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Universidade Federal do Paraná - Departamento de História ...

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FABRÍCIO MEIRA DE OLIVEIRA<br />

AS APROPRIAÇÕES DAOBRA DE GABRIEL SOARES DE SOUZA NO DISCURSO<br />

DE GILBERTO FREYRE<br />

CURITIBA<br />

2010<br />

1<br />

Monografia apresentada para concluir a<br />

disciplina <strong>de</strong> Estágio Supervisiona<strong>do</strong> em<br />

Pesquisa Histórica, sob orientação <strong>do</strong><br />

Professor Doutor Magnus Pereira da<br />

<strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>do</strong> <strong>Paraná</strong> - setor <strong>de</strong><br />

ciências Humanas Letras e Artes-<br />

<strong>Departamento</strong> <strong>de</strong> <strong>História</strong> - Curso <strong>de</strong><br />

Bacharela<strong>do</strong> e Licenciatura em <strong>História</strong>.


Resumo<br />

Este estu<strong>do</strong> monográfico tem como objeto a recepção da obra Trata<strong>do</strong> Descritivo <strong>do</strong><br />

Brasil em 1587 <strong>de</strong> autoria <strong>de</strong> Gabriel Soares <strong>de</strong> Souza, e a construção <strong>do</strong> discurso<br />

historiográfico brasileiro da década <strong>de</strong> 30 <strong>do</strong> século XX, toman<strong>do</strong> como referência a obra<br />

Casa-Gran<strong>de</strong> e Senzala, escrita em 1933 por Gilberto Freyre. A monografia divi<strong>de</strong>-se em<br />

duas partes. Na primeira, i<strong>de</strong>ntifica-se Gabriel Soares <strong>de</strong> Souza focalizan<strong>do</strong>-se o contexto<br />

no qual sua obra se insere. Em seguida o estu<strong>do</strong> se dirige para a história <strong>do</strong> livro até sua<br />

organização por Varnhagem no século XIX, além <strong>do</strong> próprio teor <strong>de</strong> Trata<strong>do</strong> Descritivo <strong>do</strong><br />

Brasil. Finalizan<strong>do</strong> a primeira parte é feita uma breve revisão bibliográfica enfatizan<strong>do</strong> o<br />

fato <strong>de</strong> que a obra <strong>de</strong> Gabriel Soares <strong>de</strong> Souza tem si<strong>do</strong> apropriada por inúmeros<br />

historia<strong>do</strong>res, porém, quase sempre com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reiterar as idéias <strong>do</strong>s historia<strong>do</strong>res<br />

sem que haja intenção <strong>de</strong> verificar qual é a parte construída por Gabriel Soares. Finalizan<strong>do</strong><br />

a primeira parte é refeita uma revisão bibliográfica. Na segunda parte, o estu<strong>do</strong> se dirige<br />

exclusivamente á recepção <strong>de</strong> Gabriel Soares <strong>de</strong> Souza em Casa-gran<strong>de</strong> e Senzala.<br />

Verifican<strong>do</strong> <strong>de</strong> que forma <strong>de</strong> que forma Freyre se apropria <strong>de</strong> Trata<strong>do</strong> Descritivo <strong>do</strong> Brasil<br />

em 1587.<br />

Palavras chave: Gabriel Soares <strong>de</strong> Souza, Gilberto Freyre, recepção.<br />

2


Introdução<br />

O presente trabalho tem por objeto a recepção da obra Trata<strong>do</strong> Descritivo <strong>do</strong><br />

Brasil em 1587, <strong>de</strong> autoria <strong>de</strong> Gabriel Soares <strong>de</strong> Souza, e a sua influência na construção <strong>do</strong><br />

discurso historiográfico brasileiro das décadas <strong>de</strong> 30 <strong>do</strong> século XX, através <strong>de</strong> autores<br />

representativos <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>. No caso Gilberto Freyre e a obra que o consagrou nesta mesma<br />

época – Casa-Gran<strong>de</strong> e Senzala <strong>de</strong> 1933.<br />

Os autores e obras aborda<strong>do</strong>s na revisão bibliográfica <strong>de</strong>ste estu<strong>do</strong> o foram em<br />

or<strong>de</strong>m cronológica: Varnhagen, pela organização e comentário da obra Trata<strong>do</strong> Descritivo<br />

<strong>do</strong> Brasil em 1587, no ano <strong>de</strong> 1851 - Gilberto Freyre com Casa-Gran<strong>de</strong> e Senzala, obra<br />

publicada em 1936; Sérgio Buarque <strong>de</strong> Holanda e seu ensaio Raízes <strong>do</strong> Brasil, publica<strong>do</strong><br />

em 1936; Florestan Fernan<strong>de</strong>s com o livro Organização Social <strong>do</strong>s Tupinambás, cuja<br />

primeira edição é <strong>do</strong> ano <strong>de</strong> 1946; e John Manuel Monteiro, como representante <strong>de</strong> uma<br />

historiografia mais recente.<br />

A escolha <strong>do</strong>s autores e das obras não foi arbitrária. Ela <strong>de</strong>ve-se ao grau <strong>de</strong><br />

influência que estes exerceram sobre a maior parte das produções <strong>de</strong> natureza<br />

historiográfica, sociológica e antropológica escritas no século XX, chegan<strong>do</strong> aos dias<br />

atuais. Neste senti<strong>do</strong>, outros autores e obras <strong>de</strong> reconheci<strong>do</strong> valor, tais como: Caio Pra<strong>do</strong><br />

Júnior ou Serafim Leite po<strong>de</strong>riam ser elenca<strong>do</strong>s, contu<strong>do</strong>, por não citar diretamente a fonte<br />

primária em questão, ou ainda, por fazer uso exíguo da mesma, não po<strong>de</strong>riam ser utilizadas<br />

para respon<strong>de</strong>r as principais perguntas <strong>de</strong>ste trabalho: as possíveis divergências <strong>de</strong> visão,<br />

sobre um mesmo passa<strong>do</strong>.<br />

Em essência, o que se busca é verificar o grau <strong>de</strong> importância da obra <strong>de</strong> Gabriel<br />

Soares <strong>de</strong> Souza no discurso historiográfico Brasileiro, através das leituras e discursos <strong>de</strong><br />

Gilberto Freyre. Ou melhor, <strong>de</strong> que forma o discurso historiográfico <strong>do</strong> século XX se<br />

apropria <strong>do</strong> discurso produzi<strong>do</strong> nos XVI, para reconstruir a gênese <strong>de</strong> uma suposta<br />

"brasilida<strong>de</strong>".<br />

Neste senti<strong>do</strong> há <strong>de</strong> se estabelecer uma "via <strong>de</strong> mão dupla", comparan<strong>do</strong> o que foi<br />

escrito por Gabriel Soares com aquilo que foi apropria<strong>do</strong> pelos que o interpretaram. Este<br />

procedimento se faz necessário por compreen<strong>de</strong>r que o autor e seus intérpretes, falam <strong>de</strong><br />

3


diferentes contextos históricos, com interesses que são pertinentes unicamente ao seu<br />

próprio tempo.<br />

Não se busca evi<strong>de</strong>ntemente, com isso, estabelecer qual <strong>do</strong>s discursos é o mais<br />

verda<strong>de</strong>iro, o da historiografia <strong>do</strong> século XX ou a <strong>do</strong> século XVI, visto que "o<br />

conhecimento histórico é historicamente produzi<strong>do</strong>" e que a história, enquanto<br />

conhecimento, é uma construção - uma representação da realida<strong>de</strong> - e não o real em si<br />

próprio, tal como é, ou foi algum dia.<br />

4


Capítulo 1<br />

Notas biográficas <strong>de</strong> Gabriel Soares <strong>de</strong> Souza.<br />

A biografia <strong>de</strong> Gabriel Soares <strong>de</strong> Souza é cheia <strong>de</strong> lacunas. Sabe-se que era<br />

português <strong>de</strong> nascimento, possivelmente da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa, on<strong>de</strong> habitavam suas duas<br />

irmãs viúvas.<br />

Por volta <strong>de</strong> 1567 (ou 1570?), acompanhan<strong>do</strong> Francisco Barreto a Monomotapa,<br />

Soares resolve parar na Bahia (Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Salva<strong>do</strong>r da Bahia <strong>de</strong> To<strong>do</strong>s os Santos,<br />

também <strong>de</strong>nominada genericamente como Bahia até mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século XX. O termo Bahia<br />

também podia ser aplica<strong>do</strong> a to<strong>do</strong> o entorno da Bahia <strong>de</strong> To<strong>do</strong>s os Santos e regiões<br />

próximas, o <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> Recôncavo Baiano. Portanto, a região citada em textos antigos,<br />

nem sempre correspon<strong>de</strong> à divisão política e administrativa, por vezes <strong>de</strong>nominada <strong>de</strong><br />

Capitania da Bahia ou que nos tempos <strong>do</strong> Brasil Império respondia pelo nome <strong>de</strong> Província<br />

da Bahia e em tempos republicanos pelo nome <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> da Bahia. Apesar <strong>de</strong> ser<br />

constantemente cita<strong>do</strong> por Soares o termo "Cida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Salva<strong>do</strong>r", seu uso não foi sempre o<br />

mais corrente ao longo <strong>do</strong> tempo, muitas vezes referências à Bahia, po<strong>de</strong>m estar<br />

relacionadas na verda<strong>de</strong> à cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Salva<strong>do</strong>r, especificamente. Parte <strong>do</strong> que é <strong>de</strong>scrito por<br />

Gabriel Soares como Bahia, há muito já está inseri<strong>do</strong> no sítio urbano da Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Salva<strong>do</strong>r. Estabeleci<strong>do</strong> nesta região, Gabriel Soares fez fortuna tornan<strong>do</strong>-se senhor <strong>de</strong> um<br />

gran<strong>de</strong> engenho nas proximida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> Rio Jequiriçá.<br />

Por ocasião da morte <strong>de</strong> seu irmão João Coelho <strong>de</strong> Souza, que havia percorri<strong>do</strong> os<br />

sertões por três anos e <strong>de</strong>scoberto “metaes” preciosos, Gabriel Soares recebeu por<br />

intermédio <strong>de</strong> um porta<strong>do</strong>r <strong>de</strong> confiança, o itinerário da expedição <strong>de</strong> seu irmão. De posse<br />

<strong>de</strong>ste valioso <strong>do</strong>cumento, Gabriel Soares embarca em direção à Península por volta <strong>do</strong> mês<br />

<strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1584, com o intuito <strong>de</strong> conseguir concessões régias e privilégios que lhes<br />

pu<strong>de</strong>ssem ser úteis para viabilizar sua empreitada pelos sertões com o aval da Coroa. Em<br />

1587, publica a obra Tratada Descritivo <strong>do</strong> Brasil, <strong>de</strong>dican<strong>do</strong>-a a Dom Cristóvão <strong>de</strong> Moura<br />

- homem <strong>de</strong> esta<strong>do</strong> - cuja influência po<strong>de</strong>ria ser <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> valia para a obtenção <strong>de</strong><br />

concessões.<br />

Os trâmites foram <strong>de</strong>mora<strong>do</strong>s e o autor permanece na Península até receber o<br />

<strong>de</strong>spacho positivo em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1591. Em sete <strong>de</strong> abril <strong>do</strong> mesmo ano, já na condição <strong>de</strong><br />

5


“capitão-mor e governa<strong>do</strong>r da conquista e <strong>de</strong>scobrimento <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> São Francisco", Soares<br />

<strong>de</strong> Souza parte <strong>de</strong> Lisboa em direção as terras <strong>do</strong> Brasil a bor<strong>do</strong> da Urca flamenga Grifo<br />

Doura<strong>do</strong>, conduzin<strong>do</strong> um total <strong>de</strong> trezentos e sessenta homens entre os quais quatro<br />

carmelitas.<br />

O “projeto" <strong>de</strong> Gabriel Soares sofre os primeiros infortúnios antes mesmo <strong>de</strong> chegar<br />

à terra firme. Por volta <strong>do</strong> mês <strong>de</strong> junho, a embarcação veio a naufragar na altura da foz <strong>do</strong><br />

Rio Vaza Barris, região que havia si<strong>do</strong> recentemente colonizada por Cristóvão <strong>de</strong> Barros. A<br />

maior parte da tripulação conseguiu salvar-se. Depois <strong>de</strong>ste aci<strong>de</strong>nte, Gabriel Soares<br />

retorna à Bahia (cida<strong>de</strong>) on<strong>de</strong> recebe o auxílio <strong>de</strong> Dom Francisco <strong>de</strong> Souza. Após estar<br />

refeito da tragédia que se abateu sobre ele, Soares <strong>de</strong> Souza volta para suas terras para<br />

buscar provisões <strong>de</strong> carne e farinha para continuar a expedição.<br />

A malograda expedição <strong>de</strong> Gabriel Soares teve início subin<strong>do</strong> o Rio Paraguaçu, pela<br />

margem direita. Fun<strong>do</strong>u um arraial <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> <strong>de</strong> João Amaro, pois tinha or<strong>de</strong>ns para<br />

fundar povoações a cada cinqüenta léguas. No percurso até o dito arraial, muitos <strong>do</strong>s que o<br />

acompanhavam a<strong>do</strong>eceram assim com muitos animais foram perdi<strong>do</strong>s <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao ataque <strong>de</strong><br />

morcegos. Passadas mais cinqüenta léguas, Soares <strong>de</strong> Souza resolve fundar um segun<strong>do</strong><br />

arraial, contu<strong>do</strong> o cansaço e a <strong>do</strong>ença o venceram quan<strong>do</strong> muitos já esmoreciam. Pouco<br />

tempo <strong>de</strong>pois veio a falecer nesta mesma localida<strong>de</strong>.<br />

Sobre a obra.<br />

O primeiro exemplar <strong>de</strong> Trata<strong>do</strong> Descritivo <strong>do</strong> Brasil em 1587 <strong>de</strong> que se tem notícia<br />

teria si<strong>do</strong> entregue em Madri a Cristóvão Moura, a quem o livro é <strong>de</strong>dica<strong>do</strong>. A data da<br />

<strong>de</strong>dicatória é <strong>de</strong> 1° <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1587. O que se faz presumir que seja a datação mais<br />

aceitável da obra, pois os originais manuscritos foram perdi<strong>do</strong>s e não se sabe ao certo se<br />

esta foi apresentada em versão impressa ou manuscrita. Se não houver erros cronológicos<br />

quanto à biografia <strong>do</strong> autor, que é cheia <strong>de</strong> lacunas, po<strong>de</strong>m-se levantar algumas hipóteses<br />

através da análise <strong>do</strong> trecho que se segue 1 :<br />

Espantar serem estes <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>do</strong>s franceses alvos e louros, pois que saem a seus avós; mas é <strong>de</strong><br />

1 SOUZA, Gabriel Soares. <strong>de</strong>. Trata<strong>do</strong> Descritivo <strong>do</strong> Brasil EM 1587. 3° edição São Paulo - Recife<br />

- Porto Alegre - Rio <strong>de</strong> janeiro: Companhia Editora Nacional, 1938, p.331.<br />

6


maravilhar trazerem <strong>do</strong> sertão, entre outros tupinambás, um menino <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos para <strong>do</strong>ze,<br />

no ano <strong>de</strong> 1586, que era tão alvo, que <strong>de</strong> o ser muito não podia olhar para a clarida<strong>de</strong>.<br />

Hipótese 1 - Que a obra tenha si<strong>do</strong> escrita pelo menos em parte na Europa, pois o<br />

autor narra um acontecimento ocorri<strong>do</strong> em 1586, quan<strong>do</strong>, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com as notas<br />

biográficas, ele <strong>de</strong>veria estar na Europa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1584.<br />

Hipótese 2 - Que o autor tenha continua<strong>do</strong> a produzir o texto <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 1584,<br />

valen<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> testemunho <strong>de</strong> terceiros e <strong>de</strong> notícias, que po<strong>de</strong>riam ter si<strong>do</strong> trazidas por<br />

viajantes que regressavam <strong>do</strong> Brasil ou ainda por intermédio <strong>de</strong> cartas particulares, visto<br />

que a aparição <strong>do</strong> pequeno índio branco (provavelmente albino) se <strong>de</strong>u em terras que<br />

pertenciam ao próprio Gabriel Soares.<br />

Hipótese 3 - Que o autor, sen<strong>do</strong> um Senhor <strong>de</strong> engenho e com negócios a serem<br />

cuida<strong>do</strong>s, tenha volta<strong>do</strong> ao Brasil antes <strong>de</strong> 1591 (segun<strong>do</strong> sua biografia nesta época Gabriel<br />

Soares estaria no Reino, neste mesmo ano ele teria recebi<strong>do</strong> o seu <strong>de</strong>spacho) on<strong>de</strong> continua<br />

a escrever a obra.<br />

Através da leitura <strong>do</strong> trecho fica evi<strong>de</strong>ncia<strong>do</strong> que o autor não concluiu a obra nos<br />

<strong>de</strong>zessete anos em que morou no Brasil, ou seja, antes <strong>de</strong> 1584, época <strong>de</strong> sua partida para a<br />

Europa.<br />

Ao que tu<strong>do</strong> indica a intencionalida<strong>de</strong> maior <strong>do</strong> livro, está diretamente relacionada<br />

aos interesses priva<strong>do</strong>s <strong>de</strong> seu autor, que parece querer recomendar-se a El Rey, para<br />

receber concessões <strong>de</strong> exploração, assim com as prerrogativas oficiais. O livro é um esforço<br />

<strong>do</strong> autor em se apresentar como um homem valoroso, conhece<strong>do</strong>r da realida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Brasil e<br />

apto para protagonizar o papel <strong>do</strong> conquista<strong>do</strong>r das terras e riquezas <strong>do</strong> interior <strong>do</strong> Brasil.<br />

Sobre a formação cultural <strong>do</strong> autor, não existem informações, apenas pequenas<br />

pistas <strong>do</strong>s seus hábitos <strong>de</strong> leitura e daquilo que po<strong>de</strong>ria tê-lo inspira<strong>do</strong> a escrever, ou ainda<br />

lhe servi<strong>do</strong> <strong>de</strong> fonte escrita. O próprio autor cita "os Livros da índia" 2 e ao também a leitura<br />

relativa à Jurisprudência, o que fica claro através da citação e análise <strong>do</strong> Regimento <strong>de</strong><br />

Tomé <strong>de</strong> Souza.<br />

Livros da Índia. 3<br />

2 - Gabriel Soares <strong>de</strong> Souza, não especifica em nenhum momento qualquer título <strong>de</strong> obra. É constante<br />

em sua obra a referência aos “tais” Livros da índias.<br />

3 SOUZA, op. cit.p. 73.<br />

.<br />

7


Quem quiser saber quem foi Francisco Pereira Coutinho, leia os livros da Índia, e sabe-lo-á; e verão<br />

seu gran<strong>de</strong> valor e heróicos feitos, dignos <strong>de</strong> diferente <strong>de</strong>scanso <strong>do</strong> que teve na conquista <strong>do</strong> Brasil.<br />

Livros da Índia. 4<br />

A vila <strong>de</strong> Olinda é a cabeça da capitania <strong>de</strong> Pernambuco, a qual povoou Duarte Coelho, que foi um<br />

fidalgo, <strong>de</strong> cujo esforço e cavalaria escusaremos tratar aqui em particular, por não escurecer muito<br />

que <strong>de</strong>le dizem os livros da Índia.<br />

Regimento <strong>de</strong> Tomé <strong>de</strong> Souza. 5<br />

Sua Alteza em efeito esta <strong>de</strong>terminação tão acertada, man<strong>do</strong>u fazer prestes uma armada e provê-la <strong>de</strong><br />

to<strong>do</strong> o necessário para esta empresa, na qual man<strong>do</strong>u embarcar Tomé <strong>de</strong> Sousa <strong>do</strong> seu conselho e o<br />

elegeu para edificar esta nova cida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> que o fez capitão e governa<strong>do</strong>r-geral <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

Brasil; ao qual <strong>de</strong>u gran<strong>de</strong> alçada e po<strong>de</strong>res em seu regimento, com que quebrou as <strong>do</strong>ações aos<br />

capitães proprietários, por terem <strong>de</strong>masiada alçada, assim no crime como no cível; <strong>de</strong> que eles se<br />

agravaram à Sua Alteza, que no caso os não proveu, enten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> convir a si e a seu serviço.<br />

Em relação ao conteú<strong>do</strong> da obra compara<strong>do</strong>-a aos discursos <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong><br />

produzi<strong>do</strong>s pelos historia<strong>do</strong>res sobre o século XVI, po<strong>de</strong>m-se tirar algumas conclusões.<br />

Entre elas, po<strong>de</strong>mos citar a construção generalizante <strong>de</strong> "Renascimento", que coloca como<br />

questão a retomada <strong>do</strong> lega<strong>do</strong> Greco-Romano, como espécie <strong>de</strong> guia <strong>do</strong> homem mo<strong>de</strong>rno,<br />

ou como propõe o historia<strong>do</strong>r Luís Carlos Barreto 6 , a recuperação <strong>de</strong> um passa<strong>do</strong> que<br />

serviria como mo<strong>de</strong>lo a ser supera<strong>do</strong> e não simplesmente imita<strong>do</strong>.<br />

Em Trata<strong>do</strong> Descritivo <strong>do</strong> Brasil, Gabriel Soares em nenhum momento cita Gregos<br />

ou Romanos. Algumas menções contidas na obra se referem aos Romanos, mas são<br />

observações que não pertencem a Gabriel Soares <strong>de</strong> Souza, nem ao século XVI, mas sim,<br />

ao século XIX e a Varnhagen seu comenta<strong>do</strong>r, ao compará-lo a Plínio. Também não há<br />

referência a figuras mitológicas ou entida<strong>de</strong>s pagãs da antiguida<strong>de</strong>, como ocorre nos<br />

Lusíadas <strong>de</strong> Luiz Vaz <strong>de</strong> Camões, obra esta que cronologicamente não está muito distante<br />

da época em que se foi escrito o Trata<strong>do</strong> Descritivo <strong>do</strong> Brasil. Ao se comparar, <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong><br />

possível, as duas obras, ambas produto <strong>do</strong> mesmo século e <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mesmo contexto<br />

histórico <strong>de</strong> expansão ultramarina portuguesa, po<strong>de</strong>mos observar <strong>do</strong>is estilos<br />

completamente diferentes <strong>de</strong> escrever. Enquanto a obra <strong>de</strong> Camões é construída em versos,<br />

com uma linguagem elaborada e cheia <strong>de</strong> requintes estilísticos, a obra <strong>de</strong> Soares embora<br />

4 SOUZA, op. cit.p. p.57.<br />

5 SOUZA, op. cit. pp. 127-128.<br />

6 BARRETO, Luís Filipe. Descobrimentos e Renascimento; formas <strong>de</strong> ser e pensar nos séculos XV<br />

e XVI. Lisboa: Imprensa Nacional, 1983.<br />

8


abrangente, é sintética e marcada por uma prosa quase lacônica, que a assemelha a toda<br />

uma gama <strong>de</strong> mareantes e náufragos que <strong>de</strong>ixaram relatos e diários, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> á época <strong>de</strong><br />

Cristóvão Colombo, o que nos faz suspeitar sobre o seu grau instrução formal. Camões é<br />

apropria<strong>do</strong> e enalteci<strong>do</strong> pela cultura portuguesa enquanto Soares foi relega<strong>do</strong> ao <strong>de</strong>sprezo e<br />

con<strong>de</strong>na<strong>do</strong> ao esquecimento em Portugal. Quase não é lembra<strong>do</strong> pelos estudiosos<br />

portugueses, mesmo em momento mais atual. Um exemplo disto é o trabalho <strong>de</strong> Antônio da<br />

Rosa Men<strong>de</strong>s - A vida Intelectual -, que chega mesmo a citar O Solda<strong>do</strong> Prático, <strong>de</strong> Diogo<br />

Couto (com suas lamúrias). Este autor analisa toda sorte <strong>de</strong> produção, mas parece<br />

<strong>de</strong>sconhecer seu conterrâneo (Gabriel Soares). Neste senti<strong>do</strong>, a obra <strong>de</strong> Soares é apropriada<br />

pelos estudiosos <strong>de</strong> "literatura brasileira" e em parte pelos historia<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Brasil, que<br />

apesar <strong>de</strong> terem ao menos consulta<strong>do</strong> a obra, raramente se propõem a analisá-la ou criticá-<br />

la (com exceção notória <strong>de</strong> Varnhagen e John Manuel Monteiro.), preferin<strong>do</strong> utilizá-la<br />

apenas para recortá-la nos trechos em que po<strong>de</strong>m servir <strong>de</strong> ponto <strong>de</strong> apoio para o seu<br />

discurso, como po<strong>de</strong>mos observar em Sérgio Buarque <strong>de</strong> Hollanda em seu Raízes <strong>do</strong> Brasil.<br />

Contu<strong>do</strong>, boa parte <strong>do</strong> que é narra<strong>do</strong> no Trata<strong>do</strong> Descritivo <strong>do</strong> Brasil em 1587 é<br />

reproduzi<strong>do</strong> em boa parte das obras, sem que haja menção ao autor, como se parte <strong>do</strong> seu<br />

discurso já tivesse vira<strong>do</strong> lugar-comum, um conhecimento sabi<strong>do</strong> e indiscutível que<br />

dispensa maiores análises o comentários. Boa parte <strong>do</strong> material didático produzi<strong>do</strong> no<br />

Brasil, sobre o século XVI, parece repetir o conteú<strong>do</strong> da narrativa <strong>de</strong> Gabriel Soares <strong>de</strong><br />

Souza apenas com a utilização <strong>de</strong> outras palavras. A obra <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r paranaense Rocha<br />

Pombo 7 , não repete exatamente o conteú<strong>do</strong> <strong>de</strong> Soares, mas se assemelha em sua<br />

organização e foco <strong>de</strong> preocupações. A abordagem <strong>de</strong> Rocha Pombo é semelhante à <strong>de</strong><br />

Gabriel Soares, guardadas a distância secular entre os <strong>do</strong>is autores, ambos escrevem como<br />

“filósofos naturalistas", que procuram <strong>de</strong>monstrar uma <strong>de</strong>scrição da realida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um<br />

sistema único envolven<strong>do</strong> toda a complexida<strong>de</strong> da natureza perceptível. Só que neste<br />

senti<strong>do</strong>, Soares é mais filósofo <strong>do</strong> que historia<strong>do</strong>r, enquanto o segun<strong>do</strong> é mais historia<strong>do</strong>r<br />

<strong>do</strong> que filósofo. Muitos autores <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Heró<strong>do</strong>to, costumam inserir a <strong>História</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um<br />

contexto geográfico, contu<strong>do</strong> estes <strong>do</strong>is autores transcen<strong>de</strong>m em muito os <strong>de</strong>mais, talvez<br />

por já possuírem uma visão geográfica não <strong>do</strong> século XVI, XIX, ou início <strong>do</strong> XX, mas uma<br />

7 POMBO, Rocha. <strong>História</strong> <strong>do</strong> Brazil.Porto Alegre: Globo, 1935.v.1<br />

9


visão mais complexa que os aproxima da geografia em sua multifacetada abordagem<br />

contemporânea, que novamente aproxima a Geografia da Filosofia.<br />

O olhar <strong>de</strong> Gabriel Soares sobre a realida<strong>de</strong> é o olhar <strong>do</strong> empirismo, semelhante a<br />

outras <strong>de</strong>scrições produzidas durante o ciclo <strong>de</strong> expansionismo ibérico como a obra <strong>do</strong><br />

jesuíta José <strong>de</strong> Acosta <strong>História</strong> Natural e Moral das Índias. 8 . O autor parece estar movi<strong>do</strong><br />

por uma ânsia <strong>de</strong> conhecer e <strong>de</strong>svendar a natureza e procura conhece-la e <strong>de</strong>screvê-la em<br />

seus aspectos mineral, vegetal e animal. Apesar da análise minuciosa, não se encontra na<br />

obra nenhum indício que sugira um esboço <strong>do</strong> que mais tar<strong>de</strong> seria <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

classificação taxonômica. As explicações dadas por Soares parecem satisfazer as<br />

necessida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> homem <strong>do</strong> século XVI, quan<strong>do</strong> as macro-unida<strong>de</strong>s eram <strong>de</strong>scritas, mas não<br />

precisavam ser comparadas. Algo mais ou menos semelhante a: Esta é uma rã, e aquela é<br />

outra rã. A primeira rã tem este aspecto e a segunda rã tem outro aspecto, mas ambas são<br />

rãs <strong>do</strong> mesmo jeito. Por vezes se preocupan<strong>do</strong> com relações <strong>de</strong> causa e efeito, por vezes se<br />

ren<strong>de</strong>n<strong>do</strong> às superstições ou recorren<strong>do</strong> a explicações provi<strong>de</strong>ncialistas.<br />

Usos e apropriações da obra <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> Plano <strong>de</strong> Construção e Legitimação na esfera<br />

<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>.<br />

A obra Trata<strong>do</strong> Descritivo <strong>do</strong> Brasil em 1587 não teve gran<strong>de</strong> repercussão no<br />

século XVI. Embora já se tenha notícia da circulação <strong>de</strong>la em Portugal, no ano <strong>de</strong> 1599, a<br />

obra foi citada por Pedro Mariz. Segun<strong>do</strong> Varnhagen, no século XVII a obra foi copiada e<br />

em parte usada nos trabalhos <strong>de</strong> Frei Henrique <strong>de</strong> Salva<strong>do</strong>r e <strong>de</strong> Frei Henrique <strong>de</strong> Jaboatão.<br />

Varnhagen também cita cópia e aproveitamento da obra em Simão <strong>de</strong> Vasconcelos. A<br />

primeira edição completa só veio a ser impressa em 1825 pela Aca<strong>de</strong>mia Real das Ciências<br />

<strong>de</strong> Lisboa.<br />

Em 1851, saiu a primeira edição brasileira, organizada e comentada por F.A<strong>do</strong>lfo<br />

Varnhagen. A edição mais famosa é a <strong>de</strong> 1938, réplica da <strong>de</strong> Varnhagen, reproduzida em<br />

enca<strong>de</strong>rnação <strong>de</strong> luxo por uma gran<strong>de</strong> editora.<br />

8 VARNHAGEN, Francisco A<strong>do</strong>lfo. <strong>de</strong>. Additamento. In: SOUZA, Gabriel Soares. <strong>de</strong>. Trata<strong>do</strong><br />

Descritivo <strong>do</strong> Brasil EM 1587. 3° edição São Paulo - Recife - Porto Alegre - Rio <strong>de</strong> janeiro: Companhia<br />

Editora Nacional, 1938, p. XXXV.<br />

10


Não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar passarem <strong>de</strong>spercebidas <strong>de</strong>terminadas coincidências entre as<br />

datas das edições com <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s momentos históricos específicos. Em 1825, o Esta<strong>do</strong><br />

Português havia si<strong>do</strong> expulso <strong>de</strong>finitivamente da América por intermédio das guerras <strong>de</strong><br />

In<strong>de</strong>pendência <strong>do</strong> Brasil, Bahia (1823), Pará e por último da Cisplatina em 1824, o que vem<br />

a tornar práticas, as palavras contidas na <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> In<strong>de</strong>pendência, atribuída ao infante<br />

português filho <strong>de</strong> Dom João VI, que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1822 se <strong>de</strong>clarava Impera<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Brasil.<br />

Esta situação ainda não era plenamente aceita e reconhecida pelo Esta<strong>do</strong> Português,<br />

que ainda possuía esperanças <strong>de</strong> restaurar a unida<strong>de</strong> <strong>do</strong> seu antigo Império, visto que,<br />

aquilo que já esboçava a conformação <strong>de</strong> <strong>do</strong>is Esta<strong>do</strong>s soberanos diferentes, estava sob o<br />

<strong>do</strong>mínio <strong>de</strong> uma mesma casa monárquica. O filho <strong>do</strong> velho Dom João, que se arrogava<br />

como paladino da In<strong>de</strong>pendência <strong>do</strong> Brasil, era na realida<strong>de</strong> o her<strong>de</strong>iro da própria Coroa<br />

Portuguesa.<br />

Na edição portuguesa <strong>de</strong> 1825, ainda se po<strong>de</strong> notar <strong>de</strong>terminadas notas que <strong>de</strong> forma<br />

alguma po<strong>de</strong>riam pertencer ao original. A edição portuguesa intitula a obra -: NOTICIA DO<br />

BRAZIL, DESCRIPÇÃO VERDADEIRA DA COSTA DAQUELLE ESTADO QUE<br />

PERTENCE A’ COROA DO REINO DE PORTUGAL, SITIO DA BAHIA DE TODOS OS<br />

SANTOS. - o que entra em contradição com o que é escrito pelo autor no século XVI.<br />

Gabriel Soares fala em “terras marítimas da coroa <strong>de</strong> Portugal e Castela”.<br />

O que <strong>de</strong>monstra que a Coroa portuguesa ainda não havia reconheci<strong>do</strong> plenamente a<br />

in<strong>de</strong>pendência <strong>do</strong> Brasil por época da publicação, além <strong>do</strong> evi<strong>de</strong>nte anacronismo<br />

(provavelmente proposital), visto que na época em que Gabriel Soares <strong>de</strong>dica sua obra a<br />

Dom Cristóvão <strong>de</strong> Moura, em 1° <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1587, ele escreve em Madri e não em Lisboa.<br />

E por esta época, não havia exatamente uma Coroa Portuguesa, conforme está escrito na<br />

publicação portuguesa <strong>de</strong> 1825. Gabriel Soares fala <strong>de</strong> “terras marítimas da coroa <strong>de</strong><br />

Portugal e Castela” 9 , e a historiografia brasileira irá se referir mais tar<strong>de</strong> a este perío<strong>do</strong><br />

utilizan<strong>do</strong> o termo “União Ibérica”.<br />

Dentro <strong>de</strong>ste contexto é plenamente plausível que Portugal buscasse evi<strong>de</strong>nciar e<br />

resgatar os seus laços históricos com o Brasil, resgatan<strong>do</strong> a obra esquecida (por mais <strong>de</strong><br />

<strong>do</strong>is séculos) <strong>de</strong> um colono português, fiel súdito <strong>de</strong> EL Rey, que se toma <strong>de</strong> paixões pelo<br />

9 SOUZA, op. cit. p.352.<br />

11


Brasil e não pensa em subtrair a fortuna aqui adquirida para o Reino. A história <strong>de</strong> um<br />

português também dá testemunho <strong>de</strong> outros “bons" portugueses que proce<strong>de</strong>ram da mesma<br />

forma. Simulan<strong>do</strong> a idéia <strong>de</strong> um só povo português (Soares não faz menção a brasileiros,<br />

mas sim há portugueses, cristãos e súditos - novamente A fé, a lei e o rei.), uma só religião<br />

e um só Império separa<strong>do</strong> apenas pelo mar.<br />

A edição comentada e organizada por Varnhagen em 1851, está em um contexto<br />

diferente, pois na época <strong>de</strong> sua publicação a In<strong>de</strong>pendência já era um fato estabeleci<strong>do</strong> e<br />

inquestionável. Desta vez a apropriação <strong>de</strong> Gabriel Soares <strong>de</strong> Souza será feita por<br />

brasileiros e para brasileiros, a exemplo <strong>do</strong> que já havia ocorri<strong>do</strong> na mesma época com<br />

obras e relatos que reproduziam o passa<strong>do</strong> "Nacional", e interpretava o Brasil segun<strong>do</strong> uma<br />

construção intelectual, que criava uma nova história oficial, sob os auspícios <strong>do</strong>s nascentes<br />

Institutos Históricos (Nacionais) patrocina<strong>do</strong>s e politicamente organiza<strong>do</strong>s segun<strong>do</strong> os<br />

interesses <strong>do</strong> Po<strong>de</strong>r Mo<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>r.<br />

O resgate e revisão da obra estão relaciona<strong>do</strong>s aos interesses <strong>do</strong> próprio Instituto<br />

Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), ou seja, à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> construção e<br />

legitimação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Nacional Brasileiro, à procura das raízes que pu<strong>de</strong>ssem ser<br />

interpretadas como legitimamente brasileiras. Ou ainda, segun<strong>do</strong> as palavras <strong>de</strong> Manoel<br />

Luís Salga<strong>do</strong> Guimarães “traçar a gênese da nacionalida<strong>de</strong> brasileira” 10 . A busca pela<br />

construção <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional, explica a recorrência aos temas e fontes <strong>do</strong> século<br />

XVI.<br />

Os Índios, por exemplo, tema bastante trabalha<strong>do</strong> em Trata<strong>do</strong> Descritivo <strong>do</strong> Brasil<br />

em 1587 era um tema recorrente na produção intelectual e artística brasileira. No perío<strong>do</strong><br />

em que esteve em voga no Brasil, a estética <strong>do</strong> Romantismo, mais particularmente, através<br />

da corrente indianista. Existia por parte <strong>do</strong>s literatos a crença <strong>de</strong> estar realizan<strong>do</strong> um<br />

suposto “resgate" das origens da brasilida<strong>de</strong>. Contu<strong>do</strong>, o resulta<strong>do</strong> produzi<strong>do</strong> pela literatura<br />

indianista, foi um discurso <strong>de</strong> exaltação marca<strong>do</strong> pela construção <strong>de</strong> um passa<strong>do</strong> i<strong>de</strong>aliza<strong>do</strong>.<br />

Torna-se profícuo, contu<strong>do</strong>, salientar que no século XIX, não havia uma<br />

unanimida<strong>de</strong> sobre a maneira pela se <strong>de</strong>veria abordar a temática indígena. Existia uma<br />

diferença <strong>de</strong> visão substancial entre os discursos produzi<strong>do</strong>s pela literatura e pela história.<br />

10 GUIMARÃES, Manoel Luís Salga<strong>do</strong> Guimarães. Nação e Civilização nos Trópicos: O Instituto<br />

Histórico e Geográfico Brasileiro e o Projeto <strong>de</strong> uma <strong>História</strong> Nacional. In Estu<strong>do</strong>s Históricos, Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro, n.1,1988,p.7<br />

12


Conforme afirma Manoel Guimarães:<br />

Será, portanto, em torno da temática indígena que no interior <strong>do</strong> IHGB, e também fora <strong>de</strong>le, travarse-á<br />

um acirra<strong>do</strong> <strong>de</strong>bate em que literatura, <strong>de</strong> um la<strong>do</strong>, e história <strong>do</strong> outro, argumentarão sobre a<br />

viabilida<strong>de</strong> da nacionalida<strong>de</strong> brasileira estar representada pelo indígena. Enquanto Varnhagen, em<br />

carta dirigida ao impera<strong>do</strong>r com data <strong>de</strong> 18 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1852 a propósito <strong>do</strong> indianismo <strong>de</strong> Gonçalves<br />

Dias o adverte para “não <strong>de</strong>ixar para mais tar<strong>de</strong> a solução <strong>de</strong> uma questão importante acerca da qual<br />

convém muito ao país e ao trono que a opinião se não extravie, com idéias que acabam por ser<br />

subversivas”, a literatura veicula a imagem <strong>do</strong> indígena como porta<strong>do</strong>r da “brasilida<strong>de</strong>”. 11<br />

A edição <strong>de</strong> 1938 coinci<strong>de</strong> exatamente com o golpe que dá origem ao Esta<strong>do</strong> Novo,<br />

inseri<strong>do</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um contexto Nacionalista, que busca novamente a reconstrução da nova<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> Nacional sob novos parâmetros, que congregue e harmonize os diferentes<br />

componentes étnicos e as distintas formas <strong>de</strong> cultura nacional <strong>de</strong> uma forma unitária e<br />

totalizante.<br />

A obra <strong>de</strong> Gabriel Soares sugere uma pretensa solidarieda<strong>de</strong> entre índios, negro e<br />

brancos, o que viria mais tar<strong>de</strong> a formar a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural brasileira. Este mesmo<br />

discurso <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Novo se fazia necessário também, para <strong>de</strong>monstrar a existência <strong>de</strong> um<br />

povo amalgama<strong>do</strong> étnica e historicamente que tinha por costume absorver o elemento<br />

"adventício" (note as mestiçagens narradas por Gabriel em relação aos Franceses que aqui<br />

ficaram) que vinha a se somar ao processo <strong>de</strong> construção histórica da Pátria.<br />

Pátria, cuja cultura e unicida<strong>de</strong> já vinham sen<strong>do</strong> consolidadas através <strong>do</strong>s séculos, e<br />

que naquele momento estava sob o risco <strong>de</strong> ter suas características fundamentais<br />

<strong>de</strong>sconfiguradas pelas vagas <strong>de</strong> imigrantes europeus que chegavam ao país ameaçan<strong>do</strong><br />

<strong>de</strong>sfigurar sua unida<strong>de</strong> lingüística. Na visão <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Novo, os imigrantes <strong>de</strong>veriam ser<br />

absorvi<strong>do</strong>s culturalmente, para a criação <strong>de</strong> uma Pátria homogênea.<br />

Nesta década, também voltam à cena discursos históricos <strong>de</strong>spreza<strong>do</strong>s<br />

anteriormente, como a obra <strong>de</strong> Manoel Bonfim, que, contra a corrente <strong>de</strong> pensamento <strong>de</strong><br />

seu próprio tempo, insistia em enxergar uma consciência <strong>de</strong> brasilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os<br />

primórdios da história <strong>do</strong> Brasil. O Esta<strong>do</strong> Novo precisava <strong>de</strong> obras históricas que<br />

en<strong>do</strong>ssassem o seu discurso. Veja o que afirmou Soares sobre a composição étnico/ racial<br />

<strong>do</strong> efetivo humano que po<strong>de</strong>ria ser supostamente mobiliza<strong>do</strong> na <strong>de</strong>fesa da Terra contra o<br />

13


ataque <strong>de</strong> corsários ou outros elementos adventícios: 12<br />

se não levarem a cida<strong>de</strong> <strong>do</strong> primeiro encontro, não a entram <strong>de</strong>pois, porque po<strong>de</strong> ser socorrida por<br />

mar e por terra <strong>de</strong> muita gente portuguesa até a quantia <strong>de</strong> <strong>do</strong>is mil homens, <strong>de</strong> entre os quais po<strong>de</strong>m<br />

sair <strong>de</strong>z mil escravos <strong>de</strong> peleja a saber: quatro mil pretos da Guiné, e seis mil índios da terra, mui<br />

bons flecheiros, que juntos com a gente da cida<strong>de</strong><br />

Varnhagen, ao comentar a obra <strong>de</strong> Gabriel Soares, chama a atenção para a relação<br />

<strong>de</strong> 1:2:3 na composição racial das forças <strong>de</strong>fensoras da Bahia no século XVI. Ele faz uso <strong>do</strong><br />

termo "índios civiliza<strong>do</strong>s" para <strong>de</strong>signar estes seis mil índios da Terra que Gabriel Soares<br />

afirma estarem disponíveis para a <strong>de</strong>fesa da Cida<strong>de</strong> da Bahia em caso <strong>de</strong> ataque corsário. A<br />

narrativa <strong>de</strong> Gabriel Soares fornece uma evidência <strong>de</strong> rápida “aculturação” <strong>do</strong> elemento<br />

indígena, assim como atesta a efetivida<strong>de</strong> e a importância <strong>do</strong> elemento indígena na gênese<br />

da socieda<strong>de</strong> colonial. Assim como sugere alguma harmonia <strong>do</strong>s indígenas com <strong>de</strong>mais<br />

elementos étnicos adventícios. Sen<strong>do</strong> eles guerreiros e em número três vezes maior o<br />

elemento <strong>do</strong>minante, ainda assim não se rebelam. O que faz Gabriel Soares supor uma<br />

possível solidarieda<strong>de</strong> guerreira entre o elemento <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>r e seus subordina<strong>do</strong>s,<br />

configuran<strong>do</strong> o que seria uma aparente "<strong>de</strong>mocracia racial".<br />

Coexistência <strong>de</strong> mentalida<strong>de</strong>s conflitantes no Homem <strong>do</strong> Século XVI.<br />

O inventário <strong>de</strong> Gabriel Soares <strong>de</strong> Souza foi feito antes <strong>do</strong> seu embarque <strong>de</strong> retorno<br />

rumo à Europa. A data <strong>do</strong> <strong>do</strong>cumento é <strong>de</strong> 10 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1584, portanto, três anos antes<br />

<strong>de</strong> 1587 - a data <strong>de</strong> conclusão da obra – conforme, afirma Varnhagen, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> examinar<br />

diversas cópias manuscritas. A datação estabelecida por Varnahagen contraria a datação<br />

estabelecida na edição portuguesa.<br />

Uma das primeiras impressões que ficam é que Gabriel Soares <strong>de</strong> Souza tem<br />

consciência plena da transitorieda<strong>de</strong> da vida e <strong>de</strong> que “o futuro tem por ofício ser incerto",<br />

o que não o impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer planos para a vida em sua realida<strong>de</strong> telúrica assim como para o<br />

<strong>de</strong>stino <strong>de</strong> sua alma. No imaginário <strong>de</strong>ste homem português <strong>do</strong> século XVI, a vida terreal, o<br />

11 GUIMARÃES, Manoel Luís Salga<strong>do</strong> Guimarães. Nação e Civilização nos Trópicos: O Instituto<br />

Histórico e Geográfico Brasileiro e o Projeto <strong>de</strong> uma <strong>História</strong> Nacional. In Estu<strong>do</strong>s Históricos, Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro, n.1,1988,p.11-12.<br />

12 SOUZA, op. cit. p.140.<br />

14


presente, as preocupações cotidianas, as realizações materiais e os planos para um futuro<br />

próximo divi<strong>de</strong>m espaço com a religiosida<strong>de</strong> e os planos para um futuro eterno. Ou seja, o<br />

futuro que só oferece duas alternativas: a salvação ou a danação eterna. A realida<strong>de</strong><br />

palpável da vida e a crença na vida eterna formam um quadro on<strong>de</strong> estes <strong>do</strong>is planos<br />

existenciais coabitam <strong>de</strong> maneira relativamente harmônica em um mesmo intelecto, que<br />

procura pautar sua conduta <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a própria ética cristã <strong>de</strong> seu tempo.<br />

A obra Tratada Descritivo <strong>do</strong> Brasil em 1587, <strong>de</strong> sua autoria forma um contraste<br />

antagônico com o teor <strong>do</strong> testamento por ele <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong>. Se a obra em sua maior parte contém<br />

atributos <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> percebem-se algumas permanências <strong>do</strong> imaginário medieval,<br />

<strong>de</strong>monstran<strong>do</strong> que as rupturas fazem parte <strong>de</strong> um lento <strong>de</strong>vir e que só se configuram<br />

plenamente na longa duração. Esta constatação só po<strong>de</strong> ser feita a partir <strong>do</strong> nosso próprio<br />

presente, pois não fazem parte da consciência <strong>de</strong>ste homem <strong>do</strong> século XVI, on<strong>de</strong><br />

“medievalida<strong>de</strong>” e a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> são formas <strong>de</strong> pensar que se superpõem e se entrelaçam<br />

no mesmo superego, hora pen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> para o "racionalismo" <strong>do</strong>s mo<strong>de</strong>rnos, hora se ren<strong>de</strong>n<strong>do</strong><br />

as superstições medievais e as explicações <strong>de</strong> natureza provi<strong>de</strong>ncialista <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> aquilo que<br />

o seu intelecto não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>svendar e compreen<strong>de</strong>r. Embora este hábito mental ainda<br />

sobreviva no aparente cepticismo <strong>do</strong> homem contemporâneo, mesmo que sob a forma <strong>de</strong><br />

incongruência racional, este mesmo hábito é mais evi<strong>de</strong>nte e menos problemático para este<br />

homem <strong>de</strong> fins <strong>do</strong> Século XVI que assiste e encarna o aparente confronto <strong>de</strong>stas duas<br />

cosmologias conflitantes. Ele não está imune às mudanças <strong>do</strong> próprio tempo e nem às<br />

permanências <strong>do</strong> lega<strong>do</strong> <strong>de</strong> épocas passadas. É como se o pensar e o sentir estivessem em<br />

épocas históricas distintas, o consciente volta<strong>do</strong> para as perspectivas <strong>do</strong> presente e o<br />

inconsciente ainda carrega<strong>do</strong> <strong>de</strong> me<strong>do</strong>s, imagens e concepções herda<strong>do</strong>s <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, mas<br />

que ainda encontram eco nos vários aspectos da realida<strong>de</strong> e da consciência epocal. 13<br />

Enquanto o humanismo, o racionalismo e o antropocentrismo já são elementos<br />

constitutivos da nova mentalida<strong>de</strong> Oci<strong>de</strong>ntal a velha cosmologia medieval ainda está<br />

presente e atuante na própria estrutura <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r secular e temporal que se confun<strong>de</strong>m nas<br />

13 Em BARRETO, Luís Filipe. Descobrimentos e Renascimento; formas <strong>de</strong> ser e pensar nos séculos<br />

XV e XVI. Lisboa: Imprensa Nacional, 1983.p.7-61. Esta é uma con<strong>de</strong>nsação da interpretação <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r<br />

Luís Filipe Barreto a respeito <strong>do</strong> homem português entre o fim <strong>do</strong> medievo e os primórdios da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>,<br />

nesta obra Barreto analisa a existência simultânea <strong>de</strong> duas formas <strong>de</strong> interpretar o mun<strong>do</strong>. De um la<strong>do</strong> a<br />

permanência <strong>de</strong> uma mentalida<strong>de</strong> medieval, e <strong>de</strong> outro, o nascimento <strong>do</strong> pensamento mo<strong>de</strong>rno português,<br />

atrela<strong>do</strong> <strong>de</strong> maneira indissociável ao Renascimento e às Gran<strong>de</strong>s Navegações.<br />

15


monarquias peninsulares. Estas são as forças que buscam dar uma nova or<strong>de</strong>nação ao<br />

mun<strong>do</strong>, basea<strong>do</strong>s na "releitura" e na readaptação da teologia medieval, que insistem em<br />

uma concepção <strong>de</strong> mun<strong>do</strong> basea<strong>do</strong> em <strong>do</strong>gmas e explicações provi<strong>de</strong>ncialistas. Este<br />

"refluxo" histórico estava presente e atuante na Península e no Novo Mun<strong>do</strong>, nos tempos <strong>de</strong><br />

Gabriel Soares <strong>de</strong> Souza. Contu<strong>do</strong>, estas mesmas forças atuam com re<strong>do</strong>bra<strong>do</strong> ânimo no<br />

panorama americano <strong>do</strong> século XVI, tecen<strong>do</strong> e moldan<strong>do</strong> a face oci<strong>de</strong>ntal <strong>do</strong> Novo Mun<strong>do</strong><br />

que não está imune à influência Jesuítica e o seu i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> evangelização como forma <strong>de</strong><br />

salvação da alma <strong>do</strong> elemento gentio e como forma <strong>de</strong> preparação para civilizá-lo, torná-lo<br />

apto para ser inseri<strong>do</strong> como força <strong>de</strong> trabalho na nova dinâmica assumida pela economia<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> contexto que mais tar<strong>de</strong> seria <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> <strong>de</strong> mercantilismo. A Inquisição atua<br />

um como um instrumento <strong>de</strong> repressão e vigilância <strong>do</strong>s hábitos e idéias <strong>do</strong>s fiéis e <strong>do</strong>s<br />

recém conversos, sen<strong>do</strong> ela própria uma reedição maquiada <strong>do</strong>s instrumentos <strong>de</strong> opressão<br />

que operaram no quadro medieval.<br />

Este conjunto <strong>de</strong> fatores atua <strong>de</strong> maneira <strong>de</strong>cisiva e simultânea sobre o pensamento<br />

<strong>do</strong> homem comum, que primeiro veio para colonizar as terras <strong>do</strong> Brasil e dar início ao<br />

longo processo <strong>de</strong> construção <strong>do</strong> que viria a ser mais tar<strong>de</strong> o Brasil, país soberano <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong><br />

contexto <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> Nacional.<br />

Daqui em diante, irei tentar extrair alguns trechos <strong>do</strong> testamento e da obra <strong>de</strong><br />

Gabriel Soares <strong>de</strong> Souza que possam ser úteis para interpretar o pensamento <strong>do</strong> homem<br />

comum e realida<strong>de</strong> histórica <strong>do</strong> homem comum <strong>do</strong> século XVI, <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> contexto Ibérico.<br />

Se possível, <strong>de</strong>monstrar a singularida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste tipo específico <strong>de</strong> homem mo<strong>de</strong>rno e como<br />

ele se diferencia e se aproxima da mentalida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s <strong>de</strong>mais tipos <strong>de</strong> homens europeus e<br />

mo<strong>de</strong>rnos que através <strong>de</strong> generalização é <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> <strong>de</strong> "O Homem Oci<strong>de</strong>ntal".<br />

Através da leitura <strong>de</strong>ste trecho, po<strong>de</strong>-se notar que o autor é um observa<strong>do</strong>r atento e<br />

<strong>de</strong> sensibilida<strong>de</strong> aguçada. Contu<strong>do</strong>, não parece ser o único, ele cita mareantes e filósofos<br />

que também estão estiveram atentos aos mistérios que se manifestam na natureza e que<br />

tentam <strong>de</strong>svendá-la buscan<strong>do</strong> uma relação <strong>de</strong> causa e efeito para os fenômenos naturais. Ou<br />

seja, o racionalismo <strong>de</strong>ve ser o instrumento utiliza<strong>do</strong> para interpretar a realida<strong>de</strong>. 14<br />

14 SOUZA, op. Cit .p.133.<br />

16


Em to<strong>do</strong> o tempo <strong>do</strong> ano, quan<strong>do</strong> chove, fazem os céus da Bahia as mais formosas mostras <strong>de</strong><br />

nuvens <strong>de</strong> mil cores e gran<strong>de</strong> resplen<strong>do</strong>r, que se nunca viram noutra parte, o que causa gran<strong>de</strong><br />

admiração. E há-se <strong>de</strong> notar que nesta comarca da Bahia, em rompen<strong>do</strong> a luz da manhã, nasce com<br />

ela juntamente o sol, assim no inverno como no verão. E em se recolhen<strong>do</strong> o sol à tar<strong>de</strong>, escurece<br />

juntamente o dia e cerra-se a noite; a que matemáticos dêem razões suficientes que satisfaçam a<br />

quem quiser saber este segre<strong>do</strong>, porque os mareantes e filósofos que a esta terra foram, nem outros<br />

homens <strong>de</strong> bom juízo não têm atina<strong>do</strong> até agora com a causa porque isso assim seja.<br />

Quan<strong>do</strong> confrontamos a passagem anterior com a que se segue, po<strong>de</strong>mos verificar<br />

uma mudança drástica no mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> interpretar a realida<strong>de</strong>, o racionalismo ce<strong>de</strong> lugar ao<br />

provi<strong>de</strong>ncialismo e Gabriel Soares interpreta a natureza como um homem medieval,<br />

admitin<strong>do</strong> uma interferência <strong>de</strong> planos, como se Deus, estivesse a punir e exortar os<br />

homens através <strong>de</strong> sinais, como várias vezes é possível ler nas nos livros <strong>do</strong> Velho<br />

Testamento, notadamente nos livros que compõem o Pentateuco. 15<br />

Como não há ouro sem fezes, nem tu<strong>do</strong> é a vonta<strong>de</strong> <strong>do</strong>s homens, or<strong>de</strong>nou Deus que entre tantas<br />

coisas proveitosas para o serviço <strong>de</strong>le, como fez na Bahia, houvesse algumas imundícias que os<br />

enfadassem muito, para que não cuidassem que estavam em outro paraíso terreal, <strong>de</strong> que diremos<br />

daqui por diante, começan<strong>do</strong> no capítulo que se segue das lagartas.<br />

O aparente "racionalismo" da narrativa <strong>de</strong> Soares <strong>de</strong> Souza ce<strong>de</strong> lugar à superstição.<br />

De certa forma po<strong>de</strong>mos dizer que este homem <strong>do</strong> Século XVI, que raciocina como um<br />

"homem mo<strong>de</strong>rno" parece "sentir" como um homem medieval. Como se o seu consciente<br />

estivesse viven<strong>do</strong> <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com o seu próprio tempo histórico enquanto o seu inconsciente<br />

lhe trai a razão o que po<strong>de</strong> evi<strong>de</strong>nciar como os me<strong>do</strong>s e superstições ainda constituem uma<br />

permanência <strong>do</strong> imaginário medieval que interfere no julgamento e no “aparente" ceticismo<br />

<strong>do</strong> homem <strong>do</strong> Século XVI.<br />

Se Gabriel Soares dá crédito aos testemunhos, é por possuir referências semelhantes<br />

em seu lega<strong>do</strong> cultural. Afinal, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a antiguida<strong>de</strong>, figuras mitológicas como as sereias<br />

habitam no imaginário <strong>do</strong> que mais tar<strong>de</strong> se tornaria o “homem oci<strong>de</strong>ntal". Observe a<br />

narrativa <strong>de</strong> Gabriel Soares <strong>de</strong> Souza sobre os “Homens Marinhos” , ou ainda, “ Hipupiara”<br />

<strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com os indígenas. 16<br />

Não há dúvida senão que se encontram na Bahia e nos recôncavos <strong>de</strong>la muitos homens marinhos, a<br />

que os índios chamam pela sua língua upupiara, os quais andam pelo rio <strong>de</strong> água <strong>do</strong>ce pelo tempo <strong>do</strong><br />

verão, on<strong>de</strong> fazem muito dano aos índios pesca<strong>do</strong>res e marisca<strong>do</strong>res que andam em jangada, on<strong>de</strong> os<br />

15 SOUZA, op. cit. p. 265.<br />

16 SOUZA, op. cit. p. 277.<br />

17


tomam, e aos que andam pela borda da água, meti<strong>do</strong>s nela; a uns e outros apanham, e metem-nos<br />

<strong>de</strong>baixo da água, on<strong>de</strong> os afogam; os quais saem à terra com a maré vazia afoga<strong>do</strong>s e mordi<strong>do</strong>s na<br />

boca, narizes e na sua natura; e dizem outros índios pesca<strong>do</strong>res que viram tomar estes mortos que<br />

viram sobre água uma cabeça <strong>de</strong> homem lançar um braço fora <strong>de</strong>la e levar o morto; e os que isso<br />

viram se recolheram fugin<strong>do</strong> à terra assombra<strong>do</strong>s, <strong>do</strong> que ficaram tão atemoriza<strong>do</strong>s que não quiseram<br />

tornar a pescar daí a muitos dias; o que também aconteceu a alguns negros <strong>de</strong> Guiné; os quais<br />

fantasmas ou homens marinhos mataram por vezes cinco índios meus; e já aconteceu tomar um<br />

monstro <strong>de</strong>stes <strong>do</strong>is índios pesca<strong>do</strong>res <strong>de</strong> uma jangada e levarem um, e salvar-se outro tão<br />

assombra<strong>do</strong> que esteve para morrer; e alguns morrem disto. E um mestre-<strong>de</strong>-açúcar <strong>do</strong> meu engenho<br />

afirmou que olhan<strong>do</strong> da janela <strong>do</strong> engenho que está sobre o rio, e que gritavam umas negras, uma<br />

noite, que estavam lavan<strong>do</strong> umas fôrmas <strong>de</strong> açúcar, viu um vulto maior que um homem à borda da<br />

água, mas que se lançou logo nela; ao qual mestre-<strong>de</strong>-açúcar as negras disseram que aquele fantasma<br />

vinha para pegar nelas, e que aquele era o homem marinho, as quais estiveram assombradas muitos<br />

dias; e <strong>de</strong>stes acontecimentos acontecem muitos no verão, que no inverno não falta nunca nenhum<br />

negro."<br />

Relatos <strong>de</strong> “aberrações" marinhas são encontra<strong>do</strong>s com facilida<strong>de</strong> nos diários <strong>de</strong><br />

Cristóvão Colombo, que, quase cem anos antes <strong>de</strong> Gabriel Soares, também parece dar<br />

crédito a narrativa <strong>do</strong>s indígenas da” América Central". Outro cronista <strong>do</strong>s Quinhentos,<br />

Pero <strong>de</strong> Magalhães Gândavo, também faz alusão a estes que seriam "homens marinhos".<br />

Em seu comentário Varnhagen escolhe esta passagem <strong>de</strong> Dante "Che solto 1'acqua ha gente<br />

che sospira, E fanno pullular quesfacqua al summo." 17 Para <strong>de</strong>monstrar o quanto é antiga na<br />

Europa a existência da idéia <strong>de</strong> aberrações marinhas, também fala <strong>do</strong> Padre João Daniel que<br />

em seu livro Tesouro das Amazonas também parece dar crédito à idéia. 18 Sérgio Buarque<br />

<strong>de</strong> Hollanda no século XX, também fez alusão a este mesmo tema em seu ensaio Raízes <strong>do</strong><br />

Brasil. Contu<strong>do</strong>, estes homens marinhos cita<strong>do</strong>s por Soares fazem parte <strong>do</strong> imaginário<br />

indígena. Segun<strong>do</strong> Varnhagen, os homens marinhos seriam chama<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Hipupiara pelos<br />

indígenas.<br />

Os indígenas assim como outros povos também possuíam superstições. Contu<strong>do</strong> é<br />

<strong>de</strong> se notar que estas superstições narradas por Gabriel Soares <strong>de</strong> Souza parecem não ter<br />

<strong>de</strong>ixa<strong>do</strong> resquícios no imaginário popular, assim como nenhuma das lendas e mitos<br />

indígenas que fazem parte <strong>do</strong> acervo folclórico brasileiro por nós conheci<strong>do</strong>, se encontram<br />

17 VARNHAGEN, Francisco A<strong>do</strong>lfo. <strong>de</strong>. Comentários. In: SOUZA, Gabriel Soares. <strong>de</strong>. Trata<strong>do</strong><br />

Descritivo <strong>do</strong> Brasil EM 1587. 3° edição São Paulo - Recife - Porto Alegre - Rio <strong>de</strong> janeiro: Companhia<br />

Editora Nacional, 1938, p.379.<br />

18 VARNHAGEN, Francisco A<strong>do</strong>lfo. <strong>de</strong>. Comentários. In: SOUZA, Gabriel Soares. <strong>de</strong>. Trata<strong>do</strong><br />

Descritivo <strong>do</strong> Brasil EM 1587. 3° edição São Paulo - Recife - Porto Alegre - Rio <strong>de</strong> janeiro: Companhia<br />

Editora Nacional, 1938, p.379.<br />

18


na narrativa <strong>de</strong> Gabriel Soares <strong>de</strong> Souza. O que <strong>de</strong> certa forma nos induz a pensar, que<br />

mitos como o da caipora , sejam construções mais recentes, posteriores ao contato entre<br />

índios e portugueses.<br />

Abaixo, seguem <strong>do</strong>is recortes. Ao primeiro, que fala sobre o “bugio diabo” 19 , o<br />

autor não parece dar muita importância, mas, ao segun<strong>do</strong> relato que fala sobre a jibóia 20 , o<br />

autor parece dar mais crédito, talvez por ter si<strong>do</strong> confirma<strong>do</strong> por um português, ou ainda<br />

segun<strong>do</strong> as palavras <strong>de</strong> Gabriel Soares <strong>de</strong> Souza: " homem <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>".<br />

O bugio diabo.<br />

Há nos matos da Bahia outros bugios, a que os índios chamam saíanhangá, que quer dizer "bugio<br />

diabo", que são muito gran<strong>de</strong>s, e não andam senão <strong>de</strong> noite; são da feição <strong>do</strong>s outros, e criam em<br />

côncavos <strong>de</strong> árvores; mantêm-se <strong>de</strong> frutas silvestres e o gentio tem agouro neles, e como os ouvem<br />

gritar, dizem que há <strong>de</strong> morrer algum.<br />

A jibóia<br />

Agora cabe aqui dizermos que cobras são estas <strong>do</strong> Brasil, <strong>de</strong> que tanto se fala em Portugal e com<br />

razão, porque tantas e tão estranhas, não se sabe on<strong>de</strong> as haja. Comecemos logo a dizer das cobras a<br />

que os índios chamam jibóia, das quais há muitas <strong>de</strong> cincoenta e sessenta palmos <strong>de</strong> compri<strong>do</strong>, e<br />

daqui para baixo. Estas andam nos rios e lagoas, on<strong>de</strong> tomam muitos porcos da água, que comem; e<br />

<strong>do</strong>rmem em terra, on<strong>de</strong> tomam muitos porcos, vea<strong>do</strong>s e outra muita caça, o que engolem sem<br />

mastigar, nem espedaçar; e não há dúvida senão que engolem uma anta inteira, e um índio; o que<br />

fazem porque não têm <strong>de</strong>ntes, e entre os queixos lhes moem os ossos para os po<strong>de</strong>rem engolir. E<br />

para matar uma anta ou um índio, ou qualquer caça, cingem-se com ela muito bem, e como têm<br />

segura a presa, buscam-lhe o sesso com a ponta <strong>do</strong> rabo, por on<strong>de</strong> o metem até que matam o que têm<br />

abarca<strong>do</strong>; e como têm morta a caça, moem-na entre os queixos para a po<strong>de</strong>r melhor engolir. E como<br />

têm a anta, ou outra coisa gran<strong>de</strong> que não po<strong>de</strong>m digerir, empanturram <strong>de</strong> maneira que não po<strong>de</strong>m<br />

andar. E como se sentem pesadas lançam-se ao sol como mortas, até que lhes apodrece a barriga, e o<br />

que têm nela; <strong>do</strong> que dá o faro logo a uns pássaros que se chamam urubus, e dão sobre elas<br />

comen<strong>do</strong>-lhes a barriga com o que têm <strong>de</strong>ntro, e tu<strong>do</strong> o mais, por estar podre; e não lhes <strong>de</strong>ixam<br />

senão o espinhaço, que está pega<strong>do</strong> na cabeça e na ponta <strong>do</strong> rabo, e é muito duro; e como isto fica<br />

limpo da carne toda, vão-se os pássaros; e torna-lhes a crescer a carne nova, até ficar a cobra em sua<br />

perfeição; e assim como lhes vai crescen<strong>do</strong> a carne, começam a bulir com o rabo, e tornam a reviver,<br />

fican<strong>do</strong> como dantes; o que se tem por verda<strong>de</strong>, por se ter toma<strong>do</strong> disto muitas informações <strong>do</strong>s<br />

índios e <strong>do</strong>s línguas que andam por entre eles no sertão, os quais afirmam assim. E um Jorge Lopes,<br />

almoxarife da capitania <strong>de</strong> S. Vicente, gran<strong>de</strong> língua, e homem <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, afirmava que in<strong>do</strong> para<br />

uma al<strong>de</strong>ia <strong>do</strong> gentio no sertão, achara uma cobra <strong>de</strong>stas no caminho, que tinha lia<strong>do</strong> três índios para<br />

os matar, os quais livrara <strong>de</strong>ste perigo ferin<strong>do</strong> a cobra com a espada por junto da cabeça e <strong>do</strong> rabo,<br />

com o que ficou sem força para os apertar, e que os largara; e que acaban<strong>do</strong> <strong>de</strong> matar esta cobra, ele<br />

lhe achara <strong>de</strong>ntro quatro porcos, a qual tinha mais <strong>de</strong> sessenta palmos <strong>de</strong> compri<strong>do</strong>; e junto <strong>do</strong> curral<br />

<strong>de</strong> Garcia <strong>de</strong> Ávila, na Bahia, andavam duas cobras que lhe matavam e comiam as vacas, o qual<br />

afirmou que adiante <strong>de</strong>le lhe saíra um dia uma, que remeteu a um touro, e que lho levou para <strong>de</strong>ntro<br />

<strong>de</strong> uma lagoa; a que acudiu um gran<strong>de</strong> lebréu, ao qual a cobra arremeteu e engoliu logo; e não pô<strong>de</strong><br />

levar o touro para baixo pelo impedimento que lhe tinha feito o lebréu; o qual touro saiu acima da<br />

água <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> afoga<strong>do</strong>; e afirmou que neste mesmo lugar mataram seus vaqueiros outra cobra que<br />

tinha noventa e três palmos, e pesava mais <strong>de</strong> oito arrobas; e eu vi uma pele <strong>de</strong> uma cobra <strong>de</strong>stas que<br />

tinha quatro palmos <strong>de</strong> largo. Estas cobras têm as peles cheias <strong>de</strong> escamas ver<strong>de</strong>s, amarelas e azuis,<br />

19 SOUZA, op. cit. p. 254.<br />

20 SOUZA, op. cit. pp.258-259.<br />

19


das quais tiram logo uma arroba <strong>de</strong> banha da barriga, cuja carne os índios têm em muita estima, e os<br />

mamelucos, por acharem-na muito saborosa.<br />

Brasil ou América Portuguesa?<br />

Em toda a obra <strong>de</strong> Soares, não existem referências às palavras: colônia, Brasil<br />

Colônia ou Brasil Colonial, nem tão pouco é utiliza<strong>do</strong> o termo América, ou América<br />

Portuguesa. O que prova que to<strong>do</strong>s estes termos são produtos <strong>de</strong> construções<br />

historiográficas escritas a partir <strong>de</strong> um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> presente para <strong>de</strong>screver o próprio<br />

presente, ou um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> perío<strong>do</strong> <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>. Muitas vezes, talvez para diferenciar os<br />

contextos <strong>de</strong> Brasil Esta<strong>do</strong> Nacional Soberano <strong>de</strong> seu contexto anterior <strong>de</strong> subalternida<strong>de</strong> na<br />

hierarquia <strong>de</strong> relações <strong>do</strong> Império ultramarino Português ou ainda para não en<strong>do</strong>ssar a idéia<br />

<strong>de</strong> linearida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um "passa<strong>do</strong> nacional" construí<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong> <strong>de</strong>scobrimento ou<br />

achamento <strong>do</strong> Brasil por Pedro Álvares Cabral em 1500, ou a partir <strong>de</strong> 1549 com a<br />

fundação da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Salva<strong>do</strong>r por Tomé <strong>de</strong> Souza, como é da preferência <strong>de</strong> alguns.<br />

O uso <strong>do</strong> Topônimo América Portuguesa ao invés <strong>de</strong> Brasil é <strong>de</strong> uso recorrente na<br />

historiografia <strong>do</strong> século XX. Ainda no século XVIII, a intelectualida<strong>de</strong> portuguesa e luso-<br />

brasileira já usava preferencialmente o topônimo América Portuguesa. Porém, para efeito<br />

<strong>de</strong>ste estu<strong>do</strong>, a construção retórica <strong>de</strong> sonorida<strong>de</strong> pomposa <strong>de</strong>ve ce<strong>de</strong>r lugar ao que está<br />

conti<strong>do</strong> nas fontes <strong>de</strong> época. Neste ponto é mais seguro dar fé ao palavrea<strong>do</strong> simplório <strong>de</strong><br />

Gabriel Soares <strong>de</strong> Souza para analisar o Brasil <strong>do</strong> Século XVI. Veja quais as palavras ele<br />

utiliza repetidas vezes para se referir à terra 21 :<br />

e com a força da gente da terra se po<strong>de</strong>rão apo<strong>de</strong>rar e fortificar <strong>de</strong> maneira que não haja po<strong>de</strong>r<br />

humano com que se possam tirar <strong>do</strong> Brasil estes inimigos, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>m fazer gran<strong>de</strong>s danos a seu<br />

salvo em todas as terras marítimas da coroa <strong>de</strong> Portugal e Castela,<br />

cujo fundamento é mostrar as gran<strong>de</strong>s qualida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Brasil,<br />

Corre esta corda <strong>do</strong>s tapuias toda esta terra <strong>do</strong> Brasil pelas cabeceiras <strong>do</strong> outro gentio<br />

Como a tenção com que nos ocupamos nestas lembranças foi para mostrar bem o muito que há que<br />

dizer da Bahia <strong>de</strong> To<strong>do</strong>s os Santos, cabeça <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Brasil,<br />

mas são-no <strong>de</strong> todas as outras nações <strong>do</strong> gentio <strong>do</strong> Brasil, e entre todas elas lhes chamam “taburas”.<br />

No princípio da povoação <strong>do</strong> Brasil vieram alguns homens a per<strong>de</strong>r os pés, e outros a encherem-se<br />

<strong>de</strong> boubas, o que não acontece agora, porque to<strong>do</strong>s os sabem tirar, e não se <strong>de</strong>scuidam tanto <strong>de</strong> si,<br />

21 SOUZA, op. cit. pp.352-341-337-333-274.<br />

20


como faziam os primeiros povoa<strong>do</strong>res.<br />

A Fé a Lei e o Rei são os atributos <strong>de</strong> civilização que regem a Oci<strong>de</strong>ntalida<strong>de</strong> no<br />

contexto Ibérico <strong>do</strong> Século XVI.<br />

Sem Fé, sem Lei nem Rei, segun<strong>do</strong> as palavras <strong>de</strong> Gabriel Soares 22 .<br />

Ainda que os tupinambás se dividiram em ban<strong>do</strong>s, e se inimizaram uns com outros, to<strong>do</strong>s falam uma<br />

língua que é quase geral pela costa <strong>do</strong> Brasil, e to<strong>do</strong>s têm uns costumes em seu mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> viver e<br />

gentilida<strong>de</strong>s; os quais não a<strong>do</strong>ram nenhuma coisa, nem têm nenhum conhecimento da verda<strong>de</strong>, nem<br />

sabem mais que há morrer e viver; e qualquer coisa que lhes digam, se lhes mete na cabeça, e são<br />

mais bárbaros que quantas criaturas Deus criou. Têm muita graça quan<strong>do</strong> falam, mormente as<br />

mulheres; são mui compendiosas na forma da linguagem, e muito copiosos no seu orar; mas faltamlhes<br />

três letras das <strong>do</strong> ABC, que são F, L, R gran<strong>de</strong> ou <strong>do</strong>bra<strong>do</strong>, coisa muito para se notar; porque, se<br />

não têm F, é porque não têm fé em nenhuma coisa que a<strong>do</strong>rem; nem os nasci<strong>do</strong>s entre os cristãos e<br />

<strong>do</strong>utrina<strong>do</strong>s pelos padres da Companhia têm fé em Deus Nosso Senhor, nem têm verda<strong>de</strong>, nem<br />

lealda<strong>de</strong> a nenhuma pessoa que lhes faça bem. E se não têm L na sua pronunciação, é porque não<br />

têm lei alguma que guardar, nem preceitos para se governarem; e cada um faz lei a seu mo<strong>do</strong>, e ao<br />

som da sua vonta<strong>de</strong>; sem haver entre eles leis com que se governem, nem têm leis uns com os outros.<br />

E se não têm esta letra R na sua pronunciação, é porque não têm rei que os reja, e a quem obe<strong>de</strong>çam,<br />

nem obe<strong>de</strong>cem a ninguém, nem ao pai o filho, nem o filho ao pai, e cada um vive ao som da sua<br />

vonta<strong>de</strong>; para dize-zerem Francisco dizem Pancico, para dizerem Lourenço dizem Rorenço, para<br />

dizerem Rodrigo dizem Rodigo; e por este mo<strong>do</strong> pronunciam to<strong>do</strong>s os vocábulos em que entram<br />

essas três letras.<br />

A tentativa <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r o gran<strong>de</strong> universo lingüístico e cultural <strong>do</strong>s indígenas<br />

tinha como objetivo tornar esta nova realida<strong>de</strong> cognoscível para o ponto <strong>de</strong> vista oci<strong>de</strong>ntal.<br />

A partir daí se estabeleceram comparações toman<strong>do</strong> a cultura oci<strong>de</strong>ntal como parâmetro,<br />

on<strong>de</strong> o conquista<strong>do</strong>r buscava as semelhanças e a s diferenças com a sua realida<strong>de</strong><br />

conhecida. Também por <strong>de</strong>sconhecimento <strong>de</strong> causa, foram produzidas generalizações que<br />

se não reproduziam fi<strong>de</strong>dignamente a realida<strong>de</strong> das populações nativas, ao menos atendia<br />

<strong>de</strong> imediato a <strong>de</strong>manda mínima <strong>de</strong> conhecimento para que se estabelecessem estratégias <strong>de</strong><br />

<strong>do</strong>mínio sobre as populações nativas.<br />

Uma comparação notória e <strong>de</strong> natureza lingüística embasa uma argumentação que<br />

legitima e justifica a <strong>do</strong>minação portuguesa, através <strong>do</strong> uso <strong>de</strong> recurso <strong>de</strong> retórica e sob o<br />

pretexto <strong>de</strong> civilizar e cristianizar a “barbárie”, impon<strong>do</strong> uma Lei e um Rei, segun<strong>do</strong> a<br />

concepção européia <strong>de</strong>stes mesmos conceitos. Afinal, apesar da ausência das consoantes L<br />

e R, em nenhum momento, po<strong>de</strong>-se afirmar que tais estruturas não existissem nas<br />

socieda<strong>de</strong>s indígenas, apenas se manifestavam sob outros aspectos, que não podiam ou não<br />

22 SOUZA, op. cit. p.302.<br />

21


eram propositalmente compreendi<strong>do</strong>s pelos <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>res. A ausência <strong>de</strong> leis escritas não<br />

necessariamente indica a ausência <strong>de</strong> m código comum <strong>de</strong> moral e costumes reconhecível<br />

que reja e normatize a vida em socieda<strong>de</strong>, fornecen<strong>do</strong> os parâmetros <strong>de</strong> certo e erra<strong>do</strong>, <strong>do</strong><br />

aceitável e <strong>do</strong> intolerável. A ausência <strong>de</strong> um Rei, cujos po<strong>de</strong>res e atribuições não<br />

reproduziam o quadro das monarquias européias não implica em ausência total <strong>de</strong><br />

autorida<strong>de</strong>, ou que os indivíduos pu<strong>de</strong>ssem fazer valer sua vonta<strong>de</strong> pessoal acima <strong>do</strong>s<br />

direitos e prerrogativas da comunida<strong>de</strong> na qual se insere.<br />

O mesmo po<strong>de</strong> ser dito em relação à Fé, a ausência da consoante F ou <strong>de</strong> uma<br />

instituição que se se assemelha à Igreja, não significam ausência <strong>de</strong> religiosida<strong>de</strong>. Mais<br />

uma vez, os ditames da cultura oci<strong>de</strong>ntal servem como base <strong>de</strong> comparação. Desta vez, no<br />

entanto, o discurso <strong>de</strong> <strong>do</strong>minação utiliza como premissa não somente apenas a civilização,<br />

mas a salvação da alma.<br />

Esta mesma afirmação "Sem Fé, sem Lei nem Rei" ao mesmo tempo em que<br />

constitui uma argumentação frágil da parte <strong>de</strong> Gabriel Soares, é ao mesmo tempo uma<br />

prova <strong>de</strong> o quanto a história é seletiva e o quanto a reconstituição <strong>do</strong>s fatos históricos é<br />

produto da escolha <strong>do</strong>s historia<strong>do</strong>res. Muito injustamente o livro <strong>de</strong> Gabriel Soares, só<br />

passou a ter repercussão a partir <strong>do</strong> século XIX, e ainda assim é muitas vezes ignora<strong>do</strong>.<br />

Quase to<strong>do</strong>s os historia<strong>do</strong>res que utilizaram o Trata<strong>do</strong> Descritivo <strong>do</strong> Brasil em 1587<br />

como fonte <strong>do</strong> século XVI, aproveitaram a narrativa não naquilo que ela possui <strong>de</strong> melhor,<br />

mas naquilo ela possui <strong>de</strong> pior - a retórica mal elaborada -, mas que serve para legitimar o<br />

<strong>do</strong>mínio português, cristão e da própria Coroa. O historia<strong>do</strong>r John Manuel Monteiro<br />

(brasileiro), analista contemporâneo, interpreta a conclusão <strong>de</strong> Gabriel Soares como sen<strong>do</strong><br />

uma "dificulda<strong>de</strong> em i<strong>de</strong>ntificar instituições que fossem comparáveis às da civilização<br />

européia", o que nos faz enxergar a fase embrionária <strong>do</strong> pensamento eurocêntrico já no<br />

século XVI, a partir <strong>do</strong> advento das gran<strong>de</strong>s navegações, on<strong>de</strong> o historia<strong>do</strong>r Jaquues Revell<br />

(europeu) enxerga uma primeira tentativa <strong>de</strong> "globalização" 23 .<br />

Ao Examinar a afirmativa com as lentes <strong>do</strong> século XXI, ela nos fornece não<br />

somente uma leitura <strong>do</strong>s discursos <strong>de</strong> <strong>do</strong>minação produzi<strong>do</strong>s no século XVI e <strong>de</strong>pois<br />

apropria<strong>do</strong>s e consolida<strong>do</strong>s pela historiografia luso-brasileira posterior, mas uma pista<br />

23<br />

Esta foi a opinião emitida por Jaquees Revel em uma palestra realizada para estudantes <strong>de</strong> <strong>História</strong><br />

da UFPR, durante sua visita ao Brasil em 2008.<br />

22


valiosa para analisar o próprio conceito <strong>de</strong> civilização como sinônimo <strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntalida<strong>de</strong><br />

durante o século XVI. A Fé, a Lei e o Rei são os atributos <strong>de</strong> civilização que regem a<br />

Oci<strong>de</strong>ntalida<strong>de</strong> no contexto Ibérico e também o critério para <strong>de</strong>terminar quem é "bárbaro"<br />

ou não.<br />

Transferências apropriações e interpenetrações das culturas Indígena e Portuguesa.<br />

Os trechos abaixo servem para elucidar os mecanismos <strong>de</strong> trocas culturais. Ao<br />

mesmo tempo em que o português promove a aculturação esquematizada <strong>do</strong>s indígenas,<br />

também sofre o mesmo processo. O português que aqui se estabelece sofre um processo <strong>de</strong><br />

aculturação natural, no qual absorve a cultura indígena. De maneira que o elemento<br />

português que aqui se estabelece passa a congregar <strong>do</strong>is lega<strong>do</strong>s, começan<strong>do</strong> a tecer uma<br />

nova socieda<strong>de</strong> que só lentamente irá se configurar através <strong>do</strong> tempo. Se o Português<br />

forneceu a os elementos estruturais que iriam formar no futuro a socieda<strong>de</strong> brasileira, é o<br />

elemento indígena que fornece <strong>do</strong> lega<strong>do</strong> <strong>de</strong> sua cultura material as condições <strong>de</strong> adaptação<br />

e sobrevivência para que esta mesma socieda<strong>de</strong> nova perdure e se <strong>de</strong>senvolva. A mandioca<br />

e a carimã tornaram-se requintadas iguarias da Casa gran<strong>de</strong>, assim como garantiram a<br />

sobrevivência <strong>de</strong> brancos pobres e <strong>do</strong>s que se lançavam nas longas viagens<br />

marítimas.Conforme po<strong>de</strong> ser verifica<strong>do</strong> nos extratos que se seguem.<br />

A mandioca 24<br />

As raízes da mandioca comem-nas as vacas, éguas, ovelhas, cabras, porcos e a caça <strong>do</strong> mato, e to<strong>do</strong>s<br />

engordam com elas comen<strong>do</strong>-as cruas, e se as comem os índios, ainda que sejam assadas, morrem<br />

disso por serem muito peçonhentas; e para se aproveitarem os índios e mais gente <strong>de</strong>stas raízes,<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> arrancadas rapam-nas muito bem até ficarem alvíssimas, o que fazem com cascas <strong>de</strong> ostras,<br />

e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> lavadas ralam-nas em uma pedra ou ralo, que para isso têm, e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> bem raladas,<br />

espremem esta massa em um engenho <strong>de</strong> palma, a que chamam tapeti, que lhe faz lançar a água que<br />

tem tôda fora, e fica essa massa toda muito enxuta, da qual se faz a farinha que se come, que cozem<br />

em um alguidar para isso feito, no qual <strong>de</strong>itam esta massa e a enxugam sobre o fogo, on<strong>de</strong> uma índia<br />

a mexe com um meio cabaço, como quem faz confeitos, até que fica enxuta e sem nenhuma<br />

umida<strong>de</strong>, e fica como cuscuz, mas mais branca, e <strong>de</strong>sta maneira se come, é muito <strong>do</strong>ce e saborosa.<br />

Fazem mais <strong>de</strong>sta massa, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> espremida, umas filhós, a que chamam beijus, esten<strong>de</strong>n<strong>do</strong>-a no<br />

alguidar sobre o fogo, <strong>de</strong> maneira que ficam tão <strong>de</strong>lgadas como filhós mouriscas, que se fazem <strong>de</strong><br />

massa <strong>de</strong> trigo, mas ficam tão iguais como obreias, as quais se cozem neste alguidar até que ficam<br />

muito secas e torradas. Destes beijus são mui saborosos, sadios e <strong>de</strong> boa digestão, que é o<br />

mantimento que se usa entre gente <strong>de</strong> primor, o que foi inventa<strong>do</strong> pelas mulheres portuguesas,<br />

que o gentio não usava <strong>de</strong>les. Fazem mais <strong>de</strong>sta mesma massa tapiocas, as quais são grossas como<br />

24 SOUZA, op. cit. p..174.<br />

23


filhós <strong>de</strong> polme e moles, e fazem-se no mesmo alguidar como os beijus, mas não são <strong>de</strong> tão boa<br />

digestão, nem tão sadios; e querem-se comidas quentes; com leite têm muita graça; e com açúcar<br />

clarifica<strong>do</strong> também.<br />

A carimã 25 .<br />

Farinha-<strong>de</strong>-guerra se diz, porque o gentio <strong>do</strong> Brasil costuma chamar-lhe assim pela sua língua,<br />

porque quan<strong>do</strong> <strong>de</strong>terminam <strong>de</strong> a ir fazer a seus contrários algumas jornadas fora <strong>de</strong> sua casa, se<br />

provêm <strong>de</strong>sta farinha, que levam às costas ensacada em uns far<strong>do</strong>s <strong>de</strong> folhas que para isso fazem, da<br />

feição <strong>de</strong> uns <strong>de</strong> couro, em que da Índia trazem especiaria e arroz; mas são muito mais pequenos,<br />

on<strong>de</strong> levam esta farinha muito calcada e enfolhada, <strong>de</strong> maneira que, ainda que lhe caia num rio, e que<br />

lhe chova em cima, não se molha. Para se fazer esta farinha se faz prestes muita soma <strong>de</strong> carimã, a<br />

qual, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> rapada, a pisam num pilão que para isso têm, e como é bem pisada a peneiram muito<br />

bem, como no capítulo antes fica dito. E como têm esta carimã prestes, tomam as raízes da mandioca<br />

por curtir, e ralam como convém uma soma <strong>de</strong>las, e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> espremidas, como se faz à primeira<br />

farinha que dissemos atrás, lançam uma pouca <strong>de</strong>sta massa num alguidar que está sôbre o fogo, e por<br />

cima <strong>de</strong>la uma pouca <strong>de</strong> farinha da carimã e, embrulhada uma com outra, a vão mexen<strong>do</strong> sobre o<br />

fogo, e assim como se vai cozen<strong>do</strong> lhe vão lançan<strong>do</strong> <strong>do</strong> pó da carimã, e trazem-na sobre o fogo, até<br />

que fica muito enxuta e torrada, que a tiram fora. Desta farinha-<strong>de</strong>-guerra usam os portugueses que<br />

não têm roças, e os que estão fora <strong>de</strong>las na cida<strong>de</strong>, com que sustentam seus cria<strong>do</strong>s e escravos, e nos<br />

engenhos se provêm <strong>de</strong>la para sustentarem a gente em tempo <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>, e os navios que vêm <strong>do</strong><br />

Brasil para estes reinos<br />

não têm outro remédio <strong>de</strong> matalota-gem, para se sustentar a gente até Portugal, senão o da farinha<strong>de</strong>-guerra;<br />

e um alqueire <strong>de</strong>la da medida da Bahia, que tem <strong>do</strong>is <strong>de</strong> Portugal, se dá <strong>de</strong> regra a cada<br />

homem para um mês, a qual farinha-<strong>de</strong>-guerra é muito sadia e <strong>de</strong>senfastiada, e molhada no cal<strong>do</strong> da<br />

carne ou <strong>do</strong> peixe fica branda e tão saborosa como cuscuz. Também costumam levar para o mar<br />

matalotagem <strong>de</strong> beijus grossos muito torra<strong>do</strong>s, que dura um ano, e mais sem se danarem, como a<br />

farinha-<strong>de</strong>-guerra. Desta carimã e pó <strong>de</strong>la bem peneira<strong>do</strong> fazem os portugueses muito bom pão, e<br />

bolos amassa<strong>do</strong>s com leite e gemas <strong>de</strong> ovos, e <strong>de</strong>sta mesma massa fazem mil invenções <strong>de</strong> beilhós,<br />

mais saborosos que <strong>de</strong> farinha <strong>de</strong> trigo, com os mesmos materiais, e pelas festas fazem as frutas<br />

<strong>do</strong>ces com a massa <strong>de</strong>sta carimã, em lugar da farinha <strong>de</strong> trigo, e se a que vai à Bahia <strong>do</strong> reino não é<br />

muito alva e fresca, querem as mulheres antes a farinha <strong>de</strong> carimã, que é alvíssima e lavra-se melhor<br />

com a qual fazem tu<strong>do</strong> muito primo.<br />

Hábitos alimentares e sexualida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Gentio segun<strong>do</strong> a ótica <strong>do</strong> Homem Europeu.<br />

Etnocentrismo x Relativismo cultural.<br />

Que trata da luxúria <strong>de</strong>stes bárbaros. 26<br />

São os tupinambás tão luxuriosos que não há peca<strong>do</strong> <strong>de</strong> luxúria que não cometam; os quais sen<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

muito pouca ida<strong>de</strong> têm conta com mulheres, e bem mulheres; porque as velhas, já <strong>de</strong>sestimadas <strong>do</strong>s<br />

que são homens, granjeiam estes meninos, fazen<strong>do</strong>-lhes mimos e regalos, e ensinam-lhes a fazer o<br />

que eles não sabem, e não os <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> dia, nem <strong>de</strong> noite. É este gentio tão luxurioso que poucas<br />

vezes têm respeito às irmãs e tias, e porque este peca<strong>do</strong> é contra seus costumes, <strong>do</strong>rmem com<br />

elas pelos matos, e alguns com suas próprias filhas; e não se contentam com uma mulher, mas têm<br />

muitas, como já fica dito pelo que morrem muitos <strong>de</strong> esfalfa<strong>do</strong>s. E em conversação não sabem falar<br />

senão nestas sujida<strong>de</strong>s, que cometem cada hora; os quais são tão amigos da carne que se não<br />

contentam, para seguirem seus apetites, com o membro genital como a natureza formou; mas há<br />

muitos que lhe costumam pôr o pêlo <strong>de</strong> um bicho tão peçonhento, que lho faz logo inchar, com o que<br />

têm gran<strong>de</strong>s <strong>do</strong>res, mais <strong>de</strong> seis meses, que se lhe vão gastan<strong>do</strong> espaço <strong>de</strong> tempo; com o que se lhes<br />

25 SOUZA, op. cit. pp.178-179.<br />

26 SOUZA, op. cit. pp..308-309.<br />

24


faz o seu cano tão disforme <strong>de</strong> grosso, que os não po<strong>de</strong>m as mulheres esperar, nem sofrer; e não<br />

contentes estes selvagens <strong>de</strong> andarem tão encarniça<strong>do</strong>s neste peca<strong>do</strong>, naturalmente cometi<strong>do</strong>, são<br />

muito afeiçoa<strong>do</strong>s ao peca<strong>do</strong> nefan<strong>do</strong>, entre os quais se não têm por afronta; e o que se serve <strong>de</strong><br />

macho, se tem por valente, e contam esta bestialida<strong>de</strong> por proeza; e nas suas al<strong>de</strong>ias pelo sertão há<br />

alguns que têm tenda pública a quantos os querem como mulheres públicas. Como os pais e as mães<br />

vêem os filhos com meneios para conhecer mulher, êles lhas buscam, e os ensinam como a saberão<br />

servir; as fêmeas muito meninas esperam o macho, mormente as que vivem entre os portugueses. Os<br />

machos <strong>de</strong>stes tupinambás não são ciosos; e ainda que achem outrem com as mulheres, não matam a<br />

ninguém por isso, e quan<strong>do</strong> muito espancam as mulheres pelo caso. E as que querem bem aos<br />

mari<strong>do</strong>s, pelos contentarem, buscam-lhes moças com que eles se <strong>de</strong>senfa<strong>de</strong>m, as quais lhes levam à<br />

re<strong>de</strong> on<strong>de</strong> <strong>do</strong>rmem, on<strong>de</strong> lhes pe<strong>de</strong>m muito que se queiram <strong>de</strong>itar com os mari<strong>do</strong>s, e as peitam para<br />

isso; coisa que não faz nenhuma nação <strong>de</strong> gente, senão estes bárbaros.<br />

O recorte <strong>de</strong>sta frase "porque este peca<strong>do</strong> é contra seus costumes”, extraí<strong>do</strong> da<br />

narrativa, <strong>de</strong>monstra que o autor tem algum conhecimento das regras que regem a<br />

organização social <strong>do</strong>s Tupinambás. Contu<strong>do</strong>, ele usa critérios culturais que lhe são<br />

próprios para estabelecer parâmetros <strong>de</strong> julgamento. Afinal "o peca<strong>do</strong> nefan<strong>do</strong>" como é<br />

coloca<strong>do</strong> pelo autor não é peca<strong>do</strong> entre os indígenas, mas, sim, uma falha moral, afinal não<br />

se po<strong>de</strong> atribuir o conceito cristão <strong>de</strong> peca<strong>do</strong> aos que em tese ainda seriam pagãos. O<br />

peca<strong>do</strong> só existe aon<strong>de</strong> há consciência <strong>de</strong>le, ou seja, só po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> como tal, entre<br />

hereges e infiéis. Contu<strong>do</strong>, Gabriel Soares, apesar <strong>de</strong> ser um fervoroso católico, não era<br />

teólogo ou especialista em direito canônico.<br />

Na realida<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>mos constatar que toda sua forma <strong>de</strong> julgar, contém o esboço da<br />

idéia daquilo que mais tar<strong>de</strong> a Antropologia Mo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong>nominaria <strong>de</strong> Etnocentrismo.<br />

Comparan<strong>do</strong> Soares com outro autor <strong>de</strong> referência <strong>do</strong> Século XVI, Michel <strong>de</strong> Montaigne 27 ,<br />

po<strong>de</strong>-se concluir que durante o século XVI, po<strong>de</strong>mos concluir que o esboço <strong>do</strong>s conceitos<br />

que mais tar<strong>de</strong> se "Etnocentrismo" e "Relativismo Cultural", já se encontravam entre as<br />

formas <strong>de</strong> pensar e interpretar da Mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.<br />

Montaigne, ao contrário <strong>de</strong> Gabriel Soares, já consegue "relativisar" a análise <strong>de</strong><br />

socieda<strong>de</strong>s que possuam cultura diversa da sua. No século XX, o sociólogo Florestan<br />

Fernan<strong>de</strong>s trabalhou o tema da sexualida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s Tupinambás além da esfera <strong>do</strong> priva<strong>do</strong> no<br />

livro <strong>de</strong> sua autoria, A Organização social e política <strong>do</strong>s Tupinambás. 28<br />

Na análise <strong>de</strong> Florestan Fernan<strong>de</strong>s, a socieda<strong>de</strong> <strong>do</strong>s Tupinambás era relativamente<br />

27 MONTAIGNE, Michel. Essais. Paris: Garnier, 1965.<br />

28 FERNANDES, Florestan. Organização Social <strong>do</strong>s Tupinambá. 2.ed. São paulo: Difusão Européia<br />

<strong>do</strong> Livro, 1963.<br />

25


tolerante em relação à prática homossexual, enquanto que, na análise <strong>do</strong> autor quinhentista<br />

constituiria o peca<strong>do</strong> nefan<strong>do</strong> - a so<strong>do</strong>mia - algo simplesmente abominável, para a<br />

mentalida<strong>de</strong> católica, moldada pelas exortações contidas nas epístolas paulinas, assim como<br />

pelas narrativas contidas no Pentateuco, on<strong>de</strong> as cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> So<strong>do</strong>ma e Gomorra são<br />

con<strong>de</strong>nadas por Deus, por suas iniqüida<strong>de</strong>s e práticas nefandas.<br />

Ainda recorren<strong>do</strong> à análise <strong>de</strong> Florestan Fernan<strong>de</strong>s 29 , era comum o fato <strong>de</strong> mulheres<br />

<strong>de</strong> mais ida<strong>de</strong> cuidar da iniciação sexual aos mais jovens, pois em uma socieda<strong>de</strong><br />

poligâmica on<strong>de</strong> o " matrimônio" não era indissolúvel, não era incomum que as mulheres<br />

mais velhas fossem enjeitadas por seus antigos mari<strong>do</strong>s ou parceiros, e liberadas por estes<br />

<strong>de</strong> qualquer laço <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>, tornan<strong>do</strong>-se mulheres livres e sem qualquer impedimento <strong>de</strong><br />

or<strong>de</strong>m sexual. Estas por sua vez procuravam consolo nos jovens mancebos, que <strong>de</strong>ntro da<br />

estrutura social <strong>do</strong>s tupinambás, só viriam a <strong>de</strong>sempenhar funções sexuais socialmente<br />

legítimas após um longo perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> espera, pois só viriam a se casar bem mais tar<strong>de</strong>,<br />

quan<strong>do</strong> lhe seria permiti<strong>do</strong> a partir <strong>de</strong> então ter contato com mulheres mais jovens <strong>do</strong> que<br />

ele, a primeira esposa e as que viriam <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>la. Desta forma, os Tupinambás conseguiam<br />

alguma forma <strong>de</strong> harmonia e satisfação para to<strong>do</strong>s indistintamente.<br />

Além da mandioca, a dieta indígena era bastante variada e incluía uma série <strong>de</strong><br />

animais obti<strong>do</strong>s através <strong>de</strong> caça. As maiores partes <strong>de</strong>stes hábitos alimentares não perduram<br />

na dieta cotidiana e nem foram assimila<strong>do</strong>s totalmente pelo coloniza<strong>do</strong>r. Contu<strong>do</strong> parece<br />

que ao menos Gabriel Soares experimentou a dieta indígena, nos seus numerosos relatos<br />

sobre a alimentação ele costuma comentar sobre o sabor e a textura das carnes obtidas<br />

através <strong>de</strong> caça e pesca. Observe a narrativa e veja a lista que se segue:<br />

Nhandu, Tabuiaá, Macucaguá - motum - jacus - canindé - araras - picaçu (espécie<br />

<strong>de</strong> pomba brava) - pairari - juriti (espécie <strong>de</strong> rola) - nambu - papagaios (ajuruaçu, ajurueté,<br />

curicas), nhambupé - tuins, saracura - uru - mel <strong>de</strong> heru (espécie <strong>de</strong> abelha) - filhotes <strong>de</strong><br />

abelha. tapiruçu ( anta ) - jaguaretê ( onça ) - suçurana ( onça ), suçuapara ( vea<strong>do</strong>) -<br />

tamanduás - tajaçuetê e tajaçutirica (porcos <strong>do</strong> mato) - capivaras - irara ( espécie <strong>de</strong> cão ) -<br />

vivias, - tatuaçu - tatumirin,tatupeba ( espécies <strong>de</strong> tatus) - pacas - cutias - tapotins -<br />

saviátinga ( espécie <strong>de</strong> coelho) - jabutiapeba - jabutimirim ( espécies <strong>de</strong> cága<strong>do</strong>s) - jibóias<br />

29 FERNANDES, op. cit.<br />

26


- sucurius - arabóia - taraibóia - jereracas - tiopurana( espécies <strong>de</strong> cobras) - ububoca (<br />

cobra coral ) - jacarés - sinimbus e tejuaçus (espécies <strong>de</strong> lagarto) - tubarões - peixes em<br />

geral - algumas espécies <strong>de</strong> formigas - peixe-boi e mariscos em geral.<br />

Agora observe que o autor quinhentista não <strong>de</strong>monstra, nenhum tipo <strong>de</strong><br />

estranhamento ou julgamento sobre os hábitos "pitorescos" da alimentação indígena, pelo<br />

contrário, compreen<strong>de</strong> como um hábito diferente <strong>do</strong> hábito alimentar europeu, e procura<br />

interpretá-lo <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> contexto da socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> origem. 30<br />

Ajuruaçus são uns papagaios gran<strong>de</strong>s to<strong>do</strong>s ver<strong>de</strong>s, que têm tamanho corpo como um a<strong>de</strong>m, os quais<br />

se fazem mui <strong>do</strong>mésticos em casa, on<strong>de</strong> falam muito bem; estes, no mato, criam em ninhos, em<br />

árvores altas; são muito gor<strong>do</strong>s e <strong>de</strong> boa carne, e muito saborosos; mas hão <strong>de</strong> ser cozi<strong>do</strong>s.<br />

Catolicismo X Protestantismo (Luteranismo) e suas repercussões na visão<br />

quinhentista portuguesa.<br />

Neste senti<strong>do</strong>, <strong>de</strong>vemos nos resumir a ler a fonte, pois ela é autoexplicativa, e serve<br />

para <strong>de</strong>monstrar a existência <strong>de</strong>ste tipo <strong>de</strong> preocupação no cenário <strong>do</strong> Brasil português, <strong>do</strong><br />

século <strong>de</strong>zesseis, coisa que nos parece distante e que passa quase <strong>de</strong>spercebida nas análises<br />

sobre o perío<strong>do</strong>, on<strong>de</strong> o máximo que se encontra seriam alusões às tentativas <strong>de</strong><br />

protestantes, <strong>de</strong> origem francesa, em se estabelecer nas regiões <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro e<br />

Maranhão (posteriormente). Contu<strong>do</strong> a fonte evidência a existência <strong>de</strong> uma verda<strong>de</strong>ira<br />

"paranóia" - seja ela fundamentada ou não.<br />

Em que se <strong>de</strong>clara a muita quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ouro e prata que há na comarca da Bahia. 31<br />

Dos metais <strong>de</strong> que o mun<strong>do</strong> faz mais conta, que é o ouro e prata, fazemos aqui tão pouca, que os<br />

guardamos para o remate e fim <strong>de</strong>sta história, haven<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> dizer <strong>de</strong>les primeiros, pois esta terra da<br />

Bahia tem <strong>de</strong>le tanta parte quanto se po<strong>de</strong> imaginar; <strong>do</strong> que po<strong>de</strong>m vir à Espanha cada ano maiores<br />

carregações <strong>do</strong> que nunca vieram das Índias Oci<strong>de</strong>ntais, se Sua Majesta<strong>de</strong> for disto servi<strong>do</strong>, o que se<br />

po<strong>de</strong> fazer sem se meter nesta empresa muito cabedal <strong>de</strong> sua fazenda, <strong>de</strong> que não tratamos<br />

miudamente por não haver para quê, nem fazer ao caso da tenção <strong>de</strong>stas lembranças, cujo<br />

fundamento é mostrar as gran<strong>de</strong>s qualida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Brasil, para se haver <strong>de</strong> fazer muita conta<br />

<strong>de</strong>le, fortifican<strong>do</strong>-lhe os portos principais, pois têm tanto cômo<strong>do</strong> para isso como no que toca à Bahia<br />

está <strong>de</strong>clara<strong>do</strong>; o que se <strong>de</strong>via pôr em efeito com muita instância, pon<strong>do</strong> os olhos no perigo cm que<br />

está <strong>de</strong> chegar à notícia <strong>do</strong>s luteranos parte <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> neste Trata<strong>do</strong>, para fazerem suas armadas, e<br />

se irem povoar esta província, on<strong>de</strong> com pouca força que levem <strong>de</strong> gente bem armada se po<strong>de</strong>m<br />

senhorear <strong>do</strong>s portos principais, porque não hão <strong>de</strong> achar nenhuma resistência neles, pois não têm<br />

nenhum mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> fortificação, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> os mora<strong>do</strong>res se possam <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r nem ofen<strong>de</strong>r a quem os<br />

quiser entrar. Se Deus o permitir por nossos peca<strong>do</strong>s, que seja isto, acharão to<strong>do</strong>s os cômo<strong>do</strong>s que<br />

temos <strong>de</strong>clara<strong>do</strong> e muito mais para se fortificarem, porque hão <strong>de</strong> fazer trabalhar os mora<strong>do</strong>res nas<br />

30 SOUZA, op. cit. . p.231.<br />

31 SOUZA, op. cit. .pp. 351-352.<br />

27


suas fortificações com as suas pessoas, com seus escravos, barcos, bois, carros e tu<strong>do</strong> mais<br />

necessário, e com to<strong>do</strong>s os mantimentos que tiverem por suas fazendas, o que lhes há <strong>de</strong> ser força<strong>do</strong><br />

fazer para com isso resgatarem as vidas; e com a força da gente da terra se po<strong>de</strong>rão apo<strong>de</strong>rar e<br />

fortificar <strong>de</strong> maneira que não haja po<strong>de</strong>r humano com que se possam tirar <strong>do</strong> Brasil estes inimigos,<br />

<strong>de</strong> on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>m fazer gran<strong>de</strong>s danos a seu salvo em todas as terras marítimas da coroa <strong>de</strong> Portugal e<br />

Castela, o que Deus não permitirá; <strong>de</strong> cuja bonda<strong>de</strong> confiamos que <strong>de</strong>ixará estar estes inimigos <strong>de</strong><br />

nossa santa fé católica com a cegueira que até agora tiveram <strong>de</strong> não chegar à sua notícia o conteú<strong>do</strong><br />

neste Trata<strong>do</strong>, para que lhe não façam tantas ofensas estes infiéis, como lhe ficarão fazen<strong>do</strong> se<br />

senhorearem <strong>de</strong>sta terra, que Deus <strong>de</strong>ixe crescer em Seu santo serviço; com o que o Seu santo nome<br />

seja exalça<strong>do</strong>, para que Sua Majesta<strong>de</strong> a possa possuir por muitos e felizes anos com gran<strong>de</strong>s<br />

contentamentos.<br />

Capítulo 2<br />

Passa<strong>do</strong> x <strong>História</strong>. O discurso <strong>do</strong> Século XX e o relato <strong>do</strong> século XVI.<br />

Agora iremos utilizar a opinião <strong>do</strong> conheci<strong>do</strong> anticlericalista Sérgio Buarque <strong>de</strong><br />

Hollanda, em seu Raízes <strong>do</strong> Brasil, a partir <strong>de</strong> suas escolhas baseada nos relatos <strong>do</strong>s<br />

eclesiásticos Padre Manuel <strong>de</strong> Nóbrega e Frei Vicente <strong>do</strong> Salva<strong>do</strong>r, utiliza<strong>do</strong>s para<br />

evi<strong>de</strong>nciar a falta <strong>de</strong> interesse <strong>do</strong> elemento português em colonizar e permanecer na Terra,<br />

reduzin<strong>do</strong>-a á condição <strong>de</strong> mera feitoria. A comparação <strong>do</strong> discurso <strong>de</strong> Hollanda, no século<br />

XX, com a narrativa e o testamento <strong>de</strong> Soares, produzi<strong>do</strong>s no século XVI, é <strong>de</strong> bastante<br />

utilida<strong>de</strong> para <strong>de</strong>monstrar o quanto <strong>História</strong> e passa<strong>do</strong> po<strong>de</strong>m ser divergentes <strong>de</strong> acor<strong>do</strong><br />

com as escolhas <strong>do</strong> historia<strong>do</strong>r. No caso, Hollanda, anticlecarista reconheci<strong>do</strong> - que chama<br />

ironicamente os eclesiásticos <strong>de</strong> companheiros <strong>de</strong> roupeta <strong>do</strong> Padre Antonio Vieira - prefere<br />

dar crédito a o testemunho <strong>de</strong> outros companheiros <strong>de</strong> roupeta (Nóbrega e Salva<strong>do</strong>r) para<br />

en<strong>do</strong>ssar suas teses, ignoran<strong>do</strong> os escritos <strong>do</strong> laico Gabriel Soares que versam sobre o<br />

mesmo tema. Curioso é notar que Hollanda utiliza o próprio Gabriel Soares como fonte <strong>de</strong><br />

seu ensaio e não é <strong>de</strong> crer que um homem <strong>de</strong> sua envergadura intelectual não tenha li<strong>do</strong> a<br />

obra <strong>de</strong> Soares inteira.<br />

28


Trecho <strong>de</strong> Raízes <strong>do</strong> Brasil 32<br />

O Padre Manuel <strong>de</strong> Nóbrega, em carta <strong>de</strong> 1552, exclamava:”... <strong>de</strong> quantos lá vieram, nenhum tem<br />

amor a esta terra (...) to<strong>do</strong>s querem fazer em seu proveito ainda que seja à custa da terra, porque<br />

esperam <strong>de</strong> se ir". Em outra carta <strong>do</strong> mesmo ano, repisa o assunto, queixan<strong>do</strong>-se <strong>do</strong>s que preferem<br />

sair <strong>do</strong> Brasil muitos navio carrega<strong>do</strong>s <strong>de</strong> ouro <strong>do</strong> que muitas almas para o Céu. E acrescenta: “Não<br />

querem bem a terra, pois têm sua afeição em Portugal; nem trabalham tanto para a favorecer, como<br />

por se aproveitarem <strong>de</strong> qualquer maneira que pu<strong>de</strong>rem; isto é regra geral, posto que entre eles haverá<br />

alguns fora <strong>de</strong>sta regra". E Frei Vicente <strong>do</strong> Salva<strong>do</strong>r, escreven<strong>do</strong> no século seguinte, ainda po<strong>de</strong>rá<br />

queixar-se<strong>de</strong> terem vivi<strong>do</strong> os portugueses até então" arranhan<strong>do</strong> as costas como caranguejos" e<br />

lamentará que os povoa<strong>do</strong>res, por mais arraiga<strong>do</strong>s que a terra estejam e mais ricos, tu<strong>do</strong> preten<strong>de</strong>m<br />

levar a Portugal, e se” as fazendas e bens que possuem souberem falar, também lhes houveram <strong>de</strong><br />

ensinar a dizer como papagaios, aos quais a primeira cousa que ensinam é: papagaio real para<br />

Portugal, por que tu<strong>do</strong> querem para lá.<br />

“Mesmo em seus melhores momentos, a obra realizada no Brasil pelos portugueses teve um<br />

caráter mais acentua<strong>do</strong> <strong>de</strong> feitorização <strong>do</strong> que <strong>de</strong> colonização.”<br />

Trecho <strong>do</strong> testamento <strong>de</strong> Gabriel Soares <strong>de</strong> Souza 33 .<br />

Se Deus for servi<strong>do</strong>, que eu faleça, n'sta cida<strong>de</strong> e capitania (Salva<strong>do</strong>r / Bahia), meu corpo será<br />

enterra<strong>do</strong>, na capella-mór, on<strong>de</strong> se me porá uma campa com o letreiro que diga AQUI JAZ UM<br />

PECCADOR o qual estará no meio <strong>de</strong> um escu<strong>do</strong> que se lavrará na dita campa; e sen<strong>do</strong> Deus servi<strong>do</strong><br />

<strong>de</strong> me levar no mar ou em Hespanha, todavia se porá na dita capella mór a dita campa com o letreiro<br />

em qual sepultura se enterrá minha mulher Anna <strong>de</strong> Argolo.<br />

Como se po<strong>de</strong> ver, quem preten<strong>de</strong> aqui morrer, e planeja a própria sepultura no<br />

Brasil, não po<strong>de</strong> estar com intenções <strong>de</strong> aban<strong>do</strong>nar a terra, levan<strong>do</strong> as riquezas aqui<br />

constituídas para a Península. Porventura, todas as riquezas (exceto uma renda anual que<br />

<strong>de</strong>veria ser dada as suas irmãs que moravam em Lisboa) adquiridas no Brasil, preten<strong>de</strong><br />

Soares que aqui fiquem e sejam utilizadas nas obras <strong>de</strong> carida<strong>de</strong> e construção e ampliação<br />

<strong>de</strong> igrejas. Nas próprias or<strong>de</strong>ns recebidas por Soares em seu <strong>de</strong>spacho, consta que o mesmo<br />

<strong>de</strong>veria fundar povoações a cada 50 léguas em se itinerário pelo interior. Durante a<br />

fundação da segunda povoação, o mesmo Soares veio a falecer vitima<strong>do</strong> por <strong>do</strong>ença e<br />

cansaço. Seu irmão que fizera por iniciativa própria o mesmo trajeto <strong>de</strong> penetração pelo<br />

interior (durante três anos) veio a falecer no interior <strong>do</strong> Brasil vitima<strong>do</strong> pelo ataque <strong>de</strong><br />

indígenas. O que <strong>de</strong>monstra existia a iniciativa particular que empreendia penetrações pelos<br />

32 HOLANDA, Sérgio Buarque. <strong>de</strong>. Raízes <strong>do</strong> Brasil. 3° edição Rio <strong>de</strong> Janeiro: José<br />

Olímpio Editora, 1956, p.107.<br />

33 VARNHAGEN, Francisco A<strong>do</strong>lfo. <strong>de</strong>. Additamento. In: SOUZA, Gabriel Soares. <strong>de</strong>. Trata<strong>do</strong><br />

Descritivo <strong>do</strong> Brasil EM 1587. 3° edição São Paulo - Recife - Porto Alegre - Rio <strong>de</strong> janeiro: Companhia<br />

Editora Nacional, 1938, p. XXV.<br />

29


sertões bem antes <strong>do</strong>s Ban<strong>de</strong>irantes paulistas, assim como havia o interesse régio em ocupar<br />

e povoar as regiões interiores <strong>do</strong> Brasil. As <strong>de</strong>terminações régias autorizavam o mesmo<br />

Gabriel a esten<strong>de</strong>r a conquista até as bandas atualmente conhecidas atualmente como Goiás<br />

e Mato Grosso. O que <strong>de</strong>monstra novamente o interesse da Coroa em realmente promover a<br />

conquista <strong>do</strong> interior, assim como revela que a Coroa possuía idéia da extensão interior <strong>do</strong><br />

Brasil.<br />

Quanto à formação das cida<strong>de</strong>s, é interessante observar como Hollanda dá<br />

preferências ao testemunho <strong>de</strong> fontes <strong>do</strong> século XIX, para interpretar o panorama <strong>do</strong> século<br />

XVI, quan<strong>do</strong> possuía a mão o testemunho <strong>de</strong> um homem <strong>do</strong> século XVI, quase<br />

contemporâneo ao evento. Vale a pena examinar a página 76 <strong>de</strong> raízes <strong>do</strong> Brasil e comparar<br />

com a página 129 <strong>de</strong> Trata<strong>do</strong> <strong>de</strong>scritivo <strong>do</strong> Brasil. Os testemunhos escolhi<strong>do</strong>s por Hollanda,<br />

ignorantes a respeito da historicida<strong>de</strong>, e conhece<strong>do</strong>res apenas, <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> urbanística<br />

já transmutada pelos séculos, entram em forte contradição com o relato daquele que chegou<br />

à cida<strong>de</strong> apenas <strong>de</strong>zoito anos após sua fundação.<br />

O discurso <strong>de</strong> <strong>do</strong>minação <strong>de</strong> Gabriel Soares segun<strong>do</strong> a interpretação <strong>de</strong> John Manuel<br />

Monteiro. 34<br />

Na interpretação <strong>de</strong> Monteiro, o autor Gabriel Soares <strong>de</strong> Souza teria monta<strong>do</strong> um<br />

quadro evolutivo que justificaria a <strong>do</strong>minação portuguesa, ou seja, os índios <strong>de</strong> cultura<br />

material mais avançada <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> “quadro evolutivo" teriam <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> a região <strong>do</strong> litoral, e<br />

os portugueses por sua vez, os mais adianta<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ste "quadro evolutivo/cultural"<br />

viriam a ocupar posteriormente este mesmo litoral, afastan<strong>do</strong> os índios mais adianta<strong>do</strong>s<br />

para o interior (Tupis), da mesma forma como estes haviam procedi<strong>do</strong> com seus<br />

pre<strong>de</strong>cessores mais atrasa<strong>do</strong>s (Tapuias). Embora a interpretação <strong>de</strong> Monteiro encontre<br />

respal<strong>do</strong> na realida<strong>de</strong> histórica, creio ser esta uma conclusão <strong>de</strong> um historia<strong>do</strong>r<br />

contemporâneo que analisa o passa<strong>do</strong> com conhecimento <strong>de</strong> causa, daquilo que é factual,<br />

mas <strong>de</strong> maneira bem improvável, estas intenções po<strong>de</strong>riam ter passa<strong>do</strong> pela cabeça <strong>do</strong> autor<br />

34 MONTEIRO, John M. As populações indígenas <strong>do</strong> litoral brasileiro no século XVI. In: Dias, Jill.<br />

(org.). Brasil nas vésperas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>rno. Lisboa: Comissão Nacional para as comemorações <strong>do</strong>s<br />

<strong>de</strong>scobrimentos portugueses, 1992, pp. 121-136.<br />

30


quinhentista Gabriel Soares <strong>de</strong> Souza. Nada em sua obra <strong>de</strong>nuncia esta forma <strong>de</strong> pensar, ou<br />

mesmo a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> justificar algo <strong>de</strong>ste tipo com este tipo <strong>de</strong> argumentação. Talvez<br />

Monteiro tenha produzi<strong>do</strong> uma super-interpretação da fonte, basea<strong>do</strong> em uma construção <strong>de</strong><br />

raciocínio que se ampara em to<strong>do</strong> conhecimento <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, que se tem mais <strong>de</strong> quatro<br />

séculos <strong>de</strong>pois da publicação <strong>do</strong> trabalho <strong>de</strong> Gabriel Soares <strong>de</strong> Souza.<br />

Para Gabriel Soares, to<strong>do</strong>s os indígenas seriam bárbaros, exceto os seus<br />

(provavelmente índios já catequiza<strong>do</strong>s). A distinção feita por Soares entre Tupis e Tapuias,<br />

baseia-se muito mais no critério lingüístico a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> inclusive pelos Tupis, que<br />

<strong>de</strong>nominavam <strong>de</strong> Tapuias a to<strong>do</strong>s os grupos indígenas com quem não podiam se comunicar<br />

verbalmente. A generalização <strong>do</strong> termo Tapuia é <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s Tupis e não <strong>de</strong><br />

Portugueses. O que Soares faz são menções específicas que <strong>de</strong>vem ser compreendidas no<br />

âmbito <strong>de</strong> sua particularida<strong>de</strong> e não no âmbito da generalização. Note o quanto o<br />

julgamento <strong>de</strong> Soares não permite generalizações a respeito da inserção <strong>do</strong>s "Tapuias"<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um quadro evolutivo, composto também por portugueses e Tupis.<br />

Aqui Gabriel Gabriel Soares atesta a presença <strong>de</strong> Tapuias no litoral, no capítulo em<br />

que ele <strong>de</strong>screve trecho <strong>de</strong> costa compreendi<strong>do</strong> entre o Rio <strong>de</strong> São Pedro até o Cabo <strong>de</strong><br />

Santa Maria. 35<br />

Esta costa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o rio <strong>do</strong>s Patos até a boca <strong>do</strong> rio da Prata é povoada <strong>de</strong> tapuias, gente <strong>do</strong>méstica e<br />

bem acondicionada, que não come carne humana nem faz mal à gente branca que os comunica, como<br />

são os mora<strong>do</strong>res da capitania <strong>de</strong> São Vicente,<br />

Observe a narrativa <strong>de</strong> Soares em relação aos Aimorés, também consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s<br />

Tapuias pelo autor. E note o quanto Monteiro foi longe em sua análise generalista.<br />

Em que se <strong>de</strong>clara quem são os aimorés, sua vida e costumes 36 .<br />

Parece razão que não passemos avante sem <strong>de</strong>clarar que gentio é este a quem chamam<br />

aimorés, que tanto dano têm feito a esta capitania <strong>do</strong>s Ilhéus, segun<strong>do</strong> fica dito, cuja costa era<br />

povoada <strong>do</strong>s Tupiniquins, os quais a <strong>de</strong>spovoaram com me<strong>do</strong> <strong>de</strong>stes brutos, e se foram viver ao<br />

sertão; <strong>do</strong>s quais tupiniquins não há já nesta capitania e não duas al<strong>de</strong>ias, que estão junto <strong>do</strong>s<br />

engenhos <strong>de</strong> Henrique Luís, as quais têm já muito pouca gente. Descen<strong>de</strong>m estes aimorés <strong>de</strong> outros<br />

gentios a que chamam tapuias, <strong>do</strong>s quais nos tempos <strong>de</strong> atrás se ausentaram certos casais, e foram-se<br />

para umas serras mui ásperas, fugin<strong>do</strong> a um <strong>de</strong>sbarate, em que os puseram seus contrários, on<strong>de</strong><br />

residiram muitos anos sem verem outra gente; e os que <strong>de</strong>stes <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>n-ram, vieram a per<strong>de</strong>r a<br />

linguagem e fizeram outra nova que se não enten<strong>de</strong> <strong>de</strong> nenhuma outra nação <strong>do</strong> gentio <strong>de</strong> to<strong>do</strong> este<br />

35 SOUZA, op. cit. p.122.<br />

36 SOUZA, op. cit. pp.79-80.<br />

31


Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Brasil. E são êstes aimorés tão selvagens que, <strong>do</strong>s outros bárbaros, são havi<strong>do</strong>s por mais<br />

que bárbaros, e alguns se tomaram já vivos em Porto Seguro e nos Ilhéus, que se <strong>de</strong>ixaram morrer <strong>de</strong><br />

bravos sem quererem comer. Começou este gentio a sair ao mar no rio das Caravelas, junto <strong>de</strong> Porto<br />

Seguro, e corre estes matos e praias até o rio Camamu, e daí veio a dar assaltos perto <strong>de</strong> Tinharé, e<br />

não <strong>de</strong>scem à praia senão quan<strong>do</strong> vêm dar assaltos. Este gentio tem a cor <strong>do</strong> outro, mas são <strong>de</strong><br />

maiores corpos e mais robustos e forçosos; não têm barbas nem mais cabelos no corpo que os da<br />

cabeça, porque os arrancam to<strong>do</strong>s; pelejam com arcos e flechas muito gran<strong>de</strong>s, e são tamanhos<br />

frecheiros, que não erram nunca tiro; são mui ligeiros à maravilha e gran<strong>de</strong>s corre<strong>do</strong>res. Não vivem<br />

estes bárbaros em al<strong>de</strong>ias, nem casas, como o gentio, nem há quem lhas visse nem saiba, nem <strong>de</strong>sse<br />

com elas pelos matos até hoje; andam sempre <strong>de</strong> uma para outra pelos campos e matos, <strong>do</strong>rmem no<br />

chão sobre fôlhas e se lhes chove arrimam-se ao pé <strong>de</strong> uma árvore, on<strong>de</strong> engenham as folhas por<br />

cima, quanto os cobre, assentan<strong>do</strong>-se em cócoras; e não se lhe achou até agora outro rasto <strong>de</strong><br />

gasalha<strong>do</strong>. Não costumam êstes alarves fazer roças, nem plantar alguns mantimentos; mantêm-se <strong>do</strong>s<br />

frutos silvestres e da caça que matam, a qual comem crua ou mal assada, quan<strong>do</strong> têm fogo; machos e<br />

fêmeas to<strong>do</strong>s andam tosquia<strong>do</strong>s e tosquiam-se com umas canas que cortam muito; a sua fala é rouca<br />

da voz, a qual arrancam da garganta com muita força, e não se po<strong>de</strong>rá escrever, como vasconço.<br />

Vivem estes bárbaros <strong>de</strong> saltear toda a sorte <strong>de</strong> gentio que encontram e nunca se viram juntos mais<br />

que vinte até trinta frecheiros; não pelejam com ninguém <strong>de</strong> rosto a rosto; toda a sua briga é<br />

atraiçoada, dão assaltos pelas roças e caminhos por on<strong>de</strong> andam, esperan<strong>do</strong> o outro gentio e toda a<br />

sorte <strong>de</strong> criatura em ciladas <strong>de</strong>trás das árvores, cada um por si, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> não erram tiro, e todas as<br />

flechas empregam, e se lhe fazem rosto, logo fogem, cada um para sua parte; mas corno vêem a<br />

gente <strong>de</strong>smandada, fazem parada e buscam on<strong>de</strong> fiquem escondi<strong>do</strong>s, até que passem os que seguem e<br />

dão-lhes nas costas, empregan<strong>do</strong> suas flechas à vonta<strong>de</strong>. Estes bárbaros não sabem nadar, e qualquer<br />

rio que se não passa a vau basta para <strong>de</strong>fensão <strong>de</strong>les; mas para o passarem vão buscar a vau muitas<br />

léguas pelo rio acima. Comem estes selvagens carne humana por mantimento, o que não tem o outro<br />

gentio que a não come senão por vingança <strong>de</strong> suas brigas e antiguida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus ódios. A capitania <strong>de</strong><br />

Porto Seguro e a <strong>do</strong>s Ilhéus estão <strong>de</strong>struídas e quase <strong>de</strong>spovoadas com o temor <strong>de</strong>stes bárbaros, cujos<br />

engenhos não lavram açúcar por lhe terem morto to<strong>do</strong>s os escravos e gente <strong>de</strong>les, e a das mais<br />

fazendas, e os que escaparam das suas mãos lhes tomaram tamanho me<strong>do</strong>, que em se dizen<strong>do</strong><br />

aimorés <strong>de</strong>spejam as fazendas, e cada um trabalha por se pôr em salvo, o que também fazem os<br />

homens brancos, <strong>do</strong>s quais têm morto estes alarves <strong>de</strong> vinte e cinco anos a esta parte, que esta praga<br />

persegue estas duas capitanias, mais <strong>de</strong> trezentos homens portugueses e <strong>de</strong> três mil escravos.<br />

Costumam-se ordinariamente cartearem-se os mora<strong>do</strong>res da Bahia com os <strong>do</strong>s Ilhéus, e atravessavam<br />

os homens este caminho ao longo da praia, como lhes convinha, sem haver perigo nenhum, o que<br />

estes aimorés vieram a sentir, e <strong>de</strong>terminaram-se <strong>de</strong> virem vigiar estas praias e esperar a gente que<br />

por elas passava, on<strong>de</strong> têm mortos, e com estes muitos homens e muitos mais escravos; e são estes<br />

saltea<strong>do</strong>res tamanhos corre<strong>do</strong>res, que lhes não escapava ninguém por pés, salvo os que se lhe metiam<br />

no mar, on<strong>de</strong> eles não se atrevem a entrar, mas andam-nos esperan<strong>do</strong> que saiam à terra até a noite,<br />

que se recolhem; pelo que este caminho está veda<strong>do</strong>, e não atravessa ninguém por ele se não com<br />

muito risco <strong>de</strong> sua pessoa; e se se não busca algum remédio para <strong>de</strong>struírem estes alarves, eles<br />

<strong>de</strong>struirão as fazendas da Bahia, para on<strong>de</strong> vão caminhan<strong>do</strong> <strong>de</strong> seu vagar. E como eles são tão<br />

esquivos inimigos <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o gênero humano, não foi<br />

possível saber mais <strong>de</strong> vida e costumes, e o que está dito po<strong>de</strong> bastar por ora; e tornemos a pegar da<br />

costa, começan<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Ilhéus por diante.<br />

32


Parte Dois<br />

Capítulo 3<br />

Deve-se ter em mente que os autores Gabriel Soares <strong>de</strong> Souza e Gilberto Freyre, são<br />

produtos <strong>de</strong> séculos distintos e, portanto, possuem interesses distintos na construção <strong>de</strong> seus<br />

discursos. Em essência, o que se busca é a verificação <strong>do</strong> grau <strong>de</strong> importância da obra <strong>de</strong><br />

Gabriel Soares <strong>de</strong> Souza (século XVI) no discurso historiográfico construí<strong>do</strong> por Gilberto<br />

Freyre (século XX). Ou melhor, <strong>de</strong> que forma o discurso historiográfico <strong>do</strong> século XX se<br />

apropria <strong>do</strong> discurso produzi<strong>do</strong> nos XVI, para reconstruir a gênese <strong>de</strong> uma suposta<br />

"brasilida<strong>de</strong>". Neste senti<strong>do</strong> há <strong>de</strong> se estabelecer uma "via <strong>de</strong> mão dupla", comparan<strong>do</strong> o<br />

que foi escrito por Gabriel Soares com aquilo que foi apropria<strong>do</strong> por Freyre. Este<br />

procedimento se faz necessário por compreen<strong>de</strong>r que o autor e seus intérpretes, falam em<br />

diferentes contextos históricos, com interesses que são pertinentes unicamente ao seu<br />

próprio tempo.<br />

Não se busca evi<strong>de</strong>ntemente, com isso, estabelecer qual <strong>do</strong>s discursos é o mais<br />

verda<strong>de</strong>iro, o da historiografia <strong>do</strong> século XX ou o <strong>do</strong>s relatos <strong>do</strong> século XVI, visto que "o<br />

conhecimento histórico é historicamente produzi<strong>do</strong>" e que a história, enquanto<br />

conhecimento, é uma construção - uma representação da realida<strong>de</strong> - e não o real em si<br />

próprio, tal como é, ou foi algum dia. As possíveis divergências <strong>de</strong> visão, sobre um mesmo<br />

passa<strong>do</strong>, po<strong>de</strong>m ser explicadas através <strong>de</strong>ste viés.<br />

A produção <strong>de</strong> Trata<strong>do</strong> Descritivo <strong>do</strong> Brasil em 1587, por Gabriel Soares, se<br />

encaixa na gama <strong>de</strong> produções <strong>do</strong> século XVI, cujo discurso enaltece as terras <strong>do</strong> Brasil<br />

salientan<strong>do</strong> a exuberância da natureza e as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> enriquecimento material.<br />

Paralelo a isso, há <strong>de</strong> se lembrar das necessida<strong>de</strong>s da Coroa em povoar a nova terra, como<br />

forma <strong>de</strong> garantir efetivamente a posse <strong>do</strong> território contra possíveis incursões estrangeiras.<br />

Por sua vez, o discurso <strong>de</strong> Gilberto Freyre em Casa-Gran<strong>de</strong> e Senzala se encaixa na<br />

gama <strong>de</strong> produções interpretativas <strong>do</strong> Brasil, que se estabelece a partir da década <strong>de</strong> 30,<br />

justamente critican<strong>do</strong> o passa<strong>do</strong> colonial brasileiro, tecen<strong>do</strong> críticas que procuram justificar<br />

o atraso brasileiro através da contraposição àquilo que era enalteci<strong>do</strong> no século XVI e<br />

reforça<strong>do</strong> no século XIX - época <strong>de</strong> resgate <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> visan<strong>do</strong> à construção <strong>de</strong> uma<br />

<strong>História</strong> propriamente nacional e como a elaboração teórica <strong>do</strong> que seria uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />

33


nacional própria ao Brasil. Diferente <strong>do</strong>s mo<strong>de</strong>los que interpretavam a <strong>História</strong> <strong>do</strong> Brasil<br />

como extensão, ou capítulos da <strong>História</strong> Portuguesa.<br />

Se, <strong>de</strong> um la<strong>do</strong>, o século XIX produziu um discurso historiográfico – principalmente<br />

via IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro) – que dava personalida<strong>de</strong> própria à<br />

<strong>História</strong> <strong>do</strong> Brasil e conferia uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional ao nascente Esta<strong>do</strong> Nacional<br />

brasileiro, por sua vez, não rompia com a visão idílica e ufanista <strong>do</strong>s primeiros cronistas<br />

portugueses <strong>do</strong> século XVI. Pelo contrário, o ufanismo no século XIX, era ainda reforça<strong>do</strong><br />

pela corrente romântica <strong>de</strong> literatura propriamente brasileira.<br />

A produção <strong>de</strong> Freyre, assim como <strong>de</strong> autores <strong>de</strong> relevo contemporâneos a ele, tais<br />

como Sérgio Buarque <strong>de</strong> Holanda e Caio Pra<strong>do</strong> Júnior, justamente estabelecem uma ruptura<br />

com as construções ufanísticas, procuran<strong>do</strong> nos primórdios da colonização as raízes <strong>do</strong><br />

atraso.<br />

Contu<strong>do</strong>, não se <strong>de</strong>ve esquecer da conjuntura política e econômica brasileira, no<br />

momento em que Freyre escreveu sua obra Casa-Gran<strong>de</strong> e Senzala. Após a Revolução <strong>de</strong><br />

trinta, as oligarquias paulistas, que <strong>do</strong>minavam o cenário político até a ascensão <strong>de</strong> Getúlio<br />

Vargas, foram alijadas efetivamente <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r, embora não tenham abdica<strong>do</strong> <strong>de</strong> suas<br />

pretensões, continuan<strong>do</strong> a luta.<br />

Isto se dava, inclusive no campo das produções intelectuais que procuravam<br />

imprimir i<strong>de</strong>ologicamente uma visão favorável à “paulistanida<strong>de</strong>” 37 , superdimensionan<strong>do</strong> o<br />

papel <strong>do</strong>s paulistas na <strong>História</strong> nacional, buscan<strong>do</strong> apontar para a existência <strong>de</strong> uma suposta<br />

nobiliarquia paulista 38 e uma fidalguia <strong>de</strong> origem, assim como supervalorizan<strong>do</strong> o papel<br />

histórico <strong>do</strong>s ban<strong>de</strong>irantes paulistas.<br />

Por sua vez, a obra <strong>de</strong> Gilberto Freyre está no extremo oposto <strong>do</strong>s discursos<br />

produzi<strong>do</strong>s pela “paulistanida<strong>de</strong>”, talvez com certo grau <strong>de</strong> revanchismo. O discurso<br />

Freyriano se alinha com o das elites latifundiárias, das regiões produtoras <strong>de</strong> açúcar<br />

localizadas no território da atual Região Nor<strong>de</strong>ste. Estas mesmas elites que per<strong>de</strong>ram<br />

37 SOUZA, Ricar<strong>do</strong> Luiz. <strong>História</strong> Regional e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>: O caso <strong>de</strong> São Paulo. <strong>História</strong> & Perspectivas, Uberlândia<br />

jan.<strong>de</strong>z.2007.<br />

38 SOUZA, Ricar<strong>do</strong> Luiz. Op. cit.<br />

34


paulatinamente sua importância no cenário tanto econômico, quanto político <strong>do</strong> Brasil<br />

republicano, assistin<strong>do</strong> a ascensão progressiva das elites cafeicultoras <strong>de</strong> São Paulo.<br />

O livro Casa-Gran<strong>de</strong> e Senzala, procura enfatizar a importância da cana-<strong>de</strong>-açúcar<br />

na história <strong>do</strong> Brasil, <strong>de</strong>stacan<strong>do</strong> o po<strong>de</strong>rio <strong>do</strong>s senhores <strong>de</strong> engenho, sua riqueza e como<br />

esta parcela aristocrática da população articulou a própria estrutura da socieda<strong>de</strong> brasileira,<br />

como ela foi <strong>de</strong>terminante em relação ao <strong>de</strong>stino histórico cumpri<strong>do</strong> por índios e africanos.<br />

Como estes <strong>do</strong>is componentes entram na formação histórica <strong>do</strong> Brasil, sob a articulação da<br />

elite “branca”, latifundiária e canavieira.<br />

No caso a obra <strong>de</strong> Freyre, procura <strong>de</strong>monstrar o prestígio e a opulência <strong>de</strong>stas elites<br />

dirigentes coloniais, cujo mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> ocupação da terra estava pauta<strong>do</strong> na se<strong>de</strong>ntarização da<br />

socieda<strong>de</strong>, no trabalho e no capital, ao passo que, o “mo<strong>de</strong>lo paulista”, estava calca<strong>do</strong> na<br />

aventura, na busca <strong>de</strong> ouro e <strong>de</strong> riqueza fácil, no aprisionamento <strong>de</strong> índios, ou seja, procura<br />

minimizar a importância <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> vida nôma<strong>de</strong> ou semi-nôma<strong>de</strong> <strong>do</strong>s ban<strong>de</strong>irantes<br />

paulistas.<br />

Agora feita a <strong>de</strong>vida contextualização <strong>do</strong>s discursos, cabe, para <strong>de</strong>senvolver este<br />

estu<strong>do</strong>, averiguar a relação da obra <strong>de</strong> Freyre com a obra <strong>de</strong> Gabriel Soares. De que<br />

maneira Freyre se apropria <strong>do</strong> texto <strong>de</strong> Trata<strong>do</strong> <strong>de</strong>scritivo <strong>do</strong> Brasil em 1587.<br />

Ainda no prefácio à primeira edição <strong>do</strong> livro Casa-Gran<strong>de</strong> e Senzala, Freyre se<br />

reporta à obra <strong>de</strong> Gabriel Soares, justifican<strong>do</strong> sua utilização como fonte, da seguinte<br />

forma: 39<br />

Não nos <strong>de</strong>vemos, entretanto nos queixar <strong>do</strong>s leigos que em crônicas como a <strong>de</strong> Pero Magalhães Gandavo e a<br />

<strong>de</strong> Gabriel Soares <strong>de</strong> Souza também nos <strong>de</strong>ixam entrever flagrantes expressivos da vida íntima nos primeiros<br />

tempos da colonização. Gabriel Soares chega a ser pormenoriza<strong>do</strong> sobre as rendas <strong>do</strong>s senhores <strong>de</strong> engenho;<br />

sobre o material <strong>de</strong> suas casas e capelas; sobre a alimentação, a confeitaria e <strong>do</strong>çaria das casas gran<strong>de</strong>; sobre<br />

os vesti<strong>do</strong>s das senhoras. Um pouco mais, e teria da<strong>do</strong> um bisbilhoteiro quase da marca <strong>de</strong> Pepys.<br />

Embora, Freyre não cite <strong>de</strong> que parte <strong>do</strong> Trata<strong>do</strong> <strong>de</strong>scritivo <strong>do</strong> Brasil em 1587, ele<br />

retirou sua leitura, fica claro que foi toma<strong>do</strong> como referência o trecho que se segue da obra<br />

<strong>de</strong> Gabriel Soares 40 .<br />

39 FREYRE, Gilberto. Casa-Gran<strong>de</strong> e Senzala. 49° edição São paulo: Global Editora. 2004, p.49<br />

40 SOUZA, op. cit. pp.139-140.<br />

35


Na cida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Salva<strong>do</strong>r e seu termo há muitos mora<strong>do</strong>res ricos <strong>de</strong> fazendas <strong>de</strong> raiz, peças <strong>de</strong> prata e<br />

ouro, jaezes <strong>de</strong> cavalos e alfaias <strong>de</strong> casa, entanto que há muitos homens que têm <strong>do</strong>is e três mil<br />

cruza<strong>do</strong>s em jóias <strong>de</strong> ouro e prata lavrada. Há na Bahia mais <strong>de</strong> cem mora<strong>do</strong>res que têm cada ano <strong>de</strong><br />

mil cruza<strong>do</strong>s até cinco mil <strong>de</strong> renda, e outros que têm mais, cujas fazendas valem vinte mil até<br />

cincoenta e sessenta mil cruza<strong>do</strong>s, e davan-tagens, os quais tratam suas pessoas mui honradamente,<br />

com muitos cavalos, cria<strong>do</strong>s e escravos, e com vesti<strong>do</strong>s <strong>de</strong>masia<strong>do</strong>s, especialmente as mulheres,<br />

porque não vestem senão sedas, por a terra não ser fria, no que fazem gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>spesas, mormente<br />

entre a gente <strong>de</strong> menor condição; porque qualquer peão anda com calções e gibão <strong>de</strong> cetim ou<br />

damasco, e trazem as mulheres com vasquinhas e gibões <strong>do</strong> mesmo, os quais, como têm qualquer<br />

possibilida<strong>de</strong>, têm suas casas mui bem concertadas e na sua mesa serviço <strong>de</strong> prata, e trazem suas<br />

mulheres mui bem ataviadas <strong>de</strong> jóias <strong>de</strong> ouro.<br />

É evi<strong>de</strong>nte o interesse <strong>de</strong> Freyre na escolha da fonte, que expressa com clareza toda<br />

a opulência da aristocracia açucareira da atual região Nor<strong>de</strong>ste <strong>do</strong> país. Grupo ao qual<br />

Freyre estaria liga<strong>do</strong> pelo “cordão umbilical”, partilhan<strong>do</strong> sua visão <strong>de</strong> mun<strong>do</strong>. Embora<br />

Freyre seja oriun<strong>do</strong> <strong>de</strong> um cenário urbano, filho <strong>de</strong> um educa<strong>do</strong>r, também bacharel em<br />

direito, juiz e catedrático em Economia Política, sua família estava ligada por laços <strong>de</strong><br />

sangue à aristocracia canavieira, ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> o próprio Freyre, um “menino <strong>de</strong> engenho” nas<br />

horas vagas. 41<br />

Uma temática recorrente em Gilberto Freyre é a alimentação, ou melhor, a<br />

alimentação <strong>do</strong>s colonos quanto à diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gêneros alimentícios, quer seja da dieta<br />

ibérica, cujos gêneros se adaptaram ao clima e ao solo das regiões colonizadas ou ainda das<br />

apropriações e adaptações da dieta indígena.<br />

Em relação à fartura - ou não – <strong>de</strong> gêneros varia<strong>do</strong>s na composição da dieta<br />

colonial, Freyre recorre à obra <strong>de</strong> Gabriel Soares em um <strong>de</strong> seus comentários 42 inserin<strong>do</strong>-o<br />

em meio a uma discussão a respeito da alimentação no Brasil <strong>do</strong> século XVI. No caso<br />

específico, Freyre comenta sobre a afirmativa <strong>de</strong> Fernão Cardim 43 em relação à fartura <strong>de</strong><br />

carne, aves, frutas e verduras em todas as partes (<strong>do</strong> Brasil <strong>do</strong> século XVI), em que foi<br />

recebi<strong>do</strong>. Segun<strong>do</strong> Freyre, entre homens ricos e colégios <strong>de</strong> padre.<br />

No comentário <strong>do</strong> item 113 44 , no qual ele irá recorrer a Gabriel Soares, Freyre cita<br />

A. Marchant, autor <strong>de</strong> Do escambo à escravidão 45 , livro que seria traduzi<strong>do</strong> para o<br />

português somente em 1943- <strong>de</strong>pois da publicação original <strong>de</strong> Casa-gran<strong>de</strong> e Senzala..<br />

41 FREYRE, op. cit. p.643.<br />

42 FREYRE, op. cit. p.144.<br />

43 FREYRE, op. cit. p.99<br />

44 FREYRE, op. cit. p.144.<br />

36


Segun<strong>do</strong> Freyre, em sua obra Marchant, afirma que em 1580 na capital da Bahia,<br />

“os citadinos eram bem aprovisiona<strong>do</strong>s por esses produtos locais” 46 , isto é: frutas e<br />

verduras. Para Freyre, a afirmação <strong>de</strong> Marchant seria fruto <strong>de</strong> uma apropriação da obra<br />

“Trata<strong>do</strong>s da terra e gente <strong>do</strong> Brasil” 47 .<br />

Ao que parece Gilberto Freyre discorda <strong>de</strong> Marchant, tecen<strong>do</strong> uma análise crítica,<br />

não sobre a obra <strong>de</strong> Marchant, mas sobre sua fonte, no caso Fernão Cardim. Segun<strong>do</strong><br />

Freyre, se houve abundância <strong>de</strong>stes e <strong>de</strong> outros gêneros alimentícios – esta abundância foi<br />

por um curto perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> tempo. Para contrapor as afirmativas a respeito da fartura <strong>de</strong><br />

gêneros alimentícios, Freyre ressalta que a gran<strong>de</strong> lavoura tropical seria inimiga da<br />

policultura, que se esta combinação foi possível, teria se resumi<strong>do</strong> ao tempo <strong>do</strong>s primeiros<br />

colonos. Contu<strong>do</strong>, até este momento da crítica, Freyre não está ampara<strong>do</strong> por fontes que<br />

en<strong>do</strong>ssem seu ponto <strong>de</strong> vista em relação ao perío<strong>do</strong> analisa<strong>do</strong> (no caso a década <strong>de</strong> 80 <strong>do</strong><br />

século XVI). Ao que tu<strong>do</strong> indica, a primeira crítica <strong>de</strong> Freyre estaria baseada apenas em<br />

uma suposição lógica, porém <strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong> <strong>do</strong>cumentação.<br />

Por sinal em termos <strong>de</strong> <strong>do</strong>cumentação referente ao perío<strong>do</strong>, Freyre insiste em<br />

colocar o <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> Cardim no campo da excepcionalida<strong>de</strong>, justifican<strong>do</strong> que Cardim<br />

era bem recebi<strong>do</strong> <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao seu caráter <strong>de</strong> “padre visita<strong>do</strong>r” – ou seja – havia uma<br />

preocupação por parte <strong>de</strong> seus anfitriões tanto no campo quanto na cida<strong>de</strong>, em recebê-lo<br />

bem.<br />

Ao finalmente recorrer à <strong>do</strong>cumentação que possa en<strong>do</strong>ssar sua interpretação,<br />

Freyre apóia-se no exame das Atas da Câmara <strong>de</strong> Salva<strong>do</strong>r, no perío<strong>do</strong> compreendi<strong>do</strong> entre<br />

1625 e 1641, <strong>do</strong>cumentos estes que foram publica<strong>do</strong>s em 1944, sob o título <strong>de</strong>:<br />

“Documentos históricos <strong>do</strong> Arquivo Municipal – Atas da Câmara 1625-1641”. Freyre cita<br />

as páginas 399 e 401, entre outras da mesma publicação.<br />

De acor<strong>do</strong> com a leitura feita por Freyre, sobre a <strong>do</strong>cumentação acima referida, em<br />

princípios <strong>do</strong> século XVII, Salva<strong>do</strong>r havia sofri<strong>do</strong> uma escassez <strong>de</strong> gêneros alimentícios<br />

que culminava com a falta <strong>de</strong> farinha <strong>de</strong> mandioca. Freyre afirma que esta escassez estaria<br />

diretamente relacionada à situação <strong>de</strong> guerra no Norte.<br />

45 FREYRE, op. cit. p.609.<br />

46 FREYRE, op. cit. p. 143.<br />

47 FREYRE, op. cit. p.289<br />

37


Logo após esta afirmativa, Freyre afirma que “<strong>de</strong>s<strong>de</strong> então o testemunho <strong>do</strong>s<br />

cronistas e viajantes é no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> que a alimentação em Salva<strong>do</strong>r foi difícil e com os<br />

preços geralmente altos” 48 . Contu<strong>do</strong>, não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> observar que Freyre utiliza-se<br />

<strong>de</strong> uma <strong>do</strong>cumentação oficial que reflete uma realida<strong>de</strong> temporal distante algumas décadas<br />

da realida<strong>de</strong> temporal vivenciada pelo Jesuíta Fernão Cardim. No caso, para se dar fé ao<br />

discurso <strong>de</strong> Freyre e a escolha <strong>de</strong> sua <strong>do</strong>cumentação, seria necessário crer-se em uma<br />

história “quase imóvel”. Só assim po<strong>de</strong>riam se utilizar fontes referentes às décadas <strong>de</strong><br />

20,30e 40 <strong>do</strong> século XVII, para explicar a realida<strong>de</strong> da década <strong>de</strong> 80 <strong>do</strong> século XVI.<br />

No caso, específico <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> colonial brasileiro, não seria exatamente a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>,<br />

pois se verificaram importantes mudanças no cenário histórico, pois se <strong>de</strong>ve lembrar que a<br />

monarquia portuguesa sofria uma crise sucessória <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a morte <strong>de</strong> D. Sebastião, que<br />

redundaria mais tar<strong>de</strong> com ascensão <strong>de</strong> Felipe II, que passaria a ser, a cabeça coroada que<br />

reinava sobre Portugal e Castela. O perío<strong>do</strong> <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> pela Historiografia como “união<br />

Ibérica”, só teria fim, após a chamada Restauração Portuguesa, que se daria apenas na<br />

década <strong>de</strong> 40 <strong>do</strong> século XVII.<br />

Deve-se tomar em conta também, que a época da <strong>do</strong>cumentação utilizada por Freyre<br />

coinci<strong>de</strong> também com a mesma época em que os holan<strong>de</strong>ses tentaram estabelecer seu<br />

<strong>do</strong>mínio na Bahia (A invasão <strong>de</strong> 1624-1625) e a tentativa <strong>de</strong> invasão <strong>de</strong> 1630. As Atas da<br />

Câmara <strong>de</strong> Salva<strong>do</strong>r (1625- 1641) que atestam a carência <strong>de</strong> alimentos na cida<strong>de</strong>, em<br />

termos temporais também coinci<strong>de</strong>m com o perío<strong>do</strong> <strong>do</strong> próprio <strong>do</strong>mínio holandês em<br />

Pernambuco, que foi <strong>de</strong> 1630 a 1654, ten<strong>do</strong> Pernambuco como foco, mas esten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> sua<br />

influência territorial por boa parte da costa leste e setentrional <strong>do</strong> Brasil localizada ao norte<br />

da Bahia.<br />

Desta forma, verifica-se uma ina<strong>de</strong>quação na argumentação <strong>de</strong> Freyre. As fontes <strong>do</strong><br />

século XVII escolhidas por ele não <strong>de</strong>veriam ser utilizadas para <strong>de</strong>screver a situação da<br />

colônia no século XVI. Fazen<strong>do</strong>-se uma breve referência aos relatos <strong>do</strong> início <strong>do</strong>s XVII,<br />

po<strong>de</strong>-se verificar claramente que havia uma <strong>de</strong>terminada carestia <strong>de</strong> gêneros na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Salva<strong>do</strong>r em mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s XVII. Toman<strong>do</strong> como base a página 4 <strong>do</strong> Capítulo segun<strong>do</strong> da<br />

obra HISTÓRIA DO BRASIL, por FREI VICENTE DO SALVADOR, datada na Bahia em<br />

20 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1627, no trecho logo abaixo, po<strong>de</strong> se verificar facilmente esta carestia<br />

48 FREYRE, op. cit. p. 143-144.<br />

38


na cida<strong>de</strong>, embora Frei Vicente não atribua isto, propriamente à falta <strong>de</strong> alimentos, mas a<br />

falta <strong>de</strong> distribuição pública <strong>do</strong>s mesmos em Salva<strong>do</strong>r 49 .<br />

Don<strong>de</strong> nasce também, que nenhum homem nesta terra é repúblico, nem zela, ou trata <strong>do</strong> bem<br />

comum, senão cada um <strong>do</strong> bem particular. Não notei eu isto tanto quanto o vi notar um bispo <strong>de</strong><br />

Tucuman da Or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> S. Domingos, que por algumas <strong>de</strong>stas terras passou para a Corte, era gran<strong>de</strong><br />

canonista, homem <strong>de</strong> bom entendimento e prudência, e assim ia muito rico; notava as coisas, e via<br />

que mandava comprar um frangão, quatro ovos, e um peixe, para comer, e nada lhe traziam:<br />

porque não se achava na praça nem no açougue, e se mandava pedir as ditas coisas, e outras<br />

muitas a casas particulares lhas mandavam, então disse o bispo verda<strong>de</strong>iramente que nesta terra<br />

andam as coisas trocadas, porque toda ela não é república, sen<strong>do</strong>-o cada casa; e assim é, que estan<strong>do</strong><br />

as casas <strong>do</strong>s ricos / ainda que seja a custa alheia, pois muitos <strong>de</strong>vem quanto têm / providas <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o<br />

necessário, porque tem escravos, pesca<strong>do</strong>res, caça<strong>do</strong>res, que lhes trazem a carne e o peixe, pipas <strong>de</strong><br />

vinho e <strong>de</strong> azeite, que compram por junto: nas vilas muitas vezes se não acha isto a venda. Pois o que<br />

é fontes, pontes, caminhos e outras coisas públicas é uma pieda<strong>de</strong>, porque aten<strong>do</strong>-se uns aos outros<br />

nenhum as faz, ainda que bebam água suja, e se molhem ao passar <strong>do</strong>s rios, ou se orvalhem pelos<br />

caminhos, e tu<strong>do</strong> isto vem <strong>de</strong> não tratarem <strong>do</strong> que há cá <strong>de</strong> ficar, senão <strong>do</strong> que hão <strong>de</strong> levar para o<br />

reino.<br />

Uma breve comparação entre o C A P Í T U L O XII da página 139 <strong>de</strong> Trata<strong>do</strong><br />

Descritivo <strong>do</strong> Brasil em 1587, <strong>de</strong> Gabriel Soares <strong>de</strong> Souza com o trecho acima <strong>de</strong> Frei<br />

Vicente <strong>do</strong> Salva<strong>do</strong>r (1627), <strong>de</strong>monstra claramente, o quanto a realida<strong>de</strong> Histórica da<br />

Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Salva<strong>do</strong>r mu<strong>do</strong>u em apenas quarenta anos, enquanto Frei Vicente (século XVII)<br />

reclama da carestia <strong>de</strong> gêneros na cida<strong>de</strong>, Gabriel Soares (século XVI) relata justamente o<br />

contrário, uma abundância <strong>de</strong> gêneros alimentícios das mais variadas qualida<strong>de</strong>s que cuja<br />

oferta para venda não falta no ambiente citadino 50 .<br />

A terra que esta cida<strong>de</strong> tem, uma e duas léguas à roda, está quase toda ocupada com roças, que são<br />

como os casais <strong>de</strong> Portugal, on<strong>de</strong> se lavram muitos mantimentos, frutas e hortaliças, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> se<br />

reme<strong>de</strong>ia toda a gente da cida<strong>de</strong> que o não tem <strong>de</strong> sua lavra, a cuja praça se vai ven<strong>de</strong>r, <strong>do</strong> que está<br />

sempre mui provida, e o mais <strong>do</strong> tempo o está <strong>do</strong> pão, que se faz das farinhas que levam <strong>do</strong> reino a<br />

ven<strong>de</strong>r ordinariamente à Bahia, on<strong>de</strong> também levam muitos vinhos da ilha da Ma<strong>de</strong>ira, das Canárias,<br />

on<strong>de</strong> são mais bran<strong>do</strong>s, e <strong>de</strong> melhor cheiro, e cor e suave sabor, que nas mesmas ilhas <strong>de</strong> on<strong>de</strong> os<br />

levam; os quais se ven<strong>de</strong>m em lojas abertas, e outros mantimentos <strong>de</strong> Espanha, e todas as drogas,<br />

sedas e panos <strong>de</strong> toda a sorte, e as mais merca<strong>do</strong>rias acostumadas.<br />

Desta fica evi<strong>de</strong>nciada a ina<strong>de</strong>quação da abordagem <strong>de</strong> Freyre, pois aquilo que é<br />

<strong>de</strong>scrito por Gabriel Soares entra em ressonância com as <strong>de</strong>scrições <strong>de</strong> Cardim (ambos<br />

autores <strong>do</strong> século XVI). Em Trata<strong>do</strong> da terra e gente <strong>do</strong> Brasil, Cardim afirma: “legumes da<br />

49 SALVADOR, Frei Vicente.<strong>do</strong>. <strong>História</strong> <strong>do</strong> Brasil. Nova edição revista por Capistrano <strong>de</strong> Abreu,<br />

São Paulo e Rio <strong>de</strong> Janeiro: Weiszflog Irmãos, 1918. p. 4.<br />

50 SOUZA, op. cit. p. 139.<br />

39


terra e <strong>de</strong> Portugal: berinjelas, alfaces, abóboras, rabãos e outros legumes e hortaliças” 51 .<br />

Da mesma forma que na realida<strong>de</strong> <strong>do</strong> século XVII, as afirmações <strong>de</strong> Frei Vicente <strong>do</strong><br />

Salva<strong>do</strong>r (século XVII) não <strong>de</strong>smentem o que está conti<strong>do</strong> nos trechos escolhi<strong>do</strong>s por<br />

Freyre das ATAS DA CÂMARA DE SALVADOR 1625-1644.<br />

Ainda em relação a esta mesma problemática construída por Freyre, <strong>de</strong>ve-se analisar<br />

o seguinte trecho <strong>de</strong> Casa-gran<strong>de</strong> e Senzala , no qual Freyre se apropria <strong>de</strong> uma passagem<br />

<strong>de</strong> Trata<strong>do</strong> <strong>de</strong>scritivo <strong>do</strong> Brasil em 1587, afirman<strong>do</strong> o que se segue 52 :<br />

len<strong>do</strong>-se o mais objetivo Gabriel Soares <strong>de</strong> Souza vê-se que na fase anterior à monocultura<br />

absorvente, fase ainda <strong>de</strong> conciliação da gran<strong>de</strong> lavoura – o açúcar - com o gosto tradicional <strong>do</strong>s<br />

portugueses pela horticultura e a que já nos referimos, parecem ter si<strong>do</strong> excepcionais as plantações<br />

como a <strong>de</strong> João Nogueira francamente policultoras (grifo meu), com roças <strong>de</strong> mantimentos,<br />

porcos e rebanhos <strong>de</strong> ga<strong>do</strong>. É que a terra <strong>de</strong> sua proprieda<strong>de</strong> era pobre <strong>de</strong>mais para a cultura da cana<br />

e nela os rios eram pequenos <strong>de</strong>mais para tocar os engenhos.<br />

Ao ler e comparar com o que escreveu Gabriel Soares no trecho logo abaixo,<br />

observa-se que Freyre não <strong>de</strong>scontextualizou o que foi escrito por Soares no Trata<strong>do</strong><br />

<strong>de</strong>scritivo <strong>do</strong> Brasil em 1587, sua paráfrase reproduz a essência <strong>do</strong> que foi escrito por<br />

Soares 53 :<br />

Esta ilha <strong>do</strong>s Fra<strong>de</strong>s é <strong>de</strong> um João Nogueira, lavra<strong>do</strong>r, o qual está <strong>de</strong> assento nela com seis ou sete<br />

lavra<strong>do</strong>res, que nela têm da sua mão, on<strong>de</strong> têm suas granjearias <strong>de</strong> roças <strong>de</strong> mantimentos, com<br />

criações <strong>de</strong> vacas e porcos; a qual ilha tem muitas águas, mas pequenas para engenhos, cuja terra é<br />

fraca para canaviais <strong>de</strong> açúcar.<br />

Mas, apesar <strong>de</strong> ser possível verificar que Freyre parafraseia Gabriel Soares, sem<br />

produzir distorções, também é verificável através <strong>de</strong> uma leitura completa da obra Trata<strong>do</strong><br />

Descritivo <strong>do</strong> Brasil em 1587, que Freyre omite toda uma série <strong>de</strong> testemunhos produzi<strong>do</strong>s<br />

por Soares que contrariam frontalmente o discurso Freyriano. Na verda<strong>de</strong>, Freyre<br />

apropriou-se <strong>de</strong> um trecho da obra <strong>de</strong> Soares que dava sustentação ao seu discurso,<br />

apegan<strong>do</strong>-se ao que pertencia ao campo das exceções para transformar em regra geral.<br />

Através <strong>de</strong> uma leitura mais atenta <strong>de</strong> Gabriel Soares, encontra-se inúmeros trechos que<br />

<strong>de</strong>monstram ser a proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> João Nogueira uma exceção. Aliás, este mesmo João<br />

51 FREYRE, op. cit. p. 143.<br />

52 FREYRE, op. cit. p. 144.<br />

53 SOUZA, op. cit. p. 144<br />

40


Nogueira cita<strong>do</strong> por Gabriel Soares, <strong>de</strong>ve ter si<strong>do</strong> proprietário também <strong>de</strong> outras terras, pois<br />

é cita<strong>do</strong> mais <strong>de</strong> uma vez por Soares, ou trata-se <strong>de</strong> <strong>do</strong>is proprietários diferentes, porém<br />

homônimos, o que não é possível por hora, com as fontes disponíveis investigar. Conforme<br />

po<strong>de</strong> ser verifica<strong>do</strong> neste trecho <strong>de</strong> Trata<strong>do</strong> Descritivo <strong>do</strong> Brasil ”e mais avante <strong>de</strong><br />

parnamirim está outra ilha, que se diz a das Fontes, que é <strong>de</strong> João Nogueira, a qual é <strong>de</strong><br />

meia légua, on<strong>de</strong> também vivem sete ou oito mora<strong>do</strong>res. A terra <strong>de</strong> todas estas três ilhas é<br />

alta e muito boa.” 54<br />

Em inúmeras passagens, Soares enfatiza a existência <strong>de</strong> uma policultura que se dá<br />

em solos férteis ou não, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> existir plantação <strong>de</strong> cana-<strong>de</strong>- açúcar ou engenho 55 .<br />

João, on<strong>de</strong> têm gran<strong>de</strong>s igrejas da mesma advocação e recolhimento para os padres, que nelas<br />

resi<strong>de</strong>m e para outros que muitas vezes se vão lá recrear. E à sombra e circuito <strong>de</strong>stas al<strong>de</strong>ias têm<br />

quatro ou cinco currais <strong>de</strong> vacas ou mais, que granjeiam, <strong>de</strong> que se ajudam a sustentar. Por on<strong>de</strong> estas<br />

al<strong>de</strong>ias estão é a terra boa, on<strong>de</strong> se dão to<strong>do</strong>s os mantimentos da terra muito bem, por ser muito<br />

fresca, com muitas ribeiras <strong>de</strong> água;<br />

A terra por este rio acima é muito boa, em que se dão to<strong>do</strong>s os mantimentos que lhe plantam, muito<br />

bem, e po<strong>de</strong>-se fazer aqui uma povoação, on<strong>de</strong> os mora<strong>do</strong>res <strong>de</strong>la estarão muito provi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> pesca<strong>do</strong><br />

e mariscos, e muita caça, que por toda aquela terra há.<br />

Nestas capitanias <strong>de</strong> São Vicente e Santo Amaro são os ares frios e empera<strong>do</strong>s, como na Espanha,<br />

cuja terra é mui sadia e <strong>de</strong> frescas e <strong>de</strong>lgadas águas, em as quais se dá o açúcar muito bem, e se dá<br />

trigo e cevada, <strong>do</strong> que se não usa na terra por os mantimentos <strong>de</strong>la serem muito bons e facilíssimos<br />

<strong>de</strong> granjear, <strong>de</strong> que os mora<strong>do</strong>res são mui abasta<strong>do</strong>s e <strong>de</strong> muito pesca<strong>do</strong> e marisco, on<strong>de</strong> se dão<br />

tamanhas ostras que têm a casca maior que um palmo, e algumas muito façanhosas. Da trigo usam<br />

somente para fazerem hóstias e alguns mimo<br />

Tem este colégio, ordinariamente, oitenta religiosos, que se ocupam em pregar e confessar alguma<br />

parte <strong>de</strong>les, outros ensinam latim, artes, teologia, e casos <strong>de</strong> consciência, com o que têm feito muito<br />

fruto na terra; o qual está muto rico, porque tem <strong>de</strong> Sua Majesta<strong>de</strong>, cada ano, quatro mil cruza<strong>do</strong>s e,<br />

davantagem, importar-lhe-á a outra renda que tem na terra outro tanto; porque tem muitos currais <strong>de</strong><br />

vacas, on<strong>de</strong> se afirma que trazem mais <strong>de</strong> duas mil vacas <strong>de</strong> ventre, que nesta terra parem to<strong>do</strong>s os<br />

anos, e tem outra muita granjearia <strong>de</strong> suas roças e fazendas, on<strong>de</strong> tem todas as novida<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s<br />

mantimentos, que se na terra dão em muita abastança.<br />

A terra que esta cida<strong>de</strong> tem, uma e duas léguas à roda, está quase toda ocupada com roças, que são<br />

como os casais <strong>de</strong> Portugal, on<strong>de</strong> se lavram muitos mantimentos, frutas e hortaliças, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> se<br />

reme<strong>de</strong>ia toda a gente da cida<strong>de</strong> que o não tem <strong>de</strong> sua lavra, a cuja praça se vai ven<strong>de</strong>r, <strong>do</strong> que está<br />

sempre mui provida,<br />

54 SOUZA, op. cit. p. 152.<br />

55 SOUZA,op.cit.pp..72-86-194-115-139-144-151-153-154-157-136-158-159-160-160-161-.161-162-<br />

161-162-142-172-.183-183.<br />

41


A ilha <strong>de</strong> Maré é muito boa terra para canaviais e algodões e to<strong>do</strong>s os mantimentos, on<strong>de</strong> está um<br />

engenho <strong>de</strong> açúcar que lavra com bois, que é <strong>de</strong> Bartolomeu Pires, mestre da capela da sé, aon<strong>de</strong> são<br />

assenta<strong>do</strong>s sua mão passante <strong>de</strong> vinte mora<strong>do</strong>res, os quais têm aqui uma igreja <strong>de</strong> Nossa Senhora das<br />

Neves, muito bem concertada, com seu cura, que administra os sacramentos a estes mora<strong>do</strong>res.<br />

on<strong>de</strong> está uma casa <strong>de</strong> meles <strong>de</strong> João Adrião, merca<strong>do</strong>r; por este esteiro se serve a igreja, e julga<strong>do</strong><br />

<strong>do</strong> lugar <strong>de</strong> Tayaçu-pina (?), que está meia légua pela terra <strong>de</strong>ntro em um alto à vista <strong>do</strong> mar,<br />

povoação em que vivem muitos mora<strong>do</strong>res que lavram neste sertão algodões e mantimentos e a<br />

igreja é da invocação <strong>de</strong> Nossa Senhora <strong>do</strong> Ó.<br />

Deste engenho <strong>de</strong> André Fernan<strong>de</strong>s para cima vai fazen<strong>do</strong> a terra uma enseada <strong>de</strong> uma légua, no cabo<br />

da qual está o esteiro <strong>de</strong> Parnamirim; e <strong>de</strong>fronte <strong>de</strong>sta enseada, bem chegadas à terra firme, estão três<br />

ilhas; a primeira <strong>de</strong>fronte <strong>do</strong> engenho, que é <strong>do</strong> mesmo André Fernan<strong>de</strong>s, que tem perto <strong>de</strong> meia<br />

légua, on<strong>de</strong> tem alguns mora<strong>do</strong>res, que lavram canas e mantimentos;<br />

Na boca <strong>de</strong>ste rio, fora da barra <strong>de</strong>le, está uma ilha que chamam Cajaíba, que será <strong>de</strong> uma légua <strong>de</strong><br />

compri<strong>do</strong> e meia <strong>de</strong> largo, on<strong>de</strong> estão assenta<strong>do</strong>s <strong>de</strong>z ou <strong>do</strong>ze mora<strong>do</strong>res, que nela têm bons<br />

canaviais e roças <strong>de</strong> mantimentos, a qual é <strong>do</strong> con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Linhares.<br />

No meio <strong>de</strong>ste caminho está uma ilha rasa, que Antônio Dias A<strong>do</strong>rno teve já cheia <strong>de</strong> mantimentos;<br />

além da qual está outra ilha, que chamam da Ostra; <strong>de</strong> on<strong>de</strong> se tem tira<strong>do</strong> tanta quantida<strong>de</strong> que se<br />

fizeram <strong>de</strong> ostras mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>z mil moios <strong>de</strong> cal e vai-se cada dia tiran<strong>do</strong> tanta que faz espanto, sem se<br />

acabar.<br />

até em direito da ilha da Pedra, <strong>de</strong> currais <strong>de</strong> vacas e fazendas <strong>de</strong> gente pobre, que não plantam mais<br />

que mantimentos, <strong>de</strong> que se mantêm. Esta ilha da Pedra é <strong>de</strong> pouco mais <strong>de</strong> meia légua <strong>de</strong> compri<strong>do</strong><br />

E viran<strong>do</strong> da boca <strong>de</strong> Jaguaripe para cima, daí a duas léguas, é a terra mui fraca, que não serve senão<br />

para vacas e roças <strong>de</strong> mantimentos;<br />

E tornan<strong>do</strong> abaixo ao esteiro da mão direita, que se chama Caípe, in<strong>do</strong> por ele acima, está um<br />

soberbo engenho com casas <strong>de</strong> purgar e <strong>de</strong> vivenda, e muitas outras oficinas, com gran<strong>de</strong> e formosa<br />

igreja <strong>de</strong> S. Lourenço, on<strong>de</strong> vivem muitos vizinhos numa povoação que se diz a Graciosa. Esta é<br />

muito fértil e abastada <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os mantimentos e <strong>de</strong> muitos canaviais <strong>de</strong> açúcar, a qual é <strong>de</strong> Gabriel<br />

Soares <strong>de</strong> Sousa;<br />

Do esteiro mais <strong>do</strong> cabo, para a banda da cachoeira uma légua toda <strong>de</strong> várzea, e terra mui grossa para<br />

canaviais; da outra banda é a terra mais somenos, e junto <strong>de</strong>sta cachoeira se vem meter uma ribeira<br />

com gran<strong>de</strong> aferida, on<strong>de</strong> Gabriel Soares tem começa<strong>do</strong> um engenho, no qual tem feito gran<strong>de</strong>s<br />

benfeitorias, e assenta<strong>do</strong> uma al<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> escravos com um feitor que os manda. Na barra <strong>de</strong>ste rio tem<br />

uma roça com mantimentos, e gente com que se granjeia. Este rio é muito provi<strong>do</strong> <strong>de</strong> pesca<strong>do</strong>,<br />

marisco e muita caça, e frutas silvestres.<br />

Por este rio entra a maré mais <strong>de</strong> duas léguas, no cabo das quais está situa<strong>do</strong> o engenho <strong>de</strong> Sebastião<br />

da Ponte, que tem duas moendas <strong>de</strong> água numa casa que mói ambas com uma ribeira, o qual engenho<br />

é mui gran<strong>de</strong> e forte, está mui bem fabrica<strong>do</strong> <strong>de</strong> casas <strong>de</strong> vivenda, <strong>de</strong> purgar e outras oficinas, com<br />

uma formosa igreja <strong>de</strong> S. Gens, com três capelas <strong>de</strong> abóbada; e por este rio Una vivem alguns<br />

mora<strong>do</strong>res que nele têm feito gran<strong>de</strong>s fazendas <strong>de</strong> canaviais e mantimentos.<br />

Na ponta <strong>de</strong>ssa ilha <strong>de</strong> Taparica <strong>de</strong>fronte da barra <strong>de</strong> Jagua-ripe está uma ilheta junto a ela, que se diz<br />

<strong>de</strong> Lopo Rebelo, que está cheia <strong>de</strong> arvore<strong>do</strong>, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> se tira muita ma<strong>de</strong>ira. E daqui para <strong>de</strong>ntro é<br />

povoada Taparica <strong>de</strong> alguns mora<strong>do</strong>res, que vivem junto ao mar, que lavram canas e mantimentos, e<br />

criam vacas.<br />

42


E daqui até Tamaratiba serão duas léguas <strong>de</strong> costa <strong>de</strong>sta ilha, entre a qual e a <strong>de</strong> Tamaratiba haverá<br />

espaço <strong>de</strong> um tiro <strong>de</strong> falcão. Esta ilha <strong>de</strong> Tamaratiba tem uma légua <strong>de</strong> compri<strong>do</strong>, e meia <strong>de</strong> largo,<br />

cuja terra não serve para mais que para mantimentos, on<strong>de</strong> vivem seis ou sete mora<strong>do</strong>res, a qual é <strong>do</strong><br />

con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Castanheira.<br />

Avante <strong>de</strong>sta ilheta, numa enseada gran<strong>de</strong> que Taparica faz, está um engenho <strong>de</strong> açúcar que lavra<br />

com bois, o qual é <strong>de</strong> Gaspar Pacheco, por cujo porto se servem os mora<strong>do</strong>res que vivem pelo sertão<br />

da ilha, on<strong>de</strong> tem uma igreja <strong>de</strong> Santa Cruz; e <strong>de</strong>ste engenho a duas léguas está a ponta <strong>de</strong> Tapa-rica,<br />

que é mais saída ao mar, que se chama ponta da Cruz, até on<strong>de</strong> está povoada a ilha <strong>de</strong> mora<strong>do</strong>res,<br />

que lavram mantimentos e algumas canas<br />

Da ponta <strong>de</strong> Taparica se torna a recolher a terra fazen<strong>do</strong> rosto para a cida<strong>de</strong>, a qual está toda povoada<br />

<strong>de</strong> mora<strong>do</strong>res que lavram muitos mantimentos e canaviais.<br />

Pois se tem da<strong>do</strong> conta tão particular da grandura da Bahia <strong>de</strong> To<strong>do</strong>s os Santos e <strong>do</strong> seu po<strong>de</strong>r, é bem<br />

que digamos a fertilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>la um pedaço, e como produz em si as criações das aves e alimárias <strong>de</strong><br />

Espanha e os frutos <strong>de</strong>la, que nesta terra se plantam. Tratan<strong>do</strong> em suma da fertilida<strong>de</strong> da terra, digo<br />

que acontece muitas vezes valer mais a novida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma fazenda que a proprieda<strong>de</strong>, pelo que os<br />

homens se mantêm honradamente com pouco cabedal, se se querem acomodar com a terra e remediar<br />

com os mantimentos <strong>de</strong>la, <strong>do</strong> que é muito abastada e provida.<br />

Até agora se disse da fertilida<strong>de</strong> da terra da Bahia tocante às árvores <strong>de</strong> fruto da Espanha, e às outras<br />

sementes que se nela dão. E já se sabe como nesta província frutificam as alheias, saibamos <strong>do</strong>s seus<br />

mantimentos naturais; e peguemos primeiro da mandioca, que é o principal mantimento e <strong>de</strong> mais<br />

substância, que em Portugal chamam farinha-<strong>de</strong>-pau.<br />

Dão-se nesta terra infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> feijões naturais <strong>de</strong>la, uns são brancos, outros pretos, outros<br />

vermelhos, e outros pinta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> branco e preto, os quais se plantam a mão, e como nascem põe-selhe<br />

a cada pé um pau, por on<strong>de</strong> atrepam,<br />

Chamam os índios jerimus às abóboras-da-quaresma, que são naturais <strong>de</strong>sta terra, das quais há <strong>de</strong>z<br />

ou <strong>do</strong>ze castas, cada uma <strong>de</strong> sua feição; e plantam-se duas vezes no ano, em terra.<br />

To<strong>do</strong>s estes extratos da obra <strong>de</strong> Gabriel Soares são os que Freyre omitiu em seu<br />

discurso e <strong>de</strong>smontam sua argumentação. Na realida<strong>de</strong>, Freyre apropriou-se apenas <strong>de</strong> um<br />

pequeno trecho da obra <strong>de</strong> Gabriel Soares que po<strong>de</strong>ria dar sustentação a sua teoria,<br />

ignoran<strong>do</strong> toda uma série <strong>de</strong> relatos <strong>de</strong> Gabriel Soares que falam justamente o contrário<br />

daquilo que Freyre sustenta em Casa-Gran<strong>de</strong> e Senzala.<br />

A gran<strong>de</strong> e maior parte das apropriações <strong>de</strong> Gilberto Freyre sobre a obra <strong>de</strong> Gabriel<br />

Soares, se dá em torno da Temática indígena. Contu<strong>do</strong>, <strong>de</strong>ve-se notar que o cronista <strong>do</strong><br />

século XVI, embora utilize o termo índio, não o emprega sempre no mesmo senti<strong>do</strong><br />

emprega<strong>do</strong> por Freyre. Freyre se reporta a toda casta <strong>de</strong> etnias ameríndias, pelo nome <strong>de</strong><br />

índios ou indígenas, em uma evi<strong>de</strong>nte generalização muito comum na linguagem<br />

corriqueira da maior parte das pessoas, inclusive <strong>de</strong> pesquisa<strong>do</strong>res que por comodida<strong>de</strong> e<br />

ampla facilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> entendimento <strong>de</strong> quem lê, utiliza-se <strong>de</strong>sta categoria <strong>de</strong> análise que em<br />

43


si carrega o signo das relações coloniais <strong>de</strong> <strong>do</strong>minação. Dos tempos <strong>de</strong> Gilberto Freyre até<br />

os dias <strong>de</strong> hoje, po<strong>de</strong>-se constatar que o indígena continua a ser interpreta<strong>do</strong> como uma<br />

categoria colonial (Guilhermo Bonfil Batalla) 56 , que <strong>de</strong>signa aquele que representa o papel<br />

<strong>de</strong> <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> na relação entre <strong>do</strong>minante x <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>, ou coloniza<strong>do</strong>r e coloniza<strong>do</strong>. O<br />

próprio conceito <strong>de</strong> indígena seria uma generalização que <strong>de</strong>spreza as idiossincrasias<br />

culturais <strong>do</strong>s vários grupos étnicos, ou ainda, <strong>de</strong> nações que habitavam o Continente<br />

Americano antes <strong>do</strong> advento <strong>de</strong> Cristóvão Colombo.<br />

O conceito <strong>de</strong> índio ou indígena <strong>de</strong> Gilberto Freyre não chega ser propriamente<br />

igual ao que se conceitua como indígena na atualida<strong>de</strong>, conforme se po<strong>de</strong> apreen<strong>de</strong>r através<br />

<strong>do</strong> texto <strong>de</strong> Paula Caleffi “O que é ser índio hoje?”: A questão indígena na América<br />

Latina/Brasil no início <strong>do</strong> século XXI. Neste texto caleffi 57 recorre a Pacheco <strong>de</strong> Oliveira<br />

que afirma que “por suas categorias e circuitos <strong>de</strong> interação, distingue-se da socieda<strong>de</strong><br />

nacional, e reivindica-se como indígena”. Segun<strong>do</strong>, ainda, Pacheco <strong>de</strong> Oliveira, esta<br />

conceituação “está baseada no critério antropológico <strong>de</strong> auto-<strong>de</strong>finição <strong>do</strong>s grupos<br />

étnicos.”, o que <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com Caleffi, 58 traz implícita a noção <strong>de</strong> respeito à alterida<strong>de</strong> e ao<br />

po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> auto-nomeação das coletivida<strong>de</strong>s. Que por sua vez, ”insere-se igualmente no<br />

conjunto <strong>de</strong> disposições internacionais, como a Convenção 169, da OIT (1989), que<br />

estabelece que” a consciência <strong>de</strong> sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> indígena (...) <strong>de</strong>verá ser consi<strong>de</strong>rada como<br />

critério internacional para <strong>de</strong>terminar os grupos aos quais se aplicam as disposições da<br />

presente convenção”. Na mesma página 21, Caleffi afirma que “Ser índio no final <strong>do</strong> séc.<br />

XX e início <strong>do</strong> XXI, é mais que isso; é ser porta<strong>do</strong>r <strong>de</strong> um status jurídico que lhe garante<br />

uma série <strong>de</strong> direitos.”.<br />

56 BATALLA, Guilhermo Bonfil. I<strong>de</strong>ntidad y Pluralismo Cultural em América Latina. Porto Rico. Editorial <strong>de</strong> la<br />

Universidad <strong>de</strong> Puerto Rico. Capítulo: El concepto <strong>de</strong> índio em América: Una Categoria <strong>de</strong> la situacion colonial (pp. 25-45)<br />

57 CALEFFI, Paula. “O que é ser índio Hoje?” A questão indígena na América Latina/ Brasil no<br />

início <strong>do</strong> século XXI. Diálogos Latino Americanos, número 007, Universidad <strong>de</strong> Arhus, Latinoamericanisias<br />

p-21.<br />

58 CALEFFI, op. cit. pp. 20- 42.<br />

44


Evi<strong>de</strong>ntemente pela disparida<strong>de</strong> temporal, mesmo sen<strong>do</strong> Freyre versa<strong>do</strong> em<br />

antropologia, seu conceito <strong>de</strong> indígena não abarca a questão da auto-<strong>de</strong>finição, <strong>de</strong> ser<br />

porta<strong>do</strong>r <strong>de</strong> um status jurídico que garante uma série <strong>de</strong> direitos, ou mesmo a consciência<br />

<strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> indígena. Freyre utiliza o termo índio ou indígena por generalização,<br />

como uma categoria colonial.<br />

Gabriel Soares por sua vez, distingue o gentio uns <strong>do</strong>s outros, falan<strong>do</strong> das<br />

particularida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cada grupo ou nação (no caso as particularida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> costumes, língua e<br />

“diferenças fenotípicas”). Contu<strong>do</strong>, emprega o termo indígena quan<strong>do</strong> quer fazer uma<br />

observação que seja pertinente há uma gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> nações, <strong>do</strong>n<strong>de</strong> se enten<strong>de</strong> que<br />

o autor <strong>do</strong> século XVI, também produzia suas generalizações. Há <strong>de</strong> se observar, porém,<br />

que o autor quinhentista também utiliza a terminologia índio quan<strong>do</strong> quer se referir<br />

principalmente aos gentios, que vivem em contato com o coloniza<strong>do</strong>r conforme po<strong>de</strong> ser<br />

verifica<strong>do</strong> no trecho abaixo 59 :<br />

e dizem outros índios pesca<strong>do</strong>res (no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> generalização – grifo meu) que viram<br />

tomar estes mortos que viram sobre água uma cabeça <strong>de</strong> homem lançar um braço fora <strong>de</strong>la e levar o<br />

morto; e os que isso viram se recolheram fugin<strong>do</strong> à terra assombra<strong>do</strong>s, <strong>do</strong> que ficaram tão<br />

atemoriza<strong>do</strong>s que não quiseram tornar a pescar daí a muitos dias; o que também aconteceu a alguns<br />

negros <strong>de</strong> Guiné; os quais fantasmas ou homens marinhos mataram por vezes cinco índios meus<br />

(gentios que vivem em contato com o coloniza<strong>do</strong>r - grifo meu); e já aconteceu tomar um monstro<br />

<strong>de</strong>stes <strong>do</strong>is índios pesca<strong>do</strong>res <strong>de</strong> uma jangada e levarem um, e salvar-se outro tão assombra<strong>do</strong> que<br />

esteve para morrer;<br />

Freyre dá prosseguimento ao seu ensaio sobre o papel <strong>do</strong> indígena na formação da<br />

família brasileira. A apropriação da obra <strong>de</strong> Gabriel Soares <strong>de</strong> Souza, se dá no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong><br />

testemunho <strong>de</strong> uma evi<strong>de</strong>nte “mestiçagem”, entre o elemento <strong>de</strong> origem européia e o<br />

elemento indígena, no caso específico representa<strong>do</strong> pelos Tupinambás. Freyre (página 162),<br />

transcreve o trecho localiza<strong>do</strong> na página 331 <strong>de</strong> Trata<strong>do</strong> <strong>de</strong>scritivo <strong>do</strong> Brasil em 1587, para<br />

<strong>de</strong>monstrar que a “mestiçagem” já ocorria <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os primeiros tempos, e que o fruto <strong>de</strong>stas<br />

uniões inter-étnicas, já eram reconheci<strong>do</strong>s pelos colonos <strong>de</strong> origem lusitana, ainda no<br />

século XVI, como mamelucos que <strong>de</strong>scendiam <strong>do</strong>s primeiros franceses, que to<strong>do</strong>s os anos<br />

<strong>de</strong>sembarcavam principalmente na costa da Bahia e no Rio Segerípe (Seregipe). Conforme<br />

59 SOUZA, op. cit. p. 277.<br />

45


o que foi escrito por Gabriel Soares <strong>de</strong> Souza em “Trata<strong>do</strong> <strong>de</strong>scritivo <strong>do</strong> Brasil em 1587”<br />

no C A P Í T U L O CLXXVII, e transcrito por Gilberto Freyre 60 :<br />

se amancebaram na terra, on<strong>de</strong> morreram, sem se quererem tornar para a França, e viveram como<br />

gentios com muitas mulheres, <strong>do</strong>s quaes, e <strong>do</strong>s que vinham to<strong>do</strong>s os annos à Bahia e ao rio <strong>de</strong><br />

Segeripe, em náos da França, se inçou a terra <strong>de</strong> mamelucos, que nasceram, viveram e morreram<br />

como gentios; <strong>do</strong>s quaes ha hoje muitos seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes, que são louros, alvos e sar<strong>do</strong>s, e havi<strong>do</strong>s<br />

por indios tupinambás, e são mais barbaros que elles.<br />

Ainda segun<strong>do</strong> Freyre, haveria <strong>de</strong>sembarque <strong>de</strong> franceses em outros pontos da costa<br />

(não especifica<strong>do</strong>s por Freyre), on<strong>de</strong> haveria abundância <strong>de</strong> Pau <strong>de</strong> tinta.<br />

É importante observar que tanto Freyre quanto Gabriel Soares, i<strong>de</strong>ntificam estes<br />

primeiros mamelucos, como elementos que se incorporam à organização social <strong>do</strong>s<br />

Tupinambás, e como tais são reconheci<strong>do</strong>s, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da origem genética. Deve<br />

ser observa<strong>do</strong> também que nem Freyre nem Gabriel Soares apontam para uma absorção<br />

<strong>de</strong>ste contingente <strong>de</strong> mamelucos pela organização social constituída pelos ditos cristãos,<br />

provenientes da Península Ibérica.<br />

Ao dialogar com outros autores da historiografia brasileira, Freyre faz referência a<br />

uma apropriação empreendida pelo autor <strong>de</strong> Retrato <strong>do</strong> Brasil, Paulo Pra<strong>do</strong> 61 , sobre a obra<br />

<strong>de</strong> Gabriel Soares <strong>de</strong> Souza. Neste caso, Freyre se refere às impressões <strong>de</strong> pasmo e horror<br />

<strong>de</strong>ixadas pelos primeiros cronistas a respeito da moral sexual <strong>do</strong>s indígenas. Neste ínterim,<br />

para ilustrar a sensação <strong>de</strong> estupefação, Freyre recolhe o juízo <strong>de</strong> valor feito por Gabriel<br />

Soares sobre as manifestações sexuais <strong>do</strong>s Tupinambás, através da expressão: “são tão<br />

luxuriosos que não há pecca<strong>do</strong> <strong>de</strong> luxúria que não cometam”. Aliás, sobre a luxúria <strong>do</strong>s<br />

Tupinambás, o próprio Gabriel Soares em Trata<strong>do</strong> Descritivo <strong>do</strong> Brasil, <strong>de</strong>dica um capítulo<br />

inteiro ao tema, que recebe com Título: “Que trata da luxúria <strong>de</strong>stes bárbaros”. 62<br />

60 SOUZA, op. cit. p. 331.<br />

61 FREYRE, op. cit. p.169.<br />

62 SOUZA, op. cit. p. 308<br />

46


Em seguida 63 , Freyre menciona a obra <strong>de</strong> “Trata<strong>do</strong> Descritivo <strong>do</strong> Brasil em 1587” 64 , na<br />

qual o autor quinhentista <strong>de</strong>screve o artifício utiliza<strong>do</strong> pelos Tupinambás para aumentar as<br />

dimensões da própria genitália. Nas palavras <strong>de</strong> Gabriel Soares:<br />

os quais são tão amigos da carne que se não contentam, para seguirem seus apetites, com o membro<br />

genital como a natureza formou; mas há muitos que lhe costumam pôr o pêlo <strong>de</strong> um bicho tão<br />

peçonhento, que lho faz logo inchar, com o que têm gran<strong>de</strong>s <strong>do</strong>res, mais <strong>de</strong> seis meses, que se lhe<br />

vão gastan<strong>do</strong> espaço <strong>de</strong> tempo; com o que se lhes faz o seu cano tão disforme <strong>de</strong> grosso, que os não<br />

po<strong>de</strong>m as mulheres esperar, nem sofrer;<br />

Para sintetizar as conclusões <strong>de</strong> Gabriel Soares sobre este hábito <strong>do</strong>s Tupinambás,<br />

Freyre substitui o termo “luxuriosos” <strong>do</strong> texto original, pela palavra libidinosos, e o termo<br />

“que se não contentam” pelo termo “Insatisfeitos”. Ou seja, os Tupinambás além <strong>de</strong><br />

libidinosos seriam também insatisfeitos com o tamanho <strong>do</strong> membro viril, conforme a<br />

natureza o formou. Ao que parece, Freyre apropriou-se <strong>de</strong>sta passagem da obra <strong>de</strong> Gabriel<br />

Soares para en<strong>do</strong>ssar sua tese <strong>de</strong> que os indígenas usavam <strong>de</strong> tal expediente, não por<br />

<strong>de</strong>boche ou sa<strong>do</strong>-masoquismo, mas sim por uma necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> compensar uma<br />

“<strong>de</strong>ficiência física ou psíquica para a função genésica” 65 . Um pouco mais adiante na<br />

mesma página, Freyre irá afirmar que “segun<strong>do</strong> alguns observa<strong>do</strong>res, entre certos grupos<br />

<strong>de</strong> gente <strong>de</strong> cor os órgãos genitais apresentam-se menos <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s que entre os<br />

brancos” , para en<strong>do</strong>ssar tal afirmação, Freyre recorre à obra “ Das Weib”, assinada por<br />

Ploss-Bartels e publicada em Berlim no ano <strong>de</strong> 1927.<br />

Em suma, a apropriação <strong>de</strong>ste trecho da obra <strong>de</strong> Gabriel Soares serviria para<br />

en<strong>do</strong>ssar a tese, <strong>de</strong> uma suposta superiorida<strong>de</strong> sexual “branca”, sobre os indivíduos” <strong>de</strong><br />

cor”, no que se refere às proporções <strong>do</strong> membro viril.<br />

Entre outros assuntos relaciona<strong>do</strong>s aos indígenas,Freyre discorre sobre o incesto<br />

entre os Tupis 66 , para tal, recorre ao Padre Anchieta, que <strong>de</strong>sven<strong>do</strong>u como se estabeleciam<br />

entre os Tupis, as regras <strong>de</strong> impedimento para o intercurso sexual entre os parentes. Freyre<br />

reproduz o discurso <strong>de</strong> Anchieta, que permite ao leitor contemporâneo compreen<strong>de</strong>r que -<br />

entre os Tupis - as normas culturais <strong>de</strong>terminariam os laços <strong>de</strong> parentesco, em <strong>de</strong>trimento<br />

63 FREYRE, op. cit. p. 170.<br />

64 SOUZA, op. cit. p.308.<br />

65 FREYRE, op. cit. p. 170.<br />

66 FREYRE, op. cit. p. 171.<br />

47


<strong>do</strong> critério exclusivamente basea<strong>do</strong> no “sangue”. Ou seja, os critérios <strong>de</strong> parentesco eram<br />

apenas “patrilineares”. Portanto, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com este critério “patrilinear”, o impedimento<br />

<strong>de</strong> intercurso sexual que viria a caracterizar o que chamamos <strong>de</strong> incesto, seguiria também o<br />

critério <strong>de</strong> “patrilinearida<strong>de</strong>”. Portanto, o intercurso sexual entre consangüíneos – não teria<br />

impedimentos <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m moral, ou seja, não seria incestuoso, se esta consangüinida<strong>de</strong> fosse<br />

restrita ao la<strong>do</strong> materno.<br />

Quanto ao tema incesto, Freyre <strong>de</strong>monstra que Anchieta ultrapassa o nível <strong>de</strong><br />

observação que se resume à superficialida<strong>de</strong>. O mesmo grau <strong>de</strong> percepção, Freyre atribui a<br />

Gabriel Soares. Neste caso, Gabriel Soares é apropria<strong>do</strong> por Freyre, para reiterar aquilo que<br />

já havia si<strong>do</strong> observa<strong>do</strong> por Anchieta, acrescentan<strong>do</strong>, porém, que mesmo assim havia<br />

transgressões a esta norma cultural, conforme po<strong>de</strong> ser visto neste trecho 67 <strong>do</strong> Trata<strong>do</strong><br />

Descritivo <strong>do</strong> Brasil em 1587: “É este gentio tão luxurioso que poucas vezes têm respeito<br />

às irmãs e tias, e porque este peca<strong>do</strong> é contra seus costumes, <strong>do</strong>rmem com elas pelos<br />

matos...”.<br />

Freyre também refere-se às índias e <strong>do</strong> seu gosto pelo banho 68 , assim como <strong>do</strong> seu<br />

ao asseio, que seria maior que o asseio <strong>do</strong>s índios; segun<strong>do</strong> Freyre, as índias cuidavam <strong>de</strong><br />

tu<strong>do</strong> referente à Higiene, menos <strong>de</strong> lavar as re<strong>de</strong>s sujas, que seria uma tarefa própria aos<br />

índios homens. Na sua argumentação sobre os hábitos <strong>de</strong> higiene das mulheres indígenas,<br />

Freyre apropria-se <strong>de</strong> Jean <strong>de</strong> Léry e <strong>de</strong> Gabriel Soares, estabelecen<strong>do</strong> uma relação <strong>de</strong><br />

complementarida<strong>de</strong> entre os discursos <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is cronistas.<br />

No que se refere a Gabriel Soares, estas são as palavras utilizadas por Freyre 69 :<br />

Nas mulheres a cargo <strong>de</strong> quem se achava toda a série <strong>de</strong> cuida<strong>do</strong>s <strong>de</strong> higiene <strong>do</strong>méstica entre os<br />

indígenas, com exceção da lavagem das re<strong>de</strong>s sujas, era ainda maior que nos homens o gosto pelo<br />

banho e pelo asseio <strong>do</strong> corpo. São asseadíssimas, nota Gabriel Soares.<br />

Deve-se notar que Gilberto Freyre, atribui uma afirmação a Gabriel Soares, mas não<br />

indica <strong>de</strong> que trecho <strong>de</strong> Trata<strong>do</strong> <strong>de</strong>scritivo <strong>do</strong> Brasil em 1587, ele teria retira<strong>do</strong> tal<br />

afirmação <strong>de</strong> Gabriel Soares a respeito da higiene da mulher indígena. O que se verifica<br />

após o exame da obra <strong>de</strong> Gabriel Soares é que o mesmo não faz referência a nada que se<br />

67 SOUZA, op. cit. p.308.<br />

68 FREYRE, op. cit. p.182.<br />

48


assemelhem as palavras que Freyre atribuiu ao autor quinhentista. Aliás, a palavra<br />

“asseadíssimas” sequer faz parte <strong>do</strong> vocabulário usa<strong>do</strong> por Gabriel Soares em Trata<strong>do</strong><br />

Descritivo <strong>do</strong> Brasil em 1587.<br />

A única referência <strong>de</strong> Gabriel Soares a alguma forma <strong>de</strong> higiene praticada pela<br />

mulher indígena se encontra no trecho que segue 70 :<br />

As fêmeas <strong>de</strong>stes gentios são muito afeiçoadas a criar cachorros para os mari<strong>do</strong>s levarem à caça, e<br />

quan<strong>do</strong> elas vão fora levam-nos às costas; as quais também folgam <strong>de</strong> criar galinhas e outros pássaros em suas<br />

casas. As quais, quan<strong>do</strong> com seu costume, alimpam-se com um bordão que têm sempre junto <strong>de</strong> si, que levam<br />

na mão quan<strong>do</strong> vão fora <strong>de</strong> casa; e não se pejam <strong>de</strong> se alimparem diante <strong>de</strong> gente, nem <strong>de</strong> as verem comer<br />

piolho, o que fazem quan<strong>do</strong> se catam nas cabeças umas às outras; e como os encontra a que os busca, os dá à<br />

que os trazia na cabeça, que logo os trinca entre os <strong>de</strong>ntes, o que não fazem para comê-los, mas em vingança<br />

<strong>de</strong> as mor<strong>de</strong>rem.<br />

Quanto aos banhos a que se refere Freyre, só se verifica referências a banho em<br />

Soares, quan<strong>do</strong> este fala a respeito <strong>de</strong> índios homens. É importante também observar<br />

através da leitura que se segue, que o cronista atribui às <strong>do</strong>enças <strong>do</strong>s indígenas aos seus<br />

hábitos, inclusive o próprio banho, que não é visto por Gabriel Soares <strong>de</strong> forma positiva em<br />

relação à saú<strong>de</strong> 71 :<br />

Em alguns tempos e lugares, mais que outros, são estes índios <strong>do</strong>entes <strong>de</strong> terçãs e quartãs, que lhes<br />

nascem <strong>de</strong> andar pela calma, sem nada na cabeça, e <strong>de</strong> quan<strong>do</strong> estão mais sua<strong>do</strong>s se banharem com água fria,<br />

meten<strong>do</strong>-se nos rios e nas fontes, muitas vezes ao dia pelo tempo da calma; ou quan<strong>do</strong> trabalham, que estão<br />

cansa<strong>do</strong>s e sua<strong>do</strong>s; às quais febres não fazem nenhuma cura senão comen<strong>do</strong> uns mingaus, que são uns cal<strong>do</strong>s<br />

<strong>de</strong> farinha <strong>de</strong> carimã, como já fica dito, que são muito leves e sadios; e untam-se com água <strong>do</strong> jenipapo, com<br />

o que ficam to<strong>do</strong>s tintos <strong>de</strong> preto, ao que têm gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>voção.<br />

Disto, po<strong>de</strong>-se concluir que em relação aos temas relaciona<strong>do</strong>s ao banho e a higiene<br />

da mulher indígena, Freyre, com o objetivo <strong>de</strong> en<strong>do</strong>ssar sua interpretação, atribuiu palavras<br />

a Gabriel Soares, que não eram <strong>de</strong> sua autoria.<br />

Em relação aos indígenas, uma das preocupações <strong>de</strong> Gilberto Freyre está em<br />

estabelecer as diferenças <strong>de</strong> atribuições <strong>de</strong> tarefas <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com o gênero 72 . Mais uma vez,<br />

Freyre, constrói seu discurso através das apropriações <strong>de</strong> Gabriel Soares e <strong>de</strong> Jean <strong>de</strong> Léry,<br />

buscan<strong>do</strong> uma relação <strong>de</strong> complementarida<strong>de</strong> entre as fontes.<br />

A apropriação da obra <strong>de</strong> Léry se dá no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> enfatizar que as mulheres<br />

69 FREYRE, op. cit. p.182.<br />

70 SOUZA, op. cit. pp. .312-313.<br />

71 SOUZA, op. cit. p. 318.<br />

49


indígenas “trabalhavam, sem comparação, mais <strong>do</strong> que os homens”, ao passo que as<br />

apropriações em torno da obra <strong>de</strong> Gabriel Soares, se dão no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> especificar quais<br />

tarefas <strong>do</strong> cotidiano po<strong>de</strong>m ser atribuídas ao gênero masculino.<br />

Freyre, especifica as tarefas masculinas transcreven<strong>do</strong> frases contidas em Trata<strong>do</strong><br />

Descritivo <strong>do</strong> Brasil em 1587, sem citar sua localização na mesma obra. Segun<strong>do</strong> Freyre,<br />

Gabriel Soares teria afirma<strong>do</strong> que caberia aos machos: “roçar os mattos, e os queimam e<br />

limpam a terra <strong>de</strong>lles”, “buscar lenha com que se aquentem e se servem porque não<br />

<strong>do</strong>rmem sem fogo ao longo das re<strong>de</strong>s, que é a sua cama” e ainda “costumam ir lavar as<br />

re<strong>de</strong>s aos rios quan<strong>do</strong> estão sujas”.<br />

De acor<strong>do</strong> com esta pesquisa, as transcrições <strong>de</strong> Freyre foram retiradas <strong>do</strong> Capítulo<br />

CLIX, intitula<strong>do</strong> Em que se <strong>de</strong>clara o mo<strong>do</strong> da granjearia <strong>do</strong>s tupinambás e suas<br />

habilida<strong>de</strong>s, conforme segue 73 :<br />

Quan<strong>do</strong> os tupinambás vão às suas roças, não trabalham senão das sete horas da manhã até ao meiodia,<br />

e os muito diligentes até horas <strong>de</strong> véspera; e não comem neste tempo senão <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>stas horas,<br />

que se vêm para suas casas; os machos costumam a roçar os matos, e os queimam e alimpam a terra<br />

<strong>de</strong>les; e as fêmeas plantam o mantimento e o alimpam; os machos vão buscar a lenha com que se<br />

aquentam e se servem, porque não <strong>do</strong>rmem sem fogo, ao longo das re<strong>de</strong>s, que é a sua cama; as<br />

fêmeas vão buscar a água à fonte e fazem <strong>de</strong> comer; e os machos costumam ir lavar as re<strong>de</strong>s aos rios,<br />

quan<strong>do</strong> estão sujas. Não fazem os tupinambás entre si outras obras-primas que balaios <strong>de</strong> folhas <strong>de</strong><br />

palma...<br />

Sobre este tema, Freyre, acrescenta que a seguinte frase: “isto sem insistirmos nas<br />

responsabilida<strong>de</strong>s principais <strong>do</strong> homem <strong>de</strong> abastecer a taba <strong>de</strong> carne e <strong>de</strong> peixe e <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>fendê-la <strong>de</strong> inimigos e <strong>de</strong> animais bravios”. Através da leitura <strong>de</strong> Casa-gran<strong>de</strong> e Senzala,<br />

não fica claro se Freyre atribui esta observação a Gabriel Soares, ou se ela é fruto <strong>de</strong> sua<br />

interpretação, contu<strong>do</strong>, o que se encontra no Trata<strong>do</strong> <strong>de</strong> Gabriel Soares que se assemelhe ao<br />

que afirma Gilberto Freyre, é este trecho extraí<strong>do</strong> <strong>do</strong> Trata<strong>do</strong> Descritivo <strong>do</strong> Brasil em<br />

1587: 74<br />

porque são as filhas mui requestadas <strong>do</strong>s mancebos que as namoram; os quais servem os pais das damas <strong>do</strong>is<br />

e três anos primeiro que lhas dêem por mulheres; e não as dão senão aos que melhor os servem, a quem os<br />

namora<strong>do</strong>res fazem a roça, e vão pescar e caçar para os sogros que <strong>de</strong>sejam <strong>de</strong> ter, e lhe trazem a lenha <strong>do</strong><br />

mato; e como os sogros lhes entregam as damas, eles se vão agasalhar...<br />

72 FREYRE, op. cit. p. 183.<br />

73 SOUZA, op. cit. p. 311.<br />

74 SOUZA, op. cit. p.304.<br />

50


Po<strong>de</strong>-se notar que Gabriel Soares não fala a respeito <strong>de</strong> obrigações <strong>do</strong>s índios<br />

homens <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a taba <strong>de</strong> inimigos ou <strong>de</strong> animais bravios. Referências como estas não<br />

se encontram em Trata<strong>do</strong> <strong>de</strong>scritivo <strong>do</strong> Brasil em 1587.<br />

Dan<strong>do</strong> continuação ao assunto da divisão <strong>de</strong> tarefas <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com o gênero, Freyre<br />

insere também o fator ida<strong>de</strong> à discussão sobre a divisão <strong>de</strong> tarefas. Freyre, salienta que<br />

Gabriel Soares não especifica o sexo ou a ida<strong>de</strong> daqueles que <strong>de</strong>sempenhavam ativida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> caráter industrial ou artístico. Em seguida, o próprio Freyre atribui por sua conta<br />

<strong>de</strong>terminadas ativida<strong>de</strong>s aos homens tupinambás, tais como: a confecção <strong>de</strong> “balaios <strong>de</strong><br />

folha <strong>de</strong> palma, e outras vasilhas da mesma folha a seu mo<strong>do</strong> e <strong>do</strong> seu uso” e “cestos <strong>de</strong><br />

varas, a que chamam samburá, e outras vasilhas em lavores, como as <strong>de</strong> rota da Índia”.<br />

Uma breve leitura no extrato da fonte, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> Freyre transcreve os trechos entre<br />

aspas, logo acima revela que Freyre ocultou parte <strong>do</strong> que era <strong>de</strong>scrito por Gabriel Soares,<br />

talvez aquilo que enfatizasse as habilida<strong>de</strong>s artísticas que pu<strong>de</strong>ssem ser atribuídas ao gênero<br />

masculino. Conforme po<strong>de</strong> ser visto logo abaixo, na transcrição <strong>de</strong> trechos <strong>do</strong> Trata<strong>do</strong><br />

<strong>de</strong>scritivo <strong>do</strong> Brasil em 1587: 75<br />

Não fazem os tupinambás entre si outras obras-primas que balaios <strong>de</strong> folhas <strong>de</strong> palma, e outras<br />

vasilhas da mesma fôlha a seu mo<strong>do</strong>, e <strong>do</strong> seu uso; fazem arcos e flechas, e alguns empalha<strong>do</strong>s e<br />

lavra<strong>do</strong>s <strong>de</strong> branco e preto, feitio <strong>de</strong> muito artifício; fazem cestos <strong>de</strong> varas, a que chamam samburá, e<br />

outras vasilhas em lavores, como as <strong>de</strong> rota da Índia; fazem carapuças e capas <strong>de</strong> penas <strong>de</strong> pássaros,<br />

e outras obras <strong>de</strong> pena <strong>de</strong> seu uso, e sabem dar tinta <strong>de</strong> vermelho e amarelo às penas brancas; e<br />

também contrafazem as penas <strong>do</strong>s papagaios com sangue <strong>de</strong> rãs, arrancan<strong>do</strong>-lhes as ver<strong>de</strong>s, e fazemlhes<br />

nascer outras, amarelas; fazem mais estes índios, os que são principais, re<strong>de</strong>s lavradas <strong>de</strong> lavores<br />

<strong>de</strong> esteiras, e <strong>de</strong> outros laços, e umas cordas tecidas, a que chamam muçuranas, <strong>de</strong> algodão, que têm<br />

o feitio <strong>do</strong>s cabos <strong>de</strong> cabresto que vêm <strong>de</strong> Fez.<br />

É importante salientar que Gabriel Soares realmente não atribui claramente as<br />

tarefas aos respectivos gêneros ou ida<strong>de</strong>s, contu<strong>do</strong>, uma leitura mais atenta <strong>de</strong>ste trecho<br />

extraí<strong>do</strong> da fonte acima: “fazem mais estes índios, os que são principais, re<strong>de</strong>s lavradas <strong>de</strong><br />

lavores <strong>de</strong> esteiras, e <strong>de</strong> outros laços, e umas cordas tecidas, a que chamam muçuranas, <strong>de</strong><br />

algodão, que têm o feitio <strong>do</strong>s cabos <strong>de</strong> cabresto que vêm <strong>de</strong> Fez.”. Revela que o termo<br />

“principais” indica não somente o gênero (masculino) como também revela o “status” <strong>de</strong><br />

quem realiza tais ativida<strong>de</strong>s.<br />

75 SOUZA, op. cit. pp.311-312.<br />

51


O Seguinte trecho <strong>do</strong> texto <strong>de</strong> Freyre, on<strong>de</strong> ele se apropria <strong>de</strong> Gabriel Soares, é <strong>de</strong><br />

construção, um tanto quanto confusa, veja: 76<br />

Os “balaios <strong>de</strong> folhas <strong>de</strong> palma, e outras vasilhas da mesma folha a seu mo<strong>do</strong>, e <strong>do</strong> seu uso”, os “<br />

cestos <strong>de</strong> vara, a que chamam samburá, e outras vasilhas em lavores, como os da rota da índia”,<br />

teriam si<strong>do</strong> arte <strong>de</strong> iniciativa masculina. Seriam ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ambos os sexos e não <strong>de</strong> um só:<br />

ativida<strong>de</strong> também <strong>do</strong>s meninos, e não apenas <strong>de</strong> gente gran<strong>de</strong>.<br />

Ao mesmo tempo em que Freyre afirma enfaticamente que <strong>de</strong>terminadas ativida<strong>de</strong>s<br />

teriam si<strong>do</strong> <strong>de</strong> iniciativa masculina, na frase seguinte ele afirma (estabelecen<strong>do</strong> uma<br />

contradição com a frase anterior) que as ditas ativida<strong>de</strong>s seriam <strong>de</strong> ambos os sexos e<br />

não <strong>de</strong> um só. Não bastan<strong>do</strong> ele ainda inclui os meninos também.<br />

Desta forma fica difícil saber, afinal o que Freyre quis dizer. Logo adiante, Freyre<br />

irá se apropriar <strong>de</strong> outro trecho da mesma página <strong>de</strong> Trata<strong>do</strong> Descritivo <strong>do</strong> Brasil em 1587,<br />

<strong>de</strong>sta vez para <strong>de</strong>finir quais as tarefas exclusivas da mulher, atribuin<strong>do</strong> a autoria a Gabriel<br />

Soares, através <strong>de</strong> uma longa e pouco glosada transcrição. On<strong>de</strong> Freyre salienta as re<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

fio <strong>de</strong> algodão e as “fitas com passamanes e algumas mais largas, com que enastram os<br />

cabelos”, <strong>de</strong> resto é transcrição, como se po<strong>de</strong> ver abaixo: 77<br />

As mulheres já <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> têm cuida<strong>do</strong> <strong>de</strong> fazerem a farinha <strong>de</strong> que se mantêm, e <strong>de</strong> trazerem a<br />

mandioca das roças às costas para a casa; e as que são muito velhas têm cuida<strong>do</strong> <strong>de</strong> fazerem vasilhas<br />

<strong>de</strong> barro a mão como são os potes em que fazem os vinhos, e fazem alguns tamanhos que levam<br />

tanto como uma pipa, em os quais e em outros, menores, fervem os vinhos que bebem; fazem mais<br />

estas velhas panelas, púcaros e alguidares a seu uso, em que cozem a farinha, e outros em que a<br />

<strong>de</strong>itam e em que comem, lavra<strong>do</strong>s <strong>de</strong> tintas <strong>de</strong> cores; a qual louça cozem numa cova que fazem no<br />

chão; e põem-lhe a lenha por cima; e têm e crêem estas índias que se cozer esta louça outra pessoa,<br />

que não seja a que a fez, que há <strong>de</strong> arrebentar no fogo; as quais velhas ajudam também a fazer a<br />

farinha que se faz no seu lanço.<br />

Logo em seguida, Freyre realiza outra intervenção, <strong>de</strong>sta vez misturan<strong>do</strong> a<br />

interpretação da fonte com interpretações suas. Po<strong>de</strong>–se ver através <strong>do</strong> pequeno trecho <strong>de</strong><br />

Casa-Gran<strong>de</strong> e Senzala, que será mostra<strong>do</strong> na seqüência, que Freyre procura <strong>de</strong>stacar a<br />

importância da mulher indígena, contu<strong>do</strong>, fala também <strong>do</strong>s “inverti<strong>do</strong>s”, sem que seja<br />

possível enxergar o que ele pretendia, ao falar <strong>de</strong> “homossexuais indígenas” (grifo meu),<br />

pois o trecho que aborda os efemina<strong>do</strong>s e os inverti<strong>do</strong>s não se articula com os trechos<br />

anteriores e posteriores.<br />

76 FREYRE, op. cit. p.184<br />

77 SOUZA, op. cit. p.312.<br />

52


A construção textual <strong>de</strong> Freyre se mostra tão confusa quanto os trechos supracita<strong>do</strong>s<br />

da mesma página. Talvez, e com muito esforço <strong>de</strong> interpretação <strong>de</strong> quem lê, seja possível<br />

supor que a intenção <strong>de</strong> Freyre seja a <strong>de</strong> igualar as habilida<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s inverti<strong>do</strong>s às habilida<strong>de</strong>s<br />

da arte e da indústria que ele próprio atribui às mulheres. Mas mesmo que se trate disto, a<br />

inserção <strong>do</strong> comentário é mal articulada. Veja o que Freyre escreveu: 78<br />

Eram ainda as mulheres que plantavam o mantimento e que iam buscar a água à fonte; que<br />

preparavam a comida; que cuidavam <strong>do</strong>s meninos. Vê-se que não era pequena a importância da<br />

mulher velha entre os indígenas; enorme a da mulher, em geral; e nessa categoria o estu<strong>do</strong><br />

compara<strong>do</strong> da arte e da indústria entre os primitivos autoriza-nos a colocar o homem efemina<strong>do</strong> ou<br />

mesmo o inverti<strong>do</strong> sexual, comum entre várias tribos brasílicas.<br />

Como se pô<strong>de</strong> verificar através da leitura acima a inserção <strong>do</strong>s comentários a<br />

respeito <strong>do</strong>s “inverti<strong>do</strong>s”, não parece fazer muito senti<strong>do</strong>, ao passo que a respeito das<br />

mulheres percebe-se claramente o senti<strong>do</strong> da apropriação <strong>de</strong> Freyre sobre a obra <strong>de</strong> Gabriel<br />

Soares, pois toda a argumentação serve para dar sustentação à tese <strong>de</strong> Freyre <strong>de</strong> que a<br />

mulher indígena e não o homem indígena foi <strong>de</strong> maior utilida<strong>de</strong> social e econômica no<br />

processo <strong>de</strong> colonização portuguesa. Conforme po<strong>de</strong> ser verifica<strong>do</strong> na leitura <strong>de</strong> Casa<br />

Gran<strong>de</strong> e senzala 79 .<br />

Ainda falan<strong>do</strong> sobre a sexualida<strong>de</strong> indígena 80 , Freyre se apropria <strong>de</strong> Trata<strong>do</strong><br />

Descritivo <strong>do</strong> Brasil como testemunho da existência <strong>de</strong> homossexualismo entre os<br />

Tupinambás. Neste senti<strong>do</strong> transcreve o seguinte trecho da obra <strong>de</strong> Gabriel Soares, on<strong>de</strong> o<br />

mesmo trata da luxúria <strong>do</strong>s “bárbaros” 81 , conforme segue:<br />

mui affeiçoa<strong>do</strong>s ao peca<strong>do</strong> nefan<strong>do</strong>, entre os quaes se não têm por afronta; e o que se serve <strong>de</strong><br />

macho, se tem por valente, e contam esta bestialida<strong>de</strong> por proeza; e nas suas al<strong>de</strong>ias pelo certo (erro<br />

<strong>de</strong> transcrição <strong>de</strong> Gilberto Freyre – no original consta sertão ao invés <strong>de</strong> certo) há alguns que teem<br />

tenda publica a quantos os querem como mulheres publicas.<br />

78 FREYRE, op. cit. p.184<br />

79 FREYRE, op. cit. pp. 185-186.<br />

80 FREYRE, op. cit. p.188.<br />

81 SOUZA, op. cit. p. 308.<br />

53


O testemunho é recolhi<strong>do</strong> como prova ou ainda como ilustração da temática.<br />

Embora Freyre construa problematizações, estas não se relacionam a Gabriel Soares, que<br />

por sua vez aponta a prática <strong>do</strong> peca<strong>do</strong> nefan<strong>do</strong>, não só entre os Tupinambás, mas também<br />

entre os Tupinaés, conforme po<strong>de</strong> ser visto no trecho: “os quais são muito mais sujeitos ao<br />

peca<strong>do</strong> nefan<strong>do</strong> <strong>do</strong> que são os tupinambás, e os que servem <strong>de</strong> machos se prezam disso, e o<br />

tratam, quan<strong>do</strong> se dizem seus louvores” 82 .<br />

Voltan<strong>do</strong> ao assunto <strong>do</strong> papel da mulher indígena Gilberto Freyre cita Léry, GSS,<br />

Hans Sta<strong>de</strong>n, crônicas <strong>do</strong>s Jesuítas <strong>do</strong> século XVI, os livros <strong>de</strong> IVES d’Euvrex e Clau<strong>de</strong><br />

d’Abbevile para afirmar que a vida <strong>de</strong> casada da mulher Tupi era <strong>de</strong> trabalho contínuo:<br />

“com filhos e com o mari<strong>do</strong>, com a Cozinha e com os roça<strong>do</strong>s” 83 .<br />

Após comentar o testemunho <strong>do</strong>s <strong>de</strong>mais autores, Freyre transcreve o trecho <strong>do</strong><br />

Trata<strong>do</strong> Descritivo <strong>do</strong> Brasil em 1587 84 , que segue conforme foi transcrito por Freyre:<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> lavadas ralam-nas em uma pedra ou ralo, que para isso têm, e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> bem raladas,<br />

espremem esta maça em um engenho <strong>de</strong> palma, a que chamam tapeti, que lhe faz lançar a agua que<br />

tem toda fora, e fica essa maça toda muito enxuta, da qual se faz a farinha que se come, que cozem<br />

em um alguidar para isso feito, em o qual <strong>de</strong>itam esta massa e a enxugam sobre o fogo, on<strong>de</strong> uma<br />

índia a meche com um meio cabaço, como quem faz confeitos, até que fica enxuta e sem nenhuma<br />

humida<strong>de</strong>, e fica como cuscuz, mas mais branca, e <strong>de</strong>sta maneira se come, é muito <strong>do</strong>ce e saborosa.<br />

Além <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar o quanto trabalhava a mulher indígena, Freyre pô<strong>de</strong> através da<br />

transcrição <strong>de</strong> Gabriel Soares, <strong>de</strong>screver o processo indígena <strong>de</strong> beneficiamento da<br />

mandioca, ligan<strong>do</strong>, logo em seguida, o raciocínio a apropriação da cultura indígena pelos<br />

colonos, aliás, tema este já trata<strong>do</strong> neste estu<strong>do</strong> em sua primeira parte em Transferências<br />

apropriações e interpenetrações das culturas Indígena e Portuguesa.<br />

Neste ínterim, Freyre afirma que os colonos a<strong>do</strong>taram a farinha <strong>de</strong> mandioca em<br />

<strong>de</strong>trimento da farinha <strong>de</strong> trigo. Como prova <strong>de</strong> sua afirmação, Freyre transcreve o seguinte<br />

trecho <strong>do</strong> Trata<strong>do</strong> Descritivo <strong>do</strong> Brasil em 1587 85 .<br />

82 SOUZA, op. cit. p. 334.<br />

83 FREYRE, op. cit. pp. 189- 190.<br />

84 SOUZA, op. cit. p.174.<br />

85 SOUZA, op. cit. pp. 179-180.<br />

54


e ainda digo que a mandioca é mais sadia e proveitosa que o bom trigo, por ser <strong>de</strong> melhor digestão. E<br />

por se averiguar por tal, os governa<strong>do</strong>res Tomé <strong>de</strong> Sousa, D. Duarte e Mem <strong>de</strong> Sá não comiam no Brasil pão<br />

<strong>de</strong> trigo, por se não acharem bem como ele, e assim o fazem outras muitas pessoas.<br />

Logo após recolher o testemunho <strong>de</strong> Gabriel Soares, Freyre afirma 86 : “a completa<br />

vitória <strong>do</strong> complexo indígena da mandioca sobre o trigo: tornou-se a base <strong>do</strong> regime<br />

alimentar <strong>do</strong> coloniza<strong>do</strong>r”. A apropriação da obra <strong>de</strong> Gabriel Soares, lhe dá o <strong>de</strong>vi<strong>do</strong><br />

respal<strong>do</strong> neste senti<strong>do</strong>. Ainda assim, Freyre observa a ingenuida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Gabriel Soares ( um<br />

homem <strong>do</strong> século XVI) que supõe ser mandioca mais digestiva e nutritiva que o trigo.<br />

Logo em seguida Freyre, que já havia aborda<strong>do</strong> a permanência da mandioca na dieta<br />

brasileira, aponta também para a permanência da técnica <strong>de</strong> beneficiamento <strong>de</strong>senvolvida<br />

pelos indígenas.<br />

Em casa Gran<strong>de</strong> e Senzala, Freyre disserta sobre as plantas e ervas medicinais que<br />

eram <strong>de</strong> conhecimento e uso <strong>do</strong>s indígenas 87 , enfatizan<strong>do</strong> que teria si<strong>do</strong> feito um melhor<br />

aproveitamento <strong>de</strong>las se tivessem si<strong>do</strong> melhores as relações entre jesuítas e curan<strong>de</strong>iros, em<br />

seguida cita o cientista francês Sigaud, que segun<strong>do</strong> Freyre, <strong>de</strong>ve muito a medicina<br />

brasileira.<br />

Ainda falan<strong>do</strong> sobre Sigaud, Freyre afirma que Gabriel seria um típico senhor <strong>de</strong><br />

engenho da espécie mencionada por Sigaud. Ou seja, <strong>do</strong> tipo da<strong>do</strong> a curar <strong>do</strong>entes por<br />

intermédio <strong>de</strong> uma “terapêutica híbrida, grosseira, mas às vezes <strong>de</strong> melhores resulta<strong>do</strong>s que<br />

a européia e acadêmica”. Em outro trecho também apropria<strong>do</strong> por Freyre, o próprio Gabriel<br />

Soares admite em trecho <strong>de</strong> Trata<strong>do</strong> Descritivo <strong>do</strong> Brasil em 1587 “que se não ocupam na<br />

Bahia cirurgiões, porque cada um o é em sua casa” 88 .<br />

Gabriel Soares <strong>de</strong>dica <strong>do</strong>is títulos, da segunda parte <strong>de</strong> Trata<strong>do</strong> Descritivo <strong>do</strong> Brasil<br />

em 1587, que se chama, “MEMORIAL E DECLARAÇÃO DAS GRANDEZAS DA<br />

BAHIA” à temática das plantas medicinais, o que po<strong>de</strong> ser verifica<strong>do</strong> nos títulos seis e o<br />

título sete, <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong>s respectivamente: “Das árvores medicinais” e “Das ervas<br />

medicinais”.<br />

86 FREYRE, op. cit. p. 191.<br />

87 FREYRE, op. cit. p. 196.<br />

88 SOUZA, op. cit. p. 203.<br />

55


O título seis se divi<strong>de</strong> em três capítulos, <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong>s: Das árvores <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong>; Da<br />

embaíba e caraobuçu e caraobamirim; Da árvore da almécega e <strong>de</strong> outras árvores <strong>de</strong><br />

virtu<strong>de</strong>. O título sete por sua vez se divi<strong>de</strong> em mais três capítulos <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong>s<br />

respectivamente: Das ervas <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong>: tabaco, etc; Como se cria o algodão e <strong>de</strong> sua virtu<strong>de</strong><br />

e <strong>de</strong> outros arbustos e por último; Virtu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> outras ervas menores.<br />

As apropriações <strong>de</strong> Freyre se dão nos capítulos específicos às plantas medicinais,<br />

mas também incluem certos trechos extraí<strong>do</strong>s <strong>do</strong> título Quatro <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong>: Da agricultura<br />

da Bahia. O efeito <strong>de</strong> certas vegetais como “amen<strong>do</strong>ins” e cajus, foi extraí<strong>do</strong> por Freyre<br />

<strong>de</strong>stes títulos. Contu<strong>do</strong>, Freyre não <strong>de</strong>clara os efeitos nocivos ou colaterais <strong>de</strong>scritos por<br />

Gabriel Soares, como no caso específico <strong>do</strong> amen<strong>do</strong>im, apegan<strong>do</strong>-se ao fato <strong>de</strong> que apenas<br />

as índias mulheres os cultivam.<br />

Em nota explicativa 89 , Gilberto Freyre utiliza-se da fala <strong>de</strong> Gabriel Soares <strong>de</strong> Souza<br />

“a to<strong>do</strong>s os parentes da parte <strong>de</strong> pai chamava pai, e elles a ella filha...” e cruza com John<br />

Baker que afirma que em muitas” socieda<strong>de</strong>s primitivas não há palavra especial para pai ou<br />

mãe. Sob a palavra pai e mãe classificariam-se, segun<strong>do</strong> Baker, indistintamente, gran<strong>de</strong><br />

número <strong>de</strong> parentes.<br />

Segun<strong>do</strong> Gilberto Freyre, para alguns etnólogos teria havi<strong>do</strong> uma fase na vida<br />

sexual das socieda<strong>de</strong>s primitivas em que se permitia o livre intercurso das mulheres <strong>do</strong><br />

grupo, com qualquer homem <strong>do</strong> grupo oposto. Gilberto Freyre evoca crianças criadas<br />

comunitariamente. Ou seja, passa a idéia <strong>de</strong> Casamento entre grupos. Sem dúvida, a<br />

observação <strong>de</strong> Gabriel Soares, neste caso foi apropriada apenas para alinhar a obra <strong>de</strong><br />

Freyre aos <strong>de</strong>bates acadêmicos próprios <strong>de</strong> sua época.<br />

Em outra nota bibliográfica, Freyre 90 trabalha com o conceito <strong>de</strong> “choco” ou<br />

“Couva<strong>de</strong>” que segun<strong>do</strong> Freyre colocaria “o homem em situação <strong>de</strong> receber, por” <strong>do</strong>ente”,<br />

as atenções que <strong>de</strong> outra maneira caberiam só à mulher, com a qual ele se i<strong>de</strong>ntificava pelos<br />

resguar<strong>do</strong>s e cuida<strong>do</strong>s especiais que se impunha”.<br />

Para ilustrar este conceito, Freyre se apropria da seguinte fala <strong>de</strong> Gabriel Soares: “O<br />

mari<strong>do</strong> se <strong>de</strong>ita logo na re<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> está muito coberto [...] em o qual lugar o visitam seus<br />

89 FREYRE, op. cit. p.240.<br />

56


parentes amigos e lhe trazem presentes <strong>de</strong> comer e beber, e a mulher lhe faz muitos<br />

mimos”. Freyre se apropriou <strong>do</strong> capítulo CLIV <strong>do</strong> Trata<strong>do</strong> <strong>de</strong>scritivo <strong>do</strong> Brasil em 1587,<br />

contu<strong>do</strong>, tais discussões a respeito <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> “couva<strong>de</strong>” seriam pertencentes ao campo<br />

da sociologia, da psicologia freudiana <strong>do</strong> século, da antropologia ou ainda etnologia <strong>de</strong><br />

mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século XX, contexto no qual se insere a obra <strong>de</strong> Freyre.<br />

Para Gabriel Soares, homem <strong>do</strong> século XVI, as coisas seriam bem mais simples. E o<br />

autor quinhentista, interpreta tu<strong>do</strong> isto como parte das crenças culturais <strong>do</strong> Tupinambás,<br />

procuran<strong>do</strong> explicar <strong>de</strong> que maneira se constrói o raciocínio lógico por trás das crenças<br />

Tupinambás. Como po<strong>de</strong> ser conferi<strong>do</strong> abaixo em um extrato um pouco mais amplo <strong>do</strong> que<br />

aquele utiliza<strong>do</strong> por Gilberto Freyre 91 :<br />

até que seca o umbigo da criança; no qual visitam seus parentes e amigos, e lhes trazem presentes <strong>de</strong><br />

comer e beber, e a mulher lhe faz muitos mimos, enquanto o mari<strong>do</strong> está assim pari<strong>do</strong>, o qual está<br />

muito empana<strong>do</strong> para que lhe não dê o ar; e dizem que se lhe <strong>de</strong>r o ar que fará muito nojo à criança, e<br />

que se erguerem e forem ao trabalho que lhes morrerão os filhos, e eles que serão <strong>do</strong>entes da barriga;<br />

e não há quem lhes tire da cabeça que da parte da mãe não há perigo, senão da sua; porque o filho lhe<br />

saiu <strong>do</strong>s lombos, e que elas não põem da sua parte mais que terem guardada a semente no ventre<br />

on<strong>de</strong> se cria a criança.<br />

Discutin<strong>do</strong> a respeito <strong>do</strong> totemismo 92 , <strong>do</strong> animismo das socieda<strong>de</strong>s indígenas,<br />

Freyre procura ilustrar os me<strong>do</strong>s e horrores que povoavam o imaginário indígena<br />

aproprian<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> Gabriel Soares no que se refere aos homens marinhos, embora cite<br />

Gandavo e Cardim, Soares foi o escolhi<strong>do</strong> para ilustrar a “ação <strong>do</strong>s homens marinhos”,<br />

talvez pela riqueza <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes oferecida por Soares.<br />

Em nota nota bibliográfica 93 , que é referente aos homens marinhos cita<strong>do</strong>s em<br />

página anterior 94 211, Freyre procura esclarecer a respeito <strong>do</strong> ser misterioso <strong>de</strong>scrito pelos<br />

cronistas <strong>do</strong>s XVI. Para tal ele recorre ao autor <strong>de</strong> “Esboço histórico sobre a botânica e<br />

Zoologia no Brasil” publica<strong>do</strong> em São Paulo, no ano <strong>de</strong> 1929 e <strong>de</strong> autoria <strong>de</strong> Artur Neiva.<br />

Segun<strong>do</strong> Freyre, Neiva acreditava que os tais homens marinhos fosse algum<br />

“exemplar <strong>de</strong>sgarra<strong>do</strong> da Otária Jubata Foster, 1755”. Mas basta uma breve leitura <strong>do</strong><br />

capítulo CXXVII, <strong>de</strong> Trata<strong>do</strong> <strong>de</strong>scritivo <strong>do</strong> Brasil, para se verificar que tal conclusão, não<br />

tem como se encaixar na <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> Soares, que por sua vez, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser inusitada<br />

também, pois, afirma categoricamente se tratar <strong>de</strong> fantasmas ou homens marinhos. Veja em<br />

seguida na transcrição 95 :<br />

90 FREYRE, op. cit. p.246.<br />

91 SOUZA, op. cit. p. 306.<br />

92 FREYRE, op. cit. p 211.<br />

93 FREYRE, op. cit. p. 253<br />

94 FREYRE, op. cit. p.211.<br />

95 SOUZA, op. cit. p.277.<br />

57


C A P Í T U L O CXXVII<br />

Que trata <strong>do</strong>s homens marinhos.<br />

Não há dúvida senão que se encontram na Bahia e nos recôncavos <strong>de</strong>la muitos homens marinhos, a<br />

que os índios chamam pela sua língua upupiara, os quais andam pelo rio <strong>de</strong> água <strong>do</strong>ce pelo tempo <strong>do</strong><br />

verão, on<strong>de</strong> fazem muito dano aos índios pesca<strong>do</strong>res e marisca<strong>do</strong>res que andam em jangada, on<strong>de</strong> os<br />

tomam, e aos que andam pela borda da água, meti<strong>do</strong>s nela; a uns e outros apanham, e metem-nos<br />

<strong>de</strong>baixo da água, on<strong>de</strong> os afogam; os quais saem à terra com a maré vazia afoga<strong>do</strong>s e mordi<strong>do</strong>s na<br />

boca, narizes e na sua natura; e dizem outros índios pesca<strong>do</strong>res que viram tomar estes mortos que<br />

viram sobre água uma cabeça <strong>de</strong> homem lançar um braço fora <strong>de</strong>la e levar o morto; e os que isso<br />

viram se recolheram fugin<strong>do</strong> à terra assombra<strong>do</strong>s, <strong>do</strong> que ficaram tão atemoriza<strong>do</strong>s que não quiseram<br />

tornar a pescar daí a muitos dias; o que também aconteceu a alguns negros <strong>de</strong> Guiné; os quais<br />

fantasmas ou homens marinhos mataram por vezes cinco índios meus; e já aconteceu tomar um<br />

monstro <strong>de</strong>stes <strong>do</strong>is índios pesca<strong>do</strong>res <strong>de</strong> uma jangada e levarem um, e salvar-se outro tão<br />

assombra<strong>do</strong> que esteve para morrer; e alguns morrem disto. E um mestre-<strong>de</strong>-açúcar <strong>do</strong> meu engenho<br />

afirmou que olhan<strong>do</strong> da janela <strong>do</strong> engenho que está sobre o rio, e que gritavam umas negras, uma<br />

noite, que estavam lavan<strong>do</strong> umas fôrmas <strong>de</strong> açúcar, viu um vulto maior que um homem à borda da<br />

água, mas que se lançou logo nela; ao qual mestre-<strong>de</strong>-açúcar as negras disseram que aquele fantasma<br />

vinha para pegar nelas, e que aquele era o homem marinho, as quais estiveram assombradas muitos<br />

dias; e <strong>de</strong>stes acontecimentos acontecem muitos no verão, que no inverno não falta nunca nenhum<br />

negro.<br />

É importante que se note após a leitura da fonte, que Freyre se refere unicamente<br />

aos indígenas, ao passo que Gabriel Soares, faz menção também <strong>de</strong> negros e brancos (no<br />

caso ele próprio).<br />

SOBRE OS CASTIGOS CORPORAIS OU SOBRE A FALTA DELES NA<br />

EDUCAÇÃO INFANTIL DADA PELOS PAIS.<br />

Gilberto Freyre, ao dissertar sobre o uso ou não uso da violência na educação das<br />

crianças indígenas, 96 diz que por generalização po<strong>de</strong>-se afirmar que o menino indígena<br />

“crescia livre <strong>de</strong> castigos corporais e <strong>de</strong> disciplina ou materna” 97 , Freyre reforça a<br />

afirmação anterior na página seguinte <strong>de</strong> Casa-Gran<strong>de</strong> e Senzala 98 , porém o que sustenta a<br />

afirmação <strong>de</strong> Freyre são as observações <strong>de</strong> Frei Vicente <strong>do</strong> Salva<strong>do</strong>r 99 <strong>de</strong> que estaria livre a<br />

criança selvagem <strong>do</strong>” puxavante <strong>de</strong> orelha e <strong>do</strong> muxicão disciplina<strong>do</strong>r”. Segun<strong>do</strong> o Frei, até<br />

mesmo os “erros e crimes” ficariam sem castigo entre os indígenas brasileiros.<br />

96 FREYRE, op. cit. p. 208.<br />

97 FREYRE, op. cit.p. 207.<br />

98 FREYRE, op. cit. p. 208<br />

99 FREYRE, op. cit. p. 208<br />

58


Anterior à Frei Vicente é o escrito <strong>de</strong> Gabriel Soares <strong>de</strong> Souza intitula<strong>do</strong> “Trata<strong>do</strong><br />

Descritivo <strong>do</strong> Brasil em 1587”. Que foi igualmente apropria<strong>do</strong> por Freyre, e que fornece<br />

uma sustentação mais clara as afirmações <strong>de</strong>le. Para en<strong>do</strong>ssar suas afirmações, Freyre<br />

recolhe o testemunho <strong>de</strong> Gabriel Soares no seguinte trecho que ele próprio transcreve “Não<br />

dão os Tupinambás aos seus filhos nenhum castigo ou os <strong>do</strong>utrinam, nem os repreen<strong>de</strong>m<br />

por cousa que façam”. Estas observações específicas <strong>de</strong> Gabriel Soares - como bem <strong>de</strong>ve<br />

ser lembra<strong>do</strong> - se referem exclusivamente aos costumes Tupinambás.<br />

O objetivo <strong>de</strong> Freyre é <strong>de</strong>monstrar que os castigos corporais, imposição <strong>de</strong><br />

disciplina, ou ainda, a educação técnica e transmissão <strong>de</strong> valores morais, não ficariam ao<br />

encargo <strong>do</strong>s pais propriamente ditos, como era <strong>de</strong> costume nas socieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> matriz<br />

cultural européia. Mas evi<strong>de</strong>nciar a existência <strong>de</strong> tais “méto<strong>do</strong>s educativos”, cuja aplicação<br />

se dava através <strong>de</strong> “práticas sócio-culturais” que eram próprias às socieda<strong>de</strong>s indígenas. Ou<br />

seja, <strong>de</strong>terminadas práticas <strong>de</strong> natureza “pedagógica” eram prerrogativas da coletivida<strong>de</strong><br />

social e não da família no senti<strong>do</strong> estrito da palavra.<br />

SOBRE O HÁBITO DE COLOCAR NOMES EXÓTICOS NOS FILHOS.<br />

Outra recorrência <strong>de</strong> Freyre 100 à obra <strong>de</strong> Gabriel Soares <strong>de</strong> Souza para mostrar que<br />

entre os índios existia o estranho costume <strong>de</strong> dar aos filhos, nomes <strong>de</strong> animais, peixes e<br />

árvores. Conforme po<strong>de</strong> ser verifica<strong>do</strong> em “Trata<strong>do</strong> <strong>de</strong>scritivo <strong>do</strong> Brasil em 1587”, no<br />

capítulo 101 intitula<strong>do</strong>: “QUE TRATA DA CRIAÇÃO QUE OS TUPINAMBÁS DÃO AOS<br />

FILHOS E O QUE FAZEM QUANDO NASCEM”. Veja o que diz Gabriel Soares neste<br />

mesmo capítulo: “Como nascem os filhos aos tupinambás, logo lhes põem o nome que lhe<br />

parece; os quais nomes que usam entre si são <strong>de</strong> alimárias, peixes, aves, árvores,<br />

mantimentos, peças <strong>de</strong> armas, e <strong>do</strong>utras coisas diversas”.<br />

A partir <strong>do</strong> testemunho <strong>de</strong> Gabriel Soares, Freyre procura construir uma análise<br />

on<strong>de</strong> adiciona as observações <strong>de</strong> estudiosos posteriores à Gabriel Soares, no caso: Karsten,<br />

Whiffen e ainda Teo<strong>do</strong>ro Sampaio. Com o objetivo <strong>de</strong> explicar e dar um senti<strong>do</strong> cultural a<br />

esta prática observada tão corriqueira entre as tribos brasílicas. Comparan<strong>do</strong> as observações<br />

100 FREYRE, op. cit. p. 210.<br />

101 SOUZA, op. cit. pp. 306-307.<br />

59


<strong>de</strong> Gabriel Soares com as <strong>de</strong>mais análises, Freyre procura correlacionar o hábito <strong>de</strong> nomear<br />

os filhos com elementos da natureza, com as práticas e crenças <strong>de</strong> caráter animista da<br />

religiosida<strong>de</strong> indígena. Ou seja, os nomes próprios que parecem estranhos ao observa<strong>do</strong>r<br />

que possui i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural européia, faz senti<strong>do</strong> na cultura indígena e cumpre um<br />

objetivo cultural/ religioso específico. O <strong>de</strong> “tornar a pessoa repugnante aos <strong>de</strong>mônios”.<br />

Educação Franciscana x Educação Jesuítica. A utilida<strong>de</strong> e a vocação laboral <strong>do</strong>s<br />

indígenas.<br />

Em relação ao possível aproveitamento <strong>do</strong>s indígenas em ativida<strong>de</strong>s laborais, quer<br />

seja <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m intelectual ou ofício mecânico, Freyre discorre sobre os mo<strong>de</strong>los a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s<br />

por Jesuítas e Franciscanos. Freyre observa que entre os indígenas educa<strong>do</strong>s por Jesuítas<br />

houve um relativo fracasso na educação <strong>do</strong>s mesmos. Freyre atribui isto ao fato <strong>de</strong> serem os<br />

Jesuítas - os <strong>do</strong>utores e intelectuais da Igreja – que como tais tentaram, em vão, tornar os<br />

indígenas, pessoas letradas.<br />

A educação jesuítica não encontrou entre os indígenas, que só encontravam algum<br />

prazer nas ”lições <strong>de</strong> canto e música”; na “representação <strong>de</strong> milagres e autos religiosos;<br />

pela aprendizagem <strong>de</strong> um ou outro ofício manual”. Não <strong>de</strong>monstravam interesse em<br />

apren<strong>de</strong>r a contar, ler, escrever, soletrar ou rezar em latim. 102<br />

O contraponto da educação jesuítica foi a educação franciscana, em tese marcada<br />

pela simplicida<strong>de</strong> <strong>do</strong> próprio São Francisco, pela postura ante - intelectual, ante-mercantil,<br />

pela prática <strong>do</strong> ofício mecânico. Os Franciscanos buscaram transformar os índios em<br />

artífices e técnicos 103 , evitan<strong>do</strong> sobrecarregá-los com esforços mentais que os indígenas<br />

odiavam ainda mais que os trabalhos manuais. Ou seja, educar os índios para as<br />

necessida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> presente e para suas prováveis condições na socieda<strong>de</strong>, no futuro. Ainda<br />

sob o argumento <strong>do</strong> Frei franciscano Zephyrin Engelhardt, <strong>de</strong> que Cristo não dirigiu os seus<br />

apóstolos para ensinar a leitura, escrita e aritmética. Na opinião <strong>do</strong>s franciscanos – talvez<br />

uma ironia em relação aos jesuítas.<br />

102 FREYRE, op. cit. p. 214.<br />

103 FREYRE, op. cit. p. 215.<br />

60


Freyre busca em Gabriel Soares o testemunho que en<strong>do</strong>ssa sua teoria <strong>de</strong> que o<br />

mo<strong>de</strong>lo Franciscano foi mais bem sucedi<strong>do</strong> que o Jesuítico. Por dar ênfase ao ofício<br />

mecânico, aos quais os indígenas se adaptavam muito bem, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ensina<strong>do</strong>s pelos<br />

brancos. Conforme po<strong>de</strong> ser verifica<strong>do</strong> neste trecho <strong>do</strong> Trata<strong>do</strong> Descritivo <strong>do</strong> Brasil em<br />

1587: 104<br />

são também muito engenhosos para tomarem quanto lhes ensinam os brancos, como não for coisa <strong>de</strong><br />

conta, nem <strong>de</strong> senti<strong>do</strong>, porque são para isso muito bárbaros; mas para carpinteiros <strong>de</strong> macha<strong>do</strong>,<br />

serra<strong>do</strong>res, oleiros, carreiros e para to<strong>do</strong>s os ofícios <strong>de</strong> engenhos <strong>de</strong> açúcar, têm gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>stino, para<br />

saberem logo estes ofícios; e para criarem vacas têm gran<strong>de</strong> mão e cuida<strong>do</strong>.<br />

Através da leitura <strong>do</strong> trecho que o próprio autor quinhentista, já enxerga os<br />

possíveis empregos das habilida<strong>de</strong>s e aptidões <strong>do</strong>s Tupinambás na ativida<strong>de</strong> econômica, o<br />

que <strong>de</strong> certa forma combina as aptidões <strong>de</strong>monstradas pelos Tupinambás com o mo<strong>de</strong>lo<br />

franciscano. Contu<strong>do</strong>, <strong>de</strong>ve-se atentar para o fato <strong>de</strong> que o cronista <strong>do</strong> século XVI<br />

estabelece uma relação entre Franciscanos e Tupinambás, não no senti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s hábitos e<br />

habilida<strong>de</strong>s laborais, mas no senti<strong>do</strong> religioso <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar que os hábitos <strong>do</strong>s<br />

Tupinambás <strong>de</strong> certa se igualavam ao que era preconiza<strong>do</strong> pelos franciscanos em relação ao<br />

<strong>de</strong>sprendimento das coisas materiais, à experiência <strong>de</strong> compartilhar, inclusive com os<br />

inimigos, ou seja, práticas que coadunam não só com os preceitos cristãos, mas com a<br />

própria essência da vida franciscana. O cronista quis sugerir que os Tupinambás po<strong>de</strong>riam<br />

tornar-se franciscanos, por já possuírem em seus costumes culturais – ou em sua ín<strong>do</strong>le –<br />

aquilo que os franciscanos pregavam e almejavam praticar enquanto profissão <strong>de</strong> fé. Como<br />

po<strong>de</strong> ser verifica<strong>do</strong> com a leitura <strong>do</strong> seguinte extrato da obra <strong>de</strong> Gabriel Soares <strong>de</strong> Souza. 105<br />

Têm estes tupinambás uma condição muito boa para fra<strong>de</strong>s franciscanos, porque o seu fato,<br />

e quanto têm, é comum a to<strong>do</strong>s os da sua casa que querem usar <strong>de</strong>le; assim das ferramentas, que é o<br />

que mais estimam, como das suas roupas, se as têm, e <strong>do</strong> seu mantimento; os quais, quan<strong>do</strong> estão<br />

comen<strong>do</strong>, po<strong>de</strong> comer com eles quem quiser, ainda que seja contrário, sem lho impedirem nem<br />

fazerem por isso carranca.<br />

104 SOUZA, op. cit. p. 313.<br />

105 SOUZA, op. cit. p. 313.<br />

61


Sobre a mulher a indígena, no que se refere à mulher Tupinambá, Freyre faz uso das<br />

seguintes observações <strong>de</strong> Gabriel Soares: 106<br />

Também as moças <strong>de</strong>ste gentio que se criam e <strong>do</strong>utrinam com as mulheres portuguesas, tomam<br />

muito bem o cozer e lavrar, e fazem todas as obras <strong>de</strong> agulha que lhes ensinam, para o que têm muita<br />

habilida<strong>de</strong>, e para fazerem coisas <strong>do</strong>ces, e fazem-se extremadas cozinheiras; mas são muito<br />

namoradas e amigas <strong>de</strong> terem amores com os homens brancos.<br />

A partir <strong>de</strong>ste fragmento, Freyre irá construir sua tese a respeito da participação da<br />

mulher indígena na constituição da família brasileira, quer seja na condição <strong>de</strong> esposa<br />

legítima, <strong>de</strong> concubina, <strong>de</strong> ama-<strong>de</strong>-leite, <strong>de</strong> mãe <strong>de</strong> família, ou mesmo <strong>de</strong> cozinheira.<br />

Gabriel Soares fala a respeito das Tupinambás que “se criam e <strong>do</strong>utrinam com as mulheres<br />

portuguesas”, portanto <strong>de</strong> índias Tupinambás que são criadas como portuguesas, e não <strong>de</strong><br />

índias Tupinambás criadas e educadas <strong>de</strong>ntro da cultura Tupinambá.<br />

Portanto, nada mais natural que a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural <strong>de</strong>stas índias seja a mesma <strong>do</strong><br />

contexto em que foram criadas e educadas, um contexto cultural português. Mas o mesmo<br />

não ocorreria se acaso estas mulheres fossem biologicamente iguais às suecas ou às<br />

esquimós? Não seria a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> igualmente <strong>de</strong>finida pela cultura? Uma mulher que fosse<br />

<strong>de</strong> origem genética Portuguesa, criada por Tupinambás não teria hábitos da cultura<br />

Tupinambá?<br />

A substituição da mão <strong>de</strong> obra indígena pela mão <strong>de</strong> obra africana na lavoura<br />

<strong>de</strong> cana-<strong>de</strong>-açúcar e nos engenhos. O indígena, segun<strong>do</strong> Freyre, adaptou-se bem ao<br />

trabalho imposto pelos coloniza<strong>do</strong>res, nos primeiros tempos da <strong>do</strong>minação portuguesa e das<br />

invasões francesas. Os indígenas foram <strong>de</strong> fundamental importância, nas palavras <strong>de</strong><br />

Freyre: 107<br />

abater árvores, transportar os toros aos navios, granjear mantimentos, caçar, pescar, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r os<br />

senhores contra os selvagens inimigos e corsários estrangeiros, guiar os explora<strong>do</strong>res através <strong>do</strong> mato<br />

virgem – o indígena foi dan<strong>do</strong> conta <strong>do</strong> trabalho servil.<br />

106 SOUZA, op. cit. p. 313.<br />

107 FREYRE, op. cit. p.228.<br />

62


Embora, o indígena não fosse o mesmo homem livre <strong>do</strong>s primeiros tempos, essas<br />

ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> certa forma permitiam ao elemento indígena viver no ambiente que lhe era<br />

historicamente peculiar, com os hábitos singulares <strong>de</strong> sua cultura, pautada pelo nomadismo<br />

ou por um semi-nomadismo (no caso <strong>de</strong> algumas nações tupis). A caça, a pesca, a guerra, o<br />

contato com a fauna e a flora.<br />

O conjunto das práticas <strong>de</strong> trabalho impostas pelo elemento coloniza<strong>do</strong>r não<br />

promoveram o “<strong>de</strong>senraizamento” <strong>do</strong> indígena. Esse “<strong>de</strong>senraizamento”, segun<strong>do</strong> a análise<br />

<strong>de</strong> Freyre, só viria a se efetivar com a “colonização agrária, isto é, latifundiária: com a<br />

monocultura, representada principalmente pelo açúcar”.<br />

O <strong>de</strong>senvolvimento da monocultura e as novas exigências <strong>de</strong>terminadas por este<br />

regime <strong>de</strong> trabalho não encontraram ressonância no modus vivendis indígena, marca<strong>do</strong> pelo<br />

nomadismo. O índio não teria se adapta<strong>do</strong> a esta passagem brusca para o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> vida<br />

se<strong>de</strong>ntário 108 (p.230). Mostran<strong>do</strong>-se apático ou nas palavras <strong>de</strong> Freyre “envolven<strong>do</strong>-se em<br />

uma tristeza <strong>de</strong> introverti<strong>do</strong>” 109 .<br />

Os indígenas habitua<strong>do</strong>s ao trabalho esporádico, não se adaptaram ao esforço físico<br />

regular <strong>de</strong>monstran<strong>do</strong> sinais claros <strong>de</strong> <strong>de</strong>sgaste físico excessivo, causa<strong>do</strong>s não só pela<br />

mudança <strong>de</strong> regime <strong>de</strong> trabalho, mas pela própria mudança <strong>de</strong> hábitos alimentares, o que<br />

viria a promover mudanças metabólicas.<br />

Para o autor <strong>de</strong> Casa-gran<strong>de</strong> e Senzala, “o resulta<strong>do</strong> foi evi<strong>de</strong>nciar-se o índio no<br />

labor agrícola o trabalha<strong>do</strong>r banzeiro e moleirão que teve que ser substituí<strong>do</strong> pelo negro”<br />

110 . Porém, utiliza-se <strong>do</strong> testemunho <strong>de</strong> vários cronistas <strong>do</strong> século XVI, sustentar sua linha<br />

<strong>de</strong> raciocínio, evi<strong>de</strong>ncian<strong>do</strong> que a fraqueza, a preguiça, a in<strong>do</strong>lência <strong>do</strong> indígena, não era<br />

algo inato, mas algo produzi<strong>do</strong> a partir das mudanças impostas pelo sistema <strong>de</strong> plantation e<br />

pelo trabalho nos engenhos, que requeria uma mudança brusca no mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> vida indígena.<br />

Os testemunhos recolhi<strong>do</strong>s por Freyre a respeito da vitalida<strong>de</strong> física <strong>do</strong>s índios<br />

passam por Cardim, Léry e Gabriel Soares e ainda por Pero Vaz <strong>de</strong> Caminha 111 . A<br />

108 FREYRE, op. cit. p. 229.<br />

109 FREYRE, op. cit. p. 230.<br />

110 FREYRE, op. cit. p. 230.<br />

111 FREYRE, op. cit. pp.229-230.<br />

63


apropriação <strong>do</strong> testemunho <strong>de</strong> Gabriel Soares sobre os Tupinambás no Trata<strong>do</strong> Descritivo<br />

<strong>do</strong> Brasil em 1587, en<strong>do</strong>ssa completamente o pensamento Freyriano, revelan<strong>do</strong> um<br />

indígena não somente sadio, alegre e forte, mas também bem disposto para o trabalho. 112<br />

Os tupinambás são homens <strong>de</strong> meã estatura, <strong>de</strong> cor muito baça, bem feitos e bem dispostos, muito<br />

alegres <strong>do</strong> rosto, e bem assombra<strong>do</strong>s; to<strong>do</strong>s têm bons <strong>de</strong>ntes, alvos, miú<strong>do</strong>s, sem lhes nunca<br />

apodrecerem; têm as pernas bem feitas, os pés pequenos; trazem o cabelo da cabeça sempre apara<strong>do</strong>;<br />

em todas as outras partes <strong>do</strong> corpo os não consentem e os arrancam como lhes nascem; são homens<br />

<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s forças e <strong>de</strong> muito trabalho; são muito belicosos, e em sua maneira esforça<strong>do</strong>s, e para<br />

muito, ainda que atraiçoa<strong>do</strong>s; são muito amigos <strong>de</strong> novida<strong>de</strong>s, e <strong>de</strong>masiadamente luxuriosos, e<br />

gran<strong>de</strong>s caça<strong>do</strong>res e pesca<strong>do</strong>res, e amigos <strong>de</strong> lavouras.<br />

Deve-se, no entanto, notar que Freyre se apropria apenas <strong>de</strong> parte <strong>do</strong> discurso <strong>de</strong><br />

Gabriel Soares, reproduzin<strong>do</strong> em seu livro apenas o trecho “bem feitos e bem dispostos”.<br />

Toma<strong>do</strong> na íntegra estabelecer-se-ia um problema, pois, Freyre utiliza-se da categoria<br />

“indígena”, ao passo que Gabriel soares embora também se utilize esporadicamente <strong>de</strong>sta<br />

terminologia, a usa em senti<strong>do</strong> diverso (geralmente utiliza-se com freqüência o termo índio<br />

ou indígena para se referir aos índios mansos. Já semi-acultura<strong>do</strong>s).<br />

No caso específico, Gabriel Soares fala exclusivamente <strong>do</strong>s Tupinambás, sem<br />

generalizar. Ressaltan<strong>do</strong> que estes são “amigos <strong>de</strong> lavouras” 113 . O que certamente<br />

compromete a tese <strong>de</strong> Freyre, visto que hoje – sabe-se que os Tupis, já praticavam a<br />

agricultura. O que por sua vez não po<strong>de</strong> ser estendi<strong>do</strong> a to<strong>do</strong> e qualquer categoria <strong>de</strong> povos<br />

gentílicos. Visto que aqueles que os Tupis <strong>de</strong>nominavam como Tapuias, eram em sua<br />

maioria povos nôma<strong>de</strong>s, que sobreviviam apenas <strong>do</strong> que era possível extrair da natureza<br />

sem o emprego das técnicas <strong>de</strong> agricultura e da pecuária para fins <strong>de</strong> abastecimento. Estes<br />

seriam os indígenas que teoricamente se enquadrariam sem maiores ressalvas no discurso<br />

<strong>de</strong> Freyre.<br />

112 SOUZA, op. cit. p. 300.<br />

113 SOUZA, op. cit. p. 300.<br />

A prática Tupinambá <strong>de</strong> comer terra para se matar.<br />

64


Ao discorrer sobre o encontro <strong>de</strong> culturas diferentes on<strong>de</strong> a que se julga mais<br />

adiantada tenta subjugar a cultura consi<strong>de</strong>rada mais atrasada ou primitiva, Freyre recorre à<br />

Gol<strong>de</strong>nweiser, que estu<strong>do</strong>u casos <strong>de</strong> povos asiáticos, africanos e da Oceania, afirman<strong>do</strong> que<br />

as culturas mais atrasadas se <strong>de</strong>sintegram sob o jugo ou pressão das culturas mais<br />

adiantadas, o que levaria os “povos primitivos a per<strong>de</strong>r quase a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> viver”, assim<br />

como o per<strong>de</strong>m “o interesse pelos próprios valores”. Entre outras coisas isto se <strong>de</strong>ve ao fato<br />

<strong>de</strong> o dito civiliza<strong>do</strong> quebrar o equilíbrio <strong>de</strong> sua vida e alterar o seu ambiente.<br />

Em seguida Freyre cita W.H.R. Rivers, que estu<strong>do</strong>u os povos da Melanésia,<br />

chegan<strong>do</strong> a afirmar que os primitivos, chegavam a morrer <strong>de</strong> <strong>de</strong>sinteresse pela vida, ou<br />

“banzo”, nas palavras <strong>de</strong> Gilberto Freyre. Contu<strong>do</strong>, Freyre resolve dar sua própria<br />

contribuição à discussão. Neste ínterim, Freyre se apropria da parte da obra <strong>de</strong> Gabriel<br />

Soares que se refere ao hábito <strong>de</strong> alguns Tupinambás <strong>de</strong> comer terra para se matar, hábito<br />

que segun<strong>do</strong> o cronista <strong>do</strong> século XVI, teria si<strong>do</strong> ensina<strong>do</strong> aos índios pelo próprio<br />

antagonista <strong>de</strong> Deus.<br />

Se, contu<strong>do</strong>, for feita uma breve consulta à obra <strong>de</strong> Gabriel Soares, po<strong>de</strong>-se verificar<br />

que o cronista se refere à cultura Tupinambá em si, e não a uma reação <strong>do</strong>s indígenas a uma<br />

relação <strong>de</strong> subordinação ao elemento coloniza<strong>do</strong>r. Gabriel Soares fala <strong>de</strong> “pajelanças”,<br />

on<strong>de</strong> o pajé muitas vezes por motivo torpe, por ter os seus interesses contraria<strong>do</strong>s<br />

con<strong>de</strong>nam um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> indivíduo à morte, através <strong>de</strong> “pragas” e “maldições”- as quais<br />

– surtem efeito, por serem os Tupinambás muito facilmente sugestionáveis. Conforme po<strong>de</strong><br />

ser verifica<strong>do</strong> através <strong>de</strong>ste pequeno extrato <strong>do</strong> Trata<strong>do</strong> <strong>de</strong>scritivo <strong>do</strong> Brasil em 1587 usa<strong>do</strong><br />

por Freyre: 114<br />

Entre este gentio tupinambá há gran<strong>de</strong>s feiticeiros, que têm este nome entre eles, por lhes meterem<br />

em cabeça mil mentiras; os quais feiticeiros vivem em casa apartada cada um por si, a qual é muito escura e<br />

tem a porta muito pequena, pela qual não ousa ninguém entrar em sua casa, nem <strong>de</strong> lhe tocar em coisa <strong>de</strong>la; os<br />

quais, pela maior parte, não sabem nada, e para se fazerem estimar e temer tomaste ofício, por enten<strong>de</strong>rem<br />

com quanta facilida<strong>de</strong> se mete em cabeça a esta gente qualquer coisa; mas há alguns que falam com os diabos,<br />

que os espancam muitas vezes, os quais os fazem muitas vezes ficar em falta com o que dizem; pelo que não<br />

são tão cri<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s índios, como temi<strong>do</strong>s. A estes feiticeiros chamam os tupinambás pajés; os quais se<br />

escandalizam <strong>de</strong> algum índio por lhe não dar sua filha ou outra coisa que lhe pe<strong>de</strong>m, e lhe dizem: "Vai, que<br />

hás <strong>de</strong> morrer", ao que chamam "lançar a morte"; e são tão bárbaros que se vão <strong>de</strong>itar nas re<strong>de</strong>s pasma<strong>do</strong>s,<br />

sem quererem comer; e <strong>de</strong> pasmo se <strong>de</strong>ixam morrer, sem haver quem lhes possa tirar da cabeça que po<strong>de</strong>m<br />

escapar <strong>do</strong> manda<strong>do</strong> <strong>do</strong>s feiticeiros, aos quais dão alguns índios suas filhas por mulheres, com me<strong>do</strong> <strong>de</strong>les,<br />

por se assegurarem suas vidas.<br />

114 SOUZA, op. cit. p. 314.<br />

65


Ao analisar a fonte acima, cabe a pergunta... Seria isto o que Gilberto Freyre e<br />

outros autores da Historiografia brasileira <strong>de</strong>finem como banzo? Se a resposta for positiva,<br />

não se <strong>de</strong>ve estabelecer uma relação necessária entre banzo e trabalho, ou ainda <strong>de</strong> banzo<br />

com escravidão. Nem tão pouco relacionar o conceito <strong>de</strong> banzo com relações <strong>de</strong> <strong>do</strong>minação<br />

e subordinação entre povos, mas no máximo entre indivíduos pertencentes a uma mesma<br />

cultura, on<strong>de</strong> a relação <strong>de</strong> <strong>do</strong>minação se estabelece pela crença no sobrenatural.<br />

Quanto ao hábito <strong>de</strong> comer barro para morrer o cronista julga o hábito em si uma<br />

barbárie 115 , porém Soares parece enten<strong>de</strong>r que tal <strong>de</strong>cisão é <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m pessoal <strong>do</strong> indivíduo,<br />

motivada por causas emocionais. Porém, o conhecimento da técnica para acelerar o fim da<br />

própria vida, para os Tupinambás não é um conhecimento que po<strong>de</strong> ser credita<strong>do</strong> ao<br />

homem, mas credita<strong>do</strong> a forças ocultas que adquirem uma personificação. A personificação<br />

<strong>de</strong>stas forças ocultas curiosamente parece coincidir tanto no imaginário Tupinambá, quanto<br />

no imaginário judaico-cristão <strong>do</strong> cronista. Talvez por isso, Gabriel Soares julgue o ato em si<br />

uma barbárie, mas não questiona ou julga o fato <strong>de</strong> tal conhecimento, ter si<strong>do</strong> lega<strong>do</strong> aos<br />

Tupinambás, pelo próprio responsável pela danação eterna das almas. Conforme po<strong>de</strong> ser<br />

verifica<strong>do</strong> no trecho abaixo <strong>do</strong> Trata<strong>do</strong> <strong>de</strong>scritivo <strong>do</strong> Brasil em 1587. 116<br />

Muitas vezes acontece aparecer o diabo a este gentio, em lugares escuros, e os espanca <strong>de</strong><br />

que correm <strong>de</strong> pasmo; mas a outros não faz mal, e lhes dá novas <strong>de</strong> coisas sabidas. Tem este gentio<br />

outra barbaria muito gran<strong>de</strong>, que se tomam qualquer <strong>de</strong>sgosto, se anojam <strong>de</strong> maneira que <strong>de</strong>terminam<br />

<strong>de</strong> morrer; e põem-se a comer terra, cada dia uma pouca, até que vêm a <strong>de</strong>finhar e inchar <strong>do</strong> rosto e<br />

olhos, e morrer disso, sem lhe ninguém po<strong>de</strong>r valer, nem <strong>de</strong>sviar <strong>de</strong> se quererem matar; o que<br />

afirmam que lhes ensinou o diabo, e que lhes aparece, como se <strong>de</strong>terminam a comer a terra.<br />

Mais uma vez, a partir da leitura da fonte, po<strong>de</strong>-se retomar a discussão <strong>do</strong> que seria<br />

o banzo, conforme é coloca<strong>do</strong> por Gilberto Freyre. Na obra <strong>de</strong> Gabriel Soares <strong>de</strong> Souza, tal<br />

termo não aparece (provavelmente o termo não fosse emprega<strong>do</strong>, ou não fosse <strong>de</strong> uso<br />

corrente no século XVI). Ainda assim, é possível especular que o quadro <strong>de</strong>scrito por<br />

Gabriel Soares, se assemelha ao quadro clínico <strong>do</strong> que nos dias atuais (século XX-XXI) se<br />

<strong>de</strong>nomina na literatura médica e no uso vulgar – como sen<strong>do</strong> – <strong>de</strong>pressão. Seria o banzo<br />

uma palavra que no passa<strong>do</strong> era usada para <strong>de</strong>screver os sintomas que atualmente<br />

correspon<strong>de</strong>m ao termo <strong>de</strong>pressão? Mas aí cabe uma outra pergunta: Por que o chama<strong>do</strong><br />

115 SOUZA, op. cit. pp. 314-315.<br />

116 SOUZA, op. cit. pp. 314-315.<br />

66


“banzo”, só acometeria os povos <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>s, não sen<strong>do</strong> imputa<strong>do</strong> o acometimento <strong>de</strong> tal<br />

mal aos europeus e seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes americanos?<br />

Seja como for, é difícil compreen<strong>de</strong>r por quais motivos Gilberto Freyre, colocou<br />

estas observações feitas por Gabriel Soares a respeito <strong>do</strong> hábito Tupinambá <strong>de</strong> comer barro,<br />

em meio ao diálogo que ele estabelece com a produção <strong>de</strong> Gol<strong>de</strong>nweiser e <strong>de</strong> Rivers.<br />

O assunto da mestiçagem foi uma preocupação recorrente na historiografia<br />

brasileira, e Gilberto Freyre não se furta a este <strong>de</strong>bate, contu<strong>do</strong>, ao se apropriar da obra <strong>de</strong><br />

Gabriel Soares, Freyre termina por produzir interpretações da fonte, que são no mínimo<br />

in<strong>de</strong>vidas. O que só se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar através da comparação <strong>de</strong> trechos <strong>de</strong> Casa-gran<strong>de</strong><br />

e Senzala com Trata<strong>do</strong> Descritivo <strong>do</strong> Brasil em 1587. Veja o que diz Freyre: 117<br />

No Brasil, o louro transitório, o meio louro e o falso-louro são ainda mais freqüentes <strong>do</strong> que em<br />

Portugal. Mas antes <strong>de</strong> ser o Brasil o país <strong>do</strong> índio, sarará, <strong>de</strong>scrito por Gabriel Soares em crônica <strong>do</strong><br />

século XVI (4) – e mais caracteristicamente <strong>do</strong> “mulato cor-<strong>de</strong>-rosa”, como o eminente diplomata<br />

brasileiro (no caso Freyre se refere a Oliveira Viana) chamava, na intimida<strong>de</strong>, o Eça <strong>de</strong> Queiroz – Já<br />

Portugal se antecipara na produção <strong>de</strong> curiosos tipos <strong>de</strong> homem <strong>de</strong> pigmentação clara ou <strong>de</strong> cabelo<br />

ruivo, mas <strong>de</strong> lábios o ventas <strong>de</strong> negro ou ju<strong>de</strong>u.<br />

O trecho acima escrito por Gilberto Freyre, cita Gabriel Soares. Compare as<br />

palavras que Freyre imputa à Gabriel Soares, com as palavras <strong>do</strong> Próprio Gabriel Soares no<br />

Trata<strong>do</strong> Descritivo <strong>do</strong> Brasil em 1587. 118<br />

C A P Í T U L O XC<br />

Que trata <strong>de</strong> alguns bichos menores que têm asas e<br />

têm alguma semelhança <strong>de</strong> aves.<br />

Como foi força<strong>do</strong> dizer-se <strong>de</strong> todas as aves como fica dito, convém que junto <strong>de</strong>las se diga <strong>de</strong> outros<br />

bichos que têm asas e mais aparência <strong>de</strong> aves que <strong>de</strong> alimárias, ainda que sejam imundícies, e pouco<br />

proveitosas ao serviço <strong>do</strong>s homens. Comecemos logo <strong>do</strong>s gafanhotos, a que o gentio chama tacura,<br />

os quais se criam na Bahia muito gran<strong>de</strong>s, e andam muitas vezes em ban<strong>do</strong>s, os quais são da cor <strong>do</strong>s<br />

que há na Espanha, e há outros pinta<strong>do</strong>s, outros ver<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> diferentes cores, e têm maiores asas que<br />

os da Espanha, e quan<strong>do</strong> voam abrem-nas como pássaros e não são muito daninhos. Há outros<br />

bichos, a que os índios chamam tacuranda, e em Portugal sau<strong>de</strong>s, os quais são muito formosos,<br />

pinta<strong>do</strong>s e gran<strong>de</strong>s, mas não fazem mal a nada. Nas tocas das árvores se criam uns bichinhos como<br />

formigas, com asas brancas, que não saem <strong>do</strong> ninho senão <strong>de</strong>pois que chove muito, e o primeiro dia<br />

<strong>de</strong> sol, a que os índios chamam arará; e quan<strong>do</strong> saem fora é voan<strong>do</strong>; e sai tanta multidão que cobre o<br />

ar, e não torna ao lugar <strong>do</strong>n<strong>de</strong> saiu, e per<strong>de</strong>-se com o vento. As borboletas a que chamam mariposa,<br />

chamam os índios sarará; as quais andam <strong>de</strong> noite <strong>de</strong> re<strong>do</strong>r das can<strong>de</strong>ias, maior-mente em casas<br />

palhoças <strong>do</strong> mato, e em noites <strong>de</strong> escuro, e são tão perluxas às vezes que não há quem se valha com<br />

elas, porque se vêm ao rosto e dão enfadamento às ceias, porque se põem no comer, e não <strong>de</strong>ixam as<br />

can<strong>de</strong>ias dar seu lume, o que acontece em povoa<strong>do</strong>. Há outra casta <strong>de</strong> borboletas gran<strong>de</strong>s, umas<br />

brancas e outras amarelas, e outras pintadas, muito formosas à vista, a que os índios chamam<br />

117 FREYRE, op. cit. p. 281.<br />

118 SOUZA, op. cit. p. 239.<br />

67


panamá, as quais vêm às vezes <strong>de</strong> passagem no verão em tanta multidão, que cobrem o ar, e põem<br />

logo to<strong>do</strong> um dia em...<br />

Ao se comparar o trecho que foi escrito por Soares e como Freyre se apropria <strong>de</strong>le,<br />

verifica-se uma distorção significativa. Soares usa o termo sarará para se referir há uma<br />

<strong>de</strong>terminada casta <strong>de</strong> borboletas (mariposa) que os índios chamam sarará. Sarará =<br />

mariposa. Freyre utiliza-se <strong>de</strong> sarará no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> mestiço, e se apropria <strong>de</strong> Gabriel Soares<br />

para dizer que Soares afirma que existiam índios sarará, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> índio sarará = índio<br />

mestiço com características <strong>de</strong> falso louro.<br />

Na nota bibliográfica <strong>de</strong> Casa-Gran<strong>de</strong> e Senzala 119 que é referente aos índios<br />

sararás cita<strong>do</strong>s na página 281, Freyre complementa seu pensamento, mais uma vez se<br />

aproprian<strong>do</strong> <strong>de</strong> Gabriel Soares, primeiro para justificar a mestiçagem que seria explicada<br />

pela <strong>do</strong>ce poligamia em que viviam os Franceses com as mulheres Tupinambás “sem<br />

querer tomar para a França”, ou “tornar para a França” conforme grafa<strong>do</strong> em “Trata<strong>do</strong><br />

Descritivo <strong>do</strong> Brasil em 1587”. No trecho <strong>de</strong> Gabriel Soares, apropria<strong>do</strong> apenas em partes<br />

por Freyre, o próprio cronista afirma no Trata<strong>do</strong> Descritivo <strong>do</strong> Brasil em 1587 que “se<br />

inçou a terra <strong>de</strong> mamelucos”. Conforme po<strong>de</strong> ser visto abaixo: 120<br />

quan<strong>do</strong> se iam para França com suas naus carregadas <strong>de</strong> pau <strong>de</strong> tinta, algodão e pimenta, <strong>de</strong>ixavam<br />

entre os gentios alguns mancebos para apren<strong>de</strong>rem a língua e po<strong>de</strong>rem servir na terra, quan<strong>do</strong><br />

tornassem da França para lhes fazer seu resgate; os quais se amancebaram na terra, on<strong>de</strong> morreram,<br />

sem se quererem tornar para a França, e viveram como gentios com muitas mulheres, <strong>do</strong>s quais, e<br />

<strong>do</strong>s que vinham to<strong>do</strong>s os anos à Bahia e ao rio <strong>de</strong> Seregipe, em naus da França, se inçou a terra <strong>de</strong><br />

mamelucos, que nasceram, viveram e morreram como gentios; <strong>do</strong>s quais há hoje muitos seus<br />

<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes, que são louros, alvos e sar<strong>do</strong>s, e havi<strong>do</strong>s por índios tupinambás, e são mais bárbaros<br />

que eles. E não é <strong>de</strong> espantar serem estes <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>do</strong>s franceses alvos e louros, pois que saem a<br />

seus avós<br />

Em segun<strong>do</strong> lugar para afirmar que não eram comuns os louros puros entre os<br />

portugueses <strong>do</strong> século XVI, e que através da leitura <strong>do</strong> das observações <strong>do</strong> cronista também<br />

era possível verificar que os índios associavam o “louro ar<strong>de</strong>nte” aos franceses.<br />

119 FREYRE, op. cit. p. 346.<br />

120 SOUZA, op. cit. p.331.<br />

68


Para reforçar sua análise, Freyre 121 busca uma correlação <strong>de</strong> pensamento com as<br />

palavras <strong>de</strong> Hans Sta<strong>de</strong>n, que antes, já haviam si<strong>do</strong> apropriadas também por Pedro Calmon.<br />

Pois nos relatos <strong>de</strong> Hans Sta<strong>de</strong>n, constaria o seguinte testemunho: “Disseram-me que se<br />

tinha barba vermelha como os franceses, também tinham visto portugueses com igual<br />

barba, mas eles tinham geralmente barbas pretas”. “Para “Pedro Calmon “basea<strong>do</strong> na<br />

relação <strong>de</strong> Gonçalo Coelho”, os índios” distinguiam os franceses <strong>do</strong>s portugueses pela cor<br />

da barba”.<br />

É <strong>de</strong> causar certa estranheza ao leitor contemporâneo, as preocupações <strong>de</strong> Freyre em<br />

relação “à raça”, contu<strong>do</strong>, estas eram preocupações recorrentes na época em que Freyre<br />

escreveu sua obra. As categorias <strong>de</strong> análise causam ainda mais estranheza. Afinal o que<br />

seria um louro puro, ou ainda um louro transitório?<br />

Em dias atuais já se questiona a valida<strong>de</strong> <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> raça, uma construção típica<br />

<strong>do</strong> século XIX, cujas repercussões ainda se fizeram sentir com força na primeira meta<strong>de</strong> <strong>do</strong><br />

século XX. No seu tempo, Freyre ainda se valia <strong>de</strong> conceitos como braquicefalia e<br />

<strong>do</strong>licocefalia, usa<strong>do</strong>s como <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>res <strong>de</strong> características raciais. Hoje, é claro, conceitos<br />

sem valida<strong>de</strong> alguma.<br />

Uma das preocupações <strong>de</strong> Gilberto Freyre é <strong>de</strong>monstrar a riqueza e a opulência <strong>do</strong>s<br />

senhores <strong>de</strong> engenho da Bahia e <strong>de</strong> Pernambuco ainda no século XVI e XVII 122 . Segun<strong>do</strong><br />

Freyre, estes senhores viviam ro<strong>de</strong>a<strong>do</strong>s <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os “requintes <strong>de</strong> mesa e <strong>de</strong> tratamento<br />

<strong>do</strong>méstico e vestuário a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s pela Europa, no século XVI e XVII”, ainda <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com<br />

Freyre, estes atributos <strong>de</strong> europeísmo eram em verda<strong>de</strong> “requintes orientais”.<br />

A existência <strong>de</strong> tamanhos requintes em terras tão novas, po<strong>de</strong>m ser explica<strong>do</strong>s pelo<br />

fato <strong>de</strong> Bahia e Pernambuco <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito ce<strong>do</strong> estarem incluí<strong>do</strong>s nas rotas marítimas<br />

orientais. No trajeto <strong>de</strong> volta para a Europa, as naus que faziam a “Carreira das Índias”,<br />

voltavam abarratodas “<strong>de</strong> artigos refina<strong>do</strong>s e <strong>de</strong> luxo”, fazen<strong>do</strong> escala em Bahia e<br />

Pernambuco.<br />

O consumo <strong>de</strong>stes produtos no Brasil seria justifica<strong>do</strong> pela existência <strong>de</strong> vários<br />

121 FREYRE, op. cit. p. 346<br />

122 FREYRE, op. cit. p. 340.<br />

69


senhores <strong>de</strong> “grosso cabedal”, que tinham no “açúcar e no negro”, 123 a origem <strong>de</strong> sua<br />

riqueza. Aliás, Freyre enfatiza que a colonização aristocrática <strong>do</strong> Brasil, estava fundada<br />

nestes <strong>do</strong>is fatores.<br />

Para comprovar e ilustrar sua interpretação, Freyre se apropria <strong>do</strong> testemunho <strong>de</strong> um<br />

estrangeiro, Pyrard <strong>de</strong> Laval, que em princípios <strong>do</strong> século XVII, atesta a opulência e os<br />

requintes “nababescos” em que viviam os senhores <strong>de</strong> engenho <strong>do</strong> Recôncavo Baiano. Na<br />

ótica <strong>de</strong> Laval, a origem da riqueza estava no açúcar. Para ilustrar a situação <strong>de</strong><br />

Pernambuco e Bahia, Freyre apropria-se <strong>de</strong> Cardim e Gabriel Soares.<br />

No que se refere à Soares, Freyre faz acréscimos ao discurso <strong>de</strong> Soares ao afirmar<br />

através <strong>de</strong> uma assumida suposição que os “Homens <strong>de</strong> fortuna feita em açúcar e em negros<br />

<strong>de</strong>vem ter si<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s aqueles “mora<strong>do</strong>res ricos <strong>de</strong> fazendas e raiz” <strong>de</strong> que nos fala Gabriel<br />

Soares “...”“. Na verda<strong>de</strong>, Gabriel Soares jamais teceu raciocínios que estabelecessem esta<br />

correlação <strong>de</strong> fortuna com “açúcar e negros”.<br />

As preocupações <strong>de</strong> Soares (no aspecto social e econômico), estão somente<br />

relacionadas a <strong>de</strong>screver o esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> prosperida<strong>de</strong> em que se encontra às terras da<br />

Bahia. Não é à toa que a segunda parte <strong>de</strong> Trata<strong>do</strong> Descritivo <strong>do</strong> Brasil, se intitula<br />

“MEMORIAL E DECLARAÇÃO DAS GRANDEZAS DA BAHIA”. Isto po<strong>de</strong> ser<br />

verifica<strong>do</strong> através da leitura <strong>do</strong>s extratos <strong>de</strong> Trata<strong>do</strong> Descritivo <strong>do</strong> Brasil que foram<br />

li<strong>do</strong>s e em parte apropria<strong>do</strong>s por Freyre na página 124 . Confira em seguida: 125<br />

C A P Í T U L O XIII Em que se <strong>de</strong>clara o como se tratam os mora<strong>do</strong>res<br />

da cida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Salva<strong>do</strong>r, e algumas qualida<strong>de</strong>s suas.<br />

Na cida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Salva<strong>do</strong>r e seu termo há muitos mora<strong>do</strong>res ricos <strong>de</strong> fazendas <strong>de</strong> raiz, peças <strong>de</strong> prata e<br />

ouro, jaezes <strong>de</strong> cavalos e alfaias <strong>de</strong> casa, entanto que há muitos homens que têm <strong>do</strong>is e três mil<br />

cruza<strong>do</strong>s em jóias <strong>de</strong> ouro e prata lavrada. Há na Bahia mais <strong>de</strong> cem mora<strong>do</strong>res que têm cada ano <strong>de</strong><br />

mil cruza<strong>do</strong>s até cinco mil <strong>de</strong> renda, e outros que têm mais, cujas fazendas valem vinte mil até<br />

cincoenta e sessenta mil cruza<strong>do</strong>s, e davan-tagens, os quais tratam suas pessoas mui honradamente,<br />

com muitos cavalos, cria<strong>do</strong>s e escravos, e com vesti<strong>do</strong>s <strong>de</strong>masia<strong>do</strong>s, especialmente as mulheres,<br />

porque não vestem senão sedas, por a terra não ser fria, no que fazem gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>spesas, mormente<br />

entre a gente <strong>de</strong> menor condição; porque qualquer peão anda com calções e gibão <strong>de</strong> cetim ou<br />

123 FREYRE, op. cit. p. 341.<br />

124 FREYRE, op. cit. p. 341<br />

125 SOUZA, op. cit. pp. 139-140-p.149.<br />

70


Conclusão:<br />

damasco, e trazem as mulheres com vasquinhas e gibões <strong>do</strong> mesmo, os quais, como têm qualquer<br />

possibilida<strong>de</strong>, têm suas casas mui bem concertadas e na sua mesa serviço <strong>de</strong> prata, e trazem suas<br />

mulheres mui bem ataviadas <strong>de</strong> jóias <strong>de</strong> ouro.<br />

e <strong>de</strong>scen<strong>do</strong> uma légua abaixo <strong>do</strong> engenho <strong>de</strong> Cotejipe está uma ribeira que se chama <strong>do</strong> Aratu, na<br />

qual Sebastião <strong>de</strong> Faria tem feito um soberbo engenho <strong>de</strong> água, com gran<strong>de</strong>s edifícios <strong>de</strong> casas <strong>de</strong><br />

purgar e <strong>de</strong> vivenda, e uma igreja <strong>de</strong> São Jerônimo, tu<strong>do</strong> <strong>de</strong> pedra e cal, no que gastou mais <strong>de</strong> <strong>do</strong>ze<br />

mil cruza<strong>do</strong>s.<br />

Outras referências <strong>de</strong> Gabriel Soares <strong>de</strong> Souza a Sebastião <strong>de</strong> Faria que não<br />

foram citadas por Gilberto Freyre. 126<br />

on<strong>de</strong> está outro engenho <strong>de</strong> Sebastião <strong>de</strong> Faria, <strong>de</strong> duas moendas que lavram com bois, o qual tem<br />

gran<strong>de</strong>s edifícios, assim <strong>do</strong> engenho como <strong>de</strong> casas <strong>de</strong> purgar, <strong>de</strong> vivenda e <strong>de</strong> outras oficinas e tem<br />

uma formosa igreja <strong>de</strong> Nossa Senhora da Pieda<strong>de</strong>, que é freguesia <strong>de</strong>ste limite, a qual fazenda mostra<br />

tanto aparato da vista <strong>do</strong> mar que parece uma vila<br />

Deste porto <strong>de</strong> Paripe obra <strong>de</strong> quinhentas braças pela terra <strong>de</strong>ntro está outro engenho <strong>de</strong> bois que foi<br />

<strong>de</strong> Vasco Rodrigues Lobato, to<strong>do</strong> cerca<strong>do</strong> <strong>de</strong> canaviais <strong>de</strong> açúcar, <strong>de</strong> que se faz muitas arrobas.<br />

É interessante notar que o mesmo Sebastião <strong>de</strong> Faria, cita<strong>do</strong> uma vez por<br />

Freyre, é cita<strong>do</strong> por Gabriel Soares em duas oportunida<strong>de</strong>s, on<strong>de</strong> o cronista <strong>de</strong>stacalhe<br />

a riqueza, apontan<strong>do</strong> que o mesmo não é proprietário <strong>de</strong> um engenho, mas <strong>de</strong><br />

<strong>do</strong>is engenhos, em um <strong>do</strong>s quais a “fazenda mostra tanto aparato da vista <strong>do</strong> mar<br />

que parece uma vila”. Já Vasco Fernan<strong>de</strong>s Lobato, nas terras <strong>de</strong> seu antigo engenho,<br />

existe hoje um gran<strong>de</strong> bairro na periferia <strong>de</strong> Salva<strong>do</strong>r, nas proximida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> atual<br />

subúrbio <strong>de</strong> Paripe, outro bairro gran<strong>de</strong> e povoa<strong>do</strong> da capital baiana. O que<br />

<strong>de</strong>monstra o po<strong>de</strong>rio econômico <strong>de</strong>stes senhores <strong>do</strong> século XVI.<br />

A partir <strong>de</strong> uma leitura prévia <strong>de</strong> Casa-Gran<strong>de</strong> e Senzala, teve-se a impressão <strong>de</strong><br />

que Freyre sustentava boa parte <strong>de</strong> sua obra em Gabriel Soares, utiliza<strong>do</strong> para referendar<br />

suas teses, e para contrapor argumentos <strong>de</strong> outros estudiosos e informações contidas em<br />

outras fontes primárias, ou ainda, preencher <strong>de</strong>terminadas lacunas na ausência <strong>de</strong> outra<br />

<strong>do</strong>cumentação disponível. Aparentemente, através das primeiras leituras, ficou a impressão<br />

<strong>de</strong> que Freyre era um <strong>do</strong>s autores que se valia <strong>do</strong>s escritos <strong>de</strong> Gabriel Soares com mais<br />

rigor, atribuin<strong>do</strong>-lhe as i<strong>de</strong>ias e conhecimentos que são normalmente atribuídas ao senso<br />

comum em <strong>de</strong>trimento <strong>de</strong> existir autoria, toman<strong>do</strong>-o como testemunho preferencial, e<br />

126 SOUZA, op. cit. pp. 149-147.<br />

71


sempre reproduzin<strong>do</strong> o discurso <strong>do</strong> autor quinhentista em conformida<strong>de</strong> com o próprio teor<br />

da obra Trata<strong>do</strong> Descritivo <strong>do</strong> Brasil.<br />

Após uma pesquisa mais aprofundada, comparan<strong>do</strong> as duas obras, chegou-se à<br />

conclusão <strong>de</strong> que boa parte da hipótese inicial se confirmava, porém, em <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s<br />

passagens, Freyre recortava trechos que entravam em conformida<strong>de</strong> com sua teoria e omitia<br />

trechos correlatos <strong>de</strong> Gabriel Soares que comprometiam a vali<strong>de</strong>z <strong>de</strong> seu discurso. E por<br />

fim, valia-se <strong>de</strong> polissemias para atribuir a Gabriel Soares conclusões que eram apenas<br />

suas.<br />

72


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