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a sociedade portuguesa da segunda metade do século xviii

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ<br />

PEDRO HENRIQUE CARRILHO FERREIRA<br />

A SOCIEDADE PORTUGUESA DA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVIII-<br />

DÁDIVA E HIERARQUIA NOS TEXTOS TEATRAIS DA ÉPOCA<br />

CURITIBA<br />

2010


PEDRO HENRIQUE CARRILHO FERREIRA<br />

A SOCIEDADE PORTUGUESA DA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVIII-<br />

DÁDIVA E HIERARQUIA NOS TEXTOS TEATRAIS DA ÉPOCA<br />

Monografia apresenta<strong>da</strong> à disciplina de Estágio<br />

Supervisiona<strong>do</strong> em Pesquisa Histórica como<br />

requisito à conclusão <strong>do</strong> Curso de Bacharela<strong>do</strong><br />

com Licenciatura em História, Setor de<br />

Ciências Humanas, Letras e Artes <strong>da</strong><br />

Universi<strong>da</strong>de Federal <strong>do</strong> Paraná<br />

Orienta<strong>do</strong>r: Prof. Dr. Magnus Roberto de Mello<br />

Pereira<br />

CURITIBA<br />

2010<br />

2


RESUMO<br />

O estu<strong>do</strong> apresenta<strong>do</strong> trata <strong>da</strong> análise de algumas estruturas <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>do</strong><br />

Antigo Regime em Portugal, com enfoque principal na dádiva e na hierarquia,<br />

para que se possa entender o funcionamento desta <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>. O conceito de<br />

representação, como defini<strong>do</strong> por Roger Chartier, norteava as interações<br />

sociais, e sen<strong>do</strong> assim, o “estar em público” era um palco, e os indivíduos, os<br />

atores. A hierarquia estava presente em to<strong>da</strong>s as expressões <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>do</strong><br />

Antigo Regime, e a dádiva era o instrumento com que as relações se tornavam<br />

possíveis. Era a “economia <strong>da</strong> dádiva”, uma troca estabeleci<strong>da</strong> entre <strong>do</strong>is<br />

indivíduos: de um la<strong>do</strong> havia os serviços, presta<strong>do</strong>s por um indivíduo de classe<br />

hierárquica inferior, e <strong>do</strong> outro, as recompensas, concedi<strong>da</strong> pelo indivíduo mais<br />

alto <strong>da</strong> escala social. Nas peças de teatro utiliza<strong>da</strong>s como fontes para a análise<br />

destas estruturas, observa-se como as interações se desenvolviam na prática,<br />

no âmbito <strong>da</strong>s relações entre patrão-cria<strong>do</strong>, pai-filho e mari<strong>do</strong>-esposa. Peças<br />

de teatro, em especial o entremez, fornecem informações valiosas a respeito<br />

<strong>da</strong> mentali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>do</strong> Antigo Regime por serem idealiza<strong>da</strong>s e<br />

direciona<strong>da</strong>s a um público espontâneo e influenciável, além de representar o<br />

cotidiano vivi<strong>do</strong> por ele.<br />

Palavras-chave: Antigo Regime Português. Dádiva e Hierarquia. Peças de<br />

Teatro<br />

3


ABSTRACT<br />

The study presented deals with the analysis of some structures of the Ancien<br />

Régime on Portugal, with main focus on the gift and the hierarchy, so that it’s<br />

possible to understand how this society worked. The concept of representation,<br />

as defined by Roger Chartier, guided the social interactions, and being like this,<br />

the “being in public” was a theater stage, and the individuals, the actors. The<br />

hierarchy was present in all the expressions of the Ancien Régime society, and<br />

the gift was the instrument that made the social relationships possible. It was<br />

the “economy of the gift”, an exchange established between two individuals: on<br />

one side there was the services, conceded by an individual inferior on the<br />

social hierarchy, and on the other side, there was the rewards, conceded by an<br />

individual higher on social scale. In the theater screenplays used as sources<br />

used to the analysis of these structures, there is a realization of how these<br />

interactions developed in practice, in the <strong>do</strong>main of the relationships between<br />

lord-servant, father-son and husband-wife. Theater screenplays, especially the<br />

entremez, give valuable information about the mentality of the Ancien Régime<br />

society, because they’re idealized and directed to a spontaneous and<br />

influenceable public, besides representing the <strong>da</strong>ily life of it.<br />

Keywords: Portuguese Ancién Regime. Gift and Hierarchy. Theater<br />

Screenplays.<br />

4


SUMÁRIO<br />

1 INTRODUÇÃO................................................................................................6<br />

2 A SOCIEDADE DO ANTIGO REGIME PORTUGUÊS..................................10<br />

2.1 Disposições gerais......................................................................................10<br />

2.2 O papel <strong>da</strong> representação: o corpo e a voz................................................11<br />

2.3 O que é a representação?..........................................................................13<br />

2.4 A representação em <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>s de Antigo Regime...................................16<br />

2.5 O teatro e o “estar em público”...................................................................18<br />

2.6 As relações de poder e <strong>do</strong>minação <strong>da</strong>s classes sociais <strong>do</strong> Antigo regime:<br />

visão geral.........................................................................................................21<br />

2.7 As instituições de Portugal no <strong>século</strong> XVIII: o casamento e a condição<br />

feminina.............................................................................................................23<br />

2.8 As instituições de Portugal no <strong>século</strong> XVIII: o conceito de<br />

família................................................................................................................27<br />

2.9 O papel e o significa<strong>do</strong> <strong>do</strong>s serviçais nas relações sociais <strong>da</strong>s <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>s<br />

<strong>do</strong> Antigo Regime..............................................................................................29<br />

2.10 As estruturas <strong>da</strong> honra e <strong>da</strong> dádiva nas <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>s <strong>do</strong> Antigo Regime...30<br />

3 AS CARACTERÍSTICAS DO TEATRO PORTUGUÊS DO SÉCULO XVIII..37<br />

3.1 A formação <strong>do</strong> conceito de teatro como elemento <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> de Antigo<br />

Regime <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII, em Portugal e na Europa...........................................36<br />

3.2 O funcionamento <strong>do</strong> espaço teatral no Antigo Regime...............................41<br />

3.3 As especifici<strong>da</strong>des <strong>do</strong> teatro português......................................................46<br />

3.4 As estruturas <strong>da</strong> dádiva e <strong>da</strong> hierarquia como retrata<strong>da</strong>s nas peças<br />

teatrais...............................................................................................................53<br />

4 CONCLUSÃO................................................................................................62<br />

FONTES............................................................................................................65<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................66<br />

5


1 INTRODUÇÃO<br />

Este estu<strong>do</strong> propõe uma análise de certos aspectos relativos à<br />

<strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>portuguesa</strong> <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> <strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII, e por isto, <strong>do</strong> Antigo<br />

Regime. Estes aspectos se referem aos conceitos de hierarquia e de dádiva, e<br />

serão usa<strong>da</strong>s peças de teatro como fontes para ilustrar e deixar chegar a<br />

conclusões sobre a maneira de como estavam estabeleci<strong>do</strong>s na <strong>socie<strong>da</strong>de</strong><br />

<strong>portuguesa</strong> <strong>da</strong> época.<br />

O teatro era, no <strong>século</strong> XVIII, uma <strong>da</strong>s principais fontes de divertimento<br />

procura<strong>da</strong> pela população <strong>do</strong> Antigo Regime. Documentos <strong>da</strong> época ora<br />

condenam esta forma de entretenimento, ora a elogiam. Segun<strong>do</strong> Norbert<br />

Elias, o teatro tinha, na época, um grande apelo emocional para o público, e<br />

por isso, poderia exercer uma grande influência sobre ele.<br />

Saben<strong>do</strong>-se disso, e se for considera<strong>da</strong> que a <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>do</strong> Antigo<br />

Regime era volta<strong>da</strong> para a forte hierarquização <strong>da</strong>s classes sociais e <strong>do</strong><br />

respeito por esta estrutura, é assinala<strong>do</strong> de que o teatro poderia ser usa<strong>do</strong><br />

como instrumento de <strong>do</strong>minação pelas classes <strong>do</strong>minantes. O entremez, por<br />

sua vez, era um tipo de peça teatral que, retratan<strong>do</strong> situações cotidianas <strong>da</strong><br />

<strong>socie<strong>da</strong>de</strong>, tinha um apelo mais abrangente a respeito de quem o assistia.<br />

O teatro não é uma interpretação fiel <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, mas sim uma<br />

idealização <strong>do</strong> que se refere à promoção de valores que deveriam ser<br />

observa<strong>do</strong>s pelas cama<strong>da</strong>s <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>. Nota-se que os enre<strong>do</strong>s de peças<br />

publica<strong>da</strong>s na época apresentam muitas vezes os personagens como ten<strong>do</strong><br />

intenção de fazer ações que eram reprova<strong>da</strong>s pela <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> em que viviam.<br />

Por exemplo, uma personagem que resolvesse não obedecer seu pai desafiava<br />

as ordens hierárquicas estabeleci<strong>da</strong>s pela <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> e seu desafio era sujeito<br />

de conflitos com outros personagens e de reprovação por conta <strong>do</strong> próprio<br />

enre<strong>do</strong>, que tratava de demonizar o comportamento fora <strong>da</strong> ordem. O final<br />

destas peças era previsível: o personagem que tinha ousa<strong>do</strong> desafiar as<br />

estruturas se arrependia e pedia perdão, e assim voltava para a conduta<br />

padrão, que se esperava dele. Neste tipo de enre<strong>do</strong>, que será exemplifica<strong>do</strong><br />

adiante, notam-se as duas estruturas de que o tema deste trabalho pretende<br />

analisar: a hierarquia, revela<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> o tal personagem desafiou uma ordem<br />

6


estabeleci<strong>da</strong> superior e a dádiva, esta muito óbvia, representa<strong>da</strong> pelo perdão<br />

recebi<strong>do</strong> pelo personagem após se redimir de seu desafio.<br />

De qualquer forma o desafio às estruturas <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>do</strong> Antigo<br />

Regime parece ser bastante comum, e isto levanta dúvi<strong>da</strong>s sobre a<br />

mentali<strong>da</strong>de vigente na época. Um fator importante que deve ser leva<strong>do</strong> em<br />

conta ao se estu<strong>da</strong>r este tipo de <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> é o conceito de representação,<br />

como determina<strong>do</strong> por Roger Chartier. Este conceito não se refere ao teatro,<br />

mas pode ser relaciona<strong>do</strong> à ele, como Richard Sennett apontou, “a vi<strong>da</strong> como<br />

um teatro”.<br />

Para que se possa entender o funcionamento <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>do</strong> Antigo<br />

Regime em Portugal, é preciso fazer uma análise <strong>da</strong>s estruturas que compõem<br />

esta <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>, e inclusive <strong>da</strong>s duas estruturas propostas no tema, a dádiva e<br />

a hierarquia. O objetivo é identificá-las e ressaltar sua importância no<br />

funcionamento <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> em questão, ou seja, de que mo<strong>do</strong><br />

elas se estabeleciam nas relações sociais entre indivíduos, até que ponto eles<br />

valorizavam estas estruturas.<br />

A <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>do</strong> Antigo Regime aqui analisa<strong>da</strong> é aquela <strong>da</strong> segun<strong>da</strong><br />

<strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII, um perío<strong>do</strong> de transformações, quan<strong>do</strong> as estruturas<br />

que compunham a <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> estavam começan<strong>do</strong> a <strong>da</strong>r espaço à novas<br />

ideias e novos costumes, um perío<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> a aristocracia estava em plena<br />

decadência e totalmente dependente <strong>do</strong> rei, e também uma época em que a<br />

burguesia ascendia rapi<strong>da</strong>mente, reivindican<strong>do</strong> privilégios e liber<strong>da</strong>des para si.<br />

Ao mesmo tempo havia uma disposição em manter o status quo, já que não<br />

interessava nem à burguesia nem à Corte que as “massas” se levantassem.<br />

Em outras palavras, o recorte histórico seleciona<strong>do</strong> para a pesquisa foi a última<br />

época em que as estruturas <strong>do</strong> Antigo Regime preponderaram nas <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>s<br />

européias. Em breve, a Revolução Francesa e as Guerras Napoleônicas<br />

sacudiriam a Europa e transformariam suas <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>s para sempre, mesmo<br />

aquelas mais conserva<strong>do</strong>ras.<br />

Portugal era uma destas <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>s que era bem mais conserva<strong>do</strong>ra <strong>do</strong><br />

que a <strong>da</strong> França ou <strong>da</strong> Inglaterra, por exemplo. Por isso relutava muito mais a<br />

aceitar as mu<strong>da</strong>nças <strong>da</strong> nova época <strong>do</strong> que outras <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>s européias <strong>do</strong><br />

perío<strong>do</strong>. Isto não quer dizer, contu<strong>do</strong>, que Portugal passou incólume às<br />

transformações. A <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>portuguesa</strong> tinha, assim, como outras <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>s<br />

7


<strong>do</strong> perío<strong>do</strong>, muita curiosi<strong>da</strong>de em relação às novas mo<strong>da</strong>s e novos costumes,<br />

embora os tratasse com muito mais desconfiança <strong>do</strong> que outras <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>s.<br />

Prova disso é a forma de como estas novas “ideias” eram retrata<strong>da</strong>s no teatro<br />

português, quase sempre negativamente, como “destrui<strong>do</strong>ras de famílias e de<br />

reputações”.<br />

Os arquétipos presentes no teatro <strong>do</strong> Antigo Regime eram figuras que<br />

representavam determina<strong>do</strong>s setores <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>, sen<strong>do</strong> familiares ao<br />

público que o assistia. Deste mo<strong>do</strong>, tornava-se possível que o público se<br />

identificasse com o que o que ocorria no palco. Existia, por exemplo, o<br />

personagem <strong>do</strong> cria<strong>do</strong>, <strong>do</strong> pai, <strong>da</strong> filha, <strong>do</strong> amante, <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>. Eram<br />

personagens que se relacionavam ao tipo de indivíduos que se relacionavam<br />

em sua vi<strong>da</strong> cotidiana, bem como aqueles para quem construíam sua estrutura<br />

social para li<strong>da</strong>r com eles.<br />

O que se pretende nesta pesquisa, para que se enten<strong>da</strong> de que<br />

estruturas se procura depreender <strong>da</strong> amostra seleciona<strong>da</strong> de peças teatrais, é<br />

primeiro evidenciar o que eram estas estruturas, que importância tinham na<br />

<strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>do</strong> Antigo Regime, <strong>da</strong>n<strong>do</strong> atenção especial à <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>portuguesa</strong><br />

deste perío<strong>do</strong>. A meta é se aprofun<strong>da</strong>r no papel <strong>da</strong> representação; sobre o<br />

“estar em público”; sobre como a forte hierarquização desta <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> se<br />

desenvolvia, levan<strong>do</strong> em conta algumas instituições importantes como a<br />

família, o casamento e o ambiente priva<strong>do</strong> <strong>da</strong> residência; e sobre que<br />

significa<strong>do</strong> e importância o conceito de dádiva possuía nesta <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>.<br />

Em segui<strong>da</strong>, se faz uma apresentação sobre o que era o teatro para<br />

uma <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>do</strong> Antigo Regime, e de que maneira estava estabeleci<strong>do</strong> nesta<br />

<strong>socie<strong>da</strong>de</strong>, como também quais eram suas características, como funcionava,<br />

quem era seu público e como ele se comportava, assim como porque o<br />

entremez é o tipo mais adequa<strong>do</strong> de peça para análise neste tipo de pesquisa.<br />

Destacar-se-á, evidentemente, as particulari<strong>da</strong>des <strong>do</strong> teatro português, já que<br />

o seu público tinha características próprias um pouco diferentes <strong>da</strong>quelas de<br />

outros países europeus.<br />

Pretende-se usar a amostra de peças teatrais como exemplo prático <strong>da</strong>s<br />

relações sociais <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> em questão. Assim, se tornará possível saber<br />

até que ponto elas podem ser utiliza<strong>da</strong>s para que se possa construir uma<br />

hipótese sobre o funcionamento e as estruturas <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>do</strong> Antigo<br />

8


Regime. Ao comparar as informações forneci<strong>da</strong>s por textos teóricos com<br />

aquelas depreendi<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s peças, será possível fazer esta análise.<br />

Basicamente, ao mesmo tempo de que as peças servem como fonte para a<br />

pesquisa, procura-se provar a sua importância e a sua relevância para a<br />

análise <strong>da</strong>s estruturas <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> em questão. Ou seja, como as relações<br />

de poder, e conceitos como a dádiva e a hierarquia, eram retrata<strong>da</strong>s nestas<br />

peças, e como este retrato contribui com informações importantes sobre a<br />

<strong>socie<strong>da</strong>de</strong> pesquisa<strong>da</strong>.<br />

9


2 A SOCIEDADE DO ANTIGO REGIME PORTUGUÊS<br />

2.1 Disposições gerais<br />

A <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> de Portugal na segun<strong>da</strong> <strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII é defini<strong>da</strong><br />

como uma época onde a <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> era fortemente hierarquiza<strong>da</strong>, e os<br />

elementos 1 que a compunham deveriam atuar de forma a manter o regime<br />

funcionan<strong>do</strong> corretamente. Qualquer alteração no comportamento de qualquer<br />

parte constituinte <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> fazia surgir temores de subversão e <strong>da</strong> ruína <strong>da</strong><br />

situação estabeleci<strong>da</strong>. 2 Em to<strong>do</strong> caso, a mu<strong>da</strong>nça de comportamento ocorri<strong>da</strong><br />

na época afetou as diversas classes sociais, inclusive com, e por causa, <strong>da</strong><br />

ascensão de algumas delas, como a burguesia, à níveis antes impensáveis. A<br />

mu<strong>da</strong>nça, de maior parte, não afetou a aristocracia. 3 Esta continuou com seu<br />

antigo comportamento e antigas relações. Torna-se óbvio o motivo de que<br />

temia pela mu<strong>da</strong>nça <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>.<br />

O que poderia ser entendi<strong>do</strong> como subversão incluía o vestuário,<br />

haven<strong>do</strong> autores que, ao analisar esta <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>, chegaram à conclusão de<br />

que mu<strong>da</strong>nças ocorri<strong>da</strong>s no vestuário masculino e no feminino na segun<strong>da</strong><br />

<strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII causaram uma forma de subversão por parte <strong>da</strong>s<br />

mulheres. 4 No que se refere à diferença <strong>do</strong> vestuário entre as classes sociais,<br />

Richard Sennett, indica que em uma <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>do</strong> Antigo Regime o próprio<br />

corpo <strong>do</strong>s indivíduos era como se fosse um manequim, 5 e as vestes eram um<br />

grande indicativo sobre o papel que ca<strong>da</strong> indivíduo representava na <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>.<br />

Desta maneira, havia limitações no que as diferentes classes sociais deveriam<br />

vestir. Isso porque se um comerciante vestisse o mesmo tipo de roupa que um<br />

nobre, ele estaria, de alguma forma, tentan<strong>do</strong> se igualar ao nobre. Em uma<br />

<strong>socie<strong>da</strong>de</strong> tão hierarquiza<strong>da</strong>, isto não era bem visto, principalmente para as<br />

classes <strong>do</strong>minantes. Porém, para o que tinha um status inferior, vestir-se de<br />

1<br />

Sobre os tais elementos, eles podiam incluir as diferentes classes sociais, os papéis <strong>do</strong>s sexos, e as<br />

formas de relações que deveriam ser estabeleci<strong>da</strong>s entre as partes.<br />

2<br />

LOPES, M. A. Mulheres, espaço e sociabili<strong>da</strong>de, Coleção Horizonte Histórico, livros Horizonte,<br />

Lisboa, 1989, p. 80<br />

3<br />

Ibidem. ps. 112-113<br />

4<br />

Ibidem, p. 83<br />

5<br />

SENNETT, R. O declínio <strong>do</strong> homem público, as tiranias <strong>da</strong> intimi<strong>da</strong>de, São Paulo, 1988, p. 99<br />

10


maneira a parecer que pertencesse a uma classe superior era uma idéia que<br />

entusiasmava. 6<br />

Consideran<strong>do</strong> que a <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>do</strong> Antigo Regime baseava suas<br />

relações sociais nas aparências, 7 e que os homens eram, em público, o que<br />

representavam, é natural que aparecesse este tipo de situação “subversiva”.<br />

Leis foram promulga<strong>da</strong>s para tentar controlar o vestuário <strong>da</strong>s classes sociais,<br />

mas tais leis nunca foram rigi<strong>da</strong>mente observa<strong>da</strong>s, 8 possibilitan<strong>do</strong> que as<br />

classes sociais desafiassem os papeis impostos à elas pela <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>.<br />

2.2 O papel <strong>da</strong> representação: o corpo e a voz<br />

Para entender o papel <strong>do</strong> teatro em uma <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>do</strong> Antigo Regime, é<br />

necessário entender o papel de como a representação era estabeleci<strong>da</strong> nesta<br />

<strong>socie<strong>da</strong>de</strong>. Como já foi menciona<strong>do</strong>, a <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> em questão era basea<strong>da</strong> nas<br />

aparências. E é desta concepção que se deve partir para que se possa<br />

entender o conceito de representação. Sennett fez uma grande discussão em<br />

torno <strong>da</strong> questão, centra<strong>da</strong> na <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> mais conheci<strong>da</strong> e mais importante <strong>do</strong><br />

perío<strong>do</strong> em questão, a francesa. O estu<strong>do</strong> aqui proposto faz uma discussão em<br />

torno <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>portuguesa</strong>. Por isso, a<strong>da</strong>ptações de outros autores se<br />

mostram necessárias para levar a discussão proposta por Sennett até a<br />

<strong>socie<strong>da</strong>de</strong> em questão, embora ambas sejam <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>s <strong>do</strong> Antigo Regime, e<br />

portanto, com características muito similares. 9<br />

Sennett observou que na <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> urbana européia <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII, os<br />

encontros sociais deveriam ser necessariamente significativos. 10 Isto significa<br />

que os indivíduos deveriam representar um papel ao se relacionarem com<br />

outros no plano público de suas vi<strong>da</strong>s. Isto criava códigos de credibili<strong>da</strong>de que<br />

eliminavam a necessi<strong>da</strong>de de ter que se definir uns para os outros. 11 Os<br />

códigos de credibili<strong>da</strong>de tinham que ser estabeleci<strong>do</strong>s nas relações de to<strong>da</strong>s as<br />

classes sociais, mas eram sobretu<strong>do</strong> imprescindíveis ao se relacionar com os<br />

“iguais”. O fi<strong>da</strong>lgo deveria representar o papel de fi<strong>da</strong>lgo, o rico comerciante de<br />

6 SENNETT, R. O declínio <strong>do</strong> homem público, as tiranias <strong>da</strong> intimi<strong>da</strong>de, São Paulo, 1988, p. 91<br />

7<br />

Ibidem, p. 92<br />

8<br />

Idem<br />

9<br />

Ibidem, p.88<br />

10<br />

Idem<br />

11<br />

Idem<br />

11


ico comerciante e assim por diante. A credibili<strong>da</strong>de tinha ligação com <strong>do</strong>is<br />

princípios, o corpo e a voz.<br />

A importância <strong>da</strong> voz no processo de estabelecimento <strong>da</strong> representação<br />

<strong>do</strong>s indivíduos estava liga<strong>da</strong> ao discurso. Dirigir-se a alguém, relatan<strong>do</strong> um<br />

acontecimento, não sensibilizava ninguém, a menos que o sujeito se<br />

expressasse de uma forma significativa, como um ator o faria no teatro. 12 O<br />

discurso não era natural, ele era expressivo, e portanto, artificial.<br />

O papel desempenha<strong>do</strong> pelo corpo, como já menciona<strong>do</strong>, era o de um<br />

manequim, pelo qual era construí<strong>da</strong> uma representação. No <strong>século</strong> XVII, o<br />

vestuário era bem demarca<strong>do</strong> para as classes sociais, mas no <strong>século</strong> XVIII<br />

apareceram novos ofícios, e, com isso, novas classes sociais. 13 Isso gerava<br />

problemas, como o que os representantes destas novas classes deveriam<br />

vestir, que papel iriam representar na <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>? Elas acabaram por a<strong>do</strong>tar<br />

estilos de vestuário de outras classes preexistentes, as mais altas possíveis. 14<br />

As aparências, fun<strong>da</strong>mentais para o estabelecimento de relações na <strong>socie<strong>da</strong>de</strong><br />

em questão, ficavam difusas, pois se as novas classes que apareciam usavam<br />

roupas que pertenciam a classes que já existiam, e não se enquadravam nelas,<br />

não se podia saber com quem se estava tratan<strong>do</strong>.<br />

Saben<strong>do</strong>-se disso, percebe-se que o corpo propriamente dito não era<br />

importante, mas sim o que se podia fazer com ele, o que se podia representar<br />

com ele. Isto se mostra ain<strong>da</strong> mais evidente ao se considerar o fato de que<br />

muita maquiagem era utiliza<strong>da</strong> para aumentar a representação <strong>do</strong> corpo. A<br />

personali<strong>da</strong>de individual não tinha valor, o que interessava aos sujeitos era se<br />

tornarem representações <strong>da</strong> classe a que pertenciam. 15 Saben<strong>do</strong> <strong>da</strong>s<br />

características que esperavam que as classes sociais possuíssem, os<br />

indivíduos de classe respeitável tentavam se aproximar <strong>do</strong> arquétipo. O foco<br />

era nas vestes, nos adereços (sobretu<strong>do</strong>, os <strong>do</strong> cabelo) e na maquiagem. Os<br />

indivíduos de classes não tão respeitáveis, como já cita<strong>do</strong>, apesar de impostos<br />

a uma representativi<strong>da</strong>de defini<strong>da</strong> por lei, tentavam emular as características<br />

<strong>da</strong>s classes superiores, para assumirem um papel mais marcante na<br />

<strong>socie<strong>da</strong>de</strong>.<br />

12 SENNETT, R. O declínio <strong>do</strong> homem público, as tiranias <strong>da</strong> intimi<strong>da</strong>de, São Paulo, 1988, p.99<br />

13 Ibidem, p. 92<br />

14 Ibidem. p. 94<br />

15 Ibidem. p.95<br />

12


Segun<strong>do</strong> A. C. Martins, se for olha<strong>da</strong> a questão <strong>do</strong> vestuário pelo prisma<br />

<strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>portuguesa</strong>, deve-se levar em conta o conceito <strong>da</strong> “mo<strong>da</strong><br />

francesa”. Sen<strong>do</strong> matriz <strong>da</strong>s <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>s de Antigo Regime, a <strong>socie<strong>da</strong>de</strong><br />

francesa passou valores, que incluíam o vestuário, que estimulavam outras<br />

<strong>socie<strong>da</strong>de</strong>s <strong>do</strong> mesmo tipo a copiarem estes valores e definirem-nos como<br />

parte integrante <strong>do</strong> comportamento <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>. No caso de Portugal não foi<br />

diferente, ten<strong>do</strong> a França grande influência no comportamento <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>do</strong><br />

país. O teatro de estilo francês, por exemplo, de acor<strong>do</strong> com Martins, penetrou<br />

na cultura <strong>portuguesa</strong> no <strong>século</strong> XVIII, e já era um exemplo tardio desta<br />

influência. 16 Mas pode-se perceber também uma certa desconfiança por parte<br />

<strong>do</strong>s portugueses em relação a certos costumes. Lopes notou, por exemplo, que<br />

os portugueses reprovavam a liber<strong>da</strong>de <strong>da</strong><strong>da</strong> às mulheres francesas. 17 O teatro<br />

também pode ser usa<strong>do</strong> para ilustrar essa questão, pois os textos originais<br />

franceses eram “a<strong>da</strong>pta<strong>do</strong>s” à reali<strong>da</strong>de <strong>portuguesa</strong>, ou seja, altera<strong>do</strong>s,<br />

destituí<strong>do</strong>s de qualquer material que contrariasse o modelo <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> de<br />

Portugal. 18<br />

2.3 O que é a representação?<br />

Roger Chartier observou que a representação estava presente nos<br />

instrumentos de <strong>do</strong>minação utiliza<strong>do</strong>s pelos soberanos <strong>do</strong> Antigo Regime.<br />

Segun<strong>do</strong> ele, a força que fazia funcionar o sistema hierárquico não era<br />

demonstra<strong>da</strong> abertamente, mas sim de forma representativa, ou seja, houve<br />

uma multiplicação <strong>do</strong>s dispositivos que a potencializavam (marchas militares,<br />

me<strong>da</strong>lhas, louvores, narrativas, etc.), no senti<strong>do</strong> de produzir a obediência e a<br />

submissão sem apelo à violência física direta – é a <strong>do</strong>minação simbólica. 19<br />

Para entender as idéias que Chartier propôs sobre o conceito de<br />

representações coletivas, Francismar Carvalho observa que:<br />

16<br />

MARTINS, A. C. Pombal e Molière. In: _____. Revista de História <strong>da</strong>s idéias. Volume 4. tomo II. O<br />

marquês de Pombal e o seu tempo. Coimbra. 1982-1983. p. 291<br />

17<br />

LOPES, M. A. Mulheres, espaço e sociabili<strong>da</strong>de, Coleção Horizonte Histórico, livros Horizonte,<br />

Lisboa, 1989, p. 69.<br />

18<br />

MARTINS, A. C. Pombal e Molière. In: _____. Revista de História <strong>da</strong>s idéias. Volume 4. tomo II. O<br />

marquês de Pombal e o seu tempo. Coimbra. 1982-1983. p. 316<br />

19<br />

CHARTIER. R. O mun<strong>do</strong> como representação. In: _____. À beira <strong>da</strong> falésia: a história entre<br />

incertezas e inquietude. Porto Alegre: Ed. Universi<strong>da</strong>de/UFRGS, 2002, p. 68<br />

13


As representações são variáveis segun<strong>do</strong> as disposições <strong>do</strong>s grupos<br />

ou classes sociais; aspiram à universali<strong>da</strong>de, mas são sempre<br />

determina<strong>da</strong>s pelos interesses <strong>do</strong>s grupos que as forjam. O poder e a<br />

<strong>do</strong>minação estão sempre presentes. As representações não são<br />

discursos neutros: produzem estratégias e práticas tendentes a impor<br />

uma autori<strong>da</strong>de, uma deferência, e mesmo a legitimar escolhas.” 20<br />

É certo que elas se colocam no campo <strong>da</strong> concorrência e <strong>da</strong> luta. Nas<br />

lutas de representações tenta-se impor a outro ou ao mesmo grupo sua<br />

concepção de mun<strong>do</strong> social: conflitos que são tão importantes quanto as lutas<br />

econômicas; são tão decisivos quanto menos imediatamente materiais. 21<br />

Deste mo<strong>do</strong>, as ditas representações coletivas, segun<strong>do</strong> Chartier,<br />

expressam uma série de tensões que, de alguma maneira, procuram equilibrar<br />

um pouco a balança <strong>da</strong> dicotomia entre estruturalismo e filosofia <strong>do</strong> sujeito, de<br />

acor<strong>do</strong> com Carvalho. Ele também afirma que esta tensão resulta <strong>da</strong><br />

incorporação de elementos explicativos que poderiam ser de uma ou de outra<br />

tradição intelectual. 22 Teríamos, segun<strong>do</strong> Carvalho, a tensão entre<br />

representação que é condiciona<strong>da</strong> pelo social e a representação matriz<br />

constitutiva <strong>do</strong> social, a tensão entre a função política e a função lógica <strong>da</strong>s<br />

representações, a tensão entre a representação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de e a reali<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

representação, a tensão entre as mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des <strong>do</strong> fazer-crer e as formas de<br />

crença, entre a imposição de um significa<strong>do</strong> e a plurali<strong>da</strong>de de apropriações. 23<br />

As tensões, segun<strong>do</strong> Chartier, evidência de que não se pode ver os<br />

fenômenos de forma unitária, sem a possibili<strong>da</strong>de de haver contradições. As<br />

tensões revelam um potencial explicativo excepcional, segun<strong>do</strong> Carvalho,<br />

porque não são constituí<strong>da</strong>s por elementos não relaciona<strong>do</strong>s ou conecta<strong>do</strong>s.<br />

Pelo contrário, elas são revela<strong>da</strong>s mediante a confecção de um caminho que<br />

orienta os três registros de reali<strong>da</strong>de nos quais os indivíduos ou os grupos<br />

mantêm relações com o mun<strong>do</strong> social. 24<br />

Carvalho também tem informações importantes no tocante ao estu<strong>do</strong><br />

<strong>da</strong>s representações coletivas. Ele afirma que, estu<strong>da</strong>n<strong>do</strong> o impacto <strong>da</strong>s<br />

representações em uma <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>, aparecem <strong>do</strong>is caminhos teórico-<br />

20 CARVALHO, F. A. L. O conceito de representações coletivas segun<strong>do</strong> Roger Chartier. In: _____.<br />

Diálogos, DHI/PPH/UEM, v. 9, n. 1. 2005. p. 149<br />

21 Idem<br />

22 Idem<br />

23 Idem<br />

24 Ibidem. p. 158<br />

14


meto<strong>do</strong>lógicos possíveis para o estu<strong>do</strong> <strong>da</strong>s representações coletivas. Primeiro<br />

ele propõe o estu<strong>do</strong> <strong>da</strong> construção de identi<strong>da</strong>des sociais a partir <strong>do</strong> confronto<br />

entre as representações impostas por aqueles que detêm o poder de classificar<br />

e nomear, e as representações construí<strong>da</strong>s pela própria comuni<strong>da</strong>de, seja<br />

passivamente, seja resistin<strong>do</strong> à imposição. 25 Em segun<strong>do</strong> lugar, ele propôs o<br />

estu<strong>do</strong> <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong>de <strong>do</strong> grupo de fazer com que se reconheça sua existência<br />

a partir <strong>da</strong> exibição de uma uni<strong>da</strong>de instrumentaliza<strong>da</strong> pela representação. 26<br />

Afirma Carvalho que essa proposta denota que a história cultural estaria<br />

fazen<strong>do</strong> um duplo “retorno útil ao social”, lançan<strong>do</strong> o olhar para o choque de<br />

forças sociais que move as “lutas de representações” e para a capaci<strong>da</strong>de que<br />

o grupo tem de se fazer reconhecer como uni<strong>da</strong>de e identi<strong>da</strong>de. 27<br />

Chartier também propunha uma história social <strong>da</strong> cultura para uma<br />

História Cultural <strong>da</strong> Socie<strong>da</strong>de, recusan<strong>do</strong> o pressuposto de que os contrastes<br />

e as diferenças culturais estivessem forçosamente organiza<strong>do</strong>s em função de<br />

um recorte social previamente constituí<strong>do</strong>. Uma <strong>da</strong>s idéias que isto propunha<br />

era a defesa de uma nova abor<strong>da</strong>gem de mesmos <strong>do</strong>cumentos, bens e idéias,<br />

contrastan<strong>do</strong> o que eles representavam para ca<strong>da</strong> vertente <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>.<br />

Assim, isto significa que as regras que definiam o vestuário para ca<strong>da</strong> estrato<br />

<strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>do</strong> Antigo Regime eram interpreta<strong>da</strong>s de forma diferente por ca<strong>da</strong><br />

um deles.<br />

Mas o que a representação de Chartier realmente significava? Ela<br />

designava o mo<strong>do</strong> pelo qual em diferentes lugares e momentos uma<br />

determina<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de é construí<strong>da</strong>, pensa<strong>da</strong> e <strong>da</strong><strong>da</strong> a ler por diferentes grupos<br />

sociais. 28 A construção <strong>da</strong>s identi<strong>da</strong>des sociais seria o resulta<strong>do</strong> de uma<br />

relação de força entre as representações impostas por aqueles que tem poder<br />

de classificar e de nomear e a definição submeti<strong>da</strong> ou resistente que ca<strong>da</strong><br />

comuni<strong>da</strong>de produz de si mesma. 29 É deste ponto que a discussão <strong>da</strong><br />

<strong>socie<strong>da</strong>de</strong> ten<strong>do</strong> foco na representação se revela relevante, possibilitan<strong>do</strong> uma<br />

análise <strong>da</strong> forma por que os indivíduos e a <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> concebem, ou<br />

25<br />

CARVALHO, F. A. L. O conceito de representações coletivas segun<strong>do</strong> Roger Chartier. In: _____.<br />

Diálogos, DHI/PPH/UEM, v. 9, n. 1. 2005. p. 158<br />

26<br />

Idem<br />

27<br />

Idem<br />

28<br />

CHARTIER. R. O mun<strong>do</strong> como representação. In: _____. À beira <strong>da</strong> falésia: a história entre<br />

incertezas e inquietude. Porto Alegre: Ed. Universi<strong>da</strong>de/UFRGS, 2002, p. 71<br />

29<br />

Ibidem. p. 72<br />

15


epresentam, a reali<strong>da</strong>de e de como esta concepção orienta suas práticas<br />

sociais.<br />

2.4 A representação em <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>s <strong>do</strong> Antigo Regime<br />

Chartier:<br />

Para o historia<strong>do</strong>r <strong>da</strong>s <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>s <strong>do</strong> Antigo Regime,nas palavras de<br />

Construir a noção de representação como o instrumento essencial <strong>da</strong><br />

análise cultural é investir de uma pertinência operatória um <strong>do</strong>s<br />

conceitos centrais manusea<strong>do</strong>s nestas <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>s. A operação de<br />

conhecimento está, assim, liga<strong>da</strong> ao utensílio nacional que os<br />

contemporâneos utilizavam para tornar sua própria <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> menos<br />

opaca ao entendimento. 30<br />

Nas definições antigas, segun<strong>do</strong> Chartier, os conceitos correspondentes<br />

à palavra "representação” mostram duas famílias de senti<strong>do</strong> aparentemente<br />

contraditórias: Se tem, de um la<strong>do</strong>, a representação que faz ver uma ausência,<br />

o que supõe uma distinção clara entre o que representa e o que é<br />

representa<strong>do</strong>; de outro, é a apresentação de uma presença, a apresentação<br />

pública de uma coisa ou de uma pessoa. 31 No primeiro conceito, Chartier diz<br />

que a representação é o instrumento de um conhecimento imediato que faz ver<br />

um objeto ausente substituin<strong>do</strong>-lhe uma "imagem" capaz de repô-lo em<br />

memória e de "pintá-lo" tal como é. 32 Dessas imagens, algumas são totalmente<br />

materiais, substituin<strong>do</strong> ao corpo ausente um objeto que lhe seja semelhante ou<br />

não: tais os manequins de cera, de madeira ou couro que eram postos sobre a<br />

uma sepulcral monárquica durante os funerais <strong>do</strong>s soberanos franceses e<br />

ingleses ou, mais geralmente e outrora, o leito fúnebre vazio e recoberto por<br />

um lençol mortuário que "representa" o defunto, 33 de acor<strong>do</strong> com as idéias de<br />

Chartier sobre o assunto.<br />

As formas de teatralização <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social na <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>do</strong> Antigo<br />

Regime dão o exemplo mais manifesto de uma perversão <strong>da</strong> relação de<br />

representação. To<strong>da</strong>s visam, de fato, a fazer com que a coisa não tenha<br />

30 CHARTIER, Roger. O mun<strong>do</strong> como representação. In:_____. Estu<strong>do</strong>s Avança<strong>do</strong>s. Vol. 5. No. 11. São<br />

Paulo. 1991, tira<strong>do</strong> <strong>do</strong> site www.scielo.br<br />

31 Idem<br />

32 Idem<br />

33 Idem<br />

16


existência a não ser na imagem que exibe, que a representação mascare ao<br />

invés de pintar adequa<strong>da</strong>mente o que é seu referente. Pascal desnu<strong>da</strong> este<br />

mecanismo <strong>da</strong> "vitrina" que manipula os signos destina<strong>do</strong>s a produzir ilusão – e<br />

não a fazer conhecer as coisas tais como são. 34<br />

A relação de representação é, desse mo<strong>do</strong>, perturba<strong>da</strong> pela fraqueza <strong>da</strong><br />

imaginação, que considera os signos visíveis como índices seguros de uma<br />

reali<strong>da</strong>de que não o é. 35 Corrompi<strong>da</strong>, a representação transforma-se em<br />

máquina de fabricar respeito e submissão, 36 num instrumento que produz uma<br />

exigência interioriza<strong>da</strong>, necessária exatamente onde faltar o possível recurso à<br />

força bruta.<br />

Chartier ain<strong>da</strong> afirma que to<strong>da</strong> reflexão engaja<strong>da</strong> sobre as <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>s<br />

de Antigo Regime só pode inscrever-se na perspectiva assim traça<strong>da</strong>,<br />

duplamente pertinente. Por considerar a posição "objetiva" de ca<strong>da</strong> indivíduo<br />

como dependente <strong>do</strong> crédito que aqueles de que espera reconhecimento<br />

conferem à representação que dá de si mesmo. Por compreender as formas de<br />

<strong>do</strong>minação simbólica, pelo "aparelho" ou pelo "aparato” como o corolário <strong>da</strong><br />

ausência ou <strong>do</strong> apagamento <strong>da</strong> violência imediata. E portanto, no processo de<br />

longa duração de erradicação <strong>da</strong> violência, torna<strong>da</strong> monopólio <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><br />

absolutista, que é preciso inscrever a importância crescente <strong>da</strong>s lutas de<br />

representação, cuja problemática central é o ordenamento, logo a<br />

hierarquização <strong>da</strong> própria estrutura social. 37<br />

Chartier ain<strong>da</strong> propôs uma discussão sobre as práticas culturais <strong>da</strong>s<br />

formas de exercício de poder. Ele critica a posição <strong>da</strong> historiografia francesa, a<br />

qual afirma se fun<strong>da</strong>r sobre o prima<strong>do</strong> <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de <strong>do</strong> sujeito, pensa<strong>do</strong> como<br />

livre de to<strong>da</strong> e qualquer determinação, e privilegian<strong>do</strong> a oferta de idéias e<br />

aparte refleti<strong>da</strong> <strong>da</strong> ação, uma tal posição obstina-se numa dupla importância:<br />

ignora as exigências não sabi<strong>da</strong>s pelos indivíduos e que no entanto regulam –<br />

aquém <strong>do</strong>s pensamentos claros e muitas vezes apesar deles – as<br />

representações e as ações 38 ; supõe uma eficácia própria às idéias e aos<br />

discursos, separa<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s formas que os comunicam, destaca<strong>do</strong>s <strong>da</strong>s práticas<br />

34 CHARTIER, Roger. O mun<strong>do</strong> como representação. In:_____. Estu<strong>do</strong>s Avança<strong>do</strong>s. Vol. 5. No. 11. São<br />

Paulo. 1991, tira<strong>do</strong> <strong>do</strong> site www.scielo.br<br />

35 Idem<br />

36 Idem<br />

37 Idem<br />

38 Idem<br />

17


que, ao se apropriarem deles, os investem de significações plurais e<br />

concorrentes. 39 Sua perspectiva é outra: ele quer compreender a partir <strong>da</strong>s<br />

mutações no mo<strong>do</strong> de exercício <strong>do</strong> poder (gera<strong>do</strong>res de formações sociais<br />

inéditas) tanto as transformações <strong>da</strong>s estruturas <strong>da</strong> personali<strong>da</strong>de quanto as<br />

<strong>da</strong>s instituições e <strong>da</strong>s regras que governam a produção <strong>da</strong>s obras e a<br />

organização <strong>da</strong>s práticas. 40 A ligação estabeleci<strong>da</strong> por Norbert Elias entre, por<br />

um la<strong>do</strong> a racionali<strong>da</strong>de de corte – entendi<strong>da</strong> como uma economia psíquica<br />

específica, produzi<strong>da</strong> pelas exigências de uma forma social nova, necessária<br />

ao absolutismo – e, por outro, os traços próprios à literatura clássica – em<br />

termos de hierarquia de gêneros, de características estilísticas, de convenções<br />

estéticas – designa com acui<strong>da</strong>de o lugar de um trabalho possível. 41<br />

Mas é também a partir <strong>da</strong>s divisões instaura<strong>da</strong>s pelo poder (por exemplo<br />

entre os <strong>século</strong>s XVI e XVII entre razão de Esta<strong>do</strong> e consciência moral, entre<br />

patronagem estatal e liber<strong>da</strong>de de foro íntimo) que devem ser aprecia<strong>da</strong>s tanto<br />

a emergência de uma esfera literária autônoma como a constituição de um<br />

merca<strong>do</strong> de bens simbólicos e de julgamentos intelectuais ou estéticos.<br />

Estabelece assim um espaço <strong>da</strong> crítica livre onde se opera uma progressiva<br />

politização, contra a monarquia <strong>do</strong> Antigo Regime de práticas culturais que o<br />

Esta<strong>do</strong> tinha durante algum tempo captura<strong>do</strong> em seu proveito – ou que tinham<br />

nasci<strong>do</strong> como reação a seu ascendente, na esfera <strong>do</strong> priva<strong>do</strong>. 42<br />

2.5 O teatro e o “estar em público”<br />

Aplica<strong>do</strong>s ao Antigo Regime português, os conceitos discuti<strong>do</strong>s por<br />

Chartier mostram a relevância em se tratar <strong>do</strong>s relacionamentos entre os<br />

elementos que compunham esta <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>. As “tensões” entre eles revelam<br />

muito sobre seus comportamentos. As aparências apresenta<strong>da</strong>s por Sennett<br />

denotavam representativi<strong>da</strong>des. Se elas eram a base <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>do</strong> Antigo<br />

39<br />

CHARTIER, R. O mun<strong>do</strong> como representação. In:_____. Estu<strong>do</strong>s Avança<strong>do</strong>s. Vol. 5. No. 11. São<br />

Paulo. 1991, tira<strong>do</strong> <strong>do</strong> site www.scielo.br<br />

40<br />

Idem<br />

41<br />

ELIAS, N. A <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> de corte. Rio de Janeiro, 2001. ps. 108-110<br />

42<br />

CHARTIER. R. O mun<strong>do</strong> como representação. In: _____. À beira <strong>da</strong> falésia: a história entre<br />

incertezas e inquietude. Trad. Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Ed. Universi<strong>da</strong>de/UFRGS, 2002, p.<br />

63<br />

18


Regime, então as representações conti<strong>da</strong>s nela eram basea<strong>da</strong>s nas<br />

aparências.<br />

Sennett afirmou que “não havia separação entre o teatro e a rua”, que<br />

ambos mostravam uma ênfase na representação de papéis. 43 Saben<strong>do</strong>-se<br />

disso, é difícil descobrir quem imitou quem: levan<strong>do</strong> em consideração que a<br />

<strong>socie<strong>da</strong>de</strong> está em perpétua mutação, e que o teatro já existia há muito tempo,<br />

afinal quem emulava o comportamento um <strong>do</strong> outro, a <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> ou o teatro?<br />

Por um la<strong>do</strong>, nota-se que o teatro era feito para o povo, visan<strong>do</strong> atrair públicos,<br />

e por isso tentava agra<strong>da</strong>r estes públicos. Na<strong>da</strong> mais natural de que ele<br />

emulasse a mentali<strong>da</strong>de “<strong>da</strong>s ruas”. Por outro la<strong>do</strong>, como aponta<strong>do</strong> por<br />

Sennett 44 e Elias, 45 a <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> européia <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII começou a nortear as<br />

suas relações sociais basea<strong>da</strong>s na forma de como se <strong>da</strong>vam no teatro. Sennett<br />

inclusive cita fontes <strong>da</strong> época em que se constata que “não havia mais<br />

separação entre o teatro e a rua”. Assim como ocorria com os atores, os<br />

indivíduos também a<strong>do</strong>tavam um figurino que os fizesse representar um papel<br />

na <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>. É então que se consegue entender melhor a importância em se<br />

reservar certos tipos de vestuários e de atuações em público para<br />

determina<strong>da</strong>s classes sociais, ao se notar que a própria vi<strong>da</strong> em público era<br />

vista como um teatro, como uma representação. Assim como o ator buscava<br />

obter a credibili<strong>da</strong>de <strong>do</strong> papel que representava (por exemplo, se estivesse<br />

representan<strong>do</strong> um fi<strong>da</strong>lgo, deveria fazer parecer ao público que era um fi<strong>da</strong>lgo),<br />

o indivíduo deveria fazer parecer para os outros que ele era quem era (um<br />

fi<strong>da</strong>lgo de ver<strong>da</strong>de deveria proceder como o ator, tanto no discurso como na<br />

aparência).<br />

Sennett ain<strong>da</strong> teve mais observações interessantes no tocante à idéia de<br />

“ver o mun<strong>do</strong> como um palco”. Ele percebeu que ao se transformar em um ator<br />

<strong>do</strong> âmbito público, o indivíduo acaba por provocar uma espécie de divórcio<br />

entre suas ações e sua natureza. 46 Isto tornava a morali<strong>da</strong>de presente na<br />

<strong>socie<strong>da</strong>de</strong> mais leve, e com isso o indivíduo “se divertia mais”. Como o caráter<br />

<strong>da</strong>s ações e o caráter <strong>do</strong>s atores eram separa<strong>do</strong>s, se tornou possível que se<br />

43<br />

SENNETT, R. O declínio <strong>do</strong> homem público, as tiranias <strong>da</strong> intimi<strong>da</strong>de, São Paulo, 1988. p.94<br />

44<br />

Ibidem, p. 97<br />

45<br />

ELIAS, Norbert. A <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> de corte. Rio de Janeiro, 2001.p. 115<br />

46<br />

SENNETT, R. O declínio <strong>do</strong> homem público, as tiranias <strong>da</strong> intimi<strong>da</strong>de, São Paulo, 1988. p. 141<br />

19


pudesse censurar um vício, ou uma imperfeição, sem que se precisasse<br />

demonstrar aversão ao praticante deles. 47<br />

A representação, tanto na vi<strong>da</strong> real como no teatro, era constituí<strong>da</strong> de<br />

uma ficção, e to<strong>do</strong>s sabiam disso. No entanto, os indivíduos acreditavam<br />

genuinamente nestas representações, tanto nas de si próprios como nas <strong>do</strong>s<br />

outros, e reagiam emocionalmente à elas. 48 A isto Sennett chamou de<br />

“para<strong>do</strong>xo <strong>da</strong> representação”, basean<strong>do</strong>-se nos escritos de Diderot.<br />

Sennett também apresenta a visão de Rousseau, o qual afirmou ser o<br />

maior escritor sobre a vi<strong>da</strong> urbana 49 <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII. Este filósofo era contra a<br />

vi<strong>da</strong> cosmopolita <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong>des grandes e denunciava a artificiali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s<br />

relações sociais estabeleci<strong>da</strong>s nelas. Em tal ambiente, segun<strong>do</strong> ele, o próprio<br />

cerne <strong>do</strong> ser humano era corrompi<strong>do</strong>, pois este começava a buscar a fama<br />

como um fim em si mesmo, ou seja, ser conheci<strong>do</strong>, reconheci<strong>do</strong>, singulariza<strong>do</strong>,<br />

construir uma reputação. O “lugar” que os indivíduos tinham na <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>,<br />

segun<strong>do</strong> Rousseau, era também artificial, estabeleci<strong>do</strong> pelo Poder Maior, ou<br />

seja, pelo Esta<strong>do</strong>. 50 A ci<strong>da</strong>de como um teatro e a <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> como artistas era,<br />

segun<strong>do</strong> o filósofo um desastre moral. 51 Rousseau também condenava o<br />

próprio teatro, afirman<strong>do</strong> que era nele que os indivíduos procuravam modelos<br />

de comportamento. 52 Com esta idéia, Rousseau defendia a censura no teatro,<br />

de maneira a promover bons modelos de comportamento para os que o<br />

assistiam. Esta idéia (o teatro usa<strong>do</strong> como influência para o “bom<br />

comportamento” <strong>do</strong>s indivíduos na <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>) não é exclusiva <strong>do</strong> filósofo,<br />

ten<strong>do</strong> muitos que pensavam <strong>da</strong> mesma maneira, especialmente, aqueles que<br />

regulavam o teatro em Portugal, sen<strong>do</strong> inclusive prevalente no país, cui<strong>da</strong><strong>do</strong>so<br />

com a “manutenção <strong>do</strong>s costumes” e com a “minimização <strong>da</strong> influência<br />

estrangeira”.<br />

O teatro é cita<strong>do</strong> por muitos autores que tratam de <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>s <strong>do</strong> Antigo<br />

Regime como sen<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s lugares onde se havia uma interação com a<br />

esfera pública <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> pessoal. Outros lugares importantes eram os cafés e os<br />

47<br />

SENNETT, R. O declínio <strong>do</strong> homem público, as tiranias <strong>da</strong> intimi<strong>da</strong>de, São Paulo, 1988<br />

48<br />

Ibidem. ps. 146-147<br />

49<br />

É importante se notar que a discussão <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>do</strong> Antigo Regime aqui proposta se refere, por<br />

excelência, à vi<strong>da</strong> urbana. A vi<strong>da</strong> rural, e os conceitos e representações atribuí<strong>do</strong>s á ela, podiam se <strong>da</strong>r de<br />

forma diferente.<br />

50<br />

SENNETT, R. O declínio <strong>do</strong> homem público, as tiranias <strong>da</strong> intimi<strong>da</strong>de, São Paulo, 1988. p. 152<br />

51 Ibidem. p. 153<br />

52 Ibidem. p. 154<br />

20


clubes, lugares onde se podia conversar livremente e onde a hierarquia parecia<br />

desaparecer. 53 Outro lugar de destaque era o parque, que possibilitava o<br />

costume <strong>do</strong> passeio. Neste caso a intenção era o contato breve que se poderia<br />

estabelecer com pessoas de várias classes sociais, como o rei acenan<strong>do</strong> para<br />

um violinista. Apesar de populares na Inglaterra e na França, em Portugal<br />

nenhum destes lugares (exceto o teatro) conseguiu ter sucesso. 54 Os jardins<br />

reais de Lisboa, por exemplo, ficavam às moscas. Isto por causa de certas<br />

peculiari<strong>da</strong>des <strong>da</strong> cultura <strong>portuguesa</strong>, que olhava com desconfiança a respeito<br />

de importações estrangeiras. As relações sociais em Portugal se <strong>da</strong>vam em<br />

missas, toura<strong>da</strong>s (comuns à cultura ibérica), e nas festas populares. 55<br />

2.6 As relações de poder e <strong>do</strong>minação <strong>da</strong>s classes sociais <strong>do</strong> Antigo<br />

regime: visão geral.<br />

Para se entender as relações entre as diferentes classes sociais no<br />

Antigo Regime, é necessário primeiro entender que o conceito de que to<strong>do</strong>s os<br />

seres humanos têm direito à felici<strong>da</strong>de é moderno, assim como o que afirma<br />

que to<strong>do</strong>s são iguais perante a lei. Na ver<strong>da</strong>de estes conceitos já estavam<br />

formula<strong>do</strong>s no <strong>século</strong> XVIII, mas faziam parte apenas <strong>do</strong>s escritos de<br />

pensa<strong>do</strong>res Iluministas. Não estavam engendra<strong>do</strong>s na <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>. Havia um<br />

consenso geral de que a Natureza havia defini<strong>do</strong> os homens de forma desigual.<br />

Em uma <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>do</strong> Antigo Regime, a palavra “popular”, nem sempre<br />

tinha o mesmo significa<strong>do</strong> <strong>da</strong> palavra usa<strong>da</strong> atualmente. Na época, o “povo”<br />

era visto como algo genérico, equivalente a to<strong>do</strong>s aqueles que não possuíam<br />

títulos de nobreza. 56 Segun<strong>do</strong> Silvia Humold Lara:<br />

As relações de poder eram necessariamente relações de <strong>do</strong>minação, e<br />

aqueles que não possuíam poder, tinham que se apropriar de<br />

instituições e mecanismos de política e <strong>do</strong> governo, para fazê-lo<br />

funcionar de algum mo<strong>do</strong> na direção de seus objetivos e interesses. 57<br />

53<br />

SENNETT, R. O declínio <strong>do</strong> homem público, as tiranias <strong>da</strong> intimi<strong>da</strong>de, São Paulo, 1988, ps. 109-113<br />

54<br />

LOPES, M. A. Mulheres, espaço e sociabili<strong>da</strong>de, Coleção Horizonte Histórico, livros Horizonte,<br />

Lisboa, 1989, ps. 156-157<br />

55<br />

Ibidem, ps. 147-159<br />

56<br />

LARA, S. H. Mo<strong>do</strong>s de governar. In: ____. Idéias e práticas políticas no império português, <strong>século</strong>s<br />

XVI-XIX. Org. BICALHO, M F., FERLINI, V.L. A. Alame<strong>da</strong>, São Paulo, 2005. p. 34<br />

57<br />

Ibidem. p. 35<br />

21


Norbert Elias, em seu estu<strong>do</strong> sobre como a <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> de corte era<br />

estabeleci<strong>da</strong> na época <strong>do</strong> Antigo Regime, notou que a tal “corte” era uma vasta<br />

extensão <strong>da</strong> casa e <strong>do</strong>s assuntos <strong>do</strong>mésticos <strong>do</strong> rei e de seis dependentes,<br />

incluin<strong>do</strong> to<strong>da</strong>s as pessoas que faziam parte <strong>da</strong>quela casa. 58 Ela descende <strong>da</strong><br />

forma de <strong>do</strong>minação patriarcal que se mostra nos <strong>do</strong>micílios. A <strong>do</strong>minação<br />

patriarcal, segun<strong>do</strong> o autor, é feita sob medi<strong>da</strong> para satisfazer necessi<strong>da</strong>des<br />

<strong>do</strong>mésticas <strong>do</strong> senhor, 59 seus assuntos pessoais e priva<strong>do</strong>s. A <strong>do</strong>minação<br />

“política” de um senhor sobre os outros, não submeti<strong>do</strong>s ao seu poder<br />

<strong>do</strong>méstico, significou a incorporação de relações de <strong>do</strong>minação que diferem<br />

quanto ao grau e conteú<strong>do</strong>, mas não quanto à estrutura. Esta <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> era<br />

articula<strong>da</strong> hierarquicamente em to<strong>da</strong>s as suas manifestações. 60 Estas<br />

definições aju<strong>da</strong>m a entender como as relações sociais eram monta<strong>da</strong>s no<br />

Antigo Regime. Pelo que disse Elias, parece que os indivíduos pertencentes à<br />

<strong>socie<strong>da</strong>de</strong> de corte baseavam as relações de <strong>do</strong>minação a partir <strong>do</strong><br />

patriarcalismo <strong>do</strong>méstico, significan<strong>do</strong> que aqueles hierarquicamente inferiores<br />

eram vistos como serviçais, e isto não ficava restrito ao âmbito <strong>do</strong>méstico,<br />

principalmente ao se tratar <strong>do</strong> rei e <strong>da</strong> aristocracia. Esta aristocracia, como<br />

colocou Elias, tinha papel duplo: perante aqueles que não possuíam títulos de<br />

nobreza eles esperavam ser trata<strong>do</strong>s como senhores, mas diante <strong>do</strong> rei eles<br />

eram os serviçais. Na época em questão, o <strong>século</strong> XVIII, a nobreza francesa<br />

estava perden<strong>do</strong> sua influência e afun<strong>da</strong><strong>do</strong>s em dívi<strong>da</strong>s, muitos migraram para<br />

a corte, para viver junto ao rei. Diferentemente <strong>do</strong> que acontecia na I<strong>da</strong>de<br />

Média, quan<strong>do</strong> os membros <strong>da</strong> aristocracia tinham suas próprias terras,<br />

próprios serventes e própria fortuna, poden<strong>do</strong> ser independentes <strong>do</strong> monarca,<br />

a situação era diferente no <strong>século</strong> XVIII, pois com a ascensão <strong>do</strong> regime<br />

absolutista, o poder passou a se concentrar nas mãos <strong>do</strong> rei. Ao se mu<strong>da</strong>r para<br />

a corte, a aristocracia estava receben<strong>do</strong> um favor <strong>do</strong> rei, uma dádiva, fato que<br />

a deixava comprometi<strong>da</strong> a desenvolver relações de submissão com o rei.<br />

Estas relações foram discuti<strong>da</strong>s por Elias como fazen<strong>do</strong> parte <strong>da</strong><br />

<strong>socie<strong>da</strong>de</strong> francesa, mas segun<strong>do</strong> afirma Lara, 61 e Fernan<strong>da</strong> Olival, 62 tais<br />

58<br />

ELIAS, Norbert. A <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> de corte. Rio de Janeiro, 2001.p. 66<br />

59<br />

Idem<br />

60<br />

Ibidem, p. 68<br />

61<br />

LARA, S. H. Mo<strong>do</strong>s de governar. In: ____. Idéias e práticas políticas no império português, <strong>século</strong>s<br />

XVI-XIX. Org. BICALHO, M F., FERLINI, V.L. A. Alame<strong>da</strong>, São Paulo, 2005. p. 38<br />

22


características também poderiam ser aplica<strong>da</strong>s a Portugal, já que o processo<br />

de centralização <strong>do</strong> poder e <strong>da</strong> submissão por parte <strong>da</strong> aristocracia perante o<br />

rei não era exclusivo <strong>da</strong> França.<br />

Apesar de serem percebi<strong>da</strong>s como uma cama<strong>da</strong> genérica, o que era<br />

chama<strong>do</strong> de “povo” tinha muitas hierarquizações, que emulavam suas relações<br />

a partir <strong>do</strong> modelo de como a aristocracia o fazia. 63<br />

2.7 As instituições de Portugal no <strong>século</strong> XVIII: o casamento e a<br />

condição feminina<br />

Se as relações de <strong>do</strong>minação <strong>da</strong>s <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>s <strong>do</strong> Antigo Regime tinham<br />

base no sistema de <strong>do</strong>minação familiar, é interessante analisar como<br />

funcionava este sistema. Para isso temos os escritos de Antonio Manuel<br />

Hespanha, que dissertou várias vezes sobre o funcionamento <strong>da</strong> instituição<br />

familiar. Hespanha é um historia<strong>do</strong>r centra<strong>do</strong> nos estu<strong>do</strong>s de Portugal, mas<br />

neste caso ele afirma que as estruturas discuti<strong>da</strong>s podem ser aplica<strong>da</strong>s à to<strong>da</strong><br />

a Europa <strong>do</strong> Antigo Regime. 64 Então, Hespanha começa discutin<strong>do</strong> o<br />

casamento, o qual afirma ser um contrato entre duas partes, que tinha três<br />

funções, a procriação, o prosseguimento <strong>da</strong> linhagem e o interesse<br />

econômico. 65 A primeira destas funções se liga diretamente com as duas<br />

seguintes. Com o prosseguimento <strong>da</strong> linhagem porque deverá haver um filho<br />

varão que assuma as responsabili<strong>da</strong>des de prosseguir a viabili<strong>da</strong>de econômica<br />

<strong>da</strong> família. E com o interesse econômico, pela existência de mão-de-obra para<br />

trabalhar. 66 Assim, o casamento era tu<strong>do</strong> menos idílico. Na<strong>da</strong> de amor, muito<br />

de objetivi<strong>da</strong>de. O casamento era na<strong>da</strong> mais <strong>do</strong> que um acor<strong>do</strong> discuti<strong>do</strong> entre<br />

os pais de um rapaz e de uma moça, 67 ou seja, um acor<strong>do</strong> estritamente<br />

econômico de viabilização <strong>da</strong>s famílias. Se no meio rural o casamento era visto<br />

como meio para continuação <strong>do</strong> sustento <strong>da</strong> família, para a burguesia urbana<br />

ele era ain<strong>da</strong> mais ambicioso, ten<strong>do</strong> como objetivo a ascensão social de uma<br />

62 OLIVAL Fernan<strong>da</strong>. Um rei e um reino que viviam <strong>da</strong> mercê. In:____. As ordens militares e o esta<strong>do</strong><br />

moderno; Honra, mercê e venali<strong>da</strong>de em Portugal (1641-1789). Lisboa. Estar. 2001. ps. 16-32<br />

63 ELIAS, Norbert. A <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> de corte. Rio de Janeiro, 2001.p. 68<br />

64 HESPANHA, A.M. XAVIER. A.B. A representação <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> e <strong>do</strong> poder. In:____. História de<br />

Portugal IV: o Antigo Regime. Dir. HESPANHA, A. M. Lisboa. 1993. p. 322<br />

65 Ibidem. p. 77<br />

66 Ibidem. p. 322<br />

67 Ibidem. p. 78<br />

23


família. Casamentos entre classes sociais diferentes eram raros, mas mesmo<br />

entre uma mesma classe poderia haver um grande contraste no que se refere à<br />

riqueza e à influência de certos indivíduos compara<strong>do</strong>s a outros. Hespanha<br />

aponta que os casamentos eram autoriza<strong>do</strong>s a partir <strong>do</strong>s 12 anos, para as<br />

mulheres, e <strong>do</strong>s 14, para os homens. 68 É importante a discussão sobre o<br />

casamento no Antigo Regime pois este era um tema muito recorrente em<br />

peças de teatro <strong>da</strong> época. Deve-se observar que havia contrastes entre a visão<br />

real e a teatral sobre o casamento. Como última observação sobre o<br />

casamento em <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>s <strong>do</strong> Antigo Regime, Hespanha observou que havia<br />

algumas diferenças entre as <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>s católicas e protestantes, 69 embora o<br />

casamento tivesse a mesma finali<strong>da</strong>de nas duas <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>s. O casamento não<br />

era um sacramento para protestantes, mas uma instituição divina, não melhor<br />

<strong>do</strong> que o celibato, que era produzi<strong>do</strong> por um acor<strong>do</strong> mútuo.<br />

Quanto à condição feminina <strong>do</strong> Antigo Regime, Hespanha afirmou que a<br />

mulher devia ser absolutamente submissa ao homem. 70 O mari<strong>do</strong> detinha a<br />

plena autori<strong>da</strong>de, impon<strong>do</strong> à mulher seu nome, seu <strong>do</strong>micílio e sua condição<br />

social. E mais, ele detinha o controle sobre to<strong>do</strong>s os bens <strong>da</strong> família, mesmo<br />

aqueles pertencentes à mulher, já que esta era julga<strong>da</strong> como desprovi<strong>da</strong> de<br />

capaci<strong>da</strong>de jurídica, para reivindicar qualquer coisa. 71 Sobretu<strong>do</strong> a mulher<br />

<strong>portuguesa</strong>, que era uma <strong>da</strong>s que tinham menos liber<strong>da</strong>de entre to<strong>da</strong>s as<br />

mulheres européias. 72 O papel de submissão imposto à mulher na <strong>socie<strong>da</strong>de</strong><br />

<strong>do</strong> Antigo Regime se mostra evidente ao se analisar <strong>do</strong>cumentos <strong>da</strong> época,<br />

que faziam apologia <strong>do</strong> “sexo fraco”, frequentemente basea<strong>da</strong>s em passagens<br />

bíblicas.<br />

Se na casa e na relação a autori<strong>da</strong>de era <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, ou seja, <strong>do</strong> homem,<br />

nas tarefas <strong>do</strong>mésticas havia uma partilha: para o homem as tarefas<br />

profissionais, e para mulher as tarefas <strong>do</strong>mésticas e a educação <strong>do</strong>s filhos. 73<br />

Lopes tem mais algumas colocações sobre a condição feminina no Antigo<br />

68 HESPANHA, A.M. XAVIER. A.B. A representação <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> e <strong>do</strong> poder. In:____. História de<br />

Portugal IV: o Antigo Regime. Dir. HESPANHA, A. M. Lisboa. 1993. p. 78<br />

69 Idem<br />

70 Ibidem. p. 79<br />

71 Idem<br />

72 LOPES, M. A. Mulheres, espaço e sociabili<strong>da</strong>de, Coleção Horizonte Histórico, livros Horizonte,<br />

Lisboa, 1989, ps. 41-52<br />

73 HESPANHA, A.M. XAVIER. A.B. A representação <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> e <strong>do</strong> poder. In:____. História de<br />

Portugal IV: o Antigo Regime. Dir. HESPANHA, A. M. Lisboa. 1993. p. 79<br />

24


Regime. Para ela, a condição <strong>da</strong>s mulheres solteiras era de ain<strong>da</strong> mais<br />

submissão e menos liber<strong>da</strong>de <strong>do</strong> que as casa<strong>da</strong>s, pois a família tinha a<br />

obrigação de “proteger” as mulheres <strong>da</strong> “mal<strong>da</strong>de” <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. 74 Uma vez<br />

casa<strong>da</strong>s, as mulheres poderiam começar a gozar de certa liber<strong>da</strong>de. Poderiam,<br />

por exemplo, sair de casa, ir à lugares públicos, à bailes. 75 Solteiras, não<br />

podiam nem ir à missa, muitas vezes. 76 Sen<strong>do</strong> assim, havia um desejo e uma<br />

busca pelo casamento por parte <strong>da</strong>s mulheres solteiras. Além disso, Lopes<br />

observou que havia uma reivindicação <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de no casamento por parte <strong>da</strong><br />

mulher, 77 a despeito <strong>da</strong>s relações estabeleci<strong>da</strong>s, como disse Hespanha, de que<br />

o casamento era um acor<strong>do</strong> estritamente econômico. Este tema, a tensão entre<br />

felici<strong>da</strong>de e interesse econômico no casamento, era comum no teatro<br />

português <strong>da</strong> época, sobretu<strong>do</strong> nos entremezes, onde era inclusive o tema<br />

<strong>do</strong>minante.<br />

Lopes ain<strong>da</strong> revela que as mulheres não aceitaram a condição na qual<br />

estavam submeti<strong>da</strong>s de bom gra<strong>do</strong>, houve resistência e rebeldia por parte<br />

delas, e elas acabaram por conseguir mais liber<strong>da</strong>de. 78 Este é outro tema<br />

recorrente no teatro português <strong>da</strong> época, o desejo <strong>da</strong> mulher de “alargar” seu<br />

espaço. Entretanto, segun<strong>do</strong> mostra Lopes, a mentali<strong>da</strong>de vigente não era<br />

exatamente favorável à condição feminina. A mulher era vista como um ser<br />

perigoso, 79 que poderia fazer ruir as instituições estabeleci<strong>da</strong>s. Se era difícil<br />

controlar os relacionamentos públicos <strong>da</strong>s mulheres, se procurou ao menos<br />

isolar os sexos, ou seja, fazer com que homens e mulheres estivessem<br />

separa<strong>do</strong>s em to<strong>do</strong>s os eventos públicos, inclusive missas. Esta situação, foi,<br />

segun<strong>do</strong> Lopes, única de Portugal, 80 não haven<strong>do</strong> este tipo de esforço em<br />

outras nações <strong>da</strong> Europa. Foram relata<strong>do</strong>s <strong>do</strong>cumentos que mostram o<br />

espanto de estrangeiros em Portugal ao ver que nos bailes, por exemplo, os<br />

homens ficavam em um lugar e as mulheres em outro. 81 Esta situação já<br />

estava presente desde o <strong>século</strong> XVII, e teve continui<strong>da</strong>de no <strong>século</strong> seguinte.<br />

74 LOPES, M. A. Mulheres, espaço e sociabili<strong>da</strong>de, Coleção Horizonte Histórico, livros Horizonte,<br />

Lisboa, 1989. p 114<br />

75 Ibidem. p. 153<br />

76 Ibidem, p. 112<br />

77 Ibidem. p. 115<br />

78 Ibidem. ps. 118-119<br />

79 Ibidem. p. 17<br />

80 Ibidem. ps. 49-50<br />

81 Idem<br />

25


Houve um impulso na segun<strong>da</strong> <strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII que visava<br />

orientar Portugal a lhe <strong>da</strong>r um lugar melhor diante <strong>da</strong>s demais nações. Isto<br />

significa que a nação não queria mais ficar diferente <strong>da</strong>s demais nações<br />

européias no que se refere aos costumes, segun<strong>do</strong> nos conta José Gentil <strong>da</strong><br />

Silva. 82 O autor também afirma que a especifici<strong>da</strong>de feminina, elabora<strong>da</strong> desde<br />

o Renascimento, com a aju<strong>da</strong> de alguns textos clássicos convenientemente<br />

escolhi<strong>do</strong>s era um elemento <strong>da</strong> separação <strong>do</strong>s sexos. 83 A separação <strong>do</strong>s<br />

sexos podia ser artificial, mas era útil para as estruturas políticas e sociais <strong>da</strong><br />

Europa <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de Moderna. 84 Silva também confirmou a idéia de Lopes e de<br />

Hespanha de que a situação <strong>da</strong> mulher <strong>portuguesa</strong> era de mais isolamento <strong>do</strong><br />

que era normal na Europa <strong>da</strong>quela época. Portanto, ela não seguia<br />

perfeitamente a regra européia civiliza<strong>da</strong>. 85 Silva também concor<strong>da</strong> com Lopes<br />

a respeito de que as mulheres casa<strong>da</strong>s tinham mais liber<strong>da</strong>des <strong>do</strong> que as<br />

solteiras. No que se refere à seleção de pretendentes, Silva mostra um novo<br />

conceito, o de que o status <strong>do</strong> pretendente era mais importante <strong>do</strong> que sua<br />

fortuna. 86 Assim, isto parece revelar que a reputação era mais importante <strong>do</strong><br />

que o dinheiro, na <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> em questão. Isto desvirtua a associação entre<br />

poder e dinheiro, mostran<strong>do</strong> que os <strong>do</strong>is não são sinônimos nesta <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>,<br />

ao contrário <strong>do</strong> que se esperaria de uma <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> mais moderna. A liber<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong>s mulheres casa<strong>da</strong>s em relação às solteiras se torna mais clara ao se notar<br />

que as mulheres casa<strong>da</strong>s eram tolera<strong>da</strong>s a exercerem ofícios na <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>. 87<br />

A importância <strong>da</strong> mulher na vi<strong>da</strong> cultural e política na <strong>socie<strong>da</strong>de</strong><br />

<strong>portuguesa</strong> <strong>do</strong> Antigo Regime foi defini<strong>da</strong> por Silva como sen<strong>do</strong> tão importante<br />

como a <strong>do</strong> homem, pois ela contribuía para a formação <strong>da</strong> opinião dele e de<br />

suas escolhas. 88 A Europa moderna, e Portugal não estava excluí<strong>do</strong>, formou<br />

um equilíbrio precário, exigin<strong>do</strong> que to<strong>da</strong>s as potenciali<strong>da</strong>des humanas se<br />

desenvolvessem. Silva definiu a <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> de representações de aparências<br />

<strong>do</strong> Antigo Regime como um lugar onde a “sensibili<strong>da</strong>de contava pouco e a<br />

82 SILVA, J. G. A situação feminina em Portugal na segun<strong>da</strong> <strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII. Revista de história<br />

<strong>da</strong>s idéias. Coimbra. v. 4. tomo I. 1982-1983. O marquês de Pombal e o seu tempo. p. 143<br />

83 Acrescentan<strong>do</strong>-se às referencias <strong>da</strong> Bíblia.<br />

84 SILVA, J. G. A situação feminina em Portugal na segun<strong>da</strong> <strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII. Revista de história<br />

<strong>da</strong>s idéias. Coimbra. v. 4. tomo I. 1982-1983. O marquês de Pombal e o seu tempo. p. 144<br />

85 Idem<br />

86 Ibidem. p. 148<br />

87 Ibidem. p. 154<br />

88 Ibidem. p. 165<br />

26


utali<strong>da</strong>de conquistava”. 89 Esta idéia pode estar atrela<strong>da</strong> ao conceito de que<br />

era necessário representar um papel na <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>, onde simplesmente possuí-<br />

lo não era suficiente. Houve resistência, segun<strong>do</strong> Silva, ao sistema<br />

estabeleci<strong>do</strong>, sobretu<strong>do</strong> por aqueles que não entendiam a situação imposta na<br />

<strong>socie<strong>da</strong>de</strong>. 90<br />

2.8 As instituições de Portugal no <strong>século</strong> XVIII: o conceito de família<br />

Hespanha divaga sobre o significa<strong>do</strong> <strong>do</strong> conceito de família para uma<br />

<strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>do</strong> Antigo Regime. Ele apresentou os vários tipos de famílias que<br />

poderiam existir defini<strong>do</strong>s pelo historia<strong>do</strong>r Peter Laslett. Além <strong>do</strong>s solitários e<br />

<strong>do</strong>s lares sem estrutura conjugal, havia as famílias “simples”, que se resumiam<br />

ao mari<strong>do</strong>, a mulher e seus filhos; as famílias “extensas”, se constituin<strong>do</strong> de<br />

mais membros familiares <strong>do</strong> que as famílias “simples”, possuin<strong>do</strong> os pais <strong>do</strong>s<br />

cônjuges, netos ou sobrinhos órfãos, ou os irmãos ou primos <strong>do</strong>s cônjuges; e<br />

as famílias “agrega<strong>da</strong>s”, que era forma<strong>da</strong>s quan<strong>do</strong> um filho se casava mas não<br />

deixava a casa <strong>do</strong>s pais, fazen<strong>do</strong> que uma segun<strong>da</strong> família se formasse<br />

enquanto ten<strong>do</strong> seus componentes ain<strong>da</strong> membros de uma família já existente.<br />

Laslett, segun<strong>do</strong> Hespanha, não levou em consideração a figura <strong>do</strong>s cria<strong>do</strong>s,<br />

ao determinar os tipos de famílias, 91 nem ao dinamismo que as famílias<br />

poderiam ter, ou seja, de se transformarem rapi<strong>da</strong>mente em tipos diferentes,<br />

não estan<strong>do</strong> rigi<strong>da</strong>mente atrela<strong>da</strong>s à uma definição imutável.<br />

Ao se analisar as famílias na época <strong>do</strong> Antigo Regime, há o encontro<br />

com várias limitações: primeiro, o fato de que os censos de população eram<br />

muito raros, deixan<strong>do</strong> a análise atrela<strong>da</strong> pre<strong>do</strong>minantemente à especulação.<br />

Em segun<strong>do</strong> lugar, há o fato de que as composições <strong>do</strong>s grupos <strong>do</strong>mésticos<br />

tinham significa<strong>do</strong>s que variavam de acor<strong>do</strong> com o contexto com que eram<br />

analisa<strong>do</strong>s. Hespanha ain<strong>da</strong> cita uma limitação imposta ao historia<strong>do</strong>r<br />

moderno, que é o fato de este estar “envenena<strong>do</strong>” pelas concepções modernas<br />

89 SILVA, J. G. A situação feminina em Portugal na segun<strong>da</strong> <strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII. Revista de história<br />

<strong>da</strong>s idéias. Coimbra. v. 4. tomo I. 1982-1983. O marquês de Pombal e o seu tempo. p. 165<br />

90 Idem<br />

91 HESPANHA, A.M. XAVIER. A.B. A representação <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> e <strong>do</strong> poder. In:____. História de<br />

Portugal IV: o Antigo Regime. Dir. HESPANHA, A. M. Lisboa. 1993. p. 86<br />

27


<strong>do</strong> conceito de família, 92 e que isso tornava difícil a sua compreensão <strong>do</strong><br />

significa<strong>do</strong> de família para a <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> em discussão.<br />

Como Hespanha já disse, a família na <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>portuguesa</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong><br />

XVIII era forma<strong>da</strong> independentemente de desejos pessoais, seguin<strong>do</strong> linhas<br />

<strong>do</strong>gmáticas e práticas, visan<strong>do</strong> o prosseguimento <strong>da</strong> linhagem, a geração de<br />

mão-de-obra para a continui<strong>da</strong>de <strong>da</strong> economia. A formação <strong>da</strong>s novas famílias<br />

estava nas mãos <strong>do</strong>s pais <strong>do</strong>s novos integrantes nelas. 93 Ven<strong>do</strong> sua própria<br />

continui<strong>da</strong>de nos filhos, os pais agiam de mo<strong>do</strong> a legitimar a própria família. Ela<br />

funcionava, segun<strong>do</strong> Hespanha, como uma espécie de “universo totalitário”,<br />

onde tu<strong>do</strong> era pensa<strong>do</strong> em termos de um, significan<strong>do</strong>: um sujeito, um<br />

interesse, um direito. Lembran<strong>do</strong> de que o chefe <strong>da</strong> família era o pai, nota-se<br />

que ele, sozinho, equivalia à família, e a vontade desta família era a sua<br />

vontade. Outra questão que aju<strong>da</strong> a entender o porquê de a fun<strong>da</strong>ção de novas<br />

famílias ser controla<strong>da</strong> pela figura paterna é o fato de que o amor entre pai e<br />

filhos era superior a qualquer outra forma <strong>do</strong> sentimento, inclusive o amor entre<br />

o mari<strong>do</strong> e a esposa. Outra questão que pode ser inferi<strong>da</strong> para o entendimento<br />

deste conceito é a grande mortali<strong>da</strong>de de crianças que se tinha na época. Isto<br />

talvez gerasse um sentimento de que os filhos eram como uma merca<strong>do</strong>ria<br />

frágil, e se o papel a ser desempenha<strong>do</strong> por eles era crucial para a<br />

continui<strong>da</strong>de <strong>da</strong> família, torna-se evidente a razão de os pais quererem<br />

controlar o destino <strong>do</strong>s filhos. Com uma taxa de mortali<strong>da</strong>de alta os pais não<br />

queriam perder as “chances” de <strong>da</strong>r continui<strong>da</strong>de à família.<br />

Logicamente, as relações familiares eram diferentes entre as classes<br />

mais abasta<strong>da</strong>s e as mais humildes. Nas primeiras, o aleitamento era feito por<br />

amas-de-leite, mulheres de classes inferiores, e depois o tratamento variava<br />

conforme o sexo <strong>da</strong> criança. Se fosse <strong>do</strong> sexo masculino era entregue à um<br />

serviçal que se encarregava de sua educação, e se <strong>do</strong> sexo feminino, era a<br />

mãe tinha que se encarregar <strong>da</strong> educação de forma direta, ou se de forma<br />

indireta, teria que supervisionar a educação <strong>da</strong><strong>da</strong> à criança. Nas classes mais<br />

baixas, cuja condição é mais relevante para este estu<strong>do</strong>, os pais e filhos tinham<br />

92 HESPANHA, A.M. XAVIER. A.B. A representação <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> e <strong>do</strong> poder. In:____. História de<br />

Portugal IV: o Antigo Regime. Dir. HESPANHA, A. M. Lisboa. 1993. p. 88<br />

93 Ibidem. p. 89<br />

28


elações mais próximas, 94 e tinham de se encarregar <strong>da</strong> educação <strong>do</strong>s filhos<br />

pessoalmente, mesmo que possuíssem serviçais. A idéia <strong>da</strong> continui<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

família era bem mais tensa para as famílias humildes, já que além <strong>da</strong><br />

preocupação com a continui<strong>da</strong>de, havia a preocupação com a ascensão<br />

social. 95<br />

2.9 O papel e o significa<strong>do</strong> <strong>do</strong>s serviçais nas relações sociais <strong>da</strong>s<br />

<strong>socie<strong>da</strong>de</strong>s <strong>do</strong> Antigo Regime<br />

Um personagem comum no teatro <strong>do</strong> Antigo Regime era a figura <strong>do</strong><br />

cria<strong>do</strong>, que parece sempre ser uma espécie de acompanhante <strong>da</strong>queles que<br />

representam seus amos. Mas quais eram as características associa<strong>da</strong>s à esta<br />

figura na mentali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> época? Lopes observa que se esperava que os<br />

cria<strong>do</strong>s fossem numerosos, bem traja<strong>do</strong>s e educa<strong>do</strong>s. A autora disse que na<br />

<strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>portuguesa</strong> em particular havia uma familiari<strong>da</strong>de, uma<br />

cumplici<strong>da</strong>de, entre cria<strong>do</strong>s e patrões que chegava a assombrar estrangeiros. 96<br />

Assim, no caso português, a proximi<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s indivíduos com seus cria<strong>do</strong>s era<br />

tanta que o conceito de família poderia englobar estes cria<strong>do</strong>s.<br />

Elias não tem muito a dizer sobre os serviçais no seu estu<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />

<strong>socie<strong>da</strong>de</strong> de corte, pois estes viviam, de certa maneira, nos basti<strong>do</strong>res <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

de seus senhores. Sen<strong>do</strong> considera<strong>do</strong>s cruciais para o funcionamento <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

pública <strong>do</strong>s senhores, Elias afirmou que a <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> de corte se estruturava<br />

sobre uma ampla cama<strong>da</strong> de serviçais. 97 A própria forma <strong>da</strong> organização <strong>do</strong>s<br />

aposentos em uma casa já mostrava muita coisa sobre as relações entre<br />

patrões e cria<strong>do</strong>s. Havia a presença de aposentos cria<strong>do</strong>s especialmente para<br />

que os cria<strong>do</strong>s pudessem desempenhar funções incumbi<strong>da</strong>s pelos seus<br />

senhores. 98 Um destes aposentos era a “sala de companhia”, que se localizava<br />

logo fora <strong>do</strong>s quartos <strong>do</strong>s senhores, e que servia exclusivamente para que os<br />

serviçais pudessem esperar as ordens deles.<br />

94<br />

Determina<strong>da</strong>s até mesmo pelo próprio espaço, já que as casas mais humildes tinham poucos aposentos,<br />

tornan<strong>do</strong> o convívio inevitável, de qualquer maneira.<br />

95<br />

HESPANHA, A.M. XAVIER. A.B. A representação <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> e <strong>do</strong> poder. In:____. História de<br />

Portugal IV: o Antigo Regime. Dir. HESPANHA, A. M. Lisboa. 1993. p. 67<br />

96<br />

LOPES, M. A. Mulheres, espaço e sociabili<strong>da</strong>de, Coleção Horizonte Histórico, livros Horizonte,<br />

Lisboa, 1989, p 75<br />

97<br />

ELIAS, N. A <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> de corte. Rio de Janeiro, 2001.p. 69<br />

98 Ibidem. p. 70<br />

29


Apesar <strong>da</strong> proximi<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> intimi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s relações entre patrões e<br />

cria<strong>do</strong>s, deve-se observar que havia um distanciamento rígi<strong>do</strong> e irremediável, 99<br />

cria<strong>do</strong> pela própria condição <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>. Se considerava que os cria<strong>do</strong>s<br />

pertenciam à uma raça diferente <strong>da</strong>quela <strong>do</strong>s senhores, então ninguém<br />

contestava a desigual<strong>da</strong>de. Na corte real, ironicamente, aqueles considera<strong>do</strong>s<br />

senhores assumiam papel de inferiori<strong>da</strong>de, ou seja, de “cria<strong>do</strong>s”, diante <strong>do</strong> rei.<br />

Este tipo de relacionamento pode <strong>da</strong>r uma pista sobre o tipo de interação que<br />

se estabelecia entre duas classes sociais diferentes em <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>s <strong>do</strong> Antigo<br />

Regime.<br />

Sennett afirma que diante <strong>do</strong>s cria<strong>do</strong>s, a representação de papéis não<br />

era tão crucial e os diálogos eram mais espontâneos, ou seja, as pessoas<br />

falavam com mais liber<strong>da</strong>de com eles, até porque os cria<strong>do</strong>s não tinham<br />

nenhuma importância, estan<strong>do</strong> ali para servir. 100<br />

2.10 As estruturas <strong>da</strong> honra e <strong>da</strong> dádiva nas <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>s <strong>do</strong> Antigo<br />

Regime.<br />

Este estu<strong>do</strong> propôs o entendimento sobre o mo<strong>do</strong> como eram<br />

estabeleci<strong>da</strong>s no Antigo Regime português duas características, a hierarquia, e<br />

a dádiva, mas aqui é proposto a análise de uma terceira característica, a honra,<br />

para entender alguns elementos atrela<strong>do</strong>s às outras duas.<br />

A hierarquia já foi discuti<strong>da</strong>, ao se notar que a <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>da</strong> época em<br />

questão era <strong>do</strong>ta<strong>da</strong> de hierarquizações em to<strong>da</strong>s as suas expressões sociais, e<br />

papel a ser desempenha<strong>do</strong> pelas classes sociais perante ao meio estabeleci<strong>do</strong>,<br />

bem como as implicações que a representação tinha neste meio.<br />

A honra é uma característica peculiar às <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>s <strong>do</strong> Antigo Regime,<br />

sobretu<strong>do</strong> em <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>s mediterrânicas, como Portugal, assim como defini<strong>do</strong><br />

pelo antropólogo J. G. Peristiany, que afirma o conceito de honra nestas<br />

<strong>socie<strong>da</strong>de</strong>s transcendeu a própria existência <strong>do</strong> Antigo Regime. Segun<strong>do</strong> ele, a<br />

noção de honra é algo mais <strong>do</strong> que uma forma de mostrar aprovação ou<br />

99 ELIAS, N. A <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> de corte. Rio de Janeiro, 2001.p. 71<br />

100 SENNETT, R. O declínio <strong>do</strong> homem público, as tiranias <strong>da</strong> intimi<strong>da</strong>de, São Paulo, 1988. p. 102<br />

30


eprovação. Ela possui uma estrutura geral que se revela nas instituições e<br />

juízos de valor tradicionais de ca<strong>da</strong> cultura. 101<br />

A honra seria um valor que uma pessoa tem aos seus próprios olhos<br />

mas também aos olhos <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>. É a sua apreciação de quanto vale, <strong>da</strong><br />

sua pretensão a orgulho, mas é também o reconhecimento dessa pretensão, a<br />

admissão pela <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>da</strong> sua excelência, <strong>do</strong> seu direito a orgulho. 102 A<br />

honra seria então um nexo entre os ideais <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> e a reprodução destes<br />

no indivíduo através <strong>da</strong> sua aspiração de os personificar. Para se obter honra,<br />

é necessário construir uma reputação. Existe uma hierarquia <strong>da</strong> honra, e deste<br />

mo<strong>do</strong> quem se submete à precedência de outros acaba por reconhecer sua<br />

posição social inferior, fican<strong>do</strong>, de certa forma desonra<strong>do</strong>.<br />

No caso de afronta física, só há a desonra se há o reconhecimento de<br />

que o insulto existiu. Mas para este ter efeito, para o tipo de <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> em<br />

questão, era necessário que o que insultava e o insulta<strong>do</strong> estivessem em nível<br />

social equivalente. 103 Um inferior não tinha o direito de se sentir ofendi<strong>do</strong> ao ser<br />

insulta<strong>do</strong> por um superior, e os insultos de um inferior não atingiam um<br />

superior.<br />

Junto à questão <strong>da</strong> honra há a questão <strong>do</strong> duelo. Ele significa que<br />

quan<strong>do</strong> se falhava em se resolver uma questão de desonra por meio judicial,<br />

se recorria à violência física, haven<strong>do</strong> inclusive a obrigação de se recorrer à<br />

ela, seguin<strong>do</strong> ou não um código de honra formal. 104<br />

Existia também a honra coletiva, de grupos, esta pertencia ao chefe <strong>do</strong><br />

grupo, sen<strong>do</strong> sustenta<strong>da</strong> por juramentos de fideli<strong>da</strong>de por parte <strong>do</strong>s<br />

pertencentes ao grupo. 105<br />

Em uma <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> mediterrânica, onde, segun<strong>do</strong> Peristiany, houve<br />

continui<strong>da</strong>de <strong>do</strong>s sistemas <strong>do</strong>s <strong>século</strong>s anteriores, 106 foi observa<strong>do</strong> que a<br />

reputação era não somente uma questão de orgulho, mas também de utili<strong>da</strong>de<br />

prática. 107 O “bom nome” era o mais valioso capital.<br />

101<br />

PITT-RIVERS, J. Honra e posição social. In: PERISTIANY, J. G. Honra e vergonha: valores <strong>da</strong>s<br />

<strong>socie<strong>da</strong>de</strong>s mediterrânicas Lisboa. 1971. p.13<br />

102<br />

Idem<br />

103<br />

Ibidem. p. 22<br />

104<br />

Ibidem. p. 20<br />

105<br />

Ibidem. p. 26<br />

106<br />

Quan<strong>do</strong> ele fez a pesquisa, nas déca<strong>da</strong>s de 1950 e 1960.<br />

107<br />

PITT-RIVERS, J. Honra e posição social. In: PERISTIANY, J. G. Honra e vergonha: valores <strong>da</strong>s<br />

<strong>socie<strong>da</strong>de</strong>s mediterrânicas Lisboa. 1971. p. 28<br />

31


O conceito de honra é equipara<strong>do</strong> ao conceito de vergonha. Este<br />

conceito significa aquilo que faz uma pessoa sensível à pressão exerci<strong>da</strong> pela<br />

opinião pública. Neste senti<strong>do</strong> é sinônimo de honra. 108 Como base na<br />

reputação os <strong>do</strong>is conceitos são sinônimos porque a falta de vergonha é<br />

desonrosa, e uma pessoa com má reputação não tem nenhuma vergonha.<br />

Deve ser observa<strong>do</strong> que há diferenças entre o conceito de honra<br />

feminina e o de honra masculina. De acor<strong>do</strong> com um diagrama feito por Pitt-<br />

Rivers, vemos que a honra masculina é liga<strong>da</strong> as características de desejo de<br />

precedência, prontidão na defesa <strong>da</strong> reputação, na recusa em se submeter à<br />

humilhação, na autori<strong>da</strong>de sobre a família, ou seja na hombri<strong>da</strong>de <strong>do</strong> indivíduo.<br />

A honra feminina está liga<strong>da</strong> à pureza sexual, ao pu<strong>do</strong>r, ao recato e à<br />

discrição. 109 A ambos os sexos se esperava honesti<strong>da</strong>de, leal<strong>da</strong>de e<br />

preocupação com a reputação. Nota-se que a honra masculina depende <strong>da</strong><br />

feminina, e por isso os homens eram, por excelência, os guardiões <strong>da</strong> honra<br />

feminina, seja <strong>da</strong>s suas esposas, suas filhas ou <strong>da</strong>s suas irmãs. E no caso de<br />

se manter a pureza sexual, havia o agravante de que apenas o “<strong>do</strong>no” <strong>da</strong><br />

mulher ficava com a honra comprometi<strong>da</strong>. O que violava esta pureza mantinha<br />

sua honra intacta, e é por isso que o homem desonra<strong>do</strong> procurava restaurar<br />

sua honra por meio <strong>da</strong> violência física.<br />

Outra característica liga<strong>da</strong> a honra é a sua hereditarie<strong>da</strong>de, ela, ou a<br />

falta dela, é passa<strong>da</strong> aos descendentes, e até aos ascendentes, sen<strong>do</strong> que um<br />

filho ou filha que não siga conduta decorosa acaba por desonrar seus pais, já<br />

que se considerava que sua conduta refletia a deles. 110<br />

Semelhantes posições em relação à honra podem ser encontra<strong>do</strong>s em<br />

Lopes 111 e Sennett. 112<br />

O conceito de dádiva 113 está associa<strong>do</strong> ao conceito de generosi<strong>da</strong>de.<br />

Um tipo de generosi<strong>da</strong>de que obriga. Mais poderosa <strong>do</strong> que a força, fazen<strong>do</strong><br />

108 PITT-RIVERS, J. Honra e posição social. In: PERISTIANY, J. G. Honra e vergonha: valores <strong>da</strong>s<br />

<strong>socie<strong>da</strong>de</strong>s mediterrânicas Lisboa. 1971. p. 30<br />

109 Ibidem. p. 33<br />

110 Ibidem. p. 39<br />

111 LOPES, M. A. Mulheres, espaço e sociabili<strong>da</strong>de, Coleção Horizonte Histórico, livros Horizonte,<br />

Lisboa, 1989, ps.174-178<br />

112 SENNETT, R. O declínio <strong>do</strong> homem público, as tiranias <strong>da</strong> intimi<strong>da</strong>de, São Paulo, 1988. ps. 131-137<br />

113 Em Portugal este conceito é referi<strong>do</strong> pelo termo “mercê”.<br />

32


parte de um sistema de trocas. 114 Em uma <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> onde o sistema<br />

capitalista ain<strong>da</strong> não estava plenamente estabeleci<strong>do</strong>, a circulação de bens e<br />

de serviços estava atrela<strong>da</strong> ao oferecimento de dádivas. Era a chama<strong>da</strong><br />

“economia <strong>da</strong> dádiva”, conceito cunha<strong>do</strong> por Marcel Mauss.<br />

As dádivas eram, segun<strong>do</strong> Mauss, 115 fenômenos sociais totais, que<br />

mobilizavam ao mesmo tempo as esferas religiosa, política, jurídica, econômica<br />

e moral, sen<strong>do</strong> cerca<strong>da</strong>s de grande ritualização e estetização. 116 Elas se<br />

constituíam <strong>da</strong> cadeia de obrigações, “<strong>da</strong>r”, “receber”, “retribuir”.<br />

A dádiva era, em uma <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>do</strong> Antigo Regime, concedi<strong>da</strong> de um<br />

individuo de classe superior a um de classe inferior. Se nota uma relação de<br />

reciproci<strong>da</strong>de: ao mesmo tempo que alguém concedia uma dádiva, ele<br />

esperava ser correspondi<strong>do</strong>, seja com serviços, seja com leal<strong>da</strong>de, que era o<br />

que alguém de classe inferior poderia oferecer ao seu superior. Este, por sua<br />

vez, esperava receber dádivas como gratificação.<br />

Era atribuí<strong>do</strong> um senti<strong>do</strong> religioso à dádiva, sen<strong>do</strong> ela considera<strong>da</strong> uma<br />

expressão <strong>da</strong> vontade divina, e que o objetivo era estabelecer vínculos sociais<br />

através <strong>da</strong> aju<strong>da</strong> ao próximo. Na reali<strong>da</strong>de não havia concessões de dádivas<br />

genuinamente desinteressa<strong>da</strong>s, pois mesmo que quem a concedesse não<br />

esperasse, pelo menos à primeira vista, algo em troca, quem a recebia estava<br />

automaticamente comprometi<strong>do</strong> à gratidão e a retribuição. A ingratidão, falta de<br />

sentimento com o recebimento de alguma vantagem, era inconcebível para a<br />

mentali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> época trata<strong>da</strong>.<br />

Quanto mais eleva<strong>da</strong> a classe social de alguém, maior era a pressão<br />

para a concessão de dádivas, pois era desta maneira que se conseguia poder<br />

neste tipo de <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>, obrigan<strong>do</strong> outros indivíduos através <strong>da</strong> gratidão com<br />

sua generosi<strong>da</strong>de. 117 Textos <strong>da</strong> época exaltavam a característica <strong>da</strong><br />

generosi<strong>da</strong>de, principalmente ao se tratar <strong>da</strong> <strong>do</strong> rei. Assim, entre as várias<br />

114 GANDELMAN, L. As mercês são cadeias que não se rompem: liber<strong>da</strong>de e cari<strong>da</strong>de nas relações de<br />

poder <strong>do</strong> Antigo Regime português. In: SOIHET, R; BICALHO, M. F. B.; GOUVÊA, M. F. S. orgs.<br />

Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de história, Rio de Janeiro.<br />

2005. p. 109<br />

115 Marcel Mauss é um <strong>do</strong>s maiores teóricos sobre a questão <strong>da</strong> dádiva.<br />

116 GANDELMAN, L. As mercês são cadeias que não se rompem: liber<strong>da</strong>de e cari<strong>da</strong>de nas relações de<br />

poder <strong>do</strong> Antigo Regime português. In: SOIHET, R; BICALHO, M. F. B.; GOUVÊA, M. F. S. orgs.<br />

Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de história, Rio de Janeiro.<br />

2005. p. 110<br />

117 Ibidem. p.115<br />

33


virtudes que se esperava de um nobre, uma <strong>da</strong>s maiores, senão a maior, era a<br />

generosi<strong>da</strong>de, associa<strong>da</strong> à bon<strong>da</strong>de.<br />

Luciana Gandelman, apesar de notar a importância <strong>da</strong> concessão de<br />

dádivas para a <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>portuguesa</strong> <strong>do</strong> Antigo Regime, fez uma ressalva de<br />

que às vezes a generosi<strong>da</strong>de teve custos altos demais tanto para <strong>do</strong>a<strong>do</strong>res<br />

como para receptores, e que por isso nem sempre ela teve mais poder <strong>do</strong> que<br />

a força. 118<br />

A concessão de dádivas podia estar presente no ambiente <strong>do</strong>méstico,<br />

ao se notar a relação entre patrões e cria<strong>do</strong>s. Os cria<strong>do</strong>s juravam total leal<strong>da</strong>de<br />

aos seus amos mediante o recebimento de vantagens e presentes. A falha <strong>do</strong><br />

patrão em providenciar isto causava a quebra desta leal<strong>da</strong>de. Deste mo<strong>do</strong>, a<br />

dádiva era a única forma para se conseguir a vontade definitiva de alguém.<br />

Na análise sobre o assunto feita por Fernan<strong>da</strong> Olival, ela comparou o<br />

sistema de concessão de dádivas com o sistema medieval de vassalagem. Ela<br />

também notou como o ato de se inserir no processo obrigações recíprocas não<br />

era um ato desinteressa<strong>do</strong>. 119 A autora demonstrou a existência de <strong>do</strong>is tipos<br />

de justiça. A justiça distributiva e a justiça comutativa. O tipo relevante para<br />

esta análise é o primeiro tipo, que significa “<strong>da</strong>r a ca<strong>da</strong> um o que é seu”, 120 seja<br />

o prêmio, seja o castigo. Estes <strong>do</strong>is conceitos eram a base <strong>da</strong> sustentação para<br />

as relações de <strong>do</strong>minação no Antigo Regime.<br />

Havia, segun<strong>do</strong> Olival, <strong>do</strong>is meios de se obter mercês, ou dádivas, por<br />

meio <strong>da</strong> “graça” e por meio <strong>da</strong> justiça. 121 O primeiro meio se constitui <strong>da</strong>s<br />

recompensas resultantes <strong>da</strong> pura liberali<strong>da</strong>de, sem intuitos remuneratórios. O<br />

segun<strong>do</strong> meio era uma forma de se cobrar débitos. Os <strong>do</strong>is meios fazem parte<br />

<strong>do</strong> círculo vicioso de reciproci<strong>da</strong>des que era a <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>do</strong> Antigo Regime,<br />

pois o primeiro obriga o receptor a retribuir, e o segun<strong>do</strong> já é uma retribuição<br />

por um serviço presta<strong>do</strong> por si mesmo.<br />

118 GANDELMAN, L. As mercês são cadeias que não se rompem: liber<strong>da</strong>de e cari<strong>da</strong>de nas relações de<br />

poder <strong>do</strong> Antigo Regime português. In: SOIHET, R; BICALHO, M. F. B.; GOUVÊA, M. F. S. orgs.<br />

Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de história, Rio de Janeiro.<br />

2005. p. 122<br />

119 OLIVAL, F. Um rei e um reino que viviam <strong>da</strong> mercê. In:____. As ordens militares e o esta<strong>do</strong><br />

moderno; Honra mercê e venali<strong>da</strong>de em Portugal (1641-1789). Lisboa. Estar. 2001. p.18<br />

120 Ibidem. p. 20<br />

121 Ibidem. p. 22<br />

34


A idéia de mercê remuneratória tinha fortes implicações jurídico sociais,<br />

segun<strong>do</strong> nos conta Olival, 122 pois tornava os serviços patrimonializáveis, como<br />

se fossem bens, poden<strong>do</strong> ser testa<strong>do</strong>s, dividi<strong>do</strong>s, aliena<strong>do</strong>s, reclama<strong>do</strong>s em<br />

tribunais, entre outras possibili<strong>da</strong>des. Podiam se tornar até em uma forma de<br />

investimento, se tornan<strong>do</strong> um capital converti<strong>do</strong> em <strong>do</strong>ações.<br />

Além <strong>do</strong> valor econômico, as dádivas podiam ter fortes conotações<br />

honoríficas, dependen<strong>do</strong> de quem era seu concessor. Esta particulari<strong>da</strong>de era<br />

essencial em uma <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> organiza<strong>da</strong> em função <strong>do</strong> privilégio e <strong>da</strong> honra, <strong>da</strong><br />

desigual<strong>da</strong>de de condições. 123 Os grupos sociais podiam mu<strong>da</strong>r, mas a<br />

economia <strong>da</strong> dádiva permanecia, só perden<strong>do</strong> importância após a instauração<br />

<strong>do</strong> sistema econômico capitalista. 124<br />

A definição <strong>do</strong> que se constituía uma dádiva era bem ampla, de acor<strong>do</strong><br />

com Mauss. 125 Podia ser desde uma retribuição financeira até uma noiva,<br />

passan<strong>do</strong> por títulos honoríficos. Ou seja, nem sempre estava liga<strong>da</strong> ao mun<strong>do</strong><br />

material. Além disso, a troca tinha um nível espiritual, pois ao aceitar algo, o<br />

recebe<strong>do</strong>r deixa de ser um “outro”, pois a dádiva aproximava as partes<br />

momentaneamente, tornan<strong>do</strong>-os semelhantes. 126<br />

Quem se obrigava mutuamente, segun<strong>do</strong> Mauss, eram coletivi<strong>da</strong>des e<br />

não apenas indivíduos, mostran<strong>do</strong> que realmente não se tratava de um sistema<br />

isola<strong>do</strong>, mas sim de um sistema agrega<strong>do</strong> que fazia funcionar as <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>s<br />

de Antigo Regime.<br />

A dádiva e a hierarquia são as características as quais se pretende<br />

analisar como se estabeleciam no teatro, como eram retrata<strong>da</strong>s nas relações<br />

interpessoais entre personagens teatrais.<br />

122 OLIVAL, F. Um rei e um reino que viviam <strong>da</strong> mercê. In:____. As ordens militares e o esta<strong>do</strong><br />

moderno; Honra mercê e venali<strong>da</strong>de em Portugal (1641-1789). Lisboa. Estar. 2001. p. 24<br />

123 Idem<br />

124 Segun<strong>do</strong> Mauss, o sistema capitalista difere <strong>da</strong> economia <strong>da</strong> dádiva no ponto de que as relações ficam<br />

atrela<strong>da</strong>s estritamente ao dinheiro, não haven<strong>do</strong> a necessi<strong>da</strong>de de se estabelecer um vínculo entre as partes<br />

de uma determina<strong>da</strong> relação social.<br />

125 LANNA, M. Nota sobre Marcel Mauss e o ensaio sobre a dádiva. In:____. Revista de Sociologia<br />

Política. No. 14. 2000. p. 175<br />

126 Ibidem. p. 176<br />

35


3 AS CARACTERÍSTICAS DO TEATRO PORTUGUÊS<br />

3.1 A formação <strong>do</strong> conceito de teatro como elemento <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>do</strong><br />

Antigo Regime <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII, em Portugal e na Europa<br />

No <strong>século</strong> XVIII, o teatro era uma <strong>da</strong>s principais atrações de<br />

entretenimento e de encontros sociais que estava disponível à população,<br />

ten<strong>do</strong> como equivalentes as missas, os bailes de máscaras e no caso <strong>da</strong><br />

península Ibérica, <strong>da</strong>s toura<strong>da</strong>s. Era um ambiente em que os indivíduos<br />

buscavam constantemente a satisfação pessoal, frequentemente por meios<br />

que reafirmassem seus modelos de representações. 127 .<br />

Existia em Portugal, incentiva<strong>da</strong> pelo impulso para civilizar o país<br />

inicia<strong>da</strong> pelo marquês de Pombal, uma intenção de imitar a mo<strong>da</strong> francesa, em<br />

to<strong>da</strong>s as suas características, <strong>do</strong> vestuário aos costumes. 128 Assim, o teatro de<br />

estilo francês foi implanta<strong>do</strong> em Portugal. Seria um erro dizer que não existia<br />

uma tradição teatral <strong>portuguesa</strong> antes <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII. Albino Forjaz de<br />

Sampaio, estudioso <strong>do</strong> teatro português e <strong>do</strong>no de uma vasta coleção de peças<br />

de teatro <strong>portuguesa</strong>s de vários perío<strong>do</strong>s, conta que já havia uma tradição<br />

teatral no país na I<strong>da</strong>de Média, 129 embora fosse de cunho exclusivamente<br />

religioso. No <strong>século</strong> XVI houve um grande avanço na representação teatral,<br />

haven<strong>do</strong> um bom número de autores de peças de destaque, sen<strong>do</strong> o maior<br />

deles Gil Vicente. 130 Nesta época, Portugal estava no auge de seu poderio,<br />

sen<strong>do</strong> o primeiro país europeu a descobrir a rota marítima para as Índias e<br />

possuin<strong>do</strong> um vasto e rico império. O teatro desta época, segun<strong>do</strong> Sampaio,<br />

tem como característica a exaltação <strong>do</strong>s elementos nacionais, ten<strong>do</strong> cunho<br />

patriótico. No <strong>século</strong> XVII o teatro perdeu importância, sen<strong>do</strong> mínima a<br />

produção teatral deste perío<strong>do</strong>. 131<br />

No <strong>século</strong> XVIII o teatro desenvolvi<strong>do</strong> na França se espalhou pela<br />

Europa. Os teóricos teatrais deste país cunharam um novo tipo de atuação e<br />

representação, apoia<strong>do</strong>s no sistema de relacionamentos <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>da</strong><br />

127<br />

SENNETT, R. O declínio <strong>do</strong> homem público, as tiranias <strong>da</strong> intimi<strong>da</strong>de, São Paulo, 1988. p. 99<br />

128<br />

LOPES, M. A. Mulheres, espaço e sociabili<strong>da</strong>de, Coleção Horizonte Histórico, livros Horizonte,<br />

Lisboa, 1989, p.69<br />

129<br />

SAMPAIO, A. F., As melhores páginas <strong>do</strong> teatro português, Lisboa. 1933. p. 23<br />

130 Ibidem. p. 24<br />

131 Ibidem. p. 25<br />

36


época. 132 Esta idéia causa uma oposição com aquilo que foi observa<strong>do</strong> por<br />

Sennett. Mas uma vez se faz a pergunta: era a vi<strong>da</strong> que imitava o teatro, ou o<br />

teatro que imitava a vi<strong>da</strong>?<br />

Consideran<strong>do</strong> que o teatro era uma representação cultural de uma<br />

<strong>socie<strong>da</strong>de</strong>, pode-se afirmar que quem está correta é a segun<strong>da</strong> idéia. O teatro<br />

era um elemento <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>do</strong> Antigo Regime, mas seria um exagero<br />

afirmar que ela se espelhou nele para basear seu comportamento. Se haviam<br />

autores <strong>da</strong> época que afirmavam que “a rua virou um teatro”, eles estavam<br />

denotan<strong>do</strong> a similari<strong>da</strong>de entre as relações entre os indivíduos no meio público<br />

e as <strong>do</strong>s atores no palco, mas não necessariamente afirman<strong>do</strong> que o meio<br />

público estava imitan<strong>do</strong> a representação teatral.<br />

O teatro, segun<strong>do</strong> a análise de Gasset e Guinzburg, são muitas coisas<br />

diferentes entre si que nascem e morrem, que variam, se transformam a ponto<br />

de não se parecer, à primeira vista, uma forma em na<strong>da</strong> com a outra. 133 Ele<br />

não pode ser defini<strong>do</strong> como gênero literário, pois sua definição vai muito além<br />

<strong>da</strong>s palavras. A respeito destas, no teatro elas têm função constituinte, mas<br />

muito determina<strong>da</strong>, ou seja, são secundárias à “representação”. 134 Ao contrário<br />

<strong>do</strong> que acontece em um livro, onde as ações e os diálogos podem ser<br />

retrata<strong>do</strong>s de forma escrita, no teatro há elementos que transcendem a<br />

representação na forma de palavras, e que só podem ser passa<strong>do</strong>s ao público<br />

de forma visual. Elementos que podem estar nas ações <strong>do</strong>s personagens, em<br />

linguagem corporal ou até mesmo no figurino. A essência <strong>do</strong> teatro é a<br />

presença e a potência <strong>da</strong> visão. Ele é um espetáculo, e para apreciá-lo deve-se<br />

ir até ele, para vê-lo. Esta definição faz lembrar o conceito atribuí<strong>do</strong> à<br />

<strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>do</strong> Antigo Regime por Sennett, de que a ação e a representação<br />

contam mais <strong>do</strong> que a palavra pura e simples.<br />

O ator, para que fizesse sucesso, deveria possuir o <strong>do</strong>m <strong>da</strong><br />

“transparência”, 135 ou seja, de fazer desaparecer o que é real, transforman<strong>do</strong>-<br />

se nos personagens. Inclusive, a representação teatral está sempre fazen<strong>do</strong><br />

um equilíbrio entre a reali<strong>da</strong>de e a irreali<strong>da</strong>de, sempre corren<strong>do</strong> o risco de ficar<br />

132 GUINZBURG, J; GASSET, J. O. y, A idéia <strong>do</strong> teatro, Madri, 1966. p. 72<br />

133 Ibidem. p. 18<br />

134 Ibidem. p. 32<br />

135 Ibidem. p. 35<br />

37


com apenas uma <strong>da</strong>s duas coisas. 136 Em suma, o ator está no palco para<br />

representar uma farsa, um “mun<strong>do</strong> de mentirinha”, ao público. Eles fazem com<br />

que o público tenha emoções (isto é, rir ou chorar), e contracenam de mo<strong>do</strong> a<br />

serem vistos pelo público. 137 De fato, um <strong>do</strong>s maiores interesses (e desafios)<br />

para o ator quan<strong>do</strong> está no palco é chamar a atenção <strong>do</strong>s especta<strong>do</strong>res,<br />

prender esta atenção, fazer com que reajam de forma intensa ao que acontece<br />

no palco.<br />

Gasset e Guinzburg também observaram que o homem tem<br />

necessi<strong>da</strong>de de, às vezes, escapar <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, e o teatro seria uma<br />

<strong>da</strong>s maneiras de se fazer isso. 138 Ele necessita periodicamente de evasão <strong>da</strong><br />

cotidiani<strong>da</strong>de em que se sente prisioneiro, de obrigações, regras e trabalhos. 139<br />

Os autores afirmam que a necessi<strong>da</strong>de de escapar <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de e construir<br />

uma imagem fingi<strong>da</strong> acompanha o homem há muito tempo. 140 Explican<strong>do</strong> de<br />

outra maneira, isto significa que o homem passa a vi<strong>da</strong> queren<strong>do</strong> ser outro,<br />

mas isso é impossível, a não ser pelo meio <strong>da</strong> metáfora. O teatro é uma <strong>da</strong>s<br />

vertentes desta metáfora.<br />

Em relação ao que deveria ser apresenta<strong>do</strong> na representação teatral,<br />

Gasset e Guinzburg afirmam que o teatro deve apresentar um “ser em forma”,<br />

ou seja, os personagens deveriam ser representa<strong>do</strong>s em sua glória, e não em<br />

sua ruína. Seria este elemento, segun<strong>do</strong> eles, que diferenciaria o teatro <strong>da</strong><br />

reali<strong>da</strong>de, pois as pessoas mostra<strong>da</strong>s nele são imortaliza<strong>da</strong>s, 141 transcenden<strong>do</strong><br />

o aspecto passageiro <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, sobreviven<strong>do</strong> através <strong>do</strong> tempo. Assim, pessoas<br />

de épocas passa<strong>da</strong>s podem estar mortas há muito tempo, mas as<br />

representações delas por parte de personagens sobrevivem até hoje. Esta<br />

idéia mostra que o teatro pode ser uma boa fonte para estu<strong>da</strong>r costumes e até<br />

mesmo mentali<strong>da</strong>des, não se esquecen<strong>do</strong> que o que o teatro mostra não é o<br />

real, mas sim a representação deste real, que, como será mostra<strong>do</strong> adiante,<br />

podia ser idealiza<strong>da</strong>. Apesar de os personagens geralmente serem<br />

apresenta<strong>do</strong>s em sua glória, algumas vezes se opta por apresentá-los em sua<br />

ruína, pois ela também pode ser fascinante.<br />

136 GUINZBURG, J; GASSET, J. O. y, A idéia <strong>do</strong> teatro, Madri, 1966. p. 39<br />

137 Ibidem. p. 30<br />

138 Ibidem. p. 50<br />

139 Ibidem. p. 70<br />

140 Ibidem. p. 85<br />

141 Ibidem. p. 20<br />

38


To<strong>da</strong>s estas definições feitas por Gasset e Guinzburg sobre o teatro não<br />

se focam em um único perío<strong>do</strong> <strong>da</strong> história. Eles tratam <strong>da</strong> construção <strong>do</strong>s<br />

elementos que constituem o teatro ao longo <strong>da</strong> história, ten<strong>do</strong> uma visão geral.<br />

No entanto, o que eles definiram sobre este meio de entretenimento é<br />

extremamente coerente com o teatro <strong>do</strong> Antigo Regime, ao observar as idéias<br />

desenvolvi<strong>da</strong>s por to<strong>do</strong>s os autores que trataram <strong>da</strong> questão.<br />

Sennett confirma a idéia <strong>do</strong> jogo entre o real e o irreal no teatro. Por<br />

exemplo, ele afirma que o público <strong>do</strong> teatro <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII exigia uma<br />

descontinui<strong>da</strong>de níti<strong>da</strong> entre os <strong>do</strong>is <strong>do</strong>mínios quan<strong>do</strong> os personagens no palco<br />

pertenciam às cama<strong>da</strong>s inferiores <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>. O público fazia vista grossa<br />

para a ci<strong>da</strong>de e queria permanecer cega também no teatro. 142 Peças que<br />

tratassem de épocas passa<strong>da</strong>s eram retrata<strong>da</strong>s como se os personagens<br />

pertencessem à <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>da</strong> época, pois segun<strong>do</strong> teóricos <strong>da</strong> época, a<br />

exatidão histórica era impossível para a arte dramática. 143 No teatro <strong>do</strong> Antigo<br />

Regime não tinha idéia <strong>do</strong> que era uma representação histórica ou geográfica.<br />

Isto significa que a idéia de aparência um personagem de uma peça com<br />

enre<strong>do</strong> passa<strong>do</strong> no <strong>século</strong> X, ou na Turquia estava fora de qualquer<br />

imaginação teatral <strong>da</strong> época.<br />

O teatro europeu <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII era um lugar onde o público interagia<br />

com a peça de uma forma que hoje seria impensável. A platéia reagia<br />

fortemente com as situações passa<strong>da</strong>s na representação <strong>do</strong> palco. Agia de<br />

uma forma que na rua seria impossível. Ou seja, pessoas, com vi<strong>da</strong>s<br />

governa<strong>da</strong>s por uma convenção abstrata e impessoal, conseguiam ser<br />

espontâneas neste ambiente, livres para expressar o seu eu. Isto causa um<br />

para<strong>do</strong>xo com o mo<strong>do</strong> como a <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> se estabelecia. Gasset e Guinzburg<br />

observaram que o homem busca conceitos fora <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, incluin<strong>do</strong> o teatro,<br />

como uma válvula de escape <strong>da</strong>s obrigações <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>, e que isto sempre<br />

foi feito pelas <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>s ao longo <strong>da</strong> história. Saben<strong>do</strong> disto, pode-se afirmar<br />

que na <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>do</strong> Antigo Regime a situação não foi diferente. Os indivíduos<br />

buscavam no teatro um desligamento com a obrigatorie<strong>da</strong>de com as<br />

representações no convívio social.<br />

142 SENNETT, R. O declínio <strong>do</strong> homem público, as tiranias <strong>da</strong> intimi<strong>da</strong>de, São Paulo, 1988. p. 97<br />

143 Idem<br />

39


Jean Jacques Roubine definiu o teatro como sen<strong>do</strong> ao mesmo tempo<br />

uma prática <strong>do</strong> ato <strong>da</strong> escrita e uma prática de representação. Ou seja, o teatro<br />

é caracteriza<strong>do</strong> por uma heterogenei<strong>da</strong>de. 144 As teorias de teatro, segun<strong>do</strong><br />

Roubine, têm pretensões totalizantes, enuncian<strong>do</strong> teorias que devem valer<br />

para to<strong>da</strong> uma época e to<strong>da</strong> uma classe social. 145 146 O uso deste conceito<br />

facilita o estu<strong>do</strong> sobre as características <strong>da</strong> representação teatral de um<br />

determina<strong>do</strong> perío<strong>do</strong>. No <strong>século</strong> XVIII, os autores de peças pareciam muito<br />

interessa<strong>do</strong>s em saber o que agra<strong>da</strong>va ao público em peças. Para isto, eles<br />

frequentavam assiduamente salas de teatro, e analisavam minuciosamente a<br />

sua própria reação como especta<strong>do</strong>res. A busca pela satisfação <strong>do</strong> público<br />

norteava as produções teatrais. Além disso, os que elaboravam as peças de<br />

teatro eram membros de uma casta de “intelectuais”, 147 que eram quem definia<br />

o que seria representa<strong>do</strong>. Não eram membros típicos <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> que<br />

elaboravam estas peças, mas sim observa<strong>do</strong>res dela. Isto se deve ser leva<strong>do</strong><br />

em conta ao perceber até que ponto o “real” <strong>da</strong>s peças era mostra<strong>do</strong>.<br />

Assim, no caso <strong>do</strong> Antigo Regime, Roubine disse que nos <strong>século</strong>s XVII e<br />

XVIII prevaleceu uma representação <strong>da</strong> “bela natureza”, estabeleci<strong>da</strong> por<br />

preceitos aristotélicos. 148 Isto significa que as pessoas eram representa<strong>da</strong>s no<br />

teatro com virtudes superiores à pessoas reais. O objetivo era a provocação de<br />

um prazer de natureza estética através <strong>da</strong> representação <strong>do</strong> real, 149 para<br />

causar o aprimoramento e o apaziguamento <strong>do</strong> coração, o que teóricos<br />

modernos denominam de catarse. 150<br />

Para entender o que separa a reali<strong>da</strong>de de sua representação, deve-se<br />

levar em conta de que o teatro se baseia na verossimilhança para sua<br />

144<br />

ROUBINE, J. J. Introdução às grandes teorias <strong>do</strong> teatro, Rio de Janeiro, 2000. p. 9<br />

145<br />

Ibidem. p. 10<br />

146<br />

Para se compreender esta idéia deve-se levar em conta que as peças de teatro são produzi<strong>da</strong>s para que<br />

um público as assista, e elas deveriam agra<strong>da</strong>r-lhe. Assim, os dramaturgos deveriam obedecer as<br />

tendências de comportamento <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> em suas representações, manten<strong>do</strong> uma sintonia com ela. O<br />

que constituiria uma boa peça de teatro mu<strong>da</strong>ria junto com a <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>.<br />

147<br />

ROUBINE, J. J. Introdução às grandes teorias <strong>do</strong> teatro, Rio de Janeiro, 2000. p. 138<br />

148<br />

Ibidem. p. 18<br />

149<br />

Não deve ser confundi<strong>da</strong> com o real. Este conceito está de acor<strong>do</strong> com o que Gasset e Guinzburg<br />

disseram sobre a representação <strong>da</strong> “glória” <strong>do</strong>s personagens.<br />

150<br />

As emoções demonstra<strong>da</strong>s pela platéia cita<strong>da</strong>s por Sennett provavelmente são a manifestação deste<br />

conceito.<br />

40


epresentação. 151 a representação teatral <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII era uni<strong>do</strong> à uma<br />

idealização, <strong>da</strong> qual só começaria a se separar no final <strong>do</strong> <strong>século</strong>.<br />

Roubine definiu o trabalho <strong>do</strong> ator como sen<strong>do</strong> observar, abstrair e<br />

amplificar. 152 Ou seja, ele deveria observar para definir um modelo ideal de<br />

personagem. Ele deveria, na sua interpretação deste personagem, realizar uma<br />

atualização cênica <strong>do</strong> modelo de personagem ao sabor <strong>da</strong>s exigências <strong>da</strong><br />

representação. Finalmente, ele deveria <strong>da</strong>r à representação uma amplitude que<br />

não seria possível atingir na reali<strong>da</strong>de. Era isto que causava a idealização <strong>do</strong><br />

personagem. Ao ampliar seu âmbito de vi<strong>da</strong>, o personagem se tornava idílico,<br />

irreal. Tomemos as idéias de Sennett para explicar porque isto ocorria no caso<br />

<strong>do</strong> teatro <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII.<br />

Mas primeiro é necessário entender como era composto o público teatral<br />

<strong>do</strong> perío<strong>do</strong>, e como se comportava em relação ao teatro <strong>da</strong> época.<br />

3.2 O funcionamento <strong>do</strong> espaço teatral no Antigo Regime<br />

Sennett fez uma pesquisa a respeito <strong>da</strong> composição <strong>da</strong> platéia <strong>do</strong>s<br />

teatros no <strong>século</strong> XVIII. Mas o fez em Londres e em Paris. Em muitos casos, os<br />

bilhetes custavam muito caro, então a presença de trabalha<strong>do</strong>res era<br />

incomum. 153 O público se constituía principalmente <strong>da</strong> média e alta burguesia.<br />

Havia espaço para estu<strong>da</strong>ntes e intelectuais, que conseguiam seus ingressos<br />

como presentes de senhores, geralmente nobres, os quais fossem seus<br />

protegi<strong>do</strong>s. 154 A própria estrutura <strong>do</strong> teatro era defini<strong>da</strong> de acor<strong>do</strong> com o status<br />

social, defini<strong>do</strong> por Elias como irremediavelmente desigual entre os indivíduos.<br />

Elias definiu a separação <strong>do</strong> espaço em relação às residências priva<strong>da</strong>s, mas é<br />

possível ver aqui que ela chega até aos espaços públicos, incluin<strong>do</strong> o teatro.<br />

Assim, Sennett disse que os lugares em que as classes mais baixas pudessem<br />

eventualmente ocupar não possuíam cadeiras. 155 A criação de teatros com<br />

cadeiras para to<strong>do</strong>s causou, segun<strong>do</strong> escritores de teatro <strong>da</strong> época, um certo<br />

entorpecimento na platéia. Antes barulhenta, a platéia ficou silenciosa, o que<br />

151<br />

ROUBINE, J. J. Introdução às grandes teorias <strong>do</strong> teatro, Rio de Janeiro, 2000. p. 30<br />

152<br />

Ibidem. p. 81<br />

153<br />

SENNETT, R. O declínio <strong>do</strong> homem público, as tiranias <strong>da</strong> intimi<strong>da</strong>de, São Paulo, 1988. p. 100<br />

154<br />

Vemos aqui mais uma manifestação <strong>da</strong> dádiva nesta <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>.<br />

155<br />

SENNETT, R. O declínio <strong>do</strong> homem público, as tiranias <strong>da</strong> intimi<strong>da</strong>de, São Paulo, 1988. p. 100<br />

41


gerou uma diminuição na diversão em se ver uma peça. Esta mu<strong>da</strong>nça se deu<br />

no final <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII, sugerin<strong>do</strong> que o comportamento <strong>da</strong> platéia era muito<br />

diferente <strong>do</strong> que se esperaria em um ambiente onde se era espera<strong>do</strong> que os<br />

especta<strong>do</strong>res se concentrassem no que estava ocorren<strong>do</strong> no palco. De<br />

qualquer maneira o objetivo ao se construir um teatro é propiciar um ambiente<br />

no qual se torna possível a apresentação de peças, 156 e que maximize a<br />

“ilusão” teatral. 157<br />

A platéia não estava no espaço teatral apenas para assistir a peça. Se ia<br />

ao teatro para se ter interações sociais. Sennett observou um grande número<br />

de jovens na platéia <strong>do</strong> teatro <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII. 158 Estes jovens não estavam no<br />

teatro necessariamente para assistir a peça, mas para terem um convívio social<br />

fora <strong>da</strong>s obrigações de representação, tiran<strong>do</strong> proveito <strong>da</strong> espontanei<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s<br />

relações no ambiente teatral. Assim, esta espontanei<strong>da</strong>de não estava restrita à<br />

representação fictícia no palco e nas reações <strong>da</strong> platéia em relação à ela, mas<br />

também às relações entre membros <strong>da</strong> platéia. Em um fenômeno que foi<br />

percebi<strong>do</strong> também nos cafés, Sennett declarou que neste tipo de espaço<br />

ocorria um fenômeno que livrava os indivíduos de suas obrigações de serem<br />

representativos para seus iguais, bem como as próprias separações entre as<br />

relações entre as classes sociais. 159 Isto mesmo se consideran<strong>do</strong> que a<br />

separação <strong>do</strong> espaço continuava.<br />

Sennett apontou a presença de lugares no próprio palco, onde membros<br />

<strong>da</strong> platéia se misturavam aos atores, revelan<strong>do</strong> que se tratava de um ambiente<br />

único, ou seja, que não havia uma rígi<strong>da</strong> separação entre palco e platéia. Tal<br />

como na vi<strong>da</strong> pública, o <strong>do</strong>mínio <strong>da</strong> representação e o <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de estavam<br />

mescla<strong>do</strong>s. A “fusão” entre os <strong>do</strong>mínios acabava por gerar uma absorção <strong>do</strong>s<br />

membros <strong>da</strong> platéia <strong>do</strong> enre<strong>do</strong> <strong>da</strong> peça de uma forma que seria embaraçosa<br />

para quem não conhecesse o ambiente. 160 Os teóricos de teatro <strong>do</strong> perío<strong>do</strong><br />

estavam acostuma<strong>do</strong>s com este tipo de reação por parte <strong>do</strong> público, e por isso,<br />

quan<strong>do</strong> foram construí<strong>do</strong>s novos teatros que isolavam o <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> palco <strong>do</strong><br />

156 GUINZBURG, J; GASSET, J. O. y, A idéia <strong>do</strong> teatro, Madri, 1966. p. 28<br />

157 Conceito que define o que causa o especta<strong>do</strong>r a ficar absorto na peça.<br />

158 SENNETT, R. O declínio <strong>do</strong> homem público, as tiranias <strong>da</strong> intimi<strong>da</strong>de, São Paulo, 1988. p. 101<br />

159 Ibidem. p. 108<br />

160 Ibidem. p. 101<br />

42


<strong>da</strong> platéia, resultan<strong>do</strong> em um silêncio por parte desta, eles acharam que o<br />

design <strong>do</strong> teatro estava erra<strong>do</strong>.<br />

De qualquer forma, a mistura de atores e platéia e as fortes expressões<br />

de emoções por parte desta, não se tratavam, para Sennett, de liberações<br />

dionísicas onde atores e platéia se tornavam uma única pessoa na observação<br />

de um mesmo rito comum. 161 As platéias estavam ao mesmo tempo envolvi<strong>da</strong>s<br />

na peça e sob controle. Elas criticavam atores que as induzissem ao choro e<br />

estavam dispostas a interferir diretamente na ação <strong>do</strong>s atores, através de<br />

sinais sonoros e de “enquadramentos”, que implicavam a percepção que a<br />

platéia tinha sobre determina<strong>do</strong>s atores. Se um ator esquecesse sua fala, por<br />

exemplo, a platéia o “enquadrava” com uma característica, e aquele ator<br />

sempre seria associa<strong>do</strong> à ela. A espontanei<strong>da</strong>de <strong>da</strong> platéia era inclusive<br />

custosa para os <strong>do</strong>nos de teatros, já que as manifestações desta<br />

espontanei<strong>da</strong>de podiam ser tão intensas que se refletiam em <strong>da</strong>nos ao espaço.<br />

O papel <strong>do</strong> ator, segun<strong>do</strong> o pensamento <strong>do</strong> público que ia ao teatro no<br />

<strong>século</strong> XVIII, era de divertir. Ele existia para servir ao público. O ator, sen<strong>do</strong> de<br />

classe social inferior ao <strong>do</strong> público que ia assistir sua representação, era<br />

considera<strong>do</strong> um cria<strong>do</strong>, estan<strong>do</strong> sob o controle <strong>do</strong> público. Saben<strong>do</strong>-se o que<br />

foi defini<strong>do</strong> sobre a condição <strong>do</strong> cria<strong>do</strong> segun<strong>do</strong> Sennett e Elias, o ator estava<br />

submeti<strong>do</strong> às condições que lhe foram incumbi<strong>da</strong>s pela <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>. Esta idéia<br />

talvez implique que havia uma condição que fazia com que o teatro fosse<br />

considera<strong>do</strong> uma extensão <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio priva<strong>do</strong>, embora não o fosse realmente.<br />

O ator era como se fosse um serviçal em que o público pudesse <strong>da</strong>r ordens, e<br />

que assim o divertisse, pois implicava que os indivíduos estavam tratan<strong>do</strong> com<br />

um indivíduo de status inferior.<br />

Mas Sennett observa que o status inferior <strong>do</strong> ator não é suficiente para<br />

explicar a espontanei<strong>da</strong>de que sua representação causava no espaço teatral.<br />

O ator era um “nômade”, viajan<strong>do</strong> de corte em corte em busca de trabalho. 162<br />

Ele precisava ser trágico, cômico, cantor, <strong>da</strong>nçarino, ou seja, de qualquer forma<br />

que lhe fosse exigi<strong>da</strong> em um trabalho. Ele se sujeitava a qualquer condição,<br />

desde que lhe fosse providencia<strong>do</strong> um trabalho. Não lhe incomo<strong>da</strong>va ser<br />

humilha<strong>do</strong> pela platéia ou representar papéis controversos. Ele precisava de<br />

161 SENNETT, R. O declínio <strong>do</strong> homem público, as tiranias <strong>da</strong> intimi<strong>da</strong>de, São Paulo, 1988. p. 101<br />

162 Ibidem. p. 103<br />

43


uma função. A ausência de companhias de teatro auto-suficientes fazia com<br />

que houvesse poucas variações de locali<strong>da</strong>de para locali<strong>da</strong>de, já que to<strong>do</strong>s os<br />

grupos precisavam ficar se deslocan<strong>do</strong> para conseguir trabalho. 163<br />

Como já foi afirma<strong>do</strong> por Roubine, o centro <strong>da</strong>s atenções <strong>da</strong>queles que<br />

preparavam as peças era o comportamento <strong>do</strong> público. Ou melhor, um<br />

segmento deste público, o qual o ator tinha que agra<strong>da</strong>r, que envolvia os<br />

ci<strong>da</strong>dãos mais ricos e influentes. Como já foi dito, o próprio design <strong>do</strong> teatro<br />

obedecia um padrão que privilegiava alguns indivíduos de classe superior aos<br />

outros. Havia camarotes especiais que visavam uma melhor visão destes<br />

indivíduos em relação ao que estava ocorren<strong>do</strong> no palco, pois eram destes<br />

indivíduos que se esperava ter reações a respeito <strong>da</strong>s peças. O poder <strong>da</strong><br />

platéia como uma espécie de júri, a qual podia aprovar e desaprovar, norteava<br />

a conduta <strong>da</strong>s equipes de teatro, e estan<strong>do</strong> ciente deste poder, a platéia se<br />

sentia livre para manifestar sua opinião. A necessi<strong>da</strong>de de obter a aprovação<br />

<strong>do</strong>s membros ricos <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> era explica<strong>da</strong> pelo fato de que o teatro era<br />

patrocina<strong>do</strong> por eles, sen<strong>do</strong> uma instituição. Se visava agra<strong>da</strong>r somente aos<br />

membros <strong>da</strong> classe que o patrocinava, o teatro servia ao menos como um<br />

ponto de reunião para membros de classes mais baixas que por ventura iam<br />

nele.<br />

Ao longo <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII, a profissão de ator foi se estabilizan<strong>do</strong>, e se<br />

tornou ca<strong>da</strong> vez menos nômade. 164 Ten<strong>do</strong> sua profissão regulariza<strong>da</strong>, o ator<br />

passou a ser quase como um trabalha<strong>do</strong>r comum. Sua função era a de<br />

produzir uma quanti<strong>da</strong>de defini<strong>da</strong> de emoções, em uma <strong>da</strong>ta marca<strong>da</strong>.<br />

O comportamento <strong>da</strong> platéia <strong>do</strong>s teatros <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII difere <strong>da</strong>s <strong>do</strong><br />

<strong>século</strong> anterior porque naquela época, o público tinha que se curvar ao<br />

comportamento <strong>do</strong>s membros <strong>da</strong> nobreza, pois eram seus convi<strong>da</strong><strong>do</strong>s, ten<strong>do</strong><br />

eles patrocínio exclusivo <strong>do</strong> teatro <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>. No <strong>século</strong> XVIII o teatro se<br />

tornou mais acessível, 165 e com o passar <strong>do</strong> tempo o foco <strong>do</strong> ator passou a<br />

impressionar a totali<strong>da</strong>de <strong>do</strong> público, e não mais apenas uns poucos <strong>da</strong> platéia.<br />

Roubine afirma que com a ascensão <strong>da</strong> burguesia, apareceu o teatro “para o<br />

163 SENNETT, R. O declínio <strong>do</strong> homem público, as tiranias <strong>da</strong> intimi<strong>da</strong>de, São Paulo, 1988. p. 103<br />

164 Ibidem. p. 104<br />

165 Ibidem. p. 105<br />

44


povo”, e que ele deixou de ter o objetivo de perpetuar os valores aristocráticos<br />

e a ideologia monarquista. 166<br />

Mas mesmo assim, o público permanecia preso às tradições <strong>do</strong> <strong>século</strong><br />

XVII. 167 Sennett observou este fenômeno afirman<strong>do</strong> que a platéia impunha ao<br />

ator e ao dramaturgo uma restrição: eles não podiam nem tentar fazer algo que<br />

já não tivesse si<strong>do</strong> feito antes. 168 A platéia desaprovava, e até mesmo ficava<br />

repugna<strong>da</strong>, quan<strong>do</strong> isto acontecia. Principalmente se a inovação envolvesse<br />

uma quebra com a idealização estabeleci<strong>da</strong> nas peças <strong>da</strong> época. 169 Isto porque<br />

uma peça não apenas “simbolizava” a reali<strong>da</strong>de, mas a criava através <strong>da</strong>s<br />

convenções <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de. O problema é que o público não se chocava com a<br />

reali<strong>da</strong>de representa<strong>da</strong>, mas ficava perturba<strong>do</strong> porque não poderia deixar de<br />

crer nele. 170 De fato, esta restrição fez com que pouco inovasse no <strong>século</strong> XVIII<br />

em relação ao dinamismo <strong>do</strong> enre<strong>do</strong>. 171<br />

Outro ponto importante para o teatro <strong>do</strong> Antigo Regime era o papel <strong>da</strong><br />

fala. Segun<strong>do</strong> Sennett, não existia, no <strong>século</strong> XVIII, a conversão de sinais em<br />

símbolos. 172 A pressuposição de um significa<strong>do</strong> por trás de uma expressão<br />

pareceria estranha, para uma <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>da</strong> época. O ato de falar era fazer uma<br />

afirmação forte, efetiva, acima de tu<strong>do</strong> independente e emocional. A fala diante<br />

de uma platéia, então, era um momento absoluto, uma suspensão completa de<br />

movimentos, que acabava por causar emoções fortes no público porque este<br />

gesto era absolutamente crível por seus próprios termos. 173 A emoção não era<br />

causa<strong>da</strong> pela cena em que ocorre a fala, mas sim pela fala em si mesma, não<br />

pelo que representava, mas pelo que se referia. Uma atitude similar, mas não<br />

tão acentua<strong>da</strong>, se observa em relação à ação.<br />

A tarefa de to<strong>do</strong> teatro é a criação de um padrão de credibili<strong>da</strong>de interno<br />

e auto-suficiente. 174 Nas <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>s européias <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII, onde as<br />

expressões eram trata<strong>da</strong>s como sinais e no como símbolos, esta tarefa fica<br />

mais fácil. Nelas, a “ilusão teatral”, já explica<strong>da</strong>, não tinha conotação de<br />

166<br />

ROUBINE, J. J. Introdução às grandes teorias <strong>do</strong> teatro, Rio de Janeiro, 2000. p. 126<br />

167<br />

Ibidem. p. 73<br />

168<br />

SENNETT, R. O declínio <strong>do</strong> homem público, as tiranias <strong>da</strong> intimi<strong>da</strong>de, São Paulo, 1988. p. 106<br />

169<br />

Idem<br />

170<br />

Idem<br />

171<br />

GUINZBURG, J; GASSET, J. O. y, A idéia <strong>do</strong> teatro, Madri, 1966. p. 26<br />

172<br />

SENNETT, R. O declínio <strong>do</strong> homem público, as tiranias <strong>da</strong> intimi<strong>da</strong>de, São Paulo, 1988. p. 106<br />

173 Idem<br />

174 Ibidem. p. 107<br />

45


irreali<strong>da</strong>de, e sua criação era apenas a realização de um poder de expressão<br />

em uma obscura “vi<strong>da</strong> real”.<br />

Se a palavra era real e a fala, em qualquer momento, era crível mesmo<br />

sem referência ao que estava acontecen<strong>do</strong> na peça, a espontanei<strong>da</strong>de<br />

instantânea <strong>da</strong> platéia era liberta<strong>da</strong>. As pessoas não tinham que estar atentas a<br />

ponto de precisar promover a to<strong>do</strong> instante um processo de decodificação para<br />

saberem o que realmente estava sen<strong>do</strong> dito, através <strong>do</strong>s gestos. A<br />

espontanei<strong>da</strong>de era então produzi<strong>da</strong> pela artificiali<strong>da</strong>de, 175 não ten<strong>do</strong> o ator<br />

representar no palco de forma natural em relação ao personagem. Isto pode<br />

estar relaciona<strong>do</strong> com a maneira com que não havia preocupação em <strong>da</strong>r um<br />

figurino ou uma representação adequa<strong>da</strong> ao perío<strong>do</strong> temporal e espacial<br />

trata<strong>do</strong>s por uma peça, já que isto não era considera<strong>do</strong> relevante, nem sequer<br />

cogita<strong>do</strong> por atores e dramaturgos <strong>da</strong> época <strong>do</strong> Antigo Regime.<br />

3.3 As especifici<strong>da</strong>des <strong>do</strong> teatro português<br />

O teatro português <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII foi importa<strong>do</strong> <strong>da</strong> França, em uma<br />

tentativa de tornar Portugal mais próximo <strong>da</strong>s outras nações européias. De<br />

fato, existia no país um certo isolamento que causava espanto à visitantes<br />

estrangeiros que iam até lá, como era retrata<strong>do</strong> nos registros <strong>da</strong> época.<br />

O impulso não se restringia ao teatro. Havia uma política para a<strong>do</strong>tar<br />

certos costumes <strong>da</strong> França que se estendiam também à mo<strong>da</strong> e aos costumes.<br />

Com as relações sociais a situação era mais complica<strong>da</strong>, não sen<strong>do</strong> poucos<br />

aqueles que acusavam os “costumes estrangeiros” de subversivos e ruinosos à<br />

<strong>socie<strong>da</strong>de</strong>. O desejo de imitar o comportamento <strong>do</strong>s franceses fez com que<br />

houvesse uma artificialização deste comportamento. Característica já defini<strong>da</strong><br />

como artificial para os franceses (de acor<strong>do</strong> com o defini<strong>do</strong> por Sennett), para<br />

aqueles que procuravam imitá-lo parecia ain<strong>da</strong> mais artificial.<br />

Segun<strong>do</strong> Lopes, o teatro se revelou um ótimo lugar para convívio social<br />

desliga<strong>do</strong> <strong>da</strong>s obrigações de representação rigorosas. Então houve um grande<br />

entusiasmo por este tipo de entretenimento por parte <strong>da</strong> população, tanto na<br />

175 SENNETT, R. O declínio <strong>do</strong> homem público, as tiranias <strong>da</strong> intimi<strong>da</strong>de, São Paulo, 1988. p. 107<br />

46


capital como na província. 176 Estava na mo<strong>da</strong> ir ao teatro, e em Portugal o nível<br />

de patrocínio <strong>do</strong> entretenimento por parte <strong>da</strong> Coroa era mais intenso <strong>do</strong> que em<br />

outros lugares <strong>da</strong> Europa, fazen<strong>do</strong> com que mais gente tivesse condições de ir<br />

ao lugar. Lopes observou que até as mulheres, que geralmente ficavam<br />

tranca<strong>da</strong>s em casa, puderam ir ao teatro.<br />

O ato de ir ao teatro tinha vira<strong>do</strong> mo<strong>da</strong>, mas de acor<strong>do</strong> com registros <strong>da</strong><br />

época, não era comum que se desse muita atenção ao que estava ocorren<strong>do</strong><br />

no palco. 177 Evidência de que o teatro tinha a mesma função social em Portugal<br />

<strong>do</strong> que na França e na Inglaterra. Os indivíduos iam nele para verem e para<br />

serem vistas, sen<strong>do</strong> este uma grande fonte de divertimento na época.<br />

A resistência a enre<strong>do</strong>s inova<strong>do</strong>res fez-se sentir fortemente em Portugal.<br />

De fato, Sampaio observa que houve uma produção de peças de teatro muito<br />

baixa no <strong>século</strong> XVIII. 178 Note-se que no caso <strong>da</strong> análise de Portugal, “enre<strong>do</strong>s<br />

inova<strong>do</strong>res” se referem ao fato de peças que promovessem costumes alheios<br />

aqueles estabeleci<strong>do</strong>s como tradicionais na <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>. De um mo<strong>do</strong> geral,<br />

Portugal, se consideran<strong>do</strong> uma nação mais conserva<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> que as demais,<br />

sofria, no tocante à representação teatral, uma constante polarização entre<br />

aquilo que pertencia à tradição, e aquilo que quebrava com esta tradição. Sinal<br />

de que se havia um desejo pela modernização <strong>do</strong> país, por outro havia uma<br />

grande desconfiança em relação à moderni<strong>da</strong>de e um desejo de manter a<br />

<strong>socie<strong>da</strong>de</strong> estável.<br />

Textos estrangeiros tratavam de ser a<strong>da</strong>pta<strong>do</strong>s à reali<strong>da</strong>de <strong>portuguesa</strong><br />

quan<strong>do</strong> traduzi<strong>do</strong>s. 179 Passan<strong>do</strong> pela Real Mesa Censitória, se tratava de<br />

reprimir idéias modernas, quan<strong>do</strong> não “subversivas”, e se inseria discursos<br />

tradicionalistas no lugar. Lopes fez sua pesquisa basea<strong>da</strong> na condição feminina<br />

em Portugal no <strong>século</strong> XVIII, e portanto também observou que os conceitos<br />

acrescenta<strong>do</strong>s nas traduções envolviam misoginia. 180<br />

Até mesmo o mo<strong>do</strong> como o ator poderia representar os personagens<br />

estava sob controle de uma força maior. Podem-se encontrar autores de peças<br />

176<br />

LOPES, M. A. Mulheres, espaço e sociabili<strong>da</strong>de, Coleção Horizonte Histórico, livros Horizonte,<br />

Lisboa, 1989, p.152<br />

177<br />

Idem<br />

178<br />

SAMPAIO, A. F., As melhores páginas <strong>do</strong> teatro português, Lisboa. 1933. p. 22<br />

179<br />

LOPES, M. A. Mulheres, espaço e sociabili<strong>da</strong>de, Coleção Horizonte Histórico, livros Horizonte,<br />

Lisboa, 1989, p.166<br />

180 Idem<br />

47


portugueses <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> que se opunham ao uso de máscaras e de<br />

maquiagem, devi<strong>do</strong> à liber<strong>da</strong>de de atuação que permitiam.<br />

Não apenas de traduções era constituí<strong>do</strong> o teatro português <strong>da</strong> época<br />

seleciona<strong>da</strong>. O teatro genuinamente nacional era basea<strong>do</strong> na literatura de<br />

cordel. Isto tornava o diálogo com o público muito fácil, porque este tipo de<br />

literatura já era fortemente liga<strong>do</strong> ao povo. Pois que este ramo <strong>do</strong> teatro<br />

português desempenhou papel decisivo na resistência aos novos costumes e à<br />

defesa <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> tradicional. 181 Este tipo de teatro revela <strong>do</strong>is importantes<br />

aspectos para o conhecimento <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>portuguesa</strong>, segun<strong>do</strong> Lopes.<br />

Retratan<strong>do</strong> e critican<strong>do</strong> a desenvoltura e a revolta feminina nos estratos sociais<br />

baixos, por exemplo, revelou até que ponto tinha atingi<strong>do</strong> a moderni<strong>da</strong>de em<br />

Portugal. O outro aspecto que é revela<strong>do</strong> é a opinião <strong>do</strong>minante <strong>do</strong> público. A<br />

partir deste conceito pode-se perceber a importância de se usar o teatro para<br />

que se possa ter pistas sobre a mentali<strong>da</strong>de de um determina<strong>do</strong> grupo de<br />

indivíduos em um determina<strong>do</strong> perío<strong>do</strong> <strong>da</strong> história. Se a representação é uma<br />

construção que se faz sobre o real, pode-se lembrar que o teatro é um tipo de<br />

entretenimento feito para o público, e por isso responsivo ao que lhe agra<strong>da</strong>va.<br />

A isto entram outros aspectos como a abstração <strong>do</strong> real e <strong>da</strong> artificiali<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

representação, que devem ser leva<strong>do</strong>s em conta ao se pesquisar a influência<br />

<strong>do</strong> teatro na formação <strong>da</strong> mentali<strong>da</strong>de de uma <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>.<br />

Há <strong>do</strong>is problemas que podem aparecer ao se fazer este tipo de<br />

afirmação sobre o teatro. Primeiro, se tem a informação, irrefutável, de que<br />

apesar <strong>da</strong> populari<strong>da</strong>de <strong>do</strong> teatro no perío<strong>do</strong> li<strong>da</strong><strong>do</strong>, nem to<strong>do</strong>s os membros <strong>da</strong><br />

<strong>socie<strong>da</strong>de</strong> iam ao teatro, mas sim um certo segmento desta <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>.<br />

Segun<strong>do</strong>, e este argumento está especialmente direciona<strong>do</strong> ao teatro<br />

português, é o fato de que o que era apresenta<strong>do</strong> no teatro era a visão de<br />

mun<strong>do</strong> apresenta<strong>da</strong> por um autor, que tinha como objetivo fazer a <strong>socie<strong>da</strong>de</strong><br />

funcionar de uma maneira considera<strong>da</strong> adequa<strong>da</strong>. As idealizações típicas <strong>do</strong><br />

teatro deste perío<strong>do</strong> partem deste princípio, causan<strong>do</strong> um divórcio definitivo <strong>da</strong><br />

representação com a reali<strong>da</strong>de.<br />

Na defesa <strong>do</strong> uso <strong>do</strong> teatro como fonte para estu<strong>do</strong> de mentali<strong>da</strong>des e<br />

de estruturas em uma <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>, podemos conceber o primeiro problema ao<br />

181 LOPES, M. A. Mulheres, espaço e sociabili<strong>da</strong>de, Coleção Horizonte Histórico, livros Horizonte,<br />

Lisboa, 1989, p.165<br />

48


definir que, se nem to<strong>da</strong> a <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> ia ao teatro, mas apenas um segmento<br />

dela, este segmento que ia ao teatro era, de qualquer forma, parte integrante<br />

<strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>, sen<strong>do</strong> inclusive um segmento significativo, e seu papel na<br />

<strong>socie<strong>da</strong>de</strong> não poderia deixar de ser visto como relevante. O segun<strong>do</strong><br />

problema pode ser contorna<strong>do</strong>, pelo menos parcialmente, ao se observar de<br />

que há evidências de que muitas vezes o comportamento <strong>do</strong> público era<br />

influencia<strong>do</strong> pelo comportamento no teatro. Lopes observou isto, afirman<strong>do</strong> que<br />

ao mesmo tempo o teatro fazia uma defesa <strong>do</strong>s costumes tradicionais <strong>da</strong><br />

<strong>socie<strong>da</strong>de</strong>, e divulgava os novos costumes. 182 Esta era uma <strong>da</strong>s maneiras com<br />

qual a mo<strong>da</strong> se espalhava.<br />

O teatro português apresentava certos arquétipos que se revelam muito<br />

comuns em peças <strong>da</strong> época. Um destes arquétipos é a figura <strong>do</strong> cria<strong>do</strong>.<br />

Segun<strong>do</strong> Lopes, o cria<strong>do</strong>, na representação teatral, simboliza uma mentali<strong>da</strong>de<br />

retrógra<strong>da</strong>, ilustran<strong>do</strong> o pensamento conserva<strong>do</strong>r, uma vez que provém <strong>do</strong><br />

meio rural ou estrato urbano muito baixo. 183 Ele participava <strong>da</strong> peça como<br />

cúmplice de seu patrão, a pessoa que agia nos basti<strong>do</strong>res para que a vontade<br />

de seu patrão fosse conquista<strong>da</strong>. A relação entre cria<strong>do</strong>s e patrões incutia uma<br />

relação de confiança entre as partes, onde havia uma troca de favores, um<br />

serviço por uma recompensa. Apesar <strong>da</strong> relação de <strong>do</strong>minação entre patrões e<br />

cria<strong>do</strong>s, os que eram retrata<strong>do</strong>s nas peças podiam muitas vezes se contrapor à<br />

opinião de seus patrões. 184 Os cria<strong>do</strong>s tinham uma certa liber<strong>da</strong>de de<br />

representação nas peças, mas não a mulher.<br />

Em peças de teatro que li<strong>da</strong>vam com situações <strong>do</strong>mésticas, deve-se<br />

fazer uma observação antes que se possa entender sua estruturação. Assim,<br />

peças que li<strong>da</strong>m com este tipo de situação quase sempre entravam na<br />

categoria de entremezes. O entremez é um termo que apareceu na I<strong>da</strong>de<br />

Média, sen<strong>do</strong> originalmente a designação de breves divertimentos que<br />

ocorriam entre os pratos servi<strong>do</strong>s em banquetes de festas cortesãs. No <strong>século</strong><br />

XVI o termo passou a definir exclusivamente uma pequena representação de<br />

caráter burlesco, composta por canto, <strong>da</strong>nça, gesto, e um texto rudimentar em<br />

prosa, que aparecia entre os diferentes atos de uma peça dramática mais<br />

182 LOPES, M. A. Mulheres, espaço e sociabili<strong>da</strong>de, Coleção Horizonte Histórico, livros Horizonte,<br />

Lisboa, 1989, p.177<br />

183 Ibidem. p. 168<br />

184 Ibidem. p. 176<br />

49


longa. Destinava-se a combater o eventual desinteresse <strong>do</strong> público que<br />

porventura se divertiria mais com o caráter episódico e cômico <strong>do</strong> entremez,<br />

identifican<strong>do</strong>-se melhor com estes personagens que punham em cena as<br />

fraquezas mais comuns <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> humana. A <strong>do</strong>r e a mal<strong>da</strong>de eram as<br />

principais fontes de comici<strong>da</strong>de destas representações sem quaisquer fins<br />

didáticos, que mostravam cenas caricaturais <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> cotidiana, como enganos<br />

conjugais ou o escárnio pelo próximo.<br />

O entremez, progressivamente, foi alcançan<strong>do</strong> independência perante a<br />

comédia e a tragédia, às quais an<strong>da</strong>ra associa<strong>do</strong> na fase anterior. No início <strong>do</strong><br />

séc. XVII, conheceu um grande desenvolvimento em Espanha e Portugal,<br />

ten<strong>do</strong> a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> o verso em alguns <strong>do</strong>s seus textos e ten<strong>do</strong> perdi<strong>do</strong> o seu caráter<br />

episódico em favor <strong>da</strong> criação de uma história linear que conduzia a um<br />

desfecho lógico. No <strong>século</strong> XVIII, o entremez passou a designar peças curtas,<br />

de apenas um ato, que eram exibi<strong>da</strong>s para entreter o público entre os atos de<br />

uma peça maior, e que tinha uma função didática, especialmente consideran<strong>do</strong><br />

o público o qual eram dirigi<strong>do</strong>s.<br />

Nos lares representa<strong>do</strong>s em entremezes, o personagem que retrata o<br />

homem <strong>da</strong> casa, ou seja, o mari<strong>do</strong>, o pai, é sempre o líder absoluto <strong>da</strong>s<br />

decisões toma<strong>da</strong>s. E a representação era enfática em afirmar os valores <strong>da</strong><br />

autori<strong>da</strong>de masculina: quan<strong>do</strong> em qualquer situação teatral o homem, como<br />

chefe <strong>do</strong> lar, cedesse ao apelo de outro personagem, o resulta<strong>do</strong> era<br />

desastroso. 185 As peças que tratavam de situações <strong>do</strong>mésticas tinham enre<strong>do</strong><br />

e final muito previsíveis. A situação-problema apresentava neles geralmente<br />

era de algum personagem subordina<strong>do</strong> à autori<strong>da</strong>de <strong>do</strong> chefe <strong>da</strong> casa (o pai ou<br />

o mari<strong>do</strong>), que desafiava a ordem estabeleci<strong>da</strong>, entran<strong>do</strong> em conflito com a<br />

posição <strong>do</strong> personagem <strong>do</strong>minante. No final o que desafiou a autori<strong>da</strong>de de<br />

seu superior geralmente acabava pedin<strong>do</strong> desculpas e o enre<strong>do</strong> terminava com<br />

uma lição de moral visan<strong>do</strong> o bom comportamento <strong>do</strong>s indivíduos e o seu<br />

respeito com a ordem hierárquica. A única exceção, segun<strong>do</strong> Lopes, era se<br />

este personagem de posição superior seguisse uma conduta reprovável, ou<br />

185 LOPES, M. A. Mulheres, espaço e sociabili<strong>da</strong>de, Coleção Horizonte Histórico, livros Horizonte,<br />

Lisboa, 1989. p. 168<br />

50


seja, que fosse o arquétipo que na época era defini<strong>do</strong> como peralta. 186 O<br />

peralta era o tipo de personagem que representava o “mau exemplo”, aquele<br />

que seguia uma conduta escan<strong>da</strong>losa e como já foi dito, reprovável. Ele<br />

poderia ser o velho que queria casar com uma jovem para obter a fortuna de<br />

seu pai, o mentiroso e trambiqueiro em busca <strong>do</strong> dinheiro fácil, o falso médico,<br />

etc.<br />

Enfim, a censura obrigava para que o personagem <strong>do</strong> peralta fosse<br />

puni<strong>do</strong>. Ele não poderia se safar <strong>da</strong>s situações que causava. Neste caso as<br />

relações de <strong>do</strong>minação que o personagem ficavam esqueci<strong>da</strong>s. Sua mulher e<br />

seus filhos não precisavam mais dever-lhe obediência, e seus cria<strong>do</strong>s não<br />

precisavam mais ser leais a ele.<br />

As mensagens que apareciam nas peças não eram direciona<strong>da</strong>s apenas<br />

à uma determina<strong>da</strong> classe social. Havia mensagens para to<strong>da</strong>s as classes,<br />

para homens e mulheres, para que mantivessem a ordem estabeleci<strong>da</strong>. 187 O<br />

entremez era o tipo de peça mais abrangente para a <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>, pois era<br />

basea<strong>da</strong> na literatura de cordel, a única leitura que as classes inferiores tinham<br />

acesso. 188 O papel <strong>do</strong> teatro como porta-voz <strong>da</strong> mo<strong>da</strong> estrangeira se faz<br />

evidente neste caso ao se notar que as classes inferiores, em sua vi<strong>da</strong><br />

cotidiana, estavam isola<strong>do</strong>s dela. Fora <strong>do</strong> teatro, ela aparecia somente em<br />

círculos de classes mais eleva<strong>da</strong>s, os quais eram inacessíveis para boa parte<br />

<strong>da</strong>s classes baixas.<br />

O entremez é, talvez, o tipo mais importante de peça ao se tratar de usá-<br />

las como fonte de informações para desven<strong>da</strong>r as estruturas que compunham<br />

a <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>portuguesa</strong> <strong>do</strong> Antigo Regime. 189 Isto porque ele é um tipo de peça<br />

que se foca na vi<strong>da</strong> cotidiana, apresentan<strong>do</strong> estruturas quê estavam presentes<br />

nela. Não que fosse uma representação <strong>do</strong> real totalmente acura<strong>da</strong>, mas era<br />

um tipo de representação mais natural <strong>do</strong> que a que ocorria em peças mais<br />

longas.<br />

Similarmente, pode-se definir o gênero teatral <strong>da</strong> comédia como sen<strong>do</strong><br />

mais importante <strong>do</strong> que a tragédia no caso <strong>do</strong> tipo de análise aqui proposta.<br />

186 LOPES, M. A. Mulheres, espaço e sociabili<strong>da</strong>de, Coleção Horizonte Histórico, livros Horizonte,<br />

Lisboa, 1989. p. 170<br />

187 Ibidem. p. 174<br />

188 Ibidem. p. 177<br />

189 Ibidem. p. 183<br />

51


Isto porque a comédia era um tipo de representação que mostrava certos<br />

elementos <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> de forma caricata, além de expor certas noções ao<br />

ridículo. Geralmente estas noções envolviam os costumes <strong>da</strong> moderni<strong>da</strong>de. A<br />

comédia visava a exposição de certos elementos <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> ao ridículo<br />

ten<strong>do</strong> como objetivo a “regular” o comportamento dela. 190<br />

A mo<strong>da</strong> era retrata<strong>da</strong> na comédia de maneira geralmente negativa. Isto<br />

pode refletir a posição <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>portuguesa</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII em relação à<br />

mo<strong>da</strong>. Segun<strong>do</strong> estas peças, a mo<strong>da</strong> era vista com certo desdém e<br />

desconfiança, por parte <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>. A partir de algumas conjecturas, pode-<br />

se concluir que a desconfiança em relação à nova mo<strong>da</strong> talvez fosse reflexo<br />

<strong>da</strong>s classes sociais que não teriam condições de acompanhá-la. Ou seja, um<br />

reflexo que negasse, de certa forma, a superiori<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s classes superiores.<br />

Em primeiro lugar deve-se lembrar que os que tinham acesso à nova mo<strong>da</strong><br />

eram os membros destas classes superiores, sen<strong>do</strong> ela inacessível às classes<br />

baixas. Em segun<strong>do</strong> lugar, se deve considerar para que classes era dirigi<strong>do</strong><br />

este tipo de peça de teatro. Mas de qualquer forma, mesmo na representação<br />

teatral, existiam personagens, que mesmo pertencentes a estratos baixos <strong>da</strong><br />

<strong>socie<strong>da</strong>de</strong>, ain<strong>da</strong> assim pareciam obceca<strong>do</strong>s com a mo<strong>da</strong>. Isto pode ser uma<br />

manifestação <strong>do</strong> desejo pessoal de melhorar a sua própria representativi<strong>da</strong>de<br />

na <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>, através <strong>da</strong> imitação <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> de vestir <strong>da</strong>s classes mais altas por<br />

parte de indivíduos pertencentes à classes mais baixas, como defini<strong>do</strong> por<br />

Sennett. 191<br />

A tragédia não é muito eficiente para delinear as características <strong>da</strong><br />

<strong>socie<strong>da</strong>de</strong> porque ela frequentemente tratava de situações clássicas, passa<strong>da</strong>s<br />

em outros espaços temporais. Mesmo ao lembrar que no teatro <strong>da</strong> época em<br />

questão não havia noção de como os personagens deveriam se comportar<br />

segun<strong>do</strong> onde se situava no plano espacial e no temporal, a tragédia tem<br />

pouco a oferecer como material de pesquisa sobre as características de uma<br />

<strong>socie<strong>da</strong>de</strong>, compara<strong>da</strong> com a comédia. O objetivo <strong>da</strong> tragédia era<br />

simplesmente a catarse, comover o público, sem nenhuma preocupação com o<br />

meio social. A tragédia carecia <strong>da</strong> espontanei<strong>da</strong>de que fazia com que a<br />

190<br />

LOPES, M. A. Mulheres, espaço e sociabili<strong>da</strong>de, Coleção Horizonte Histórico, livros Horizonte,<br />

Lisboa, 1989. p. 185-186<br />

191<br />

SENNETT, R. O declínio <strong>do</strong> homem público, as tiranias <strong>da</strong> intimi<strong>da</strong>de, São Paulo, 1988, p. 96<br />

52


comédia se estabelecesse como um meio mais útil para se fazer conjecturas<br />

sobre <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>s <strong>do</strong> Antigo Regime.<br />

3.4 As estruturas <strong>da</strong> dádiva e <strong>da</strong> hierarquia como retrata<strong>do</strong> na amostra<br />

de entremezes e peças teatrais<br />

Para que se torne possível analisar as estruturas propostas como se<br />

estabeleciam nas peças, foi seleciona<strong>do</strong> uma amostra de peças <strong>portuguesa</strong>s<br />

<strong>da</strong> segun<strong>da</strong> <strong>metade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII, bem como uma traduzi<strong>da</strong>, de<br />

principalmente entremezes. As peças foram seleciona<strong>da</strong>s de forma aleatória,<br />

que tratam de temas diversos, mas quase to<strong>da</strong>s li<strong>da</strong>m com um ambiente<br />

familiar, pois como já foi discuti<strong>do</strong>, as relações de <strong>do</strong>minação eram basea<strong>da</strong>s<br />

na estrutura familiar. Além disso este ambiente era onde o público tinha mais<br />

familiari<strong>da</strong>de e por isso o enre<strong>do</strong> podia ser mais espontâneo, e portanto,<br />

revela<strong>do</strong>r <strong>da</strong>s características <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> em questão.<br />

Podemos perceber uma relação entre cria<strong>do</strong> e patrão logo no início <strong>do</strong><br />

entremez Os amantes arrufa<strong>do</strong>s, de Antonio Gomes. Dois personagens,<br />

Felisberto, o patrão, e Marotinho, seu cria<strong>do</strong>, 192 conversam sobre o interesse<br />

amoroso de Felisberto em Dorina, uma lacaia. 193 Esta ignora o assédio de seu<br />

pretendente e vai se aconselhar com sua patroa, Nize, que o acusa de ser falso<br />

e man<strong>da</strong> sua cria<strong>da</strong> ignorá-lo. O cria<strong>do</strong> de Felisberto tem participação ativa nas<br />

ações de seu patrão, mas não exerce poder direto sobre ele, como se fosse<br />

sua consciência, mas também é artífice <strong>da</strong> vontade de seu patrão, agin<strong>do</strong> nos<br />

basti<strong>do</strong>res:<br />

Felisb. Porque <strong>do</strong> meu amor não sente a seta?<br />

Mar. Porque Omnis variato dilecta.<br />

Felisb. E não dá para isso causa alguma?<br />

Mar. Não o quer acreditar? Não dá nenhuma.<br />

Felisb. Visto isso ficar posso sciente que na<strong>da</strong> quer comigo?<br />

Mar. Certamente. Fora, já são três vezes que repito que certamente<br />

disse; e tenho dito.<br />

Felisb. Esta ancia Marotinho, me devora.<br />

Mar. Não vomites aqui, vai alli fora.<br />

Felisb. Estou capaz.<br />

192<br />

Vemos aqui um caso comum no entremez, o personagem subalterno não possuía um nome, mas um<br />

“apeli<strong>do</strong>”.<br />

193<br />

Lacaia era uma cria<strong>da</strong> astuta. Isto levaria a pensar que as relações amorosas, como retrata<strong>do</strong> nos<br />

entremezes, não eram restritas à mesmas classes sociais. Porém, ao se ler o desfecho destes entremezes,<br />

se nota uma reali<strong>da</strong>de diferente.<br />

53


Mar. De que? Falla depressa.<br />

Felisb. Pregar à tal senhora huma tal pessa.<br />

Mar. Bem que de artelharia a pessa seja, depois <strong>do</strong> variatio já<br />

sobeja. Mas que pessa lhe queres tu pregar?<br />

Felisb. Buscar a outra ma<strong>da</strong>me, a quem amar.<br />

Mar. Se ella já te deixou, pessa escuza<strong>da</strong>; Pois quem deixa, não o<br />

sente ser deixa<strong>da</strong>.<br />

Felisb. Como te enganas, sempre o amor primeiro, deixa o coração<br />

hum formigueiro.<br />

Mar. Mas se <strong>do</strong> esquecimento chega o fogo, ao velho formigueiro<br />

mata o novo. E dizes a quem pertendes namorar?<br />

Felisb. Não conheces Ma<strong>da</strong>me Rebaltar?<br />

Mar. Essa he, se a idea não engana, aquela <strong>da</strong>nçarina italiana<br />

bonitinha, magrinha, e hum tanto alta que affim debaixo para cima<br />

falta.<br />

Felisb. He essa mesma: vai-lhe tu fallar; E este bilhete faze por lhe<br />

<strong>da</strong>r. 194<br />

A “peça” que Felisberto e seu cria<strong>do</strong> pregam em Dorina levam os <strong>do</strong>is a<br />

terem uma briga e uma troca de acusações com ela e sua ama, e Marotinho<br />

acaba se interessan<strong>do</strong> por Dorina. O entremez termina com a união entre os<br />

<strong>do</strong>is patrões e os <strong>do</strong>is cria<strong>do</strong>s. “Cazem-se os amos, cazem-se os cria<strong>do</strong>s”. 195<br />

Este entremez mostra claramente relações de hierarquia e de dádiva. O<br />

primeiro conceito está relaciona<strong>do</strong> a forma de que os personagens se<br />

relacionam: cria<strong>do</strong>s sen<strong>do</strong> confidentes e ao mesmo tempo submissos aos seus<br />

patrões e laços amorosos estan<strong>do</strong> restritos à indivíduos de mesma classe<br />

social, mesmo que no enre<strong>do</strong> houvesse, inicialmente, um desejo de não seguir<br />

esta regra. A respeito <strong>da</strong> dádiva, esta está presente no “prêmio” recebi<strong>do</strong> pelo<br />

cria<strong>do</strong>, por ter cumpri<strong>do</strong> a vontade <strong>do</strong> patrão, o amor <strong>da</strong> cria<strong>da</strong>. Em nenhum<br />

momento, no entremez, o subalterno indica a seu superior o desejo de receber<br />

recompensa, mas isto parece estar implícito nas relações sociais entre<br />

indivíduos <strong>do</strong> Antigo Regime. O cria<strong>do</strong> espera receber uma gratificação sem<br />

que isto precise ser indica<strong>do</strong> pelo seu amo.<br />

Se o cria<strong>do</strong> não via nenhum ganho próprio em alguma ação solicita<strong>da</strong><br />

por seu patrão, ele se recusava a cumprir tarefas que lhe fossem designa<strong>da</strong>s,<br />

ou até se disponibilizava a aju<strong>da</strong>r alguém em que fosse possível o recebimento<br />

de uma recompensa. Isto aparece nos entremezes Peraltice vai<strong>do</strong>sa, de<br />

Antonio Gomes, e O castigo <strong>da</strong> ambição, de José <strong>da</strong> Silva Nazaré. Não é a<br />

leal<strong>da</strong>de cega que motiva o cria<strong>do</strong>, mas sim a possibili<strong>da</strong>de <strong>do</strong> recebimento de<br />

194 GOMES, A. Os amantes arrufa<strong>do</strong>s. Lisboa. 17??. ps. 2-3<br />

195 Ibidem. p. 16<br />

54


uma dádiva. O cria<strong>do</strong> não hesitava em mu<strong>da</strong>r os seus atos e a quem apóia em<br />

benefício próprio.<br />

Em Chocalho <strong>do</strong>s anos de Dona Lesma, de Leonar<strong>do</strong> José Pimenta e<br />

Antas, vemos um caso que demonstra a razão <strong>da</strong> subordinação <strong>do</strong>s filhos<br />

diante <strong>do</strong> pai. No enre<strong>do</strong> deste entremez, temos Valentim, descrito como<br />

“peralta”, que é filho de Severino. Desaponta<strong>do</strong> com as “peraltices”, Severino<br />

mostra sua determinação em punir o filho com o açoite para que ele “se<br />

alinhasse”. Valentim, por sua vez, mostra-se arrependi<strong>do</strong>, e promete ao pai que<br />

vai se “endireitar”.<br />

Sev. Não faltarei às leis <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de:foste insolente, castigar-te<br />

quero,cumprin<strong>do</strong> a obrigação de pai severo.<br />

Val. Eu prometo, meu pai, de me emen<strong>da</strong>r.<br />

Sev. Olhe bem o que dizes.<br />

Val. Se eu faltar, use <strong>do</strong> seu rigor,mate-me agora. 196<br />

Outro entremez, Amor artífice, de Antonio Rodrigues Galhar<strong>do</strong>,<br />

apresenta outro enre<strong>do</strong> típico: <strong>do</strong>is jovens amantes e seus respectivos cria<strong>do</strong>s,<br />

sen<strong>do</strong> o obstáculo a ser supera<strong>do</strong>, o personagem <strong>do</strong> tutor <strong>da</strong> jovem, que quer<br />

casá-la com um “homem de bem”. Esta jovem não se conforma com a<br />

situação.<br />

Caz. Pérfi<strong>do</strong> e cruel destino, baste já de ser tyranno, e o falso, que<br />

me despreza, mu<strong>da</strong>-lhe o gênio de ingrato. Sempre vem por estas<br />

horas,falar a seu bem ama<strong>do</strong>, que me rouba os seus affectos, e me<br />

expõem a tanto <strong>da</strong>mno, quan<strong>do</strong> experimento no exame, opprimi<strong>da</strong><br />

de mil sustos, e cerca<strong>da</strong> de cui<strong>da</strong><strong>do</strong>s. 197<br />

Através de uma armação, Leandro e seu cria<strong>do</strong> Pelaio conseguem ter a<br />

aprovação de Geronte, o tutor, para casar-se com Cazimira. Mais uma vez, os<br />

cria<strong>do</strong>s agem como subalternos confidentes, agin<strong>do</strong> nos basti<strong>do</strong>res, conforme<br />

a vontade de seus patrões, e Pelaio consegue, como recompensa pelos seus<br />

esforços, a união com a cria<strong>da</strong> de Cazimira. Nota-se a autori<strong>da</strong>de incontestável<br />

<strong>da</strong> figura <strong>do</strong> tutor (personagem raro, na maioria <strong>da</strong>s vezes o personagem é o<br />

pai <strong>da</strong> moça). Não importa se é injusto ou tirano, ele está em nível hierárquico<br />

superior e é necessário que se obtenha sua aprovação para se faça algo que<br />

196 ANTAS, L. J. P. Chocalho <strong>do</strong>s anos de Dona Lesma. Lisboa. 1783. ps. 13-14<br />

197 GALHARDO, A.R. Amor artífice. Lisboa. 1782. p. 9<br />

55


está sob seu controle. Contu<strong>do</strong>, é observa<strong>do</strong> que os entremezes apresentam a<br />

idéia de que é possível que o indivíduo hierarquicamente superior mude de<br />

opinião, mesmo que seja através de artimanhas. Esta por sua vez, tão comum<br />

nos entremezes, pode ser uma maneira encontra<strong>da</strong> pelos autores para driblar o<br />

autoritarismo <strong>da</strong>s relações sociais <strong>do</strong> Antigo Regime. Mesmo que algo seja<br />

reconheci<strong>do</strong> como justo, não se é permiti<strong>do</strong> desafiar abertamente alguém de<br />

hierarquia superior que tenha opinião contrária, muito menos contrariar sua<br />

vontade. O fato deste alguém hierarquicamente superior mu<strong>da</strong>r de idéia visa<br />

mostrar as vantagens de não quebrar a ordem social, pois se algo for<br />

realmente justo, o superior certamente terá juízo para reconhecer este algo<br />

como tal.<br />

De fato, nesta amostra, há um único entremez onde a vontade de um<br />

indivíduo de hierarquia superior tem sua vontade abertamente contraria<strong>da</strong>, O<br />

velho louco de amor e a cria<strong>da</strong> astuciosa, de Francisco Borges de Sousa. Isto<br />

acontece porque o tal indivíduo é um i<strong>do</strong>so senil, e portanto, sem controle de<br />

suas vontades, agin<strong>do</strong> de maneira reprovável para sua posição, pois é<br />

avarento e deseja o amor de uma cria<strong>da</strong>, não possuin<strong>do</strong> “vergonha”.<br />

Em Casadinhos <strong>da</strong> mo<strong>da</strong>, de Leonar<strong>do</strong> José Pimenta Antas e José<br />

Gomes, há um choque de gerações. Há D. Tarella, André e Pan<strong>do</strong>rga, seus<br />

pais, e Zanga<strong>do</strong>, o pai de André. Enquanto que este último demonstra repúdio<br />

as novas mo<strong>da</strong>s e costumes, Tarella, <strong>da</strong> geração mais jovem, mostra-se<br />

deslumbra<strong>da</strong> por eles, com a geração intermediária relutan<strong>do</strong> a aceitá-las,<br />

embora claramente deslumbra<strong>da</strong>. Apesar de André já estar casa<strong>do</strong> e ter sua<br />

própria família, ain<strong>da</strong> assim presta deferência à seu pai, revelan<strong>do</strong> uma<br />

subordinação eterna de um indivíduo à geração mais velha.<br />

Outra característica notável deste entremez é a presença de <strong>do</strong>is níveis<br />

de serviçais. Há o personagem <strong>da</strong> cria<strong>da</strong> e o <strong>da</strong> “preta”, uma negra. Enquanto<br />

que a cria<strong>da</strong> apresenta seu papel rotineiro em entremezes, a “preta” tem um<br />

papel ain<strong>da</strong> mais subalterno, estan<strong>do</strong> abaixo até mesmo <strong>da</strong> cria<strong>da</strong>. Com fala<br />

erra<strong>da</strong> (coloca<strong>da</strong> intencionalmente pelos autores), a função <strong>da</strong> “preta”,no<br />

entremez, se restringe ao trabalho de cozinheira e de lavadeira. Ela não<br />

assume um papel ativo na trama, como a cria<strong>da</strong>. Se poderia considerar a<br />

hipótese de a “preta” ser uma escrava, embora o entremez não o mencione.<br />

56


A situação teatral de <strong>do</strong>is amantes precisarem convencer o pai <strong>da</strong> moça<br />

a aceitar o relacionamento <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is, ten<strong>do</strong> que driblar a submissão <strong>da</strong>s<br />

relações hierárquicas através de artífices, está presente em vários entremezes<br />

<strong>da</strong> amostra. Além <strong>do</strong>s já cita<strong>do</strong>s, esta situação aparece também em A noiva<br />

fingi<strong>da</strong>, de José de Aquino Bulhoens, O casamento gostoso, de Caetano<br />

Ferreira <strong>da</strong> Costa, O bruxo por arte e o tutor desengana<strong>do</strong>, de Simão Tadeu<br />

Ferreira. A astúcia <strong>da</strong>s cria<strong>da</strong>s, de Francisco Borges de Sousa, Casamento por<br />

nova idéia, <strong>do</strong> mesmo autor, Os amantes desconfia<strong>do</strong>s, de Francisco Sabino<br />

<strong>do</strong>s Santos, e A astuciosa idéia <strong>do</strong> cria<strong>do</strong>, de Felipe José de França e Liz.<br />

Outro detalhe importante percebi<strong>do</strong> nas peças são os artífices usa<strong>do</strong>s<br />

pelos indivíduos hierarquicamente superiores fazer valer sua autori<strong>da</strong>de. Um<br />

deles é a chantagem emocional, que pode ser percebi<strong>do</strong> no entremez A<br />

astuciosa idéia <strong>do</strong> cria<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> o personagem Flávio, estan<strong>do</strong> zanga<strong>do</strong> com<br />

a desobediência de sua filha, diz “Ai que morro, ai que rebento ? O meu crédito<br />

arraina<strong>do</strong>. Ah filha ingrata.” 198 Este detalhe pode ser visto também nos<br />

entremezes Casquilharia por força e A bulha <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> com a mulher por<br />

cantar a ratazana, ambos de Domingos Gonçalves.<br />

Em A bulha <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> com a mulher por cantar a ratazana vemos um<br />

enre<strong>do</strong> (e um desfecho) que demonstra bem a intenção <strong>do</strong>s autores de<br />

entremezes de demonstrar os bons costumes e a importância <strong>do</strong>s indivíduos<br />

hierarquicamente superiores em zelar por eles. A história deste entremez<br />

envolve uma mulher queren<strong>do</strong> cantar a “ratazana” que parece ser um tipo de<br />

canto <strong>da</strong> mo<strong>da</strong> <strong>da</strong> época. O personagem <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>, 199 Pantalão, o ser<br />

hierárquico superior, se opõe ao desejo de sua mulher, Peripatética. No<br />

desfecho, a mulher “aprende a lição”, e jura nunca mais fazer algo semelhante.<br />

To<strong>do</strong>s os personagens concor<strong>da</strong>m sobre a sabe<strong>do</strong>ria <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> e filosofam<br />

sobre as vantagens de evitar as “desordens”. O desfecho se dá após uma<br />

discussão entre o mari<strong>do</strong> e sua mulher, pois ela reivindica uma liber<strong>da</strong>de maior<br />

por ter instrução, e ele tenta fazer valer a sua autori<strong>da</strong>de sobre ela:<br />

Pant. Que <strong>do</strong>utora, que baxarella, não senhora não me ofende mas<br />

não quero, posso man<strong>da</strong>llo e V. m. deve-me obedecer, para isso sou<br />

seu mari<strong>do</strong>, e <strong>do</strong>no desta caza, tem-me entendi<strong>do</strong> ?<br />

198 LIZ, F. J. F. A astuciosa idéia <strong>do</strong> cria<strong>do</strong>. Lisboa. 1790. p. 15<br />

199 Descrito no entremez como “velho”. Quan<strong>do</strong> aparecia alguém em uma peça com esta descrição, ele<br />

tendia a se opor ao moderno, como foi discuti<strong>do</strong> por Maria Antónia Lopes.<br />

57


Perip. Eu não sou sua escrava, quero divertir-me, quero cantar. 200<br />

Como se percebe neste entremez, o fato <strong>da</strong> personagem subordina<strong>da</strong><br />

ter instrução ou de reivindicar maior liber<strong>da</strong>de não significam na<strong>da</strong>, e no fim ela<br />

acaba por ter de aceitar sua submissão. Os <strong>do</strong>is personagens cria<strong>do</strong>s deste<br />

entremez simpatizam com a sua patroa, comentan<strong>do</strong> que ela é uma “pobre<br />

infeliz”, mas um <strong>do</strong>s cria<strong>do</strong>s demonstra maior interesse por recompensas, e por<br />

isso denuncia ao velho mari<strong>do</strong> o que sua esposa an<strong>da</strong>va fazen<strong>do</strong>, em troca de<br />

algumas regalias. Isto revela que, ao menos nas peças teatrais, o cria<strong>do</strong>,<br />

apesar de possuir consciência própria, não a demonstrava nas relações com<br />

seu patrão, e o que o motivava a realizar a vontade deste, mesmo não<br />

concor<strong>da</strong>n<strong>do</strong> com seu ponto de vista, era a possibili<strong>da</strong>de de receber<br />

recompensa pelos seus serviços. Mais uma vez deve ser lembra<strong>do</strong> que as<br />

relações interpessoais entre indivíduos de nível hierárquico diferente, em<br />

<strong>socie<strong>da</strong>de</strong>s <strong>do</strong> Antigo Regime, eram basea<strong>da</strong>s na troca de serviços e de<br />

dádivas.<br />

Se o indivíduo hierarquicamente superior devia ser estima<strong>do</strong> e<br />

respeita<strong>do</strong> pelos outros, ele devia se mostrar digno de sua posição, não se<br />

engajan<strong>do</strong> em condutas comportamentais reprováveis, ou perderia a<br />

deferência <strong>do</strong>s seus subordina<strong>do</strong>s. Isto é o que mostra o entremez O velho<br />

louco de amor e a cria<strong>da</strong> astuciosa, de Francisco Borges de Sousa. Nele, o<br />

personagem Octávio está apaixona<strong>do</strong> por sua cria<strong>da</strong> Angélica, e quer casar<br />

com ela. Este tipo de mistura entre duas classes sociais era reprovável na<br />

<strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>portuguesa</strong> <strong>do</strong> Antigo Regime, e por isso os outros personagens<br />

armam um esquema e contrariam abertamente a vontade de Octávio. Angélica,<br />

ciente de sua posição social, não almeja casar-se com ele, mas sim com<br />

Maturino, um cria<strong>do</strong> como ela, mas finge aceitar a proposta <strong>do</strong> patrão, exigin<strong>do</strong><br />

algumas regalias, entre as quais ela aproveita para pedir que ele deixe as duas<br />

filhas dele se casarem com os mari<strong>do</strong>s que escolhessem (isto era a trama<br />

secundária <strong>do</strong> entremez, mais um típico caso de um cria<strong>do</strong> aju<strong>da</strong>n<strong>do</strong> o filho de<br />

seu patrão a driblar a vontade de seu pai). Octávio tenta fazer chantagem,<br />

lembran<strong>do</strong> as coisas que deu à Angélica, mas por fim acaba reconhecen<strong>do</strong> seu<br />

200 GONÇALVES, Domingos. A bulha <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> com a mulher por cantar a ratazana. Lisboa. 1785. ps.<br />

11-12.<br />

58


erro e aceita seu castigo, que é ter concedi<strong>do</strong> dádivas sem receber na<strong>da</strong> em<br />

troca. Temas similares a este podem ser vistos em O castigo <strong>da</strong> ambição, de<br />

José <strong>da</strong> Silva Nazaré, e em O velho peralta, de Francisco Sabino <strong>do</strong>s Santos.<br />

Em O velho peralta podemos ver uma relação hierárquica diferente <strong>da</strong>s<br />

tradicionais patrão-cria<strong>do</strong>, mari<strong>do</strong>-esposa e pai-filho. Neste entremez há um<br />

personagem de um alcaide, e ele aparece para punir o velho indica<strong>do</strong> no título<br />

<strong>do</strong> entremez, acusan<strong>do</strong>-o de <strong>da</strong>r mau exemplo à suas filhas. O que se percebe<br />

no entremez é que ao li<strong>da</strong>r com um personagem de um indivíduo tão<br />

hierarquicamente superior, os outros personagens não falavam com ele a não<br />

ser que requisita<strong>do</strong>s, e o tratam com termos como “Senhor”. Personagens<br />

liga<strong>do</strong>s às autori<strong>da</strong>des, como este alcaide, eram raros em peças, pois a<br />

censura <strong>da</strong> época exigia que se demonstrasse respeito por eles. Jamais<br />

poderiam ser satiriza<strong>do</strong>s, e por isso quan<strong>do</strong> apareciam tinham participações<br />

breves, sem nome (provavelmente para que se não associasse o personagem<br />

a alguma autori<strong>da</strong>de), e eram sempre apresenta<strong>do</strong>s como extremamente justos<br />

e sem falhas de conduta, apareciam para julgar e corrigir algum personagem<br />

de conduta reprovável.<br />

Em contraparti<strong>da</strong>, personagens liga<strong>do</strong>s à nobreza eram retrata<strong>do</strong>s de<br />

forma menos idealiza<strong>da</strong> nos entremezes. Em A casa de <strong>da</strong>nça, de Domingos<br />

Gonçalves, há um personagem de um barão, de um duque e de um conde.<br />

Neste entremez, existe uma deferência presta<strong>da</strong> a eles pelos outros<br />

personagens, mas são personagens ativos no enre<strong>do</strong>, não sen<strong>do</strong> idealiza<strong>do</strong>s.<br />

Deve ser lembra<strong>do</strong> que na época retrata<strong>da</strong>, final <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII, a nobreza<br />

tinha perdi<strong>do</strong> importância, o poder estava concentra<strong>do</strong> nas mãos <strong>do</strong> rei. Por<br />

causa disto, não havia tabu em retratá-los em peças como havia para<br />

autori<strong>da</strong>des <strong>do</strong> governo.<br />

Há entremezes que li<strong>da</strong>m com a relação de indivíduos de condição<br />

hierárquica supostamente iguais, mas que mesmo assim disputam<br />

superiori<strong>da</strong>de entre si. No entremez O barbeiro pobre, outra peça de Francisco<br />

Borges de Sousa, há uma situação destas. O enre<strong>do</strong> é ambienta<strong>do</strong> em uma<br />

barbearia, onde entram um marujo, um almocreve 201 e uma velha, e to<strong>do</strong>s<br />

querem ser atendi<strong>do</strong>s primeiro. O marujo e o almocreve discutem sobre quem<br />

201 Carrega<strong>do</strong>r de merca<strong>do</strong>rias e/ou de animais de carga de uma região para outra.<br />

59


tem o ofício mais importante e por isso teria priori<strong>da</strong>de no atendimento. Um<br />

tenta denegrir a profissão <strong>do</strong> outro, através de argumentos como “um marujo<br />

não acompanha gente de bem”. 202 Aqui se vê a tendência de indivíduos liga<strong>do</strong>s<br />

ao povo de sempre hierarquizar suas relações. A velha, por sua vez, diz sofrer<br />

uma terrível <strong>do</strong>r de dente, 203 e apela aos “bons senhores” que façam um gesto<br />

de cari<strong>da</strong>de e a deixem ser atendi<strong>da</strong> primeiro. O barbeiro simpatiza com ela e<br />

pede para que os <strong>do</strong>is realizem o pedi<strong>do</strong> dela. Porém, nenhum deles está<br />

disposto a fazer isto. O fazem porque não tem nenhum vínculo com a velha e<br />

por isso não tem na<strong>da</strong> a ganhar ao conceder esta dádiva a ela. A velha por fim<br />

diz que conhece uma moça rica e que poderia aju<strong>da</strong>r um <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is conflituosos<br />

a casar-se com ela se eles a aju<strong>da</strong>rem, mas apenas o almocreve demonstra<br />

interesse, e isto acaba pioran<strong>do</strong> a situação, e o almocreve e o marujo partem<br />

para a briga.<br />

Para efeito de comparação sobre as características aqui discuti<strong>da</strong>s, foi<br />

seleciona<strong>do</strong> algumas peças produzi<strong>da</strong>s fora de Portugal, por exemplo <strong>da</strong><br />

França, cujas foram traduzi<strong>da</strong>s e apresenta<strong>da</strong>s naquele país. 204 Então, temos<br />

O amante jardineiro, de Florent Carton de Ancourt, traduzi<strong>da</strong> por Francisco<br />

Sabino <strong>do</strong>s Santos, O peão fi<strong>da</strong>lgo e Tartufo, ambas de Jean Baptiste Molière,<br />

sen<strong>do</strong> a primeira traduzi<strong>da</strong> por Manuel Sousa e a segun<strong>da</strong> tradutor<br />

desconheci<strong>do</strong>.<br />

Na peça, O amante Jardineiro, temos um enre<strong>do</strong> típico, <strong>do</strong>is jovens<br />

apaixona<strong>do</strong>s, precisan<strong>do</strong> <strong>da</strong> aprovação <strong>do</strong> pai <strong>da</strong> moça para se casarem. Mas<br />

nesta peça, o rapaz em questão é um jardineiro, alguém de categoria social<br />

inferior à <strong>da</strong> moça. Previsivelmente, a união entre os <strong>do</strong>is não se torna<br />

possível, com o jardineiro sen<strong>do</strong> desmascara<strong>do</strong> como falsário interesseiro e a<br />

moça pedin<strong>do</strong> perdão e se reconcilian<strong>do</strong> com o pai. Não foi possível achar a<br />

peça original para verificar se este desfecho existia também na versão original<br />

ou se foi uma “a<strong>da</strong>ptação” <strong>da</strong> peça aos costumes <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>portuguesa</strong>. De<br />

qualquer forma, foi manti<strong>do</strong> o padrão segui<strong>do</strong> nas demais peças.<br />

O peão fi<strong>da</strong>lgo segue o padrão de enre<strong>do</strong> em que o cria<strong>do</strong> aju<strong>da</strong> a filha<br />

<strong>do</strong> patrão a se unir com eu amante através de artifícios, ao se disfarçar de<br />

202 SOUSA, F. B. O barbeiro pobre. Lisboa. 1792. p. 9<br />

203 No passa<strong>do</strong>, os barbeiros tinham a função de dentistas.<br />

204 Deve-se lembrar que as peças eram “a<strong>da</strong>pta<strong>da</strong>s” aos costumes portugueses.<br />

60


fi<strong>da</strong>lgo e propor o casamento <strong>da</strong> filha com um príncipe turco, que logicamente é<br />

o amante disfarça<strong>do</strong>. Nota-se que o pai <strong>da</strong> moça, nesta peça, está disposto a<br />

aceitar o casamento entre sua filha e o suposto príncipe. Percebe-se a<br />

aspiração <strong>do</strong>s indivíduos em fazer suas famílias subirem na escala social. E<br />

tu<strong>do</strong> para que este pai acreditasse que o amante era mesmo um príncipe foi a<br />

aparência. Não julgou ser necessário exigir provas <strong>da</strong> nobreza <strong>do</strong> outro<br />

indivíduo.<br />

Na famosa peça Tartufo, vemos que para a ascensão social, escrúpulos<br />

eram dispensáveis. To<strong>do</strong>s queriam acumular títulos e privilégios, mas Molière<br />

não tratou <strong>da</strong> questão <strong>da</strong> dádiva na peça, não se poden<strong>do</strong> fazer uma análise<br />

<strong>do</strong> sistema de troca de serviços e de recompensas, que movimentava o<br />

sistema de relações em <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>s <strong>do</strong> Antigo Regime. A peça tem elementos<br />

comuns às relações hierárquicas <strong>da</strong> época, como se pode ver, por exemplo, na<br />

cena em que Damis é deser<strong>da</strong><strong>do</strong> pelo seu pai Orgon, porque denunciou que<br />

Tartufo estava tentan<strong>do</strong> seduzir a mulher dele. Orgon não acreditou em seu<br />

filho porque Tartufo era um indivíduo “respeitável”, hierarquicamente superior,<br />

de grande reputação, e que por isso sua palavra tinha mais valor <strong>do</strong> que a de<br />

Damis.<br />

61


4 CONCLUSÃO<br />

O estu<strong>do</strong> monográfico apresenta<strong>do</strong> teve o propósito de demonstrar<br />

como se construíam as relações sociais em Portugal na segun<strong>da</strong> <strong>metade</strong> <strong>do</strong><br />

<strong>século</strong> XVIII, com enfoque em duas <strong>da</strong>s mais importantes características<br />

destas relações, hierarquia e a dádiva, com base no que as peças teatrais <strong>do</strong><br />

perío<strong>do</strong> poderiam informar, além de evidenciar porque o teatro pode ser usa<strong>do</strong><br />

como fonte histórica para entender estas características.<br />

Assim sen<strong>do</strong>, é possível afirmar que as fontes utiliza<strong>da</strong>s na pesquisa (as<br />

peças) demonstram uma visão idealiza<strong>da</strong> <strong>da</strong>s relações sociais <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>da</strong><br />

época que retratam, mas ain<strong>da</strong> coerente com o que relatam as obras teóricas<br />

que tratam <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>.<br />

A <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> de Antigo Regime era uma estrutura que funcionava com<br />

ênfase no conceito de representação, o que fazia com que a própria vi<strong>da</strong> se<br />

tornasse um “teatro”. Os indivíduos sempre “representavam um papel” ao estar<br />

em público, sen<strong>do</strong> o seu próprio corpo um “manequim”, e construíam suas<br />

relações sociais de forma artificial, nunca demonstran<strong>do</strong> o que era o seu<br />

ver<strong>da</strong>deiro “eu” em público. Apenas no meio priva<strong>do</strong> é que as pessoas<br />

demonstravam maior liber<strong>da</strong>de.<br />

O ambiente teatral era um ambiente onde, para<strong>do</strong>xalmente, as pessoas<br />

se permitiam maiores liber<strong>da</strong>des. Como Sennett evidenciou, as pessoas<br />

reagiam espontaneamente neste ambiente, se identifican<strong>do</strong> com os<br />

personagens e sentin<strong>do</strong> suas emoções. Era como se o teatro funcionasse<br />

como uma válvula de escape <strong>da</strong>s obrigações <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>.<br />

O entremez demonstrou ser o tipo mais relevante para coleta de <strong>da</strong><strong>do</strong>s à<br />

pesquisa por ter uma abrangência de público maior, de setores mais diversos<br />

<strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>, e por retratar situações menos dramatiza<strong>da</strong>s e mais liga<strong>da</strong>s à<br />

reali<strong>da</strong>de social.<br />

A dádiva e a hierarquia ditavam as relações sociais <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong><br />

<strong>portuguesa</strong> <strong>do</strong> Antigo Regime, principalmente ao se tratar de indivíduos de<br />

diferentes classes sociais. A subordinação era clara e se levan<strong>do</strong> em conta o<br />

que revela a amostra de teatro, a possibili<strong>da</strong>de de ascensão social não era<br />

comum, e nem deseja<strong>da</strong>, pelo que a quanti<strong>da</strong>de de enre<strong>do</strong>s condenan<strong>do</strong> esta<br />

possibili<strong>da</strong>de leva a concluir.<br />

62


Os autores que discorreram sobre as estruturas <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>do</strong> Antigo<br />

Regime mencionaram a cumplici<strong>da</strong>de e a expectativa que se <strong>da</strong>va nas relações<br />

entre patrões e cria<strong>do</strong>s, mas com os entremezes, onde estes tipos de relações<br />

eram retrata<strong>do</strong>s com grande frequência, se tornou possível observar como elas<br />

se desenrolavam na prática. Percebe-se que tu<strong>do</strong> o que o cria<strong>do</strong> fazia<br />

dependia <strong>da</strong> expectativa de recebimento de uma dádiva. Ele tinha<br />

personali<strong>da</strong>de e consciência própria, mas agia conforme seu patrão<br />

requisitava, em troca de uma gratificação.<br />

Ao contrário <strong>do</strong> que Lopes afirmou, não se nota que o personagem <strong>do</strong><br />

cria<strong>do</strong> apresentava um pensamento retrógra<strong>do</strong> nas peças. De fato, ele não<br />

concor<strong>da</strong>va com a mentali<strong>da</strong>de de seu patrão, caso fosse retrógra<strong>da</strong>, agiria de<br />

qualquer forma, de acor<strong>do</strong> com a “moderni<strong>da</strong>de” ou contra, desde que lhe<br />

fosse garanti<strong>da</strong> uma recompensa.<br />

A questão <strong>da</strong> hierarquia e a dádiva estavam presentes em praticamente<br />

to<strong>da</strong>s as interações sociais <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>do</strong> Antigo Regime, segun<strong>do</strong> a<br />

pesquisa demonstrou. Sen<strong>do</strong> uma “<strong>socie<strong>da</strong>de</strong> de representações”, tu<strong>do</strong> o que<br />

envolvia um relacionamento entre indivíduos levava em conta a posição social,<br />

o direito a privilégios e a expectativa de se estabelecer uma relação de troca.<br />

Quan<strong>do</strong> não havia uma superiori<strong>da</strong>de social explícita de um indivíduo diante de<br />

outro, mesmo assim gerava-se uma discussão sobre quem teria uma<br />

prevalência na interação entre eles.<br />

O fato de que a grande maioria <strong>da</strong>s peças de teatro <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> li<strong>da</strong> com<br />

situações familiares confirmam que de fato, as relações de <strong>do</strong>minação <strong>da</strong><br />

<strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>do</strong> Antigo Regime tinham base no sistema de hierarquia familiar.<br />

Estes tipos de relações eram entre pais-filhos e entre mari<strong>do</strong>s-esposas, as<br />

peças revelam que se esperava uma absoluta submissão por parte <strong>do</strong>s filhos e<br />

esposas aos seus pais e mari<strong>do</strong>s. Denota-se <strong>da</strong>s peças o fato de como esta<br />

estrutura hierárquica não era bem aceita e como era contesta<strong>da</strong>, mas, ten<strong>do</strong><br />

conteú<strong>do</strong> idealiza<strong>do</strong>, as peças sempre apresentavam alguma contestação<br />

desta estrutura como rebelde e nociva para o funcionamento <strong>do</strong> núcleo familiar,<br />

e frequentemente mostravam em seus desfechos arrependimentos por parte<br />

<strong>do</strong>s “rebeldes” e evidenciavam as vantagens de manter o sistema hierárquico<br />

intacto. A subversão <strong>da</strong> estrutura hierárquica, como retrata<strong>da</strong> na amostra de<br />

peças, era considera<strong>da</strong> uma quebra <strong>do</strong> sistema de trocas entre<br />

63


serviços/submissão e dádiva, sen<strong>do</strong> “ingrato” o insulto mais comum dirigi<strong>do</strong> aos<br />

subversores desta estrutura.<br />

Os personagens recorrentes nos entremezes eram famílias compostas<br />

de pais (ou tutores) e filhos (mais frequentemente uma filha), um ou mais<br />

cria<strong>do</strong>s, e um personagem que era a causa <strong>do</strong> enre<strong>do</strong> (como o amante <strong>da</strong><br />

filha). Este era o ambiente com que o público estava mais familiariza<strong>do</strong> e por<br />

isso era o espaço em que os autores de entremezes poderiam desenvolver<br />

enre<strong>do</strong>s com maior precisão.<br />

Tanto as dissertações teóricas como as peças de teatro <strong>da</strong> amostra<br />

analisa<strong>da</strong> concor<strong>da</strong>m com o fato <strong>do</strong> caráter hierárquico <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong><br />

<strong>portuguesa</strong> <strong>do</strong> Antigo Regime ser rígi<strong>do</strong>, pouco mutável, e caracteriza<strong>do</strong> por<br />

ser movimenta<strong>do</strong> por relações de troca (economia <strong>da</strong> dádiva). Isto nos leva a<br />

duas conclusões. Primeiro, de acor<strong>do</strong> com o discorri<strong>do</strong> acerca <strong>do</strong><br />

funcionamento <strong>da</strong> <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> <strong>do</strong> Antigo Regime, o conceito de representação<br />

de papéis e a busca pelo espaço próprio na <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> pelos indivíduos<br />

pertencentes a ela eram nortea<strong>do</strong>s pelo estabelecimento <strong>da</strong>s relações<br />

hierárquicas e pela troca entre serviços e dádivas, de acor<strong>do</strong> com a posição de<br />

ca<strong>da</strong> indivíduo nesta <strong>socie<strong>da</strong>de</strong>. Segun<strong>do</strong>, que de fato, pode-se utilizar o teatro<br />

como fonte para que se possa pesquisar a maneira de como se construíam as<br />

relações sociais entre indivíduos <strong>do</strong> tipo de <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> em questão, sen<strong>do</strong> os<br />

personagens reflexos <strong>do</strong>s indivíduos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> real correspondente a eles.<br />

Apesar de ser idealiza<strong>do</strong>, ain<strong>da</strong> assim o teatro era dirigi<strong>do</strong> ao público e<br />

revelava ao menos como as relações sociais deveriam ser. Mesmo que não<br />

triunfassem no decorrer <strong>do</strong> enre<strong>do</strong>, o simples fato de haver personagens no<br />

teatro que se rebelavam contra a ordem social estabeleci<strong>da</strong> sinaliza que a<br />

ordem não era bem aceita por to<strong>do</strong>s. O teatro realmente revela a essência <strong>da</strong><br />

personali<strong>da</strong>de de uma <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> que lhe <strong>da</strong>va grande importância, a<br />

representação <strong>do</strong> real em uma <strong>socie<strong>da</strong>de</strong> de representação.<br />

64


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ratazana. Lisboa. 1785<br />

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67

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