />

das hierarquias e estratégias sociais.................................................................................59<br />

Seção I. Ritos Fúnebres: da teoria e da prática................................................................61<br />

Seção II. A vida religiosa no Brasil.................................................................................64<br />

Seção III. Permanência da importância dos ritos fúnebres..............................................85<br />

Conclusão........................................................................................................................94<br />

Fontes...............................................................................................................................98<br />

Referências Bibliográficas...............................................................................................99<br />

Quadro e Tabelas<br />

Tabela 1 - Distribuição dos inventariados por faixas <strong>de</strong> tamanho dos montes-mores (São<br />

José dos Pinhais, 1852-1886)..........................................................................................33<br />

Tabela 2 - Distribuição dos inventariados por faixas <strong>de</strong> tamanho dos montes-mores (São<br />

José dos Pinhais, 1852-1886) (%)...................................................................................34<br />

Gráfico 1 – Média das fortunas inventariadas em São José dos Pinhais (1852 – 1886).35<br />

Tabela 3 - Valor médio <strong>de</strong> escravos por período (1852-1885)........................................38<br />

Tabela 4 - Últimos sacramentos <strong>de</strong> escravos e livres em % (1800-1830).......................75<br />

Tabela 5 - Últimos sacramentos <strong>de</strong> escravos e índios (anos 1767, 1777, 1787).<br />

Amostragem.....................................................................................................................76<br />

Tabela 6 - Locais <strong>de</strong> sepultamento (livres e forros) (1767-1830)...................................77<br />

Tabela 7 - Locais <strong>de</strong> sepultamento (escravos) (1767-1830)............................................77<br />

Tabela 8 - Últimos acompanhamentos............................................................................83<br />

4


Tabela 9 - Relação da presença ou ausência dos gastos com ritos fúnebres nos<br />

inventários em São José dos Pinhais (1852-1886)..........................................................86<br />

Quadro 1 - Itens presentes nos recibos <strong>de</strong> gastos fúnebres.............................................87<br />

Tabela 10 - Participação dos gastos com ritos fúnebres nas fortunas <strong>de</strong> acordo com<br />

faixas <strong>de</strong> tamanho dos montes-mores, em réis <strong>de</strong> 1872 (%) (São José dos Pinhais, 1852-<br />

1886)................................................................................................................................88<br />

Tabela 11 - Itens que se repetem nos recibos..................................................................89<br />

Tabela 12 - Participação dos gastos com ritos fúnebres nas fortunas, em réis <strong>de</strong> 1872<br />

(São José dos Pinhais, 1852-1886)..................................................................................90<br />

Gráfico 2 – Participação (%) dos gastos com ritos fúnebres no total das fortunas (São<br />

José dos Pinhais, 1852-1886)..........................................................................................91<br />

Tabela 13 - Média, por faixas <strong>de</strong> riqueza, das percentagens dos montes gastos com ritos<br />

fúnebres (1868)................................................................................................................93<br />

Tabela 14. Média, por faixas <strong>de</strong> riqueza, das percentagens dos montes gastos com ritos<br />

fúnebres (1883)................................................................................................................93<br />

Tabela 15. Média, por faixas <strong>de</strong> riqueza, das percentagens dos montes gastos com ritos<br />

fúnebres (1880)................................................................................................................94<br />

5


Introdução<br />

O trabalho que proponho se preocupará em analisar os ritos fúnebres como<br />

signos da posição dos indivíduos na hierarquia social na vila <strong>de</strong> São José dos Pinhais,<br />

no Paraná, na segunda meta<strong>de</strong> do século XIX. A historiografia produzida sobre este<br />

tema mostra que os ritos fúnebres ocupavam um lugar <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância na<br />

socieda<strong>de</strong> brasileira dos séculos XVI ao XIX. Porém, o ritual fúnebre barroco pomposo,<br />

que era um indicador do po<strong>de</strong>r e da posição do <strong>de</strong>funto na estrutura social, estaria, na<br />

segunda meta<strong>de</strong> do século XIX, em <strong>de</strong>cadência, <strong>de</strong>vido a três fatores principais: a<br />

romanização da Igreja, a tendência higienista, e a construção <strong>de</strong> cemitérios.<br />

A análise dos ritos fúnebres e suas relações com o contexto social que os<br />

envolvem, não po<strong>de</strong> ser, logicamente, <strong>de</strong>sprendida do pensamento religioso dos<br />

personagens que participavam <strong>de</strong>ssas cerimônias. O funeral inserido, <strong>de</strong>sta forma, em<br />

um universo predominantemente Católico como o Brasil, nos leva a analisar as<br />

características que eram concernentes a essa crença no Brasil dos séculos passados. A<br />

vida religiosa no Brasil dos séculos XVII ao XIX é um tema extremamente frutífero <strong>de</strong><br />

se estudar, pois o catolicismo herdado dos portugueses junto com alguns resquícios <strong>de</strong><br />

rituais africanos produziram uma religiosida<strong>de</strong> extremamente diversa e rica. Uma<br />

religiosida<strong>de</strong> mais concreta do que espiritual, ligada mais à pompa do que à <strong>de</strong>voção,<br />

como Sérgio Buarque <strong>de</strong> Holanda percebeu. 1 E on<strong>de</strong> se po<strong>de</strong> notar melhor isto do que<br />

nos funerais <strong>de</strong> outrora? Os ritos fúnebres barrocos comportavam um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong><br />

símbolos. Uma pessoa <strong>de</strong> fora tomava o fator lúdico <strong>de</strong> todas aquelas representações da<br />

morte como o elemento central. Entretanto, como notou Walter Benjamim, a obsessão<br />

barroca com a morte tinha muito pouco <strong>de</strong> lúdico, como veremos à frente.<br />

Por trás <strong>de</strong> toda a gran<strong>de</strong>za dos funerais <strong>de</strong> outrora, um sentido muito importante<br />

“tentava” se escon<strong>de</strong>r. Tentava, porque o verda<strong>de</strong>iro sentido <strong>de</strong> toda aquela pompa era<br />

do conhecimento <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> parte da população do Brasil dos tempos coloniais e<br />

imperiais: <strong>de</strong>monstrar a posição que o <strong>de</strong>funto ocupava na socieda<strong>de</strong>. Os funerais <strong>de</strong><br />

fato se constituíam em verda<strong>de</strong>iros “espelhos das hierarquias”, nas palavras <strong>de</strong> Sheila<br />

Faria. 2<br />

Assim, a morte <strong>de</strong>ixa marcas muito profundas no cimento social, e, po<strong>de</strong>-se<br />

através do estudo das atitu<strong>de</strong>s frente a ela, compreen<strong>de</strong>r um pouco o funcionamento das<br />

1 Holanda, Sérgio Buarque <strong>de</strong>. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 150-151.<br />

2 Faria, Sheila Siqueira <strong>de</strong> Castro. Fortuna e família no cotidiano colonial (su<strong>de</strong>ste, século XVIII). Tese<br />

<strong>de</strong> Doutoramento, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense. Niterói, 1994.<br />

6


estruturas sociais <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong>. Deste modo, procurei tratar aspectos dos ritos<br />

fúnebres em São José dos Pinhais na segunda meta<strong>de</strong> do século XIX sob dois enfoques.<br />

Primeiramente, percebendo as mudanças que os ritos vinham sofrendo no século XIX<br />

(segundo João José Reis, diminuição dos gastos fúnebres, da religiosida<strong>de</strong>, etc.), e o que<br />

eles po<strong>de</strong>m indicar e sugerir sobre a <strong>História</strong> da Igreja no século XIX (os impactos,<br />

efeitos, diversida<strong>de</strong>s e ritmos <strong>de</strong> romanização etc.). Em segundo lugar, vou tratar os<br />

ritos fúnebres como um pretexto para avançar na direção do estudo dos mecanismos <strong>de</strong><br />

estratificação social na região, em articulação com a análise da hierarquização social no<br />

Brasil do século XIX.<br />

A principal fonte levantada para a análise foram os inventários. Sua transcrição<br />

colaborou na obtenção <strong>de</strong> maiores informações referentes à vida material e espiritual da<br />

região. Foram transcritos 370 inventários que cobrem os anos 1852 a 1886. O ano <strong>de</strong><br />

1852 é a data da elevação da então freguesia à categoria <strong>de</strong> vila, passando a ter um<br />

instrumento jurídico que possibilitava a produção <strong>de</strong> documentos oficiais seculares, no<br />

interior da própria vila.<br />

Para que pudéssemos ter um valor o mais aproximado possível do real, os<br />

valores dos montes-mores nos inventários foram todos <strong>de</strong>flacionados em réis <strong>de</strong> 1872,<br />

utilizando o método <strong>de</strong> Eulália M. L. Lobo, que fixou valores através <strong>de</strong> uma<br />

pon<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> preços para o ano <strong>de</strong> 1857, no Rio <strong>de</strong> Janeiro. 3<br />

Estruturalmente, os documentos analisados se apresentavam parecidos ao longo<br />

do período estudado. Iniciavam-se indicando quem informou a morte ao tabelião, o<br />

lugar e a data do falecimento. Seguia-se a lista dos her<strong>de</strong>iros e poucas informações<br />

sobre o morto. Alguns dados eram omitidos com freqüência, como local <strong>de</strong> moradia do<br />

inventariado, nome dos pais, lugar <strong>de</strong> nascimento, causas da morte, etc. Após os dados<br />

mais gerais, instituíam-se os avaliadores, muitas vezes em dupla. Depois <strong>de</strong> serem<br />

arrolados e estabelecidos valores, apresentavam a lista nominal dos créditos e débitos.<br />

Após o arrolamento das dívidas e créditos, faziam a soma dos bens, a <strong>de</strong>dução das<br />

dívidas e a partilha, com referências específicas ao conjunto <strong>de</strong> itens <strong>de</strong>stinados a cada<br />

her<strong>de</strong>iro, em separado. Entretanto, algumas vezes não havia a soma dos bens, pois estes<br />

iriam direto para os her<strong>de</strong>iros, por estarem assim <strong>de</strong>terminados em testamentos.<br />

3 Lobo, Eulália M. L. Evolução dos preços e do padrão <strong>de</strong> vida na cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1820-1930.<br />

IN: Revista Brasileira <strong>de</strong> economia, vol. 25 nº 4, 1971. Como São José dos Pinhais importava e produtos<br />

do Rio <strong>de</strong> Janeiro o consumo se assemelhava aos da capital do Império, é nesse sentido que po<strong>de</strong>mos<br />

utilizar o método <strong>de</strong> Lobo.<br />

7


Quando utilizamos esses documentos, <strong>de</strong>vemos ter em mente que somente<br />

proprietários <strong>de</strong> bens eram inventariados, portanto uma gran<strong>de</strong> fatia da população ficava<br />

<strong>de</strong> fora. Assim, estamos tratando dos mais “abastados” entre a população, mas este fato<br />

não representa que estas pessoas possuíam uma gran<strong>de</strong> fortuna, pois a simples<br />

proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> um bem não os tornava ricos.<br />

Uma outra questão que é também encontrada por muitos pesquisadores que se<br />

<strong>de</strong>bruçaram sobre os documentos do passado brasileiro é o problema dos sub-registros,<br />

isto é, a ausência <strong>de</strong> alguns documentos por diversas razões, tais como a perda do<br />

documento, a não existência <strong>de</strong> uma pessoa apta para fazê-lo, o fato <strong>de</strong> que uma crise<br />

agrária possa ter impossibilitado sua confecção <strong>de</strong>vido à falta <strong>de</strong> dinheiro para pagar os<br />

impostos necessários.<br />

Os inventários eram e ainda hoje continuam sendo confeccionados com o intuito<br />

<strong>de</strong> listar os bens a serem <strong>de</strong>ixados a her<strong>de</strong>iros, sendo <strong>de</strong>sta forma possível tomar<br />

conhecimento da vida material da região analisada. A lista <strong>de</strong> bens móveis presentes nos<br />

inventários consiste em riquíssimo material para se perceber não só as condições<br />

materiais em que se reproduzia a vida cotidiana da época, mas, nos casos <strong>de</strong> ausências,<br />

possibilita o conhecimento do que era adquirido no mercado e do que era<br />

domesticamente produzido no cotidiano das populações rurais. Declarações dos<br />

inventariantes sobre os gastos com ritos fúnebres e outros dados sobre a família e<br />

patrimônio serão cruzados com as informações sobre ritos fúnebres, procurando<br />

perceber suas tendências e divergências. Deste modo, po<strong>de</strong>m-se perceber padrões <strong>de</strong><br />

consumo e até grau <strong>de</strong> religiosida<strong>de</strong> entre os mais ricos e os mais pobres.<br />

Mas neste último quesito nada se iguala aos testamentos. Esses documentos<br />

muitas vezes vinham anexados aos inventários, havendo algumas ocasiões em que<br />

somente se fazia a menção a eles. A redação <strong>de</strong>stes documentos começava, via <strong>de</strong> regra,<br />

com “Em nome da santíssima Trinda<strong>de</strong>, Padre, Filho, Espírito Santo, em que eu ...<br />

firmemente creio, e em cuja fé protesto viver e morrer.” Em seguida <strong>de</strong>clarava-se a<br />

origem, filiação e atual residência do testador. Depois disso, estabeleciam-se as<br />

disposições para enterros, missas, cortejo. Alguns paravam por aí, outros <strong>de</strong>talhavam<br />

tudo o que possuíam.<br />

Um primeiro sentido dos testamentos era <strong>de</strong>ixar especificadas as últimas<br />

vonta<strong>de</strong>s dos testadores. Assim, abundam as referências a que tipo <strong>de</strong> cerimônias<br />

<strong>de</strong>veria ser empregado nos funerais, quais e quantos objetos <strong>de</strong>veriam estar presentes,<br />

qual o local <strong>de</strong> enterro, etc. Dessa forma, estes documentos se caracterizam como uma<br />

8


fonte essencial para se pesquisar a religiosida<strong>de</strong> e o pensamento das pessoas frente à<br />

morte. Seu papel foi, portanto, central na elaboração dos funerais, pois era aí que o<br />

testador <strong>de</strong>screvia suas últimas vonta<strong>de</strong>s com relação a seu enterro.<br />

Entretanto, a gran<strong>de</strong> maioria da população no Brasil dos séculos passados não<br />

fazia testamento, uns por não terem condições, outros pela forma da morte. Porém, a<br />

historiografia sobre o tema tem constatado que muitos tinham condições <strong>de</strong> testar, um<br />

ato profundamente ligado à proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> bens, mas muitos não o faziam por<br />

condições diversas, que não se relaciona com a negação <strong>de</strong> fazê-lo. A confecção <strong>de</strong><br />

testamentos se configurava em um meio <strong>de</strong> preparar uma boa morte. De modo geral, a<br />

expectativa era a <strong>de</strong> que, sendo possível, se redigissem as últimas vonta<strong>de</strong>s.<br />

Uma terceira fonte consultada são os recibos <strong>de</strong> gastos fúnebres, também<br />

anexados aos inventários, que por não aparecerem <strong>de</strong> forma maciça, serão utilizados <strong>de</strong><br />

forma qualitativa. Nestes documentos encontram-se <strong>de</strong>talhados a qualida<strong>de</strong> dos serviços<br />

e objetos utilizados nos funerais. Nos inventários <strong>de</strong> São José dos Pinhais, encontrei 10<br />

recibos.<br />

Nos recibos po<strong>de</strong>m-se perceber diversos <strong>de</strong>talhes com relação aos preços e a<br />

qualida<strong>de</strong> dos rituais fúnebres como a especificação <strong>de</strong> serviços e a quantida<strong>de</strong> dos<br />

artigos comprados, o número <strong>de</strong> padres presentes, o número <strong>de</strong> dobras <strong>de</strong> sinos, <strong>de</strong><br />

velas, tipo e quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tecidos, enfim, tudo o que era adquirido para se preparar o<br />

funeral. Assim, essa fonte, <strong>de</strong> maneira qualitativa, me ajuda a visualizar que itens<br />

faziam parte dos funerais do século XIX, po<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong>sta maneira compreen<strong>de</strong>r o que era<br />

realmente importante e o que era objeto <strong>de</strong> ostentação.<br />

O quarto grupo <strong>de</strong> fontes utilizado são ofícios expedidos e recebidos pela<br />

Câmara, referentes à discussão e contratação <strong>de</strong> consertos na Igreja e no cemitério local,<br />

na segunda meta<strong>de</strong> do século XIX. Os documentos se encontram <strong>de</strong>vidamente<br />

catalogados e protegidos no Arquivo do Museu Municipal Atílio Rocco, em São José<br />

dos Pinhais, nas pastas “Cemitério” e “Igreja Matriz”. Estes documentos avulsos,<br />

usados <strong>de</strong> maneira qualitativa, me ajudam a perceber as condições materiais em que<br />

eram realizados os rituais fúnebres na região.<br />

Um último conjunto <strong>de</strong> fontes seriam os registros <strong>de</strong> óbitos. Dentre os registros<br />

paroquiais, os <strong>de</strong> óbitos são consi<strong>de</strong>rados os menos confiáveis, pois a morte não<br />

necessitava ser acompanhada por um sacerdote, diferentemente dos batismos e<br />

casamentos. Isto gerava uma enormida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sub-registros, sendo a morte <strong>de</strong> um<br />

indivíduo muitas vezes notificada ao padre responsável muito tempo <strong>de</strong>pois ou nem<br />

9


mesmo notificada. Os sacerdotes das vilas rurais também enfrentavam a dificulda<strong>de</strong> da<br />

distância, já que muitas paróquias cobriam vastíssimas áreas. E com tantos fiéis a<br />

cuidar, os registros aparecem muitas vezes incompletos e reticentes. Apesar <strong>de</strong> tudo<br />

isso, existem nestes registros elementos importantes a serem levantados com relação aos<br />

rituais fúnebres, tais como a preparação pessoal para a morte. Mesmo não sendo um<br />

ritual fúnebre propriamente dito, esta preparação traz fortes indícios do comportamento<br />

das pessoas frente à morte na região estudada. Outra informação extremamente<br />

relevante para a análise que <strong>de</strong>senvolvo é o local <strong>de</strong> sepultamento e últimos<br />

acompanhamentos <strong>de</strong>scritos nos registros, revelando assim, a qualida<strong>de</strong> dos ritos<br />

fúnebres.<br />

Enfim, este conjunto <strong>de</strong> informações é extremamente importante no sentido <strong>de</strong><br />

esclarecer a constituição social <strong>de</strong> São José dos Pinhais. O primeiro capítulo do presente<br />

trabalho busca, auxiliado pela bibliografia, traçar os contornos <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> rural,<br />

suas hierarquias, grupos sociais (seção I) e sua constituição material (seção II). No<br />

capítulo 2, analiso dois casos exemplares <strong>de</strong> reprodução social familiar, a família<br />

Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sá e o padre Francisco <strong>de</strong> Paula Prestes. No capítulo 3 <strong>de</strong>monstro a ligação<br />

entre ritos fúnebres e hierarquia social, atentando para as análises teóricas (seção 1),<br />

para a vida religiosa no Brasil dos séculos passados (seção 2), e para importância dos<br />

ritos fúnebres em São José dos Pinhais.<br />

10


Capítulo 1. São José Dos Pinhais. Contexto<br />

A formação do território <strong>de</strong> São José se inicia em fins do século XVII, quando<br />

os primeiros <strong>de</strong>sbravadores em busca <strong>de</strong> pedras preciosas formaram um pequeno arraial,<br />

<strong>de</strong> sentido provisório. A alimentação <strong>de</strong>stes primeiros moradores era <strong>de</strong>ficiente, pois<br />

poucos se <strong>de</strong>dicavam à pecuária e à agricultura. A maior parte das mercadorias era<br />

importada <strong>de</strong> outras regiões, o que encarecia o custo <strong>de</strong> vida. Assim, é nessa região,<br />

chamada <strong>de</strong> Arraial Gran<strong>de</strong>, que surgirá São José dos Pinhais, em volta da capela do<br />

Senhor Bom Jesus dos Perdões.<br />

A partir do século XVIII, a região do paranaense experimenta um período <strong>de</strong><br />

dificulda<strong>de</strong>s econômicas, levando a região a produzir quase que exclusivamente para<br />

sua própria subsistência. Com o <strong>de</strong>clínio da ativida<strong>de</strong> mineradora, muitos comerciantes<br />

e <strong>de</strong>mais trabalhadores se <strong>de</strong>slocaram para as Minas Gerais e parte dos escravos foi<br />

vendida para outras regiões. Esse processo <strong>de</strong> esvaziamento, que ocorre na ultima<br />

década do século XVII e nas primeiras do século seguinte, resultou numa nova estrutura<br />

social. No topo estavam os proprietários <strong>de</strong> terras, que junto com suas famílias<br />

formaram os núcleos <strong>de</strong>ssa nova socieda<strong>de</strong>, empobrecida, que se tornou uma<br />

característica da região nas décadas seguintes. A pecuária e a agricultura se fortalecem<br />

como as principais ativida<strong>de</strong>s, se constituindo a base da sustentação da população.<br />

Em 1690, José da Veiga Coutinho erige a capela do Senhor Bom Jesus dos<br />

Perdões na fazenda Águas Belas. No início do século seguinte é anexada a freguesia <strong>de</strong><br />

Nossa Senhora da Luz dos Pinhais <strong>de</strong> Curitiba, constituindo duas freguesias <strong>de</strong> um só<br />

termo, “com 200 casais e 1400 pessoas <strong>de</strong> confissão” conforme o relatório do ouvidor<br />

geral Rafael Pires Pardinho, datado <strong>de</strong> 1721. 4 Em torno <strong>de</strong> 1757, criou-se uma freguesia<br />

em São José e inicia-se a construção <strong>de</strong> uma matriz. Com a <strong>de</strong>cadência <strong>de</strong> Arraial<br />

Gran<strong>de</strong>, situada junto à serra do mar, o núcleo principal <strong>de</strong> povoamento se <strong>de</strong>slocou<br />

para o local on<strong>de</strong> hoje se encontra o centro <strong>de</strong> São José dos Pinhais, consistindo assim<br />

um fator importante no seu <strong>de</strong>senvolvimento econômico, principalmente pela sua<br />

proximida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Curitiba.<br />

Em função da corrida do ouro, surge uma crescente <strong>de</strong>manda por animais na<br />

região central do Brasil e coube ao extremo sul respon<strong>de</strong>r a esse estímulo. O gado do<br />

Rio Gran<strong>de</strong> do Sul chamou a atenção dos paulistas e levou a abertura do caminho do<br />

Viamão em 1731. Como as tropas que iam <strong>de</strong> Sorocaba ao Rio Gran<strong>de</strong> buscar gado<br />

4 Magalhães, Marionil<strong>de</strong> Brephold, et al. São José dos Pinhais: a trajetória <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong>. Curitiba: ed.<br />

Prephacio, 1992, p. 23.<br />

11


enfrentavam muitas dificulda<strong>de</strong>s e precisavam <strong>de</strong> lugares para se recuperar, muitas<br />

fazendas <strong>de</strong> criação se especializaram como invernadas, constituindo <strong>de</strong> um pasto<br />

extenso e cercado, <strong>de</strong>stinado ao <strong>de</strong>scanso e à engorda <strong>de</strong> animais. De fato, muitas<br />

regiões ao longo do caminho foram se <strong>de</strong>senvolvendo com o trânsito <strong>de</strong> tropeiros, já que<br />

o aluguel ou arrendamento ou até mesmo a compra <strong>de</strong>finitiva <strong>de</strong> campos para<br />

invernadas se constituía um importante cuidado por parte dos comerciantes <strong>de</strong> tropas. 5<br />

Assim, a freguesia <strong>de</strong> São José vai se <strong>de</strong>senvolvendo: em 1816 o número <strong>de</strong><br />

habitantes era <strong>de</strong> 1299, dos quais 1.128 livres e 171 escravos. 6 No ano <strong>de</strong> 1852 já<br />

contava com número maior e mais completo: “810 fogos em vinte quarteirões, com<br />

4600 habitantes, dos quais 3226 solteiros, 1208 casados e 166 viúvos, sendo brancos<br />

2636, pardos e mulatos 992 e pretos 972, dos quais 365 escravos. Possuía 89 casas<br />

urbanas, 210 chácaras, 9 fazendas <strong>de</strong> criar, 10 casas <strong>de</strong> negócios e 2 engenhos <strong>de</strong><br />

beneficiar erva-mate.” 7 Através <strong>de</strong>stes números, po<strong>de</strong>mos constatar que o aumento da<br />

população se dá por migração que, caracteristicamente, não possuíam muitos escravos.<br />

A predominância rural sob a urbana fica evi<strong>de</strong>nciada se atentarmos para a configuração<br />

das diferentes formas <strong>de</strong> moradas.<br />

A divisão em diversos quarteirões e o número <strong>de</strong> habitantes dá uma noção da<br />

amplitu<strong>de</strong> da freguesia. A presença escrava, mesmo sendo pequena, elucida a economia<br />

baseada neste tipo <strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>-obra que era a agricultura e a pecuária. Fato interessante<br />

em uma socieda<strong>de</strong> escravagista em meados do século XIX é o número <strong>de</strong> “pretos”<br />

livres, representando quase dois terços do total. A presença <strong>de</strong> dois engenhos <strong>de</strong><br />

beneficiar erva-mate prevê a característica da economia sãojoseense na segunda meta<strong>de</strong><br />

do novecentos.<br />

À medida que o tropeirismo entra em <strong>de</strong>cadência, a economia <strong>de</strong> todo o Paraná<br />

passa a se basear na extração da erva-mate. Juntamente com a agricultura <strong>de</strong><br />

subsistência e pecuária, esse tipo <strong>de</strong> economia ajuda a fortalecer a característica rural da<br />

região. O comércio ervateiro estava nas mãos <strong>de</strong> um pequeno grupo <strong>de</strong> comerciantes<br />

que controlava esse mercado enquanto que a produção podia ser realizada por artesãos<br />

autônomos. Isto se <strong>de</strong>via ao fato <strong>de</strong> que a extração e beneficiamento do mate ser<br />

5<br />

Westphalen, Cecília Maria. O barão dos Campos Gerais e o comércio <strong>de</strong> tropas. Ed. (?), Curitiba, 1995.<br />

p. 59<br />

6<br />

Magalhães, opus cit., p. 34<br />

7<br />

Romário Martins apud Magalhaes, opus cit, p. 37.<br />

12


elativamente fáceis e, além disso, os arbustos da erva eram nativos e numerosos na<br />

região. 8<br />

As casas <strong>de</strong> comércio vendiam bens <strong>de</strong> consumo dos mais variados e<br />

comercializavam o que se era produzido na região, além <strong>de</strong> importar outros produtos <strong>de</strong><br />

necessida<strong>de</strong>. Já no século XVIII, ao lado da economia <strong>de</strong> subsistência, aparecem os<br />

primeiros alvarás <strong>de</strong> licença concedidos pela câmara <strong>de</strong> Curitiba, para o<br />

estabelecimento, em São José dos Pinhais, <strong>de</strong> ofícios <strong>de</strong> sapateiro, ferreiro, bem como<br />

<strong>de</strong> concessões para lojas <strong>de</strong> secos e molhados, <strong>de</strong> fazendas e outros.<br />

Segundo Mirian Sbravati, há notícias <strong>de</strong> bens <strong>de</strong> consumo produzidos na<br />

Freguesia <strong>de</strong> S. J. Pinhais, no século XIX, como milho, trigo, feijão, fumo, congonha<br />

(erva-mate), charque, toicinho, havendo ainda criação <strong>de</strong> gado, cavalos e carneiros.<br />

Alguns <strong>de</strong>stes produtos eram exportados, como acontecia com o feijão, trigo, charque,<br />

toucinho, erva-mate, entre outros. 9 E, no <strong>de</strong>correr da primeira meta<strong>de</strong> do século XIX, a<br />

economia <strong>de</strong> S. J. dos Pinhais, como em outras localida<strong>de</strong>s do Sul, <strong>de</strong> um modo geral<br />

era baseada nestes produtos.<br />

Em meio a este contexto, no ano <strong>de</strong> 1852, São José dos Pinhais é elevada a<br />

categoria <strong>de</strong> Vila e tem início uma mudança estrutural na região. Agora a vila passa a<br />

ter seu centro político e administrativo. As <strong>de</strong>cisões são orientadas pelas elites locais,<br />

muitas vezes <strong>de</strong> acordo com seus interesses.<br />

São José se diferencia dos gran<strong>de</strong>s centros cafeeiros e urbanos, por ser uma<br />

pequena região rural, pouco ligada ao comércio exportador. Como vimos, a agricultura<br />

<strong>de</strong> alimentos já se fazia presente há muito tempo nesta região, enquanto que a coleta <strong>de</strong><br />

erva-mate era algo relativamente novo (surgida no próprio século XIX). A criação <strong>de</strong><br />

animais estava sofrendo uma <strong>de</strong>cadência – <strong>de</strong>vido à redução <strong>de</strong> sua importância no<br />

Brasil e a mudança <strong>de</strong> foco da criação <strong>de</strong> gado <strong>de</strong>ntro do Paraná.<br />

São José se aproxima mais a outras regiões pobres, mas percebe-se uma pobreza<br />

mais aguda com relação aos locais investigados pela historiografia que analisei, porém<br />

em graus diferentes se insere no parâmetro das regiões rurais <strong>de</strong> fronteira agrícola. Isto<br />

se <strong>de</strong>ve a característica <strong>de</strong> sua inserção na região paranaense que, no século XIX era<br />

formada com base econômica na exploração do ouro, da escravatura, do comércio do<br />

gado, da agricultura <strong>de</strong> subsistência, exploração e exportação do mate, além <strong>de</strong><br />

8 Pereira, Magnus Roberto <strong>de</strong> Mello. Semeando iras rumo ao progresso: or<strong>de</strong>namento jurídico e<br />

econômico da socieda<strong>de</strong> paranaense, 1829-1889. Curitiba: Ed. Da UFPR, 1996, p. 42<br />

9 Sbravati, Myriam. Estudos na Paróquia <strong>de</strong> São José dos Pinhais (1756-1870). Tese <strong>de</strong> Mestrado,<br />

Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Paraná, Curitiba, 1980, p 45<br />

13


ma<strong>de</strong>iras. A Freguesia <strong>de</strong> São José dos Pinhais, ao longo dos séculos XVIII e XIX,<br />

paulatinamente se torna um ponto <strong>de</strong> encontro <strong>de</strong> diversos caminhos, principalmente o<br />

caminho do Arraial Gran<strong>de</strong>, por on<strong>de</strong> <strong>de</strong>scia todo o gado e produtos agrícolas<br />

proce<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> diversas povoações, principalmente Miringuava, Campo Largo da<br />

Roseira, Mandirituba e, mesmo, Santo Antonio da Lapa.<br />

Assim, a estratificação social presente nesta socieda<strong>de</strong> é fruto do tipo <strong>de</strong><br />

economia e não <strong>de</strong>ve ser subestimada quando se busca compreen<strong>de</strong>r os mecanismos <strong>de</strong><br />

sobrevivência em um mundo rural. Na próxima seção, estudos acerca das análises das<br />

estruturas econômicas e sociais pertinentes a diferentes regiões agrícolas no Brasil nos<br />

séculos XVIII ao XIX, nos ajudarão a pensar o contexto <strong>de</strong> São José dos Pinhais.<br />

Seção I. Dominadores e dominados e a reprodução social<br />

O meio como as famílias conseguiam manter e transmitir suas riquezas e<br />

importância política para seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes foi largamente analisado por diversos<br />

estudiosos, <strong>de</strong> diversos campos do conhecimento. O sociólogo Pierre Bourdieu foi um<br />

dos maiores teóricos acerca das estratégias <strong>de</strong> reprodução familiar, continuando a<br />

influenciar numerosos estudos subseqüentes. Primeiramente <strong>de</strong>vemos olhar para o seu<br />

conceito <strong>de</strong> família. Para o autor as famílias são corpos que possuem uma tendência a<br />

perpetuar seu ser social, com todos os seus po<strong>de</strong>res e privilégios, que se configura a<br />

base das estratégias <strong>de</strong> reprodução. Segundo o sociólogo, para que a família exista e<br />

subsista, ela <strong>de</strong>ve se firmar como corpo, ten<strong>de</strong>ndo a funcionar como campo, com suas<br />

relações <strong>de</strong> força física, econômica e sobretudo simbólica (vinculada ao volume e à<br />

estrutura dos capitais que seus membros possuem) e suas lutas pela conservação ou<br />

transformação <strong>de</strong> suas relações <strong>de</strong> força.<br />

Desta maneira, a família se constitui em uma realida<strong>de</strong> que transcen<strong>de</strong> seus<br />

membros, uma personagem transpessoal dotada <strong>de</strong> uma vida, <strong>de</strong> um espírito coletivo e<br />

<strong>de</strong> uma visão específica do mundo. Assim, as relações familiares ten<strong>de</strong>m a funcionar<br />

como princípios <strong>de</strong> construção e avaliação <strong>de</strong> toda a relação social. 10 Temos então que,<br />

na teoria <strong>de</strong> Bourdieu, a família enquanto estrutura social (campo), isto é, como<br />

instrumento <strong>de</strong> conhecimento e <strong>de</strong> construção do mundo objetivo, é o fundamento da<br />

família enquanto estrutura mental (habitus), ou seja, como esquema <strong>de</strong> classificação e<br />

meio <strong>de</strong> comunicação que ela utiliza como língua, cultura, sendo esta última estrutura a<br />

10 Bordieu, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas, São Paulo: Papirus, 1996, p. 126.<br />

14


ase <strong>de</strong> representações sociais como casamentos, funerais e outras que contribuem para<br />

reproduzir a estrutura social. Para Bourdieu, este é o círculo <strong>de</strong> reprodução da or<strong>de</strong>m<br />

social. 11<br />

A formulação <strong>de</strong> Bourdieu é uma importante teoria que vem sendo utilizada por<br />

diversos historiadores da família para tentar explicar as estratégias <strong>de</strong> reprodução<br />

familiares em diferentes contextos. Muriel Nazzari analisa o papel do dote como um<br />

importante papel nas estratégias <strong>de</strong> reprodução em uma socieda<strong>de</strong> hierárquica como a<br />

brasileira, on<strong>de</strong> eram primordiais a posição social, a família e as relações clientelistas. 12<br />

Estes elementos também são caros à Elizabete Kuznesof, que analisa a transformação da<br />

instituição familiar.<br />

Alguns autores não citam Bourdieu diretamente, mas nota-se a concepção <strong>de</strong><br />

reprodução social como algo fortemente presente nas socieda<strong>de</strong>s por eles analisadas.<br />

Este conceito foi muito utilizado por Historiadores Sociais que se preocupam<br />

principalmente com “as relações entre estruturas (com ênfase na análise das posições e<br />

hierarquia sociais), conjuntura e comportamento social (...)” 13 , tendo como ponto <strong>de</strong><br />

partida da investigação a compreensão das estratégias familiares.<br />

Para Sheila <strong>de</strong> Castro Faria, a ativida<strong>de</strong> agrícola pressupunha uma unida<strong>de</strong><br />

doméstica mais complexa do que em áreas urbanas e as estratégias familiares<br />

caracterizadas pelos laços consangüíneos e rituais tinham um papel <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque na<br />

organização econômico-social do mundo agrário. 14<br />

A análise das estratégias <strong>de</strong> reprodução também encontra campo frutífero no<br />

contexto da micro-análise. Este recorte, enquanto campo específico da história,<br />

privilegia o “papel das contradições sociais na geração da mudança social; em outras<br />

palavras, enfatiza o valor explanatório das discrepâncias entre as restrições que emanam<br />

dos vários sistemas normativos (ou seja, entre as normas do Estado e da família) e do<br />

fato <strong>de</strong> que, além disso, um indivíduo tem um conjunto diferente <strong>de</strong> relacionamentos<br />

que <strong>de</strong>termina suas reações à estrutura normativa e suas escolhas com respeito a ela”. 15<br />

É nesse sentido que Giovanni Levi, estudando as relações familiares no<br />

Piemonte, Itália, do século XVII diz que “<strong>de</strong>vemos observar as formas <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong><br />

11 Bourdieu, ibi<strong>de</strong>m, 138<br />

12 Nazzari, Muriel. O <strong>de</strong>saparecimento do dote: mulheres, famílias e mudança social em São Paulo,<br />

Brasil, 1600-1900. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p.22.<br />

13 Castro, Hebe. <strong>História</strong> Social. IN: Cardoso, Ciro Flamarion e Vainfas, Ronaldo (orgs). Domínios da<br />

história: ensaios <strong>de</strong> teoria e metodologia. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Campus, 1997.<br />

14 Faria, opus cit.<br />

15 Levi, Giovanni. Micro-história. IN: Burke, Peter. A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo:<br />

Ed. Da Universida<strong>de</strong> Estadual Paulista, 1992, p.139.<br />

15


e cooperação seletiva adotadas para organizar a sobrevivência e o enriquecimento, ou<br />

seja, as amplas fontes <strong>de</strong> favores, dados ou esperados, através dos quais passam<br />

informações e trocas, reciprocida<strong>de</strong>s e proteções” 16<br />

Agindo <strong>de</strong>sta maneira, Levi analisa grupos não co-resi<strong>de</strong>ntes, mas interligados<br />

por vínculos <strong>de</strong> parentesco consangüíneo ou por alianças e compadrio, o que atesta a<br />

utilização <strong>de</strong> estratégias familiares. Segundo o autor, o que orientava as ações das<br />

famílias era a procura <strong>de</strong> segurança, na qual a conservação <strong>de</strong> um status era a sua<br />

transmissão <strong>de</strong> geração em geração. Aqui o conceito <strong>de</strong> estratégia familiar assume uma<br />

<strong>de</strong>finição diferenciada: para Giovanni Levi “não se tratava tanto <strong>de</strong> um objetivo, e sim<br />

<strong>de</strong> um vínculo preliminar <strong>de</strong> comportamentos que tentavam melhorar o controle sobre o<br />

ambiente social e natural”. 17 Isto é, as estratégias familiares não eram algo racional, mas<br />

sim, resultado das experiências do grupo familiar ao longo do tempo. *<br />

Um ponto importante e que se encontra no centro da obra <strong>de</strong> Levi é a questão <strong>de</strong><br />

bens <strong>de</strong> prestígio. Isto é, o dinheiro não era só investido em terras e bens negociáveis no<br />

mercado, mas na tentativa <strong>de</strong> manter e aumentar um prestígio que não era totalmente<br />

reconhecido pelas leis e pelos usos, <strong>de</strong>sta forma surge o problema <strong>de</strong> transmitir para as<br />

gerações sucessivas um “patrimônio fluído, feito <strong>de</strong> relações e posições instáveis, uma<br />

herança feita <strong>de</strong> reservas concretas mas imateriais”. 18 Isso interfere na análise <strong>de</strong> João<br />

Luís Fragoso acerca dos “Homens <strong>de</strong> grossa aventura”, ou seja da elite mercantil no<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro colonial.<br />

Fragoso percebeu, através da análise <strong>de</strong> inventários do Rio <strong>de</strong> Janeiro do século<br />

XVIII e XIX, que na socieda<strong>de</strong> brasileira <strong>de</strong>ssa época a produção e a apropriação do<br />

trabalho exce<strong>de</strong>nte, fontes <strong>de</strong> riqueza, não resultava somente <strong>de</strong> condições econômicas.<br />

Tudo isto estava sujeito a existência <strong>de</strong> uma hierarquia que sublinhava as diferenças<br />

entre os grupos sociais em termos <strong>de</strong> prestígio e po<strong>de</strong>r. Deste modo, os investimentos<br />

dos comerciantes em “bens <strong>de</strong> prestígio”, serviam para reiterar a hierarquia social,<br />

garantindo a própria reprodução das relações <strong>de</strong> produção. Essa preocupação da elite,<br />

16<br />

Levi, Giovanni. A herança imaterial. A trajetória <strong>de</strong> um exorcista no Piemont do século XVII. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Civilização brasileira, 2002, p. 98.<br />

17<br />

ibi<strong>de</strong>m p. 99<br />

*<br />

nos termos <strong>de</strong> Bourdieu: “os agentes sociais são dotados <strong>de</strong> habitus, inscritos nos corpos pelas<br />

experiências passadas: tais esquemas <strong>de</strong> percepção, apreciação e ação permitem tanto operar atos <strong>de</strong><br />

conhecimento prático, fundados no mapeamento e no reconhecimento <strong>de</strong> estímulos condicionais e<br />

convencionais a que os agentes estão dispostos a reagir, como também a engendrar, sem posição explícita<br />

<strong>de</strong> finalida<strong>de</strong>s nem cálculo racional <strong>de</strong> meios, estratégias adaptadas e incessantemente renovadas (...)”<br />

(IN: Bourdieu, Pierre. Meditações pascalianas. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p. 169, itálico meu)<br />

18<br />

Levi, A herança, ibi<strong>de</strong>m, p. 195.<br />

16


segundo Fragoso, não apenas revela as suas preocupações com a ascensão social, como<br />

pertencer ao grupo dirigente da socieda<strong>de</strong>, como também sinaliza uma <strong>de</strong>corrência da<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reprodução <strong>de</strong> uma dada or<strong>de</strong>m econômica e social. 19 Nesse sentido,<br />

bens <strong>de</strong> prestígios se constituíram <strong>de</strong> elementos que não estavam diretamente atrelados<br />

ao mercado, mas eram adquiridos na sua periferia. Os gastos com ritos fúnebres se<br />

encaixam perfeitamente na <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> bens <strong>de</strong> prestígio. Era uma <strong>de</strong>spesa que não<br />

tinha como objetivo obter lucros materiais no futuro, estando mais relacionada com uma<br />

estratégia social.<br />

Em conseqüência, tendo como apoio estas teorias, a compreensão da<br />

estratificação social no século XIX pressupõe o entendimento das estratégias utilizadas<br />

pelos indivíduos e qual o papel <strong>de</strong>senvolvido pela família na estrutura social, esta se<br />

constituindo, segundo Hebe Mattos, a base do trabalho agrícola. Neste sentido, seu livro<br />

“Das cores do silêncio” se constitui uma obra importantíssima para enten<strong>de</strong>r qual a<br />

função da família na estrutura social. Nele a autora analisa as estratégias <strong>de</strong><br />

diferenciação do espaço social no meio rural do Su<strong>de</strong>ste, ao longo do século XIX.<br />

Para a autora, a formação <strong>de</strong> uma família implicava em um certo tempo <strong>de</strong><br />

permanência numa <strong>de</strong>terminada região, sendo necessárias a convivência e aceitação por<br />

parte <strong>de</strong> outras famílias já existentes na região, formando, assim, uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações<br />

que tendia a se ampliar através do batismo dos filhos e das relações <strong>de</strong> parentesco ritual<br />

(compadrio) que este gerava. A mobilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um indivíduo em liberda<strong>de</strong> representa,<br />

para a autora, uma chance <strong>de</strong> esquecer velhas relações e procurar novas buscando uma<br />

reinserção social através <strong>de</strong> conexões pessoais e familiares. 20 Apontando, assim, a<br />

importância da complementarida<strong>de</strong> entre família e mobilida<strong>de</strong> espacial nas áreas rurais<br />

em expansão.<br />

Mattos evi<strong>de</strong>ncia que a produção agrícola, em sua forma escravista ou familiar,<br />

implica, por <strong>de</strong>finição, em fortes vínculos econômicos e sociais, estabelecidos ao nível<br />

local, pouco compatíveis com uma extrema mobilida<strong>de</strong>. A ativida<strong>de</strong> agrícola, mesmo a<br />

simples roça <strong>de</strong> subsistência, pressupunha pelo menos uma família constituída e acesso<br />

costumeiro a terra. Para ambas as condições, se fazia necessário o estabelecimento <strong>de</strong><br />

laços na nova região, o que <strong>de</strong>mandava um tempo razoável <strong>de</strong> socialização e<br />

permanência na área.<br />

19 Fragoso, João Luis. Homens <strong>de</strong> grossa ventura. Acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro (1790-1830). Rio <strong>de</strong> Janeiro: Civilização brasileira, 1998, p. 352.<br />

20 Mattos, Hebe Maria. Das Cores do Silêncio: Os significados da Liberda<strong>de</strong> no Su<strong>de</strong>ste escravista, Brasil<br />

século XIX. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 28.<br />

17


Assim, ser “lavrador” significava pelo menos ter uma casa, um cercado e uma<br />

roça, ou seja, ter seus próprios bens. Isto os diferenciava não somente dos escravos, mas<br />

também do homem móvel e <strong>de</strong>senraizado. Para Mattos, a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se mover se<br />

referia a um sentido específico <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, significando, fundamentalmente, liberda<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> escolher e estabelecer novos laços <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>, família ou patronagem, que<br />

conferissem ao homem livre um status específico numa dada comunida<strong>de</strong>. 21 Em uma<br />

socieda<strong>de</strong> marcada pelas relações pessoais, estabelecer laços era essencial para a<br />

obtenção <strong>de</strong> um lugar, por mais obscuro que fosse, na hierarquia social dos homens<br />

livres.<br />

Por exemplo, o conceito <strong>de</strong> “família patriarcal” <strong>de</strong> Gilberto Freyre, implica uma<br />

forma específica <strong>de</strong> organização do po<strong>de</strong>r e das funções familiares <strong>de</strong>ntro dos grupos <strong>de</strong><br />

elite, além <strong>de</strong> presumir que escravos e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes livres construiriam sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

familiar em relação à “casa-gran<strong>de</strong>”, eles próprios incapazes <strong>de</strong> formar e reproduzir<br />

culturalmente suas próprias famílias. É por isso que Mattos diz ser <strong>de</strong> extrema<br />

importância olhar para os significados culturais das associações familiares na socieda<strong>de</strong><br />

escravista e em seu papel central no estabelecimento das hierarquias e relações sociais.<br />

A autora, usando fartamente <strong>de</strong> processos cíveis e criminais e inventários das<br />

partes do Norte da província do Rio <strong>de</strong> Janeiro, traz a luz casos que exemplificam sua<br />

argumentação. Ela evi<strong>de</strong>ncia que um migrante, no século XVIII, podia lograr reinserir-<br />

se socialmente através do casamento ou <strong>de</strong> união consensual em uma família da nova<br />

região:“A relação familiar se torna, <strong>de</strong>ste modo, potencializadora da proprieda<strong>de</strong>, mesmo que apenas<br />

<strong>de</strong> uma situação (lavouras e benfeitorias) em terra alheia e sem escravos.” 22<br />

No caso das heranças, nos séculos XVIII e XIX, quando morriam os pais <strong>de</strong><br />

famílias, as mulheres solteiras e os filhos menores recebiam prioritariamente pagamento<br />

em dinheiro ou em bem móveis. As viúvas, como meeiras do casal, tendiam a manter o<br />

controle da situação agrícola, mas contavam, via <strong>de</strong> regra, com um segundo casamento<br />

ou apoio <strong>de</strong> um filho ou <strong>de</strong> um genro privilegiado. A maioria das mulheres amasiadas,<br />

mesmo com filhos, não se tornava her<strong>de</strong>ira legal ou co-proprietária dos bens do seu<br />

amásio. Os filhos naturais, e mesmo as mães solteiras, não se viam na prática excluídos<br />

do acesso à família legalmente constituída (casamento religioso/e do convívio social),<br />

entretanto, esses indivíduos podiam alcançar gran<strong>de</strong>s posições <strong>de</strong>ntro da hierarquia<br />

21 Ibi<strong>de</strong>m, p. 45<br />

22 Ibi<strong>de</strong>m, p. 57<br />

18


social como conquistar fortuna. É o caso exemplar, que analisaremos à frente, <strong>de</strong> um<br />

filho <strong>de</strong> padre, que obtém uma importante posição na vila <strong>de</strong> São José.<br />

No mínimo um domicílio nuclear era precondição para a ativida<strong>de</strong> agrícola<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, e um elevado número <strong>de</strong> filhos era sempre <strong>de</strong>sejado nas relações<br />

familiares. Mattos mostra que os filhos adquiriram uma condição <strong>de</strong> prosperida<strong>de</strong>, pois<br />

quanto mais filhos, mais braços para o trabalho. O acesso ao trabalho escravo ou à<br />

compra <strong>de</strong> um pedaço <strong>de</strong> terra foi, em inúmeros casos, função <strong>de</strong>sta condição. A família<br />

<strong>de</strong>spossuída <strong>de</strong> capital e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>-obra familiar, notadamente na segunda<br />

meta<strong>de</strong> do século XIX, quando o acesso ao trabalho escravo estava mais escasso,<br />

necessitava equilibrar o número <strong>de</strong> produtores e consumidores no interior <strong>de</strong> sua<br />

unida<strong>de</strong> doméstica, para po<strong>de</strong>r aspirar à compra <strong>de</strong> escravos ou <strong>de</strong> um pedaço <strong>de</strong> terra. 23<br />

Assim, para homens livres, dois fatores eram a base econômica da sobrevivência: o<br />

domicílio nuclear como unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> produção e consumo e a reciprocida<strong>de</strong> entre iguais.<br />

A proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> terras e o acesso ao trabalho cativo exerceram uma forte<br />

influência na formação da família nas regiões rurais. As Or<strong>de</strong>nações Filipinas previam<br />

que, para a obtenção da proprieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>via-se ter a posse efetiva da terra. Mesmo na<br />

existência <strong>de</strong> títulos legais, o reconhecimento costumeiro e consensual do direito <strong>de</strong><br />

posse <strong>de</strong> alguém, <strong>de</strong>pendia, em última instância, <strong>de</strong> seu efetivo po<strong>de</strong>r, construído em<br />

bases aceitas na região, sobre as terras em questão. 24<br />

O acesso ao trabalho cativo permitia que a dispersão do grupo familiar para a<br />

formação <strong>de</strong> novas unida<strong>de</strong>s domésticas pu<strong>de</strong>sse realizar-se precocemente, sem<br />

comprometer a reprodução da família matriz, e produzia um forte comprometimento <strong>de</strong><br />

todos os homens livres com a continuida<strong>de</strong> da escravidão. Mattos, porém, aponta que<br />

<strong>de</strong>vido o encarecimento do preço dos escravos, entre outros fatores regionais, esta<br />

solidarieda<strong>de</strong> foi violentamente quebrada. Deste modo, os laços familiares são<br />

novamente acionados para reforçar a potência da proprieda<strong>de</strong> como <strong>de</strong>finidora da<br />

liberda<strong>de</strong>. Como conseqüência as famílias se tornam mais extensas, com uma tendência<br />

ao retardamento da saída da unida<strong>de</strong> doméstica. 25<br />

As alianças pessoais se fortalecem e a unida<strong>de</strong> familiar <strong>de</strong>ve ter em vista os<br />

mesmos objetivos para po<strong>de</strong>r manter o acesso à proprieda<strong>de</strong>. As relações se tornam<br />

complexas e adquirem um sentido hierárquico, reconhecidas pelos Estado Imperial,<br />

23 Ibi<strong>de</strong>m, p. 63<br />

24 Ibi<strong>de</strong>m, p. 74<br />

25 Ibi<strong>de</strong>m, p. 87<br />

19


diferenciando-se proprietários e não proprietários, livres e escravos. Deste modo, há<br />

uma influência nas atitu<strong>de</strong>s exercida por parte dos dominadores sobre os dominados. As<br />

práticas dos homens livres (pobres ou ricos) po<strong>de</strong>m ser aproximadas pois os<br />

camponeses pobres se esforçariam para se aproximar dos mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> ação dos gran<strong>de</strong>s<br />

proprietários, para tentar se colocar ombro a ombro com os dominantes. Esta<br />

argumentação leva à noção <strong>de</strong> circularida<strong>de</strong> cultural, on<strong>de</strong> a elite influencia as classes<br />

dominadas, mas também é influenciada num movimento <strong>de</strong> baixo para cima. 26 Os ritos<br />

fúnebres analisados por mim, são ótimos campos <strong>de</strong> estudos para verificar a presença<br />

<strong>de</strong>ste movimento.<br />

A importância da família na construção <strong>de</strong> uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> apoio generalizado a<br />

todos os membros <strong>de</strong> um grupo, foi estudada por Kuznesof, para o final do século XVIII<br />

em São Paulo. Segundo a autora, as famílias, principalmente as mais abastadas,<br />

estariam sofrendo mudanças e alterando a estrutura social no período. Ela mostra que as<br />

autorida<strong>de</strong>s regionais eram originadas da posição <strong>de</strong> chefe principal <strong>de</strong>ntro da família.<br />

Exemplificando, cada bairro do termo <strong>de</strong> São Paulo <strong>de</strong>senvolveu-se através da<br />

construção <strong>de</strong> uma capela, erigida por um fazen<strong>de</strong>iro, que tinha por objetivo que as<br />

terras próximas pertencessem a futuros crentes. Desta forma, o fazen<strong>de</strong>iro estaria<br />

criando uma base <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r pessoal a sua volta. 27<br />

A lei <strong>de</strong> heranças, que reconhecia a esposa como tendo direito a meta<strong>de</strong> dos bens<br />

do casal e os filhos acesso a dois terços <strong>de</strong> cada meta<strong>de</strong> dos bens do casal, reforçava a<br />

posição da família como uma instituição econômica. A influência paterna (que era<br />

encarregado <strong>de</strong> administrar, controlar, disciplinar e proteger todos aqueles que<br />

habitavam seu domicílio), somados a consi<strong>de</strong>rações econômicas e políticas, ajudava a<br />

produzir uma gran<strong>de</strong> proporção <strong>de</strong> casamentos endogâmicos entre primos. Estes<br />

casamentos eram extremamente controlados para que os filhos contraíssem matrimônios<br />

com sócios comerciais ou com subordinados do pai, além <strong>de</strong> empreendimentos<br />

familiares que combinavam o po<strong>de</strong>rio político baseado na territorialida<strong>de</strong> com o po<strong>de</strong>r<br />

econômico. 28<br />

Os casamentos entre parentes, apesar <strong>de</strong> proibidos pela Igreja, eram muito<br />

comuns no Brasil Colonial e Imperial, e eram meios <strong>de</strong> evitar a dispersão do patrimônio<br />

26 Ginzburg, Carlo. O queijo e os vermes. O cotidiano e as idéias <strong>de</strong> um moleiro perseguido pela<br />

Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.<br />

27 Kuznesof, Ane Elizabeth. A família na socieda<strong>de</strong> brasileira: Parentesco, clientelismo e estrutura social<br />

(São Paulo, 1700-1880). IN: Revista brasileira <strong>de</strong> história, São Paulo, v.9, set. 88/fev. 89, p. 41.<br />

28 Ibi<strong>de</strong>m, p. 45<br />

20


familiar. Logicamente, <strong>de</strong>ve-se pensar nessa estratégia sendo utilizada por indivíduos <strong>de</strong><br />

classes mais altas, pois, como veremos mais à frente quando discutirmos as dificulda<strong>de</strong>s<br />

encontradas para o casamento <strong>de</strong> pessoas pobres, o casamento entre parentes nas classes<br />

mais baixas teve outras causas que não se configuravam na tentativa <strong>de</strong> manter o núcleo<br />

da fortuna.<br />

Kuznesof notou que o clã familiar (fogo ou unida<strong>de</strong> doméstica) era uma<br />

instituição vertical, não uma instituição baseada em classes, mas baseada em parentesco,<br />

lealda<strong>de</strong> e territorialida<strong>de</strong>. Porém, no início do século XIX essa estrutura social<br />

gradualmente transforma-se em direção às relações <strong>de</strong> classe.<br />

Segundo a autora, no <strong>de</strong>correr do século XVIII as mudanças nos padrões <strong>de</strong> ação<br />

política e alianças prece<strong>de</strong>ram a transição estrutural em direção a uma economia <strong>de</strong><br />

troca, que por sua vez antece<strong>de</strong>u o <strong>de</strong>senvolvimento objetivo <strong>de</strong> uma incipiente<br />

estrutura <strong>de</strong> classes em São Paulo. 29 Com o crescente número <strong>de</strong> instituições e posições<br />

políticas existentes, a re<strong>de</strong> familiar teve <strong>de</strong> se expandir muito a fim <strong>de</strong> ter algum<br />

impacto político. Desse modo, a família <strong>de</strong> elite começou a agir, facilitando o progresso<br />

individual <strong>de</strong> membros da família, tendo como base o estabelecimento <strong>de</strong> alianças para<br />

atingir objetivos políticos e econômicos. Vários estudos apontam para o aumento <strong>de</strong><br />

casamento exógenos em fins do século XIX, diferentemente dos casamentos<br />

predominantemente endógenos em meados do século XIX. O parentesco fornecia o<br />

“‘cimento social crucial’ que integrava re<strong>de</strong>s e permitia aos indivíduos se aproximarem<br />

uns dos outros politicamente.” 30<br />

Famílias <strong>de</strong> classe média e baixa também ampliavam suas re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> parentesco<br />

horizontalmente, criando mais laços entre famílias do mesmo nível sócio-econômico do<br />

que entre famílias <strong>de</strong> diferentes níveis. Para a elite, as alianças celebradas pelo<br />

casamento, freqüentemente ligavam a elite política <strong>de</strong> uma região com a outra. 31<br />

Simultaneamente, nota-se um <strong>de</strong>clínio do uso do dote em São Paulo. Os filhos (e<br />

genros) eram obrigados a esperar junto com seus irmãos pela morte <strong>de</strong> seus pais para<br />

receber sua herança. A principal função do dote nesta época era fornecer não apenas os<br />

meios para se formar um domicílio, mas também fornecer meios para estabelecer uma<br />

29 Ibi<strong>de</strong>m, pp. 46-52<br />

30 Anthony Leeds apud Kuznesof, ibi<strong>de</strong>m, 54<br />

31 ibi<strong>de</strong>m, p. 61<br />

21


ativida<strong>de</strong> lucrativa. – fosse na agricultura ou no comércio -, e estava <strong>de</strong>saparecendo<br />

<strong>de</strong>vido a gran<strong>de</strong> urbanização em São Paulo no século XIX. 32<br />

Nazzari compreen<strong>de</strong>, através da análise dos dotes familiares, as mudanças<br />

sofridas nessa forma <strong>de</strong> transmissão <strong>de</strong> bens. No século XVII os dotes eram compostos<br />

principalmente <strong>de</strong> meios <strong>de</strong> produção, já no século XIX eram constituídos em sua<br />

maioria <strong>de</strong> bens <strong>de</strong> consumo. Os meios <strong>de</strong> produção eram compostos <strong>de</strong> recursos<br />

naturais e ferramentas que o trabalho transformava em um produto para ser consumido<br />

ou trocado. Os bens <strong>de</strong> consumo, eram normalmente usados ou consumidos, embora<br />

também pu<strong>de</strong>ssem ser vendidos, fornecendo assim um outro tipo <strong>de</strong> consumo, ou<br />

transformando-se no capital necessário para compra os meios <strong>de</strong> produção. 33 Por<br />

exemplo, os escravos seriam classificados como meios <strong>de</strong> produção.<br />

Uma questão importante na transmissão <strong>de</strong> bens eram as doações em vida.<br />

Utilizados por aqueles proprietários que não queriam uma fragmentação do bem ou<br />

dificulda<strong>de</strong>s após sua morte, a doação <strong>de</strong>monstra uma estratégia familiar para a retenção<br />

da proprieda<strong>de</strong>. As or<strong>de</strong>nações <strong>de</strong>cretaram que tudo que fosse recebido por uma filha ou<br />

um filho <strong>de</strong> seus pais <strong>de</strong>veria vir <strong>de</strong>scrito à colação nos inventários quando seus pais<br />

morressem. 34 Desta forma, a análise <strong>de</strong>stas colações po<strong>de</strong>m revelar o que caracterizava<br />

a estratégia familiar numa certa região.<br />

De qualquer forma, a mudança da composição dos dotes foi acompanhada por<br />

um leve afrouxamento do po<strong>de</strong>r patriarcal sobre os filhos adultos. O fato <strong>de</strong> a<br />

composição dos dotes paulistas se comporem principalmente <strong>de</strong> bens <strong>de</strong> consumo em<br />

meados do século XIX, <strong>de</strong>monstra a transformação pela qual a família estava passando:<br />

<strong>de</strong> uma unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> produção para a separação da família e a produção tornando seus<br />

membros consumidores.<br />

Entretanto, isto só se ocorrerá <strong>de</strong> maneira completa no final do século XIX. O<br />

que ocorria durante gran<strong>de</strong> parte do novecentos era que através da formação <strong>de</strong> uma<br />

família o indivíduo estaria utilizando uma estratégia para obter sua sobrevivência e sua<br />

inserção na socieda<strong>de</strong>, conseguindo, <strong>de</strong>ste modo, adquirir escravos e terras. Assim, a<br />

compreensão do acúmulo <strong>de</strong>stes dois fatores, mão-<strong>de</strong>-obra escrava e proprieda<strong>de</strong>s, nos<br />

ajuda a enten<strong>de</strong>r algum dos mecanismos <strong>de</strong> ascensão social e econômica, também joga<br />

luz sobre o funcionamento <strong>de</strong> uma região agrária na segunda meta<strong>de</strong> do século XIX.<br />

32 Nazzari, Muriel, Dotes Paulisatas: Composição e transformações (1600-1870). IN: Revista Brasileira<br />

<strong>de</strong> <strong>História</strong>, São Paulo, vol. 9 nº 17, pp. 87-100, set. 88/fev.89.<br />

33 ibi<strong>de</strong>m, p. 89<br />

34 ibi<strong>de</strong>m, p. 91<br />

22


O texto <strong>de</strong> Hebe Mattos, Ao sul da <strong>História</strong> é um estudo importante referente a<br />

questões <strong>de</strong> <strong>História</strong> Social mais vinculada ao mundo agrário. Nesse texto a autora<br />

analisa as condições <strong>de</strong> funcionamento e reprodução da lavoura comercial e escravista<br />

que se manteve na freguesia <strong>de</strong> Capivary, Província do Rio <strong>de</strong> Janeiro, durante a<br />

segunda meta<strong>de</strong> do século XIX. Ela procurou em inventários por aqueles proprietários<br />

<strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s agrícolas que utilizavam mão-<strong>de</strong>-obra escrava e que estavam incluídos em<br />

um mercado externo. 35<br />

Uma questão importante que a autora levanta, que <strong>de</strong>vemos sempre ter em mente<br />

quando analisamos uma região rural e empobrecida é que mesmo os mais “ricos”<br />

produtores <strong>de</strong>stas regiões só podiam ter a pretensão <strong>de</strong> serem gran<strong>de</strong>s se relacionados ao<br />

reduzido universo local. É por isso que se <strong>de</strong>ve tomar cuidado na classificação das<br />

fortunas da elite local. Se tomarmos qualquer dos parâmetros normalmente utilizados<br />

para se caracterizar um gran<strong>de</strong> lavrador <strong>de</strong> regiões mais prósperas, percebe-se que em<br />

Capivary, trata-se <strong>de</strong> pequenas unida<strong>de</strong>s produtivas.<br />

Os empreendimentos agrícolas em Capivary se aproximam em muitos aspectos<br />

das unida<strong>de</strong>s produtivas cafeeiras. Porém, a autora diz que “(...) não são as<br />

semelhanças concretas ligadas à envergadura dos empreendimentos agrícolas o<br />

elemento-chave para se compreen<strong>de</strong>r a dinâmica daquela comunida<strong>de</strong> e a forma <strong>de</strong><br />

inserção na socieda<strong>de</strong> abrangente.” 36 Para ela, a importância política e econômica do<br />

localismo na socieda<strong>de</strong> brasileira do período privilegia a constituição <strong>de</strong> hierarquias<br />

sociais ou regionais na configuração do po<strong>de</strong>r político e as formas mo<strong>de</strong>lares <strong>de</strong><br />

controle social sobre a realida<strong>de</strong> da magnitu<strong>de</strong> das fortunas. São consi<strong>de</strong>rados fortes<br />

proprietários os pequenos “gran<strong>de</strong>s” lavradores <strong>de</strong> Capivary porque conseguiam<br />

garantir sua reprodução social e a <strong>de</strong> suas proprieda<strong>de</strong>s sem se envolver diretamente<br />

com qualquer tipo <strong>de</strong> trabalho manual. Porque controlavam politicamente o município<br />

e eram capazes <strong>de</strong> mobilizar uma “clientela” entre os homens livres da região através<br />

das mais diversas re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência pessoal, econômica, política ou familiar. Neste<br />

sentido a análise <strong>de</strong> dois casos <strong>de</strong> membros da elite em São José dos Pinhais,<br />

exemplificará a questão do localismo na fundamentação hierárquica na região.<br />

Como se po<strong>de</strong> perceber, o elemento escravo regulamentava o nível social <strong>de</strong><br />

cada família em uma região voltada à agricultura. A força <strong>de</strong> trabalho escrava mostrava-<br />

se <strong>de</strong> início extremamente difundida na organização sócio-econômica local. Mattos diz<br />

35 Mattos, Hebe. Ao sul da história. Ed. Brasiliense, São Paulo: 1987, p. 31<br />

36 Ibi<strong>de</strong>m, p. 34.<br />

23


que os maiores produtores da região ten<strong>de</strong>ram a concentrar socialmente a força <strong>de</strong><br />

trabalho cativo local, garantindo a manutenção do trabalho escravo com instituidor<br />

principal das hierarquias sócio-econômicas locais, mas, para ela, não se po<strong>de</strong> negar que<br />

a queda expressiva dos estoques <strong>de</strong> escravos no município <strong>de</strong> Capivary reflete a<br />

impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sses lavradores <strong>de</strong> empreen<strong>de</strong>rem uma expansão das lavouras que<br />

tivessem a mínima correspondência com os ambiciosos planos <strong>de</strong> expansão revelados<br />

pelos registros paroquiais <strong>de</strong> terras analisados pela autora.<br />

Entretanto, como a condição <strong>de</strong> proprietários <strong>de</strong> terras era comum à categoria<br />

dos gran<strong>de</strong>s proprietários, esse elemento por si só não era capaz <strong>de</strong> diferenciá-los<br />

socialmente, o que apenas a dimensão da exploração agrícola e dos plantéis <strong>de</strong> escravos<br />

podia fazer. Uma fazenda, entretanto, significava enquanto regra, a apropriação privada<br />

e legal <strong>de</strong> terrenos suficientemente extensos para garantir pelo menos a reprodução<br />

simples à médio prazo dos cafezais, o que se traduzia no peso significativo da presença<br />

<strong>de</strong> matas na valorização comercial do terreno. 37<br />

A análise das pessoas que se encontravam na condição oposta aos gran<strong>de</strong>s<br />

proprietários revela respon<strong>de</strong> muitas questões referentes à “pobreza”. Hebe Mattos<br />

argumenta que os pequenos produtores se relacionavam com os gran<strong>de</strong>s produtores<br />

como iguais, pois tanto os primeiros como os segundos foram donos <strong>de</strong> terra e tinham<br />

seus interesses voltados em torno <strong>de</strong>ssa proprieda<strong>de</strong>. Essa igualda<strong>de</strong> formal se<br />

consolidava na relação <strong>de</strong> compadrio, que escondia o princípio da dominação pessoal,<br />

manifestado na assistência econômica prestada por um e na retribuição do outro com<br />

filiação política.<br />

Segundo Mattos, são a fronteira agrícola aberta e a transitorieda<strong>de</strong> das fortunas<br />

os fatores <strong>de</strong>terminantes dos principais traços constitutivos <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> como<br />

Capivary. São as condições <strong>de</strong> utilização da força <strong>de</strong> trabalho escrava num sentido<br />

estritamente comercial, ou seja, voltada para a produção <strong>de</strong> um exce<strong>de</strong>nte realizado nas<br />

trocas internacionais ou nos circuitos internos <strong>de</strong> comercialização, os elementos capazes<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>finir aquelas camadas sociais capazes <strong>de</strong> serem absorvidas, ainda que como<br />

“clientela” (caso dos pequenos produtores), pela or<strong>de</strong>m institucional que se organiza a<br />

partir da emancipação política.<br />

Mattos argumenta que as camadas sociais que formavam a “pobreza agrícola”,<br />

tantas vezes mencionadas em fontes da época e análises historiográficas, apenas<br />

37 Ibi<strong>de</strong>m, p. 73<br />

24


tangencialmente se utilizaram do trabalho escravo e, fundamentalmente, não tinham<br />

suas lavouras e criações voltadas para a produção <strong>de</strong> exce<strong>de</strong>nte comercial e realização<br />

<strong>de</strong> lucros. Dedicam-se antes, ao suprimento <strong>de</strong> suas necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> subsistência, que<br />

apesar disso, pressupunham a troca, como a multiplicida<strong>de</strong> das pequenas “vendas”<br />

voltadas a reduzidos mercados locais parece sugerir. A diversificação das culturas<br />

<strong>de</strong>senvolvidas nas unida<strong>de</strong>s produtivas “pobres” não se mostrava muito diferente dos<br />

estabelecimentos classificados como voltados para uma produção escravista e<br />

comercial, porém aparecia em menor número. Inexistia nesses estabelecimentos,<br />

qualquer tipo <strong>de</strong> benfeitoria para beneficiamento da produção. 38<br />

A análise das relações <strong>de</strong> bens constantes nos processos permitiu a Hebe Mattos<br />

perceber algo sobre as condições <strong>de</strong> vida do grupo analisado, assim como acerca do<br />

papel das relações comerciais na sua reprodução social. Segundo ela, salta aos olhos,<br />

após uma análise empírica (inventários), a configuração <strong>de</strong> uma camada social <strong>de</strong><br />

lavradores pobres que organizavam sua produção tendo em vista basicamente a<br />

reprodução social <strong>de</strong> suas existências, cujos pequenos exce<strong>de</strong>ntes produzidos<br />

<strong>de</strong>stinavam-se a adquirir no mercado local aqueles produtos que eram incapazes <strong>de</strong><br />

produzir domesticamente, que não buscavam ou conseguiam produzir lucros capazes <strong>de</strong><br />

ser reinvestidos na ampliação <strong>de</strong> seus estabelecimentos agrícolas ou numa<br />

diversificação <strong>de</strong> investimentos. 39<br />

Esses lavradores pobres encontravam-se alheios, portanto, a qualquer dinâmica<br />

regida pela lógica <strong>de</strong> reprodução do capital comercial socialmente prepon<strong>de</strong>rante, sendo<br />

parcamente afetados pelas possíveis limitações e flutuações da <strong>de</strong>manda nos mercados<br />

regionais. Ao mesmo tempo, não <strong>de</strong>ixavam <strong>de</strong> concentrar suas culturas nos produtos <strong>de</strong><br />

aceitação comercial naqueles mercados, <strong>de</strong> modo a garantir aquela parte <strong>de</strong> sua<br />

subsistência que não eram capazes <strong>de</strong> produzir.<br />

Partindo do princípio <strong>de</strong> que o trabalho escravo era a base da “riqueza” na<br />

socieda<strong>de</strong> brasileira do século XIX, Mattos questiona qual o significado da utilização<br />

<strong>de</strong>ssa força <strong>de</strong> trabalho por lavradores “pobres”. A autora alerta para o fato <strong>de</strong> que não<br />

se po<strong>de</strong> esquecer que o número <strong>de</strong> trabalhadores associados à busca <strong>de</strong> inserção no<br />

mercado <strong>de</strong> gêneros regional constituiu o parâmetro para que se estabelecesse um<br />

critério <strong>de</strong> classificação do material empírico reunido a partir da coleção <strong>de</strong> inventários.<br />

Então, não se trata <strong>de</strong> questionar o papel da proprieda<strong>de</strong> escrava na hierarquia sócio-<br />

38 Ibi<strong>de</strong>m, p. 81-83<br />

39 Ibi<strong>de</strong>m, p. 89<br />

25


econômica das camadas proprietárias do universo agrário fluminense do período<br />

estudado e nas suas possibilida<strong>de</strong>s concretas <strong>de</strong> expansão <strong>de</strong> investimentos e capacida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> acumulação. Trata-se <strong>de</strong> perceber que antes que a crise <strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>-obra inaugurada<br />

com a extinção do tráfico começasse a produzir plenamente seus efeitos, a proprieda<strong>de</strong><br />

cativa encontra-se difundida para além das fronteiras da agricultura comercial,<br />

exportadora ou não. 40<br />

Não raro, o lavrador pobre apresentava a condição <strong>de</strong> proprietário <strong>de</strong> terras,<br />

mesmo que estas merecessem, na maioria dos casos, baixíssima avaliação. Assim, numa<br />

organização agrária ainda escravista on<strong>de</strong> apenas lentamente se expandia a agricultura<br />

comercial, a proprieda<strong>de</strong> fundiária se mostra como um parâmetro impróprio para<br />

separar pobreza e riqueza ou para <strong>de</strong>finir absolutamente a construção <strong>de</strong> hierarquias<br />

sociais.<br />

Deste modo, em diversas regiões agrárias, toda uma “pobreza agrícola”,<br />

eventualmente proprietária <strong>de</strong> pequenas extensões <strong>de</strong> terreno ou mesmo <strong>de</strong> alguns<br />

escravos, disputará com a expansão agrícola que se processava sob a égi<strong>de</strong> do capital<br />

comercial seu espaço <strong>de</strong> sobrevivência. Seriam “pobres” mas não “<strong>de</strong>spossuídos”, pois<br />

mesmo quando sem terras ou escravos, conseguiam prover sua subsistência com o<br />

resultado <strong>de</strong> suas lavouras – diferenciando-se, assim, fundamentalmente do escravo,<br />

que, antes <strong>de</strong> tudo, trabalhava a lavoura <strong>de</strong> outro. 41<br />

Por fim, Mattos diz que se pensarmos a extrema flaci<strong>de</strong>z dos referenciais <strong>de</strong><br />

diferenciação das categorias sociais por ela analisadas <strong>de</strong>corrente do fato <strong>de</strong> que o<br />

mundo dos homens livres encontra-se hierarquizado entre “dominadores e dominados”,<br />

<strong>de</strong>vemos ter em mente que esta diferenciação não brotava <strong>de</strong> qualquer dado estrutural<br />

absoluto como a proprieda<strong>de</strong> da terra ou <strong>de</strong> escravos, mas do somatório <strong>de</strong> vários<br />

<strong>de</strong>terminantes <strong>de</strong> riqueza e po<strong>de</strong>r naquela socieda<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> a “fortuna”, em seu sentido<br />

estrito, ocupava um papel essencial.<br />

Assim, se relações <strong>de</strong> tipo pessoal regulam a hierarquia <strong>de</strong> proprietários<br />

integrados à produção comercial e as re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> representação política, somente essa<br />

própria hierarquia e os múltiplos interesses que esse tipo <strong>de</strong> relação atendia<br />

(financiamento, apoio político, etc.) <strong>de</strong>terminavam quem eram os gran<strong>de</strong>s produtores e<br />

quem eram os médios produtores em cada situação local. Ao mesmo tempo, se a<br />

abundância <strong>de</strong> terras livres criava uma margem ampliada <strong>de</strong> ação para o pequeno<br />

40 Ibibem, p. 91-92<br />

41 Ibi<strong>de</strong>m, p. 95<br />

26


produtor que vai se empobrecendo, não eliminava a subordinação social enquanto<br />

estratégia <strong>de</strong> sobrevivência necessária num mundo que poucos direitos lhes eram<br />

reconhecidos e on<strong>de</strong> não se faziam representar politicamente. 42<br />

O trabalho <strong>de</strong> Antonio Carlos Jucá <strong>de</strong> Sampaio nos ajuda a compreen<strong>de</strong>r o<br />

fenômeno da estratificação social. O autor busca compreen<strong>de</strong>r a realida<strong>de</strong> vivida pelo<br />

campesinato brasileiro no período escravista, notadamente quando ocorre a crise <strong>de</strong>sse<br />

sistema, tentando assim perceber <strong>de</strong> que maneira as mudanças ocorridas na segunda<br />

meta<strong>de</strong> do século XIX influenciaram essa mesma realida<strong>de</strong> e quais foram as estratégias<br />

<strong>de</strong> sobrevivência <strong>de</strong>ssa camada da população.<br />

Inicialmente, para esclarecer o termo camponês o autor recorre a <strong>de</strong>finição dada<br />

por Ciro Cardoso, segundo a qual, quatro características principais <strong>de</strong>finem, do ponto <strong>de</strong><br />

vista econômico, a estrutura camponesa: 1) acesso à terra, seja em forma <strong>de</strong><br />

proprieda<strong>de</strong>, seja mediante algum tipo <strong>de</strong> usufruto; 2) trabalho predominantemente<br />

familiar – o que não exclui, em certos casos e circunstâncias, o recurso a uma força <strong>de</strong><br />

trabalho adicional, externa ao núcleo familiar; 3) economia fundamentalmente <strong>de</strong><br />

subsistência, sem excluir por isto a vinculação (eventual ou permanente) ao mercado; 4)<br />

certo grau <strong>de</strong> autonomia na gestão das ativida<strong>de</strong>s agrícolas, ou seja, nas <strong>de</strong>cisões dos<br />

exce<strong>de</strong>ntes eventuais. 43<br />

Entretanto, para Sampaio, mesmo esta clara <strong>de</strong>finição está sujeita a polêmica.<br />

Porém, o que importa para o autor é diferenciar aquele pequeno agricultor que vivia<br />

exclusivamente ou principalmente do fruto da ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus cativos, daquele para o<br />

qual a posse do mesmo significava um acréscimo na mão-<strong>de</strong>-obra disponível, com uma<br />

conseqüente elevação <strong>de</strong> seu padrão <strong>de</strong> vida, mas sem levar por isto um abandono da<br />

base agrícola por parte do mesmo ou <strong>de</strong> sua família. Além do que, para estes últimos, a<br />

própria aquisição <strong>de</strong> escravos era conseqüência <strong>de</strong> uma acumulação <strong>de</strong> capital resultante<br />

do trabalho familiar. A posse ou não <strong>de</strong> escravos não era o elemento central para a<br />

<strong>de</strong>finição do padrão <strong>de</strong> riqueza <strong>de</strong> cada indivíduo, mas estava mais ligada ao ciclo<br />

familiar do mesmo. 44<br />

Com o propósito <strong>de</strong> pensar a experiência concreta <strong>de</strong> um grupo social específico,<br />

Sampaio selecionou 87 inventários do município <strong>de</strong> Magé entre todos os levantados, a<br />

partir <strong>de</strong> 3 critérios principais: 1) a posse <strong>de</strong> um máximo <strong>de</strong> 4 cativos; 2) fortunas não<br />

42 Ibi<strong>de</strong>m, p. 115<br />

43 Sampaio, Antonio Carlos Jucá <strong>de</strong>. “A pequena produção <strong>de</strong> alimentos na crise do escravismo: Magé,<br />

1850-1888”. IN: Cativeiro e liberda<strong>de</strong>, ano II, v.3, 1996. p. 72<br />

44 Sampaio, p. 73<br />

27


superiores a mil libras esterlinas; 3) a <strong>de</strong>dicação preferencial ou exclusiva à ativida<strong>de</strong><br />

agrícola. Assim, segundo o autor, po<strong>de</strong>-se se aproximar ao máximo do que seria o<br />

campesinato na segunda meta<strong>de</strong> do século XIX.<br />

Em Magé, Sampaio notou a existência <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>s pequenas <strong>de</strong> terras que<br />

dificilmente seriam capazes <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>rem sozinhas pelo sustento <strong>de</strong> seus proprietários<br />

e <strong>de</strong> suas famílias, quando havia. Isso fica ainda pior se se pensar na ocupação secular e<br />

no sistema <strong>de</strong> herança ali adotado, que po<strong>de</strong> ser notado nos testamentos, on<strong>de</strong> todos os<br />

<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes eram consi<strong>de</strong>rados her<strong>de</strong>iros com direitos iguais, fazendo com que as<br />

proprieda<strong>de</strong>s fossem sucessivamente retalhadas ao longo das gerações. Assim, para<br />

aqueles que não conseguissem adquirir novas extensões <strong>de</strong> terras restavam as opções <strong>de</strong><br />

se contentarem com estes “microfúndios”, ou vendê-los, o que provavelmente agravava<br />

ainda mais o quadro <strong>de</strong> concentração fundiária na mão <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s produtores. 45 O<br />

camponês assim, estaria em uma faixa intermediária <strong>de</strong> riqueza, não pertencendo à elite<br />

regional nem estando lado a lado com os mais pobres.<br />

Sheila <strong>de</strong> Castro Faria, através da análise <strong>de</strong> documentos <strong>de</strong> indivíduos pobres,<br />

também constata que a pobreza era relativizada no Brasil do Século XVIII (como se<br />

po<strong>de</strong> perceber nas discussões <strong>de</strong> Hebe Mattos, também ao longo do XIX). Para provar<br />

isto, a autora faz um levantamento dos próprios discursos classificatórios da época, para<br />

recortar o grupo <strong>de</strong>finido como homem livre pobre na região <strong>de</strong> Paraíba do Sul, vila <strong>de</strong><br />

São Salvador dos Campos dos Goitacases. Para observá-los em alguns <strong>de</strong> seus<br />

caminhos, ela consi<strong>de</strong>ra os que mais comumente foram i<strong>de</strong>ntificados enquanto tal –<br />

forros e seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes. Sempre pensando que a pobreza não lhes era inerente, sendo<br />

que muitos até conseguiam juntar um pecúlio suficiente para se distanciar da<br />

classificação <strong>de</strong> <strong>de</strong>spossuído. Ao contrário, inúmeros brancos também eram pobres,<br />

mas, segundo a autora, é mais difícil recortá-los enquanto grupo. 46<br />

Os homens pobres normalmente eram <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> negros, e procuravam<br />

áreas em que pu<strong>de</strong>ssem exercer suas ativida<strong>de</strong>s longe do po<strong>de</strong>r dos senhores. As<br />

pessoas pobres podiam arrendar terras ou se agregar a proprietários rurais para trabalhar<br />

com agricultura. Essa última opção, porém, reduzia a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> enriquecimento,<br />

calculada pelo acesso à mão-<strong>de</strong>-obra escrava. Percebe-se claramente que a gran<strong>de</strong><br />

maioria <strong>de</strong> pessoas se encontrava em terras <strong>de</strong> particulares. Isso se evi<strong>de</strong>ncia no caso <strong>de</strong><br />

inventários que são abertos sem o inventariado possuir terras.<br />

45 Sampaio, p. 74<br />

46 Faria, opus cit, p. 36<br />

28


O que orientava a estabilida<strong>de</strong> em um mundo rural eram os casamentos e<br />

recasamentos. Dificilmente um homem ou uma mulher sozinhos po<strong>de</strong>riam sobreviver<br />

na zona rural, por isso a vida na viuvez era geralmente curta. Buscar a estabilida<strong>de</strong> no<br />

matrimônio era a solução priorizada, quando não se conseguia, o(a) lavrador(a) era<br />

obrigado a se agregar a uma outra unida<strong>de</strong> doméstica. Normalmente, quando morria seu<br />

cônjuge, rapidamente os homens pobres buscavam contrair núpcias, e quase sempre<br />

com mulheres que tinham muitos filhos, conduzindo-o, <strong>de</strong>ste modo, à recriação <strong>de</strong> um<br />

esquema comum, que ao penalizar a mulher na criação das crianças até a ida<strong>de</strong><br />

produtiva, facilitava o acesso <strong>de</strong> homens a bens agrários, principalmente escravos.<br />

Como Hebe Mattos analisou nas zonas agrárias, a presença da família, pelo<br />

menos constituída pelo casal, era condição básica para o estabelecimento <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s<br />

domésticas, em particular para os mais pobres. A necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma maior estabilida<strong>de</strong><br />

levava ao casamento legal. A freqüência <strong>de</strong> recasamentos e a duração da viuvez são<br />

outros dados que corroboram o papel essencial <strong>de</strong>sempenhado pela família no universo<br />

agrário, até mesmo para a população liberta. Segundo a pesquisa <strong>de</strong> Faria, entre<br />

pardos/pretos livres/forros, as mulheres casavam após uma média <strong>de</strong> 5 anos e 2 meses,<br />

com freqüência maior <strong>de</strong> quatro a cinco anos; já os homens casavam bem mais rápido –<br />

a média era <strong>de</strong> um ano e onze meses, com freqüência maior entre um ano e seis meses. 47<br />

Para brancos, ou tidos como tal, as diferenças eram menores. Mulheres e homens<br />

recasavam com aproximadamente o mesmo tempo, em torno <strong>de</strong> 2 anos após a viuvez. A<br />

mulher branca, mais provável <strong>de</strong> ser proprietária <strong>de</strong> bens e escravos, tinha melhores<br />

condições <strong>de</strong> acesso a outro casamento, mesmo com filhos pequenos, do que os pardos/<br />

preto livres/forros que, mais pobres, ficavam com filhos em ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> consumo,<br />

<strong>de</strong>sinteressante para lavradores sem recursos, noivos em potencial. Filhos nesta faixa<br />

etária significava o aumento da pobreza. As mulheres, portanto, é que arcavam com o<br />

peso da alimentação <strong>de</strong> crianças pequenas, quando viúvas.<br />

A mulher sozinha, com filhos consumidores, dificilmente conseguiria sobreviver<br />

enquanto “cabeça da família”, em área rural, sem escravos ou agregados. A ativida<strong>de</strong><br />

agrícola pressupõe uma unida<strong>de</strong> doméstica mais complexa do que em áreas urbanas e os<br />

laços consangüíneos e rituais têm um papel <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque na organização econômico-<br />

social do mundo agrário, principalmente em relação à criação <strong>de</strong> filhos. 48 Assim, a<br />

procura por uma mulher com muitos filhos em ida<strong>de</strong> produtiva era recorrente entre os<br />

47 Faria, opus cit, 84-87<br />

48 Faria, opus cit, 88<br />

29


homens pobres, mesmo solteiros, para o casamento legal. Mais do que a localização da<br />

terra, a família era uma condição básica para a sobrevivência, em zonas agrárias, e<br />

também para o enriquecimento.<br />

Sheila Faria percebeu em Campo dos Goitacases que muitos homens solteiros e<br />

comerciantes não eram proprietários <strong>de</strong> bens imóveis. Segundo ela, isso reflete uma<br />

vivência itinerante, pois a ativida<strong>de</strong> mercantil, sempre passível <strong>de</strong> mudança (<strong>de</strong> praça<br />

mercantil ou para a ativida<strong>de</strong> agrária), impedia o enraizamento.<br />

Na agricultura, a movimentação é mais lenta, os ciclos <strong>de</strong> semeadura, limpeza e<br />

colheita são relativamente longos, mesmo para uma simples lavoura <strong>de</strong> subsistência.<br />

Lavradores precisam <strong>de</strong> uma organização familiar que, além <strong>de</strong> lhes preparar a comida e<br />

a morada, dividisse o trabalho agrícola e lhe <strong>de</strong>ssem filhos, mão-<strong>de</strong>-obra básica para<br />

aspirar a melhores condições <strong>de</strong> vida. Sheila Faria notou que quando um homem ficava<br />

viúvo com filhos pequenos, em zonas agrárias, normalmente casava <strong>de</strong> novo,<br />

incorporando-se a outra unida<strong>de</strong> doméstica ou dava seus filhos para parentes, vizinhos<br />

ou compadres criarem. 49<br />

O casamento oficial da igreja, segundo os padrões dominantes na socieda<strong>de</strong><br />

escravista brasileira, significava garantir o mínimo das condições <strong>de</strong> sobrevivência em<br />

áreas agrárias. Significava, por outro lado, a aceitação da comunida<strong>de</strong> local ao<br />

“forasteiro”. Quando casado, o migrante se inseria nos mol<strong>de</strong>s vigentes naquela<br />

socieda<strong>de</strong>. Casando com mães <strong>de</strong> filhos em ida<strong>de</strong> produtiva, solteiras ou viúvas, não<br />

importa, garantia a herança dos bens adquiridos por ela e por sua prole ou em conjunto,<br />

dado não negligenciável numa época <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong>, principalmente das mães<br />

na hora do parto. 50<br />

Desta forma, temos as características caras à um meio rural <strong>de</strong> amplitu<strong>de</strong>s<br />

menores do que gran<strong>de</strong>s centros como regiões cafeeiras em São Paulo e produções<br />

agrícolas no Rio <strong>de</strong> Janeiro e no nor<strong>de</strong>ste. Com poucas especificida<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>mos pensar<br />

no contexto <strong>de</strong> São José dos Pinhais tendo como base essas discussões. Elas nos ajudam<br />

a pensar um universo rural <strong>de</strong> fronteira, on<strong>de</strong> a extrema mobilida<strong>de</strong> dos indivíduos e a<br />

posse da terra se revelavam <strong>de</strong> caráter sempre provisório, passíveis <strong>de</strong> influência da elite<br />

local. Na seção seguinte, avançaremos no conhecimento da hierarquia social <strong>de</strong> São<br />

José dos Pinhais, principalmente no que concerne a posse <strong>de</strong> bens.<br />

49 Ibi<strong>de</strong>m, 354<br />

50 Ibi<strong>de</strong>m, p. 369<br />

30


Seção II. Dos proprietários <strong>de</strong> bens. O contexto sãojoseense através dos inventários<br />

post-mortem.<br />

A data <strong>de</strong> estabelecimento <strong>de</strong> São José como vila é <strong>de</strong> 1852 e é nesse ano que<br />

ocorre o processo do primeiro inventário por mim investigado. Os inventários nos<br />

séculos passados eram confeccionados com o intuito <strong>de</strong> listar os bens a serem <strong>de</strong>ixados<br />

a her<strong>de</strong>iros, <strong>de</strong>sta forma é possível tomar conhecimento da vida material da região<br />

analisada. Entretanto, <strong>de</strong>vemos ter em mente que, como somente proprietários <strong>de</strong> bens<br />

eram inventariados, uma gran<strong>de</strong> fatia da população ficava <strong>de</strong> fora. Assim, estamos<br />

tratando dos mais “abastados” entre a população, mas este fato não representa que estas<br />

pessoas possuíam uma gran<strong>de</strong> fortuna, pois a simples proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> um bem não os<br />

tornavam ricos. Das pessoas que não eram inventariadas poucas informações<br />

possuímos, pois somente a encontraremos em registros paroquiais, como os <strong>de</strong> óbitos.<br />

Mesmo assim, somente po<strong>de</strong>mos imaginar o grau <strong>de</strong> pobreza em que estas pessoas<br />

viviam, pois, mesmo entre algumas pessoas que possuíam inventários, notamos que elas<br />

tinham muito pouco a <strong>de</strong>ixar e que certamente viviam em dificulda<strong>de</strong>s.<br />

Po<strong>de</strong>-se exemplificar a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pessoas que não eram inventariadas pelo<br />

fato <strong>de</strong> que entre janeiro e setembro <strong>de</strong> 1857, <strong>de</strong> acordo com o presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> província,<br />

sessenta e uma pessoas morreram em São José dos Pinhais 51 , entretanto nenhum<br />

inventário foi aberto neste ano ou no seguinte. Há diversas explicações para a ausência<br />

<strong>de</strong> inventários, como a perda do documento, a não existência <strong>de</strong> uma pessoa apta para<br />

fazê-lo, o fato <strong>de</strong> que uma crise agrária possa ter impossibilitado sua confecção <strong>de</strong>vido a<br />

falta <strong>de</strong> dinheiro para pagar os impostos necessários.<br />

Graças a sua característica <strong>de</strong>scritiva os inventários nos ajudam a <strong>de</strong>svendar o<br />

que era produzido localmente durante os anos 1852 a 1886. De um total <strong>de</strong> 371<br />

inventariados nesse período, 238 possuíam animais <strong>de</strong>scritos, ou seja, 64% das pessoas<br />

estavam vinculadas a algum tipo <strong>de</strong> comércio <strong>de</strong> gado, como o transporte do que era<br />

produzido localmente (evi<strong>de</strong>nciado pela gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “bois carreiros”) ou <strong>de</strong><br />

bens manufaturados. O rebanho (bovinos, cavalos, suínos, e ovinos) estava todo<br />

concentrado em<br />

51 Segundo o Relatório do Presi<strong>de</strong>nte da Província do Paraná citado em Ferrarini, Sebastião. A escravidão<br />

negra na província do Paraná. Editora Lítero-técnica. Paraná: s/d.<br />

31


proprieda<strong>de</strong>s rurais (com exceção <strong>de</strong> um único caso) * o que po<strong>de</strong> ser visto como um<br />

fator <strong>de</strong> auxílio na produção, com o transporte, e na subsistência das famílias rurais,<br />

com a produção <strong>de</strong> leite ou <strong>de</strong> carne. Provavelmente alguns animais eram criados para<br />

aten<strong>de</strong>rem também a subsistência <strong>de</strong> regiões cafeeiras em São Paulo.<br />

A gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “terrenos <strong>de</strong> erva mate” listados nos inventários, atesta<br />

que essa produção, consi<strong>de</strong>rada a principal ativida<strong>de</strong> econômica em São José dos<br />

Pinhais no século passado, continua tendo importância na segunda meta<strong>de</strong> do século<br />

XIX. Em menor número aparecem citadas as “invernadas” e “terras <strong>de</strong> pastagem”<br />

terreno estes que serviam para o pasto dos rebanhos, e para servirem, também, ao pasto<br />

<strong>de</strong> animais <strong>de</strong> tropeiros que faziam comércio <strong>de</strong> produtos entre São Paulo e regiões mais<br />

ao Sul. A produção <strong>de</strong> subsistência, que servia <strong>de</strong> sustento <strong>de</strong> toda a família <strong>de</strong>ntro<br />

unida<strong>de</strong> produtiva, se concentrava na cultura do milho.<br />

Na região também havia vendas que se encarregavam <strong>de</strong> comercializar os<br />

produtos agrícolas e artigos <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong> geral. Vendiam praticamente <strong>de</strong> tudo no<br />

mundo rural, na verda<strong>de</strong> profundamente especializada na produção <strong>de</strong> alguns produtos<br />

básicos. Ao mesmo tempo em que as vendas buscavam aten<strong>de</strong>r à quase totalida<strong>de</strong> das<br />

necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> consumo existentes na localida<strong>de</strong>, o nível quase nulo <strong>de</strong> monetarização<br />

da realida<strong>de</strong> estudada por Mattos fazia com que a sua reserva monetária viesse da<br />

comercialização da produção agrícola que recebiam em pagamento das mercadorias<br />

negociadas, produção agrícola esta que em gran<strong>de</strong> parte financiavam. 52 (...)<br />

O ven<strong>de</strong>iro propriamente dito, aquele que vivia exclusivamente dos lucros <strong>de</strong><br />

sua casa <strong>de</strong> negócios, possuía em regra poucos ou nenhum escravo e tinha no somatório<br />

<strong>de</strong> estoque, instalações e dívidas a resgatar <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> 40% do montante líquido <strong>de</strong> suas<br />

fortunas. Em geral eram proprietários <strong>de</strong> pequenas extensões <strong>de</strong> terreno e não <strong>de</strong>ixavam<br />

<strong>de</strong> possuir pequenas culturas <strong>de</strong> subsistência. Des<strong>de</strong> o pequeno ven<strong>de</strong>iro com casa <strong>de</strong><br />

negócio em terra alheia ao gran<strong>de</strong> fazen<strong>de</strong>iro-negociante, a venda inseria-se sempre no<br />

atendimento <strong>de</strong> uma dupla função comercial: o atendimento das necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

consumo dos lavradores locais, especialmente daqueles que não tinham acesso às praças<br />

atacadistas regionais, e a canalização do exce<strong>de</strong>nte da lavoura <strong>de</strong> subsistência do<br />

* o inventário <strong>de</strong> Florência Teixeira da Cruz <strong>de</strong> 1977, não apresenta proprieda<strong>de</strong> nenhuma. Entretanto<br />

po<strong>de</strong>-se supor que ela tenha passado sua(s) proprieda<strong>de</strong>(s) para outra pessoa antes da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

perdê-los, <strong>de</strong>vido ao fato <strong>de</strong> que seus bens seriam arrematados por causa <strong>de</strong> dívidas. Estes “<strong>de</strong>svios” da lei<br />

foram normais no passado brasileiro.<br />

52 Mattos, Ao sul, opus cit., p. 110<br />

32


município para aqueles mercados, a exemplo do que era feito diretamente por<br />

lavradores mais abastados no tocante à sua produção. 53<br />

Assim, para <strong>de</strong>finir os graus <strong>de</strong> “riqueza” na região, optei por utilizar a<br />

separação por faixas <strong>de</strong> fortunas, ou seja, pelo tamanho do monte-mor inventariado<br />

(como po<strong>de</strong> ser visto na tabela 1). Como o Brasil do século XIX vivia uma situação<br />

instável, com gran<strong>de</strong>s oscilações na economia, utilizei um <strong>de</strong>flator <strong>de</strong> preços para o ano<br />

<strong>de</strong> 1872, para, <strong>de</strong>ste modo, chegar o mais perto possível do verda<strong>de</strong>iro valor do “réis”, a<br />

moeda da época, e a inflação ao longo da segunda meta<strong>de</strong> do século XIX. 54<br />

Tabela 1. Distribuição dos inventariados por faixas <strong>de</strong> tamanho dos montes-mores<br />

(São José dos Pinhais, 1852-1886) – em réis <strong>de</strong> 1872.<br />

1852-1859 1860-1869 1870-1879 1880-1886<br />

Menor que<br />

2:000$000<br />

2:000$000<br />

a<br />

4:999$999<br />

5:000$000<br />

a<br />

9:999$999<br />

Igual ou<br />

maior que<br />

10:000$000<br />

2<br />

1<br />

1<br />

1<br />

11<br />

6<br />

3<br />

2<br />

Total 5 22 169 87<br />

*fonte: Inventários <strong>de</strong> São José dos Pinhais. II cartório da vara cível <strong>de</strong> São José dos Pinhais<br />

O que salta a vista numa primeira visualização da tabela acima é um<br />

empobrecimento geral dos inventariados. Por exemplo, notamos que na década <strong>de</strong> 1870,<br />

havia 93 inventariados que possuíam até 2:000$000 (lê-se dois contos), isso representa<br />

56% <strong>de</strong> todos os inventariados <strong>de</strong>sta década, porém nos anos <strong>de</strong> 1880 a 1886, essa faixa<br />

<strong>de</strong> fortuna respondia a 64% (tabela 2). E ainda <strong>de</strong>ve-se levar em conta que os anos <strong>de</strong><br />

1880-86 não representam uma década inteira, como no período anterior, e, como po<strong>de</strong><br />

ser percebido através <strong>de</strong> uma simples checagem ao total <strong>de</strong> inventários <strong>de</strong> cada ano, a<br />

quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sses documentos foi crescendo cada vez mais à medida que se avança para<br />

o final do século.<br />

53 Ibi<strong>de</strong>m, p. 113<br />

54 Lobo, Eulália M. L. Evolução dos preços e do padrão <strong>de</strong> vida na cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1820-1930.<br />

IN: Revista Brasileira <strong>de</strong> economia, vol. 25 nº 4, 1971. Como São José dos Pinhais importava e produtos<br />

do Rio <strong>de</strong> Janeiro o consumo se assemelhava aos da capital do Império, é nesse sentido que po<strong>de</strong>mos<br />

utilizar o método <strong>de</strong> Lobo.<br />

93<br />

43<br />

19<br />

14<br />

56<br />

17<br />

8<br />

6<br />

33


Entretanto, na maior faixa <strong>de</strong> fortuna vê-se uma constância, revelando que os<br />

mais “ricos” continuaram a possuir sua fortuna, com poucas exceções. Foi nas faixas<br />

intermediárias que houve um maior empobrecimento, pois nelas se observa uma queda<br />

nas porcentagens na distribuição dos inventários. Po<strong>de</strong>mos concluir daí que a socieda<strong>de</strong><br />

em São José estava se polarizando, isto é, os indivíduos que se encontravam nas faixas<br />

intermediárias <strong>de</strong> fortuna estavam “<strong>de</strong>scendo” para as faixas <strong>de</strong> fortunas menores, mas<br />

os ricos se mantinham <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> suas faixas.<br />

Tabela 2. Distribuição dos inventariados por faixas <strong>de</strong> tamanho dos montesmores<br />

(São José dos Pinhais, 1852-1886) (%) – em mil-réis <strong>de</strong> 1872.<br />

1860-1869 1870-1879 1880-1886<br />

Menor que<br />

2:000$000<br />

2:000$000<br />

a<br />

4:999$999<br />

5:000$000<br />

a<br />

9:999$999<br />

50<br />

27<br />

14<br />

56<br />

25<br />

11<br />

Igual ou maior 9<br />

8<br />

7<br />

que 10:000$000<br />

total 100 100 100<br />

* Como os anos 1850 possuem poucos casos, tornando-se, <strong>de</strong>ste modo, insignificante<br />

na percentagem final, optamos por excluir esse período.<br />

* Fonte: Inventários <strong>de</strong> São José dos Pinhais.<br />

Várias hipóteses po<strong>de</strong>m ser levantadas para esse empobrecimento, como a<br />

fragmentação das fortunas através das partilhas, on<strong>de</strong> aparecem, por exemplo, pequenas<br />

extensões <strong>de</strong> terrenos sendo dividas ainda mais; também, nessa socieda<strong>de</strong> instável,<br />

havia uma gran<strong>de</strong> transitorieda<strong>de</strong> das fortunas, on<strong>de</strong> as gerações se alteravam nas<br />

posições sociais.<br />

Entretanto, essa permanência dos indivíduos pertencentes na maior faixa <strong>de</strong><br />

fortuna nos leva a levantar a hipótese <strong>de</strong> que as gerações seguintes pertencentes a essa<br />

camada da socieda<strong>de</strong> não sofriam com as divisões dos bens na partilha. Deste modo,<br />

eles contrariam a concepção amplamente aceita <strong>de</strong> que as gerações posteriores<br />

geralmente empobreciam.<br />

A questão da polarização da socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> São José dos Pinhais na segunda<br />

meta<strong>de</strong> do século XIX, <strong>de</strong>ve ser melhor analisada, pois se levarmos em conta que<br />

64<br />

20<br />

9<br />

34


somente eram inventariados aqueles que possuíam bens, po<strong>de</strong>mos pensar que a<br />

socieda<strong>de</strong> como um todo estava sofrendo uma mudança brutal. Pois à medida que se<br />

avança para o final do século XIX, nota-se uma diminuição na média do montes-mores<br />

inventariados, constatando-se, <strong>de</strong>ste modo, o empobrecimento dos que possuíam bens<br />

(Gráfico 1). Se isto acontecia para os inventariados, po<strong>de</strong>-se apenas imaginar a<br />

amplitu<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse empobrecimento nas camadas mais pobres que nem possuíam bens<br />

para serem inventariados: a socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> São José dos Pinhais estava se polarizando <strong>de</strong><br />

maneira aguda neste período.<br />

Gráfico 1.<br />

4000000<br />

3500000<br />

3000000<br />

2500000<br />

2000000<br />

1500000<br />

1000000<br />

500000<br />

0<br />

Média das fortunas inventariadas em São José dos Pinhais<br />

(1852-1886), em mil-réis <strong>de</strong> 1872<br />

1860-1869 1870-1879 1880-1886<br />

Fonte: Inventários <strong>de</strong> São José dos Pinhais 1852 a 1886. Desconsi<strong>de</strong>rado a década <strong>de</strong> 1850 por<br />

possuir poucos casos.<br />

Com relação aos mais ricos <strong>de</strong>ve-se tomar o mesmo cuidado que Hebe Mattos<br />

teve com os produtores <strong>de</strong> Capivary, ou seja, levar em conta que em São José dos<br />

Pinhais, mesmo os maiores proprietários são pequenos se comparados com proprietários<br />

<strong>de</strong> outras regiões, como a “vizinha” Província <strong>de</strong> São Paulo, com quem São José<br />

mantinha comércio.<br />

Entre os maiores proprietários inventariados, aqueles que se encontram na maior<br />

faixa <strong>de</strong> fortuna, é constante a presença <strong>de</strong> escravos. Como nos referimos anteriormente,<br />

somente em dois casos não há a referência direta a escravos: o padre Matias Cármino<br />

Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sá outro é Ana Ricarda. Hebe Mattos, em “Ao sul da história”, aponta que o<br />

35


elemento escravo era o regulador do nível social nos século passados, na medida em que<br />

os gran<strong>de</strong>s proprietários conseguiam garantir sua reprodução e a <strong>de</strong> suas proprieda<strong>de</strong>s<br />

sem se envolver com qualquer tipo <strong>de</strong> trabalho manual. Porém, os escravos aparecem<br />

em pequeno número se tomarmos por base as regiões mais ao norte do Brasil. Isso se<br />

explica por motivos econômicos e organizacionais. Materialmente a região <strong>de</strong> São José<br />

é uma região pobre e não dispõe <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> capital para compra <strong>de</strong> escravos e, mesmo<br />

assim, a cultura <strong>de</strong> plantação <strong>de</strong> erva mate e a pecuária não necessitam <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> mão-<br />

<strong>de</strong>-obra.<br />

Os maiores produtores investiam pesado na obtenção <strong>de</strong> erva mate e na criação<br />

<strong>de</strong> gado, mas também havia os comerciantes. É caso <strong>de</strong> Paulimão Carlos Maria<br />

Huergo(?) 55 , um dos mais ricos proprietários <strong>de</strong> São José dos Pinhais, e que, pela<br />

<strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> seus bens, que não eram poucos, po<strong>de</strong>mos imaginar que ele vivia em<br />

extremo conforto. Em seu inventário, na <strong>de</strong>scrição do seu estoque comercial, nota-se<br />

uma enorme quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> itens e uma gran<strong>de</strong> soma. O que compõe seu estoque é uma<br />

gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tecidos, que serviam para fazer roupas, tanto para vivos como<br />

para mortos. O valor auferido ao seu estoque é <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> doze contos <strong>de</strong> réis, isto<br />

significa que somente o seu estoque é maior que os monte-mores <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> parte da<br />

população <strong>de</strong> São José. O valor <strong>de</strong> dívidas que lhe são <strong>de</strong>vidas também é alto, entre<br />

dívidas consi<strong>de</strong>radas cobráveis e outras consi<strong>de</strong>radas incobráveis há mais <strong>de</strong> quinze<br />

contos, fato que comprova que ele financiava outras pessoas no mundo rural. Mas esse<br />

ven<strong>de</strong>iro também se aventurava a pedir dinheiro emprestado à outras pessoas, fato<br />

conectado com a tentativa da ascensão social através do aumento do movimento <strong>de</strong><br />

capital <strong>de</strong> seu negócio.<br />

Fato semelhante em outras regiões, o comerciante que vivia somente dos lucros<br />

<strong>de</strong> seu negócio possuía poucos ou nenhum escravo. Paulimão possuía somente dois. E<br />

também possuíam pequenas faixas <strong>de</strong> terras com pequenas culturas que serviam apenas<br />

para sua subsistência, no caso <strong>de</strong>sse ven<strong>de</strong>iro, somente três terrenos sem nenhum tipo <strong>de</strong><br />

beneficiamento.<br />

A ativida<strong>de</strong> intelectual no século XIX não aparece necessariamente ser cara às<br />

pessoas menos abastadas, mas sim aquelas que tinham uma maior condição e tempo<br />

para dispor em seus aprendizados. Um camponês pobre, que trabalhava <strong>de</strong> sol a sol, não<br />

tinha capital nem tempo para investir nesses “divertimentos”. Assim, encontramos<br />

55 Caixa 6005, proc. 31-50, proc nº 48, maço 6. II Cartório da Vara Cível <strong>de</strong> São José dos Pinhais.<br />

36


livros e instrumentos musicais somente nos inventários dos mais ricos. No inventário <strong>de</strong><br />

padres normalmente aparecem listados livros como o caso do Padre Matias Cármino<br />

Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sá, que em meio a seus bens aparecem <strong>de</strong>scritos “<strong>de</strong>zesseis volumes <strong>de</strong><br />

obras diversas”, e no do farmacêutico Manuel Antonio Pereira <strong>de</strong> Araújo notamos a<br />

presença <strong>de</strong> seis volumes <strong>de</strong> romances, oito <strong>de</strong> medicina, além <strong>de</strong> uma flauta.<br />

Raros eram os inventários do século XIX on<strong>de</strong> se po<strong>de</strong>m encontrar livros e<br />

instrumentos musicais, principalmente em regiões distantes e mais pobres <strong>de</strong> centros<br />

culturais como São Paulo e Rio <strong>de</strong> Janeiro. A difusão da leitura e da música ainda não<br />

tinha alcançado pleno <strong>de</strong>senvolvimento sendo poucos os que possuíam essas<br />

habilida<strong>de</strong>s. Em 371 inventários encontrei apenas três casos em que há referências <strong>de</strong><br />

livros e instrumentos musicais, no caso dos padres explica-se pelo fato <strong>de</strong> que a Igreja<br />

cobrava bastante <strong>de</strong>senvolvimento intelectual <strong>de</strong> seu clero. No caso do farmacêutico,<br />

apesar <strong>de</strong>le não pertencer aos estratos mais altos da socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> São José dos Pinhais,<br />

essa profissão exigia que ele fosse um homem letrado, literato por necessida<strong>de</strong> e<br />

vocação, <strong>de</strong>tentor da cultura, conhecedor do folclore e da cultura regional. O<br />

farmacêutico lutava pela saú<strong>de</strong> da população, e na farmácia muitas vezes reuniam-se o<br />

médico, o advogado, o juiz e <strong>de</strong>mais autorida<strong>de</strong>s para, em conjunto, <strong>de</strong>liberarem as<br />

medidas necessárias para o <strong>de</strong>senvolvimento local.<br />

Enquanto que os mais ricos, aqueles que possuíam montes-mores <strong>de</strong> 10:000$000<br />

ou mais, representavam 6% <strong>de</strong> toda a população inventariada ao longo do período<br />

analisado, os mais pobres, aqueles que se encontram na faixa <strong>de</strong> fortuna menor que<br />

2:000$000, representam 44% dos inventariados constituindo, portanto, a gran<strong>de</strong><br />

maioria. Entretanto, as pessoas mais ricas, vinte e três no total, possuem uma soma total<br />

<strong>de</strong> fortuna 2,5 vezes maior do que a soma dos montes-mores das pessoas que estão na<br />

menor faixa <strong>de</strong> fortuna, que representam a maioria, com 162 casos. Esses poucos ricos<br />

constituem a elite dominante em São José dos Pinhais e controlavam a vida política<br />

econômica da região.<br />

Porém, analisando os inventários dos mais pobres, chega-se à conclusão <strong>de</strong> que<br />

o tipo e qualida<strong>de</strong> das culturas <strong>de</strong>senvolvidas nessas unida<strong>de</strong>s produtivas não se<br />

mostrava muito diferente das proprieda<strong>de</strong>s mais abastadas, porém possuíam menores<br />

extensões. Ao contrário do que foi notado em outras regiões como Capivary no Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro, em algumas proprieda<strong>de</strong>s “pobres” havia benfeitorias para beneficiamento da<br />

produção.<br />

37


Os agricultores pobres utilizavam-se do trabalho escravo muito raramente e suas<br />

produções não se voltavam para a comercialização e sim para sua própria subsistência.<br />

Utilizavam seus exce<strong>de</strong>ntes para realizar trocas nas vendas por outros produtos<br />

necessários.<br />

O cativo era um fator <strong>de</strong> riqueza na socieda<strong>de</strong> escravista dos séculos passados, e<br />

para os pequenos produtores essa mão-<strong>de</strong>-obra significava um acréscimo na força <strong>de</strong><br />

trabalho, com uma conseqüente elevação do seu padrão <strong>de</strong> vida, mas a base agrícola<br />

continuava a ser familiar. Porque, como foi dito por Antonio Sampaio, a aquisição <strong>de</strong><br />

escravos estava vinculada à acumulação <strong>de</strong> capital que resulta do trabalho familiar.<br />

Tabela 3. Valor médio <strong>de</strong> escravos por período<br />

Período 1852-1863 1864-1874 1875-1885<br />

Valor 2:780$000 66:990$000 87:105$000<br />

quantida<strong>de</strong> 7 99 142<br />

Valor médio p/<br />

escravo<br />

397$143 676$667 613$415<br />

Fonte: Inventários post-mortem São José dos Pinhais. 1852-1885<br />

Na tabela acima temos o valor médio dos escravos em diversos períodos. O<br />

valor não está <strong>de</strong>flacionado, exatamente para mostrar a variação <strong>de</strong> preços dos cativos<br />

no período. Deve-se levar em consi<strong>de</strong>ração para todo o período que quando se apresenta<br />

o valor auferido à um escravo nos inventários, muitas vezes os cativos estavam já<br />

velhos ou inutilizados, colaborando assim, para a queda no preço médio. Isso ocorre,<br />

por exemplo, <strong>de</strong> maneira mais visível, no primeiro período da tabela, 1852 - 1863. É<br />

mais visível pois, por ser pouco o número <strong>de</strong> escravos (somente sete), po<strong>de</strong>mos<br />

facilmente notar a diferença <strong>de</strong> valor. Miguel e Justa, escravos com ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> 55 e 58<br />

respectivamente, não passam <strong>de</strong> 100$000 cada um, enquanto que Joaquim, <strong>de</strong> 44, é<br />

avaliado por 700$000 no inventário. Quer dizer, os escravos valiam <strong>de</strong> acordo com a<br />

amplitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua vida: além <strong>de</strong> estar perto da morte, os escravos acima <strong>de</strong> 50 anos já<br />

não tinham a mesma força para trabalhar do que os mais jovens.<br />

Para o período, também se <strong>de</strong>ve estar ciente do impacto que o trabalho cativo<br />

sofreu com o fim do tráfico <strong>de</strong> escravos no início da década <strong>de</strong> 1850. Sem a importação<br />

<strong>de</strong> africanos, as regiões mais distantes dos gran<strong>de</strong>s produtores como São Paulo, Rio <strong>de</strong><br />

38


Janeiro, e regiões do nor<strong>de</strong>ste, viram o valor dos escravos aumentarem<br />

vertiginosamente.<br />

Porém, no período seguinte, 1864 a 1874, há um aumento muito expressivo no<br />

número <strong>de</strong> escravos no interior da vila <strong>de</strong> São José, acompanhando o aumento da<br />

produção agrícola na região. A maioria dos 83 inventariados possuía terrenos voltados<br />

para o cultivo da erva mate, produto que estava em expansão no Paraná, o que levou a<br />

um incremento no número <strong>de</strong> escravos para trabalhar nas unida<strong>de</strong>s rurais. Segue-se um<br />

aumento no valor dos cativos, impactado diretamente pelo fim do tráfico e a expansão<br />

cafeeira em São Paulo.<br />

No <strong>de</strong>cênio seguinte, 1875 à1885, há um aumento no número <strong>de</strong> escravos<br />

seguido pelo aumento no número <strong>de</strong> inventariados. São 191 inventariados com um total<br />

<strong>de</strong> 142 escravos, representando 1,3 cativos para cada inventariado. Se, como disse Hebe<br />

Mattos em “Ao sul da história” a proprieda<strong>de</strong> agrícola não po<strong>de</strong> ser levantada<br />

unicamente como elemento para <strong>de</strong>finir riquezas, tendo que se levar em conta o<br />

tamanho das proprieda<strong>de</strong>s e a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escravos, temos, mais uma vez, que a<br />

socieda<strong>de</strong> sãojoseense possui muito pouco po<strong>de</strong>r econômico. Mesmo se percebermos o<br />

padrão analisado por Mattos em Capivary, on<strong>de</strong> os gran<strong>de</strong>s produtores tendiam a<br />

concentrar a mão-<strong>de</strong>-obra escrava, no contexto <strong>de</strong> São José parece não ocorrer o<br />

mesmo. Os 50 mais abastados inventariados, com montes superiores a 10$000:000,<br />

possuíam ao todo 17 escravos, menos <strong>de</strong> três escravos por inventário, o que é muito<br />

pouco em se tratando <strong>de</strong> pretensos gran<strong>de</strong>s produtores.<br />

O número inferior <strong>de</strong> escravos, se relacionado com outras regiões, <strong>de</strong>monstra a<br />

impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sses lavradores <strong>de</strong> competirem diretamente com as localida<strong>de</strong>s mais<br />

fortemente relacionadas com o mercado externo. A ligeira queda do valor dos escravos<br />

no <strong>de</strong>cênio <strong>de</strong> 1875 a 1885, <strong>de</strong>monstra o impacto sofrido pela região com o fim do<br />

tráfico <strong>de</strong> cativos para outras regiões. Sem a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> venda <strong>de</strong> escravos para as<br />

regiões cafeeiras em São Paulo, os cativos começam a per<strong>de</strong>r valor, pois as unida<strong>de</strong>s<br />

agrícolas no Paraná não necessitavam <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> plantel <strong>de</strong> escravos para funcionar.<br />

Um outro fator importante para a formação e manutenção das unida<strong>de</strong>s rurais era<br />

a constituição <strong>de</strong> uma família. A freqüência <strong>de</strong> recasamentos e a duração da viuvez são<br />

notados nos inventários, on<strong>de</strong> aparecem listados filhos <strong>de</strong> dois ou mais casamentos. O<br />

número <strong>de</strong> filhos também é um fator importante para uma família pobre, pois a<br />

quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> filhos é compatível com a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> força <strong>de</strong> trabalho.<br />

39


Neste contexto, as estratégias <strong>de</strong> reprodução social se apresentam extremamente<br />

importantes, pois é através <strong>de</strong>las que se obtinha a sobrevivência em um mundo rural.<br />

Assim, a análise <strong>de</strong> casos <strong>de</strong> membros <strong>de</strong> famílias importantes na socieda<strong>de</strong> São José<br />

dos Pinhais vem a esclarecer algumas das questões levantadas pela argumentação dos<br />

autores aqui discutidos.<br />

40


Capítulo 2. Dois casos <strong>de</strong> reprodução familiar: Família Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sá e Família do<br />

Padre Francisco <strong>de</strong> Paulo Prestes<br />

Seção I. Colcha <strong>de</strong> Retalhos: O caso da família Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sá<br />

A lista nominativa <strong>de</strong> habitantes da então Freguesia <strong>de</strong> São José dos Pinhais do<br />

ano <strong>de</strong> 1797 traz arrolado em primeiro lugar informações acerca do capitão José Gabriel<br />

Leitão. Seu nome aparece em primeiro por serem os Capitães <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>nanças quem<br />

conduziam esta espécie <strong>de</strong> censo antigo, que tinha objetivos <strong>de</strong> contar quantos homens<br />

havia na região capazes <strong>de</strong> pegar em arma. Através <strong>de</strong>ste registro po<strong>de</strong>mos ver que o<br />

capitão possuía cinco escravos e que seus cinco filhos, com ida<strong>de</strong> superiores a 18 anos,<br />

moravam em sua casa. Entre os filhos há inclusive um alferes, que era uma patente<br />

abaixo da <strong>de</strong> tenente nas Or<strong>de</strong>nanças. Esta presença dos filhos em casa sugere um forte<br />

laço familiar e uma ativida<strong>de</strong> patriarcal levada à cabo pelo Capitão José Gabriel. Uma<br />

socieda<strong>de</strong> agrária freqüentemente dá origem a uma comunida<strong>de</strong> mercantil (não<br />

especializada, mas presente) que ocupa posições <strong>de</strong> elite. Como Leitão era capitão <strong>de</strong><br />

or<strong>de</strong>nanças, é bem possível que tenha tido ativida<strong>de</strong> mercantil. Entretanto, <strong>de</strong>vemos<br />

sempre estar cientes <strong>de</strong> que a mercancia não era ocupação especializada nesse tipo <strong>de</strong><br />

ambiente. 56<br />

Através das fontes consultadas, não há referências a nenhum membro da família<br />

Leitão até o ano <strong>de</strong> 1842. Neste ano morre Antonio Cardoso Leitão, com 70 anos, e em<br />

1850, se dá o enterro <strong>de</strong> José Gabriel Leitão aos 40 anos. Não possuímos informações<br />

quanto a condição econômica e se eles ocupavam algum cargo <strong>de</strong> importância na então<br />

freguesia <strong>de</strong> São José, o único elemento que possuímos, e que po<strong>de</strong> ser levado em<br />

consi<strong>de</strong>ração com relação a um indício <strong>de</strong> riqueza ou pelo menos <strong>de</strong> importância na<br />

região é que, na hora da morte, ambos tiveram os últimos acompanhamentos completos.<br />

Algo difícil <strong>de</strong> se encontrar nos registros <strong>de</strong> óbitos da região e que era reservado<br />

somente a algumas poucas pessoas. No caso <strong>de</strong> Antonio Cardoso inclusive há a citação<br />

<strong>de</strong> uma recomendação “solene” o que era reservado para figuras <strong>de</strong> projeção política<br />

nos registros no século XIX.<br />

É através <strong>de</strong> testamento <strong>de</strong> um membro da já conhecida família Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sá<br />

que tomamos conhecimento <strong>de</strong> Manoel Men<strong>de</strong>s Leitão, que foi um Comendador em São<br />

José dos Pinhais. No período colonial, comendador era um título, às vezes, usado pelos<br />

56 Arquivo do Estado <strong>de</strong> São Paulo. Listas <strong>de</strong> habitantes <strong>de</strong> Curitiba, 1797 (foram consultadas cópias<br />

microfilmadas pertencentes ao <strong>Departamento</strong> Estadual <strong>de</strong> Arquivo Público/PR).<br />

41


que tinham o hábito da Or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> Cristo. No Imperial, podia ser Or<strong>de</strong>m da Rosa ou<br />

outra. Era um título honorífico, a expressão comumente usada era a <strong>de</strong> “graças<br />

honoríficas”. No período colonial dava alguns privilégios, sobretudo no Judiciário (foro<br />

privilegiado). No Império, era mais honorifica mesmo.<br />

Pela importância do título <strong>de</strong> comendador, a esposa <strong>de</strong> Manoel Men<strong>de</strong>s Leitão,<br />

Ana Maria <strong>de</strong> Sá Ribas, trazia o título <strong>de</strong> “dona” no inventário <strong>de</strong> seu filho, título<br />

concedido somente a membros dos segmentos mais prestigiados da socieda<strong>de</strong>. Deste<br />

modo, a união do nome Men<strong>de</strong>s Leitão e Sá Ribas dá início à família Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sá que<br />

será muito importante política e economicamente na vila <strong>de</strong> são José, pois dará origem à<br />

uma das famílias mais importantes na vida política e econômica da região.<br />

Fortes indícios apontam para o fato <strong>de</strong> que a formação <strong>de</strong>ssa nova família se <strong>de</strong>u<br />

baseada em estratégias familiares. Como po<strong>de</strong>mos perceber através do inventário do<br />

major Luis Antonio <strong>de</strong> Sá Ribas, que provavelmente era o irmão <strong>de</strong> Dona Ana ou ao<br />

menos um parente próximo, esta família já possuía bens e já era importante<br />

politicamente em Curitiba em meados do século XIX. O posto <strong>de</strong> major, ocupado por<br />

Luis Antonio em São José, é superior ao <strong>de</strong> capitão, posto ocupado pelo seu pai,<br />

<strong>de</strong>notando uma ascensão econômica que já vinha <strong>de</strong> longe. Na vila muitas pessoas<br />

<strong>de</strong>viam ao major Ribas, que, através dos itens em seu inventário, também exercia a<br />

ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comerciante.<br />

Voltemos, pois, à continuida<strong>de</strong> da formação da família Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sá. O filho do<br />

Comendador Leitão, Tenente Candido Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sá, morre no dia 24 <strong>de</strong> fevereiro do<br />

ano <strong>de</strong> 1873, <strong>de</strong> febre tifói<strong>de</strong>. No mesmo dia se dá seu enterro, precedido pelo velório,<br />

missa <strong>de</strong> corpo presente e encomendação <strong>de</strong> sua alma pelo pároco da vila <strong>de</strong> São José<br />

dos Pinhais José Francisco Bittencourt, seguido <strong>de</strong> solene recomendação por diversos<br />

sacerdotes no cemitério on<strong>de</strong> foi enterrado. 57 No funeral do tenente foram gastos<br />

740$000 distribuído entre missas e <strong>de</strong>spesas nos rituais como preparação do <strong>de</strong>funto e<br />

da casa para o velório. Um gasto consi<strong>de</strong>ravelmente alto se consi<strong>de</strong>rarmos que a média<br />

gasta na década <strong>de</strong> 1870 foi <strong>de</strong> 60$000 por cerimônia. A cerimônia <strong>de</strong> “<strong>de</strong>spedida” do<br />

tenente, procurou mostrar quem era o Tenente Candido Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sá na socieda<strong>de</strong> da<br />

vila <strong>de</strong> São José. 58<br />

57 Registro <strong>de</strong> óbito, Livro 4, 24/02/1873, paróquia <strong>de</strong> São José dos Pinhais<br />

58 Inventário <strong>de</strong> Candido Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sá. Maço 2, procuração 11, caixa 6001. II Cartório da Vara Cível <strong>de</strong><br />

São José dos Pinhais.<br />

42


Candido Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sá ocupava um cargo <strong>de</strong> importância no século XIX. Como<br />

tenente da Guarda Nacional, ele era responsável pela segurança e até pela administração<br />

política da região. Os tenentes eram normalmente cargos políticos influentes e isso era<br />

acompanhado <strong>de</strong> ascensão social, se o indivíduo já não a possuísse. 59 Segundo José<br />

Murillo <strong>de</strong> Carvalho, durante o Império, a Guarda Nacional foi a instituição que ligou<br />

proprietários rurais ao governo. A escolha e distribuição <strong>de</strong> patentes <strong>de</strong> oficiais<br />

correspondia à hierarquia social e econômica. 60 A milícia <strong>de</strong>veria zelar pela manutenção<br />

da or<strong>de</strong>m e da hierarquia. O acesso a cargos oficiais estava intrinsecamente ligada às<br />

relações com as elites regionais. Por indicação e pressão, os filhos dos membros<br />

hierárquicos mais altos na Guarda Nacional gozavam do direito <strong>de</strong> entrar na milícia em<br />

postos medianos, po<strong>de</strong>ndo facilmente guardar melhores colocações.<br />

O tenente possuía algumas terras e mais <strong>de</strong> 80 animais. Para trabalhar em suas<br />

terras contava com dois escravos. Possuía um monte-mor <strong>de</strong> 5:478$570 * , e mais <strong>de</strong><br />

1:000$000 em dívidas passivas, o que o situava em uma faixa intermediária <strong>de</strong> riqueza e<br />

diretamente ligado a um mercado <strong>de</strong> créditos, tipo mais mercantilizados <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong><br />

econômica. 61<br />

Através <strong>de</strong>ste indivíduo, com um patrimônio, no final das contas, mo<strong>de</strong>sto,<br />

quero <strong>de</strong>monstrar que as famílias, mesmo que prestigiadas, eram muito diferenciadas<br />

internamente. Trata-se da enorme propensão da socieda<strong>de</strong> brasileira e das socieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

Antigo Regime <strong>de</strong> uma maneira geral <strong>de</strong> produzir fortíssimas hierarquizações, mesmo<br />

que no interior das famílias.<br />

Através do inventário <strong>de</strong> Dona Maria Ursulina Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sá, realizado nove<br />

anos <strong>de</strong>pois da morte do tenente, vemos que as mesmas terras e principalmente a mesma<br />

casa <strong>de</strong> morada em São José outrora pertencentes ao tenente, passou a ela,<br />

<strong>de</strong>monstrando a tendência à permanência das proprieda<strong>de</strong>s pouco divida e entre os<br />

membros da família entre os mais abastados. Segundo Kuznesof, a <strong>de</strong>sejável não<br />

dispersão dos patrimônios <strong>de</strong>vido à característica das leis <strong>de</strong> herança no Brasil, fazia<br />

59 Castro, Jeanne B. A milícia Cidadã: A guarda Nacional <strong>de</strong> 1831 a 1850. Ed. Nacional, Brasília, 1977.<br />

60 Carvalho, Jose Murillo. Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão conceitual. Scielo, v.<br />

40, n. 2, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1997. Castro, Jeanne Berrance, opus cit.<br />

* Divisão em faixas <strong>de</strong> fortunas que utilizo para para estabelecer níveis <strong>de</strong> riqueza <strong>de</strong> acordo com os<br />

valores dos montes-mores: Menor que 2:000$; <strong>de</strong> 2:000 a 4:999; <strong>de</strong> 5:000 a 10:000. Com valores<br />

<strong>de</strong>flacionados para o ano <strong>de</strong> 1872; doravante, sempre que houver citação <strong>de</strong> valores estes se apresentarão<br />

<strong>de</strong>flacionados, salvo indicação ao contrário.<br />

61 Sampaio, Antonio Carlos Jucá <strong>de</strong>. Na encruzilhada do Império: hierarquias sociais e conjunturas<br />

econômicas no Rio <strong>de</strong> Janeiro (c.1650 – c.1750). Rio <strong>de</strong> Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, Cap. 4.<br />

43


com que os negócios pertencentes e administrados por famílias se tornasse a forma<br />

predominante <strong>de</strong> organização econômica no Brasil colonial e que ainda hoje perdura. 62<br />

No processo do inventário <strong>de</strong> Dona Maria Ursulina Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sá, falecida no<br />

ano <strong>de</strong> 1882, não há referência a nenhum gasto com ritos fúnebres. Porém, há anexado<br />

recibos <strong>de</strong> serviços prestados por diferentes pessoas relacionados ao seu funeral.<br />

Somando-se os gasto tem-se um total <strong>de</strong> 440$000, muito mais acima da média que<br />

encontrei para o período <strong>de</strong> 1880 a 1886. i Nos recibos encontram-se vários itens<br />

relacionados com o ritual fúnebre como panos, luvas, velas, e outros mais relacionados<br />

com a feitura do caixão, como taxas, parafusos, argolas e ca<strong>de</strong>ados. Um item<br />

interessante no quesito religioso presente nos recibos <strong>de</strong> dona Maria Ursulina é a<br />

<strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> uma missa <strong>de</strong> réquiem e mementos no funeral, realizados por Francisco<br />

Alves Pereira <strong>de</strong> Araújo, provavelmente um músico que prestava este tipo <strong>de</strong> serviço<br />

para diversas pessoas. O memento era composto <strong>de</strong> músicas que celebrassem o ato<br />

fúnebre. 63 Privilégios <strong>de</strong> poucos, o formato <strong>de</strong>sta cerimônia nos informa a importância<br />

<strong>de</strong> Maria Ursulina na região.<br />

Em 1878, morre outro membro <strong>de</strong>sta família, o padre Matias Carneiro Men<strong>de</strong>s<br />

Sá aos 65 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ixando um dos maiores legados <strong>de</strong> sua geração. Aliás, ele foi<br />

uma das pessoas mais ricas da vila <strong>de</strong> São José dos Pinhais em toda a segunda meta<strong>de</strong><br />

do século XIX, com um monte-mor superior a 19:000$000 (<strong>de</strong>zenove contos <strong>de</strong> réis).<br />

Dentre os inventariados no período <strong>de</strong> 1852 a 1886, ele possuí a sexta maior riqueza.<br />

Pelos seus bens <strong>de</strong>scritos no seu inventário, iniciado no mesmo ano <strong>de</strong> sua morte,<br />

notamos que o padre possuía diversas partes <strong>de</strong> terra na vila <strong>de</strong> São José e uma parte <strong>de</strong><br />

terra em Santo Amaro, termo <strong>de</strong> Castro. Em suas terras havia vários animais, alguns<br />

provavelmente eram locados para transporte <strong>de</strong> cargas para outras regiões ou mesmo<br />

pela região: éguas, potros, cavalos e cangalhas (armação que sustenta a carga no lombo<br />

<strong>de</strong> animais) sugerem esta função em um mundo rural. Num ambiente on<strong>de</strong> a auto-<br />

subsistência sinalizava um dos poucos meios <strong>de</strong> sobrevivência, a presença <strong>de</strong> vacas,<br />

novilhos e objetivos utilizados na caça, como espingardas, contidos no inventário do<br />

padre Matias, serviram para a geração <strong>de</strong> gêneros para os próprios moradores da sua<br />

unida<strong>de</strong> produtiva.<br />

62 Kusnesof, Elizabeth. Property law and family strategies: inheritance and corporations in Brazil: 1800-<br />

1960. American Historical Association, Illinois. (mimeo)<br />

63 Recibos <strong>de</strong> gastos fúnebres. Inventários post-mortem. Procuração 45, maço 4, caixa. 6004. II Cartório<br />

da Vara Cível <strong>de</strong> São José dos Pinhais.<br />

44


Em seu inventário não há menção <strong>de</strong> posse <strong>de</strong> nenhum escravo. Porém, se<br />

levarmos em consi<strong>de</strong>ração que uma forma comum <strong>de</strong> legar bens a terceiros era a doação<br />

pré-mortem, 64 isto é, quando o indivíduo possuidor <strong>de</strong> bens se aproximava da morte ou<br />

a pressentia, po<strong>de</strong>ria facilmente fazer uma doação a quem <strong>de</strong>sejasse, po<strong>de</strong>mos cogitar<br />

que o padre pu<strong>de</strong>sse ter doado seus escravos em vida. Apesar <strong>de</strong> não haver referências<br />

claras a esta opção nos inventários, po<strong>de</strong>mos pon<strong>de</strong>rar que as doações representavam<br />

uma alternativa para gran<strong>de</strong>s proprietários que não queriam ter qualquer problema <strong>de</strong><br />

herança.<br />

O número significativo <strong>de</strong> doações realizadas por irmãos, leva Sampaio a<br />

chamar a atenção para a importância dos irmãos no encaminhamento da reprodução<br />

familiar. 65 Se esten<strong>de</strong>rmos essa alternativa para o sistema <strong>de</strong> herança, po<strong>de</strong>mos<br />

visualizar a família Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sá utilizando-se <strong>de</strong>stas estratégias. O tenente Candido<br />

Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sá, <strong>de</strong>ixa a gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong> seus bens para três <strong>de</strong> suas irmãs; o padre lega<br />

seus bens para suas irmãs entre outros parentes. Po<strong>de</strong>mos enten<strong>de</strong>r essas estratégias<br />

como uma tentativa <strong>de</strong> manter coesa a riqueza familiar, não a fragmentando.<br />

Mas o que é certo no inventário é que o padre utilizava mão-<strong>de</strong>-obra <strong>de</strong> negros.<br />

Em seu inventário aparece <strong>de</strong>scrito um contrato <strong>de</strong> locação <strong>de</strong> serviços por parte <strong>de</strong> um<br />

liberto. Mesmo que não possuísse nenhum escravo, o padre dispunha <strong>de</strong> uma mão-<strong>de</strong>-<br />

obra acostumada com o trabalho agrícola.<br />

Levando em consi<strong>de</strong>ração estas observações, iremos perceber que a maior parte<br />

dos vinte e quatro mais ricos, aqui consi<strong>de</strong>rados aqueles inventariados que possuíam um<br />

monte-mor superior a 10:000$000, eram donos <strong>de</strong> escravos. Em apenas dois casos entre<br />

os mais ricos havia ausência <strong>de</strong> escravos: Ana Ricarda, inventariada em 1873 e o<br />

próprio padre Matias Carmino Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sá. Para o primeiro caso, a não presença <strong>de</strong><br />

escravos po<strong>de</strong> parecer inexplicável num primeiro momento, pois a inventariada além <strong>de</strong><br />

ter possuído seis filhos, todos acima <strong>de</strong> 30 anos, possuía terras produtivas em diversas<br />

partes da vila: “terreno <strong>de</strong> ervais em Cachoeira”, “terreno lavradio e <strong>de</strong> erval no<br />

Campestre”, entre outros. Além <strong>de</strong> possuir mais <strong>de</strong> 70 animais como vacas, cavalos e<br />

bestas, espalhados pelas suas proprieda<strong>de</strong>s. Tudo isto sugere que <strong>de</strong>veria haver algum<br />

tipo <strong>de</strong>mão-<strong>de</strong>-obra que pu<strong>de</strong>sse movimentar toda estas proprieda<strong>de</strong>s, o que me leva a<br />

consi<strong>de</strong>rar duas alternativas: a)os escravos haviam sido dados aos filhos em vida para<br />

64 sobre doações ver Sampaio, Na encruzilhada, opus cit., p. 293.<br />

65 Ibi<strong>de</strong>m, p. 294<br />

45


evitar possíveis problemas judiciais ou; b)que Ana Ricarda utilizava mão-<strong>de</strong>-obra<br />

arrendada. As duas hipóteses po<strong>de</strong>m ser verda<strong>de</strong>s também para o caso do padre .<br />

Como um representante da classe dominante <strong>de</strong> São José dos Pinhais nos anos<br />

1870, e diretamente ligado à produção agrícola, o padre não po<strong>de</strong>ria estar distante do<br />

mercado <strong>de</strong> crédito que outras regiões experimentaram. 66 Em dívidas passivas (isto é,<br />

dívidas <strong>de</strong>vidas) <strong>de</strong>scritas no seu inventário, havia uma soma <strong>de</strong> 530$000. Já em dívidas<br />

ativas (a receber) o padre possuía uma quantia <strong>de</strong>vida <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> 13:000$000,<br />

representando 60% do total <strong>de</strong> seu monte-mor. Algumas vezes, parte das dívidas<br />

<strong>de</strong>scritas em inventários no século XIX, incluía gastos com ritos fúnebres, entretanto<br />

isto não ocorria com padres, que tinham todos os últimos rituais bancados pela Igreja.<br />

Então, através <strong>de</strong>stes números, po<strong>de</strong>mos inserir o padre Matias Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sá e vários<br />

membros <strong>de</strong> sua família em um mercado <strong>de</strong> crédito, muito importante para a aquisição e<br />

manutenção da proprieda<strong>de</strong> rural, para a compra <strong>de</strong> escravos e para suprir necessida<strong>de</strong>s<br />

do cotidiano. 67<br />

A or<strong>de</strong>m eclesiástica já possuía por si só um elemento que possibilitava a<br />

ascensão social. Através do estudo nos seminários, os padres aprendiam a ler e escrever<br />

e quando or<strong>de</strong>nados sacerdotes e postos à frente <strong>de</strong> uma paróquia, dispunham <strong>de</strong> uma<br />

gran<strong>de</strong> re<strong>de</strong> <strong>de</strong> influências que serviam como veículos para a prosperida<strong>de</strong> econômica.<br />

É <strong>de</strong>ste modo que o padre Matias Carneiro Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sá morre e <strong>de</strong>ixa diversos bens.<br />

Ao morrer, o padre institui como seus legatários diversos parentes seus que se<br />

encontravam residindo em outras regiões, como Curitiba, Campo Largo e Ponta Grossa.<br />

Esta lista <strong>de</strong> her<strong>de</strong>iros é muito importante pois <strong>de</strong>monstra que o padre queria manter<br />

suas proprieda<strong>de</strong>s no seio da família. E mais, a família espalhada pelas diversas regiões,<br />

traz à luz uma possível estratégia familiar <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong>. Citando Alida Mecalf, que<br />

estudou o contexto <strong>de</strong> uma vila em São Paulo no século XVIII, Hebe Mattos aponta que<br />

a migração era uma opção permanente nas estratégias <strong>de</strong> sobrevivência das famílias nas<br />

regiões rurais, na medida em que a concentração econômica e social, que <strong>de</strong>corre da<br />

expansão da produção mercantil-escravista, vai paulatinamente reduzindo as<br />

oportunida<strong>de</strong>s na região. Também se dispersavam os filhos pelas regiões vizinhas na<br />

busca <strong>de</strong> novos laços, que lhes garantisse o acesso a terra ou <strong>de</strong> outras formas <strong>de</strong><br />

sobrevivência. 68<br />

66 Ibi<strong>de</strong>m, Cap. 4<br />

67 Ibi<strong>de</strong>m, p. 187-188.<br />

68 Mattos, Hebe. Das cores, opus cit., p. 29<br />

46


Por ser padre, Matias Carneiro Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sá teve o funeral pago pela Igreja<br />

Católica <strong>de</strong> São José. Assim, não há referência em seu inventário sobre gastos com ritos<br />

fúnebres. Mas <strong>de</strong>vemos levar em conta o fato <strong>de</strong> que Igreja Católica no Brasil sempre<br />

buscou fortalecer a or<strong>de</strong>m social através da <strong>de</strong>monstração das hierarquias sociais. A<br />

hierarquia e a sua manifestação através <strong>de</strong> atos públicos, ajudavam a reproduzir uma<br />

certa or<strong>de</strong>m social que consolidava o po<strong>de</strong>r institucional da Igreja. A concepção<br />

barroca, que foi sedimentada ao longo dos séculos no Brasil como meio <strong>de</strong> dominação<br />

pelos portugueses, ajudou a fortalecer a idéia <strong>de</strong> pieda<strong>de</strong> dos funerais na mente da<br />

população brasileira dos séculos passados e <strong>de</strong> enfatizar a or<strong>de</strong>m. 69<br />

Assim, fica <strong>de</strong>monstrado o local ocupado na socieda<strong>de</strong> pelo padre Matias<br />

Carneiro Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sá, não somente como membro <strong>de</strong> uma elite eclesiástica, mas<br />

como membro <strong>de</strong> uma família que em muito tempo vinha sendo tradicional e importante<br />

na vila <strong>de</strong> São José dos Pinhais, os Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sá. Através da análise dos diversos<br />

membros que compunham esta família po<strong>de</strong>mos perceber algumas <strong>de</strong> suas estratégias<br />

<strong>de</strong> reprodução no mundo rural da região. Mesmo as opções pela batina e posições<br />

militares po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>radas como uma ação planejada pelo patriarca da família e<br />

mesmo do grupo familiar entre si, <strong>de</strong>vido à posição que um clérigo po<strong>de</strong>ria possuir em<br />

uma socieda<strong>de</strong> rural. 70<br />

A análise <strong>de</strong> seu inventário juntamente com o cruzamento <strong>de</strong> outros inventários<br />

e outras fontes trouxe à tona diversos elos <strong>de</strong> uma ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> estratégias perpetuadas<br />

durante muito tempo na região. A família Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sá, durante todo o século XIX<br />

uma das mais importantes da região, conseguiu alcançar seu local social através <strong>de</strong><br />

inúmeros atos que, olhando através <strong>de</strong> uma “lente social”, se configuram em estratégias<br />

<strong>de</strong> reprodução social.<br />

A presença <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> filhos solteiros e participantes da alta<br />

hierarquia política e administrativa, como tenentes e capitães no interior da família<br />

Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sá, ajuda a elucidar ativida<strong>de</strong>s que configuram estratégias familiares através<br />

das diferentes gerações. Bourdieu diz que é somente através <strong>de</strong> uma perspectiva<br />

longitudinal, ou seja através do tempo, que po<strong>de</strong>mos perceber <strong>de</strong>cisões que sugerem<br />

69 Ver MORSE, Richard M. O espelho <strong>de</strong> Próspero: cultura e idéias nas Américas. São Paulo: Cia das<br />

Letras, 1998; e SILVA, Luiz Geraldo. Carida<strong>de</strong> branca, união negra: Campo religioso e catolicismo<br />

barroco na América portuguesa (1706-1782). Mimeo.<br />

70 Aqui po<strong>de</strong>mos amalgamar dois modos diferentes <strong>de</strong> pensar o assunto, erigidas por Fredrerik Barth e<br />

Pierre Bourdieu: o primeiro mo<strong>de</strong>lo privilegia as estratégias <strong>de</strong> autores individuais e o segundo se foca<br />

nas estratégias coletivas, que famílias ou grupos aparentados perseguem. Ver: Viazzo, Píer Paolo e<br />

Lynch, Katherine A. Antropology, family history, and the concept of strategy. International Institute of<br />

social history, amsterdam, vol 47, 2002.<br />

47


estratégias <strong>de</strong> ação. 71 Foi exatamente o meu intento na presente seção, buscando<br />

conceber uma colcha <strong>de</strong> retalhos compostas pelas gerações da família Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sá ao<br />

longo do tempo, olhando para os indícios <strong>de</strong> estratégias familiares. Importante<br />

relembrar a discussão que Pierre Bourdieu e Giovani Levi levantam no sentido <strong>de</strong><br />

alertar <strong>de</strong> que as estratégias familiares não eram algo racional, e sim, resultado das<br />

experiências do grupo familiar ao longo do tempo, seriam mais estratégias <strong>de</strong> adaptação<br />

à um certo contexto, ten<strong>de</strong>ndo a buscar a reprodução do grupo no tempo.<br />

A idéia <strong>de</strong> reprodução da posição social estava fortemente presente no cotidiano<br />

dos homens e mulheres do século XIX. A história do padre Francisco <strong>de</strong> Paula Prestes,<br />

que passamos a expor, é exemplar neste sentido. Este padre, através <strong>de</strong> uma estratégia<br />

<strong>de</strong> reprodução social quis esten<strong>de</strong>r sua posição social e seu nome através <strong>de</strong> um filho e<br />

criar uma “linhagem”. Assim, se um padre tem a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reproduzir sua posição<br />

social, po<strong>de</strong>mos estar convictos que toda a socieda<strong>de</strong> a tinha.<br />

Analisando os documentos, notamos que ao morrer, o padre Francisco <strong>de</strong> Paula<br />

Prestes <strong>de</strong>ixa três escravos, além <strong>de</strong> alguns bens <strong>de</strong> pouco valor comercial para seus<br />

parentes. O que <strong>de</strong> fato eles herdavam eram vantagens, digamos, imateriais, tais como a<br />

importância que a figura <strong>de</strong> um vigário podia acarretar. Deste modo, herdava-se mais o<br />

“nome” e a posição social do que qualquer bem. É o que acontece com o filho natural<br />

do padre que herda literalmente o nome do pai, acumula uma fortuna, e chega a se<br />

tornar Capitão na então vila <strong>de</strong> São Jose dos Pinhais.<br />

O estudo do caso do padre Francisco <strong>de</strong> Paula Prestes é também relevante no<br />

intuito <strong>de</strong> revelar mais informações acerca da vida clerical no Brasil dos séculos XVIII<br />

ao XIX. Deste modo, avançaremos um pouco mais na compreensão do lugar ocupado<br />

pelos padres na socieda<strong>de</strong> brasileira e a reprodução social, além <strong>de</strong> tocar em assuntos<br />

como a romanização da Igreja, o celibato dos padres e a ilegitimida<strong>de</strong>.<br />

Seção II. Patriarcalismo torto. Estudo do caso do Padre Francisco <strong>de</strong> Paula Prestes<br />

Buscando compreen<strong>de</strong>r a instituição da igreja católica no Brasil, vemos que esta<br />

foi criada em completa subordinação ao Estado. Após a In<strong>de</strong>pendência e o<br />

estabelecimento <strong>de</strong> um governo nacional que instaurou o regime monárquico em 1822,<br />

ela teve que enfrentar inúmeros problemas, tanto nas relações com o Estado e os fiéis<br />

como nas relações internas à própria instituição, ou seja, entre a hierarquia e os padres.<br />

71 Ibi<strong>de</strong>m, p. 295<br />

48


A igreja se empenhou muito para que o clero pu<strong>de</strong>sse exercer suas missões espirituais e<br />

sociais com dignida<strong>de</strong>. A tarefa foi dura, sobretudo porque ele estava habituado a uma<br />

disciplina frouxa, adotando atitu<strong>de</strong>s freqüentemente contrárias as da hierarquia 72 .<br />

Kátia Mattoso diz que o clero, no século XIX, conservava as mesmas<br />

características dos séculos passados. Insuficientemente formados para exercer sua<br />

missão sacerdotal, sem terem recebido uma preparação religiosa séria, os padres<br />

estavam muito mais impregnados <strong>de</strong> literatura profana que <strong>de</strong> letras latinas piedosas. 73<br />

A influência <strong>de</strong>sse clero sobre a alma popular continuava a ser gran<strong>de</strong>; mas o<br />

comportamento <strong>de</strong> boa parte <strong>de</strong>les levou os fiéis a estabelecer uma diferença entre o<br />

padre <strong>de</strong>ntro da Igreja, em sua função sagrada, e o padre na vida profana e cotidiana,<br />

que ele vivenciava como todo mundo.<br />

A questão do celibato foi <strong>de</strong>batida <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os primórdios da Igreja brasileira. Mas<br />

ela só foi entrar na pauta das discussões do Estado a partir <strong>de</strong> 1827. Os fiéis, junto com<br />

os bispos da Bahia e do Maranhão, se baseando no Concílio <strong>de</strong> Trento procuravam<br />

abordar aspectos teológicos, jurídicos e históricos com relação ao celibato. Para este<br />

lado conservador, a reforma moral do clero passava pela reforma geral dos costumes,<br />

por uma formação verda<strong>de</strong>iramente religiosa <strong>de</strong>ntro dos seminários e por uma rigorosa<br />

seleção dos candidatos ao sacerdócio.<br />

Para os reformadores liberais, o celibato era algo sem mérito. A hipocrisia que se<br />

instalara entre os sacerdotes atingia as bases morais da socieda<strong>de</strong>. Pôr fim ao celibato<br />

equivalia a prestar um imenso serviço aos cristãos. O Estado, através do parlamento<br />

<strong>de</strong>via agir nesse sentido, já que o celibato não tinha fundamento teológico: era apenas<br />

uma lei <strong>de</strong> direito eclesiástico.<br />

Diversos bispos <strong>de</strong> renome no Brasil propuseram uma reforma interna da Igreja<br />

entre as décadas <strong>de</strong> 1820 e 1840 74 . Com essência tri<strong>de</strong>ntina, o programa <strong>de</strong> reformas<br />

lançado por eles se resumia a três pontos: 1) Fazer do clero brasileiro um corpo<br />

instruído e sadio – o exercício <strong>de</strong> sua missão espiritual <strong>de</strong>veria suplantar suas ativida<strong>de</strong>s<br />

políticas; 2) trabalhar pela instrução religiosa do povo através da catequese e, 3)<br />

assegurar a in<strong>de</strong>pendência da Igreja em relação ao po<strong>de</strong>r temporal.<br />

72 Mattoso, Kátia M. <strong>de</strong> Queirós. Bahia, século XIX. Uma província no Império. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Ed. Nova<br />

Fronteira, 1992, p. 297<br />

73 Ibi<strong>de</strong>m, p. 308<br />

74 Ibi<strong>de</strong>m, p. 314<br />

49


Mas os esforços na tentativa <strong>de</strong> reformar o clero, principalmente com relação à<br />

questão do concubinato, se mostraram numerosos ao longo da presença da Igreja<br />

Católica no Brasil.<br />

A história da ação clerical no Brasil com relação ao estabelecimento e<br />

cumprimento <strong>de</strong> normas para o casamento, retroce<strong>de</strong> até o Concilio <strong>de</strong> Trento (1545-<br />

1563). Caracterizado por ser uma <strong>de</strong>fesa do catolicismo frente ao avanço do<br />

protestantismo, o Concílio não se empenhou em propor novas idéias ou combater aos<br />

reformadores, antes, se preocupou em reafirmar velhas concepções e dogmas. A Contra-<br />

reforma, como ficou conhecida, foi a reforma <strong>de</strong> uma igreja inquieta principalmente<br />

com a distância que a separava dos fiéis, para qual muito contribuía o <strong>de</strong>spreparo, o<br />

absenteísmo e a ineficácia do clero, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a alta hierarquia aos curas paroquiais.<br />

A situação do clero era particularmente dramática ao iniciar-se o século XVI, a<br />

começar pela freqüente ausência <strong>de</strong> vocação sacerdotal e qualificação profissional dos<br />

curas paroquiais. E era justamente na estrutura eclesiástica que residia as principais<br />

críticas dos protestantes, principalmente a questão do celibato dos padres, a qual Lutero<br />

chamava <strong>de</strong> hipócrita. 75<br />

E, ponto central da nova estratégia católica, sem o que nem a moral nem a<br />

religiosida<strong>de</strong> popular se tornariam genuinamente cristãs, cumpria remo<strong>de</strong>lar o corpo<br />

eclesiástico, profissionalizá-lo, sobretudo com a criação <strong>de</strong> seminários, zelar pela<br />

autorida<strong>de</strong> moral dos clérigos seculares ou regulares, sistematizando-se as inspeções<br />

diocesanas e vigiando-se, na medida do possível, as or<strong>de</strong>ns religiosas. No Brasil, porém,<br />

a tentativa <strong>de</strong> formar um clero “profissional” parece ter malogrado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início, o que,<br />

somando às fragilida<strong>de</strong>s da estrutura eclesiástica colonial, muito comprometeu a<br />

eficácia das resoluções tri<strong>de</strong>ntinas. 76 Como po<strong>de</strong> ser visto ao longo <strong>de</strong>ste estudo, essas<br />

normas <strong>de</strong> condutas para os padres continuaram a ser empregadas até o século XIX<br />

obtendo maiores resultados, porém o comportamento lascivo <strong>de</strong> alguns sacerdotes<br />

continuava a driblar as leis eclesiásticas.<br />

Ronaldo Vainfas, em sua obra Trópicos dos Pecados, procura estabelecer a<br />

“origem” dos pecados no Brasil, isto é, <strong>de</strong> como se comportavam sexualmente os<br />

indivíduos, inclusive os padres, no tempo colonial. Porém, po<strong>de</strong>-se notar certas<br />

permanências que ultrapassaram os séculos e continuaram presentes nos atos dos padres<br />

75 Vainfas, Ronaldo. Tropico dos pecados. Moral, sexualida<strong>de</strong> e Inquisição no Brasil. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Ed.<br />

Campus, 1989, p.10<br />

76 Ibi<strong>de</strong>m, p. 30<br />

50


do século XIX. Os pecados <strong>de</strong> que nos fala Vainfas, apesar <strong>de</strong> diminuídos no final <strong>de</strong>ste<br />

século, estão longe <strong>de</strong> <strong>de</strong>saparecerem, estando sim, mais ocultos.<br />

A fornicação, o sexo fora do casamento, foi o principal alvo da inquisição que se<br />

instaurou no Brasil entre os séculos XVI e XVIII. Nesse período, muitos padres diziam<br />

que a fornicação não era pecado, alguns chegaram até a utilizá-la como instrumento <strong>de</strong><br />

cura. 77<br />

Gilberto Freyre já teria dito que os nossos colonos tinham uma predisposição<br />

para se unir e se amasiar, mas não para casar. Vainfas alega que o fracasso ou limitação<br />

do casamento no Brasil se <strong>de</strong>u graças às dificulda<strong>de</strong>s encontradas pela maioria da<br />

população em aten<strong>de</strong>r às exigências burocráticas e financeiras do matrimônio<br />

eclesiástico, a instabilida<strong>de</strong> social e a mobilida<strong>de</strong> espacial das camadas pobres no Brasil<br />

colonial. Outro elemento que dificultava o casamento era o fato que a igreja impedia o<br />

casamento entre parentes até o quarto grau <strong>de</strong> consangüinida<strong>de</strong>, entre padrinhos e<br />

afilhados, e os que tivessem tido cópula ilícita com parentes (até o quarto grau <strong>de</strong><br />

consangüinida<strong>de</strong>) do outro cônjuge. Isso reduzia em muito as opções <strong>de</strong> matrimônio em<br />

uma região pequena. 78 O casamento, então, se configurava em uma opção das “classes<br />

dominantes” motivadas por interesses patrimoniais ou <strong>de</strong> status, restando o concubinato<br />

como alternativa sexual e conjugal para os <strong>de</strong>mais estratos da colônia. 79<br />

Entretanto, Vainfas encontrou diversos exemplos <strong>de</strong> pessoas paupérrimas que se<br />

casavam facilmente, sem gran<strong>de</strong> ônus ou complicações burocráticas, apesar da nova<br />

disciplina matrimonial estabelecida a partir <strong>de</strong> Trento. Para o autor, os segmentos<br />

pobres <strong>de</strong>ixavam <strong>de</strong> se casar no Brasil, não porque lhes fosse impossível enfrentar os<br />

obstáculos financeiros e burocráticos exigidos pelo matrimônio oficial, nem muito<br />

menos por terem escolhido qualquer forma <strong>de</strong> união oposta ao sacramento católico.<br />

Amancebavam-se, isto é, os casais uniam-se sem serem <strong>de</strong>vidamente casados, por falta<br />

<strong>de</strong> opção, por viverem, em sua gran<strong>de</strong> maioria, num mundo instável e precário, on<strong>de</strong> o<br />

estar concubinado era contingência da <strong>de</strong>sclassificação, resultado <strong>de</strong> não ter bens ou<br />

ofícios, da fome e da falta <strong>de</strong> recursos, não para pagar a cerimônia <strong>de</strong> casamento, mas<br />

77 Vainfas, Ronaldo (org.). Historia da sexualida<strong>de</strong> no Brasil, Rio <strong>de</strong> Janeiro: Ed. Graal, 1986, p. 15.<br />

Como no caso do padre que “exercia uma curiosa modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cura”. Quando visitava doentes do sexo<br />

feminino, tinha cópulas com elas ou com outras habitantes da casa, alegando que tais atos eram<br />

indispensáveis para que as enfermas recobrassem a saú<strong>de</strong>.<br />

78 Faria, Sheila, opus cit, p. 364<br />

79 Vainfas, Trópico, opus cit., p. 69<br />

51


para almejar uma vida conjugal minimamente alicerçada segundo os costumes sociais e<br />

a ética local. 80<br />

Queixas dos religiosos, escassez <strong>de</strong> casamentos, alto índice <strong>de</strong> bastardos, tudo<br />

parece indicar que as relações sexuais ocorriam, predominantemente, na esfera do<br />

concubinato. Ela representou a principal alternativa <strong>de</strong> vida amorosa e sexual para os<br />

“protagonistas da miséria”, mas constituiu, ainda, um hábito estendido a todo o Brasil,<br />

inclusive <strong>de</strong> padres mal afeitos ao celibato. 81 Mas a Igreja não se daria por vencida e<br />

continuou empregando forças na tentativa <strong>de</strong> reformar os costumes.<br />

Assim, a partir <strong>de</strong> 1840 até 1890, a igreja passou por uma fase <strong>de</strong><br />

“romanização”. Esboçou, então, um amplo movimento em favor da autonomia em<br />

relação ao Estado, afirmando-se que os brasileiros eram, antes <strong>de</strong> tudo, “católicos<br />

romanos” e não “católicos do conselho do Estado”. 82 A oposição entre Igreja e Estado<br />

foi alimentada pelas oposições doutrinárias da elite leiga do país. De modo geral, povo e<br />

elite não eram católicos no sentido estrito da doutrina ortodoxa. O “país legal” se<br />

<strong>de</strong>clarava católico, mas o “país real” vivia às margens da fé romana. Majoritariamente<br />

ignorante e iletrado, o povo vivia com uma religião que mantinha uma relação quase<br />

sensível com Deus e os santos, materializando em imagens. Assim, o papel do padre era<br />

relativamente pouco importante, já que a religiosida<strong>de</strong> popular se apoiava em<br />

orientações leigas (reza<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> terço, benzedores, etc) ou em imagens milagrosas e<br />

outros objetos protetores (medalhas, rosários, fitinhas, etc) munidos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r suficiente<br />

para resolver todas as situações. 83<br />

O celibato, embora confirmado pelo Concílio <strong>de</strong> Trento, foi no Brasil mais<br />

ficção do que realida<strong>de</strong>. Os padres brasileiros nunca obtiveram, é claro, permissão para<br />

casar, mas o episcopado mostrou-se tolerante àqueles que viviam em concubinato. Para<br />

os fiéis a transgressão a esse preceito tornava o padre indigno <strong>de</strong> sua alta missão e<br />

cobria <strong>de</strong> <strong>de</strong>sonra o estado clerical. 84<br />

À primeira vista, po<strong>de</strong>ria parecer que os filhos eram aci<strong>de</strong>ntais, já que a<br />

legislação eclesiástica proibia o concubinato, impondo severas sanções em caso <strong>de</strong><br />

transgressão. Os testadores, e nosso padre se inclui nesse grupo, justificavam seu erro<br />

80 Ibi<strong>de</strong>m, p. 87<br />

81 Ibi<strong>de</strong>m, p. 92<br />

82 Mattoso, opus cit., p. 315<br />

83 Ibi<strong>de</strong>m, p. 317<br />

84 Ibi<strong>de</strong>m, p. 345<br />

52


invocando a “fragilida<strong>de</strong> humana”, frases que tomam um sabor particular na boca <strong>de</strong><br />

homens consagrados à Igreja.<br />

De qualquer forma é somente no fim do século XIX que o concubinato se<br />

tornará “coisa escondida” e inconfessável. Tolerado, porém ignorado pela Igreja, e<br />

aceito pela socieda<strong>de</strong> sem discussão.<br />

Normalmente, as mulheres que se relacionavam com padres eram pertencentes a<br />

classes populares. Entravam na vida <strong>de</strong>les geralmente a serviço, <strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>cendo a<br />

interdição eclesiástica que exigia que as empregadas tivessem “ida<strong>de</strong> canônica”, isto é,<br />

mais <strong>de</strong> cinqüenta anos. O concubinato com um padre trazia muitas vantagens para tais<br />

mulheres, em termos <strong>de</strong> segurança e ascensão social, mesmo que as rendas do pároco<br />

não fossem muito gran<strong>de</strong>s. As crianças que nascessem <strong>de</strong>ssas uniões tinham futuro<br />

assegurado e freqüentemente prestigioso, pois quase todos os filhos <strong>de</strong> padres se<br />

inseriam nas camadas superiores da socieda<strong>de</strong>. 85 Isso po<strong>de</strong> ser exemplificado com o<br />

caso analisado, pois o filho do padre se torna Capitão na vila <strong>de</strong> São José dos Pinhais.<br />

O prestígio social do pai era extensivo à mulher e às crianças, mesmo que essas<br />

últimas só fossem reconhecidas – quando o fossem – por testamento. Numa socieda<strong>de</strong><br />

em que os nascimentos ilegítimos não eram obstáculo social – até porque eram mais<br />

regra que exceção -, ser filho ou filha <strong>de</strong> padre não mudava gran<strong>de</strong> coisa. Ao contrário,<br />

essa filiação era consi<strong>de</strong>rada um privilégio, já que facilitava o acesso a profissões e<br />

funções respeitadas. Para Gilberto Freyre, o processo <strong>de</strong> a<strong>de</strong>quação dos ilegítimos<br />

parece ter sido quase natural, ficando bem evi<strong>de</strong>nciada a falta <strong>de</strong> preconceito no caso<br />

dos filhos <strong>de</strong> padres, tão comuns na socieda<strong>de</strong> brasileira. Segundo o autor, em nenhum<br />

outro país católico os filhos ilegítimos, particularmente os <strong>de</strong> padre, tenham crescido em<br />

circunstâncias tão favoráveis. A imaginação popular atribuía aos filhos <strong>de</strong> padres sorte<br />

excepcional na vida. Frases como “feliz que nem filho <strong>de</strong> padre” era comum ouvir-se no<br />

Brasil. 86<br />

Exemplificando, po<strong>de</strong>-se perceber através do cruzamento <strong>de</strong> inventários, que o<br />

filho do nosso padre já possuía bens e uma certa importância durante a vida <strong>de</strong> seu pai.<br />

No inventário <strong>de</strong> Francisca Paula produzido em 1867, no qual os seus bens foram<br />

arrematados para saldar dívidas pen<strong>de</strong>ntes, notamos, na parte <strong>de</strong> dívidas <strong>de</strong>vidas, o<br />

nome <strong>de</strong> Francisco <strong>de</strong> Paula Prestes, antecedido por um título <strong>de</strong> major. 87 Isto leva-nos a<br />

85 Ibi<strong>de</strong>m, p. 348<br />

86 Freyre, Gilberto. Casa-Gran<strong>de</strong> e senzala. Ed. Record. Rio <strong>de</strong> Janeiro: 1996. P. 443-47<br />

87 Caixa 6001, procuração 22. II Cartório da Vara Cível <strong>de</strong> São José dos Pinhais.<br />

53


pensar que o padre dava apoio para que seu filho conseguisse acumular fortuna e obter<br />

títulos, pois <strong>de</strong> que outro modo explica-se o fato <strong>de</strong> que além <strong>de</strong> major este filho<br />

ilegítimo seja um fiador, ativida<strong>de</strong> exercida por aqueles que possuíam uma certa<br />

quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> capital disponível, fato raro numa região como São José dos Pinhais?<br />

Para tentar reverter toda a imoralida<strong>de</strong> iniciou-se uma forte discussão sobre a<br />

formação do clero. De forma geral, qualquer pessoa podia entrar em um seminário para<br />

se tornar sacerdote, entretanto muitos não viam o sacerdócio como algo que po<strong>de</strong>riam<br />

realizar e usavam seus estudos em outras profissões. Des<strong>de</strong> meados do século XIX<br />

houve mudanças no seminário <strong>de</strong> São Vicente, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> saía a maioria dos padres que<br />

atuavam no Brasil e, mudando as normas, passaram a <strong>de</strong>dicar-se exclusivamente a<br />

candidatos ao sacerdócio. Essa orientação correspondia melhor ao novo mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong><br />

Igreja, que <strong>de</strong>sejava separar o mundo espiritual e o material, clérigos e leigos. Os padres<br />

<strong>de</strong>viam ser formados para tornarem-se exclusivamente os “curas das almas”. Uma vez<br />

admitidos no seminário, essas crianças eram submetidas a uma severa disciplina durante<br />

os quatro anos <strong>de</strong> estudo. Os dias eram preenchidos com serviços religiosos e trabalho.<br />

Empregavam-se todos os meios – como reclusão no seminário e vigilância – para<br />

assegurar a moralida<strong>de</strong> e a aptidão dos candidatos, evitando o contato com a “corrupção<br />

do século”. 88<br />

Apontando as ações do Estado, Celeste Zenha mostra que ao longo do século<br />

XIX a justiça fortaleceu seu discurso com relação aos crimes sexuais, mas nem assim<br />

conseguiu exterminar <strong>de</strong> vez com eles. Por outro lado, porém, a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sses<br />

crimes foi fortemente brecada pelo sistema judicial Imperial.<br />

No Brasil o matrimônio erigiu-se como uma instituição imposta tanto pela Igreja<br />

quanto pelo Estado. Pela Igreja, por meio <strong>de</strong> um discurso sobre a moral conjugal e a<br />

indissolubilida<strong>de</strong> do casamento. Por intermédio do Estado, o casamento cristão se impôs<br />

como uma necessida<strong>de</strong> da elite dirigente, visando, por um lado, assegurar seus direitos<br />

patrimoniais. Toda essa discussão envolve normas, regras, práticas e discursos<br />

emanados do Estado Imperial e da Igreja, em direção à família e a população como um<br />

todo. Insere-se num quadro <strong>de</strong> transformações que envolve tanto a economia quanto a<br />

socieda<strong>de</strong> brasileira no final do século XIX. Porém, já partir da segunda meta<strong>de</strong> do<br />

novecentos, em nome da “civilização e da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>”, a população passava a ser<br />

alvo do Estado Imperial, com vistas a a<strong>de</strong>quá-la a novos padrões culturais europeus. Daí<br />

88 Mattoso, opus cit., p. 353<br />

54


a preocupação com a conduta moral, com a saú<strong>de</strong>, com a vida sexual dos casais e dos<br />

solteiros 89 . Procurou-se or<strong>de</strong>nar o meio social, afastando relações “impróprias” que<br />

fugiam ao controle da Igreja e do Estado.<br />

Por outro lado, Zenha revela que as regras sociais <strong>de</strong> cada comunida<strong>de</strong> tiveram<br />

um papel fundamental nessa normatização, já que muitas punições por <strong>de</strong>litos sexuais se<br />

baseavam nessas regras. 90 Talvez, <strong>de</strong>vido a alta taxa <strong>de</strong> ilegitimida<strong>de</strong> em São José dos<br />

Pinhais no século XIX 91 , essas regras <strong>de</strong> conduta moral estariam mais frouxas, abrindo<br />

uma brecha para que o padre Francisco <strong>de</strong> Paula Prestes tivesse um filho.<br />

Passando a refletir sobre a vida do filho do padre surge uma pergunta: Quem<br />

cuidou <strong>de</strong>le, já que a situação <strong>de</strong> padre não permitia que ele vivesse com seu pai?<br />

Muitos clérigos, preocupados com o futuro <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes, legitimaram-<br />

nos em testamentos. Através <strong>de</strong>les é possível conhecer o relacionamento dos religiosos<br />

com seus próprios filhos, mas em menor escala com as mulheres que os geraram. 92 A<br />

maioria dos testamentos, embora proce<strong>de</strong>ndo ao reconhecimento dos filhos, silenciava<br />

no que concernia às mães. Exemplo disso é o testamento do padre, que legitima um<br />

filho, mas omite informações acerca da maternida<strong>de</strong>:<br />

“Declaro que por fragilida<strong>de</strong> humana tenho um filho natural <strong>de</strong> nome Francisco <strong>de</strong> Paula<br />

Prestes Branco, cujo meu filho <strong>de</strong> nome Francisco <strong>de</strong> Paula Prestes Branco já reconheci por minha terra<br />

lavrada em data <strong>de</strong> hoje pelo Tabelião <strong>de</strong>sta Vila, cuja escriptura por este confirmo e instituo o dito meu<br />

filho, por único her<strong>de</strong>iro dos dois terços <strong>de</strong> meus bens (...)” 93<br />

Esse filho, que só foi reconhecido no mesmo dia em que o testamento foi<br />

redigido, com certeza não viveu com seu pai.<br />

Maria A<strong>de</strong>mir Peraro analisando diversos documentos para a região do Mato<br />

Grosso percebeu que o recurso aos parentes parece ter sido uma solução comum e<br />

recorrente no cuidado do filho ilegítimo, evi<strong>de</strong>nciando-se que a família era o espaço em<br />

geral escolhido para abrigar os nascidos fora do casamento formal. 94 Forma-se, <strong>de</strong>ste<br />

89 Peraro, Maria A<strong>de</strong>nir. Farda, saias e batinas: A ilegitimida<strong>de</strong> na paróquia Senhor Bom Jesus <strong>de</strong><br />

Cuiabá, 1853-90. Tese <strong>de</strong> doutorado, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Paraná, Curitiba, 1997, p. 165<br />

90 Zenha, Celeste. Casamento e ilegitimida<strong>de</strong> no cotidiano da justiça. IN: Vainfas, Ronaldo (org.).<br />

<strong>História</strong> da sexualida<strong>de</strong> no Brasil, opus cit., 127-140<br />

91 Sbravati, Myriam. Opus cit, p. 94-101, 151 (S. José apresentava uma taxa <strong>de</strong> 26% <strong>de</strong> ilegítimos na<br />

primeira meta<strong>de</strong> do século XIX, maior do que a taxa <strong>de</strong> São Paulo, para o mesmo período).<br />

92 Lewcowicz, Ida. A fragilida<strong>de</strong> do celibato. IN: Lima, L. L da Gama (org). Mulheres, padres e<br />

adúlteros. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Ed. Graal, 1986, p. 63<br />

93 Cx 6001, proc. Nº 14, Maço 2. II Cartório da Vara Cível <strong>de</strong> São José dos Pinhais, (grifo meu)<br />

94 Peraro, opus cit, p. 187<br />

55


modo, um patriarcalismo diferenciado daquele proposto por Gilberto Freyre, que se<br />

assemelha às idéias <strong>de</strong> Eni Mesquita Samara. 95<br />

O conceito <strong>de</strong> “família patriarcal” <strong>de</strong> Freyre implica uma forma específica <strong>de</strong><br />

organização do po<strong>de</strong>r e das funções familiares <strong>de</strong>ntro dos grupos <strong>de</strong> elite, além do<br />

pressuposto <strong>de</strong> que escravos e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes livres, incapazes <strong>de</strong> formar e reproduzir<br />

culturalmente suas próprias famílias, constroem sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> familiar em relação à<br />

casa-gran<strong>de</strong>. Dessa forma, o chefe do clã ou grupo <strong>de</strong> parentes cuidava dos negócios e<br />

tinha, por princípio, preservar a linhagem e a honra da família, exercendo sua autorida<strong>de</strong><br />

sobre a mulher, filhos e <strong>de</strong>mais <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes sob a área <strong>de</strong> seu interesse, que podia<br />

atingir várias famílias. Assim, a casa-gran<strong>de</strong> se consolidou como símbolo <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong><br />

socieda<strong>de</strong>, um núcleo doméstico para on<strong>de</strong> convergia a vida econômica, social e<br />

política. 96<br />

Estruturalmente, a família patriarcal, possuía uma característica dupla: <strong>de</strong> um<br />

lado, um núcleo central acrescido <strong>de</strong> outros membros, sendo composto pelo chefe da<br />

família, esposa e legítimos <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes: filhos e netos por linha materna ou paterna.<br />

De outro lado, uma estrutura periférica mais complexa e menos <strong>de</strong>lineada fazendo parte<br />

<strong>de</strong>la parentes, filhos ilegítimos ou <strong>de</strong> criação, afilhados, amigos, serviçais, agregados e<br />

escravos.<br />

A manutenção <strong>de</strong> relações entre os seus diversos componentes estava,<br />

basicamente, relacionada com os laços <strong>de</strong> sangue, parentesco fictício e um complexo<br />

sistema <strong>de</strong> direitos e <strong>de</strong>veres. A vinculação a esses agrupamentos permitia uma maior<br />

participação política, social e econômica na or<strong>de</strong>m patriarcal. E, se por um lado, para<br />

esses indivíduos era necessário procurar a proteção <strong>de</strong> uma família, para o patriarca<br />

também era interessante a sua manutenção, pois isso significava projeção política em<br />

uma socieda<strong>de</strong> em que o prestígio era medido pela quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> agregados que o<br />

seguiam.<br />

Porém, esse mo<strong>de</strong>lo “clássico” freyriano cabe a uma família rural pertencente à<br />

camadas abastadas da socieda<strong>de</strong>. Segundo Samara, para o estudo das populações da<br />

região mais ao sul, importam as diferenças regionais e as distinções <strong>de</strong> classe, pois<br />

nesse último ponto a organização familiar fazen<strong>de</strong>ira se distinguiu nitidamente da<br />

família nas classes inferiores. Nelas, o princípio dominante da sua formação é o<br />

95 Samara, Eni Mesquita <strong>de</strong>. As Mulheres, O Po<strong>de</strong>r e a Família: São Paulo, século XIX. São Paulo:<br />

Marco Zero, 1989.<br />

96 Ibi<strong>de</strong>m, p. 17<br />

56


concubinato e essa particularida<strong>de</strong> <strong>de</strong> organização enfraquece e dissolve o po<strong>de</strong>r do<br />

pater-famílias, tornando a estrutura <strong>de</strong>ssa família instável. Assim, para o sul do país, no<br />

final do século XVIII, há a predominância <strong>de</strong> famílias com estruturas mais<br />

simplificadas.<br />

Samara, então, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a tese da formação <strong>de</strong> famílias núcleos, com menor<br />

número <strong>de</strong> integrantes, em <strong>de</strong>trimento da casa-gran<strong>de</strong>, e esta nuclearida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser<br />

estendida para outras regiões consi<strong>de</strong>radas mais pobres, e São José se inclui neste<br />

padrão.<br />

Enfim, em uma socieda<strong>de</strong> on<strong>de</strong> instabilida<strong>de</strong> era quase que a regra, a mobilida<strong>de</strong><br />

dos indivíduos sendo uma característica essencial, e a pobreza algo que perpassava<br />

todos os níveis, como em São José dos Pinhais, o concubinato se transformou em<br />

padrão comum para pessoas que não tinham condições <strong>de</strong> se casar. E este padrão se<br />

tornou tão forte que nem um “vigário <strong>de</strong> Deus” escapava. A comparação do padre com<br />

um pai <strong>de</strong> família só po<strong>de</strong> ser feita se consi<strong>de</strong>rarmos o fato <strong>de</strong> que o Padre Francisco <strong>de</strong><br />

Paula Prestes tinha cuidados com seu filho durante sua vida. Se seu filho alcançou<br />

ascensão política e econômica na vila <strong>de</strong> São José, isto só se <strong>de</strong>veu aos cuidados<br />

paternalistas do padre. Pois <strong>de</strong> que outra forma um ilegítimo, morando com uma mãe<br />

solteira, po<strong>de</strong>ria acumular riquezas e prestígios?<br />

Apesar do imenso esforço em regulamentar a moral da população brasileira,<br />

empregado pelo Estado e pela Igreja, filhos ilegítimos continuavam a nascer. Mas, já no<br />

final do século XIX, com o Estado fortemente consolidado e seus po<strong>de</strong>res<br />

<strong>de</strong>senvolvidos, este padrão sofre uma gran<strong>de</strong> queda. Não obstante, casos como o do<br />

padre, ilustram uma permanência da ilegitimida<strong>de</strong>.<br />

Mas a ilegitimida<strong>de</strong> só po<strong>de</strong> ser entendida se analisado o contexto próprio em<br />

que ela se insere. E neste presente trabalho procurou-se justamente esboçar um quadro<br />

das principais características que formavam a socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> São José dos Pinhais. Como<br />

vimos, a extrema mobilida<strong>de</strong> dos indivíduos e a instabilida<strong>de</strong> da vida, em uma<br />

socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> trânsito, colaborava fortemente para o nascimento <strong>de</strong> filhos ilegítimos.<br />

E, em uma socieda<strong>de</strong> que se empenhava em acabar com os crimes sexuais, com<br />

esforços tanto do lado secular como do religioso, o exemplo do padre, no presente<br />

estudo, mesmo não sendo um indivíduo móvel, vem fortalecer a idéia do concubinato, e,<br />

por conseguinte, a ilegitimida<strong>de</strong> como algo universal, que atingia todos as regiões e<br />

perpassava todos os grupos socais, e extremamente presente ao longo da história do<br />

Brasil.<br />

57


Partindo do pressuposto <strong>de</strong> que a socieda<strong>de</strong> aceitava os filhos <strong>de</strong> padre, o nosso<br />

clérigo, por questões institucionais, não tinha condições <strong>de</strong> legitimar seu filho antes,<br />

tendo que mantê-lo em segredo, na casa <strong>de</strong> parentes, até a hora <strong>de</strong> redigir seu<br />

testamento, teoricamente próximo à hora <strong>de</strong> sua morte. Se revelasse a existência <strong>de</strong> um<br />

filho antes, po<strong>de</strong>ria ter atraído a sanha da alta hierarquia da Igreja, correndo o risco <strong>de</strong><br />

per<strong>de</strong>r a posição <strong>de</strong> padre. O seu filho possivelmente revelaria uma estratégia do padre<br />

para se tornar um patriarca em São José dos Pinhais, o que po<strong>de</strong>ria ser chamado <strong>de</strong> um<br />

patriarcalismo torto. 97 A ilegitimida<strong>de</strong> como sinal <strong>de</strong> patriarcalismo estaria, <strong>de</strong>ste modo,<br />

explicitada nas ações <strong>de</strong> um padre. Se tudo isso não verteu resultado para o padre, que<br />

morreu relativamente pobre, não po<strong>de</strong>mos dizer o mesmo <strong>de</strong> seu filho, que se tornará<br />

um emergente capitão da vila <strong>de</strong> São José dos Pinhais.<br />

Mesmo não tendo a <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong>talhada <strong>de</strong> seu funeral, po<strong>de</strong>mos perceber<br />

através do seu registro <strong>de</strong> óbito que seu enterro foi excepcional: foi acompanhado pelo<br />

pároco da vila e mais dois sacerdotes, além <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> fiéis. 98 Como foi<br />

argumentado atrás, quando tratei do padre Matias Carneiro <strong>de</strong> Sá, o funeral <strong>de</strong> padres<br />

era pago pela Igreja, assim esse gasto não era <strong>de</strong>scrito nos inventários. Entretanto, torno<br />

a apontar que não se po<strong>de</strong> subestimar estes gastos, pois a Igreja, se esforçava para<br />

<strong>de</strong>monstrar a toda a socieda<strong>de</strong> qual o local ocupado na hierarquia social por seus<br />

membros.<br />

A reprodução social como estratégia fica assim evi<strong>de</strong>nciada nas atitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sse<br />

padre, que conseguiu que seu filho herdasse sua influência na região. Não apenas uma<br />

influência obtida através do capital, mas sim através <strong>de</strong> relacionamentos e privilégios<br />

que não estavam à venda no mercado <strong>de</strong> bens. A conquista <strong>de</strong> influência, amplamente<br />

discutida por historiadores econômicos e da família, era algo advindo <strong>de</strong> relações<br />

fictícias, on<strong>de</strong> o prestígio estava somente a mão daqueles que estivessem dispostos a<br />

jogar o jogo das elites locais. Num universo rural a questão da ascensão econômica está<br />

diretamente relacionada com a ascensão social e com a obtenção <strong>de</strong> bens <strong>de</strong> prestígio,<br />

como os funerais, que <strong>de</strong>monstrassem a posição ocupada na hierarquia social. Os<br />

indivíduos inseridos num tal contexto social se viam “forçados” a reproduzir seu local<br />

ocupado nesta socieda<strong>de</strong>. 99<br />

97 De acordo com o termo usado por Luis dos Santos Vilhena, apud Gilberto Freyre, opus cit., p. 444.<br />

98 Registro <strong>de</strong> óbitos, 13/06/1872. Paróquia <strong>de</strong> São José dos Pinhais.<br />

99 Idéia cara a Pierre Bourdie, no sentido <strong>de</strong> que “a autorida<strong>de</strong> pessoal só po<strong>de</strong> perpetuar-se <strong>de</strong> forma<br />

duradoura através <strong>de</strong> ações que, praticamente, a reafirmam por sua conformida<strong>de</strong> com os valores<br />

58


Capítulo 3. Na hora da nossa morte. Ritos fúnebres como subsídio para a<br />

compreensão das hierarquias e estratégias sociais<br />

A <strong>História</strong> Social, junto com um <strong>de</strong>bate sempre aberto entre as <strong>de</strong>mais ciências<br />

como a antropologia, a etnologia e a sociologia, se mostra uma forte aliada no intuito <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>svendar como funcionava a máquina social das socieda<strong>de</strong>s passadas e visualizar os<br />

seus principais componentes. Com essa noção em mente, o objetivo da presente seção é<br />

jogar um pouco <strong>de</strong> luz sobre o <strong>de</strong>bate historiográfico acerca da ligação entre ritos<br />

fúnebres e reprodução social.<br />

Passaremos a analisar os ritos fúnebres bens <strong>de</strong> prestígio, on<strong>de</strong> os homens, ou<br />

melhor, o grupo estaria perpetuando uma hierarquia que não estava <strong>de</strong> toda presa ao<br />

mercado. Neste sentido, os ritos estariam se configurando em uma tentativa <strong>de</strong> perpetuar<br />

o nome da família e a sua posição social, para que se esten<strong>de</strong>ssem após a morte.<br />

Assim, os ritos fúnebres se configuram o local por excelência, ao longo dos<br />

séculos XVII e XIX, para a representação do local ocupado pelo morto na hierarquia<br />

social. Entretanto, não somente os “homens <strong>de</strong> grossa aventura” ten<strong>de</strong>m a utilizar tais<br />

estratégias, pois os menos abastados também irão disputar no interior da mesma<br />

socieda<strong>de</strong> a ascensão na hierarquia social. Deste modo, se faz necessário buscar<br />

métodos que analisem estes “dominados” e suas práticas no interior da socieda<strong>de</strong>.<br />

Sheila Faria investigando as famílias pobres na vila <strong>de</strong> São Salvador dos<br />

Campos dos Goitacases, <strong>de</strong>monstra como os rituais fúnebres repercutiam na vida<br />

material <strong>de</strong>ssas pessoas. Segunda a autora, os ritos fúnebres sinalizavam verda<strong>de</strong>iros<br />

espelhos das hierarquias, pois eram nestes atos que se apresentavam <strong>de</strong>scarnados<br />

qualquer pretensão <strong>de</strong> ascensão social ou <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> riqueza. Os testadores não<br />

tinham nenhuma dificulda<strong>de</strong> em dispor do máximo necessário para se realizar uma<br />

cerimônia que superasse as expectativas e que suprisse a necessida<strong>de</strong> da sua reprodução<br />

social. Os executores das or<strong>de</strong>ns testamentárias não <strong>de</strong>viam medir esforços para que se<br />

ficasse <strong>de</strong>vidamente representado o lugar que o morto ocupava na hierarquia social. 100<br />

Os ritos configurar-se-iam, assim, como uma tentativa <strong>de</strong> perpetuar o nome da<br />

família e a posição social <strong>de</strong> elite, para que se esten<strong>de</strong>ssem após a morte. Os pobres<br />

seriam afetados pelos costumes das elites e, na sua tentativa <strong>de</strong> comer um pedaço do<br />

bolo social, se esforçavam para <strong>de</strong>monstrar a sua importância naquilo que era<br />

reconhecidos pelo grupo”. Bourdie, Pierre. A reprodução da crença. Contribuição para uma economia<br />

dos bens simbólicos. Ed. Zouk. São Paulo: 2001.<br />

100 Faria, opus cit, p. 254-280<br />

59


consi<strong>de</strong>rado como algo essencial para os que tinham condições no século XIX, ou seja,<br />

ter uma boa morte.<br />

João José Reis faz uma análise <strong>de</strong>talhada dos ritos fúnebres na Bahia, na<br />

primeira meta<strong>de</strong> do século XIX, utilizando fontes cartoriais e fontes eclesiásticas. O<br />

autor analisa uma revolta popular ocorrida em 1836 contra um cemitério e investiga as<br />

causas <strong>de</strong>ste conflito. Segundo Reis, as populações estariam se rebelando contra o que o<br />

cemitério simbolizava, qual seja, a <strong>de</strong>cadência dos rituais fúnebres barrocos e a<br />

<strong>de</strong>ssacralização <strong>de</strong> seu mundo. Deste modo, o autor procurará compreen<strong>de</strong>r os<br />

significados que as cerimônias fúnebres e instituições presentes na hora da morte<br />

possuíam para as classes populares do Brasil dos novecentos e como o ritual barroco<br />

estaria em <strong>de</strong>cadência na primeira meta<strong>de</strong> do século XIX. 101<br />

Uma importante formulação <strong>de</strong> estudo das culturas subalternas foi proposta por<br />

Mikhail Bakhtin para o contexto da Ida<strong>de</strong> Média européia. O autor analisa a obra <strong>de</strong><br />

François Rabelais no contexto em que foi produzida: em meio ao que seria o último<br />

suspiro <strong>de</strong> influência da cultura popular sobre a cultura oficial. Procurando resquícios na<br />

obra <strong>de</strong>sse autor francês, Bakhtin percebe que a cultura popular, mesmo sendo<br />

autônoma, influenciava e era influenciada pela cultura oficial, ocasionando um<br />

intercâmbio cultural, uma “circularida<strong>de</strong> cultural”. 102 É <strong>de</strong>ste modo que se po<strong>de</strong><br />

perceber “heranças” populares na obra <strong>de</strong> Rabelais, um membro da cultura <strong>de</strong> elite.<br />

Assimilando e aprofundando este conceito, o micro-historiador Carlo Ginzburg<br />

propõe um método <strong>de</strong> análise da cultura popular inspirada na antropologia cultural. Em<br />

sua obra “O Queijo e os vermes”, investiga as idéias <strong>de</strong> um moleiro con<strong>de</strong>nado pela<br />

Inquisição através <strong>de</strong> um riquíssimo processo, mapeando cada influência sofrida por<br />

leituras que seriam inicialmente <strong>de</strong>stinadas à classe dominante.<br />

Neste livro Ginzburg <strong>de</strong>fine a cultura popular primeiramente como uma<br />

oposição à cultura letrada ou oficial das classes dominantes. Mas, por outro lado, a<br />

cultura popular se <strong>de</strong>fine também pelas relações que mantém com a cultura dominante,<br />

filtrada pelas classes subalternas <strong>de</strong> acordo com seus próprios valores e condições <strong>de</strong><br />

vida. Estas concepções foram herdadas, com algumas alterações, <strong>de</strong> Bakhtin. É a<br />

propósito <strong>de</strong>sta dinâmica entre os níveis culturais, popular e erudito – já que também a<br />

cultura letrada filtra à sua moda os elementos da cultura popular, que Ginzburg propõe a<br />

101 Reis, João José. A morte é uma festa. São Paulo: Companhia das Letras: 1999, p. 95<br />

102 Ver Bakhtin, Mikhail. A cultura popular na Ida<strong>de</strong> Média e no Renascimento: o contexto <strong>de</strong> François<br />

Rabelais. São Paulo: Hicitec; Brasília: Ed. UnB, 1999.<br />

60


sua visão do conceito <strong>de</strong> circularida<strong>de</strong> cultural. 103 Com o objetivo <strong>de</strong> penetrar nos<br />

estratos mais profundos da cultura popular, este autor se preocupará em analisar – em<br />

oposição à obra <strong>de</strong> Bakhtin – o ponto <strong>de</strong> vista das próprias classes subalternas, mas<br />

nunca esquecendo das trocas interculturais (Ginzburg, 1987).<br />

Entretanto, segundo Ginzburg, e mais tar<strong>de</strong> Peter Burke, após a Contra Reforma<br />

Católica no século XVI, a cultura popular se encontrava em um processo <strong>de</strong> franca<br />

marginalização, <strong>de</strong>vido aos discursos fortalecedores da ortodoxia religiosa. Assim, no<br />

século XVIII, a cultura “letrada” já estaria, para Burke, no processo final <strong>de</strong> “retirada”,<br />

relegando a cultura popular às classes mais baixas (Burke, 1999, cap. 9).<br />

No Brasil, entretanto, a “retirada” teria ocorrido mais tar<strong>de</strong>. Segundo o<br />

brazilianista Richard Morse, isso ocorreu <strong>de</strong>vido à opção <strong>de</strong> colonização ibérica, com a<br />

sedimentação do Barroco em terras brasileiras. Esta alternativa acabou por adiar a<br />

separação entre as culturas, permanecendo a instrumentalização da circularida<strong>de</strong> como<br />

um modo <strong>de</strong> dominação (Morse, 1998). Laura <strong>de</strong> Mello e Souza, investigando a<br />

mentalida<strong>de</strong> popular através dos processos inquisitoriais, também propõe outra data<br />

para a retirada da cultura erudita, situando-a entre os séculos XVIII e XIX. A separação<br />

entre os níveis no Brasil, com o intuito <strong>de</strong> “mo<strong>de</strong>rnizar” os costumes, foi levada a cabo<br />

pela Igreja e pelo Estado Mo<strong>de</strong>rno, iniciando no século XVII pela legitimação <strong>de</strong> uma<br />

repressão institucional, a Inquisição. (Souza, 1986)<br />

Enfim, levando em conta estes conceitos <strong>de</strong> cultura popular, as ações frente aos<br />

funerais nos remete à noção <strong>de</strong> circularida<strong>de</strong> dos níveis culturais, percebendo-os entre<br />

as pessoas livres com maiores condições econômicas e sociais e os escravos e pobres. O<br />

pensamento e as atitu<strong>de</strong>s em relação à morte eram adaptados e inseridos nos diferentes<br />

níveis culturais e, mesmo com o esforço combativo da Igreja e do Estado, a<br />

permanência da circularida<strong>de</strong> cultural nos funerais po<strong>de</strong> ser notada ainda no século<br />

XIX.<br />

Seção I. Ritos Fúnebres: da teoria e da prática<br />

Partindo <strong>de</strong> uma análise antropológica na análise dos ritos fúnebres percebe-se<br />

que a maneira <strong>de</strong> se pensar a morte nas socieda<strong>de</strong>s tradicionais é diferente das<br />

socieda<strong>de</strong>s atuais. Primeiramente, a linha que separaria a vida e a morte, o sagrado e o<br />

profano nas socieda<strong>de</strong>s tradicionais seria muito tênue. Em segundo lugar, nas<br />

103 Vainfas e Cardoso, Domínios, opus cit., p. 151<br />

61


socieda<strong>de</strong>s tradicionais os ritos, como um sentido religioso, possuíam a função <strong>de</strong> evitar<br />

danos espirituais e físicos e eram o elemento <strong>de</strong>finidor da passagem para o outro<br />

mundo.<br />

Para Malinowski, os ritos fúnebres se caracterizam como ritos <strong>de</strong> passagem, e<br />

sua utilização reduz o medo e a ansieda<strong>de</strong> e age como elemento <strong>de</strong> catarse, servindo<br />

como um veículo para a liberação das emoções e tensões reprimidas. Sem a existência<br />

<strong>de</strong>stes ritos o homem correria o risco <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r seu equilíbrio e sua integrida<strong>de</strong> mental.<br />

A morte, segundo Malinowski, é um acontecimento que perturba a vida afetiva dos<br />

parentes e amigos do <strong>de</strong>funto, e assim interrompe o ciclo normal e cotidiano da vida e<br />

ameaça a força <strong>de</strong> coesão do grupo. Deste modo, através dos ritos <strong>de</strong> sepultamento, se<br />

contribui para afastar as forças centrífugas da <strong>de</strong>sagregação, e as pessoas se esforçam<br />

para manter a “integração” do grupo. Assim, se recupera a or<strong>de</strong>m estável, no nível<br />

intelectual e emocional, capaz <strong>de</strong> dominar todos os eventos <strong>de</strong>sfavoráveis.<br />

Somando a estas teorias, Arnold Van Gennep, estudando ritos <strong>de</strong> passagem,<br />

dividiu as cerimônias fúnebres em ritos <strong>de</strong> separação e ritos <strong>de</strong> incorporação. Os<br />

primeiros teriam por objetivo constituir um elo <strong>de</strong> divisão entre o “mundo” dos vivos e<br />

o dos mortos. Os segundos, marcariam o início da “inclusão” do morto com o outro<br />

mundo. Entre a separação e a incorporação o morto permaneceria numa zona<br />

intermediária, entre este mundo e o outro, restando aos vivos a obrigação <strong>de</strong> cuidar<br />

espiritualmente para que ele complete a sua jornada. Os ritos <strong>de</strong> separação seriam o luto,<br />

o transporte do <strong>de</strong>funto, cerimônias <strong>de</strong> purificação em geral. Como ritos <strong>de</strong><br />

incorporação se encontram a extrema-unção e o próprio sepultamento do <strong>de</strong>funto.<br />

Assim, os ritos <strong>de</strong>veriam ser realizados <strong>de</strong> maneira satisfatória para que o morto não<br />

ficasse “perdido entre os dois mundos”. Se isso acontecesse, o morto po<strong>de</strong>ria tentar se<br />

reincorporar ao mundo dos vivos, e não o po<strong>de</strong>ndo, se tornaria alma penada. Porém se o<br />

morto conseguisse completar sua jornada, ele po<strong>de</strong>ria interferir pelos vivos e facilitar<br />

futuramente sua incorporação no mundo dos mortos. 104<br />

Uma outra argumentação pertinente acerca dos rituais seria a do antropólogo<br />

Émile Durkheim, que viu neles uma dupla faceta estrutural: o social e o religioso. Os<br />

ritos seriam capazes <strong>de</strong> amalgamar o tecido social, e estariam, <strong>de</strong>sta forma,<br />

subordinados ao aspecto sócio-cultural. Os ritos seriam espelho e caixa <strong>de</strong> ressonância<br />

do social. Para um dos seus seguidores, o antropólogo Victor W. Turner,<br />

104 Reis, opus cit, p. 89<br />

62


“as crenças e as práticas religiosas são algo mais que ‘grotescas’ reflexões ou<br />

expressões <strong>de</strong> relacionamentos econômicos, políticos e sociais [agora] estão chegando<br />

a ser consi<strong>de</strong>rados como <strong>de</strong>cisivos indícios para a compreensão do pensamento e do<br />

sentimento das pessoas sobre aquelas relações, e sobre os ambientes naturais e sociais<br />

em que operam.”<br />

Além <strong>de</strong>ssa importante faceta social que os ritos possuem, para Turner eles<br />

também são canalizadores dos sentimentos, tais como tristeza e ódio, e or<strong>de</strong>nadores do<br />

mundo. Isto é, os ritos contêm um conjunto <strong>de</strong> atos que tem com o objetivo organizar<br />

socialmente o meio em que está sendo executado. 105 É <strong>de</strong> acordo com essa noção que a<br />

Igreja e o Estado irão intervir nas comemorações barrocas, muitas vezes havendo uma<br />

amálgama <strong>de</strong>stas duas instituições na apresentação festiva. 106<br />

Deste modo, os ritos também serviam como elemento <strong>de</strong> exclusão social. À<br />

medida que indivíduos ou grupos iam enriquecendo sentia-se a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> empregar<br />

um ritual diferenciado, para fazer-se notar mais facilmente e conseguir subir com mais<br />

facilida<strong>de</strong> o <strong>de</strong>grau da escala social. (segundo R. K. Merton: Teoria social e estrutura<br />

social). Alguns antropólogos procuraram acentuar a transcrição simbólica das diferenças<br />

sociais presente nos ritos. Para estes, os ritos teriam o objetivo <strong>de</strong> <strong>de</strong>finir, legitimar e<br />

reconfirmar as diferenças <strong>de</strong> status entre grupos e sujeitos sociais diferentes. 107<br />

Assim, chegamos num ponto culminante: através da análise que esses autores<br />

realizaram acerca dos ritos, fica claro a importância <strong>de</strong>stes para o homem religioso e<br />

principalmente para o homem social. Pois, normalmente, este último necessitava estar<br />

subordinado àquele para po<strong>de</strong>r encontrar o caminho da ascensão social numa socieda<strong>de</strong><br />

permeada pela religiosida<strong>de</strong>. Neste ponto, entretanto, <strong>de</strong>vemos tomar cuidado para não<br />

julgar certas ações como puramente tendo em vista uma estratégia racional para<br />

conseguir calcar alguns <strong>de</strong>graus na hierarquia social.<br />

De uma forma ou <strong>de</strong> outra a representação da hierarquia estava fortemente<br />

presente nos funerais <strong>de</strong> outrora, estes se constituindo um verda<strong>de</strong>iro espelho das<br />

hierarquias sociais da época. Isto era algo que a Igreja católica juntamente com o Estado<br />

procurou acentuar ao longo dos séculos XVI ao XIX no Brasil. A hierarquia e a sua<br />

manifestação através <strong>de</strong> atos públicos, ajudavam a reproduzir uma certa or<strong>de</strong>m social<br />

que consolidava o po<strong>de</strong>r institucional da Igreja e do Estado. A concepção barroca, que<br />

105<br />

Turner, Victor W. O processo ritual: estrutura e anti-estrutura. Petrópolis: Vozes, 1974<br />

106<br />

Rudolf Braun, apud HOBSBAWN, Eric e RANGER, Terence (org.). A invenção das tradições. São<br />

Paulo: Ed. Paz e Terra, 2002, p. 14 , nota 4.<br />

107<br />

Terrin, Aldo. O rito: antropologia e fenomenologia da ritualida<strong>de</strong>. Paulus: São Paulo, 2004. p. 90.<br />

63


foi sedimentada ao longo dos séculos no Brasil como meio <strong>de</strong> dominação pelos<br />

portugueses, ajudou a fortalecer a idéia <strong>de</strong> pieda<strong>de</strong> dos funerais na mente da população<br />

brasileira dos séculos passados e <strong>de</strong> enfatizar a or<strong>de</strong>m. 108 Assim, através da conseqüente<br />

unificação dos ritos, as suas repetições funcionariam como um elemento <strong>de</strong><br />

fortalecimento das estruturas sociais existentes, mantendo e preservando as hierarquias<br />

religiosas e seculares.<br />

A Igreja inicialmente e o Estado mais tar<strong>de</strong>, compreendo a importância da morte<br />

no mundo barroco, procurarão apoiar as festas religiosas, inclusive os funerais, numa<br />

tentativa <strong>de</strong> fortalecer a or<strong>de</strong>m. O catolicismo barroco teria então como um dos<br />

principais elementos a reprodução do mundo social, que se constituía em fortes<br />

mecanismos <strong>de</strong> controle social. Os rituais fúnebres barrocos, com toda a sua pompa,<br />

seriam importantes instrumentos <strong>de</strong> reprodução da hierarquia social, e as irmanda<strong>de</strong>s se<br />

configurariam um veículo fundamental <strong>de</strong>ste catolicismo lúdico, dando oportunida<strong>de</strong> às<br />

seus membros para que tivessem uma “boa morte” e assim estivessem se situando<br />

a<strong>de</strong>quadamente no prédio social.<br />

Para a população em geral, a vida religiosa tinha gran<strong>de</strong> importância. A religião,<br />

e mais, os ritos, teriam a função antropológica <strong>de</strong> or<strong>de</strong>nar o mundo social, e é<br />

justamente através <strong>de</strong>les que uma parcela da população se “esforçará” para manter<br />

coeso o universo em que viviam. A próxima seção tratará do elemento religioso na<br />

estrutura mental da população brasileira dos séculos passados.<br />

Seção II. A vida religiosa no Brasil<br />

Graças às constantes imigrações – forçadas ou não – <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a vinda dos<br />

portugueses, o Brasil foi se configurando como um gran<strong>de</strong> cal<strong>de</strong>irão cultural, com<br />

homens <strong>de</strong> diversas origens e crenças. A proximida<strong>de</strong> <strong>de</strong> negros, brancos e índios<br />

produziu uma profusão <strong>de</strong> crenças e costumes que torna extremamente difícil <strong>de</strong>tectar<br />

os resultados das variadas combinações que se estabeleceram ao longo da história<br />

brasileira com os documentos existentes. Isto ocorre com aspectos corriqueiros, como a<br />

morte, que se apresenta assaz diversificada.<br />

Todavia, é inegável que a religião oficial, o cristianismo, prepon<strong>de</strong>rava sobre as<br />

outras em particular no discurso para os próprios órgãos eclesiásticos, e, infelizmente, é<br />

só <strong>de</strong>les que se têm registros e não <strong>de</strong> outras religiões presentes no Brasil colonial e<br />

108 Ver MORSE, Richard M. opus cit e SILVA, Luiz Geraldo, opus cit.<br />

64


imperial. Para (a historiadora) Sheila <strong>de</strong> Castro Faria este fato limita o estudo das<br />

atitu<strong>de</strong>s que antece<strong>de</strong>ram o ato <strong>de</strong> morrer e quais seriam as últimas disposições do<br />

futuro <strong>de</strong>funto, reduzindo-os ao discurso frente à Igreja Católica. Entretanto, po<strong>de</strong>-se<br />

conceber que muitos dos elementos cristãos faziam parte do universo mental dos<br />

homens <strong>de</strong>ste período, principalmente pela gran<strong>de</strong> pressão que a Igreja fazia neste<br />

sentido, mesmo possuindo eles outras crenças.<br />

Desta maneira, a Igreja Católica representa uma importante instituição no Brasil<br />

para se estudar as mentalida<strong>de</strong>s e as formas rituais que se formavam nessa socieda<strong>de</strong>.<br />

Através <strong>de</strong>la eram registrados momentos essenciais na vida e na morte, como<br />

nascimentos, casamentos e óbitos, e é através <strong>de</strong>sses acontecimentos, do qual<br />

participavam escravos, forros, livres, pobres e ricos, que se po<strong>de</strong> tomar conhecimento<br />

sobre algumas atitu<strong>de</strong>s dos homens no Brasil dos séculos passados. Segundo Faria, as<br />

análises individuais <strong>de</strong>ssas atitu<strong>de</strong>s se configuram “importantes e significativas, que<br />

representam marcas específicas nos espaços sociais”. 109 Isto é, cada atitu<strong>de</strong> apresentada<br />

frente os diferentes momentos na vida religiosa <strong>de</strong> um homem, podia <strong>de</strong>ixar uma<br />

assinatura na socieda<strong>de</strong> em que vivia. Este era um fator que ocorria <strong>de</strong> maneira<br />

exemplar no caso dos ritos fúnebres que analisarei no presente capítulo.<br />

Na socieda<strong>de</strong> brasileira colonial e imperial podiam ser percebidas uma gran<strong>de</strong><br />

familiarida<strong>de</strong> e proximida<strong>de</strong> com a morte e os mortos. Morria-se em casa e ali também<br />

se velava o <strong>de</strong>funto. A casa do morto era aberta a todos, mesmo <strong>de</strong>sconhecidos,<br />

tornando a hora da morte e os próprios mortos públicos. Os corpos eram enterrados<br />

<strong>de</strong>ntro e em torno das igrejas constituindo assim a ida à igreja também uma visita aos<br />

mortos. Enfim, uma socieda<strong>de</strong> on<strong>de</strong> a morte estava fortemente “domesticada” para usar<br />

o termo cunhado pelo historiador francês Philippe Ariès. 110<br />

São José dos Pinhais em meados do século XIX ainda possuía estas<br />

características. Os enterros <strong>de</strong>ntro ou no território próximo às igrejas continuavam a<br />

acontecer com freqüência. Uma especificida<strong>de</strong> que corrobora esta proximida<strong>de</strong> com a<br />

morte é o fato <strong>de</strong> que em São José o cemitério foi construído muito próximo das casas<br />

no centro da cida<strong>de</strong>, o que levantará suspeitas no final do século XIX em plena<br />

ativida<strong>de</strong> sanitarista.<br />

Essa proximida<strong>de</strong> com a morte se dava pela característica da mesma nas diversas<br />

cida<strong>de</strong>s do Brasil dos séculos passados. Doenças apresentavam-se quase sempre<br />

109 Faria, Sheila, opus cit., p. 452<br />

110 Ariès, Philippe. O homem diante da morte. Ed. Francisco Alves. Rio <strong>de</strong> Janeiro: 1981<br />

65


mortais, sendo as crianças as mais atingidas. Os partos complicavam-se com freqüência,<br />

vitimando inúmeras mulheres e crianças, no momento e após o parto. Havia também<br />

mortes “repentinas” ou “apressadas” que <strong>de</strong>stoavam da morte esperada – lenta e<br />

progressiva. A morte <strong>de</strong>sejada era vagarosa e quando não ocorria <strong>de</strong>sta forma, aparecia<br />

assinalado nos registro <strong>de</strong> óbitos paroquiais. A <strong>de</strong>sconfiança nos séculos passados era<br />

motivo <strong>de</strong> registro, tanto por ter sido um marco do passado religioso – Deus enviou um<br />

castigo na forma <strong>de</strong> morte repentina, como por pretenso suicídio. 111<br />

As complicações se multiplicavam em cida<strong>de</strong>s afastadas dos gran<strong>de</strong>s centros<br />

urbanos as quais não possuíam cuidados médicos a<strong>de</strong>quados. Através dos registros <strong>de</strong><br />

óbitos da primeira meta<strong>de</strong> do século XVIII, po<strong>de</strong>-se perceber como os padres, na<br />

qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escreventes, possuíam pouca noção dos males que acometiam seus fiéis.<br />

Apenas apareciam expressões como: “morreu apressadamente”, “<strong>de</strong>savisada”, isto é<br />

louca, “doença violenta”, “uma ferida”. O “diagnóstico” era muito mais baseado em<br />

sinais externos e visíveis do que por qualquer conhecimento médico. É somente a partir<br />

da década <strong>de</strong> 1880 com uma maior preocupação sanitária, que começam a virem<br />

médicos para São José, substituindo os farmacêuticos que atuavam <strong>de</strong> forma amadora<br />

na região. Tem início uma “morte medicada”, buscando-se dar diagnósticos exatos (ou<br />

quase) acerca da causa mortis. Isso se reflete nos registros <strong>de</strong> óbitos do período, que<br />

passam a relatar essas causas. Doenças como hepatite, diversas inflamações, e tifo já<br />

começam a ser diagnosticadas.<br />

O fato é que, até um maior <strong>de</strong>senvolvimento da medicina o que não se <strong>de</strong>u no<br />

século XIX, a doenças mortais continuavam a ser temidas. Assim, em face à essa força<br />

imperiosa da morte, se fazia necessário estar preparado para ela. E os testamentos se<br />

configuraram em uma peça importante neste momento <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro. Este documento,<br />

<strong>de</strong>signando as últimas vonta<strong>de</strong>s do testador, normalmente era redigido quando este<br />

sofria <strong>de</strong> doenças graves, quando a morte estava perto, e neles eram apontados cuidados<br />

com os rumos da família e outras pessoas próximas. Era comum aparecerem <strong>de</strong>scritos<br />

arrependimentos por pecados da carne, aos quais chamavam <strong>de</strong> “fragilida<strong>de</strong> humana”,<br />

reconhecendo filhos bastardos ou confirmando reconhecimentos já feitos. Nestes<br />

testamentos nunca estava ausente o caráter religioso. O patrocínio a instituições pias<br />

como igrejas e irmanda<strong>de</strong>s era testemunho <strong>de</strong> pieda<strong>de</strong> cristã e era altamente valorizado<br />

111 Faria, Sheila opus cit, pg. 204<br />

66


como expediente <strong>de</strong> salvação. As alforrias eram concedidas pelos senhores <strong>de</strong> escravos<br />

na esperança <strong>de</strong> que essa atitu<strong>de</strong> fosse pesada à seu favor no julgamento final. 112<br />

A possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o testador dispor livremente <strong>de</strong> um terço <strong>de</strong> sua meta<strong>de</strong> dos<br />

bens se fosse casado resultava, obviamente, na diminuição da fortuna dos her<strong>de</strong>iros,<br />

principalmente porque, na maioria das vezes, essa parte era gasta com ritos fúnebres e<br />

obras religiosas. Para as pessoas da época, a redução da herança não causava estranheza,<br />

pois a salvação da alma era o objetivo capital daqueles que se aproximavam da morte.<br />

Em São Jose, há referências <strong>de</strong> gastos superiores a um terço da fortuna do <strong>de</strong>funto com<br />

os ritos fúnebres.<br />

Entretanto, essa postura <strong>de</strong> liberalida<strong>de</strong> com os bens terrenos frente à<br />

proximida<strong>de</strong> da morte possuía uma faceta dupla. Esse aparente <strong>de</strong>sprendimento dos<br />

moribundos dos bens materiais resultava essencialmente da preocupação que se tinha<br />

com a sua representação social. Não se <strong>de</strong>viam medir esforços para que se ficasse<br />

<strong>de</strong>vidamente representado o lugar que o <strong>de</strong>funto ocupava na hierarquia social.<br />

Um outro momento importante após a morte era o pagamento <strong>de</strong> dívidas, pois<br />

quase todos as possuíam. Nesse sentido, os testadores se preocupavam em enumerar<br />

todas as pessoas a quem <strong>de</strong>viam, prevendo que o pagamento se <strong>de</strong>sse o mais rápido<br />

possível, após sua morte. A hora da morte transformava-se na prestação <strong>de</strong> contas dos<br />

bens terrenos. Como a lei <strong>de</strong>terminava, mesmo que um dos cônjuges sobrevivesse, as<br />

dívidas do casal eram amortizadas neste momento. 113 Inclusive, algumas vezes<br />

apareciam enumeradas, sem qualquer ressalva, dívidas à santos.<br />

Somando-se as dívidas, os gastos fúnebres, as disposições testamentárias e o<br />

número elevado <strong>de</strong> filhos, era <strong>de</strong> se esperar que os her<strong>de</strong>iros recebessem uma pequena<br />

parcela da fortuna paterna. A morte representava, portanto, um momento<br />

particularmente arriscado para as unida<strong>de</strong>s domésticas, uma vez que parte consi<strong>de</strong>rável<br />

dos bens era fragmentada nas partilhas igualitárias.<br />

Contudo, um fato importante <strong>de</strong>ve ser levado em consi<strong>de</strong>ração: a gran<strong>de</strong> maioria<br />

da população dos séculos passados não produzia testamentos. Uns por não terem<br />

condições econômicas, outros pela forma da morte (impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escrever, falar<br />

ou morte repentina). Porém, a historiografia sobre o tema tem salientado que a feitura <strong>de</strong><br />

testamentos era algo que estava ao alcance <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> parcela da população, mas<br />

muitos não o faziam por condições diversas, que não se relacionava com a negação <strong>de</strong><br />

112 Reis, João José Reis. Opus cit, p. 95<br />

113 Faria, Sheila, opus cit., p. 204<br />

67


fazê-lo. De modo geral, a expectativa era <strong>de</strong> que, sendo possível, se redigissem as<br />

últimas vonta<strong>de</strong>s. Essa perspectiva se dava pelo fato <strong>de</strong> que os testamentos não eram<br />

confeccionados com o único intuito <strong>de</strong> <strong>de</strong>legar bens a her<strong>de</strong>iros.<br />

Kátia Mattoso notou, através <strong>de</strong> testamentos <strong>de</strong> escravos libertos na Bahia no<br />

século XIX, que também se redigiam testamentos quando era necessário impedir que<br />

surgisse um problema <strong>de</strong> herança, quando a situação legal e o estado civil dos eventuais<br />

her<strong>de</strong>iros não eram perfeitamente claros, quando as riquezas que usufruía o testador não<br />

lhe pertenciam <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> - ou porque ele tinha dívidas, ou porque <strong>de</strong>sses bens só tinha<br />

o usufruto e não a proprieda<strong>de</strong> plena. Também se produziam testamentos para proteger<br />

a amásia, um filho natural, ainda não reconhecido * , um compadre ou um amigo. 114 Em<br />

São José há inclusive um caso <strong>de</strong> um padre que reconhece seu filho no testamento.<br />

A ausência <strong>de</strong> bens, a princípio, embora não necessariamente, tornava o ato <strong>de</strong><br />

testar vazio <strong>de</strong> sentido. Assim a confecção <strong>de</strong> um testamento – tida como um elemento<br />

basilar na preparação para uma “boa morte” – era algo apenas tangível para os<br />

proprietários <strong>de</strong> bens.<br />

Ao produzirem um testamento, esses poucos “privilegiados” <strong>de</strong>sejavam que suas<br />

últimas vonta<strong>de</strong>s fossem cumpridas. Para tanto, contavam com o amparo da lei, através<br />

da fiscalização <strong>de</strong> juízes pre<strong>de</strong>terminados pelas autorida<strong>de</strong>s municipais. Ao testador<br />

cabia a indicação <strong>de</strong> seus testamenteiros (normalmente em número <strong>de</strong> três), em or<strong>de</strong>m<br />

<strong>de</strong> preferência. Um dos testamenteiros seria incumbido <strong>de</strong> levar à cabo as <strong>de</strong>signações<br />

testamentárias que, apesar <strong>de</strong> possuir um prazo para serem executadas, nunca eram<br />

satisfeitas <strong>de</strong>ntro do tempo estabelecido. O processo todo, chamado <strong>de</strong> “contas <strong>de</strong><br />

testamento”, podia durar muitos anos e se esten<strong>de</strong>r por várias páginas, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo da<br />

complexida<strong>de</strong> das disposições. 115<br />

As escolhas dos testamenteiros eram norteadas pelas relações familiares,<br />

principalmente da família nuclear. Deve-se levar em consi<strong>de</strong>ração que a realização das<br />

tarefas contidas nos testamentos não era fácil e nem sempre os indicados tinham<br />

condições <strong>de</strong> arcar com sua execução. Segundo Sheila Faria, a indicação <strong>de</strong> um cônjuge<br />

para executar as vonta<strong>de</strong>s testamentárias sugere uma vida comum sem gran<strong>de</strong>s<br />

conflitos, já que na realida<strong>de</strong>, parte dos bens seria dissipada no comprimento das<br />

<strong>de</strong>terminações. Quando a preferência se dava por outras pessoas, sendo o testador<br />

* ver cap. 1 seção 3.2, <strong>de</strong>ste trabalho.<br />

114 Mattoso, Kátia. Testamentos <strong>de</strong> escravos libertos na Bahia no século XIX: Uma fonte para o estudo<br />

das mentalida<strong>de</strong>s. Centro <strong>de</strong> Estudos Baianos. Salvador, Bahia: 1979, p. 35<br />

115 Faria, Sheila, opus cit, p. 492<br />

68


casado, po<strong>de</strong>ria ter havido algum problema entre eles. O mais comum, porém, era o <strong>de</strong><br />

estar marido/mulher sem condições físicas para a função. 116<br />

O testamento representa uma das bases fundamentais na elaboração dos funerais.<br />

Os ritos fúnebres, tais como o concebemos hoje, começaram a se <strong>de</strong>senvolver no Brasil<br />

entre os séculos XVII e XIX e tiveram ampla influência do Barroco. Para os artistas<br />

<strong>de</strong>sse movimento, a morte ocupava um gran<strong>de</strong> espaço no cotidiano e sua representação<br />

era um dos seus principais focos. E é graças a importância dada à morte no interior do<br />

“mundo barroco” que a arte e a pompa fúnebre acompanharão todas as etapas do ato <strong>de</strong><br />

morrer.<br />

Em muitos momentos a humilda<strong>de</strong> cristã preconizava a não ostentação,<br />

entretanto, gran<strong>de</strong> parte dos testadores não levava esse preceito cristão em consi<strong>de</strong>ração:<br />

haviam pedidos <strong>de</strong> acompanhamentos por todos os padres que se achassem na freguesia,<br />

com todas as cruzes que a paróquia possuísse, que se <strong>de</strong>ssem esmolas aos pobres que<br />

seguissem o cortejo, o que obviamente engrossava o número <strong>de</strong> participantes. Pompa e<br />

ostentação, conseqüentemente, traziam lucros expressivos para o comércio funerário,<br />

embora seja difícil <strong>de</strong>tectar isto através dos documentos disponíveis. Num mundo em<br />

que o comércio era o veículo que enriquecia seus praticantes, os padres e as instituições<br />

religiosas como um dos gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>tentores do po<strong>de</strong>r econômico, inseriam-se na<br />

ativida<strong>de</strong> funerária obtendo gran<strong>de</strong>s vantagens.<br />

De acordo com Michel Vovelle, os ricos <strong>de</strong> Paris faziam <strong>de</strong> seus funerais e<br />

missas fúnebres um espetáculo <strong>de</strong> “profusão barroca”, e tratavam <strong>de</strong> especificar tudo<br />

cuidadosamente em testamento. Entretanto, com o Iluminismo, houve um processo que<br />

o autor chama <strong>de</strong> “<strong>de</strong>scristianização”. Paulatinamente, os pedidos <strong>de</strong> missa, as<br />

invocações <strong>de</strong> santos, as instruções para pompa funerária, enfim o conteúdo religioso,<br />

foi sumindo dos testamentos. Os funerais se tornaram mais econômicos, menos<br />

barrocos. Também houve nesse período uma re<strong>de</strong>finição das noções <strong>de</strong> poluição ritual,<br />

pureza e perigo, passando a se <strong>de</strong>finir mais a partir <strong>de</strong> critérios médicos do que <strong>de</strong><br />

religiosos. A principal conseqüência <strong>de</strong>ssa nova visão, foi a progressiva proibição <strong>de</strong><br />

enterros <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> igrejas, procurando transferir os cemitérios paroquiais para fora das<br />

cida<strong>de</strong>s e vilas.<br />

Apesar <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> representações artísticas, apelando fortemente para<br />

a imaginação, a concepção barroca da morte possuía muito pouco <strong>de</strong> lúdico. Walter<br />

116 Ibi<strong>de</strong>m, p. 493-495<br />

69


Benjamim, estudando o drama barroco alemão, conclui que no universo do barroco as<br />

representações servem aos enlutados, àqueles que estavam tristes pela morte <strong>de</strong> alguém.<br />

Deste modo, o funeral seria uma festa barroca que consolida o homem no seu luto. Ao<br />

contrário <strong>de</strong> um espetáculo barroco como o teatro, por exemplo, o funeral não é uma<br />

ilusão lúdica que reflete um mundo ilusório, ele é algo bem alicerçado na realida<strong>de</strong> e<br />

representa a estrutura social. 117 Essa concepção é muita difundida entre os antropólogos<br />

que analisaram os rituais, percebendo neles um forte reflexo da socieda<strong>de</strong>. A “ilusão<br />

lúdica” também representava a estrutura social. Esse tema da ilusão se relacionava com<br />

a idéia <strong>de</strong> alegoria, ou seja, <strong>de</strong> correspondência misteriosas entre as coisas. Esse mundo<br />

barroco, on<strong>de</strong> tudo está ligado é um universo “em ca<strong>de</strong>ia”, portanto uma colossal<br />

hierarquia.<br />

Para Benjamim, o Barroco é habitado pela antecipação da catástrofe, que<br />

<strong>de</strong>struirá o homem e o mundo, mas não é uma catástrofe messiânica, que consuma a<br />

história, e sim a do <strong>de</strong>stino que a aniquila. Assim, a história é, com efeito, uma sucessão<br />

<strong>de</strong> catástrofes, que acabará culminando na catástrofe <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira. É uma história marcada<br />

pelo <strong>de</strong>stino. Esta concepção, fortemente presente no universo barroco, or<strong>de</strong>na-se em<br />

torno da figura da morte. Ela é a última verda<strong>de</strong> da vida, o ponto extremo em que o<br />

homem sucumbe à sua condição <strong>de</strong> criatura. Deste modo, a morte emerge como<br />

significação comum <strong>de</strong> todas as alegorias no mundo barroco, que se con<strong>de</strong>nsam na<br />

alegoria da história. Essa alegoria, segundo Benjamim, teria a função <strong>de</strong> mostrar ao<br />

observador a verda<strong>de</strong>ira face da história como “proto-paisagem petrificada”. Ou seja, a<br />

concepção barroca vê tudo o que ocorre na história como, aténs <strong>de</strong> tudo, prematuro,<br />

sofrido e malogrado. A história é vista como a história do sofrimento. 118<br />

Destas noções, po<strong>de</strong>mos enten<strong>de</strong>r a importância que a morte possuía para as<br />

pessoas nos século passados, que não mediam esforços para torná-la festejada e<br />

grandiosa. E, <strong>de</strong> acordo com a análise <strong>de</strong> Benjamim, não faziam isto porque estavam<br />

representando um teatro, mas porque toda a pompa dos funerais fazia parte <strong>de</strong> sua<br />

cosmovisão, on<strong>de</strong> a morte era o fim <strong>de</strong> tudo. Mesmo em uma socieda<strong>de</strong> como a<br />

brasileira dos séculos passados, fortemente influenciada pelo cristianismo com suas<br />

noções <strong>de</strong> inferno, purgatório e céu, essa visão <strong>de</strong> mundo barroco ainda estava presente.<br />

A imagem do Senhor Bom Jesus dos Martírios po<strong>de</strong> ser levantada como um<br />

exemplo do pensamento barroco acerca da morte: nela se apresenta um Cristo<br />

117 Benjamim, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1963, p. 30(?).<br />

118 Ibi<strong>de</strong>m, p. 188.<br />

70


extremamente sofrido, agonizante em seus últimos minutos na cruz.. A morte no mundo<br />

barroco, como vimos anteriormente sinaliza o ponto extremo em que o homem sucumbe<br />

perante sua natureza, e este tema está presente em todas as manifestações da arte<br />

barroca. 119<br />

Para Reis, os baianos herdaram uma tradição notadamente portuguesa, mas com<br />

reminiscências africanas com relação à morte, para os quais o culto aos antepassados<br />

possuía gran<strong>de</strong> importância. Como país extremamente católico Portugal legou, aqueles<br />

que se <strong>de</strong>slocavam para o Brasil, uma religiosida<strong>de</strong> fortemente preocupa com a salvação<br />

da alma. Assim, a preparação para a morte tomava um papel central, pois “A boa morte<br />

significava que o fim não chegaria <strong>de</strong> surpresa para o indivíduo, sem que ele prestasse<br />

contas aos que ficavam e também os instruísse sobre como dispor <strong>de</strong> seu cadáver, <strong>de</strong><br />

sua alma e <strong>de</strong> seus bens terrenos”. 120 No Brasil dos séculos XVII ao XIX, existiam<br />

vários manuais católicos orientando os fiéis no sentido <strong>de</strong> terem uma “boa morte”, que<br />

basicamente argumentavam na direção <strong>de</strong> se ter todos os sacramentos.<br />

De fato, a Igreja Católica sempre encorajou a preparação para a morte. Uma<br />

antiga Ladainha <strong>de</strong> todos os santos diz: “Livra-nos , Senhor <strong>de</strong> uma morte súbita e<br />

imprevista”; na oração chamada “Ave-Maria” há um pedido a Maria que interceda pelos<br />

vivos “na hora <strong>de</strong> nossa morte”; São José é visto como o padroeiro da boa morte. O<br />

monge alemão Thomas <strong>de</strong> Kempis escreveu em seu livro “Imitação <strong>de</strong> Cristo”, em<br />

meados do século XIV:<br />

“De tal modo te <strong>de</strong>ves haver em todas as tuas obras e pensamentos, como se fosse já a<br />

hora <strong>de</strong> tua morte. Se tivesses boa consciência não temeria a morte. Melhor evitar o<br />

pecado que fugir da morte. Se não estás preparado hoje, como o estarás amanhã?(...)<br />

Por isso, anda sempre preparado e vive <strong>de</strong> tal modo que te não encontre a morte<br />

<strong>de</strong>sprevenido.” 121<br />

É e justamente nesse sentido <strong>de</strong> preparação que a Igreja procurou reforçar os<br />

chamados sacramentos <strong>de</strong> cura, que consistem em penitência, viático e extrema unção.<br />

Apesar <strong>de</strong> não se caracterizarem como ritos fúnebres, eles servem como uma importante<br />

<strong>de</strong>monstração da mentalida<strong>de</strong> com relação à morte. Enfatizamos mais uma vez, a boa<br />

119 Soares, Mariza <strong>de</strong> Carvalho, Devotos da Cor: I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> étnica, religiosida<strong>de</strong> e escravidão no Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro, século XVIII. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 177<br />

120 Ibi<strong>de</strong>m., p. 92<br />

121 Kempis, Thomas. Imitação <strong>de</strong> Cristo. Martin Claret: São Paulo, 2002. Livro 1, cap. 23.<br />

71


morte significava estar preparado para ela e o grau <strong>de</strong> atenção com os sacramentos <strong>de</strong><br />

cura po<strong>de</strong> nos ajudar a revelar a importância dada ao aspecto religioso.<br />

Com a Contra Reforma Católica, ocorrida no século XVI e que continuou a ser<br />

importantíssima no quesito doutrinário católico nos séculos seguintes, procurou-se<br />

reforçar principalmente aquilo que os protestantes mais atacaram, transformando os<br />

sacramentos como um dos elementos mais discutidos.<br />

O sacramento da penitência, seria uma instituição divina, <strong>de</strong>stinado a restituir ao<br />

pecador a graça <strong>de</strong> Deus, seria uma “tábua <strong>de</strong> salvação”. 122 De acordo com o<br />

pensamento religioso da Igreja Católica, o sacramento da penitência significa<br />

basicamente uma confissão do fiel e uma absolvição pelo sacerdote dos pecados<br />

daquele. É a reconciliação do pecador com Deus e com a Igreja. Ritualisticamente, o<br />

sacramento da penitencia po<strong>de</strong> ocorrer em qualquer lugar, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que existam exigências<br />

mínimas, como asseio e um ambiente que inspire a atmosfera religiosa. Ao longo dos<br />

séculos a Igreja foi consolidando os elementos rituais da penitência, po<strong>de</strong>ndo variar<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do local e período. A fórmula provavelmente utilizada no Brasil se iniciava<br />

com a saudação e benção do sacerdote, uma leitura da Bíblia, exortação ao<br />

arrependimento, o fiel confessa que reconhece seus pecados, o padre faz uma imposição<br />

com as mãos e aceita a penitência, seguido da absolvição e um cântico e, finalmente, o<br />

padre se <strong>de</strong>spe<strong>de</strong> com uma benção. 123<br />

De acordo com os registros <strong>de</strong> óbitos <strong>de</strong> São José dos Pinhais, ao longo <strong>de</strong> todo<br />

o século XIX, a última penitência do fiel era realizada bem próxima à morte,<br />

juntamente com os outros sacramentos <strong>de</strong> cura. Como os outros dois, este sacramento<br />

era muito importante na economia religiosa e também na mentalida<strong>de</strong> das pessoas<br />

porque, como foi dito anteriormente, reconciliava o fiel com Deus e com a Igreja e<br />

preparava seu caminho para o outro mundo. Pela sua importância, esse sacramento só<br />

era <strong>de</strong>ixado <strong>de</strong> ser aplicado se o penitente estivesse sem condições ou morresse<br />

rapidamente, não dando tempo para tal. Outras vezes era levada em consi<strong>de</strong>ração uma<br />

confissão anterior, se esta tivesse ocorrido em um curto espaço <strong>de</strong> tempo.<br />

Em São José, como era <strong>de</strong>terminado pela Igreja, havia a punição com multa no<br />

caso do cônjuge ou parente mais próximo não mandar chamar o pároco para os últimos<br />

sacramentos. Os registros <strong>de</strong> óbitos ao longo do século XIX se referem a inúmeras<br />

pessoas impedidas <strong>de</strong> receberem os últimos sacramentos, entretanto se houvesse tempo<br />

122 Giuseppe Alberigo (org) <strong>História</strong> dos Concílios Ecumênicos. Paulus: São Paulo, 1995. P. 344.<br />

123 Catecismo da Igreja Católica. Ed. Loyola: São Paulo, 2000. p. 408.<br />

72


ou pelo menos mínimas condições, o sacramento da penitência era aplicado. Mesmo<br />

porque este sacramento não precisa <strong>de</strong> nenhum objeto especial, como o sagrado viático<br />

e a extrema-unção, nele só eram necessários o padre e o moribundo em condições <strong>de</strong><br />

falar, ou até mesmo murmurar. 124<br />

Ocorreriam constantemente casos em que o indivíduo “andava louco” e não<br />

tinha condições <strong>de</strong> confessar, morrendo sem este sacramento. Um caso interessante foi o<br />

<strong>de</strong> Jerônimo Ferreira, que não queria confessar por “andar louco”, mas que, segundo o<br />

registro do pároco, quando se aproximou a hora da morte ele “ficou sem juízo e fez<br />

muitas vezes o ato <strong>de</strong> contrição e espirou em atos <strong>de</strong> católicos”. 125 A contrição para a<br />

Igreja Católica era a confissão <strong>de</strong> um pecado e servia para aliviar o peso na consciência<br />

do pecador. Esse registro realizado no início do século XIX mostra o grau <strong>de</strong><br />

importância que se havia em morrer <strong>de</strong> uma forma “correta”, isto é, <strong>de</strong>ntro da doutrina<br />

católica e com seus ritos. O morto que morria sem os sacramentos parecia alguém<br />

abandonado, que provavelmente não alcançaria o paraíso.<br />

O sacramento do sagrado viático era o seguinte sacramento aplicado àqueles que<br />

estavam próximos da morte. Este é o próprio sacramento da Eucaristia, isto é, a ingestão<br />

do pão abençoado pelo sacerdote, recebe aquele nome porque sinalizaria uma<br />

preparação do caminho do fiel para o outro mundo, uma passagem à vida eterna.<br />

“Nunca um indivíduo tem tanta necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> consolo da fé e do ritual como no<br />

sacramento do viático [...]. Esses atos são dirigidos contra o medo opressor, contra a<br />

dúvida corrosiva [...]. Todo o ritual expressa essa fé, essa atitu<strong>de</strong> emotiva <strong>de</strong> que o<br />

moribundo necessita, que é o consolo maior que po<strong>de</strong> ter em sua última batalha. E essa<br />

confirmação é autenticada pela quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> indivíduos e pela pompa do solene<br />

ritual” 126<br />

João José Reis nos mostra que na Bahia do século XVIII e XIX a procissão do<br />

viático que ia até a casa do moribundo era bastante pomposa. 127 Em São José no século<br />

XIX, como uma vila com menos recursos materiais, com certeza essa procissão não se<br />

igualava às da Bahia, mas mesmo assim não podia <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenhar papel<br />

importante nas últimas horas <strong>de</strong> um indivíduo religioso. Mas, <strong>de</strong> acordo com os<br />

124<br />

Registros <strong>de</strong> óbitos. Paróquia <strong>de</strong> São José dos Pinhais.<br />

125<br />

Ibi<strong>de</strong>m, 26/12/1804<br />

126<br />

Citado em: Terrin, opus cit, p. 88, nota 55.<br />

127<br />

Reis, opus cit, p. 103<br />

73


egistros <strong>de</strong> óbitos, sabemos que havia ao menos uma procissão com o pároco<br />

carregando uma cruz, seguido dos sacristãos e alguns fiéis até a casa do moribundo. Lá,<br />

se houvesse condições, ocorria a confissão primeiramente seguido do sacramento do<br />

viático, que, segundo a crença, curava o fiel do seus pecados e o <strong>de</strong>ixava<br />

espiritualmente preparado para enfrentar o caminho que o conduziria ao paraíso.<br />

Este sacramento era o que mais difícil <strong>de</strong> ser aplicado aos doentes <strong>de</strong>vido a sua<br />

característica, <strong>de</strong>vendo ser tomado pela via oral. Nos registros <strong>de</strong> óbitos <strong>de</strong> São José se<br />

apresentam as causas da abstinência a esse sacramento, causados muitas vezes por<br />

impedimento físico como vômitos, morte repentina e doenças violentas. Mas questões<br />

ritualísticas também eram um impedimento como local inapropriado do ponto <strong>de</strong> vista<br />

religioso<br />

O último sacramento aplicado era a Unção dos enfermos, este sacramento<br />

consistia, como diz o nome, na unção do enfermo com um óleo consagrado pelo<br />

sacerdote que, ao mesmo tempo, fazia uma oração no sentido <strong>de</strong> libertar o fiel <strong>de</strong> seus<br />

pecados, na concepção da Igreja “esta última unção fortalece o fim <strong>de</strong> nossa vida<br />

terrestre como que <strong>de</strong> um sólido baluarte para enfrentar as últimas lutas antes da entrada<br />

na casa do Pai.” 128<br />

O padre seguia untando os olhos, orelhas, nariz, bocas e mãos do moribundo,<br />

simbolizando os cinco sentidos, instrumentos do pecado. Em seguida outras partes do<br />

corpo, evitando os seios e costas das mulheres. Se a pessoa morresse no meio da<br />

execução do sacramento, este era interrompido.<br />

Todos estes sacramentos eram muito importantes para aqueles que se viam às<br />

portas da morte e estava ao alcance <strong>de</strong> todos, os padres não cobravam pela sua<br />

aplicação. Entretanto, em uma vila pobre e on<strong>de</strong> a paróquia abarcava uma faixa <strong>de</strong><br />

cobertura muito gran<strong>de</strong>, muitos morriam sem receber os últimos sacramentos<br />

justamente “por não dar tempo” ou “morar distante”. O pároco, como único que podia<br />

aplicar os sacramentos, tinha que se <strong>de</strong>sdobrar para aten<strong>de</strong>r a todos. Os fiéis, pelo<br />

mesmo motivo da distância, não conseguiam muitas vezes mandar chamar o pároco<br />

para a aplicação dos últimos sacramentos, e faleciam sem eles. Entre os anos <strong>de</strong> 1800 a<br />

1830, cerca <strong>de</strong> 27% dos que morreram <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> receber os sacramentos por três<br />

principais motivos: residir longe, morte repentina e não avisar o pároco. Este último<br />

128 Catecismo, opus cit, p. 418.<br />

74


item também po<strong>de</strong>ndo estar relacionado com o impedimento da distância, mas não<br />

exclusivamente.<br />

Como uma socieda<strong>de</strong> on<strong>de</strong> as questões religiosas estavam na or<strong>de</strong>m do dia, se<br />

espera que a maioria daqueles que estivessem às beira da morte procurasse receber os<br />

últimos sacramentos. Mesmo porque os sacramentos eram administrados gratuitamente,<br />

restando somente o problema do número <strong>de</strong> padres na região, sendo estes os únicos que<br />

podiam aplicar os sacramentos.<br />

Fonte: Registros <strong>de</strong> óbitos <strong>de</strong> São José dos Pinhais. Paróquia <strong>de</strong> São José dos Pinhais.<br />

Analisando registros <strong>de</strong> óbitos no século XVIII para o contexto dos Campos dos<br />

Goitacases, Sheila Faria percebeu que a população livre/liberta tendia a procurar as<br />

formas e os ritos funerários católicos com maior freqüência do que a escrava. Para São<br />

José, porém, a realida<strong>de</strong> parece um pouco diferente. Olhando para a percentagem<br />

daqueles que morriam sem sacramentos e daqueles que recebiam ao menos um dos<br />

sacramentos na região nas três primeiras décadas do século XIX, (tabela 4), notamos<br />

que pouco mais da meta<strong>de</strong> dos escravos morria sem sacramentos. Entretanto, no que<br />

concerne aos livres (daí excluídos os libertos), a gran<strong>de</strong> maioria dos 94 mortos,<br />

faleceram sem sacramentos. Somente um terço <strong>de</strong> toda a população livre recebeu pelo<br />

menos um sacramento antes <strong>de</strong> morrer.<br />

Com relação aos forros, no mesmo período acima, mais da meta<strong>de</strong> recebeu seus<br />

últimos sacramentos. Somente um, dos <strong>de</strong>z casos analisados no período, não recebeu<br />

sacramentos “por não procurarem”. 129 Talvez, por terem mais conhecimento dos seus<br />

“direitos” religiosos, os forros procurassem mais os padres para administração dos<br />

sacramentos.<br />

Tabela 4. Últimos sacramentos <strong>de</strong> escravos e livres em % (1800-1830)<br />

Livres (total 94) Escravos (total 72) Forro (total 10)<br />

C/ sacra S/ sacra C/ sacra S/ sacra C/ sacra S/ sacra<br />

33 76 47 53 60 40<br />

129 Registros <strong>de</strong> óbitos, opus cit, 03/08/1814.<br />

75


Tabela 5. Últimos sacramentos <strong>de</strong> escravos e índios (anos<br />

1767, 1777, 1787). Amostragem<br />

Índios Escravos<br />

Anos C/ sacra S/ sacra C/ sacra S/ sacra<br />

1767 1 1 4<br />

1777 1 1 5 4<br />

1787 1 1 5<br />

Fonte: Registros <strong>de</strong> óbitos. Paróquia <strong>de</strong> São José dos Pinhais.<br />

Com relação a escravos numa amostragem dos anos 1767, 1777, 1787, on<strong>de</strong><br />

havia registro <strong>de</strong> óbitos <strong>de</strong> índios, há uma taxa maior <strong>de</strong> presença <strong>de</strong> últimos<br />

sacramentos. No que diz respeito a índios, que cessam <strong>de</strong> aparecer nos registros no final<br />

do século XVIII em São José dos Pinhais, nos anos por mim analisados quatro<br />

“administrados” (termo que aparece nos registros) faleceram. Uma índia já viúva, por<br />

volta dos cinqüenta anos, recebeu todos os últimos sacramentos. Izabel, casada, trinta<br />

anos, recebeu os sacramentos <strong>de</strong> penitência e extrema unção. Faleceu sem o sacramento<br />

do sagrado viático por estar “<strong>de</strong>savisada”, isto é, por estar louca. Maria morreu com<br />

apenas um ano, consi<strong>de</strong>rada, assim, “inocente” pela Igreja Católica por não ter recebido<br />

ainda o sacramento do batismo. Assim, por questões doutrinárias e lógicas, não po<strong>de</strong>ria<br />

também receber os últimos sacramentos. Estes <strong>de</strong>veriam ser ministradas somente<br />

àqueles que possuíssem os outros sacramentos da Igreja como o do batismo, da<br />

eucaristia e da confirmação e, que pu<strong>de</strong>ssem falar para recitar as fórmulas rituais. O<br />

único administrado que morreu sem nenhum sacramento foi o índio carijó <strong>de</strong> nome<br />

José. Porém o administrador foi “con<strong>de</strong>nado” a pagar uma multa à igreja por não<br />

mandar chamar o pároco para aplicar os sacramentos. 130 Destes casos qualitativos<br />

po<strong>de</strong>mos perceber que os índios tendiam a receber os últimos sacramentos, a menos que<br />

houvesse algum impedimento físico.<br />

Quanto ao local <strong>de</strong> sepultamento, po<strong>de</strong>mos perceber nos registros <strong>de</strong> óbitos a<br />

partir dos anos 1767 * até os anos 1830, uma forte presença <strong>de</strong> enterros “na igreja”,<br />

termo que aparece nos registros óbitos e que consi<strong>de</strong>ramos <strong>de</strong>ntro da igreja. A gran<strong>de</strong><br />

maioria, mais <strong>de</strong> 90% tanto <strong>de</strong> livre quanto <strong>de</strong> escravos eram enterrados <strong>de</strong>ntro da igreja<br />

no final do século XVIII e início do XIX em São José dos Pinhais. Somente uma<br />

130 Registros <strong>de</strong> óbitos, 1767, 1777 (dois casos), 1787.<br />

* Obs.: No ano <strong>de</strong> 1757 nenhum livre morreu, por isso <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rei por questões comparativas; anos<br />

1767, 1777, 1787, 1797 e consecutivos até o ano <strong>de</strong> 1830.<br />

76


pequena parcela da população era enterrada no adro da igreja, ou seja no terreno em<br />

volta. Pelo menos nesses anos, não aparece referência a que locais <strong>de</strong>ntro da igreja eram<br />

sepultados os fiéis. Aqueles que eram sepultados fora <strong>de</strong>stes dois lugares, normalmente<br />

o eram por fatores como morte rápida e distância. Por exemplo, Joana Rodrigues foi<br />

sepultada no ano <strong>de</strong> 1767 no cemitério do Arraial Gran<strong>de</strong> “por não haver quem a<br />

carregasse”. 131 Os escravos José e Salvador, mortos nos anos 1800 e 1810,<br />

respectivamente, foram enterrados um “no caminho fora do sagrado” e outro na margem<br />

do rio em que morreu afogado, pelas mesmas razões <strong>de</strong> transporte. 132 Outras três<br />

pessoas foram sepultadas em cemitérios, porém não se relata nada em razão disso. 133<br />

Tabela 6. Locais <strong>de</strong> sepultamento (livres e forros)<br />

(1767-1830)<br />

Ano Na igreja No adro da igreja No cemitério<br />

1767 18 1<br />

1777 19 2<br />

1787 4<br />

1797-<br />

1830<br />

105 1<br />

% 99 0,5 0,5<br />

Fonte: ver tabela 5<br />

Tabela 7. Locais <strong>de</strong> sepultamento (escravos) (1767-1830)<br />

Ano Na igreja No adro da igreja No cemitério e<br />

1767 5<br />

1777 8 1<br />

1787 4 2<br />

1797-<br />

1830<br />

outros<br />

79 4<br />

% 93 3 4<br />

Fonte: ver tabela 5<br />

131 Registros <strong>de</strong> óbitos, 05/10/1767<br />

132 Registros <strong>de</strong> óbitos, 27/06/1800 e 10/12/1810.<br />

133 Registros <strong>de</strong> óbitos, 20/03/1825 (um) e 27/08/1830 (dois)<br />

77


O local <strong>de</strong> sepultamento entra na or<strong>de</strong>m do dia nas discussões <strong>de</strong> toda a<br />

população do Império e é através da análise <strong>de</strong>sse elemento que po<strong>de</strong> ser assinalado o<br />

fim <strong>de</strong> um período e <strong>de</strong> uma mudança na forma <strong>de</strong> pensar. É nesse sentido que Reis,<br />

estudando as mudanças <strong>de</strong> ação perante a morte verifica a <strong>de</strong>cadência do ritual barroco.<br />

O autor faz uma análise da revolta <strong>de</strong> escravos em Salvador, em 1836, contra um<br />

cemitério, que por isso ficou conhecida como Cemiterada. Através do exame <strong>de</strong> uma<br />

extensa lista <strong>de</strong> fontes ele expôs a mentalida<strong>de</strong> popular presente naquela região referente<br />

à morte na primeira meta<strong>de</strong> do século XIX. Para o autor, a construção do cemitério<br />

naquela região, entre outros fatores que veremos à frente, foi um dos elementos que<br />

evi<strong>de</strong>nciava a <strong>de</strong>cadência dos ritos fúnebres na Bahia no início do século.<br />

As Irmanda<strong>de</strong>s religiosas eram uma das principais instituições presentes na hora<br />

da morte, pois elas se esforçavam para que seus membros tivessem um bom funeral.<br />

Dentro <strong>de</strong>ssas associações corporativas se teciam solidarieda<strong>de</strong>s baseadas nas<br />

hierarquias sociais. Seus membros <strong>de</strong>viam cumprir com seus <strong>de</strong>veres, previsto nos<br />

compromissos, e em troca recebiam <strong>de</strong>s<strong>de</strong> assistência médica até o direito a um enterro<br />

<strong>de</strong>cente para si e para os membros <strong>de</strong> sua família. 134 Muitos <strong>de</strong>funtos eram agraciados<br />

não somente com dignida<strong>de</strong>, mas também com pompa, com muita festa e gran<strong>de</strong>s<br />

produções. 135 Uma hipótese para o empobrecimento dos ritos em São José dos Pinhais<br />

po<strong>de</strong> levar em consi<strong>de</strong>ração a ausência <strong>de</strong>ste tipo <strong>de</strong> instituição, “patrocinadora” do<br />

ritual fúnebre.<br />

O que é certo para todas as regiões é que a morte geralmente ocorria<br />

contextualmente, no sentido dos registros <strong>de</strong> óbitos, entre os últimos sacramentos e os<br />

últimos acompanhamentos. Nesse meio tempo se <strong>de</strong>via então tomar certas providências,<br />

quais sejam a preparação do velório e o funeral propriamente dito. O primeiro passo a<br />

ser tomado era contratar o armador para “armar a casa”, ou seja, <strong>de</strong>corá-la com<br />

símbolos <strong>de</strong> luto. Na entrada da casa, ramos fúnebres ou panos cortinados avisavam os<br />

que estavam passando sobre a presença da morte. Aqueles que estavam passando<br />

podiam visitar a casa ou realizar uma oração em voz baixa enquanto passavam. O grito<br />

das carpi<strong>de</strong>iras também era outra forma <strong>de</strong> anunciar a morte. Algumas vezes a família<br />

mandava rezar uma “missa <strong>de</strong> notícia” e dobrar os sinos da paróquia.<br />

134 Reis, opus cit., p. 40-51<br />

135 Ibi<strong>de</strong>m, p. 49-70<br />

78


Reis diz que nos velórios havia “toda uma simbologia <strong>de</strong> espaço e movimento,<br />

assegurando a passagem do <strong>de</strong>funto para o território da morte.” 136 O <strong>de</strong>funto<br />

atravessava a noite na companhia <strong>de</strong> parentes e conhecidos, para os quais se<br />

provi<strong>de</strong>nciava comida e bebida. O último ritual <strong>de</strong> <strong>de</strong>spedida do morto do ambiente<br />

doméstico, ou pelo menos <strong>de</strong> seu cadáver, uma vez que sua alma podia retornar,<br />

segundo a mentalida<strong>de</strong> da época, era a encomendação, feita pelo pároco ao bem do<br />

funeral. Era a primeira recomendação do padre da alma do fiel, a segunda era já feita na<br />

hora do sepultamento. Em freqüência, este momento era acompanhado por músicos que<br />

tocavam mementos. 137<br />

O luto doméstico seguia uma série <strong>de</strong> preceitos com múltiplas funções como<br />

expressão do prestígio social, da dor e, ao nível das mentalida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a família <strong>de</strong><br />

um retorno do <strong>de</strong>funto. Assim, tendo saído o enterro, procurava-se apagar todos os<br />

rastros da morte em casa.<br />

A “morte como espetáculo” na Bahia <strong>de</strong> outrora, como nos mostra João José<br />

Reis, <strong>de</strong>monstra como os temas fúnebres ocupavam lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque no imaginário<br />

<strong>de</strong>ssa socieda<strong>de</strong>. Para os baianos, segundo Reis, morte e festa não se excluíam e,<br />

embora muitas das principais festas religiosas na Bahia tematizassem a morte,<br />

aparentavam celebrações da vida, pela alegria exposta. A pompa barroca nos funerais<br />

servia para antecipar e promover o feliz <strong>de</strong>stino do morto. Entretanto, a produção<br />

fúnebre interessava, sobretudo, aos vivos, que por meio <strong>de</strong>le expressavam suas<br />

angústias, “O espetáculo fúnebre realmente distraía o participante da dor, ao mesmo<br />

tempo que chamava o espectador a participar da dor.” 138<br />

A pompa ficava <strong>de</strong>monstrada em cada elemento do ritual fúnebre. O número <strong>de</strong><br />

padres presentes nos funerais, por exemplo, simbolizava a riqueza do morto, pois era<br />

um serviço pago. No contexto da Bahia, o número <strong>de</strong> sacerdotes aumentava <strong>de</strong> acordo<br />

com a ida<strong>de</strong> do morto, sendo os mais velhos os mais beneficiados com a presença dos<br />

clérigos, como se, <strong>de</strong>vido à longo vida, tivessem mais pecados à expiar, ou sob outra<br />

ótica, como se a socieda<strong>de</strong> homenageasse os longos anos vividos por esses mortos. A<br />

quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pessoas também era um fator que indicava a pompa fúnebre. Em alguns<br />

136 Ibi<strong>de</strong>m, p. 114-130<br />

137 Ibi<strong>de</strong>m, p. 105<br />

138 Ibi<strong>de</strong>m, p. 138.<br />

79


funerais ainda havia o acompanhamento <strong>de</strong> músicos, com pequenas e gran<strong>de</strong>s<br />

orquestras. 139<br />

Alguns testadores pediam para ter um enterro simples, que foi visto por muitos<br />

estudiosos como a continuida<strong>de</strong> do “exibicionismo mortuário,” porém estes pedidos não<br />

eram levados a sério e<br />

“parentes e amigos dos mortos, a própria Igreja e até o Estado terminavam por <strong>de</strong>finir<br />

mais do que os mortos o feitio dos funerais. Estes pertenciam aos vivos, que neles<br />

projetavam sua dor, insegurança e culpa, mas também seus valores culturais,<br />

hierarquias sócias, i<strong>de</strong>ologias políticas e religiosas. As famílias enlutadas faziam<br />

<strong>de</strong>sses enterros uma oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar seu prestígio, proporcionando aos<br />

convidados um espetáculo fúnebre equivalente, ou se possível superior a sua posição<br />

social.” 140<br />

O cuidado com pendências e obrigações religiosas evi<strong>de</strong>ncia-se nos testamentos.<br />

Na mentalida<strong>de</strong> popular havia uma gran<strong>de</strong> preocupação com aqueles que morressem<br />

<strong>de</strong>vendo promessa a algum Santo e dinheiro a vivos, os que ficassem insepultos, aqueles<br />

cuja família não pusesse luto e, sobretudo, os que partissem em circunstâncias trágicas,<br />

ou <strong>de</strong> repente, ou sozinhos, sem assistência religiosa. 141 Isso se explicita nos<br />

testamentos <strong>de</strong> São José dos Pinhais, on<strong>de</strong> alguns temem ficar <strong>de</strong>vendo a santos e a<br />

credores e pe<strong>de</strong>m para aqueles que irão cumprir as disposições testamentárias saldar<br />

suas dividas.<br />

Uma das mortes mais temidas era a morte sem sepultura certa, para a<br />

mentalida<strong>de</strong> da época o morto <strong>de</strong>veria ser enterrado em local sagrado. Em muitos<br />

testamentos notamos a <strong>de</strong>signação do local do enterro. As pessoas almejavam serem<br />

enterradas em território conhecido, no ambiente em que viveram, próximos daqueles<br />

com quem compartilharam a vida. A valorização da proximida<strong>de</strong> entre casa e cova<br />

sugere que a morte era entendida como continuida<strong>de</strong> e não ruptura. Assim, como me<br />

referi na parte em que tratei dos registros <strong>de</strong> óbitos, que em São José dos Pinhais no<br />

final do século XVIII e início do XIX, procurava-se enterrar os mortos nas igrejas ou<br />

pelo menos nas suas proximida<strong>de</strong>s. Mesmo a construção do cemitério em São José, em<br />

meados do século XIX, se dá muito próximo as residências no centro da villa. Inclusive,<br />

139 Ibi<strong>de</strong>m, p. 149-153<br />

140 Ibi<strong>de</strong>m. p. 159<br />

141 Ibi<strong>de</strong>m, 204<br />

80


mais tar<strong>de</strong> surgirá reclamações por melhoramentos neste cemitério “pelo motivo <strong>de</strong><br />

achar-se o cemitério tão prossimo ao povoado” 142 A questão da proximida<strong>de</strong> da morte<br />

ainda perduraria até finais do século XIX nesta vila.<br />

As missas rezadas pelos padres na ocasião do funeral ou após tinham a função<br />

religiosa <strong>de</strong> abreviar o tempo das almas no purgatório, ou dar glória aos que já se<br />

encontravam no paraíso. As missas fúnebres possuíam gran<strong>de</strong> relevância na economia<br />

material e simbólica da Igreja, que recomendava a seus fieis que provassem sua <strong>de</strong>voção<br />

<strong>de</strong>ixando em testamento quantas missas pu<strong>de</strong>ssem pagar. Muitos ainda enumeravam<br />

missas para parentes, santos, almas no purgatório, escravos, parceiros em negócios.<br />

Mas todos esses elementos rituais e os objetivos utilizados possuíam um preço.<br />

Amar casas, <strong>de</strong>corá-la com panos cortinados e construir catafalcos <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira também<br />

cobertos <strong>de</strong> panos fúnebres, ven<strong>de</strong>r ou alugar caixões, e ven<strong>de</strong>r velas era um gran<strong>de</strong><br />

negócio nas diversas regiões do Brasil no século XIX. Os armadores e negociantes <strong>de</strong><br />

tecidos dominavam o setor em que as pessoas mais gastavam com o funeral. Reis,<br />

falando sobre a distribuição dos gastos com funerais na Bahia, revela que, tomando<br />

como parâmetro os recursos, os pobres gastavam proporcionalmente mais que os<br />

ricos. 143<br />

Os recibos são excelentes fontes para analisar o que compunha um rito fúnebre,<br />

no sentido material. Em São José dos Pinhais eles começam a aparecer somente no final<br />

do século XIX. Muitas vezes eles trazem gastos que não foram claramente <strong>de</strong>scritos nos<br />

inventários. No recibo anexo ao inventário <strong>de</strong> Laurindo Ferraz consta que cada uma das<br />

cinco dobras <strong>de</strong> sino custou 1$000 pagos ao sacristão. Memento e dobras <strong>de</strong> sinos se<br />

relacionam ao que diz João José Reis no sentido do barulho, com músicas, acompanhar<br />

os ritos fúnebres em diversas socieda<strong>de</strong>s, nas quais ele é visto como facilitador da<br />

comunicação entre o homem e o sobrenatural. 144<br />

Com relação às roupas usadas somente encontrei a referência à cor em um dos<br />

recibos, on<strong>de</strong> consta panos e “luvas pretas”. 145 A cor representando o luto fica expressa<br />

neste recibo, porém não po<strong>de</strong>mos ir além na análise da importância <strong>de</strong>sta cor no<br />

sentimento religioso por não dispor <strong>de</strong> mais referências documentais. Com relação à<br />

roupa mortuária, encontrei também somente uma referência à mortalha, no inventário <strong>de</strong><br />

142<br />

Arquivo do Museu Municipal Atílio Rocco, São José dos Pinhais, Pasta Cemitério. Carta enviada ao<br />

Presi<strong>de</strong>nte e membros da Câmara Municipal, 24 <strong>de</strong> Dezembro <strong>de</strong> 1884.<br />

143<br />

Reis, opus cit, p. 241<br />

144<br />

Ibi<strong>de</strong>m p. 105<br />

145<br />

Recibo <strong>de</strong> gastos fúnebres. II Cartório da vara cível <strong>de</strong> São José dos Pinhais.<br />

81


Antonio José <strong>de</strong> Souza. Sabemos para outras regiões a importância da mortalha, e ainda<br />

mais a cor específica <strong>de</strong>stas vestimentas, para a representação da crença religiosa,<br />

porém este também é um item difícil <strong>de</strong> mensurar <strong>de</strong>vido à escassez <strong>de</strong> citações. Mesmo<br />

em registros <strong>de</strong> óbitos, fontes on<strong>de</strong> Reis encontrou farta <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> roupas<br />

mortuárias 146 , não há este tipo <strong>de</strong> referência para São José dos Pinhais.<br />

As <strong>de</strong>scrições dos “últimos acompanhamentos” se apresentam nos registros <strong>de</strong><br />

óbitos <strong>de</strong> São José dos Pinhais muito diferenciados. Por últimos acompanhamentos<br />

enten<strong>de</strong>mos os rituais <strong>de</strong> transporte do <strong>de</strong>funto, da casa ou do local do velório, até o<br />

local <strong>de</strong> sepultamento; as recomendações dadas pelo sacerdote no sentido <strong>de</strong><br />

encomendar a alma do morto para o outro mundo e; a missa <strong>de</strong> corpo presente. Nas<br />

<strong>de</strong>scrições feitas pelos padres nos registros po<strong>de</strong>mos encontrar termos como<br />

“sufrágios”, “ofícios paroquiais”, “recomendação” e “recomendação conforme o ritual<br />

romano”, todos servindo como um sinônimo para o mesmo conjunto <strong>de</strong> rituais, variando<br />

conforme o tempo e o sacerdote que produzia o documento.<br />

Esses últimos rituais eram consi<strong>de</strong>rados muito importantes para o fiel que<br />

<strong>de</strong>sejava alcançar a graça divina após a morte. Serviam como um “empurrão” para o<br />

outro mundo e, ao nível das mentalida<strong>de</strong>s, quanto mais pomposo e <strong>de</strong>voto os rituais,<br />

maiores seriam as chances <strong>de</strong> atingir o objetivo. No ano <strong>de</strong> 1777 muito mortos tiveram<br />

“acompanhamento com a cruz <strong>de</strong> fábrica”, um ritual que consistiam em um cortejo<br />

seguido por alguns fiéis da região, sendo encabeçados por um padre carregando a cruz<br />

da fábrica, isto é, comprada originalmente com o dinheiro dos fiéis. Era uma cerimônia<br />

altamente <strong>de</strong>sejada, pois trazia vários fiéis para juntar força no sentido religioso,<br />

pedindo a Deus que aceitasse o <strong>de</strong>funto. Após esse período, somente houve outros dois<br />

casos, no ano <strong>de</strong> 1830.<br />

Isto pelo menos <strong>de</strong> forma expressa, pois <strong>de</strong>vemos levar em consi<strong>de</strong>ração a<br />

diferença <strong>de</strong> registros ao longo dos anos <strong>de</strong>vido a mudanças na Igreja, na socieda<strong>de</strong> e<br />

mesmo na troca <strong>de</strong> padres. Os registros <strong>de</strong> óbitos são muito reticentes nas informações e<br />

também são, dos registros paroquiais, os menos confiáveis. Segundo Sheila Faria, a<br />

ocorrência <strong>de</strong> uma morte não precisava, necessariamente, ser assistida por padres, o que<br />

era fundamental em batismos e casamentos. 147 Somando-se a isso, há a característica <strong>de</strong><br />

levantamento dos dados para os registros <strong>de</strong> óbitos, que se davam muitas vezes através<br />

<strong>de</strong> terceiros e algum tempo <strong>de</strong>pois da morte. O padre ao longo do século XIX, era o<br />

146 Reis, opus cit, p. 116-127.<br />

147 Faria, Sheila. A colônia em movimento. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1998, p. 344.<br />

82


sujeito que cuidava gran<strong>de</strong> parte dos registros hoje tidos como civis, como o nascimento<br />

e a morte. Em uma freguesia gran<strong>de</strong> como São José enfrentavam-se inúmeras<br />

dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong>. Muitos morriam sem dar tempo para o padre chegar até o<br />

moribundo. Com tantas preocupações em mente, normalmente os padres não tinham<br />

tempo <strong>de</strong> produzir documentos <strong>de</strong>talhados e precisos, e assim, abundam problemas <strong>de</strong><br />

sub-registros.<br />

Mesmo assim, po<strong>de</strong>mos utilizar os registros <strong>de</strong> óbitos como uma amostragem da<br />

vida social e religiosa, como um resquício do passado na região estudada. Desta<br />

maneira, olhando para os registros <strong>de</strong> óbitos do período <strong>de</strong> 1757 a 1830, po<strong>de</strong>mos<br />

perceber que uma maioria esmagadora tinha algum tipo <strong>de</strong> ritual <strong>de</strong> “encaminhamento”.<br />

Quer dizer, os padres se esforçavam para dar minimamente algum último ritual ao<br />

<strong>de</strong>funto, pelo menos a recomendação da alma era aplicada, indiferentemente da cor ou<br />

condição do fiel. Porém, o ritual completo, com acompanhamento, recomendação e<br />

missa <strong>de</strong> corpo presente, era aplicado mais vezes na população livre, representando 65%<br />

<strong>de</strong> todos aqueles que tinham estes rituais. Estes últimos rituais eram cobrados pelos<br />

sacerdotes, diferentemente dos sacramentos, então por não terem condições ou por seus<br />

senhores não arcarem com as <strong>de</strong>spesas, os escravos tinham uma ocorrência menor dos<br />

últimos acompanhamentos <strong>de</strong> forma completa. Algumas vezes a Igreja arcava com os<br />

gastos dos acompanhamentos e isto aparecia registrado.<br />

Tabela 8. Últimos acompanhamentos<br />

Escravos livres Total<br />

Algum acompanhamento 43 124 167<br />

Acompanhamentos, missa <strong>de</strong><br />

corpo presente, recomendação<br />

26 48 74<br />

Sem acompanhamentos 1 2 3<br />

Fonte: registros <strong>de</strong> óbitos, S. J. Pinhais. (1757, 1767, 1777, 1787, 1797-1830)<br />

Por não apresentar os dados <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>talhada, relacionados ao nome completo<br />

do morto, a causa da morte entre outros, só raramente o sacerdote anotava atitu<strong>de</strong>s que<br />

não estavam diretamente relacionadas ao ato <strong>de</strong> aplicar os sacramentos e o<br />

sepultamento. Por exemplo, só há três citações a testamentos nos registros por mim<br />

analisados, sendo uma referente ao sujeito morrer “abintestado” ou seja, sem o ter feito.<br />

Outra referente ao registro <strong>de</strong> João Gonçalves Teixeira que pe<strong>de</strong> em seu testamento<br />

83


“uma capella <strong>de</strong> missa a Santa Ana e outra a São José.” São José era o padroeiro da<br />

cida<strong>de</strong> e também consi<strong>de</strong>rado pelos católicos o padroeiro da boa morte. A presença <strong>de</strong><br />

um pensamento fortemente religioso preocupado com a morte e com o além, se reflete<br />

nesse registro, algo incomum nos registros <strong>de</strong> óbitos e mais caro aos testamentos. Em<br />

um outro registro o padre cita o testamento <strong>de</strong> Maria Buena da Rocha no sentido <strong>de</strong> esta<br />

ser irmã na Or<strong>de</strong>m Terceira <strong>de</strong> São Francisco em Curitiba e ter pedido missas por sua<br />

alma. 148 Fato interessante, estes dois casos com testamentos receberam ambos os<br />

últimos sacramentos e tiveram todos os últimos rituais <strong>de</strong> acompanhamento, isto<br />

implica na questão <strong>de</strong> se preparar bem para a morte, o que estes dois conseguiram levar<br />

à cabo, como se apresenta no registros.<br />

Entretanto, todos estes elementos estariam na mira das autorida<strong>de</strong>s no século<br />

XIX, dando inicio a uma tentativa <strong>de</strong> or<strong>de</strong>nar o meio urbano pelo governo, que se alia à<br />

medicina para alcançar seus objetivos. A chave <strong>de</strong>sse acordo foi a questão da<br />

salubrida<strong>de</strong>. As epi<strong>de</strong>mias, as febres, os focos <strong>de</strong> infecção e contágio do ar e da água<br />

sempre se constituíram em gran<strong>de</strong>s problemas para a administração colonial. A<br />

burocracia era impotente para conter o caos sanitário.<br />

Com a chegada da Corte a situação mudou, junto <strong>de</strong>la vieram inúmeros<br />

aristocratas, comerciantes estrangeiros e famílias rurais e, assim, a pressão populacional<br />

e a exigência da nova camada urbana forçaram as melhorias higiênicas. A medicina<br />

passou a ser procurada, e através <strong>de</strong> diversas ações, apossou-se do espaço urbano e<br />

imprimiu sua marca. O cemitério (e os enterros) foi um dos elementos urbanos<br />

visados. 149<br />

Os médicos viam nos enterros um sério problema <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pública, pois para<br />

eles, a <strong>de</strong>composição <strong>de</strong> cadáveres produzia gases que poluíam o ar, contaminavam os<br />

vivos, causavam doenças e epi<strong>de</strong>mias. Uma organização civilizada do espaço urbano<br />

requeria que a morte fosse higienizada, sobretudo que os mortos fossem expulsos <strong>de</strong><br />

entre os vivos e segregados em cemitérios extramuros, afastados das cida<strong>de</strong>s. A<br />

reeducação dos sentidos previa o combate a cheiros e sons que afetavam o corpo e a<br />

mente dos participantes dos funerais.<br />

Uma assembléia provincial na Bahia legislou sobre essas questões e conce<strong>de</strong>u o<br />

monopólio dos enterros a uma companhia privada. O próximo passo, a construção <strong>de</strong><br />

um cemitério, significou, para o Estado, um fator patriótico e civilizador, e para os<br />

148 Registros <strong>de</strong> óbitos, opus cit, ano 1767 para o intestado e 1777 para os outros dois.<br />

149 Costa, Jurandir.Or<strong>de</strong>m médica e norma familiar. Ed. Graal. Rio <strong>de</strong> Janeiro: 1989, p. 28-30<br />

84


eligiosos, o abandono da religião. 150 Deste modo, houve resistência ao cemitério pelo<br />

que ele representava: a privatização da morte e o <strong>de</strong>clínio do elemento barroco nos<br />

funerais. Uns entraram na briga <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo seus privilégios aristocráticos, outros,<br />

protegendo suas tradições. A revolta da Cemiterada na Bahia, marcaria a mudança na<br />

mentalida<strong>de</strong> com relação à morte na primeira meta<strong>de</strong> do século XIX, qual seja o<br />

abandono das velhas práticas com toda a pompa e o lúdico.<br />

Seção III. Permanência da importância dos ritos fúnebres<br />

A historiografia com relação aos ritos fúnebres, tanto brasileira quanto européia,<br />

é unânime em apresentar um quadro <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência da pompa fúnebre na medida em que<br />

tem início a ligação entre noções <strong>de</strong> civilida<strong>de</strong> e sanitarização. Os principais argumentos<br />

levantados para tal abandono são a romanização da Igreja, que pregava contra a<br />

ostentação material; a tendência higienista, mostrando a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cuidados para<br />

com a saú<strong>de</strong> e; a privatização dos cemitérios que fortaleceu o <strong>de</strong>clínio do elemento<br />

pomposo nos funerais.<br />

Mas qual a repercussão <strong>de</strong>sses argumentos em uma vila afastada do centro<br />

irradiador <strong>de</strong>ssas idéias? Como região <strong>de</strong> passagem <strong>de</strong> muitas pessoas, como tropeiros e<br />

negociantes <strong>de</strong> todas as regiões, além do fato <strong>de</strong> que entre a classe dominante muitos<br />

estudavam nos gran<strong>de</strong>s centros culturais, as idéias acabavam por chegar até São José<br />

dos Pinhais com uma força consi<strong>de</strong>rável. Alia-se a isso o projeto civilizatório levado a<br />

cabo pelo Estado Imperial, on<strong>de</strong> o discurso higienista se configurava em mais uma<br />

atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> civilizar os costumes do que um cuidado com a saú<strong>de</strong>. Assim, em um<br />

processo <strong>de</strong> cima para baixo, era imposto uma mudança na configuração dos ritos<br />

fúnebres.<br />

Com a crescente preocupação com a salubrida<strong>de</strong> urbana no século XIX,<br />

começou-se a suspeitar que os <strong>de</strong>funtos sepultados nas igrejas emanavam algo que<br />

podia ser nocivo aos vivos. Então, proibiu-se o sepultamento no interior <strong>de</strong> igrejas. No<br />

Paraná, além <strong>de</strong> adotar tal medida, alguns municípios <strong>de</strong>talharam os enterros, prevendo<br />

cuidados com o transporte e sepultamento <strong>de</strong> <strong>de</strong>funtos. A morte foi separada da igreja,<br />

150 Reis. Opus cit, 289-316<br />

85


algo culturalmente presente durante séculos, passando para o sepultamento <strong>de</strong> <strong>de</strong>funtos<br />

em terrenos do Estado.<br />

Na segunda meta<strong>de</strong> do século XIX os que possuíam gastos com ritos fúnebres<br />

representavam apenas um terço do total <strong>de</strong> inventariados. Porém, isso nem <strong>de</strong> longe<br />

representa um abandono <strong>de</strong>sses ritos. Devido à diversas questões, os gastos com os<br />

últimos rituais não vinha <strong>de</strong>scrito nos inventários, po<strong>de</strong>mos levantar algumas principais<br />

como: o documento estar incompleto; <strong>de</strong>correu muito tempo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a morte; não houve<br />

gastos para enterrar o morto (provavelmente o funeral foi pago por uma instituição ou<br />

por outras pessoas relacionadas ao <strong>de</strong>funto) ou; o inventariado é muito rico e não<br />

precisava <strong>de</strong>clarar este gasto por ser consi<strong>de</strong>rado pequeno.<br />

Tabela 9. Relação da presença ou ausência dos gastos com ritos fúnebres nos<br />

inventários em São José dos Pinhais (1852-1886).<br />

Em números absolutos Em percentagens sobre os totais<br />

<strong>de</strong> inventários<br />

Intervalo Com gastos Sem gastos Com gastos Sem gastos<br />

1852-1859 3 3 50 50<br />

1860-1869 13 13 50 50<br />

1870-1879 76 123 38 62<br />

1880-1885 25 62 30 70<br />

Todo o período 118 200<br />

Fonte: Inventários post-mortem. II cartório da vara cível <strong>de</strong> São José dos Pinhais.<br />

Olhando para o gráfico acima percebemos que durante todo o período analisado,<br />

os mais ricos mantiveram uma certa regularida<strong>de</strong> com relação aos gastos com funerais,<br />

mas estes eram sempre <strong>de</strong>sproporcionais em relação à sua fortuna. Só para se ter uma<br />

idéia, enquanto que os ricos gastavam, em média, 1,6% <strong>de</strong> sua fortuna com funerais<br />

durante o período <strong>de</strong> 1880 a 1886, os mais pobres chegavam a gastar, em média, 9% do<br />

total <strong>de</strong> seu monte-mor para o mesmo período. Qual a resposta para essa gran<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sproporção?<br />

Po<strong>de</strong>mos encontrar indícios para a resposta na análise dos recibos, que nos<br />

permite visualizar a qualida<strong>de</strong> e a quantida<strong>de</strong> dos itens presentes em um funeral. Em<br />

São José estes itens se repetiam em quase todos os inventários, algo importante que<br />

analisaremos mais à frente.<br />

Comparando os recibos presentes em dois inventários, um <strong>de</strong> uma pessoa pobre<br />

e outro <strong>de</strong> uma rica, po<strong>de</strong>mos notar o que era comum a todos e o que era específico <strong>de</strong><br />

uma categoria neste período. Nos recibos do primeiro caso analisado, Francisco <strong>de</strong><br />

86


Souza Pereira possui um monte-mor <strong>de</strong> 510$000, isto é, se encontra na menor faixa <strong>de</strong><br />

fortuna. Com seu funeral foram gastos cerca <strong>de</strong> 23$110. Já no segundo caso a família <strong>de</strong><br />

Paulimão Carlos Maria Huergo, cuja fortuna era superior a 24:000$000, gastou cerca <strong>de</strong><br />

390$700 em ritos fúnebres.<br />

No caso <strong>de</strong> Francisco <strong>de</strong> Souza Pereira notamos um mínimo <strong>de</strong> elementos que<br />

fazia parte do que era consi<strong>de</strong>rado um funeral digno: roupa e acessórios para o enterro,<br />

provavelmente englobando caixão, abertura <strong>de</strong> cova e <strong>de</strong>mais obrigatorieda<strong>de</strong>s e missa<br />

<strong>de</strong> corpo presente. Estes itens sempre apareciam nos recibos. Entretanto, para aqueles<br />

que dispunham <strong>de</strong> mais dinheiro, o número <strong>de</strong> itens podia aumentar. Os gastos com o<br />

funeral <strong>de</strong> Paulimão Carlos Maria Huergo incluem um carro <strong>de</strong> viagem, para<br />

possivelmente trazer amigos ou familiares da vila <strong>de</strong> Curitiba, além <strong>de</strong> muitos itens<br />

<strong>de</strong>stinados ao ato do luto, como velas e itens para a armação do local do luto. Não se<br />

sabe se o luto foi em casa ou em outro lugar, mas, através dos recibos, nota-se que foi<br />

investido muito na “armação” do local do velório, cerca <strong>de</strong> 30$000, empregados em<br />

diversos panos, ca<strong>de</strong>ados, tachas <strong>de</strong> metal, carretéis. Como um indivíduo rico e<br />

importante politicamente (foi vereador <strong>de</strong> São José durante os anos <strong>de</strong> 1879 a 1883) 151 ,<br />

sua família <strong>de</strong>via cuidar para que seu lugar na hierarquia fosse <strong>de</strong>vidamente transposto<br />

para o funeral. Deste modo, não se mediram esforços para a compra <strong>de</strong> tudo o que se<br />

fazia necessário para um representante da alta hierarquia são-joseense.<br />

Abertura <strong>de</strong> catacumba<br />

Quadro 1. Itens presentes nos recibos <strong>de</strong> gastos fúnebres<br />

Itens Tipos<br />

Aluguel <strong>de</strong> carro Para transporte <strong>de</strong> pessoas <strong>de</strong> outras regiões<br />

Tachas <strong>de</strong> metal<br />

Ca<strong>de</strong>ados<br />

Parafusos<br />

Botões pretos<br />

Velas<br />

Carretéis<br />

Alfinetes<br />

Alpaca, morim, algodão, gallão tecidos<br />

Armação (casa ou igreja) Preparação do local do luto<br />

Mortalhas<br />

151 Paula, João Roberto <strong>de</strong>, et. al. São José dos Pinhais: Aspectos Históricos. Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito <strong>de</strong><br />

Curitiba: Curitiba, s. ed. , 1983.<br />

87


Missas Corpo presente, sétimo dia, encomendação, do enterro.<br />

Vinho<br />

Caixão<br />

Gêneros alimentos<br />

Fonte: Recibos <strong>de</strong> gastos com ritos fúnebres. II cartório da vara cível <strong>de</strong> São José dos Pinhais.<br />

Nesse período também po<strong>de</strong> ser notada uma quantida<strong>de</strong> cada vez maior <strong>de</strong><br />

recibos <strong>de</strong> gastos fúnebres em São José dos Pinhais, que nos faz pensar na necessida<strong>de</strong><br />

que as pessoas tinham <strong>de</strong> ser ressarcidas, e mais, po<strong>de</strong>-se perceber a mudança que os<br />

ritos fúnebres estavam tomando na or<strong>de</strong>m social. Como foi visto, o funeral como<br />

representação do julgamento que a socieda<strong>de</strong> fazia <strong>de</strong> seus mortos, trazia consigo<br />

muitas significações. Significava uma celebração da posição econômica, do prestígio<br />

social ou da projeção política do <strong>de</strong>funto. Enfim, o funeral <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser algo<br />

essencialmente religioso e passa a ser a expressão da hierarquia <strong>de</strong> uma certa socieda<strong>de</strong>.<br />

Essa necessida<strong>de</strong> por ressarcimento é causada primeiramente pelo fato <strong>de</strong> que as<br />

pessoas estão ficando mais pobres e não po<strong>de</strong>m mais <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> lado mesmo pequenas<br />

pendências.<br />

Tabela 10 - Participação dos gastos com ritos fúnebres nas fortunas <strong>de</strong> acordo<br />

com faixas <strong>de</strong> tamanho dos montes-mores, em réis <strong>de</strong> 1872 (%) (São José dos<br />

Pinhais, 1852-1886)<br />

Intervalos<br />

Faixas <strong>de</strong> tamanho<br />

das fortunas<br />

Menor que<br />

1860 a 1869 1870 a 1879 1880 a 1886<br />

2:000$000<br />

2:000$000<br />

a<br />

8,4<br />

4,2<br />

9<br />

4:999$999<br />

5:000$000<br />

a<br />

4,8<br />

2,1<br />

2,3<br />

9:999$999<br />

Igual ou maior<br />

1,2<br />

1,4<br />

0,8<br />

que 10:000$000 *<br />

1,0<br />

1,6<br />

Fonte: Inventários post-mortem. II cartório da vara cível <strong>de</strong> São José dos Pinhais.<br />

* Não houve casos<br />

Optei por omitir os anos 1850, pois por ter poucos casos é insignificante na percentagem final.<br />

Em São José dos Pinhais foram encontrados muitos inventários com gastos em<br />

ritos fúnebres que chegavam a uma média <strong>de</strong> um terço <strong>de</strong> toda a sua fortuna. É ao que<br />

se refere a historiografia quando diz que gran<strong>de</strong> parte da fortuna era gasto em funerais e<br />

88


que esse ato era um fator <strong>de</strong> empobrecimento dos her<strong>de</strong>iros. Numa análise mais <strong>de</strong>tida<br />

dos inventários que contavam com a presença <strong>de</strong> gastos fúnebres, notamos que os<br />

maiores gastadores nesse sentido, aqueles que gastavam mais <strong>de</strong> 100 mil-réis,<br />

representavam 25% <strong>de</strong> todos os inventariados com gastos fúnebres. Este seleto grupo<br />

gastavam em média 196$060, uma gran<strong>de</strong> quantia que podia ser empregada na compra<br />

<strong>de</strong> várias cabeças <strong>de</strong> gado e <strong>de</strong> inúmeros utensílios domésticos e agrários. Porém, este<br />

gasto não afetava muito essas fortunas, que, em média, chegavam a representar 1% no<br />

total dos montes-mores. De outro lado, entre os mais pobres (concentrados na faixa <strong>de</strong><br />

fortuna inferior a 2:000$) o gasto chegava a representar em média 6% do total <strong>de</strong> suas<br />

fortunas.<br />

Há casos extremos <strong>de</strong> ricos e <strong>de</strong> pobres, como o caso <strong>de</strong> Dona Maria Joaquina da<br />

Conceição Nogueira, que está entre as cinco pessoas mais ricas <strong>de</strong> São José que<br />

possuem gastos fúnebres e apresenta um valor muito pequeno com relação a estes<br />

gastos, cerca <strong>de</strong> oito mil-réis, sendo que sua fortuna é <strong>de</strong> 11:690$400, ou seja, bem<br />

menos <strong>de</strong> um por cento do total <strong>de</strong> seu monte-mor. Por outro lado, para se enterrar<br />

Francisca Alves <strong>de</strong> Araújo, situada na faixa <strong>de</strong> fortuna mais inferior, foram gastos cerca<br />

<strong>de</strong> 38% do total <strong>de</strong> sua fortuna.<br />

Os exemplos são inúmeros e é muitas vezes difícil constatar a razão <strong>de</strong>stes casos<br />

<strong>de</strong> gastos díspares através das fontes analisadas. Po<strong>de</strong>mos apenas levantar hipóteses:<br />

para o caso do rico, já que ele possui referência a gastos fúnebres, po<strong>de</strong>mos abandonar a<br />

hipótese <strong>de</strong> ser um gasto pequeno e não constar seu valor no inventário. Po<strong>de</strong>-se<br />

argumentar que talvez ele já possuísse a maioria dos utensílios necessários para os ritos<br />

fúnebres, por isso ele não teve maiores gastos.<br />

Tabela 11. Itens que se repetem nos recibos<br />

Caixão 10$000<br />

25 missas 50$000<br />

Assento <strong>de</strong> óbito 100$000<br />

abrir e fechar catacumba 10$000<br />

missa <strong>de</strong> corpo presente 10$000<br />

ao padre 30$000<br />

velas Variado, <strong>de</strong> 5$000 a 30$000<br />

Fonte: Recibos <strong>de</strong> gastos fúnebres.<br />

89


O que fica evi<strong>de</strong>nciado <strong>de</strong>stes casos, porém, é a diferenciação nos gastos<br />

fúnebres entre ricos e pobres em São José. Aparentemente todos estavam gastando<br />

somente com os serviços extremamente necessários, porém, se para os ricos isto não<br />

representava um gasto muito gran<strong>de</strong> para suas fortunas, para os pobres o mesmo não<br />

po<strong>de</strong> ser dito. Mesmo o estritamente necessário para se fazer um funeral <strong>de</strong>cente<br />

chegava a custar alto para pessoas muito pobres à medida que se aproxima o final do<br />

século XIX. É nesse sentido que encontro entre as pessoas pobres as maiores médias<br />

com gastos fúnebres com relação ao seu monte-mor. O máximo <strong>de</strong> gasto fúnebre era o<br />

mínimo do rico. Na tabela acima, po<strong>de</strong>-se ter o provável conjunto <strong>de</strong> itens que era<br />

geralmente utilizado nos rituais fúnebres. Mas quem <strong>de</strong>finia o que era extremamente<br />

necessário para um funeral?<br />

Além da influência da Igreja, uma hipótese seria <strong>de</strong> que os pobres seriam<br />

afetados pelos costumes das elites, e na sua tentativa <strong>de</strong> comer um pedaço do bolo<br />

social, se esforçavam para <strong>de</strong>monstrar a sua importância naquilo que era consi<strong>de</strong>rado<br />

como algo essencial para os que tinham condições no século XIX, ou seja, ter uma boa<br />

morte. Essa idéia foi discutida no caso das famílias <strong>de</strong> São José (no capítulo II) on<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>monstrei a necessida<strong>de</strong> que eles tinha <strong>de</strong> se fazer representar <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um dado grupo<br />

social.<br />

Tabela 12. Participação dos gastos com ritos fúnebres nas fortunas, em réis <strong>de</strong> 1872 (São José<br />

dos Pinhais, 1852-1886)*<br />

A) Monte-mor médio nos B) Média dos gastos<br />

inventários que <strong>de</strong>clararam com ritos fúnebres nos<br />

gastos fúnebres<br />

inventários que o<br />

Intervalo<br />

<strong>de</strong>clararam<br />

B * 100 / A<br />

1852 a 1859 (3) 9:570$457 63$387 0,7<br />

1860 a 1869 (13) 2:952$782 107$873 3,7<br />

1870 a 1879 (76) 2:992$727 60$861 2,0<br />

1880 a 1886 (25) 2:710$398 79$433 2,9<br />

Média <strong>de</strong> todo o 3:138$050<br />

intervalo<br />

70$641 2,2<br />

* Somente são consi<strong>de</strong>rados os inventários nos quais constava a <strong>de</strong>claração dos gastos com ritos<br />

fúnebres.<br />

Fonte: ver tabela 9<br />

A comparação quantitativa referente a gastos fúnebres entre três anos (1868,<br />

1880 e 1883), po<strong>de</strong> nos fazer perceber as mudanças que estavam ocorrendo na vila <strong>de</strong><br />

São José. Os anos <strong>de</strong> 1869 e 1886 se configuram em casos excepcionais <strong>de</strong> gastos com<br />

90


estes rituais (gráfico 2). Nos dois anos há um aumento muito gran<strong>de</strong> no gastos com ritos<br />

fúnebres, havendo várias hipóteses para tal fato: para o ano <strong>de</strong> 1869 po<strong>de</strong> ter ocorrido<br />

uma gran<strong>de</strong> epi<strong>de</strong>mia na época que levou as pessoas a uma maior preocupação com a<br />

forma com que seriam enterrados, gastando mais com funerais; o ano <strong>de</strong> 1886 trata-se<br />

<strong>de</strong> um ano em que a coleta <strong>de</strong> inventários ainda não está completa e, talvez por isso, o<br />

valor com gastos seja tão elevado; para este ano também po<strong>de</strong> ser levantado a hipótese<br />

<strong>de</strong> que, <strong>de</strong>vido a uma maior necessida<strong>de</strong> que as pessoas tinham por ressarcimento,<br />

houve uma maior confecção <strong>de</strong> recibos que, por sua vez, aumentou os gastos com rituais<br />

fúnebres, <strong>de</strong>vido ao fato <strong>de</strong> que antes pequenos gastos não eram anotados. Porém, estas<br />

são apenas hipóteses que pretendo investigar <strong>de</strong> forma mais acurada num futuro<br />

trabalho, à medida que for transcrevendo mais fontes.<br />

7<br />

6<br />

5<br />

4<br />

3<br />

2<br />

1<br />

0<br />

Gráfico 2<br />

Participação (%) dos gastos com ritos fúnebres no total das<br />

fortunas (São José dos Pinhais, 1852-1886)<br />

Fonte: Inventários <strong>de</strong> São José dos Pinhais. Ver tabela 9<br />

Na comparação entre os anos <strong>de</strong> 1868, 1880, 1883, (tabelas 13, 14, 15) po<strong>de</strong> ser<br />

notada uma certa progressão na faixa <strong>de</strong> fortuna inferior a 2:000$ no sentido <strong>de</strong> que há<br />

um aumento na quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gastos fúnebres entre as pessoas que se localizam nessa<br />

faixa <strong>de</strong> riqueza. Por outro lado, entretanto, há uma regressão dos gastos fúnebres nas<br />

faixas superiores <strong>de</strong> fortuna. Deste modo, temos mais evi<strong>de</strong>ncias da minimização dos<br />

gastos fúnebres entre todas as pessoas na região <strong>de</strong> São José dos Pinhais no fim do<br />

século XIX.<br />

91


Com uma análise mais <strong>de</strong>tida dos recibos, pu<strong>de</strong> perceber que o gasto com ritos<br />

fúnebres estava diminuindo ao longo do século XIX, e, através da historiografia sabe-se<br />

que isso já estava acontecendo na primeira meta<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse século. Porém, o que se nota<br />

em São José dos Pinhais é uma acentuação <strong>de</strong>ssa diminuição, fato que po<strong>de</strong> ser<br />

<strong>de</strong>monstrado facilmente se fizermos uma simples comparação com o total <strong>de</strong> missas que<br />

eram realizadas após a morte <strong>de</strong> uma pessoa na Bahia em meados da primeira meta<strong>de</strong><br />

do novecentos, com o total <strong>de</strong> missas rezadas para um <strong>de</strong>funto em São José. Notamos<br />

uma diminuição brutal: enquanto que na primeira o número <strong>de</strong> missas passava da casa<br />

dos dois dígitos, em São José o maior número <strong>de</strong> missas empregado é <strong>de</strong> 25. Este<br />

número foi encontrado em três recibos, um <strong>de</strong>les, inclusive, estava em um inventário<br />

pertencente a um irmão “indigno” da Or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> São Benedito <strong>de</strong> Curitiba, que pe<strong>de</strong> este<br />

número <strong>de</strong> missas em seu testamento. 152 O cumprimento <strong>de</strong>sse pedido é fato notável,<br />

pois raramente eram cumpridas as <strong>de</strong>signações testamentárias ao pé da letra.<br />

Portanto, ricos e pobres, com suas <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s econômicas visíveis, irão<br />

utilizar a mesma estratégia para se reproduzir socialmente. A afirmação, perante a<br />

socieda<strong>de</strong>, do local que o morto ocupava na hierarquia social não significava gran<strong>de</strong><br />

coisa para o <strong>de</strong>funto. Lima Barreto, romancista nascido em meio a esse contexto, já<br />

percebia qual o verda<strong>de</strong>iro sentido por trás dos funerais, um personagem seu diz que<br />

“Enterros e <strong>de</strong>mais cerimônias fúnebres não interessam ao <strong>de</strong>funto; elas são feitas por<br />

vivos para vivos.” 153<br />

A estratificação social forçava as pessoas a utilizarem estratégias para se<br />

manterem nas suas posições hierárquicas ou tentar galgar uma melhor colocação. Para<br />

isso os funerais eram extremamente importantes, por se constituírem no local por<br />

excelência, no século XIX, para a representação do local ocupado pelo morto na<br />

hierarquia social. A morte era entendida como continuida<strong>de</strong>, e é nesse sentido que po<strong>de</strong><br />

ser compreendido a presença <strong>de</strong> um cemitério muito próximo da casa dos representantes<br />

da elite são-joseense. Além <strong>de</strong> uma mentalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> resistência ao distanciamento entre<br />

vivos e mortos, este fato evi<strong>de</strong>ncia a relação entre reprodução social e rito fúnebre<br />

presente na representação dos últimos ritos. Porém, como <strong>de</strong>monstramos, à medida que<br />

se avança para o final do século, as pessoas vão paulatinamente gastando somente o<br />

152<br />

Inventário <strong>de</strong> Joaquim Pires Cor<strong>de</strong>iro. 1882, caixa 6005, procuração 29, maço 6. II cartório da vara<br />

cível <strong>de</strong> São José dos Pinhais.<br />

153<br />

Barreto, Lima. IN: Vida e morte <strong>de</strong> M. J. Gonzaga <strong>de</strong> Sá. Conto: Carta <strong>de</strong> um <strong>de</strong>funto rico. Ed.<br />

Brasiliense: São Paulo, 1956, p. 287.<br />

92


necessário com funerais, mas esse mínimo se constitui o chão para os ricos e o teto para<br />

os pobres.<br />

Segundo a historiografia, os ritos fúnebres estariam diminuindo <strong>de</strong> importância<br />

nessa socieda<strong>de</strong>. Porém, como percebi através da análise dos inventários, São José dos<br />

Pinhais se configurava como um local on<strong>de</strong> se po<strong>de</strong> relativizar a idéia <strong>de</strong> uma pretensa<br />

“<strong>de</strong>cadência” <strong>de</strong>sses rituais para todas a regiões e grupos sociais no Brasil. Nessa<br />

região, na segunda meta<strong>de</strong> do século XIX, pu<strong>de</strong> perceber que os ritos fúnebres<br />

continuaram a ser signos do lugar ocupado pelos indivíduos na hierarquia social e que o<br />

que estava se modificando era o tipo <strong>de</strong> ligação entre os ritos fúnebres e estratificação<br />

social.<br />

Tabela 13. Média, por faixas <strong>de</strong> riqueza, das percentagens dos montes gastos com ritos fúnebres<br />

(1868)<br />

Faixas <strong>de</strong> fortuna Participação média<br />

dos gastos com ritos<br />

fúnebres no total das<br />

fortunas*<br />

Nº dos que <strong>de</strong>clararam<br />

gastos<br />

Nº dos que não<br />

<strong>de</strong>clararam gastos<br />

Até 1:999$ - - 2<br />

De 2:000$ a 4:999$ 2,1 1 1<br />

De 5:000 a 9:999$ 2,1 1 1<br />

>= 10:000 - - 1<br />

* Consi<strong>de</strong>radas apenas as fortunas cujos inventariantes <strong>de</strong>clararam gastos com ritos fúnebres.<br />

Fonte: ver tabela 9<br />

Tabela 14. Média, por faixas <strong>de</strong> riqueza, das percentagens dos montes gastos com ritos fúnebres<br />

(1883).<br />

Faixas <strong>de</strong> fortuna Participação média<br />

dos gastos com ritos<br />

fúnebres no total das<br />

fortunas*<br />

Nº dos que <strong>de</strong>clararam<br />

gastos<br />

Nº dos que não<br />

<strong>de</strong>clararam gastos<br />

Até 1:999$ 4,6 6 15<br />

De 2:000$ a 4:999$ 2,2 2 4<br />

De 5:000 a 9:999$ - - 1<br />

>= 10:000 1,6 1 2<br />

* Consi<strong>de</strong>radas apenas as fortunas cujos inventariantes <strong>de</strong>clararam gastos com ritos fúnebres.<br />

Fonte: ver tabela 9<br />

93


Tabela 15. Média, por faixas <strong>de</strong> riqueza, das percentagens dos montes gastos com ritos fúnebres<br />

(1880).<br />

Faixas <strong>de</strong> fortuna Participação média<br />

dos gastos com ritos<br />

fúnebres no total das<br />

fortunas*<br />

Nº dos que <strong>de</strong>clararam<br />

gastos<br />

Nº dos que não<br />

<strong>de</strong>clararam gastos<br />

Até 1:999$ 6,5 2 4<br />

De 2:000$ a 4:999$ - - -<br />

De 5:000 a 9:999$ 0,27 1 1<br />

>= 10:000 - - -<br />

* Consi<strong>de</strong>radas apenas as fortunas cujos inventariantes <strong>de</strong>clararam gastos com ritos fúnebres.<br />

Fonte: ver tabela 9<br />

94


Conclusão<br />

Analisando parte da vasta bibliografia sobre história da família, nota-se o tema<br />

recorrente da reprodução social, ou seja, a perpetuação do nome e da posição social<br />

familiar. Para tanto, as famílias utilizavam-se <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> ações estratégicas que<br />

serviam como elemento <strong>de</strong> sobrevivência do grupo numa certa hierarquia social. A<br />

representação <strong>de</strong>sta hierarquia era uma forma importante <strong>de</strong> fortalecê-la e consolidá-la.<br />

Nos séculos passados o campo fértil <strong>de</strong>sta representação das hierarquias eram os rituais<br />

fúnebres.<br />

Esta cerimônia encontrava seu máximo esplendor nas celebrações pomposas da<br />

morte. Muito se gastou nestes rituais para mostrar qual o local ocupado pelo <strong>de</strong>funto na<br />

socieda<strong>de</strong> local. Porém, para a região que estudo, não existem gran<strong>de</strong>s relatos ou mesmo<br />

pinturas retratando este último ritual religioso <strong>de</strong> uma pessoa. O que há são números e<br />

frases soltas aqui ou ali; indícios. Aqui travei contato com o que seria a primeira<br />

dificulda<strong>de</strong> do historiador social: o problema da falta <strong>de</strong> fontes que nos conte<br />

a<strong>de</strong>quadamente sobre o nosso objeto <strong>de</strong> estudo. Mas sem dificulda<strong>de</strong>s esta carreira não<br />

teria o gostinho especial que tem. Cada <strong>de</strong>scoberta documental se erigiu para mim como<br />

uma pista do “crime”; Ginzburg já teria comparado a função do historiador com a do<br />

<strong>de</strong>tetive.<br />

É exatamente assim que vejo a minha pesquisa ao longo <strong>de</strong> três anos sobre os<br />

ritos fúnebres em São José dos Pinhais. No início tinha uma hipótese a ser testada:<br />

segundo a historiografia os gastos com ritos fúnebres estariam em franca diminuição na<br />

primeira meta<strong>de</strong> do século XIX. Após meses em pesquisa cartorial, e após transformar<br />

todos os dados dispersos em objetos trabalháveis na forma <strong>de</strong> banco <strong>de</strong> dados, noto que<br />

ainda havia um gasto alto com ritos fúnebres na segunda meta<strong>de</strong> do século XIX. Claro<br />

que por “alto gasto” <strong>de</strong>vemos levar em consi<strong>de</strong>ração a região estudada, que não po<strong>de</strong><br />

ser comparada em graus <strong>de</strong> riqueza com locais como Bahia e Rio <strong>de</strong> Janeiro. Mas, se<br />

tomarmos padrões internos para a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> riqueza, temos uma elite local que<br />

também se preocupa com manutenção <strong>de</strong> seu po<strong>de</strong>r.<br />

Deste modo, <strong>de</strong>vemos olhar para a região tendo em vista a hierarquia social<br />

local. Neste sentido procurei hierarquizar os indivíduos que possuíam inventários,<br />

dispondo-os em faixas <strong>de</strong> fortunas. O passo seguinte, foi analisar as diferenças em<br />

gastos com ritos fúnebres. O que notei foi que os mais ricos estavam gastando menos e<br />

que os mais pobres estavam gastando mais. Quer dizer, encontrei um “piso”: os ricos no<br />

andar <strong>de</strong> cima, estavam aproximando seus gastos <strong>de</strong>ste chão, enquanto que os pobres,<br />

95


no andar inferior, se esforçavam para alcançar este piso, que para eles representava o<br />

teto. Temos assim, que o que estava mudando em São José era a relação entre<br />

estratificação social e ritos fúnebres. Cada vez mais, num movimento circular, os pobres<br />

vão procurar se fazer representar nesta socieda<strong>de</strong> pretensamente dominada pelas elites.<br />

Os pobres também vão brigar na mesma arena pela ascensão social.<br />

Mesmo assim, é da elite que temos os maiores gastos com ritos fúnebres ou<br />

mesmo as mais pomposas cerimônias, porque são eles que tem maiores possibilida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> reproduzir seu “nome social”. Exemplar neste sentido, são os dois casos familiares<br />

que analiso, o da família Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Sá e do Padre Francisco <strong>de</strong> Paula Prestes. Através<br />

<strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> estratégias esses grupos <strong>de</strong> pessoas buscam a ascensão social <strong>de</strong> seus<br />

membros. No interior <strong>de</strong>stas famílias encontramos a fina elite local: capitães <strong>de</strong><br />

or<strong>de</strong>nanças, tenentes e majores da Guarda Nacional e padres. A historiografia mostra<br />

para diversas regiões a importância <strong>de</strong>stes cargos na re<strong>de</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r local.<br />

Mesmo que os registros se mostrem muitas vezes reticentes em São José dos<br />

Pinhais no século XIX, os dados extraídos <strong>de</strong>les nos fazem perceber as ações<br />

estratégicas para obter ascensão social. Os rituais fúnebres representam apenas uma<br />

<strong>de</strong>ssas estratégias. Porém, <strong>de</strong>vido à forte religiosida<strong>de</strong> herdada <strong>de</strong> tempos coloniais, no<br />

Brasil essas cerimônias por muito tempo serviram como “espelhos das hierarquias”,<br />

on<strong>de</strong> ficava evi<strong>de</strong>nciado o local que o <strong>de</strong>funto ocupava na socieda<strong>de</strong> local.<br />

Lendo e ouvindo as notícias sobre a morte do Para João Paulo II vejo um esboço<br />

<strong>de</strong> permanência do ritual fúnebre enquanto símbolo <strong>de</strong> um posicionamento hierárquico.<br />

Em pleno século XXI, on<strong>de</strong> há um discurso <strong>de</strong> abandono <strong>de</strong> práticas “supersticiosas” e<br />

da religião, somos brindados com um funeral digno <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> membro das antigas<br />

elites do Antigo Regime: gastam-se milhões <strong>de</strong> euros na concepção e execução das<br />

exéquias do chefe máximo da Igreja Católica. Milhares <strong>de</strong> pessoas compareceram à<br />

cerimônia, mesmo autorida<strong>de</strong>s notadamente contrárias ao pensamento católico, e<br />

seguem-se à risca todos os elementos rituais. Através <strong>de</strong>ste exemplo constatamos a forte<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se fazer representar na socieda<strong>de</strong>. A Igreja Católica enfrenta hoje um<br />

forte sentimento <strong>de</strong> negação <strong>de</strong> seus valores e <strong>de</strong> sua importância. O funeral do papa<br />

simbolizou algo que o mais simples habitante do Brasil dos tempos passados sabia <strong>de</strong><br />

cor: a busca pela representação da hierarquia social. Através daquela cerimônia a Igreja<br />

quis fortalecer o local ocupado por sua instituição na socieda<strong>de</strong> e, com rituais<br />

pomposos, quis fazer renascer a velha concepção barroca da socieda<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> Igreja e<br />

Estado eram as cabeças do corpo social.<br />

96


Será que estamos livres da noção <strong>de</strong> reprodução social, ou será que o que mudou<br />

foram as formas estratégicas utilizadas pelas famílias? Para o contexto que estu<strong>de</strong>i já<br />

notei que essas formas estavam mudando, e que outras formas conviviam ao mesmo<br />

tempo, como dotes e outras relações familiares. Com certeza a análise <strong>de</strong>stas outras<br />

formas, ainda não plenamente estudadas, po<strong>de</strong> enriquecer a compreensão da região e<br />

nos levar a enten<strong>de</strong>r as constituições sociais locais. O que percebi através da minha<br />

pesquisa, foi que as estratégias <strong>de</strong> reprodução conviveram lado a lado com os homens<br />

do século XIX. O estudo parcial <strong>de</strong>stas estratégias revelou pequenas tramas que<br />

formavam a socieda<strong>de</strong> local, suas elites e a busca pela ascensão social.<br />

97


Fontes<br />

Inventários post-mortem. II cartório da vara cível <strong>de</strong> São José dos Pinhais.<br />

Recibos <strong>de</strong> gastos fúnebres. II Cartório da Vara Cível <strong>de</strong> São José dos Pinhais.<br />

Testamentos. II cartório da vara cível <strong>de</strong> São José dos Pinhais.<br />

Registros <strong>de</strong> óbitos. Paróquia <strong>de</strong> São José dos Pinhais<br />

Arquivo do Museu Municipal Atílio Rocco, São José dos Pinhais, Pasta<br />

Cemitério. Carta enviada ao Presi<strong>de</strong>nte e membros da Câmara Municipal, 24 <strong>de</strong><br />

Dezembro <strong>de</strong> 1884<br />

Arquivo do Estado <strong>de</strong> São Paulo. Listas <strong>de</strong> habitantes <strong>de</strong> Curitiba, 1797 (foram<br />

consultadas cópias microfilmadas pertencentes ao <strong>Departamento</strong> Estadual <strong>de</strong> Arquivo<br />

Público/PR).<br />

98


Referências bibliográficas<br />

1981.<br />

Ariès, Philippe. O homem diante da morte. Ed. Francisco Alves. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Bakhtin, Mikhail. A cultura popular na Ida<strong>de</strong> Média e no Renascimento: o<br />

contexto <strong>de</strong> François Rabelais. São Paulo: Hicitec; Brasília: Ed. UnB, 1999.<br />

Barreto, Lima. IN: Vida e morte <strong>de</strong> M. J. Gonzaga <strong>de</strong> Sá. Conto: Carta <strong>de</strong> um<br />

<strong>de</strong>funto rico. Ed. Brasiliense: São Paulo, 1956.<br />

Benjamim, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Ed.<br />

Brasiliense, 1963.<br />

Papirus, 1996<br />

Bourdieu, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas, São Paulo:<br />

Bourdieu, Pierre. A reprodução da crença. Contribuição para uma economia<br />

dos bens simbólicos. Ed. Zouk. São Paulo: 2001.<br />

Bourdieu, Pierre. Meditações pascalianas. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Bertrand Brasil, 2001<br />

Carvalho, Jose Murillo. Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão<br />

conceitual. Scielo, v. 40, n. 2, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1997<br />

Castro, Jeanne B. A milícia Cidadã: A guarda Nacional <strong>de</strong> 1831 a 1850. Ed.<br />

Nacional, Brasília, 1977.<br />

Castro, Hebe. <strong>História</strong> Social. IN: Cardoso, Ciro Flamarion e Vainfas, Ronaldo<br />

(orgs). Domínios da história: ensaios <strong>de</strong> teoria e metodologia. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Campus,<br />

1997.<br />

1989.<br />

Costa, Jurandir. Or<strong>de</strong>m médica e norma familiar. Ed. Graal. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Catecismo da Igreja Católica. Ed. Loyola: São Paulo, 2000<br />

Faria, Sheila Siqueira <strong>de</strong> Castro. Fortuna e família no cotidiano colonial<br />

(su<strong>de</strong>ste, século XVIII). Tese <strong>de</strong> Doutoramento, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense.<br />

Niterói, 1994.<br />

Ferrarini, Sebastião. A escravidão negra na província do Paraná. Editora Lítero-<br />

técnica. Paraná: s/d.<br />

Fragoso, João Luis. Homens <strong>de</strong> grossa ventura. Acumulação e hierarquia na<br />

praça mercantil do Rio <strong>de</strong> Janeiro (1790-1830). Rio <strong>de</strong> Janeiro: Civilização brasileira,<br />

1998.<br />

Freyre, Gilberto. Casa-Gran<strong>de</strong> e senzala. Ed. Record. Rio <strong>de</strong> Janeiro: 1996.<br />

99


Ginzburg, Carlo. O queijo e os vermes. O cotidiano e as idéias <strong>de</strong> um moleiro<br />

perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.<br />

1995.<br />

Giuseppe Alberigo (org) <strong>História</strong> dos Concílios Ecumênicos. Paulus: São Paulo,<br />

Hobsbawn, Eric e Ranger, Terence (org.). A invenção das tradições. São Paulo:<br />

Ed. Paz e Terra, 2002.<br />

Letras, 1995.<br />

Holanda, Sérgio Buarque <strong>de</strong>. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das<br />

Lewcowics, Ida. A fragilida<strong>de</strong> do celibato. IN: Lima, L. L da Gama (org).<br />

Mulheres, padres e adúlteros. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Ed. Graal, 1986.<br />

Levi, Giovanni. Micro-história. IN: Burke, Peter. A escrita da história: novas<br />

perspectivas. São Paulo: Ed. Da Universida<strong>de</strong> Estadual Paulista, 1992.<br />

Levi, Giovanni. A herança imaterial. A trajetória <strong>de</strong> um exorcista no Piemont do<br />

século XVII. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Civilização brasileira, 2002.<br />

Lobo, Eulália M. L. Evolução dos preços e do padrão <strong>de</strong> vida na cida<strong>de</strong> do Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro, 1820-1930. IN: Revista Brasileira <strong>de</strong> economia, vol. 25 nº 4, 1971.<br />

Kempis, Thomas. Imitação <strong>de</strong> Cristo. Martin Claret: São Paulo, 2002.<br />

Kuznesof, Elizabeth. Property law and family strategies: inheritance and<br />

corporations in Brazil: 1800-1960. American Historical Association, Illinois. (mimeo)<br />

Kuznesof, Ane Elizabeth. A família na socieda<strong>de</strong> brasileira: Parentesco,<br />

clientelismo e estrutura social (São Paulo, 1700-1880). In: Revista brasileira <strong>de</strong><br />

Historia. , São Paulo, v.9, pp. 37-63, set. 88/fev.89.<br />

Magalhães, Marionil<strong>de</strong> Brephold, et al. São José dos Pinhais: a trajetória <strong>de</strong> uma<br />

cida<strong>de</strong>. Curitiba: ed. Prephacio, 1992.<br />

Mattos, Hebe. Ao sul da história. Ed. Brasiliense, São Paulo: 1987<br />

Mattos, Hebe Maria. Das Cores do Silêncio: Os significados da Liberda<strong>de</strong> no<br />

Su<strong>de</strong>ste escravista, Brasil século XIX. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nova Fronteira, 1998.<br />

Mattoso, Kátia M. <strong>de</strong> Queirós. Bahia, século XIX. Uma província no Império.<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1992.<br />

Mattoso, Kátia. Testamentos <strong>de</strong> escravos libertos na Bahia no século XIX: Uma<br />

fonte para o estudo das mentalida<strong>de</strong>s. Centro <strong>de</strong> Estudos Baianos. Salvador, Bahia:<br />

1979<br />

Martins, José <strong>de</strong> Souza (org). A morte e os mortos na socieda<strong>de</strong> brasileira.<br />

Hucitec, São Paulo: 1983.<br />

100


Morse, Richard M. O espelho <strong>de</strong> Próspero: cultura e idéias nas Américas. São<br />

Paulo: Cia das Letras, 1998.<br />

Nazzari, Muriel. Dotes Paulistas: Composição e transformações (1600-1870).<br />

IN: Revista Brasileira <strong>de</strong> <strong>História</strong>, São Paulo, vol. 9 nº 17, pp. 87-100, set. 88/fev.89.<br />

Nazzari, Muriel. O <strong>de</strong>saparecimento do dote: mulheres, famílias e mudança<br />

social em São Paulo, Brasil, 1600-1900. São Paulo: Companhia das Letras, 2001<br />

Paula, João Roberto <strong>de</strong>, et. al. São José dos Pinhais: Aspectos Históricos.<br />

Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito <strong>de</strong> Curitiba: Curitiba, s. ed. , 1983.<br />

Peraro, Maria A<strong>de</strong>nir. Farda, saias e batinas: A ilegitimida<strong>de</strong> na paróquia<br />

Senhor Bom Jesus <strong>de</strong> Cuiabá, 1853-90. Tese <strong>de</strong> doutorado, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do<br />

Paraná, Curitiba, 1997.<br />

Pereira, Magnus Roberto <strong>de</strong> Mello. Semeando iras rumo ao progresso:<br />

or<strong>de</strong>namento jurídico e econômico da socieda<strong>de</strong> paranaense, 1829-1889. Curitiba: Ed.<br />

Da UFPR, 1996.<br />

Reis, João José. A morte é uma festa. São Paulo: Companhia das Letras: 1999.<br />

Sbravati, Myriam, Estudos na Paróquia <strong>de</strong> São José dos Pinhais (1756-1870).<br />

Tese <strong>de</strong> Mestrado, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Paraná, Curitiba, 1980.<br />

Samara, Eni Mesquita <strong>de</strong>. As Mulheres, O Po<strong>de</strong>r e a Família: São Paulo, século<br />

XIX. São Paulo: Marco Zero.<br />

Sampaio, Antonio Carlos Jucá <strong>de</strong>. “A pequena produção <strong>de</strong> alimentos na crise<br />

do escravismo: Magé, 1850-1888”. IN: Cativeiro e liberda<strong>de</strong>, ano II, v.3, 1996.<br />

Sampaio, Antonio Carlos Jucá <strong>de</strong>. Na encruzilhada do Império: hierarquias<br />

sociais e conjunturas econômicas no Rio <strong>de</strong> Janeiro (c.1650 – c.1750). Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Arquivo Nacional, 2003.<br />

Soares, Mariza <strong>de</strong> Carvalho, Devotos da Cor: I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> étnica, religiosida<strong>de</strong> e<br />

escravidão no Rio <strong>de</strong> Janeiro, século XVIII. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Civilização Brasileira,<br />

2000.<br />

Paulo, 2004<br />

Vozes, 1974<br />

Terrin, Aldo. O rito: antropologia e fenomenologia da ritualida<strong>de</strong>. Paulus: São<br />

Turner, Victor W. O processo ritual: estrutura e anti-estrutura. Petrópolis:<br />

Vainfas, Ronaldo. Tropico dos pecados. Moral, sexualida<strong>de</strong> e Inquisição no<br />

Brasil. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Ed. Campus, 1989<br />

101


Graal, 1986.<br />

Vainfas, Ronaldo (org.). Historia da sexualida<strong>de</strong> no Brasil, Rio <strong>de</strong> Janeiro: Ed.<br />

Westphalen, Cecília Maria. O barão dos Campos Gerais e o comércio <strong>de</strong> tropas.<br />

Ed. (?), Curitiba, 1995.<br />

102

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!