MONOGRAFIA PRONTA - Departamento de História - Universidade ...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ<br />
LARA TALINE DOS SANTOS<br />
MEN OF COLOR, TO ARMS!: AS TROPAS NEGRAS NA GUERRA CIVIL<br />
AMERICANA (1861-1865)<br />
CURITIBA<br />
2010
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ<br />
LARA TALINE DOS SANTOS<br />
MEN OF COLOR, TO ARMS!: AS TROPAS NEGRAS NA GUERRA CIVIL<br />
AMERICANA (1861-1865)<br />
Monografia apresentada como requisito<br />
parcial para conclusão do Curso <strong>de</strong><br />
<strong>História</strong> – Licenciatura e Bacharelado, do<br />
Setor <strong>de</strong> Ciências Humanas, Letras e<br />
Artes da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Paraná.<br />
Orientadora: Martha Daisson Hameister<br />
CURITIBA<br />
2010
AGRADECIMENTO<br />
Agra<strong>de</strong>ço à minha amada família, sobretudo a minha mãe, pela confiança em mim<br />
<strong>de</strong>positada;<br />
Ao namorado e fiel amigo Cristiano, por sempre estar ao meu lado;<br />
À professora Martha pela imensa <strong>de</strong>dicação e atenção;<br />
A todos os colegas que me acolheram, pois eu consigo com uma pequena ajuda<br />
dos meus amigos;<br />
À Eloisa e Fabiano pelas noites <strong>de</strong> rock n´roll;<br />
À Amanda e Fernanda; irmãs do coração;<br />
Ao amigo Filipe, sem sua amiza<strong>de</strong> e musicalida<strong>de</strong> este projeto nunca se tornaria<br />
realida<strong>de</strong>.
RESUMO<br />
Após 145 anos <strong>de</strong> seu término, a guerra civil norte-americana - ou Guerra<br />
<strong>de</strong> Secessão (1861-1865) - continua sendo tema amplamente discutido entre os<br />
pesquisadores - em sua maioria norte-americanos - que propõe-se a estudar este<br />
conturbado período da história dos Estados Unidos. O conflito dividiu a nação que<br />
havia sido formada pela Declaração <strong>de</strong> In<strong>de</strong>pendência (1776) e envolveu os<br />
Estados da União do Norte contra os Estados Confe<strong>de</strong>rados do Sul, que<br />
almejavam a separação da fe<strong>de</strong>ração.<br />
A eclosão <strong>de</strong>ste embate marcou profundamente a jovem nação americana<br />
e ainda é tema <strong>de</strong>licado entre os historiadores, visto sua dimensão política, social<br />
e econômica.<br />
A partir disso, tem-se como objetivo geral caracterizar a formação <strong>de</strong>ssas<br />
tropas <strong>de</strong>ntro do espaço da União, buscando compreen<strong>de</strong>r seus aspectos básicos<br />
relativos à institucionalização, treinamento, recebimento <strong>de</strong> soldo e armamento.<br />
Palavras-chave: Estados Unidos, guerra civil, tropas negras
ÍNDICE<br />
INTRODUÇÃO ........................................................................................................6<br />
1º A GUERRA DE SECESSÃO NORTE-AMERICANA: O EMBATE ENTRE OS<br />
ESTADOS CONFEDERADOS DO SUL E A UNIÃO............................................11<br />
2º RALLY MEN OF COLOR, AT ONCE FOR YOUR COUNTRY!: OS<br />
SOLDADOS NEGROS NA GUERRA DE SECESSÃO ........................................26<br />
Os soldados negros no norte ................................................................................27<br />
Os soldados negros no sul....................................................................................28<br />
As consequências da institucionalização: <strong>de</strong> acordo com Confiscation Act e o<br />
Militia Act...............................................................................................................33<br />
Quem eram e o que queriam os soldados negros da União e da Confe<strong>de</strong>ração?35<br />
3º AS TROPAS NEGRAS EM COMBATE: AS CORRESPONDÊNCIAS DOS<br />
SOLDADOS E SEUS OFICIAIS ...........................................................................41<br />
A guerra e a palavra escrita ..................................................................................41<br />
Os soldados negros e a palavra escrita ................................................................42<br />
Os oficiais brancos e as palavras escritas pelos e sobre os soldados negros ......47<br />
Entre o Norte e o Sul, os negros preferem a liberda<strong>de</strong> .........................................54<br />
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................57<br />
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.....................................................................60<br />
ANEXOS ...............................................................................................................62
INTRODUÇÃO<br />
A guerra civil norte-americana, ou Guerra <strong>de</strong> Secessão, <strong>de</strong>flagrou-se nos<br />
Estados Unidos da América entre os anos <strong>de</strong> 1861 e 1865, e envolveu estados na<br />
porção Norte contra aqueles situados mais ao Sul do país. A eclosão <strong>de</strong>ste<br />
embate transformou a ameaça separatista em realida<strong>de</strong>, inclusive com a<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> consolidação do <strong>de</strong>smembramento do sul em um novo país; Os<br />
Estados Confe<strong>de</strong>rados do Sul. Essa organização manteve-se apenas entre os<br />
anos 1861 a 1865, entretanto, seu impacto político e econômico para toda a<br />
fe<strong>de</strong>ração foi incalculável 1 .<br />
Este conflito foi fruto <strong>de</strong> profundas divergências – políticas, sociais e<br />
econômicas - que somaram-se a uma a questão central, um divisor <strong>de</strong> águas: a<br />
escravidão. A antiga instituição escravista, herança do período colonial, constituiu<br />
o ponto <strong>de</strong> divergência mais profundo entre Norte e Sul dos Estados Unidos,<br />
contribuindo para que outros aspectos <strong>de</strong> <strong>de</strong>sacordo emergissem e acabassem<br />
por encaminhar o jovem país a secessão.<br />
Este <strong>de</strong>bate acerca da importância da escravidão para o <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>amento<br />
dos conflitos da secessão é especialmente problemático para os historiadores,<br />
sobretudo, aqueles <strong>de</strong> origem norte-americana. A relação entre a escravidão e a<br />
Guerra Civil tem sido abordada com cuidado, uma vez que consiste em um tema<br />
<strong>de</strong>licado para a historiografia estaduni<strong>de</strong>nse.<br />
A Guerra <strong>de</strong> Secessão foi o conflito mais brutal <strong>de</strong> toda a América. Milhares<br />
<strong>de</strong> pessoas per<strong>de</strong>ram a vida, sendo a maioria soldados das forças armadas norte-<br />
americanas. Inicialmente, esses soldados eram recrutas voluntários, porém esse<br />
tipo <strong>de</strong> alistamento angariava poucos homens para as fileiras dos exércitos do<br />
norte e sul. Na medida em que o enfretamento entre a União e os confe<strong>de</strong>rados<br />
esten<strong>de</strong>u-se, o número <strong>de</strong> soldados requeridos tornou-se maior, enquanto que o<br />
número <strong>de</strong> voluntários sentia visível <strong>de</strong>créscimo. Assim, o alistamento obrigatório<br />
foi instituído. Mesmo com essa medida, um número maior <strong>de</strong> soldados ainda era<br />
necessário. 2<br />
1 IZECKSOHN, Vitor. Escravidão, fe<strong>de</strong>ralismo e <strong>de</strong>mocracia: a luta pelo controle do Estado<br />
nacional norte-americano antes da Secessão. In: TOPOI, Revista semestral do Programa <strong>de</strong> Pósgraduação<br />
em <strong>História</strong> Social da UFRJ, nº 6, Janeiro-Junho <strong>de</strong> 2003, Volume 04. p. 47.<br />
2 TRUDEAU, Noah André. Op. Cit. pp. 03-20.<br />
6
Foi neste contexto que se <strong>de</strong>u, em 22 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1862, a assinatura<br />
da Proclamação <strong>de</strong> Emancipação pelo então presi<strong>de</strong>nte Abraham Lincoln. Esse<br />
documento <strong>de</strong>terminava a libertação <strong>de</strong> todos os escravos oriundos dos estados<br />
confe<strong>de</strong>rados, aprovando seu ingresso nas fileiras do exército da União a partir <strong>de</strong><br />
01 <strong>de</strong> janeiro do ano seguinte. Posteriormente, o alistamento <strong>de</strong> afro-americanos<br />
no Norte tornou-se obrigatório. Assim, gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> homens <strong>de</strong> cor<br />
tornaram-se soldados da União, sendo parte significativa <strong>de</strong>les ex-escravos<br />
oriundos do sul confe<strong>de</strong>rado 3 .<br />
Os estados sulistas, por sua vez, também necessitavam contingente<br />
humano para incorporar ao exército que partia para a luta contra União.<br />
Primeiramente os negros não eram vistos como uma opção viável, porém o<br />
número <strong>de</strong> homens brancos em ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> serviço militar encontrava-se bem<br />
abaixo do que era requerido pelo exército. Desta forma, mesmo ameaçando sua<br />
lógica escravista, os estados do Sul também passaram ao recrutamento <strong>de</strong> sua<br />
população negra livre e escrava.<br />
A partir disso, examinar-se-á o surgimento e <strong>de</strong>senvolvimento dos<br />
regimentos <strong>de</strong> negros na Guerra <strong>de</strong> Secessão, procurando i<strong>de</strong>ntificar a forma com<br />
que se <strong>de</strong>u o ingresso dos homens <strong>de</strong> cor na instituição militar; seus padrões <strong>de</strong><br />
recrutamento e constituição formal. Buscar-se-á, não menos, <strong>de</strong>limitar as<br />
diferenças e aproximações existentes entre os regimentos <strong>de</strong> brancos e negros<br />
<strong>de</strong>ntro no âmbito dos corpos militares, <strong>de</strong>stacando a interação social entre os<br />
soldados <strong>de</strong> cor e seus comandantes brancos.<br />
Assim, objetiva-se uma análise do processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento das tropas<br />
compostas por homens <strong>de</strong> cor nos Estados Unidos, buscando compreen<strong>de</strong>r como<br />
se <strong>de</strong>u sua institucionalização. Por fim, se preten<strong>de</strong> ainda uma análise da questão<br />
da liberda<strong>de</strong> para os negros que engrossavam as fileiras do exército tanto da<br />
União, quanto da Confe<strong>de</strong>ração.<br />
A produção historiográfica atinente ao tema Guerra <strong>de</strong> Secessão é um<br />
campo pouco explorado por autores brasileiros. Entretanto, é notável o trabalho<br />
<strong>de</strong> alguns autores nacionais, como Victor Izecksohn, autor <strong>de</strong> “Escravidão,<br />
fe<strong>de</strong>ralismo e <strong>de</strong>mocracia: a luta pelo controle do Estado nacional norte-<br />
americano antes da Secessão” e “Deportação ou Integração. Os dilemas negros<br />
3 Ibi<strong>de</strong>m, pp. 12-20.<br />
7
<strong>de</strong> Lincoln”. A historiografia sobre este tópico tem, portanto, predomínio <strong>de</strong><br />
autores norte-americanos e sua vasta literatura atinente ao tema.<br />
Analisando a produção estaduni<strong>de</strong>nse, percebe-se a importância e<br />
singularida<strong>de</strong> do tema da Secessão - tanto para a opinião pública, quanto para a<br />
comunida<strong>de</strong> acadêmica – tomado como um momento muito <strong>de</strong>licado na<br />
constituição da nação norte-americana. Neste contexto, é interessante notar que<br />
gran<strong>de</strong> parte da vasta produção sobre o tema privilegia uma análise da vitória da<br />
União, sendo escassos os trabalhos que procuram, compreen<strong>de</strong>r o porquê da<br />
<strong>de</strong>rrota sulista.<br />
A historiografia norte-americana procurou, igualmente, imortalizar a<br />
imagem <strong>de</strong> lí<strong>de</strong>res do conflito - como Lincoln e o general Grant - que passaram a<br />
ser tratados como os gran<strong>de</strong>s heróis nacionais. Outra característica <strong>de</strong>sta<br />
historiografia é relativa à sua produção, que parte <strong>de</strong> uma divisão com relação ao<br />
posicionamento dos autores que se ocupam do tema da guerra civil, uma<br />
verda<strong>de</strong>ira disputa entre os historiadores 4 .<br />
As discordâncias iniciam-se quanto as próprias origens do conflito, suas<br />
<strong>de</strong>mandas e seu impacto a longo prazo na constituição da socieda<strong>de</strong><br />
estaduni<strong>de</strong>nse. 5 Entretanto, para além <strong>de</strong>ssas questões, uma divisão se faz ainda<br />
mais evi<strong>de</strong>nte. Esta separação – que não será objeto <strong>de</strong>sse trabalho – centra-se<br />
no <strong>de</strong>licado tema da relação Guerra Civil e abolição. Sobre este tema, a<br />
historiografia tradicional tenta ocultar o estreito vínculo entre o conflito e a questão<br />
abolicionista. Por outro lado, uma segunda gran<strong>de</strong> corrente - a que se toma aqui<br />
como base para esse projeto - assume esse vínculo e trata <strong>de</strong> <strong>de</strong>svendar seus<br />
meandros. Com relação à formação das tropas <strong>de</strong> homens <strong>de</strong> cor durante os<br />
embates da Secessão, os poucos autores inseridos nesta corrente privilegiam a<br />
análise <strong>de</strong> alguns tópicos em especial; como a <strong>de</strong>senvolvimento das tropas,<br />
aspectos <strong>de</strong> sua constituição formal e a questões sociais.<br />
O autor Noah Andre Tru<strong>de</strong>au, em Like Men of War. Black Troops in the civil<br />
war (1862-1865), privilegia questões relacionadas à concepção <strong>de</strong>ssas tropas,<br />
analisando aspectos sobre o armamento, fardamento e pagamento <strong>de</strong> soldo. Sua<br />
análise centra-se, não menos, em aspectos relacionados à institucionalização das<br />
4 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edição).<br />
Blackwell Publishing, 2005. pp. 09-11.<br />
5 Ibi<strong>de</strong>m, p. 01.<br />
8
tropas <strong>de</strong> homens <strong>de</strong> cor. Notavelmente, esse autor apenas dá ao leitor um<br />
panorama geral da questão social e das discussões a cerca da inserção do<br />
homem negro no exército. 6<br />
Diferentemente, o autor Joseph T. Glatthaar, em Forged in Battle: the civil<br />
war alliance of black soldiers and white officers, privilegia justamente essas<br />
questões. Sua análise, fundamentada na participação dos homens brancos no<br />
comando <strong>de</strong> regimentos negros, trata <strong>de</strong> questões <strong>de</strong> armamento e treinamento a<br />
partir <strong>de</strong> uma perspectiva da interação entre os diferentes grupos sociais no<br />
âmbito das corporações militares 7 .<br />
Notavelmente, tanto Tru<strong>de</strong>au, quanto Glatthaar têm sua análise baseada<br />
do caso da União. A questão confe<strong>de</strong>rada é discutida, porém não é aprofundada.<br />
O autor Steven Hahn, em A nation un<strong>de</strong>r our feet. Black political struggles in the<br />
rural south from slavery to the great migration, vai, por sua vez, centrar sua<br />
análise justamente no Sul dos Estados Unidos, analisando a instituição escravista<br />
confe<strong>de</strong>rada e a gran<strong>de</strong> migração que se <strong>de</strong>u entre os escravos que, cada vez<br />
mais, abandonavam o sul em busca <strong>de</strong> uma vida melhor no norte. 8<br />
No âmbito da questão da escravidão na historiografia sobre a secessão, é<br />
interessante a análise realizada por Eric Hobsbawm, em “A era do Capital”. O<br />
autor atenta para o fato <strong>de</strong> que não é necessária apenas uma compreensão da<br />
escravidão como sendo a causa primordial dos embates entre Sul e Norte. Para<br />
além <strong>de</strong>ssa questão é preciso enten<strong>de</strong>r porque a escravidão conduziu o país a<br />
guerra civil e a secessão, ao invés <strong>de</strong> encontrar uma solução que levasse a<br />
coexistência 9 .<br />
Seguindo esta linha inaugurada por Hobsbawm, são notáveis os escritos<br />
que visam compreen<strong>de</strong>r a Guerra Civil a partir <strong>de</strong> uma perspectiva <strong>de</strong> análise do<br />
avanço do capitalismo nos Estados Unidos, procurando, paralelamente, enten<strong>de</strong>r<br />
como, quando e porque a escravidão acabou por conduzir a jovem nação a<br />
secessão. Assim, novos trabalhos privilegiam a o viés da história social e dos<br />
6 TRUDEAU, Noah Andre. Op. Cit. pp. XVII-XX.<br />
7 GLATTHAAR, Joseph. Op. Cit. pp. IX-X.<br />
8 HAHN, Steven. A nation un<strong>de</strong>r our feet. Black political struggles in the rural south from slavery to<br />
the great migration. Belknap Harvard, 2003. pp. 01-10.<br />
9 HOBSBAWM, Eric. Op. Cit. pp. 153-157.<br />
9
estudos <strong>de</strong> gênero e afros. 10 Este <strong>de</strong>bate esten<strong>de</strong>-se a vários teóricos e<br />
pensadores. Neste sentido, salientam-se os trabalhos traduzidos para o<br />
português, <strong>de</strong> Eric Foner, em sua obra Nada além da liberda<strong>de</strong>. A emancipação e<br />
seu legado 11 e Eugene Genovese, em A economia política da escravidão 12 .<br />
O presente estudo baseou-se, basicamente, nesta ampla bibliografia norte-<br />
americana, atrelando essas leituras a análise <strong>de</strong> fontes primárias. Esta<br />
documentação, ampla e diferenciada entre si, é oriunda dos volumes <strong>de</strong><br />
documentos e ensaios do projeto Freedmen and Southern Society 13 , da<br />
Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Maryland - EUA. Este gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> documentos encontra-<br />
se transcrito e disponível no acervo on-line do projeto.<br />
10<br />
___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edição).<br />
Blackwell Publishing, 2005. pp. 02-13.<br />
11<br />
FONER, Eric. Nada além da liberda<strong>de</strong>. A emancipação e seu legado. Trad. Luiz Paulo Rouanet.<br />
Rio <strong>de</strong> Janeiro: Paz e Terra, 1998.<br />
12<br />
GENOVESE, Eugene. A Economia Política da Escravidão. RJ: Pallas, 1976.<br />
13<br />
O projeto é iniciativa do <strong>de</strong>partamento <strong>de</strong> história da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Maryland, tendo como<br />
diretora Leslie S. Rowland e contando com um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> colaboradores. Seu acervo online<br />
encontra-se disponível em: http://www.history.umd.edu/Freedmen/sampdocs.htm<br />
10
A GUERRA DE SECESSÃO NORTE-AMERICANA: O EMBATE ENTRE OS<br />
ESTADOS CONFEDERADOS DO SUL E A UNIÃO<br />
11<br />
“Os americanos haviam se transformado<br />
em dois povos, um povo para a liberda<strong>de</strong><br />
e um para a escravidão. Entre os dois o<br />
conflito era inevitável”.<br />
Horace Greely. 14<br />
O século XIX foi palco do conflito mais violento do território americano. A<br />
Guerra Civil norte-americana, também conhecida na historiografia como Guerra<br />
<strong>de</strong> Secessão, ren<strong>de</strong>u os combates em que mais se mataram americanos no solo<br />
<strong>de</strong> seu próprio continente. O conflito <strong>de</strong>flagrou-se nos Estados Unidos da América<br />
envolvendo os estados do sul contra os estados do norte do país.<br />
A eclosão <strong>de</strong>ste embate, visando o governo do Estado nacional,<br />
transformou a ameaça separatista em realida<strong>de</strong>, inclusive com a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
consolidação do <strong>de</strong>smembramento do Sul em um novo país: Os Estados<br />
Confe<strong>de</strong>rados do Sul. Essa organização manteve-se apenas entre os anos 1861<br />
a 1865, entretanto, seu impacto político e econômico para toda a fe<strong>de</strong>ração foi<br />
incalculável, dividindo a nação criada pela Declaração <strong>de</strong> In<strong>de</strong>pendência e pela<br />
Constituição nacional. 15<br />
Entre a 1776, data da Declaração <strong>de</strong> In<strong>de</strong>pendência, e uma década antes<br />
da eclosão da guerra, a gran<strong>de</strong> maioria dos estados dos Estados Unidos da<br />
América vivenciaram um período <strong>de</strong> rápidas e profundas mudanças no âmbito<br />
econômico e político. Essas transformações, advindas <strong>de</strong> processos <strong>de</strong><br />
mo<strong>de</strong>rnização e industrialização, vinham aliadas a um singular aumento no<br />
número <strong>de</strong> habitantes do país, contando com gran<strong>de</strong> volume <strong>de</strong> imigrações,<br />
atreladas a expansão territorial e a urbanização. Os avanços eram notáveis,<br />
porém, as mudanças levaram a conflitos com a ala mais tradicional do governo<br />
norte-americano. Este grupo, quase sempre vinculado aos gran<strong>de</strong>s plantadores<br />
14 Citado em FORNER, Free Soil. Free Labor, Free Men: The i<strong>de</strong>ology of the Republican Party<br />
before the Civil War. Oxford University Press: Oxford, New York, 1995. p. 310.<br />
15 IZECKSOHN, Vitor. Escravidão, fe<strong>de</strong>ralismo e <strong>de</strong>mocracia: a luta pelo controle do Estado<br />
nacional norte-americano antes da Secessão. In: TOPOI, Revista semestral do Programa <strong>de</strong> Pósgraduação<br />
em <strong>História</strong> Social da UFRJ, nº 6, Janeiro-Junho <strong>de</strong> 2003, Volume 04. p. 47.
escravistas, buscava conter as mudanças a partir da promulgação <strong>de</strong> leis <strong>de</strong><br />
caráter restritivo e <strong>de</strong> medidas centralizadoras. 16<br />
Apesar dos embates já se darem a tempo consi<strong>de</strong>rável no campo político e<br />
diplomático - uma vez que as discussões acerca da expansão territorial e da<br />
escravidão já vinham agravando-se <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1848 17 - os conflitos bélicos iniciaram-<br />
se apenas em 1861, com a exigência dos sulistas <strong>de</strong> que as tropas da União<br />
abandonassem o estratégico Forte Sumter, localizado na Carolina do Sul.<br />
Notavelmente, este foi o primeiro estado a ter sua separação reconhecida e<br />
oficializada em convenção.<br />
Em 1961 os confe<strong>de</strong>rados tinham controle <strong>de</strong> todo o território ao Sul dos<br />
Estados Unidos, excetuando dois fortes que estavam sob controle fe<strong>de</strong>ral. Um<br />
<strong>de</strong>les, o Forte Sumter, localizava-se em uma ilha no porto <strong>de</strong> Charleston e<br />
encontrava-se isolado, sem acesso aos mantimentos necessários para os<br />
homens que ali estavam. Diante <strong>de</strong>sta situação, o presi<strong>de</strong>nte da confe<strong>de</strong>ração<br />
Jefferson Davis proclamou que as forças nortistas estavam proibidas <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r<br />
ao forte, sob ameaça <strong>de</strong> represália armada. Entretanto, as tropas da União<br />
avançaram e em 12 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1861, às 4:30 da manhã, o General Beauregard<br />
comandou as forças separatistas em Charleston e iniciou o combate que daria<br />
início a Guerra Civil norte-americana. 18<br />
Até então o Norte ainda relutava em utilizar forças armadas para intervir na<br />
situação do Sul, entretanto, o episódio do Forte Sumter foi o estopim para a ação<br />
nortista. A operação em Sumter gerou uma onda <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>ira “indignação<br />
patriótica” 19 . Assim, entre os anos <strong>de</strong> 1860 e 1861, vários processos similares<br />
levados a cabo, com o Sul a<strong>de</strong>rindo quase em sua totalida<strong>de</strong> à causa da<br />
secessão. 20<br />
Entretanto, é importante salientar que nem todos os estados do Sul<br />
a<strong>de</strong>riram à causa separatista. Delaware, Maryland, Kentucky e Missouri não<br />
16 Ibi<strong>de</strong>m, pp. 48-50.<br />
17 ALLEN, H.C. <strong>História</strong> dos Estados Unidos da América. Tradução <strong>de</strong> Ray Jungman. Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro: Forense, 1968.<br />
18 Ibi<strong>de</strong>m, p. 137.<br />
19 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edição).<br />
Blackwell Publishing, 2005. p. 10.<br />
20 IZECKSOHN, Vitor. Deportação ou Integração. Os dilemas negros <strong>de</strong> Lincoln. In: TOPOI,<br />
Revista semestral do Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em <strong>História</strong> Social da UFRJ, nº 20, Janeiro-<br />
Junho <strong>de</strong> 2010, Volume 11. p. 64.<br />
12
saíram da União, provavelmente por medo <strong>de</strong> tornarem-se palco do conflito, visto<br />
sua condição fronteiriça. Segundo Izechsohn, esses estados, conhecidos como<br />
bor<strong>de</strong>r states, nesse momento servindo como estados “tampões”, tiveram papel<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>staque ao manter a guerra, durante certo tempo, restrita a territórios sulistas.<br />
A escravidão nessas regiões não foi extinta, e acabou por tornar-se um gran<strong>de</strong><br />
empecilho a abolição no país. Isso não significa que essa questão fosse<br />
priorida<strong>de</strong>, pelo contrário, as discussões sobre igualda<strong>de</strong> e liberda<strong>de</strong> ainda<br />
estavam iniciando-se nos Estados Unidos na década <strong>de</strong> 1860. 21<br />
De fato Sul e Norte não eram, em todo, divergentes. Inicialmente, as duas<br />
regiões compartilhavam padrões populacionais, representação no governo central<br />
e volume <strong>de</strong> exportações, vivenciando um processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />
econômico. É notável que por, mais <strong>de</strong> uma vez, Sul e Norte aliaram-se; como foi<br />
o caso da guerra empreendida contra o México (1846-1848) e das invasões a<br />
Oeste (iniciada por volta da década <strong>de</strong> 1790). Neste contexto, o sul ditava os<br />
rumos <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> expansão rumo ao Pacífico que iniciou-se em meados<br />
<strong>de</strong> 1814 e perdurou até a Guerra Civil.<br />
A marcha para o Oeste – como é conhecido este processo <strong>de</strong> expansão –<br />
só foi possível <strong>de</strong>vido ao bloqueio inglês as pretensões norte-americanas com<br />
relação ao resto do continente. A marinha inglesa ainda era forte e impossibilitava<br />
os Estados Unidos <strong>de</strong> dirigirem-se a outras regiões da América. É diante <strong>de</strong>sta<br />
situação que nasce uma causa americana unindo estados do Norte e Sul em<br />
torno da Doutrina Monroe 22 , que <strong>de</strong>fendia a não criação <strong>de</strong> novas colônias no<br />
Novo Continente, a não intervenção européia nos assuntos americanos e<br />
<strong>de</strong>marcava uma posição <strong>de</strong> neutralida<strong>de</strong> dos Estados Unidos com relação a<br />
conflitos ocorridos na Europa. 23<br />
A marcha para o Oeste significou também uma expansão em terras que<br />
eram habitadas por indígenas, fato que ocasionou conflitos. Entretanto,<br />
geralmente as guerras geram unida<strong>de</strong>. Os inimigos à frente – a metrópole inglesa<br />
e os indígenas que resistiam – eram mais fortes do que as diferenças internas<br />
entre nortistas e sulistas.<br />
21 Ibi<strong>de</strong>m, p. 64.<br />
22 Sobre a Doutrina Monroe, ver PERKINS, Dexter. A History of the Monroe Doctrine.<br />
23 ALLEN, H.C. Op. Cit. pp. 111-121.<br />
13
Tanto Sul, quanto Norte compartilhavam uma mesma concepção para as<br />
políticas mais amplas, voltada ao expansionismo e à afirmação da superiorida<strong>de</strong><br />
branca. Americanos <strong>de</strong> ambas as regiões do país sonhavam com os Estados<br />
Unidos como potência dominante no esquecido Hemisfério Oci<strong>de</strong>ntal. 24 Estas<br />
idéias estavam diretamente ligadas à doutrina do Destino Manifesto 25 , teoria <strong>de</strong><br />
origem calvinista que <strong>de</strong>fendia a crença dos Estados Unidos como nação eleita<br />
por Deus. 26<br />
No âmbito econômico, as duas localida<strong>de</strong>s mantinham relações comerciais.<br />
Porém, progressivamente, a diferenciação econômica entre as duas regiões foi<br />
aumentando, sendo que interesses regionais passaram a <strong>de</strong>sestabilizar a<br />
integrida<strong>de</strong> nacional norte-americana 27 . Neste contexto, o próprio conflito com o<br />
México, que antes unira as duas regiões, agora era motivo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sacordo, uma<br />
vez que esse embate passava a ser criticado frente a um temor <strong>de</strong> que o<br />
processo expansionista contribuísse com a manutenção <strong>de</strong> uma política<br />
escravocrata, aumentando, consequentemente, o po<strong>de</strong>r político e influência<br />
sulista.<br />
O espaço mexicano foi, notavelmente, ocupado pelos gran<strong>de</strong>s proprietários<br />
sulistas, que visavam expandir sua área <strong>de</strong> produção. Entretanto, as autorida<strong>de</strong>s<br />
nortistas não gostaram da idéia da expansão sulista-escravocrata, apesar <strong>de</strong> não<br />
terem tomado medidas efetivas contra a ocupação. É provável que o norte não<br />
tenha adotado postura mais ofensiva contra a ação no México por não querer ou<br />
talvez por não po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>senvolver um projeto diferente do projeto sulista na região.<br />
Porém, é preciso salientar que este episódio <strong>de</strong>monstrou as gran<strong>de</strong>s divergências<br />
entre os dois blocos políticos, sociais e econômicos <strong>de</strong>ntro da fe<strong>de</strong>ração. 28<br />
Definitivamente, Sul e Norte possuíam aproximações e relações. Porém, as<br />
diferenças entre as duas regiões intensificavam-se progressivamente. As<br />
afinida<strong>de</strong>s existentes foram suplantas pelas profundas divergências que<br />
24<br />
Ibi<strong>de</strong>m, p. 112.<br />
25<br />
Sobre o Destino Manifesto, ver WEINBERG, Manifest Destiny: A Study of Nationalist<br />
Expansionism in American History.<br />
26<br />
IZECKSOHN, Vitor. Escravidão, fe<strong>de</strong>ralismo e <strong>de</strong>mocracia: a luta pelo controle do Estado<br />
nacional norte-americano antes da Secessão. In: TOPOI, Revista semestral do Programa <strong>de</strong> Pósgraduação<br />
em <strong>História</strong> Social da UFRJ, nº 6, Janeiro-Junho <strong>de</strong> 2003, Volume 04. pp. 48-64.<br />
27<br />
Ibi<strong>de</strong>m, pp. 47-54.<br />
28<br />
IZECKSOHN, Vitor. Deportação ou Integração. Os dilemas negros <strong>de</strong> Lincoln. In: TOPOI,<br />
Revista semestral do Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em <strong>História</strong> Social da UFRJ, nº 20, Janeiro-<br />
Junho <strong>de</strong> 2010, Volume 11. p. 61.<br />
14
emergiam. Uma vez que os inimigos externos haviam sido superados as tensões<br />
internas voltaram a aflorar novamente.<br />
O Norte vivenciava um período <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento econômico a<br />
partir <strong>de</strong> um processo industrialização, com prepon<strong>de</strong>rância das indústrias naval e<br />
têxtil que orientavam sua produção <strong>de</strong> acordo com o capitalismo mundial. Era um<br />
período <strong>de</strong> rápida diversificação da economia, com a região atrelando-se ao<br />
capitalismo comercial mundial a partir <strong>de</strong> uma verda<strong>de</strong>ira revolução <strong>de</strong> mercado<br />
que incorporou novas ativida<strong>de</strong>s e trouxe um gran<strong>de</strong> volume <strong>de</strong> riquezas para o<br />
Norte. Indústrias nas mais diversas áreas, como ferro e aço, botas e sapatos,<br />
papel, comestíveis empacotados, armas <strong>de</strong> fogo, maquinário agrário, mobília e<br />
ferramentas, <strong>de</strong>senvolveram-se rapidamente. O volume <strong>de</strong> empréstimos<br />
concedidos e seguros vendidos pelos bancos teve aumento exponencial. As<br />
estradas <strong>de</strong> ferro e a produção <strong>de</strong> barcos a vapor movimentou a indústria dos<br />
transportes. Serviços e bens passaram a movimentar a quantia <strong>de</strong> 2 a 3 bilhões<br />
<strong>de</strong> dólares anuais e o volume <strong>de</strong> exportações atingiu o valor <strong>de</strong> 400 milhões <strong>de</strong><br />
dólares. 29<br />
No âmbito social, essa região, mais populosa, tinha alto número <strong>de</strong><br />
alfabetizados e um consi<strong>de</strong>rável número <strong>de</strong> imigrantes estrangeiros 30 . Além disso,<br />
o contexto <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento industrial propiciou o surgimento <strong>de</strong> uma nova<br />
gran<strong>de</strong> classe; a classe dos trabalhadores assalariados. 31 Com relação à<br />
população escrava, é notável que na maior parte dos estados do Norte, o número<br />
<strong>de</strong> negros – em proporção ao número <strong>de</strong> habitantes – era pequeno e pouco<br />
significante economicamente. 32 Enquanto o Sul abrigava, na década <strong>de</strong> 1860,<br />
quase 4 milhões <strong>de</strong> escravos 33 , nos estados do Norte este número muito inferior.<br />
New Jersey era o estado nortista com o maior percentual <strong>de</strong> escravos com<br />
relação a população total, possuindo 3,76% da população escrava. Enquanto<br />
29<br />
___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edição).<br />
Blackwell Publishing, 2005. p. 53.<br />
30<br />
KARNAL, PURDY, FERNANDES, MORAIS. Leandro, Sean, Luiz Estevam, Marcus Vinícius <strong>de</strong>.<br />
Os EUA no século XIX. <strong>História</strong> dos Estados Unidos, das origens ao século XXI. São Paulo:<br />
Contexto, 2ª edição, 2007. pp. 129-136.<br />
31<br />
___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edição).<br />
Blackwell Publishing, 2005. p. 03.<br />
32 Ibi<strong>de</strong>m, p. 02.<br />
33 ALLEN, H.C. Op. Cit. p. 129.<br />
15
isso, estados como New Hampshire e Massachussets mantinham a porcentagem<br />
<strong>de</strong> escravos abaixo da margem <strong>de</strong> 1% da população. 34<br />
Nos estados do Sul a situação era diferente. Os proprietários sulistas<br />
encontravam dificulda<strong>de</strong> em utilizar tecnologias recentes na sua produção e a<br />
inda estavam profundamente ligados a uma idéia pastoril, que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que o<br />
trabalho na terra é aquele que <strong>de</strong>tém maior valor para o homem 35 . Assim, a<br />
agricultura ainda era a principal ativida<strong>de</strong> regional, estando baseada no trabalho<br />
escravo africano. A produção agrária sulista também foi afetada pela mesma<br />
revolução <strong>de</strong> mercado i<strong>de</strong>ntificada no Norte. Entretanto, nos estados do Sul ela<br />
teve efeito <strong>de</strong> expansão e intensificação da agricultura comercial, bem como<br />
colaborou para arraigar a idéia da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma expansão das gran<strong>de</strong>s<br />
plantations para o Oeste, suplantando as pequenas proprieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>stinadas à<br />
subsistência. Neste sentido, é importante atentar para o fato <strong>de</strong> que os gran<strong>de</strong>s<br />
proprietários das plantations não constituíam maioria entre a população, pelo<br />
contrário. Porém, eram eles os <strong>de</strong>tentores do po<strong>de</strong>r econômico e do prestígio<br />
social, comandando as <strong>de</strong>cisões políticas. 36<br />
Em suma, os diferentes projetos <strong>de</strong> colonização – a quase inexistência <strong>de</strong><br />
projetos e o mosaico <strong>de</strong> formas diferenciadas <strong>de</strong> conceber-se americano, muito<br />
calcado nos tipos humanos, políticos e religiosos diferenciados que já existiam<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a colônia e que continuaram existindo após a in<strong>de</strong>pendência - evi<strong>de</strong>ncia<br />
essas diferenças internas recobertas por uma capa <strong>de</strong> unida<strong>de</strong> que era a<br />
fe<strong>de</strong>ração dos estados. Esses eram muito diferentes entre si, porém mantinham-<br />
se unidos porque gozavam <strong>de</strong> uma relativamente forte autonomia <strong>de</strong>ntro da<br />
fe<strong>de</strong>ração. Ou seja, só podiam ser “um só”, porque o tipo <strong>de</strong> organização adotada<br />
permitia que essas diferenças existissem, já que o pressuposto <strong>de</strong>ssa<br />
organização era a autonomia dos estados. Isso também evi<strong>de</strong>ncia que no<br />
momento da guerra civil a questão da escravidão era tão forte que o princípio da<br />
autonomia dos estados da fe<strong>de</strong>ração foi à breca quando o Norte interfere no<br />
mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> organização política, social e econômica no Sul.<br />
34<br />
Censo disponível em: http://www.slavenorth.com/ Acesso em: 25 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2010.<br />
35<br />
IZECKSOHN, Vitor. Op. Cit. pp. 47-51.<br />
36<br />
___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edição).<br />
Blackwell Publishing, 2005. pp. 03-05.<br />
16
Para além <strong>de</strong>ssas questões, é notável que o Sul ainda mantinha fortes<br />
laços com a antiga metrópole inglesa. Laços, sobretudo econômicos, que a<br />
Revolução Americana <strong>de</strong> 1776 não foi capaz <strong>de</strong> cortar imediatamente. A<br />
produção local mantinha-se <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do mercado britânico, sempre<br />
procurando expandir os domínios <strong>de</strong> sua monocultura algodoeira e a área <strong>de</strong><br />
abrangência da comercialização <strong>de</strong> sua produção agrícola para territórios<br />
situados mais ao Norte, o que <strong>de</strong> certo modo, representa complementarida<strong>de</strong> das<br />
produções <strong>de</strong> ambos os territórios. Assim, a diversificação da economia não era<br />
uma realida<strong>de</strong> possível no Sul, enquanto que no Norte ela já era acentuada.<br />
No âmbito político também havia diferenciação entre o Norte e o Sul dos<br />
Estados Unidos. No congresso, o Sul procurava equilibrar as diferenças que<br />
existiam nos planos econômicos e sociais, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo e impondo suas<br />
concepções escravistas e agrárias <strong>de</strong> forma radical.<br />
“O Sul escravista ao mesmo tempo controlava o Estado americano<br />
e tornava-se o mais sério adversário da sua expansão nos anos que<br />
antece<strong>de</strong>ram a Guerra” 37 .<br />
Desta forma, as divergências e <strong>de</strong>bates só foram intensificados com o<br />
<strong>de</strong>senrolar do conflito bélico. As visões relativas ao papel <strong>de</strong>senvolvido pelo<br />
governo central, a forma com que estava dividido o po<strong>de</strong>r fe<strong>de</strong>ral e o próprio<br />
exercício da <strong>de</strong>mocracia, foram se distanciando e tornando-se contrárias. Assim,<br />
o separatismo chegava à política e passava a ameaçar a unida<strong>de</strong> da fe<strong>de</strong>ração. 38<br />
Entretanto, é necessário atentar para o fato <strong>de</strong> que o ensejo da guerra ia<br />
muito além das causas políticas. O objetivo do conflito não era apenas a<br />
preservação da União, pelo contrário 39 . Os motivos da secessão possuíam raízes<br />
muito mais profundas, que remetiam ao período colonial. As diferenças entre<br />
Norte e Sul se davam no plano dos projetos políticos <strong>de</strong> cada região, em muito<br />
<strong>de</strong>vido à ação da administração inglesa. A coroa britânica ausentou-se no início<br />
da colonização, moldando uma perspectiva <strong>de</strong> auto-<strong>de</strong>terminação em seus<br />
colonos. Disso <strong>de</strong>corre não ser nada surpreen<strong>de</strong>nte que uma gran<strong>de</strong> área tenha<br />
37 IZECKSOHN, Vitor. Op. Cit. p. 58.<br />
38 Ibi<strong>de</strong>m, pp. 47-63.<br />
39 ALLEN, H.C. p.129.<br />
17
um projeto político, econômico e social muito diferente das linhas gerais do<br />
projeto <strong>de</strong> seus vizinhos.<br />
A essas diferenças na composição econômica e política das duas regiões,<br />
somou-se a questão da escravidão. Após a in<strong>de</strong>pendência, em 1776, procurou-se<br />
organizar os Estados em uma União fe<strong>de</strong>ralista. Entretanto, essa organização<br />
<strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> lado <strong>de</strong>mandas cruciais na formação da nação, entre elas a da<br />
escravidão.<br />
Primeiramente, a própria igualda<strong>de</strong> era limitada, estando negros e índios<br />
prontamente excluídos, sem direito a nenhuma representação política. Os negros,<br />
particularmente, eram vistos como passageiros em solo americano, sendo a<br />
escravidão uma instituição a ser superada pelas forças do <strong>de</strong>senvolvimento<br />
econômico e político. Assim, a igualda<strong>de</strong> encontrava-se restrita aos homens<br />
brancos por “(...) disporem <strong>de</strong> prerrogativas extraordinárias, ausente da vida das<br />
<strong>de</strong>mais nações” 40 . Essas concepções não sofreram modificações significativas,<br />
mesmo no século XIX. Assim, estas questões viriam à tona mais tar<strong>de</strong>,<br />
notavelmente, com o processo <strong>de</strong> expansão territorial norte-americano, que<br />
mobilizou tanto os estados do Norte, quanto do Sul dos Estados Unidos. 41<br />
A expansão para o oeste havia ampliado a própria escravidão - com um<br />
singular crescimento <strong>de</strong>mográfico da população <strong>de</strong> origem africana concentrada<br />
no Sul - transformando os Estados Unidos da América em um país<br />
essencialmente escravista, processo que havia se iniciado com a lei <strong>de</strong> proibição<br />
do tráfico negreiro, em 1808, e com o aumento no número <strong>de</strong> escravos no Sul 42 .<br />
A escravidão, remanescente do período colonial, era <strong>de</strong>fendida pelos gran<strong>de</strong>s<br />
proprietários sulistas, que visavam proteger interesses econômicos ligados as<br />
plantations baseadas no trabalho escravo africano. Esses gran<strong>de</strong>s proprietários<br />
ainda contavam com o apoio <strong>de</strong> produtores menores, em uma aliança que visava<br />
continuar a subordinar a população negra. 43 Para tanto, os dirigentes do Sul<br />
utilizavam uma leitura própria da Constituição e princípios fe<strong>de</strong>ralistas para<br />
40<br />
IZECKSOHN, Vitor. Deportação ou Integração. Os dilemas negros <strong>de</strong> Lincoln. In: TOPOI,<br />
Revista semestral do Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em <strong>História</strong> Social da UFRJ, nº 20, Janeiro-<br />
Junho <strong>de</strong> 2010, Volume 11. p. 56.<br />
41<br />
Ibi<strong>de</strong>m, pp. 56-58.<br />
42<br />
Ibi<strong>de</strong>m, p. 58.<br />
43<br />
___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edição).<br />
Blackwell Publishing, 2005. p. 08.<br />
18
garantir a manutenção da escravidão em seus estados, compreendida como uma<br />
espécie <strong>de</strong> “mal necessário” a composição da nação norte-americana. A<strong>de</strong>mais,<br />
como <strong>de</strong>fine Victor Izecksohn:<br />
“O crescimento constante da população cativa, aliado à expansão<br />
do cultivo algodoeiro, reforçou a posição dos setores escravistas que<br />
paulatinamente assumiram uma atitu<strong>de</strong> agressiva na política norte-<br />
americana, <strong>de</strong>mandando territórios, financiamento e proteção por parte do<br />
Estado” 44 .<br />
A partir disso, a elite escravista do Sul cunhou concepções que versavam<br />
sobre a legalida<strong>de</strong> e necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> manutenção da or<strong>de</strong>m escravista, afirmando<br />
que “(...) a escravidão garantia a equida<strong>de</strong> civil dos homens brancos e protegia o<br />
sistema social do Sul das tendências radicais do proletariado livre” 45 . Idéias como<br />
essa, vindas do Sul, alarmaram os nortistas, que surpreen<strong>de</strong>ram-se e<br />
con<strong>de</strong>naram as <strong>de</strong>mandas sulistas. Essas entraram em conflito direto com as<br />
idéias abolicionistas que surgiam no Norte, inclusive no âmbito do congresso<br />
nacional, abrindo as portas para uma linha <strong>de</strong> pensamento seccional que levou a<br />
guerra civil. Tal <strong>de</strong>manda abolicionista havia surgido entre os nortistas como<br />
conseqüência direta do processo <strong>de</strong> expansão do mercado local, que levou a<br />
criação <strong>de</strong> novos padrões <strong>de</strong> humanitarismo e ao esforço abolicionista no Norte.<br />
46<br />
A partir disso, é válido dizer que a escravidão foi fator crucial para a<br />
eclosão da Guerra Civil, promovendo um combate i<strong>de</strong>ológico entre as duas<br />
porções do país. A partir disso, os próprios termos do <strong>de</strong>bate político da década<br />
<strong>de</strong> 1850 foram reformulados, dividindo ainda mais os Estados Unidos e sendo<br />
fundamental no próprio processo <strong>de</strong> formação da nação norte-americana. 47<br />
Entretanto, é necessário relativizar uma imagem abolicionista <strong>de</strong>fendida por<br />
gran<strong>de</strong> parte da historiografia norte-americana.<br />
44<br />
Ibi<strong>de</strong>m, p. 58.<br />
45<br />
Ibi<strong>de</strong>m, p. 09.<br />
46<br />
___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edição).<br />
Blackwell Publishing, 2005. pp. 04-08.<br />
47<br />
IZECHSOHN, Vitor. Escravidão, fe<strong>de</strong>ralismo e <strong>de</strong>mocracia: a luta pelo controle do Estado<br />
nacional norte-americano antes da Secessão. In: TOPOI, Revista semestral do Programa <strong>de</strong> Pósgraduação<br />
em <strong>História</strong> Social da UFRJ, nº 6, Janeiro-Junho <strong>de</strong> 2003, Volume 04. pp. 47-57.<br />
19
“A Abolição ganhou respeito no Norte apenas quando seus<br />
oponentes ultrapassados do Sul republicano passaram a tentar silenciar<br />
os inimigos da escravidão. Represálias violentas contra os abolicionistas,<br />
aliadas ao <strong>de</strong>sdém e <strong>de</strong>safio aberto dos sulistas, fortaleceu o movimento<br />
anti-escravidão a longo prazo.” 48<br />
Gran<strong>de</strong> parte dos republicanos nem mesmo chegou a elaborar uma crítica<br />
pesada sobre o tema da expansão da escravidão. Muitos assumiam posição mais<br />
mo<strong>de</strong>rada, simplesmente preocupados com a expansão da escravidão para o<br />
oeste e seu impacto no grau influência do Sul junto ao senado. 49<br />
A chamada Crise do Missouri, <strong>de</strong> 1819, foi o estopim dos <strong>de</strong>sacordos entre<br />
Norte e Sul acerca da questão escravista. O estado do Missouri havia solicitado<br />
inclusão como estado escravocrata, tendo apoio irrestrito do Sul, fato que causou<br />
gran<strong>de</strong> comoção no Norte. Assim, as disputas entre as duas regiões iniciavam-se<br />
no âmbito político, com o Sul <strong>de</strong>monstrando que não iria abandonar um projeto <strong>de</strong><br />
expansão da escravidão para territórios a Oeste. Os <strong>de</strong>fensores da escravidão<br />
compreendiam a instituição escravista como um benefício, um alicerce para a<br />
economia e política do Sul. Assim, os representantes sulistas estavam dispostos a<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a causa da escravidão <strong>de</strong> maneira radical. Desta forma, a organização<br />
partidária norte-americana passou a ser abalada por conflitos <strong>de</strong> interesses<br />
regionais, fato que impulsionou um processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sintegração da unida<strong>de</strong><br />
nacional. 50<br />
Diante do impasse criado pela Crise do Missouri os congressistas optaram<br />
por uma solução conciliatória. Assim, foi assinado o Compromisso do Missouri,<br />
que admitiu o estado como escravista e ainda regularizou a situação do estado<br />
nortista do Maine, que passou a ser consi<strong>de</strong>rado livre. A partir disso, buscava-se<br />
a manutenção <strong>de</strong> certo equilíbrio entre os congressistas do norte e aqueles<br />
oriundos <strong>de</strong> estados livres e escravocratas. Este episódio <strong>de</strong>monstrou que a<br />
escravidão não configurava-se enquanto uma instituição <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte, pelo<br />
48<br />
___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edição).<br />
Blackwell Publishing, 2005. p. 04<br />
49<br />
Ibi<strong>de</strong>m, p. 09.<br />
50<br />
IZECKSOHN, Vitor. Escravidão, fe<strong>de</strong>ralismo e <strong>de</strong>mocracia: a luta pelo controle do Estado<br />
nacional norte-americano antes da Secessão. In: TOPOI, Revista semestral do Programa <strong>de</strong> Pósgraduação<br />
em <strong>História</strong> Social da UFRJ, nº 6, Janeiro-Junho <strong>de</strong> 2003, Volume 04. p.57.<br />
20
contrário. A escravidão possuía força econômica e política, amparada por gran<strong>de</strong><br />
parcela da socieda<strong>de</strong> sulista que <strong>de</strong>fendia sua expansão. Diante <strong>de</strong>sta situação,<br />
os senadores do Sul uniram-se em prol da <strong>de</strong>fesa da escravidão, repudiando<br />
qualquer pretensão nortista <strong>de</strong> impor limites a prática escravista. 51<br />
A Carolina do Sul também foi importante quanto aos <strong>de</strong>bates acerca a<br />
questão escravista. Aguerrido <strong>de</strong>fensor da escravidão, este estado sulista lutava<br />
pela reabertura do tráfico <strong>de</strong> escravos africano e, portanto, contra as diretrizes <strong>de</strong><br />
política internacional do maior parceiro comercial externo do sul algodoeiro, a<br />
Inglaterra. A elite local – <strong>de</strong>fensora arraigada dos princípios fe<strong>de</strong>ralistas -<br />
<strong>de</strong>safiava frequentemente a administração central, protagonizando a chamada<br />
Crise <strong>de</strong> Nulificação, circunstância na qual recusou-se a pagar impostos ao<br />
governo fe<strong>de</strong>ral. Esse episódio <strong>de</strong>monstrou a força das elites locais sulistas, que<br />
se unidas po<strong>de</strong>riam levar o país a secessão, como <strong>de</strong> fato o fizeram. 52<br />
Por volta dá década <strong>de</strong> 1840, vinte anos antes da eclosão da guerra, a<br />
escravidão voltou a ser tema <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>bates e inflamadas discussões entre<br />
os estados do Norte e do Sul. Com a anexação <strong>de</strong> territórios anteriormente<br />
pertencentes ao México, a expansão também tomou lugar nas discussões,<br />
provocando um realinhamento partidário 53 . A ampliação do território norte-<br />
americano era amplamente <strong>de</strong>fendida pelos representantes sulistas no<br />
congresso, uma vez que representaria a alargamento <strong>de</strong> sua fronteira agrícola e<br />
do próprio número <strong>de</strong> escravos necessários para manter as novas terras<br />
anexadas produtivas. Em contraponto, a opinião pública nortista encontrava-se<br />
profundamente dividida acerca <strong>de</strong>ste tema. A própria anexação do território do<br />
Texas enquanto estado escravista em 1844 e a guerra empreendida contra os<br />
mexicanos entre 1846 e 1848 foram amplamente contestadas por grupos que<br />
temiam uma expansão da instituição escravista - para o resto do país. 54<br />
Essas tensões acerca dos temas da escravidão e da expansão territorial<br />
foram exacerbadas no ano <strong>de</strong> 1846, data em que o país ficou, pela primeira vez, à<br />
51 Ibi<strong>de</strong>m, p. 57.<br />
52 Ibi<strong>de</strong>m, p. 63.<br />
53 IZECKSOHN, Vitor. Deportação ou Integração. Os dilemas negros <strong>de</strong> Lincoln. In: TOPOI,<br />
Revista semestral do Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em <strong>História</strong> Social da UFRJ, nº 20, Janeiro-<br />
Junho <strong>de</strong> 2010, Volume 11. p. 61.<br />
54 IZECKSOHN, Vitor. Escravidão, fe<strong>de</strong>ralismo e <strong>de</strong>mocracia: a luta pelo controle do Estado<br />
nacional norte-americano antes da Secessão. In: TOPOI, Revista semestral do Programa <strong>de</strong> Pósgraduação<br />
em <strong>História</strong> Social da UFRJ, nº 6, Janeiro-Junho <strong>de</strong> 2003, Volume 04. p. 64.<br />
21
eira da secessão. Neste ano, foi promulgada a chamada Emenda Wilmot, na<br />
qual o <strong>de</strong>putado <strong>de</strong>mocrata oriundo do estado da Pensilvânia David Wilmot<br />
<strong>de</strong>mandava a abolição da escravidão das regiões incorporadas nas quais a<br />
prática escravista não existia anteriormente, tais como o estado do Missouri. Tal<br />
resolução, como era esperada, gerou gran<strong>de</strong> revolta entre os representantes<br />
sulistas no congresso, o que obrigou os políticos mo<strong>de</strong>rados do Norte a<br />
buscarem, uma vez mais, soluções conciliatória e diplomáticas, visando a<br />
manutenção da unida<strong>de</strong> fe<strong>de</strong>ral. 55<br />
Além disso, a atuação do próprio governo norte-americano acabou por<br />
agravar as divergências entre Norte e Sul. A influência sulista junto ao governo - e<br />
mesmo junto ao próprio presi<strong>de</strong>nte - era gran<strong>de</strong>, o que possibilitava a entrada <strong>de</strong><br />
políticas favoráveis a escravidão no âmbito da administração central 56 . Um bom<br />
exemplo <strong>de</strong>sta influência é a promulgação da Lei dos Escravos Fugidos em 1850.<br />
Esta legislação continha uma clara concessão aos apelos sulistas, prevendo o<br />
direito dos proprietários <strong>de</strong> escravos <strong>de</strong> readquirirem - por meio <strong>de</strong> agentes<br />
fe<strong>de</strong>rais – os cativos fugidos e abrigados em estados do Norte. Enquanto isso, os<br />
negros eram formalmente excluídos <strong>de</strong> qualquer meio <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa legal. Assim,<br />
esta nova lei chocou os estados do Norte. Além <strong>de</strong> ferir seus princípios <strong>de</strong><br />
autonomia fe<strong>de</strong>ralista, tal legislação mostrou a força da bancada sulista e sua<br />
influência no governo central, alimentando idéias conspiratórias sobre a relação<br />
dos <strong>de</strong>putados sulistas e a administração fe<strong>de</strong>ral. Esse episódio foi central para a<br />
criação, no Norte, <strong>de</strong> concepções radicalmente contrárias aos sulistas, afastando<br />
ainda mais no plano i<strong>de</strong>ológico e político as duas regiões. 57<br />
Conflitos localizados começavam a aparecer em diferentes estados, como<br />
no Kansas, Illinois e outras regiões do meio-oeste dos Estados Unidos. Essas<br />
regiões, vivenciavam conflitos internos por fazerem fronteira entre Norte e Sul,<br />
convivendo com o embate direto entre as duas regiões. No Kansas,<br />
especificamente, esta situação foi agravada por concepções fe<strong>de</strong>ralistas que<br />
55 Ibi<strong>de</strong>m, p. 64.<br />
56 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edição).<br />
Blackwell Publishing, 2005. p. 09.<br />
57 Ibi<strong>de</strong>m, p.64.<br />
22
levaram a criação <strong>de</strong> dois governos na região, um representando os i<strong>de</strong>ais do<br />
Norte e outro do Sul. 58<br />
A situação <strong>de</strong> <strong>de</strong>scontentamento, sobretudo quanto a questão da<br />
escravidão, era tamanha entre os dirigentes nortistas que iniciou-se uma<br />
organização partidária própria com fins <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r os interesses do Norte junto<br />
ao governo central e barrar a influência sulista.<br />
“Este partido expressava uma aliança entre pequenos e médios<br />
fazen<strong>de</strong>iros e gran<strong>de</strong>s industriais e comerciantes. O que mantinha estes<br />
grupos unidos era a comum aversão ao po<strong>de</strong>r sulista visto como<br />
<strong>de</strong>sagregador da nação” 59<br />
Dessa forma, o ano <strong>de</strong> 1858 marca a fundação do Partido Republicano,<br />
com um programa <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento industrial e social aliado à abolição que<br />
tinha no Sul agrário e escravista seu entrave. Importante notar que os membros<br />
<strong>de</strong>ste partido <strong>de</strong>finiam a si mesmos em oposição à economia baseada no trabalho<br />
escravo praticada no Sul, frisando o caráter da elite escravocrata <strong>de</strong>ssa região<br />
como opressora. Além <strong>de</strong>ssas questões, o Sul era compreendido como um<br />
entrave ao <strong>de</strong>senvolvimento da União como um todo. Os problemas sociais<br />
i<strong>de</strong>ntificados no Norte eram compreendidos como fruto da política escravista do<br />
Sul, que atrasava a economia norte-americana. 60<br />
O novo partido não <strong>de</strong>morou a <strong>de</strong>sbancar a antiga maioria sulista -<br />
<strong>de</strong>mocrata - na bancada nacional, contando com gran<strong>de</strong> apoio da opinião pública,<br />
que ten<strong>de</strong>u a apoiar os republicanos e seu programa firme <strong>de</strong> oposição a<br />
escravidão e a sua expansão 61 . Assim,<br />
“os dois principais não mais conseguiam excluir as divergências<br />
seccionais do <strong>de</strong>bate parlamentar, dividindo-se em linhas geográficas<br />
claramente associadas às formas <strong>de</strong> trabalho livre ou escrava”. 62<br />
58<br />
IZECKSOHN, Vitor. Escravidão, fe<strong>de</strong>ralismo e <strong>de</strong>mocracia: a luta pelo controle do Estado<br />
nacional norte-americano antes da Secessão. In: TOPOI, Revista semestral do Programa <strong>de</strong> Pósgraduação<br />
em <strong>História</strong> Social da UFRJ, nº 6, Janeiro-Junho <strong>de</strong> 2003, Volume 04. p. 62.<br />
59<br />
Ibi<strong>de</strong>m, p. 66.<br />
60<br />
___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edição). Blackwell<br />
Publishing, 2005. p. 09.<br />
61<br />
Ibi<strong>de</strong>m, p. 09.<br />
62<br />
IZECKSOHN, Vitor. Escravidão, fe<strong>de</strong>ralismo e <strong>de</strong>mocracia: a luta pelo controle do Estado nacional norteamericano<br />
antes da Secessão. In: TOPOI, Revista semestral do Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em <strong>História</strong><br />
Social da UFRJ, nº 6, Janeiro-Junho <strong>de</strong> 2003, Volume 04. p. 62.<br />
23
econômicos.<br />
Desta forma, a disputa tomava contornos morais, regionalistas e<br />
A partir <strong>de</strong>sse momento os embates entre nortistas e sulistas só se<br />
tornaram ainda mais acirrados, com disputas no legislativo, executivo e judiciário.<br />
Estando o governo central nas mãos dos republicanos, sua política foi orientada<br />
para o fim da escravidão. Para tanto, visava-se o enfraquecimento dos<br />
representante sulistas na bancada fe<strong>de</strong>ral, fatos que agravavam a difícil<br />
convivência entre Norte e Sul. O Norte tornava sua posição cada vez mais radical,<br />
enquanto o Sul <strong>de</strong>fendia suas idéias escravistas <strong>de</strong> forma exacerbada. Assim,<br />
em fins <strong>de</strong> 1850 a Guerra <strong>de</strong> Secessão era eminente. O Sul entendia a<br />
escravidão como um direito constitucional que <strong>de</strong>veria ser garantido pelo governo<br />
nacional, enquanto o Norte entendia a escravidão como uma instituição arcaica e<br />
que estava fadada ao <strong>de</strong>suso e ao <strong>de</strong>saparecimento. Diante da medida contrária<br />
tomada pela administração central em consonância com tais anseios nortistas, o<br />
Sul viu-se em posição <strong>de</strong> separar-se do resto da União. 63<br />
Somando-se a esse contexto já crítico havia o fato <strong>de</strong> que os Estados<br />
Unidos estava passando por um período eleitoral.<br />
“A eleição do republicano mo<strong>de</strong>rado Abraham Lincoln, em<br />
novembro <strong>de</strong> 1860, instigou a crise final através da qual a maioria dos<br />
Estados do Sul separou-se da União” 64 .<br />
A alçada <strong>de</strong> Lincoln a presidência <strong>de</strong>sesperou os sulistas, que temiam<br />
restrições à prática escravista. Por outro lado, a posse <strong>de</strong> Lincoln foi o momento<br />
i<strong>de</strong>al para a ação dos <strong>de</strong>putados separatistas, que viam no novo presi<strong>de</strong>nte um<br />
isolamento do Sul e o gradual enfraquecimento da escravidão 65 . Assim, o jovem<br />
Lincoln se viu diante <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> divisão do país; processo este<br />
frequentemente subestimado pelos republicanos e pelo próprio presi<strong>de</strong>nte.<br />
63 IZECKSOHN, Vitor. Escravidão, fe<strong>de</strong>ralismo e <strong>de</strong>mocracia: a luta pelo controle do Estado<br />
nacional norte-americano antes da Secessão. In: TOPOI, Revista semestral do Programa <strong>de</strong> Pósgraduação<br />
em <strong>História</strong> Social da UFRJ, nº 6, Janeiro-Junho <strong>de</strong> 2003, Volume 04. p. 66-71.<br />
64 Ibi<strong>de</strong>m, p. 71.<br />
65 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edição).<br />
Blackwell Publishing, 2005. p. 09.<br />
24
Subestimado principalmente porque os republicanos não contavam com a<br />
extensão do apoio popular aos Estados Confe<strong>de</strong>rados do Sul.<br />
Assim, no Norte a escravidão tornou-se problemática, enquanto que no Sul<br />
a manutenção da instituição escravista configurava-se como o único meio <strong>de</strong><br />
manter o modo <strong>de</strong> vida esboçado em i<strong>de</strong>ais aristocráticos. A partir disso, a<br />
secessão tornou-se uma realida<strong>de</strong>, notavelmente muito mais violenta e radical do<br />
que supunham os dirigentes nortistas. “Para restaurar a União seriam necessários<br />
quatro anos <strong>de</strong> guerra, a <strong>de</strong>struição da escravidão no Sul e a reorganização da<br />
economia política da confe<strong>de</strong>ração pela coalizão vencedora” 66 . Desta forma, a<br />
guerra foi o maior sintoma do abismo existente entre duas regiões que possuíam<br />
concepções distintas, ao passo que também foi o modo <strong>de</strong> reunificar – ou unificar<br />
pela primeira vez – os interesses e projetos que eram tão discrepantes.<br />
66 Ibi<strong>de</strong>m, p. 74.<br />
25
RALLY MEN OF COLOR, AT ONCE FOR YOUR COUNTRY!: OS SOLDADOS<br />
NEGROS NA GUERRA DE SECESSÃO<br />
26<br />
“Nós cultivamos o algodão, nós cultivamos<br />
o milho;<br />
Nós somos soldados <strong>de</strong> cor Yankes,<br />
agora, tão certo como vocês nasceram;<br />
Quando os mestres nos ouvirem gritando,<br />
eles pensarão que é a trombeta <strong>de</strong><br />
Gabriel;<br />
E nós marcharemos.” 67<br />
No presente capítulo realizar-se-á um esboço da cronologia da criação das<br />
tropas negras, tanto dos confe<strong>de</strong>rados como da União. Nessa cronologia, se<br />
analisarão <strong>de</strong>tidamente proclamações oficias do presi<strong>de</strong>nte Lincoln acerca das<br />
tropas <strong>de</strong> negros, o Militia Act e o Segundo Confiscation Act, fontes primárias para<br />
a elaboração <strong>de</strong>sse capítulo. A análise <strong>de</strong>sses documentos são essenciais para<br />
compreensão do processo <strong>de</strong> incorporação <strong>de</strong> homens <strong>de</strong> cor nos exércitos norte-<br />
americanos e muito do que ocorrerá no pós-abolição.<br />
Com a eclosão do conflito da secessão, o presi<strong>de</strong>nte norte-americano<br />
Abraham Lincoln passou a mobilizar forças voluntárias para enfrentar as tropas<br />
separatistas do Sul. Cerca <strong>de</strong> 75.000 voluntários aten<strong>de</strong>ram ao apelo presi<strong>de</strong>ncial<br />
e juntaram-se ao exército da União. Entre os homens que apresentaram-se aos<br />
centros <strong>de</strong> recrutamento, é notável a participação <strong>de</strong> centenas <strong>de</strong> negros livres do<br />
Norte e escravos fugidos do Sul. Entretanto, as autorida<strong>de</strong>s governamentais<br />
alegaram que não havia necessida<strong>de</strong> da incorporação <strong>de</strong> negros a instituição<br />
militar, uma vez que não cabia a eles lutar em um conflito que era compreendido<br />
como uma guerra apenas <strong>de</strong> homens brancos. 68<br />
Desta forma, em um primeiro momento, os estados nortistas e sulistas<br />
passaram a um recrutamento maciço <strong>de</strong> suas populações brancas. Logo,<br />
percebeu-se que o número <strong>de</strong> homens brancos em ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> combate não era<br />
suficiente, problema i<strong>de</strong>ntificado nos exércitos tanto do Sul, quanto do Norte.<br />
Assim, passou-se, primeiramente, ao alistamento <strong>de</strong> homens <strong>de</strong> outras<br />
67 Verso da canção militar John Brown´s Body, composto por abolicionistas <strong>de</strong> Nova York para o<br />
1º regimento <strong>de</strong> infantaria do Arkansas (<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> africanos). In: TRUDEAU, Noah André.<br />
Like Men of War: Black Troops in the civil war (1862-1865). New York: Castle Books, 2002.p. 99.<br />
68 MCCORMICK, Jayne. The Black Troops of the Civil War. 2001. Disponível em:<br />
http://www.bitsofblueandgray.com/feb2001.htm. Acesso em: 25 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2010.
nacionalida<strong>de</strong>s. Foram organizadas tropas compostas <strong>de</strong> alemães, escoceses,<br />
irlan<strong>de</strong>ses, suecos, escandinavos e italianos. 69 Entretanto, o número <strong>de</strong> alistados<br />
era muito inferior ao <strong>de</strong>mandado, permanecendo o problema da insuficiência<br />
militar. Além disso, haviam ainda causalida<strong>de</strong>s, epi<strong>de</strong>mias, <strong>de</strong>serções e<br />
resignações, que traziam baixas aos efetivos militares. Em vista <strong>de</strong> tais<br />
problemas, recorreu-se ao recrutamento <strong>de</strong> homens negros. 70<br />
27<br />
1. Os soldados negros no norte.<br />
Os estados da União foram os primeiros a recrutar <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong><br />
africanos. A política restritiva aos negros estava sendo, por força da necessida<strong>de</strong>,<br />
abandonada. A guerra não era mais um conflito somente dos homens brancos,<br />
agora os negros eram incitados a combater. 71 Entretanto, é necessário relativizar<br />
a idéia <strong>de</strong> que no Norte os negros alistados foram incorporados sem problemas<br />
às corporações militares. Os <strong>de</strong>sconfortos e embates com oficiais e soldados<br />
brancos eram corriqueiros, havendo gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sconfiança na capacida<strong>de</strong> das<br />
tropas compostas apenas por homens <strong>de</strong> cor 72 .<br />
Entretanto, o <strong>de</strong>senvolvimento da guerra exigia o recrutamento <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> africanos. Neste contexto o ano <strong>de</strong> 1862 mostra-se<br />
paradigmático, tanto para a organização <strong>de</strong> tropas na União, quanto na<br />
confe<strong>de</strong>ração. No âmbito dos estados nortistas, ao final <strong>de</strong>ste ano criou-se a 1º<br />
Kansas Colored Volunteer Infantry 73 , que manteve-se por um tempo<br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do controle fe<strong>de</strong>ral. Este regimento contrariou os céticos quanto ao<br />
<strong>de</strong>sempenho dos soldados negros ao sair vitorioso <strong>de</strong> várias batalhas, entre elas<br />
a Batalha da Ilha Mound, no estado fronteiriço do Missouri. Sendo um bor<strong>de</strong>r<br />
state 74 , o Missouri era fundamental nas pretensões nortistas <strong>de</strong> vencer os<br />
confe<strong>de</strong>rados. Assim, a operação do 1º Kansas Colored Volunteer foi fundamental<br />
69<br />
BURTON, William L. Melting Pot Soldiers. The Union´s Ethnic Regiments North´s Civil War.<br />
Fordham University Press, 1998. p. 52.<br />
70<br />
Ibi<strong>de</strong>m, p.47.<br />
71<br />
TRUDEAU, Noah André. Op. Cit. pp. 03-20.<br />
72<br />
Ibi<strong>de</strong>m, p. 112.<br />
73<br />
Este nome <strong>de</strong>signava o 1º regimento <strong>de</strong> voluntários coloridos do Kansas.<br />
74<br />
Os bor<strong>de</strong>r states (estados “tampões”) eram estados escravistas situados na União. Eram quatro<br />
os bor<strong>de</strong>r states: Missouri, Delaware, Maryland e Kentucky.
ao expulsar as tropas sulistas da região, fato que ren<strong>de</strong>u a esta infantaria<br />
honrarias e fama entre os militares. 75 Exemplo da importância dada a este<br />
<strong>de</strong>stacamento, é que em meados <strong>de</strong> 1863 o 1º Kansas Colored Volunteer já<br />
integrava formalmente o serviço militar norte-americano 76 , sendo um dos<br />
regimentos negros da União a angariar este posto, a lado <strong>de</strong> tropas <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque,<br />
como as do Distrito <strong>de</strong> Columbia e Ohio. 77<br />
O estado do Kansas figura, <strong>de</strong>sta forma, entre os estados que<br />
organizaram tropas <strong>de</strong> homens <strong>de</strong> cor mesmo sem uma oficialização da gestão<br />
Lincoln, <strong>de</strong>monstrando a força do princípio fe<strong>de</strong>ralista norte-americano, regido<br />
pela idéia <strong>de</strong> autonomia dos po<strong>de</strong>res das localida<strong>de</strong>s e dos estados. Os estados,<br />
diante da falta <strong>de</strong> ação do governo quanto às <strong>de</strong>mandas por mais homens,<br />
resolveram organizar sua <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> forma in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte. Em seus estados,<br />
governadores passaram a agir <strong>de</strong> forma autônoma para garantir a integrida<strong>de</strong><br />
territorial e conter as forças confe<strong>de</strong>radas 78 . Assim, quando se dá uma legislação<br />
específica acerca dos regimentos negros, essa lei vem apenas regulamentar uma<br />
realida<strong>de</strong> já existente há tempo consi<strong>de</strong>rável nos estados da União, uma vez que<br />
a utilização <strong>de</strong> soldados negros se dava <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início dos conflitos, porém sem a<br />
organização em unida<strong>de</strong>s. 79<br />
28<br />
2. Os soldados negros no sul.<br />
Apesar da gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sconfiança e aversão quanto à integração <strong>de</strong> negros a<br />
instituição militar, os estados do Sul – frente ao avanço nortista – passaram<br />
também ao recrutamento <strong>de</strong> <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> africanos. Assim, o ano <strong>de</strong> 1862<br />
marca a primeira organização sulista quanto às tropas negras, com o First<br />
Louisiana Native Guards sendo formalmente integrado ao exército dos Estados<br />
Unidos. Este constituiu o primeiro regimento totalmente negro, exceto no<br />
oficialato, a entrar na USCT durante a Guerra Civil. Era um grupo motivado,<br />
mesmo com todo o racismo por parte dos oficiais brancos. Porém, ainda estavam<br />
75 MCCORMICK, Jayne. Op. Cit. s/p.<br />
76 As tropas negras que integravam o serviço militar norte-americano era <strong>de</strong>signadas pela sigla<br />
USCT – United States Colored Troops (Tropas <strong>de</strong> cor dos Estados Unidos)<br />
77 TRUDEAU, Noah André. Op. Cit. pp. 103-115.<br />
78<br />
BURTON, William L.Op Cit..pp. 15-17.<br />
79<br />
Ibi<strong>de</strong>m, pp, 03-05.
sendo testados em trabalhos manuais menores, para só <strong>de</strong>pois serem<br />
empregados na batalha contra a União 80 .<br />
No mês <strong>de</strong> maio do mesmo ano iniciou-se o recrutamento <strong>de</strong> negros para o<br />
corpo militar do estado confe<strong>de</strong>rado da Carolina do Sul, a fim <strong>de</strong> integrar homens<br />
<strong>de</strong> cor ao primeiro regimento do estado. Estes soldados – em sua maioria –<br />
encontravam-se em situação <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> pobreza. Muitos enfrentavam dificulda<strong>de</strong>s<br />
quanto ao que vestir e calçar. Mesmo assim, nenhum uniforme foi provi<strong>de</strong>nciado<br />
para tais soldados, muito menos qualquer tipo <strong>de</strong> pagamento ou soldo. 81<br />
Desta forma - mesmo repletos <strong>de</strong> tensões sociais - os estados sulistas <strong>de</strong><br />
New Orleans e Louisiana, frente às vitórias da União que quebravam com o rígido<br />
regime escravista local, foram igualmente pioneiros no que tange ao armamento<br />
<strong>de</strong> tropas negras. Entretanto, haviam restrições e pesados encargos financeiros.<br />
As armas eram pessoais, porém só po<strong>de</strong>riam ser usadas para <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> algum<br />
posto. Os custos com uniformes, por sua vez, ficavam a cargo do próprio soldado,<br />
sendo que o soldo dos homens negros era muito inferior ao dos recrutas brancos.<br />
82<br />
Um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> escravos nem mesmo chegava a pisar em um<br />
campo <strong>de</strong> batalha, sendo a maioria era empregada na construção <strong>de</strong> fortificações<br />
e <strong>de</strong>fesas. Outros - como aqueles que compunham a <strong>de</strong>fesa do estado<br />
confe<strong>de</strong>rado do Tennessee - marchavam como servos <strong>de</strong> seus proprietários ou<br />
trabalhavam em funções <strong>de</strong> cozinheiros, enfermeiros, trabalhadores nas ferrovias<br />
ou na indústria bélica confe<strong>de</strong>rada 83 . Esses escravos, apesar <strong>de</strong> integrados ao<br />
exército, continuavam a ser proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus senhores, sendo utilizados nas<br />
forças armadas em trabalhos similares aos que tinham nas plantations e outras<br />
ativida<strong>de</strong>s que empregavam a mão <strong>de</strong> obra escrava. Esses negros não eram<br />
compreendidos como soldados, e sim como “necessida<strong>de</strong> militar”, sendo<br />
indispensável enviá-los - ao fim do conflito - novamente aos seus senhores 84 .<br />
Chegou-se a aventar – em meados <strong>de</strong> 1864 – a possibilida<strong>de</strong> dos sulistas<br />
empregarem escravos no exercício militar prometendo, aqueles que<br />
eventualmente sobrevivessem ao conflito, a liberda<strong>de</strong> ao término da guerra.<br />
80<br />
Ibi<strong>de</strong>m, p. 09.<br />
81<br />
MCCORMICK, Jayne, Op. Cit. s/p.<br />
82<br />
BURTON, William L.Op Cit..p. 09.<br />
83<br />
Ibi<strong>de</strong>m, p. 09.<br />
84<br />
TRUDEAU, Noah André. Op. Cit. pp. 109-112.<br />
29
Entretanto, esta medida não chegou a ser aplicada, uma vez que as tropas as<br />
quais se prometeu a liberda<strong>de</strong> não chegaram a atuar no embate com os<br />
nortistas 85 .<br />
A partir <strong>de</strong> 1862 a <strong>de</strong>pendência do exército com relação a essas tropas<br />
formadas por negros passou a tornar-se cada vez maior, exigindo uma<br />
regulamentação, por parte do governo Lincoln, com relação à sua constituição<br />
formal. Uma ação neste sentido contrariava a política <strong>de</strong> não institucionalização<br />
empregada pela administração Lincoln <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os primórdios do conflito com o Sul.<br />
O presi<strong>de</strong>nte adotou tal postura, em muito, pela atitu<strong>de</strong> evasiva do governo<br />
quanto à questão escravista. Lincoln compreendia o peso <strong>de</strong>ssa questão e as<br />
controvérsias que ela geraria, sobretudo nos bor<strong>de</strong>r states, no quais a escravidão<br />
ainda era uma prática comum, enraizada socialmente. É neste contexto que<br />
insere-se a relutância <strong>de</strong> Lincoln em permitir o alistamento <strong>de</strong> negros no exército<br />
da União. 86<br />
Inicialmente, a administração Lincoln resistiu a qualquer esforço no sentido<br />
<strong>de</strong> armarem-se os negros. Apesar <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>sejo pessoal <strong>de</strong> integrar negros as<br />
tropas da União, o presi<strong>de</strong>nte não via essa necessida<strong>de</strong>, uma vez que o<br />
alistamento voluntário ainda supria as necessida<strong>de</strong>s nortistas e o sul não havia<br />
ainda angariado vitórias significativas. É neste contexto que são promulgados em<br />
17 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1862 o Segundo Confiscation Act e o Militia Act. Ambos os atos<br />
são aprovados pelo congresso norte-americano com o objetivo <strong>de</strong> alargar os<br />
po<strong>de</strong>res do presi<strong>de</strong>nte para usar milícias <strong>de</strong> homens negros.<br />
A promulgação do Militia Act dava ao presi<strong>de</strong>nte total autorida<strong>de</strong> para<br />
aprovar o recrutamento <strong>de</strong> competentes <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> africanos que atuariam<br />
no exército e na marinha, além <strong>de</strong> conce<strong>de</strong>r-lhe o direito <strong>de</strong> nomear os oficiais<br />
que ficariam no comando <strong>de</strong> tais milícias. Este documento tinha como finalida<strong>de</strong><br />
estabelecer:<br />
“(...) padrões fe<strong>de</strong>rais para a organização das milícias, um ato a mais<br />
para prover a <strong>de</strong>fesa nacional, estabelecendo uma milícia uniforme ao<br />
longo dos Estados Unidos” 87 .<br />
85<br />
MCCORMICK, Jayne, Op. Cit. s/p.<br />
86<br />
I<strong>de</strong>m, Ibi<strong>de</strong>m.<br />
87<br />
Militia Act (1862). Disponível em: http://www.history.umd.edu/Freedmen/milact.htm Acesso em:<br />
28 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2010. Tradução livre.<br />
30
Para tanto, buscavam-se situar mo<strong>de</strong>los quanto ao recrutamento,<br />
treinamento e armamento <strong>de</strong> todos os soldados, brancos e negros. O alistamento,<br />
segundo o Militia Act <strong>de</strong>veria esten<strong>de</strong>r-se a todos os homens entre 18 e 45 anos,<br />
sendo que após seis meses <strong>de</strong> ingresso na milícia esses soldados <strong>de</strong>veriam estar<br />
armados com rifles ou mosquetes, munidos <strong>de</strong> balas em uma mochila ou bolsa 88 .<br />
Entretanto, a área <strong>de</strong> atuação dos soldados negros nortistas continuava, não raro,<br />
restrita a construção <strong>de</strong> trincheiras e outros trabalhos físicos.<br />
O Militia Act estabeleceu também à forma com que <strong>de</strong>veria se dar a<br />
convivência entre brancos e negros no âmbito militar, reiterando que os negros<br />
não <strong>de</strong>veriam ser tratados como iguais, sendo que este tratamento diferenciado<br />
se esten<strong>de</strong>ria a questão do soldo. Uma das alegações discriminatórias refere-se<br />
ao fato dos soldados negros não haverem integrado o exército no início do conflito<br />
da secessão – e, portanto, não haviam lutado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os primeiros embates. Por<br />
esse motivo, alegava-se não possuírem direito ao mesmo valor <strong>de</strong> soldo dos<br />
brancos.<br />
Os valores baixos pagos a todos os soldados, eram ainda mais baixos para<br />
os soldados negros. Os soldados brancos recebiam U$ 13,00 mensais, com um<br />
adicional <strong>de</strong> U$3,50. Já os soldados negros recebiam U$10 mensais, entretanto,<br />
U$3 eram <strong>de</strong>scontados por conta dos uniformes, restando apenas 7 dólares para<br />
cada soldado 89 .<br />
O Segundo Confiscation Act, por sua vez, visava acabar com o dilema<br />
relativo à incorporação <strong>de</strong> escravos na corporação militar. Assim, os po<strong>de</strong>res <strong>de</strong><br />
Lincoln, com relação às milícias negras, foram alargados para melhor se<br />
combater as forças confe<strong>de</strong>radas, como explicita-se na seção onze do<br />
documento:<br />
88 I<strong>de</strong>m, Ibi<strong>de</strong>m.<br />
89 MCCORMICK, Jayne, Op. Cit. s/p.<br />
“(...) o Presi<strong>de</strong>nte dos Estados Unidos é autorizado para<br />
empregar muitas pessoas <strong>de</strong> <strong>de</strong>scendência africana como po<strong>de</strong> julgar<br />
necessário e próprio para a supressão <strong>de</strong>sta rebelião, e para este<br />
31
propósito po<strong>de</strong> ele organizar e os usar <strong>de</strong> tal maneira como ele julgar<br />
melhor para o bem-estar público”. 90<br />
A proclamação trata, igualmente, da situação dos cativos nos estados que<br />
haviam <strong>de</strong>ixado a União. Assim, o Segundo Confiscation Act constituiu um<br />
esforço inicial no sentido <strong>de</strong> emancipá-los. Os confe<strong>de</strong>rados que não se<br />
a<strong>de</strong>quassem às exigências do Ato em até 60 dias após sua aprovação seriam<br />
punidos por crime <strong>de</strong> traição contra os Estados Unidos da América, tendo como<br />
pena a libertação <strong>de</strong> seus escravos. Assim, o documento constituiu uma tentativa<br />
<strong>de</strong> enfraquecimento da política separatista da Confe<strong>de</strong>ração, propondo metidas<br />
<strong>de</strong> retaliação aos estados que se unissem aos “rebel<strong>de</strong>s”. Além disso, instituía-se<br />
uma política <strong>de</strong> remissão para aqueles que resolvessem reitegrar-se a União,<br />
como é explicitado na seção 13:<br />
“o Presi<strong>de</strong>nte é autorizado por este meio, a qualquer hora daqui<br />
por diante, através <strong>de</strong> proclamação, esten<strong>de</strong>r a pessoas que po<strong>de</strong>m ter<br />
participado na rebelião existente em qualquer Estado ou parte, perdão e<br />
anistia, com tais exceções e a tal tempo e em tais condições como ele<br />
po<strong>de</strong> julgar expediente para o bem-estar público.” 91<br />
Os acts constituíam uma ingerência na autonomia dos estados, entretanto,<br />
sua promulgação acenava com uma saída honrosa para os que resolvessem<br />
mudar <strong>de</strong> idéia e reintegrar-se a União. O Segundo Confiscation Act planejava<br />
uma cisão na Confe<strong>de</strong>ração, já que aqueles agentes – individuais ou coletivos –<br />
que temendo as medidas do confiscation regulamentavam as suas tropas negras,<br />
punham-se em oposição àqueles que ainda assim <strong>de</strong>safiavam os <strong>de</strong>cretos do<br />
presi<strong>de</strong>nte.<br />
O Ato também trata da relação entre os escravos e as tropas da União, que<br />
estavam avançando no território sulista. Notavelmente, o número <strong>de</strong> escravos a<br />
buscar refúgio nos acampamentos nortistas era cada vez maior, e os oficiais não<br />
sabiam como lidar com a situação. Diante <strong>de</strong>sta conjuntura, a seção nove<br />
90 Second Confiscation Act (1862). Disponível em:<br />
http://teachingamericanhistory.org/library/in<strong>de</strong>x.asp?document=559 Acesso em: 28 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong><br />
2010. Tradução livre.<br />
91 I<strong>de</strong>m, Ibi<strong>de</strong>m.<br />
32
<strong>de</strong>cretava que todos os negros refugiados entre a União <strong>de</strong>veriam ser<br />
compreendidos enquanto prisioneiros <strong>de</strong> guerra, sendo prontamente libertados 92 .<br />
Entretanto, é necessário compreen<strong>de</strong>r que apesar <strong>de</strong> constituir os<br />
primórdios da política <strong>de</strong> emancipação dos escravos, o Segundo Confiscation Act<br />
não ofereceu nenhuma garantia <strong>de</strong> manutenção dos direitos civis dos ex-<br />
escravos, uma vez que o objetivo da emancipação era servir aos interesses<br />
nortistas e governamentais, não garantir melhores padrões <strong>de</strong> vida aos<br />
<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> africanos. De fato, o documento apoiava a emigração <strong>de</strong> negros<br />
para a América Central e do Sul, aon<strong>de</strong>, supostamente, se adaptariam melhor ao<br />
clima tropical e po<strong>de</strong>riam <strong>de</strong>sfrutar <strong>de</strong> sua condição <strong>de</strong> homens livres, como fica<br />
explicito na seção 12 do Ato. Além disso, o Segundo Confiscation Act restringiu a<br />
libertação dos escravos apenas aos estados rebel<strong>de</strong>s, sendo que os negros<br />
fugidos dos bor<strong>de</strong>r states, leais a União, seriam prontamente <strong>de</strong>volvidos aos seus<br />
senhores.<br />
Assim, o Segundo Confiscation Act apresenta-se como uma tentativa do<br />
governo Lincoln <strong>de</strong> promover uma emancipação gradual e compensada dos<br />
escravos, a fim <strong>de</strong> não per<strong>de</strong>r o apoio dos estratégicos bor<strong>de</strong>r states. Entretanto,<br />
foi justamente o traço abolicionista contido nessas medidas que retirou os estados<br />
do Tennessee e Vírgina da União. 93<br />
3. As conseqüências da institucionalização: segundo Confiscation<br />
33<br />
Act e o Militia Act.<br />
A questão do recrutamento <strong>de</strong> homens <strong>de</strong> cor estava agora em âmbito<br />
nacional, com Lincoln dobrando a política governamental <strong>de</strong> exclusão do negro<br />
das corporações militares. Desta forma, a emancipação se dava<br />
progressivamente, iniciando-se ainda em 1862 com a promulgação <strong>de</strong> uma<br />
proclamação <strong>de</strong> emancipação preliminar. A assinatura <strong>de</strong>ste documento<br />
transformava a guerra em um conflito não apenas para salvar a União, mas<br />
92 I<strong>de</strong>m, Ibi<strong>de</strong>m.<br />
93 The Historical Times Illustrated Encyclopedia of the Civil War. FAUST, Patricia (ed), Harper and<br />
Row, New York, 1986.
também para abolir a escravidão. Processo que vai conduzir a emancipação<br />
oficial dos escravos, em 1 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1863. 94<br />
A partir disso, o ingresso <strong>de</strong> homens negros ao exército da União foi<br />
regularizado. Negros passaram a ser oficialmente alistados e agrupados em<br />
tropas sob o comando <strong>de</strong> oficiais brancos. Porém, apesar da boa receptivida<strong>de</strong><br />
da emancipação entre alguns comandantes brancos, os negros não encontraram<br />
todas as fileiras do exército amistosas a sua integração. Muitos oficiais,<br />
temerosos <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r o controle sobre seus homens, não concordavam com o<br />
armamento e institucionalização <strong>de</strong>ssas tropas <strong>de</strong> homens negros, agora livres.<br />
Práticas concebidas sob a égi<strong>de</strong> do preconceito racial eram freqüentes. Para<br />
esses comandantes, os negros eram homens ignorantes e o trabalho <strong>de</strong><br />
organizar, educar e disciplinar tais soldados <strong>de</strong>veria incluir rígidas punições físicas<br />
e psicológicas, mesmo quando os <strong>de</strong>slizes eram mínimos. É notável que<br />
inúmeros oficiais brancos não acreditavam que os negros teriam coragem<br />
suficiente para lutar, muito menos, que po<strong>de</strong>riam realizar com <strong>de</strong>streza tal<br />
função. 95 Assim, os maiores problemas enfrentados pela USCT relacionavam-se a<br />
castigos excessivamente severos e abusivos e a <strong>de</strong>sconfiança por parte dos<br />
oficiais brancos. 96<br />
Entretanto, os rumores sobre o avanço das tropas <strong>de</strong> <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes<br />
africanos passavam a percorrer todo o país. Os regimentos negros angariavam,<br />
cada vez mais, elogios e reconhecimento por parte dos próprios comandantes<br />
brancos, que salientavam a sua coragem e bravura - uma vez que bem treinados,<br />
disciplinados e conduzidos por esses oficiais. Porém, sempre existiam tensões e<br />
animosida<strong>de</strong>s entre os tais chefes militares e os soldados negros. Inicialmente, o<br />
choque cultural foi imenso e levou a criação <strong>de</strong> concepções racistas e<br />
preconceituosas. Para muitos oficiais brancos, os soldados negros possuíam<br />
fortes traços <strong>de</strong> ingenuida<strong>de</strong> e imaturida<strong>de</strong>. Assim, os ex-escravos eram<br />
compreendidos como seres primitivos. 97<br />
94<br />
MCCORMICK, Jayne, Op. Cit. s/p.<br />
95<br />
I<strong>de</strong>m, Ibi<strong>de</strong>m.<br />
96<br />
GLATTHAAR, Joseph T. Forged in Battle: the civil war alliance of black soldiers and white<br />
officers. New York: Fist Meridian Printing, January, 1991. p. 113.<br />
97<br />
TRUDEAU, Noah André. Op. Cit. p. 109.<br />
34
4. Quem eram e o que queriam os soldados negros da União e da<br />
35<br />
Confe<strong>de</strong>ração?<br />
Cerca <strong>de</strong> 180.000 negros ingressaram no exército da União, sendo muitos<br />
<strong>de</strong>les ex-escravos 98 . Não raro, encontravam-se entre esses homens, alguns que<br />
possuíam notável conhecimento a cerca das letras e da matemática. Importante<br />
salientar que nem todos estavam necessariamente comprometidos com uma<br />
agenda política sendo recrutados <strong>de</strong> modo mais ou menos coercitivo ou por<br />
visarem benefícios mais diretos. O exército, para esses homens <strong>de</strong> cor, era visto<br />
como uma promessa <strong>de</strong> alçada financeira e reconhecimento social, bem como <strong>de</strong><br />
esperança <strong>de</strong> um futuro melhor. 99<br />
No norte, apesar da integração <strong>de</strong> negros ao exército, as discussões sobre<br />
a questão da igualda<strong>de</strong> ainda não haviam sido <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>adas. As unida<strong>de</strong>s<br />
negras eram separadas dos regimentos brancos e – como já dito - seus<br />
comandantes não po<strong>de</strong>riam ser oficiais <strong>de</strong> cor 100 . Desta forma, havia uma<br />
manutenção da concepção da raça negra como inferior, havendo gran<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sconfiança quanto ao <strong>de</strong>sempenho como soldados. A opinião pública e as<br />
tropas brancas, em geral, baseavam-se em estereótipos raciais, compreen<strong>de</strong>ndo<br />
os negros como infantis, selvagens e limitados. Estes, só tiveram seu ingresso no<br />
serviço militar tolerado <strong>de</strong>vido à confiança da opinião pública <strong>de</strong> que a raça<br />
inferior seria fortalecida nos campos <strong>de</strong> batalha. 101<br />
Mesmo assim, alguns poucos oficiais negros conseguiam galgar postos<br />
elevados entre os brancos, transpondo e fragilizando as barreiras impostas pelo<br />
preconceito, pelo menos no âmbito do exército. É notável que a população<br />
alimentava um temor generalizado quanto as práticas militares realizadas por<br />
soldados <strong>de</strong> cor. Para tanto, o governo norte-americano teve <strong>de</strong> tomar medidas<br />
que impediam os soldados negros <strong>de</strong> conviverem com as populações locais, visto<br />
a gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sconfiança que geravam entre os moradores.<br />
A União adotara uma política que visava preparar as tropas negras para o<br />
combate, incluindo a criação <strong>de</strong> campos <strong>de</strong> treinamento específicos para esses<br />
98<br />
Ibi<strong>de</strong>m, p. XVIII.<br />
99<br />
GLATTHAAR, Joseph T. Op. Cit. p. X.<br />
100<br />
I<strong>de</strong>m, pp. IX-X.<br />
101<br />
GLATTHAAR, Joseph. Op. Cit. pp. 101-117.
soldados. É o caso do renomado Camp William Penn, localizado na cida<strong>de</strong> da<br />
Phila<strong>de</strong>lphia, no estado nortista da Pensilvânia. Fundado em 1863, este campo <strong>de</strong><br />
permanência, sendo exclusivo para treinamento das tropas negras, representou<br />
uma conquista sobre todo o preconceito que permeava as concepções sobre os<br />
negros no exército. Apenas neste campo foram graduados 11 regimentos<br />
compostos por negros comandados por experientes oficiais brancos, aspecto que<br />
auxiliou na manutenção <strong>de</strong> concepções relacionadas ao trabalho em grupo,<br />
fundamental para um bom treinamento <strong>de</strong>ssas tropas. Era necessário, antes <strong>de</strong><br />
tudo, compreen<strong>de</strong>r os negros como homens, soldados em potencial, para então<br />
passar a <strong>de</strong>signá-los para missões, atribuindo-lhes responsabilida<strong>de</strong>s e elevando<br />
sua moral. 102<br />
Um treinamento eficaz no menor espaço <strong>de</strong> tempo possível era aspecto<br />
essencial <strong>de</strong>ntro das pretensões nortistas na guerra. Neste contexto, o curso e<br />
duração do conflito <strong>de</strong>pendiam, em muito, da habilida<strong>de</strong> dos soldados negros<br />
armados <strong>de</strong> baionetas e mosquetes, sendo necessária rapi<strong>de</strong>z e precisão nas<br />
suas ações. Entretanto, uma das áreas mais críticas e negligenciadas do<br />
treinamento era justamente a que cabia a utilização <strong>de</strong> armas <strong>de</strong> fogo. Enquanto<br />
os soldados brancos possuíam armas individuais e recebiam as instruções<br />
a<strong>de</strong>quadas quanto ao seu uso, aos negros eram impostas diversas barreiras,<br />
sobretudo, por um temor ainda existente quanto à conduta <strong>de</strong>sses indivíduos. A<br />
este panorama, somava-se o fato <strong>de</strong> que os senhores proibiam o acesso <strong>de</strong> seus<br />
escravos a armas <strong>de</strong> fogo, como muito soldados eram ex-escravos, não raro,<br />
regimentos completos nunca haviam sequer tocado em um mosquete.<br />
Outro aspecto fundamental na organização das tropas negras dizia<br />
respeitos a formações táticas. Essas eram repetidas exaustivamente nos campos<br />
<strong>de</strong> treinamento, pelo menos naqueles que formaram as primeiras tropas <strong>de</strong><br />
negros que entraram na guerra, uma vez que com o <strong>de</strong>senvolver do conflito o<br />
tempo disponível para exercício a<strong>de</strong>quado das tropas foi sendo diminuído<br />
drasticamente, quando não atrapalhado pela eclosão <strong>de</strong> conflitos localizados.<br />
Sem tempo para treinar, eram repassadas a essas tropas apenas táticas básicas<br />
<strong>de</strong> sobrevivência no campo <strong>de</strong> batalha. Para além <strong>de</strong>sse problema, os<br />
comandantes <strong>de</strong> tropas negras ainda tinham que lidar com as or<strong>de</strong>ns vindas dos<br />
102 TRUDEAU, Noah Andre. Op. Cit. pp. 125-129.<br />
36
oficiais superiores. Estes, geralmente, empregavam as tropas negras em<br />
trabalhos manuais que não se ligavam diretamente ao exercício bélico. Isso<br />
reduzia drasticamente o tempo e a direção do treinamento dos regimentos<br />
compostos por homens <strong>de</strong> cor. 103<br />
Apesar do consistente programa <strong>de</strong> treinamento, que incluía cartilhas e<br />
manuais, as tropas compostas por homens negros ainda enfrentavam problemas<br />
institucionais no Norte, sobretudo relativos à questão do pagamento <strong>de</strong> soldo.<br />
Não raro, essas tropas não recebiam o pagamento a<strong>de</strong>quado e, muitas vezes,<br />
prometido. Não eram poucos os soldados que encontravam-se em situação <strong>de</strong><br />
gran<strong>de</strong> pobreza, pelo contrário. Assim, muitos revoltaram-se contra a situação <strong>de</strong><br />
não recebimento do soldo. Uma ação nesse sentido acarretava atitu<strong>de</strong>s do<br />
oficialato branco, que tinha suas <strong>de</strong>cisões marcadas pelo exagero e pelas<br />
motivações raciais. Um dos exemplos mais salientes <strong>de</strong>sse problema é o protesto<br />
organizado pelos soldados da 11ª U. S Colored Heavy Artillery 104 , tropa que levou<br />
a cabo um manifestação <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s dimensões reivindicando pagamento<br />
igualitário entre soldados brancos e negros. 105<br />
Entretanto, é notável que os comandantes <strong>de</strong> tropas <strong>de</strong> cor nortistas<br />
levavam vantagem substancial sobre seus homólogos do Sul. As unida<strong>de</strong>s<br />
organizadas pelos oficiais brancos do norte possuíam número significativo <strong>de</strong><br />
negros letrados, o que facilitava a leitura, por exemplo, <strong>de</strong> manuais <strong>de</strong><br />
treinamento. Além disso, nos campos <strong>de</strong> treinamento localizados ao Norte dos<br />
Estados Unidos, o tempo disponível para a disposição e treinamento das tropas<br />
<strong>de</strong> negros era, quase sempre, maior. 106<br />
Desta forma, as diferenças entre as tropas formadas no Norte e no Sul<br />
eram evi<strong>de</strong>ntes. Os soldados da União, assim como seus companheiros brancos,<br />
possuíam noções <strong>de</strong> disciplina e estrutura militar. A função da própria disciplina<br />
era, acima <strong>de</strong> tudo, transformar homens <strong>de</strong> cor em soldados do Exército dos<br />
Estados Unidos da América. Mas o fator crucial era que esses negros, em gran<strong>de</strong><br />
número, ex-escravos, haviam provado da liberda<strong>de</strong> e não hesitariam em lutar<br />
para <strong>de</strong>fendê-la. Alguns comandantes <strong>de</strong>ssas tropas faziam, inclusive, questão <strong>de</strong><br />
103 GLATTHAAR, Joseph. Op. Cit. pp. 99-106.<br />
104 Este nome <strong>de</strong>signava o 11º regimento <strong>de</strong> artilharia pesada <strong>de</strong> homens <strong>de</strong> cor dos Estados<br />
Unidos.<br />
105 Ibi<strong>de</strong>m, pp. 111-116.<br />
106 Ibi<strong>de</strong>m, p. 101.<br />
37
marcar a diferença entre o escravo e o soldado, enten<strong>de</strong>ndo a importância <strong>de</strong>sta<br />
distinção – sobretudo, disciplinar - para o <strong>de</strong>sempenho do regimento.<br />
Enquanto isso, seus “irmãos” do Sul continuavam atrelados à lógica<br />
escravista, uma vez que, frequentemente, o ingresso em uma milícia não<br />
significava o rompimento dos laços escravistas com os gran<strong>de</strong>s senhores. Assim,<br />
para muitos <strong>de</strong>sses homens a estrutura militar, com os brancos acima dos negros,<br />
representava uma mera extensão da relação entre o senhor e seus escravos.<br />
Esta concepção abria espaço para uma reação – por razões raciais - <strong>de</strong> inúmeros<br />
soldados negros contra a autorida<strong>de</strong> dos oficias brancos. 107<br />
Desta forma, os Confe<strong>de</strong>rados evitavam ao máximo esse tipo <strong>de</strong><br />
organização, Entretanto, a presença <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong>ssas tropas no<br />
exército da União não passou <strong>de</strong>spercebida pelos confe<strong>de</strong>rados. Os regimentos<br />
<strong>de</strong> cor eram cada vez mais requisitados para a <strong>de</strong>fesa das novas possessões que<br />
a União vinha tomando <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> território sulista, domínios esses, notavelmente,<br />
escravistas 108 .<br />
No Sul, ao organizarem-se as primeiras tropas compostas por negros,<br />
restringiu-se sua área <strong>de</strong> atuação. Soldados negros <strong>de</strong>veriam ser empregados<br />
unicamente em serviços <strong>de</strong> apoio. 109 Isso não significa que os <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong><br />
africanos ao sul também não almejassem lutar pela <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> territórios das duas<br />
parcelas em contenda, pelo contrário. Não eram poucos os negros, seja do sul ou<br />
do norte, que entendiam a guerra civil em termos regionais. Muitos estavam<br />
dispostos a lutar do lado dos brancos para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r seus lares. Entretanto, havia<br />
gran<strong>de</strong> temor em armarem-se os negros em meio a uma população tão gran<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes africanos. Por este motivo, os soldados negros nem sempre<br />
recebiam treinamento ou soldo 110 .<br />
Entretanto, a condição do Sul <strong>de</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte das tropas formadas por<br />
negros levou o governo confe<strong>de</strong>rado a tomar medidas que conservassem tais<br />
regimentos sob a autorida<strong>de</strong> a organização bélica sulista. Desta forma, em 1863<br />
o Sul já passava a incorporar regimentos negros ao seu serviço militar regular,<br />
<strong>de</strong>monstrando a importância <strong>de</strong>ssas tropas nas pretensões confe<strong>de</strong>radas. Assim,<br />
107 Ibi<strong>de</strong>m, pp. 108-120.<br />
108 BURTON, William L.Op Cit. pp. 10-20.<br />
109 TRUDEAU, Noah André. Op. Cit. pp. XVIII-XIX.<br />
110 Ibi<strong>de</strong>m, p. XIX.<br />
38
o 2º Regimento da Carolina da Norte foi o primeiro a fazer parte, oficialmente, da<br />
USCT. Atrelado a isso, ocorria uma mudança na própria visão sulista das tropas<br />
negras, da sua competência e capacida<strong>de</strong>. Cada vez mais oficiais salientavam a<br />
obediência e capacida<strong>de</strong> dos negros <strong>de</strong> realizar satisfatoriamente todas as<br />
funções dadas a um soldado branco, inclusive lutar. 111<br />
As tropas compostas por negros também estavam alterando as<br />
concepções nortistas. Com participação <strong>de</strong>cisiva em várias batalhas, soldados<br />
negros passaram, paulatinamente, a angariar mais respeito e admiração no<br />
âmbito militar dos estados da União. Tornavam-se inúmeros os elogios dos<br />
comandantes brancos, que salientavam o patriotismo e coragem <strong>de</strong> seus<br />
comandados negros. Os soldados <strong>de</strong> cor eram tidos como exemplo da eficácia <strong>de</strong><br />
programas <strong>de</strong> treinamento atrelados à disciplina, fundamental para manter os<br />
soldados em suas posições, não importando a condição favorável, ou não, da<br />
batalha. As comparações com regimentos brancos eram inevitáveis, uma vez que<br />
era notável que a maioria dos soldados brancos entendia o ingresso na instituição<br />
militar como um <strong>de</strong>ver patriótico, enquanto que os negros viam a oportunida<strong>de</strong><br />
como uma honra e um privilégio. 112<br />
Em maio <strong>de</strong> 1863, a União já contava com, aproximadamente, 160<br />
regimentos e 10 baterias <strong>de</strong> artilharia leve compostas por negros. É notável que<br />
houveram, inclusive, oficiais negros con<strong>de</strong>corados pelo Congresso norte-<br />
americano. Foram cinco oficiais da marinha nortista e <strong>de</strong>zoito <strong>de</strong> campo a serem<br />
homenageados com medalhas <strong>de</strong> honra ao mérito. Um número expressivo, visto<br />
o contexto <strong>de</strong> preconceito e restrição a ação <strong>de</strong> soldados <strong>de</strong> <strong>de</strong>scendência<br />
africana. 113<br />
Os dados quantitativos relativos ao número <strong>de</strong> negros integrados aos<br />
exércitos do Norte e do Sul durante o conflito da secessão são variáveis.<br />
Entretanto, a autora Jayne McCormick aponta para um número <strong>de</strong> alistados que<br />
ficaria em torno <strong>de</strong> 178 a 210 mil negros. Os estados separatistas do Sul e os<br />
bor<strong>de</strong>r states foram responsáveis pelo alistamento <strong>de</strong>, aproximadamente, 135 mil<br />
negros. A União, com gran<strong>de</strong> volume <strong>de</strong> negros incorporados ao exército,<br />
empregou apenas em sua marinha 50 mil <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> africanos. De todos<br />
111 TRUDEAU, Noah André. Op. Cit. pp. 115-118.<br />
112 GLATTHAAR, Joseph T.Op. Cit.. pp. 99-108.<br />
113 MCCORMICK, Jayne. Op. Cit. s/p.<br />
39
esses alistados – somando-se os efetivos do Sul e do Norte - cerca <strong>de</strong> 36 mil<br />
per<strong>de</strong>ram a vida durante o conflito da secessão. 114<br />
114 DAVIS, Burke. The civil war, strange and fascinating facts. Disponível em:<br />
http://www.civilwarhome.com/casualties.htm . Acesso em: 26 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2010.<br />
40
AS TROPAS NEGRAS EM COMBATE: AS CORRESPONDÊNCIAS DOS<br />
SOLDADOS E SEUS OFICIAIS<br />
41<br />
“Eu nunca acreditei em negros antes, mas<br />
por Jesus, eles são como o inferno quando<br />
lutam.” 115<br />
1. A guerra e a palavra escrita<br />
Com o advento da Guerra Civil, os estados da União adotaram postura que<br />
visava <strong>de</strong>sestabilizar os separatistas. O objetivo era manter os estados do sul<br />
isolados política e economicamente do restante dos Estados Unidos. Para tanto,<br />
preten<strong>de</strong>u-se um bloqueio que impedisse os sulistas <strong>de</strong> receberem munições e<br />
mantimentos. Também as comunicações entre áreas pertencentes às duas<br />
facções beligerantes foram afetadas pela guerra. O serviço postal no sul foi<br />
cortado, os selos dos estados separatistas não possuíam valida<strong>de</strong> no Norte e as<br />
cartas en<strong>de</strong>reçadas ao sul frequentemente retornavam aos seus remetentes.<br />
O United States Postal Service 116 , (USPS) criado em 1775 por Benjamim<br />
Franklin, tinha importância vital em termos militares em um período <strong>de</strong> guerra,<br />
mas também era importante para as famílias dos combatentes em um combate<br />
que, muitas vezes, mal compreendiam. Assim, o sul - seus habitantes e seu<br />
contingente militar - foram profundamente afetados pelo bloqueio nortista no<br />
USPC. Entretanto, sempre se encontraram meios <strong>de</strong> transpor o bloqueio. Muitas<br />
cartas chegaram aos seus <strong>de</strong>stinos no norte por meio <strong>de</strong> navios tipo <strong>de</strong> “ban<strong>de</strong>ira<br />
<strong>de</strong> trégua”. Essa estratégia funcionou satisfatoriamente até o norte passar a<br />
efetuar o bloqueio também dos portos confe<strong>de</strong>rados. A partir <strong>de</strong>sse momento,<br />
novas estratégias para a entrega <strong>de</strong> correspondências foram criadas, utilizando-<br />
se, sobretudo, <strong>de</strong> portos estrangeiros. Por esse motivo, essas cartas <strong>de</strong>moravam<br />
muito tempo para alcançar seus <strong>de</strong>stinos. Mesmo assim, essa ainda era a única<br />
115 Frase proferida por um oficial branco comandante <strong>de</strong> um regimento do First Kansas Colored.<br />
In: TRUDEAU, Noah André. Like Men of War: Black Troops in the civil war (1862-1865). New York:<br />
Castle Books, 2002.p. 108. Tradução livre.<br />
116 Serviço Postal dos Estados Unidos.
forma <strong>de</strong> muitas pessoas manterem contato com familiares ou amigos que foram<br />
afastados pela divisão do país. 117<br />
A comunicação entre soldados e seus familiares era particularmente difícil,<br />
já que instaurado o conflito, as correspondências militares eram priorida<strong>de</strong>. A<br />
princípio, para a entrega <strong>de</strong> correspondências pessoais, seria relativamente fácil<br />
encontrar os soldados em seus acampamentos, nos quais permaneciam por<br />
semanas. Entretanto, com o recru<strong>de</strong>scimento das batalhas, era cada vez mais<br />
difícil localizar as tropas que encontravam-se em constante movimento. Desse<br />
modo, a entrega das correspondências tornava-se um <strong>de</strong>safio. Entretanto, os<br />
familiares, amigos e os próprios soldados no front <strong>de</strong> batalha não <strong>de</strong>sistiam <strong>de</strong><br />
estabelecer a única forma <strong>de</strong> contato possível com seus entes queridos. Assim,<br />
apesar <strong>de</strong> todos esses complicadores, aos quais se somam os não poucos<br />
extravios, sobreviveram ao tempo e às vicissitu<strong>de</strong>s um volume consi<strong>de</strong>rável <strong>de</strong><br />
cartas para o período da Guerra Civil.<br />
À correspondência recebida pelos soldados era importante fator para a<br />
elevação do moral das tropas. No âmbito militar tanto do norte quanto do sul, a<br />
motivação dos soldados <strong>de</strong>pendia muito do recebimento <strong>de</strong> noticias e palavras <strong>de</strong><br />
afeto vindas <strong>de</strong> suas famílias 118 . Durante o tempo <strong>de</strong> batalha tornava-se<br />
necessário <strong>de</strong>ixar manifesto a esses homens que eles não haviam sido<br />
esquecidos. Porém, é notável que a correspondências estabelecida entre os<br />
soldados e seus parentes civis nem sempre reportavam-se apenas a sentimento e<br />
lembranças dos tempos <strong>de</strong> paz. Não raro, essas cartas <strong>de</strong>nunciavam as<br />
atrocida<strong>de</strong>s da guerra e o cotidiano dos homens que lutavam pela causa da União<br />
ou dos confe<strong>de</strong>rados. 119 As correspondências serviam, portanto, tanto como<br />
veículo <strong>de</strong> afeto quanto <strong>de</strong> um local on<strong>de</strong> os soldados faziam seus <strong>de</strong>sabafos aos<br />
seus queridos.<br />
42<br />
2. Os soldados negros e a palavra escrita<br />
117 BURKE, Kathryn. Letter Writing in América - Civil War Letters. Disponível em:<br />
http://www.postalmuseum.si.edu/letterwriting/lw04.html Acesso em: 24 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2010.<br />
118 I<strong>de</strong>m, Ibi<strong>de</strong>m.<br />
119 I<strong>de</strong>m, Ibi<strong>de</strong>m.
Muitos <strong>de</strong>sses soldados que lutavam pela União ou pelos confe<strong>de</strong>rados<br />
eram negros - livres, fugidos ou escravos - que relatavam suas experiências no<br />
âmbito do exército. Como parte da metodologia para a análise <strong>de</strong>ssas<br />
correspondências, elas foram aglutinadas a partir dos assuntos que mais são<br />
abordados, com especial atenção para a <strong>de</strong>licada relação estabelecida entre<br />
soldados negros e os oficias e colegas brancos. Observou-se que não raro,<br />
soldados negros apontam para o preconceito e para os atos <strong>de</strong> <strong>de</strong>scriminação<br />
existentes na instituição militar constando esses temas em pelo menos duas<br />
cartas <strong>de</strong> um conjunto analisado <strong>de</strong> quatro correspondências escritas por<br />
soldados <strong>de</strong> cor. Nestas cartas, ficou evi<strong>de</strong>nte o tratamento diferenciado<br />
dispensado para os soldados brancos. Importante para <strong>de</strong>tectar essas<br />
diferenciações foram os não raros soldos recebidos por <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong><br />
africanos bastante inferiores aos dos soldados brancos, ainda que<br />
<strong>de</strong>sempenhassem funções semelhantes. Como exemplo disso tem-se:<br />
“O senhor Steeter o Assistente Superienten<strong>de</strong> <strong>de</strong> Negros na Ilha<br />
<strong>de</strong> Roanoke (...) é um homem que diz que não é nenhuma parte<br />
abolicionista. Não tem nenhum cuidado com as pessoas coloridas e não<br />
tem nenhuma simpatia com as pessoas coloridas”. 120<br />
Acerca do fardamento, os soldados negros frequentemente eram proibidos<br />
<strong>de</strong> usá-lo. Junto com isso, evi<strong>de</strong>nciou-se que possuíam pouco acesso a ajuda<br />
médica quando doentes ou feridos, uma vez que os médicos nos acampamentos<br />
relutavam em prestar atendimento a soldados negros. Desse fato resultou o<br />
número <strong>de</strong> soldados negros mortos por doenças ser duas vezes maior do que no<br />
restante das tropas. 121<br />
A partir da análise <strong>de</strong>ssas cartas escritas por soldados negros também<br />
po<strong>de</strong>-se traçar um panorama do analfabetismo entre os <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong><br />
120 Sargento Richard Etheredge e Wm. Benson para o General Howard, Maio ou Junho <strong>de</strong> 1865.<br />
Cartas Recebidas não registradas, Bureau <strong>de</strong> Refugiados, Homens Livres, and Terras<br />
Abandonadas, Grupo <strong>de</strong> Registro 105, Arquivos Nacionais. Outro soldado no 36º USCT informou<br />
ao chefe <strong>de</strong> brigada <strong>de</strong>le que seu regimento fora transportado da Virgínia para o Texas. Trata<br />
também do assunto das rações cortadas para as famílias na Ilha <strong>de</strong> Roanoke. Publicado em: The<br />
Black Military Experience, pp. 729–30, in Free at Last, pp. 228–29, e em: Families and Freedom,<br />
pp. 125–26. Disponível em: http://www.history.umd.edu/Freedmen/sampdocs.htm<br />
121 BURKE, Kathryn. Op. Cit. Disponível em:<br />
http://www.postalmuseum.si.edu/letterwriting/lw04.html Acesso em: 24 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2010.<br />
43
africanos. É visível que os ingleses alfabetizavam os negros <strong>de</strong> forma rudimentar,<br />
apenas com fins <strong>de</strong> torna-los cristãos ou ainda a hipótese que parte <strong>de</strong>sses que<br />
foram alfabetizados o fizeram por esforço próprio, po<strong>de</strong>ndo ou não contar com a<br />
boa vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> algum homem ou <strong>de</strong> alguma mulher livres, mas jamais como um<br />
esforço conjunto da socieda<strong>de</strong> norte-americana em torná-los bons leitores e<br />
escritores, limitando-se essa a uma parca iniciação nas letras e não vinculando-se<br />
a algum projeto educacional. Assim também eram raros os esforços no sentido <strong>de</strong><br />
se esclarecerem os homens <strong>de</strong> cor sobre as questões mais importantes no<br />
momento. Essa pouca ação no sentido <strong>de</strong> alfabetizá-los e mesmo <strong>de</strong> inseri-los<br />
por completo nas práticas religiosas era, entre outros motivos, tomada como<br />
medida preventiva. Primeiramente, pela existência <strong>de</strong> uma lei não escrita e<br />
apoiada na religião que proibia qualquer cristão, mesmo que negro, <strong>de</strong> ser<br />
tomado como escravo. Desta forma, muitos proprietários <strong>de</strong> escravos proibiram o<br />
acesso dos negros a leitura e escrita, pois sendo protestantes a maioria das<br />
religiões praticadas nos Estados Unidos, o contato direto das escrituras fazia-se<br />
necessário para ser um fiel. Mantendo-os analfabetos, aumentava a distância<br />
para tornarem-se cristãos plenos e, portanto, não escravizáveis. Isso perdurou até<br />
o bispo <strong>de</strong> Londres <strong>de</strong>clarar que a escravidão, mesmo dos negros convertidos ao<br />
cristianismo, era religiosamente justificada. 122<br />
Isso não significa que não houvesse, em paralelo a essa pouca vonta<strong>de</strong> em<br />
torná-los alfabetizados, instituições espalhadas por vários pontos do território a<br />
propiciar educação em escolas para os negros. A primeira escola para negros foi<br />
inaugurada em 1620, como a maior parte das instituições <strong>de</strong> ensino da América<br />
inglesa, era uma instituição privada 123 . Em 1704 é inaugurado um<br />
estabelecimento similar na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nova York. A cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Charleston, no<br />
estado sulista da Carolina do Sul, teve sua primeira escola para negros em 1744,<br />
contando inclusive com professores negros, os ditos mais aptos para ensinar sua<br />
própria raça as primeiras letras. Assim, no longo intervalo entre os anos 1760 a<br />
1835 são abertas instituições <strong>de</strong> ensino básico e até mesmo superior a negros<br />
nos estados nortistas <strong>de</strong> Massachusetts, New Jersey, Pennsylvania e Ohio, além<br />
122<br />
FUNKE, Loretta. The negro in education. The Journal of Negro History. Volume 5, ano 1,<br />
janeiro <strong>de</strong> 1920. p. 03.<br />
123<br />
KARNAL, PURDY, FERNANDES, MORAIS. Leandro, Sean, Luiz Estevam, Marcus Vinícius <strong>de</strong>.<br />
Os EUA no século XIX. <strong>História</strong> dos Estados Unidos, das origens ao século XXI. São Paulo:<br />
Contexto, 2ª edição, 2007. p.47.<br />
44
do estado da Virgínia, localizado ao sul dos Estados Unidos. A iniciativa <strong>de</strong> criar<br />
essas escolas era, em sua gran<strong>de</strong> maioria, advinda <strong>de</strong> diferentes organizações<br />
religiosas e, não por isso, <strong>de</strong>ixava <strong>de</strong> enfrentar duras críticas da opinião pública<br />
que chegou até mesmo a vetar o funcionamento <strong>de</strong> alguns estabelecimentos <strong>de</strong><br />
ensino, como uma escola no estado nortista <strong>de</strong> New Hampshire que teve <strong>de</strong> ser<br />
fechada em meados <strong>de</strong> 1835 por pressão da população local. 124<br />
Apesar da existência <strong>de</strong> algumas escolas, em geral, o ensino <strong>de</strong> negros<br />
estava <strong>de</strong>sorganizado e enfrentava o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> uma legislação que restringia o<br />
acesso <strong>de</strong> <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> africanos a educação. Em 1740 a Carolina do Sul<br />
proibiu os negros <strong>de</strong> trabalharem como escriturários. Em Ohio, o ano <strong>de</strong> 1848<br />
marcou a proibição dos negros <strong>de</strong> freqüentarem escolas. Em 1850 uma nova<br />
legislação expulsou os negros das escolas no estado nortista <strong>de</strong> Indiana. Pensa-<br />
se que o fato <strong>de</strong>ssas escolas existirem já era, por si só uma vitória para as<br />
comunida<strong>de</strong>s negras norte-americanas.<br />
Havendo restrições, também havia resistência a elas., Sendo assim, foram<br />
organizadas algumas escolas clan<strong>de</strong>stinas <strong>de</strong>stinadas ao ensino dos negros,<br />
sobretudo, nos estados do sul, on<strong>de</strong> tais restrições se faziam sentir mais forte.<br />
Destaca-se a ação dos estabelecimentos escolares nas cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Charleston<br />
(Carolina do Sul), Savannah (Georgia) e New Orleans (Louisiana) antes da<br />
década <strong>de</strong> 1860. 125 Nos anos que antece<strong>de</strong>m a eclosão do conflito da secessão<br />
tanto estados do norte – Washington D.C - como do sul –Louisiana – abrigavam<br />
cerca <strong>de</strong> 20 escolas clan<strong>de</strong>stinas que ensinavam aproximadamente 4.000 jovens<br />
negros a ler e a escrever. Entretanto, esses números eram ainda muito pequenos<br />
se comparados à parcela da população negra na socieda<strong>de</strong> norte-americana. O<br />
censo do ano <strong>de</strong> 1860 indica uma população total <strong>de</strong> 31.183.582 habitantes nos<br />
Estados Unidos. Deste montante, negros livres somavam 476,748 pessoas,<br />
enquanto que os escravos chegavam ao total <strong>de</strong> 3.950.528; ou seja, 13% da<br />
população total. 126<br />
O emprego <strong>de</strong> mão <strong>de</strong> obra escrava, muito maior em áreas rurais do que<br />
urbanas, causou seus efeitos na alfabetização e escolarização da população<br />
124 I<strong>de</strong>m, p. 03.<br />
125 I<strong>de</strong>m, p.04.<br />
126 Census 1860. Disponível em: http://www.civil-war.net/census.asp?census=Total Acesso em: 24<br />
<strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2010.<br />
45
negra norte-americana. A maioria dos escravos, e mesmo uma gran<strong>de</strong> parcela<br />
dos libertos, encontrava-se na zona rural, o que dificultava ou impedia o acesso<br />
ao ensino, posto que as escolas se concentravam principalmente nas cida<strong>de</strong>s<br />
mais importantes dos estados. Em meados <strong>de</strong> 1863 – ano singular no<br />
estabelecimento <strong>de</strong> tropas <strong>de</strong> negros ao longo <strong>de</strong> todos os Estados Unidos –<br />
apenas 5% da população negra encontrava-se alfabetizada. 127 A maioria dos<br />
homens que ingressavam nas fileiras dos exércitos do norte e, sobretudo, do sul,<br />
eram, portanto analfabetos. Esta condição <strong>de</strong> analfabetos ou parcamente<br />
alfabetizados, por sua vez, também causou seus efeitos. Por um lado não lhes<br />
proporcionou registrar com precisão gran<strong>de</strong> parte das suas experiências e por<br />
outro, também dificultou as ações militares. 128<br />
Nesse aspecto, os intentos <strong>de</strong> exclusão da população negra dos bancos<br />
escolares apresenta-se como paradoxo nos termos das ações militares, pois os<br />
soldados que eram alfabetizados acabavam por constitui uma vantagem nos<br />
acampamentos e campos <strong>de</strong> batalha. Eram importantes peças na ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong><br />
repasse <strong>de</strong> or<strong>de</strong>ns e <strong>de</strong>terminações e na comunicação inter e intra tropas. Neste<br />
sentido, é importante reiterar que os comandantes brancos <strong>de</strong> tropas <strong>de</strong> cor<br />
nortistas tinham sob seu comando regimentos com um bom número <strong>de</strong> negros<br />
com conhecimento acerca da leitura e escrita. Este fator auxiliava os oficiais na<br />
tarefa <strong>de</strong> treinar as tropas e manter sua moral elevada. 129<br />
Mesmo havendo soldados negros alfabetizados, não é gran<strong>de</strong> o número <strong>de</strong><br />
cartas escritas por soldados negros, visto a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> envio das<br />
correspondências e o pouco acesso à alfabetização entre esta parcela da<br />
população como um todo. A <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> todos esses senões, a análise das cartas<br />
<strong>de</strong>sses soldados <strong>de</strong>monstra suas experiências e dificulda<strong>de</strong>s, ajudando-nos a<br />
compreen<strong>de</strong>r melhor o ingresso e institucionalização das tropas compostas por<br />
<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes africanos. Para além <strong>de</strong>ssas questões, é ainda possível i<strong>de</strong>ntificar<br />
os anseios <strong>de</strong>sses soldados que partiam para guerra ainda escravos – não raro<br />
fugidos do sul – ou livres, geralmente <strong>de</strong>ixando suas famílias <strong>de</strong>samparadas em<br />
seu local <strong>de</strong> origem, como exemplificado anteriormente.<br />
127 FUNKE, Loretta, Op. Cit. p. 4.<br />
128 GLATTHAAR, Joseph. Op. Cit. p. 103.<br />
129 Ibi<strong>de</strong>m, p. 101.<br />
46
3. Os oficiais brancos e as palavras escritas pelos e sobre os<br />
47<br />
soldados negros<br />
Além das cartas escritas pelos soldados <strong>de</strong> <strong>de</strong>scendência africana ainda há<br />
<strong>de</strong> se atentar para a correspondências assinada por oficias brancos comandantes<br />
das tropas negras. Essa correspondência po<strong>de</strong> nos revelar muito acerca da<br />
interação entre brancos e negros no âmbito militar, bem como a respeito do<br />
tratamento e dos direitos que eram concedidos aos soldados <strong>de</strong> cor.<br />
Para tanto, foram utilizadas fontes primárias oriundas dos volumes <strong>de</strong><br />
documentos do projeto Freedmen and Southern Society 130 , da Universida<strong>de</strong><br />
norte-americana <strong>de</strong> Maryland. As correspondências são atinentes ao período <strong>de</strong><br />
1861 a 1867 e apresentam diferenças tipológicas. Como recurso metodológico<br />
para a abordagem <strong>de</strong>ssa correspondência, optou-se pelo uso <strong>de</strong> apenas quatro<br />
<strong>de</strong>ssas missivas, nas quais estão presentes elementos importantes para que se<br />
eluci<strong>de</strong>m questões levantadas nos capítulos anteriores.<br />
Do conjunto das correspondências dos exércitos, Nem sempre as cartas<br />
eram en<strong>de</strong>reçadas a familiares ou amigos. Pelo contrário, não eram poucas as<br />
correspondências - muitas vezes <strong>de</strong> regimentos completos - que recorriam aos<br />
superiores na ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> comando militar para pedir melhorias nas condições dos<br />
soldados negros e um tratamento mais igualitário com relação aos seus<br />
homólogos brancos. Através <strong>de</strong>las po<strong>de</strong>-se se ter idéia não somente <strong>de</strong>ssas<br />
reivindicações dos soldados requerentes, mas também dos caminhos possíveis<br />
<strong>de</strong>ssas reivindicações nas ca<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> comando das forças militares. Dão a noção<br />
<strong>de</strong> quão longe po<strong>de</strong>riam ir as <strong>de</strong>mandas dos soldados surgidas no dia-a-dia do<br />
front e o seu impacto nas esferas mais altas dos exércitos <strong>de</strong> do po<strong>de</strong>r político.<br />
3.1. As palavras escritas por e sobre os soldados <strong>de</strong> cor no Norte<br />
Esse tipo <strong>de</strong> cartas po<strong>de</strong>ria incluir requerimentos enviados ao próprio<br />
Abraham Lincoln, como é o caso da correspondência enviada pelo Corpo Negro<br />
<strong>de</strong> Massachusetts ao presi<strong>de</strong>nte. O estado <strong>de</strong> Massachusetts situa-se entre os<br />
130 O projeto é iniciativa do <strong>de</strong>partamento <strong>de</strong> história da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Maryland, sob a direção<br />
<strong>de</strong> Leslie S. Rowland e contando com um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> colaboradores. Seu acervo<br />
documental e ensaístico encontra-se disponível em:<br />
http://www.history.umd.edu/Freedmen/sampdocs.htm
estados da União, entretanto, no momento do envio <strong>de</strong>ssa correspondência estes<br />
soldados encontravam-se em território confe<strong>de</strong>rado, na Ilha Morris, estado da<br />
Carolina do Sul. Escrita em 28 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1863, a carta é redigida pelo<br />
comandante das tropas James Henry Gooding, que apresenta ao presi<strong>de</strong>nte<br />
norte-americano os anseios <strong>de</strong> seus soldados, sobretudo com relação ao<br />
pagamento <strong>de</strong> soldo. Não tendo sido escrita pelos soldados negros, <strong>de</strong>nota a<br />
preocupação do oficialato com as condições <strong>de</strong> seus comandados. Problemas<br />
que surgiam entre os soldados <strong>de</strong> pouca patente atuando diretamente em<br />
situações <strong>de</strong> guerra eram percebidos pelos oficiais, causavam-lhes comoção<br />
suficiente a ponto <strong>de</strong> repassarem essas preocupações às ca<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> comando<br />
mais altas que, por sua vez, as direcionaram ao próprio presi<strong>de</strong>nte. Andavam na<br />
contra-mão das or<strong>de</strong>ns que recebiam, tanto no sentido do trato para com os<br />
soldados negros como no sentido do fluxo das comunicações <strong>de</strong> or<strong>de</strong>ns militares.<br />
Essa correspondência – assim como muitas outras - nos revela a situação<br />
<strong>de</strong> irregularida<strong>de</strong> no pagamento das tropas formadas por negros. Não raro, eram<br />
feitas promessas <strong>de</strong> pagamento <strong>de</strong> soldo igualitário e regular, porém,<br />
costumeiramente não eram cumpridas. Esse panorama fica explicito na carta<br />
escrita por um soldado negro remetida a Lincoln, que revela aspectos importantes<br />
da prática do pagamento dos soldos a esses homens e a <strong>de</strong>sconfiança <strong>de</strong>sses<br />
nas promessas e acordos estabelecidos:<br />
“no dia 06 do último mês, o paymaster 131 do <strong>de</strong>partamento<br />
informou-nos que tínhamos <strong>de</strong>cidido receber a soma <strong>de</strong> 10 dólares por<br />
mês. Ele viria e nos pagaria essa soma, mas, ao sentar no congresso, o<br />
regimento vai, em sua opinião, permitir os outros três (dólares). Ele não<br />
nos <strong>de</strong>u nenhuma garantia <strong>de</strong> que isso ia acontecer, certamente ele não<br />
tem autorida<strong>de</strong> para nos fazer qualquer garantia, e nós não po<strong>de</strong>mos<br />
supor que ele está agindo <strong>de</strong> qualquer forma que nos interesse.” 132<br />
A irregularida<strong>de</strong> e as promessas não cumpridas com relação ao pagamento<br />
<strong>de</strong> soldo geravam clima <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconfiança por parte dos soldados, essa <strong>de</strong>ixava-os<br />
em situação difícil no interior das tropas e nas suas vidas pessoais. Parte da<br />
131<br />
O paymaster era um oficial <strong>de</strong>signado para aprovar e efetuar o pagamento das tropas norteamericanas.<br />
132<br />
Soldado James Henry Gooding para Abraham Lincoln, 28 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1863. In: Harper &<br />
Irmãos para Abraham Lincoln, 12 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1863. Cartas recebidas, Divisão <strong>de</strong> Tropas<br />
Colorida, Escritório do ajudante general, Grupo <strong>de</strong> Registro 94, Arquivos Nacionais. Publicado em:<br />
The Black Military Experience, pp. 385–86, in Free at Last, pp. 461–63, e in Freedom's Soldiers,<br />
pp. 114–16. Disponível em: http://www.history.umd.edu/Freedmen/sampdocs.htm<br />
48
preocupação dos soldados em relação aos soldos que recebiam, ao seu baixo<br />
valor e aos recorrentes atrasos era relativo à suas vidas fora do âmbito militar.<br />
Muitos possuíam famílias que <strong>de</strong>pendiam do dinheiro para sobreviver, sendo que<br />
os próprios soldados salientam sua situação <strong>de</strong> pobreza e necessida<strong>de</strong>. Assim, os<br />
recrutas negros do estado <strong>de</strong> Massachusetts indagam o presi<strong>de</strong>nte: “Agora a<br />
questão principal é: somos soldados ou trabalhadores?” 133 . Essa pergunta era<br />
problemática e permeava a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> muitos regimentos negros. Se<br />
inicialmente foram convocados para a atuação na retaguarda dos combatentes,<br />
em ativida<strong>de</strong>s muito assemelhados aos <strong>de</strong> trabalhadores braçais <strong>de</strong> pouca<br />
qualificação, o início da década <strong>de</strong> 1860 foi marcado pelo reconhecimento da<br />
atuação em combate <strong>de</strong>sses soldados negros.<br />
Os soldados negros que serviam a União executavam suas funções<br />
satisfatoriamente, sendo que muitas vezes - como no caso <strong>de</strong>ste regimento -<br />
estavam tão bem armados e treinados como seus homólogos brancos. De<br />
trabalhadores braçais com foi o início <strong>de</strong> sua atuação na guerra, foram<br />
transformados em soldados. Por estes motivos os negros reclamavam seu direito<br />
<strong>de</strong> tratamento a<strong>de</strong>quado e igualitário. Buscavam tanto os soldos como a nova<br />
<strong>de</strong>finição <strong>de</strong> sua situação, o reconhecimento da função <strong>de</strong> soldados que <strong>de</strong> fato<br />
exerciam. Entretanto, na maioria das vezes essa <strong>de</strong>manda não era atendida.<br />
Percebe-se portanto, que a mudança na importância da função exercida não<br />
passou <strong>de</strong>sapercebida por esses homens e, longe <strong>de</strong> serem passivos ante o<br />
momento, atuam no reconhecimento <strong>de</strong> sua condição. O problema evi<strong>de</strong>nciado<br />
nos campos <strong>de</strong> batalha percorreu as ca<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> comando do exército, tornando<br />
evi<strong>de</strong>nte a existência concreta <strong>de</strong> soldados negros e a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um<br />
reajuste na hierarquização dos exércitos <strong>de</strong> tal modo que comportasse essas<br />
tropas compostas <strong>de</strong> homens <strong>de</strong> cor em seu interior.<br />
Este documento também nos revela a presença <strong>de</strong> concepções<br />
preconceituosas no âmbito do exército. Muitos oficiais e regimentos brancos –<br />
negligenciando seu papel enquanto motivadores das tropas que iam para o fronte<br />
<strong>de</strong> batalha - alimentavam idéias relativas à supremacia racial, salientando a<br />
questão do negro como infantil e ignorante. Inúmeros soldados negros conviviam<br />
com esta realida<strong>de</strong> diariamente, não raro, relacionando-a a um passado <strong>de</strong><br />
133 I<strong>de</strong>m, Ibi<strong>de</strong>m.<br />
49
escravidão. Essa era a realida<strong>de</strong> daqueles que compunham o Corpo Negro <strong>de</strong><br />
Massachusetts, porém este <strong>de</strong>stacamento é um exemplo dos poucos regimentos<br />
que conseguiram ultrapassar as barreiras impostas pelo preconceito, angariando<br />
a confiança <strong>de</strong> seus oficiais, que “compraram a idéia” <strong>de</strong> comandar tropas <strong>de</strong><br />
homens <strong>de</strong> cor que se mostravam tão valorosos quanto os soldados brancos. Os<br />
homens <strong>de</strong> cor, com armas e uniformes acabaram provando que estavam em par<br />
<strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> com os soldados brancos, como observa-se na correspondência: “<br />
50<br />
“Temos nos administrado para a satisfação completa dos<br />
oficiais gerais que foram preconceituosos contra nós, mas que nos<br />
dão agora todo o encorajamento e tem dívida <strong>de</strong> honra conosco.<br />
(...) Os confiantes <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> africanos tingiram o chão com<br />
sangue em <strong>de</strong>fesa da União e da <strong>de</strong>mocracia”. 134<br />
O Corpo Negro <strong>de</strong> Massachusetts, como se <strong>de</strong>stacou anteriormente, era<br />
um regimento que possuía acesso a armamento e um bom programa <strong>de</strong><br />
treinamento, em muito, equivalente aquele que preparava as tropas brancas.<br />
Entretanto, esta não constituía a realida<strong>de</strong> da maioria dos regimentos, seja na<br />
União ou entre os Estados Confe<strong>de</strong>rados. Na maioria das vezes o acesso a<br />
armamento era restrito e o treinamento irregular, questões problemáticas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />
organização das primeiras tropas <strong>de</strong> negros nos Estados Unidos. A própria<br />
formação <strong>de</strong>ssas tropas se <strong>de</strong>u <strong>de</strong> forma complexa, uma vez que a utilização <strong>de</strong><br />
negros como soldados foi inicialmente vetada. Porém, a <strong>de</strong>manda <strong>de</strong> um maior<br />
contingente humano na frente <strong>de</strong> batalha obrigou o governo norte-americano a<br />
integrar um maior número <strong>de</strong> homens ao exército, capacitando e equipando-os<br />
com armas <strong>de</strong> fogo.<br />
Este caso é registrado na carta do Corpo Negro <strong>de</strong> Massachusetts ao<br />
presi<strong>de</strong>nte, na qual salienta-se a situação inicial <strong>de</strong> proibição dos negros<br />
ingressarem nas fileiras do exército:<br />
134 I<strong>de</strong>m, Ibi<strong>de</strong>m.<br />
135 I<strong>de</strong>m, Ibi<strong>de</strong>m.<br />
“Mas, quando a guerra soou o trompete pela terra, quando<br />
os homens não conheceram o amigo do traidor, o homem negro,<br />
colocou sua vida no altar da nação – e ele foi recusado. Quando<br />
as armas da União foram disparadas no primeiro ano da guerra e<br />
o Executivo pediu mais comida para o seu sustento, novamente o<br />
homem negro implorou o privilégio <strong>de</strong> ajudar seu país na<br />
necessida<strong>de</strong>, sendo esse pedido novamente recusado”. 135
De algum modo, essa tropa excepcional atentava para o esforço dos<br />
soldados negros, que mesmo com toda a <strong>de</strong>dicação ainda não eram<br />
consi<strong>de</strong>rados merecedores do mesmo soldo ou benefícios dos soldados brancos<br />
regulares. Os soldados que compunham o Corpo Negro <strong>de</strong> Massachusetts, assim<br />
como tantos outros que encontravam-se em outros regimentos, con<strong>de</strong>navam<br />
práticas que visavam a manutenção da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> entre soldados brancos e<br />
negros, uma vez que os negros eram naturalmente obedientes e pacientes, só lhe<br />
faltando um conhecimento melhor do alfabeto para que melhor se expressassem<br />
– em seu ver a única gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>svantagem que tinham frente aos soldados<br />
brancos. Os negros que ingressavam no exército da União eram soldados livres e<br />
viam-se como tal. Acima <strong>de</strong> tudo, consi<strong>de</strong>ravam-se americanos que exigiam ser<br />
tratados como tais.<br />
3.2. As palavras escritas por e sobre os soldados <strong>de</strong> cor no Sul<br />
É notável que esses negros almejassem ser soldados, sendo essa uma<br />
opção <strong>de</strong> vida estável. Muitos <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> africanos que viviam no norte<br />
encontravam-se em situação <strong>de</strong> risco, vivendo em condição <strong>de</strong> extrema pobreza.<br />
Paralelamente, muitos dos negros ainda escravos que a<strong>de</strong>ntravam o exército no<br />
Sul viam na carreira militar uma promessa <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> e a passagem para uma<br />
vida melhor. Desta forma, para muitos negros do norte ou do sul o ingresso na<br />
instituição militar representava uma chance <strong>de</strong> melhorar sua condição social e<br />
garantir uma qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida melhor para suas famílias e romper com os limites<br />
do cativeiro.<br />
Assim, é compreensível que o número <strong>de</strong> negros a procurarem o<br />
alistamento militar fosse alto. Esse alto índice <strong>de</strong> homens alistados é relatado pelo<br />
Comissário para a Organização <strong>de</strong> Tropas Negras no Tennessee Oriental e<br />
Central, o Major G.L.Stearns. Este oficial respon<strong>de</strong>u algumas questões diante da<br />
Comissão <strong>de</strong> Investigação dos liberto-americanos na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nashville,<br />
Tennessee, em 23 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1863. Essas perguntas e respostas foram<br />
compiladas em uma correspondência que nos revela o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> muitos negros<br />
<strong>de</strong> a<strong>de</strong>ntrarem as fileiras do exército sulista.<br />
51
Notavelmente, os negros possuíam condições <strong>de</strong> trabalho extremamente<br />
precárias e injustas, mesmo para aqueles que eram empregados como homens<br />
livres. Desta forma, é compreensível que gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong>les preferisse o serviço<br />
militar a um trabalho regular ou a escravidão nas gran<strong>de</strong>s plantations sulistas. O<br />
major Stearns revela esse <strong>de</strong>sejo dos homens <strong>de</strong> cor quando indagado a respeito:<br />
“Eu <strong>de</strong>veria dizer que dois terços <strong>de</strong>les prefeririam ser soldados a ser<br />
trabalhadores” 136 .<br />
Entretanto, apesar do emprego <strong>de</strong> homens <strong>de</strong> cor no exército, a<br />
<strong>de</strong>sconfiança acerca da sua capacida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>dicação era ainda muito gran<strong>de</strong>.<br />
Mesmo assim, sempre houve aqueles oficiais, sulistas e nortistas, que<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ram e exaltaram os feitos das tropas negras em combate. Ao ser<br />
indagado sobre a disposição que esses soldados possuíam ao serem <strong>de</strong>signados<br />
para qualquer trabalho no âmbito da corporação militar, o major Stearn reafirma a<br />
<strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> seus comandados, dando créditos a qualquer homem que<br />
passasse por um processo <strong>de</strong> treinamento durante um período <strong>de</strong> 6 meses.<br />
Soldados negros bem treinados ficariam em pé <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> com qualquer<br />
soldado branco.<br />
O major afirma que sob seu comando encontravam-se três regimentos<br />
compostos, ao todo, por aproximadamente 3.000 negros. A gran<strong>de</strong> maioria<br />
<strong>de</strong>sses homens <strong>de</strong>ixou para trás mulheres, filhos e parentes que ainda<br />
necessitavam <strong>de</strong> cuidados e dinheiro para o seu sustento. Essa constituía uma<br />
questão particularmente problemática não só para os soldados, mas também para<br />
o próprio governo e para os oficias que tinham <strong>de</strong> manter elevada a moral das<br />
tropas e evitar manifestações. O major Stearns <strong>de</strong>nuncia este panorama,<br />
<strong>de</strong>stacando a importância do soldo para esses soldados manterem suas famílias:<br />
52<br />
“Neste momento, há um número gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>les que são<br />
<strong>de</strong>stituídos (<strong>de</strong> suas famílias), porque são soldados e<br />
trabalhadores nas fortificações (...). Devido a esta <strong>de</strong>stituição das<br />
famílias que estavam nos pressionando muito severamente (...). O<br />
negro está muito ansioso para saber o que restará a família <strong>de</strong>le<br />
se ele se alista, e estaria alegre <strong>de</strong> dividir o pagamento <strong>de</strong>le para o<br />
apoio <strong>de</strong>les. Se o Governo lhe pagar $13,00 por mês, ele po<strong>de</strong><br />
136 Relato do Maj. Geo. L. Stearns frente a American Freedmen's Inquiry Commission (A Comissão<br />
<strong>de</strong> Investigação dos Liberto-americanos), 23 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1863. Arquivado como O-328 1863,<br />
Cartas recebidas, Escritório do ajudante general, Grupo <strong>de</strong> Registro 94, Arquivos Nacionais.<br />
Publicado em: The Wartime Genesis of Free Labor: The Upper South, pp. 415–20. Disponível em:<br />
http://www.history.umd.edu/Freedmen/sampdocs.htm
poupar $10.00; mas o dinheiro nunca chegará à família <strong>de</strong>le, eles<br />
se espalham pelo país”. 137<br />
Tratando especificamente da questão do soldo, o major é indagado acerca<br />
do recebimento <strong>de</strong>sse pagamento pelos soldados negros. Stearns reitera que o<br />
pagamento é irregular e insuficiente, afirmando que a administração sulista faria<br />
um investimento mais consistente caso mantivesse essas tropas pagas<br />
regularmente, isso porque a falta <strong>de</strong> soldo <strong>de</strong>smotiva os homens e prejudica seu<br />
<strong>de</strong>sempenho, mesmo que nos trabalhos mais ordinários. Mesmo estando restrito<br />
a tratar dos negros do Tennessee, o major Stearns afirma que a melhor forma <strong>de</strong><br />
se tratar os soldados negros seria lhes conce<strong>de</strong>ndo soldo justo e regular:<br />
53<br />
“Elemento importante na civilização do negro é salário<br />
bom, regularmente pago. Ele sabe bem o que ele quer, e ele sabe<br />
adquirir o que ele quer, se ele tem pagamento justo e a liberda<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>le, ele sabe, também, o que ele <strong>de</strong>veria evitar, e tem uma<br />
percepção muito justa <strong>de</strong> egoísmo e sagacida<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rável”. 138<br />
Destaca-se no trecho citado acima, o papel “civilizador” da remuneração<br />
paga aos negros no exército, em paradoxal contraste com a idéia <strong>de</strong> que a guerra<br />
visava manter a população negra escrava, o que por sua vez não requer trabalho<br />
remunerado e <strong>de</strong>ntro da mesma lógica, afasta os negros do projeto <strong>de</strong> inclusão na<br />
civilização, sendo que esse propósito <strong>de</strong> civilização sempre fora um dos<br />
argumentos para a manutenção da escravidão negra no oci<strong>de</strong>nte.<br />
A correspondência <strong>de</strong>scortina também a luta do soldado negro, ex-escravo<br />
ou não, contra o preconceito no exército dos Estados Confe<strong>de</strong>rados do Sul. Esses<br />
homens eram tidos, não raro, como seres inferiores e indignos <strong>de</strong> respeito. Eram<br />
freqüentes os casos <strong>de</strong> oficiais brancos que abusavam do po<strong>de</strong>r e exerciam dura<br />
rotina <strong>de</strong> disciplina no comando das tropas negras, aplicando severos castigos e<br />
restrições. Aos soldados que buscavam recorrer diante <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>s racistas e<br />
injustas restavam os Tribunais Fe<strong>de</strong>rais, entretanto, esses eram <strong>de</strong>siguais quanto<br />
ao julgamento <strong>de</strong> questões oriundas se soldados brancos e negros. Soldados <strong>de</strong><br />
cor possuíam pouco acesso a esses tribunais e encontravam gran<strong>de</strong>s empecilhos<br />
para ganhar qualquer causa.<br />
O major Stearns, aponta para o posicionamento nortista com relação a<br />
essas práticas. Apesar do exército nortista não estar livre <strong>de</strong> tais práticas racistas<br />
137 I<strong>de</strong>m, Ibi<strong>de</strong>m.<br />
138 I<strong>de</strong>m, Ibi<strong>de</strong>m.
e injustas, o oficial sulista revela que o norte <strong>de</strong>nunciava as agressões realizadas<br />
por oficiais sulistas a negros que atingiam a União, geralmente fugindo do sul: “É<br />
um engano supor que os relatórios que aparecem nos documentos do Norte <strong>de</strong><br />
cruelda<strong>de</strong>s para com os negros no Sul são extremamente falsos”. 139<br />
Nos Estados Confe<strong>de</strong>rados do Sul, gran<strong>de</strong> parte dos negros que alistavam-<br />
se no serviço militar vinham como escravos, acompanhando seus senhores ou<br />
não. Muitos ingressavam no serviço militar mediante o pagamento, por parte do<br />
exército, da in<strong>de</strong>nização ao senhor, que liberava então seu escravo para tornar-se<br />
um soldado. A correspondência do major Stearns nos revela que esta prática<br />
tornava-se cada vez mais comum nos estados do sul, sendo uma saída viável<br />
para senhores que visavam o dinheiro oriundo das in<strong>de</strong>nizações ou simplesmente<br />
livrar-se contingente humano in<strong>de</strong>sejável: “Muitos <strong>de</strong>les <strong>de</strong>sejaram os escravos<br />
<strong>de</strong>les levados, quer adquirissem compensação ou não. Foram oferecidos<br />
aproximadamente quarenta a mim no último mês.” 140<br />
Tratando mais especificamente da questão do preconceito racial, o major<br />
Stearns revela que este era um problema que tinha suas origens fora do espaço<br />
militar. Os oficiais brancos reproduziam o racismo que já acompanhava os negros<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o trabalho nos campos. Ao contrário do que geralmente se afirmava, o<br />
major não vê no exército um espaço <strong>de</strong> perpetuação <strong>de</strong> práticas racistas, mas sim<br />
um lugar no qual o preconceito po<strong>de</strong> ser extinto. Assim, ele compreendia o<br />
exército como espaço <strong>de</strong> elevação do caráter do homem negro e <strong>de</strong> construção<br />
<strong>de</strong> uma harmonia entre as duas raças. Segundo Stearn, o ingresso na instituição<br />
militar elevava socialmente os homens negros e os proporcionava melhores<br />
condições <strong>de</strong> vida.<br />
4. Entre o Norte e o Sul, os negros preferem a liberda<strong>de</strong><br />
A ação pedagógica que Stearn atribui à vida militar sobre os homens<br />
negros ingressos nas tropas não era a norma para o pensamento dos oficiais<br />
sulistas, assim como não era a norma os escravos sulistas conseguirem seu<br />
engajamento nos exércitos. Essa não era uma realida<strong>de</strong> palpável para os<br />
milhares <strong>de</strong> negros que continuavam escravizados nas plantations sulistas ou nos<br />
139 I<strong>de</strong>m, Ibi<strong>de</strong>m.<br />
140 I<strong>de</strong>m, Ibi<strong>de</strong>m.<br />
54
Bor<strong>de</strong>r States integrados a União. Muitos <strong>de</strong>sses escravos viam nos estados do<br />
norte uma chance <strong>de</strong> viver em liberda<strong>de</strong> e ascen<strong>de</strong>r socialmente alistando-se nas<br />
forças militares.<br />
Assim, era muito gran<strong>de</strong> o número <strong>de</strong> negros fugidos do Sul a entrarem no<br />
exército da União. Um <strong>de</strong>sses escravos, fugido do Bor<strong>de</strong>r State <strong>de</strong> Maryland - no<br />
qual a escravidão só fora abolida em novembro <strong>de</strong> 1864 – foi John Boston, que<br />
integrou-se ao 14º Regimento do Brooklyn, no estado nortista <strong>de</strong> Nova York. Em<br />
correspondência datada <strong>de</strong> 12 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1862, direto do acampamento da<br />
tropa em Uptons Hills, no estado confe<strong>de</strong>rado da Virgínia, Boston relata para sua<br />
esposa sua nova condição <strong>de</strong> homem livre, soldado dos Estados Unidos:<br />
55<br />
“Eu estou agora em segurança no 14º Regimento do<br />
Brooklyn. Neste dia eu posso escrever a você graças a Deus<br />
como um homem livre. (...) Mas como o Senhor conduziu as<br />
Crianças <strong>de</strong> Israel para a terra <strong>de</strong> Canaã, assim ele me conduziu<br />
para uma terra na qual a liberda<strong>de</strong> irá chover. (...)Eu sou livre <strong>de</strong><br />
todos os traficantes <strong>de</strong> escravos que chicoteiam” 141 .<br />
Mesmo com esta melhora <strong>de</strong> vida significativa, é válido lembrar que a<br />
família <strong>de</strong>ste, e <strong>de</strong> tantos outros ex-escravos, permanecia escravizada no sul,<br />
realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> muitos soldados que conseguiram fugir sozinhos para o norte.<br />
É interessante apontar para o fato <strong>de</strong> que esta correspondência encontra-<br />
se inclusa a carta do Major General B. McClellan para Edwin Stanton.<br />
Provavelmente era essa a forma que muitos soldados encontravam se comunicar-<br />
se com suas famílias, uma vez que se efetuavam restrições ao serviço postal<br />
sulista e encontravam-se, frequentemente, em trânsito <strong>de</strong>vido ao intenso<br />
<strong>de</strong>slocamento das tropas da União.<br />
Os problemas relacionados a treinamento, interação com oficiais e<br />
soldados brancos e pagamento <strong>de</strong> soldo afetam seriamente as forças do USCT<br />
142 e esperava-se uma rápida e consistente solução para eles. Entretanto, essas<br />
questões eram complexas e em meados <strong>de</strong> 1865 estes problemas estavam longe<br />
141 John Boston para Sra. Elizabeth Boston, 12 Janeiro <strong>de</strong> 1862, incluso em Major, 21 Janeiro <strong>de</strong><br />
1862. Cartas Recebidas, Escritório do ajudante general, Grupo <strong>de</strong> Registro 94, Arquivos<br />
Nacionais. O envelope é en<strong>de</strong>reçado, em uma letra diferente, para “Sra. Elizabeth Boston Care<br />
aos cuidados da Sra. Prescia Owen Owensville Agência postal Maryland.” Publicado em: The<br />
Destruction of Slavery, pp. 357–58, em Free at Last, pp. 29–30, e em Families and Freedom, pp.<br />
22–23. Disponível em: http://www.history.umd.edu/Freedmen/sampdocs.htm<br />
142 As tropas negras que integravam o serviço militar norte-americano era <strong>de</strong>signadas pela sigla<br />
USCT – United States Colored Troops (Tropas <strong>de</strong> cor dos Estados Unidos).
<strong>de</strong> serem solucionados, sobretudo, entre os estados separatistas que<br />
presenciavam o avanço das tropas da União e o esgotamento <strong>de</strong> suas forças<br />
combatentes.<br />
A questão das famílias dos soldados foi problemática durante todo o curso<br />
do conflito e as portas do seu fim ela continuou sem solução. Em correspondência<br />
datada <strong>de</strong> meados <strong>de</strong> 1865 ao Comissário do Bureau <strong>de</strong> Homens Livres, os<br />
soldados negros do estado separatista da Carolina do Norte – representados<br />
pelos soldados Richard Etheredge e Wm. Benson - <strong>de</strong>nunciam as falsas<br />
promessas feitas pelo governo <strong>de</strong> zelar pelo bem estar <strong>de</strong> suas famílias. Exigindo<br />
sua retirada imediata do fronte <strong>de</strong> batalha, os soldados insistem em voltar para<br />
prover seus familiares, isso porque o governo não cumpriu com seu <strong>de</strong>ver em<br />
garantir a subsistência <strong>de</strong>ssas pessoas: “Quando nós fomos alistados no serviço<br />
nos era prometido que nossas mulheres e família <strong>de</strong>veriam receber rações do<br />
governo. As rações para nossas esposas e família foi (e está agora cortado)<br />
meta<strong>de</strong> da ração regular. Por conseguinte três ou quatro dias a cada <strong>de</strong>z dias,<br />
três não têm nada que comer” 143 .<br />
Além do <strong>de</strong>scaso por parte do governo, gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong>ssas famílias tinha<br />
<strong>de</strong> lidar também com saques e abusos <strong>de</strong> soldados brancos, como também é<br />
<strong>de</strong>nunciado na correspondência: “Nossos familiares não têm nenhuma proteção,<br />
os soldados brancos arrombam nossas casas, agem como lhes agradam, eles<br />
roubam nossas galinhas, roubam nossos jardins (...)” 144 . Questões como esta<br />
<strong>de</strong>smotivavam e <strong>de</strong>sestabilizavam as tropas que, quase sempre revoltadas,<br />
exigiam ser dispensadas do serviço militar. Este panorama agravava ainda mais a<br />
situação da débil <strong>de</strong>fesa sulista e contribuía para a vitória final da União ainda no<br />
ano <strong>de</strong> 1865.<br />
143 Sargento Richard Etheredge e Wm. Benson para o General Howard, Maio ou Junho <strong>de</strong> 1865.<br />
Cartas Recebidas não registradas, Bureau <strong>de</strong> Refugiados, Homens Livres, and Terras<br />
Abandonadas, Grupo <strong>de</strong> Registro 105, Arquivos Nacionais. Outro soldado no 36º USCT informou<br />
ao chefe <strong>de</strong> brigada <strong>de</strong>le que seu regimento fora transportado da Virgínia para o Texas. Trata<br />
também do assunto das rações cortadas para as famílias na Ilha <strong>de</strong> Roanoke. Publicado em: The<br />
Black Military Experience, pp. 729–30, in Free at Last, pp. 228–29, e em: Families and Freedom,<br />
pp. 125–26. Disponível em: http://www.history.umd.edu/Freedmen/sampdocs.htm<br />
144 I<strong>de</strong>m, Ibi<strong>de</strong>m.<br />
56
CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
Conclui-se com esse estudo que a inclusão <strong>de</strong> negros nas tropas que<br />
fizeram a guerra e a sua assimilação em uma nova realida<strong>de</strong> sem escravidão que<br />
<strong>de</strong>la emergiu, são parte <strong>de</strong> um processo bem maior, cujas origens não estão na<br />
Guerra Civil propriamente dita e sua conclusão não se dá com o fim <strong>de</strong>la. Se por<br />
um lado o engajamento dos negros nas tropas serviu aos interesses dos brancos<br />
norte-americanos dos dois lados da contenda, por outro, fomentou os anseios <strong>de</strong><br />
liberda<strong>de</strong> da população escravizada, conduzindo, ao fim e ao cabo, à ruptura <strong>de</strong><br />
um elo fundamental na estrutura sócio-econômica <strong>de</strong>ssa socieda<strong>de</strong> e abrindo<br />
espaço para as novas tensões e conquistas sócio-raciais dos afro-norte-<br />
americanos.<br />
Quanto ao ingresso <strong>de</strong>sses homens <strong>de</strong> cor no estabelecimento militar<br />
norte-americano, conclui-se que suas condições <strong>de</strong> serviço estavam, na maioria<br />
das vezes, aquém daquelas oferecidas aos soldados brancos. Soldados negros<br />
eram – fora alguns raros casos isolados – comandados por oficiais brancos, em<br />
gran<strong>de</strong> parte pelo temor das autorida<strong>de</strong>s, sobretudo sulistas, da organização <strong>de</strong><br />
um motim entre homens da mesma cor. Neste sentido, inicialmente, soldados<br />
negros eram impedidos <strong>de</strong> portarem armamento <strong>de</strong> fogo e eram, geralmente,<br />
empregados em trabalhos menores, não chegando ao fronte <strong>de</strong> batalha.<br />
Entretanto, com o <strong>de</strong>senvolvimento do conflito da secessão, norte e sul<br />
tiveram <strong>de</strong> rever tal posição. A guerra <strong>de</strong>mandava gran<strong>de</strong> contingente humano,<br />
fato que levou o governo norte-americano a tornar oficial a formação <strong>de</strong> corpos<br />
militares compostos por negros. A intenção <strong>de</strong> integrar <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> africanos<br />
foi formalizada a partir da promulgação <strong>de</strong> dois atos presi<strong>de</strong>nciais, o Militia Act e o<br />
Segundo Confiscation Act, assinados por Abraham Lincoln.<br />
A partir da oficialização as preocupações com relação a aspectos <strong>de</strong><br />
institucionalização <strong>de</strong>ssas tropas tornaram-se mais salientes. Porém, i<strong>de</strong>ntificou-<br />
se que gran<strong>de</strong> número das tropas compostas por negros – tanto entre os<br />
confe<strong>de</strong>rados, quanto entre a União – convivia com soldos irregulares e injustos,<br />
estando geralmente abaixo daquele recebido por soldados brancos <strong>de</strong> mesma<br />
patente. Esse problema acabou por mostrar-se como um dos mais graves,<br />
sobretudo no espaço militar confe<strong>de</strong>rado. A irregularida<strong>de</strong> no recebimento do<br />
57
soldo afetava não só os soldados, mas também suas famílias que viviam em<br />
situação <strong>de</strong> miséria.<br />
Atitu<strong>de</strong>s como estas geraram gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>scontentamento entre os soldados,<br />
<strong>de</strong>smotivando-os. Entretanto, um dos pontos <strong>de</strong> maior conflito e reclamação por<br />
parte dos soldados negros relacionava-se as promessas <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> que jamais<br />
concretizavam-se. Notavelmente, gran<strong>de</strong> parte dos negros alistados no exército<br />
da confe<strong>de</strong>ração ainda encontravam-se em situação <strong>de</strong> escravidão, sendo<br />
enviados para a guerra para servirem seus senhores, a título <strong>de</strong> empréstimo ou<br />
mediante o pagamento <strong>de</strong> uma in<strong>de</strong>nização ao senhor. Entretanto, muitos nunca<br />
chegaram a alcançar a tão sonhada liberda<strong>de</strong>, nem para si, nem para suas<br />
famílias.<br />
Porém, não é apenas entre soldados sulistas que encontram-se situações<br />
<strong>de</strong> claro <strong>de</strong>scontentamento por parte dos soldados negros. Promessas não<br />
cumpridas com relação a soldo, treinamento, fardamento e aos cuidados<br />
necessários as famílias indignaram soldados negros também ao norte do país.<br />
Questões relativas ao treinamento também revelaram-se problemáticas. O<br />
treinamento das tropas negras também mostrava-se irregular e <strong>de</strong>ficitário se<br />
comparado aquele que era proporcionado aos soldados brancos. Entretanto, é<br />
notável que, entre os estados da União, houve um esforço em se capacitarem os<br />
soldados negros, construindo campos <strong>de</strong> treinamento que visavam preparar<br />
esses homens e torna-los soldados do USCT.<br />
Notavelmente, era no âmbito dos campos <strong>de</strong> treinamento que revelam-se<br />
muitos aspectos relativos a interação entre brancos e negros no âmbito militar. O<br />
convívio entre oficiais e soldados brancos com os negros era, muitas vezes,<br />
marcado por atitu<strong>de</strong>s racistas e preconceituosas. Havia a manutenção <strong>de</strong><br />
concepções que <strong>de</strong>svalorizavam o trabalho <strong>de</strong> soldados negros e subestimavam<br />
sua capacida<strong>de</strong>.<br />
Como consi<strong>de</strong>rações finais, pon<strong>de</strong>ra-se também que, que nos Estados<br />
Unidos há um número consi<strong>de</strong>rável <strong>de</strong> historiadores que elegeram o Brasil como<br />
seu objeto <strong>de</strong> estudo. Os assim chamados brazilianists possuem produção vasta<br />
e fecunda, dialogando com autores brasileiros e formando centros <strong>de</strong> pesquisa<br />
em instituições prestigiadas, como Harvard e a New York University. Entretanto,<br />
essa troca acadêmica não é equilibrada.<br />
58
No Brasil o estudo <strong>de</strong> muitos aspectos da história norte-americana é um<br />
campo ainda recente e pouco explorado. Por outro lado, não estão os<br />
pesquisadores estrangeiros, e <strong>de</strong>ntre esses, os brasileiros, envolvidos<br />
“emocionalmente” com esse momento <strong>de</strong>licado da história dos Estados Unidos.<br />
Tal momento envolve a um só tempo a construção do Estado nacional norte-<br />
americano, as questões relativas às noções <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> e as<br />
questões raciais <strong>de</strong>sse estado que se reorganiza. Acredita-se eles os<br />
pesquisadores brasileiros possam contribuir para esses estudos dotando-os <strong>de</strong><br />
um maior distanciamento que por sua vez, po<strong>de</strong> produzir uma visão mais crítica<br />
<strong>de</strong>sses eventos.<br />
O estudo por autores brasileiros <strong>de</strong> temas relacionados aos Estados<br />
Unidos constitui ainda um ramo novo para a historiografia. Na medida em que<br />
cresce, vai abrindo espaço para uma maior interação intelectual e pesquisas<br />
conjuntas. Com um maior <strong>de</strong>senvolvimento da Organization of American<br />
Historians, os diálogos entre historiadores brasileiros e norte-americanos vem<br />
aumentando 145 . Eis que o breve estudo da formação das tropas <strong>de</strong> negros<br />
durante um período crucial e problemático da história dos Estados Unidos, a<br />
Guerra Civil, que aqui se apresenta, insere-se nessa nova perspectiva,<br />
<strong>de</strong>monstrando-se que mesmo com restrições à investigação in loco da<br />
documentação, utilizando fontes disponibilizadas em acervo on-line, os projetos<br />
po<strong>de</strong>m tornarem-se viáveis. Assim, há perspectiva <strong>de</strong> se produzir material em<br />
língua portuguesa atinente ao tema da constituição e <strong>de</strong>senvolvimento das tropas<br />
<strong>de</strong> negros durante o conflito da secessão.<br />
145 WEINSTEIN, Bárbara. Diálogos Brasil - Estados Unidos. Tempo: vol.13, n.25. Niterói: 2008.<br />
Entrevista concedida a Cecília Azevedo.<br />
59
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60
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Tempo: vol.13, n.25. Niterói: 2008. Entrevista concedida a Cecília Azevedo.<br />
61
ANEXOS<br />
[ Mapa: Estados Unidos da América – estados da União, confe<strong>de</strong>ração e bor<strong>de</strong>r<br />
states ]<br />
62
Imagens <strong>de</strong> soldados negros atuantes na Guerra Civil:<br />
[Soldado negro da União]<br />
[26º U.S Colored Volunteer Infantry – Camp William Penn; Pensilvânia ]<br />
63
[Soldado negro do regimento <strong>de</strong> Rho<strong>de</strong> Island]<br />
[Soldados negros <strong>de</strong> Fre<strong>de</strong>ricksburg; Virginia<br />
64