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“Territórios imaginários”: a institucionalização do discurso ...

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“TERRITÓRIOS IMAGINÁRIOS”: A INSTITUCIONALIZAÇÃO DO<br />

DISCURSO INTELECTUAL NA CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA CATALÃ.<br />

“TERRITORIOS IMAGINARIOS”: LA INSTITUCIONALIZACIÓN DE LO<br />

DISCURSO ACADÉMICO EN LA CONSTRUCCIÓN IDENTITARIA<br />

CATALANA.<br />

Rogerio Ribeiro Tostes<br />

Mestran<strong>do</strong> em História, UFPR, e membro <strong>do</strong> Núcleo de Estu<strong>do</strong>s Mediterrânicos,<br />

NEMED. Especialista em Sociologia Política, UFPR. Bacharel em Direito, PUCPR,<br />

integrante <strong>do</strong> Grupo de Pesquisa de Direito de Integração e Conflito de Leis <strong>do</strong><br />

Mercosul na mesma instituição. rogerio.tostes@gmail.com<br />

Resumo: Acompanhan<strong>do</strong> a intensiva transformação <strong>do</strong>s campos de estu<strong>do</strong> sobre<br />

culturalidade e identidade territorial – participantes de uma alentada revisão crítica de<br />

seus eixos teóricos mais tradicionais –, esboça-se na presente análise o cenário de<br />

reivindicações emancipacionistas constituídas dentro <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> espanhol a partir da<br />

região autônoma da Catalunha. Assinalan<strong>do</strong> como chave de interpretação os recursos<br />

de leitura <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s pós-coloniais, este trabalho procura resgatar estratégias<br />

ideológicas de uma tradição acadêmica catalanista que se comprometeu em diferentes<br />

ocasiões e de diferentes maneiras com uma interpretação teleológica <strong>do</strong>s processos<br />

históricos de formação de sua sociedade, consolidan<strong>do</strong>, através <strong>do</strong> <strong>discurso</strong><br />

institucional, as vocações identitárias sobre a construção de um território e de uma<br />

comunidade assim representada. Essa questão perpassa principalmente os séculos<br />

XIX e XX, quan<strong>do</strong> a busca de mitos funda<strong>do</strong>res, desde tradições literárias medievais<br />

até marcos de insurgência catalã contra o controle de uma entidade estatal<br />

englobante, servem para assinalar a originalidade histórica de um padrão cultural local,<br />

fornecen<strong>do</strong> legitimidade às pretensões de uma política identitária assim programada. A<br />

imagem e a fantasia de uma cultura unificada, liberta de hibridismos e transfigurações<br />

trazidas de fora, são forjadas pela “figuração” histórica e pela criação de um espaço<br />

inconsciente, convenientemente projeta<strong>do</strong> no território como distribuição concreta da<br />

imaginação. Com esta inserção teórica o conhecimento histórico é maneja<strong>do</strong> segun<strong>do</strong><br />

uma estrutura de uso agrega<strong>do</strong>r, revelan<strong>do</strong> o “essencial” <strong>do</strong> espírito comunitário<br />

catalão. De seu posto, o <strong>discurso</strong> teórico atua como saber valida<strong>do</strong>r, manipulan<strong>do</strong> o<br />

imaginário e o fantasioso sobre um programa de homogeneização identitária. Assim,<br />

visan<strong>do</strong> conjugar suas estratégias e finalidades, o presente estu<strong>do</strong> dirige-se a<br />

entender a conformação de uma tradição intelectual até recentemente comprometida<br />

com a formação de um senti<strong>do</strong> identitário catalão.<br />

Palavras-chave: identidade territorial; imaginário; intelectualidade catalanista.<br />

Resumen: Siguien<strong>do</strong> lo intenso cambio de los estudios acerca de la culturalidad y de<br />

la identidad territorial (integrantes de una reforzada revisión critica de sus términos<br />

teóricos más tradicionales), se describe en la presente análisis lo escenario de


eivindicaciones emancipa<strong>do</strong>ras constituyentes en lo Esta<strong>do</strong> español desde la región<br />

autónoma de Cataluña. Subrayan<strong>do</strong> como clave interpreta<strong>do</strong>ra los medios de lectura<br />

de los estudios pos-coloniales, este trabajo busca añadir estrategias ideológicas de<br />

una tradición académica catalanista que se afianzó en diferentes ocasiones y de<br />

diferentes mo<strong>do</strong>s con una interpretación teleológica de los procesos históricos de<br />

formación de su sociedad, establecien<strong>do</strong>, través de lo <strong>discurso</strong> institucional, las<br />

vocaciones identitárias acerca de la construcción del territorio y de una comunidad<br />

como tal representada. La cuestión prepasa capitalmente a los siglos XIX y XX,<br />

cuan<strong>do</strong> la búsqueda de mitos de fundación, desde las tradiciones literarias medievales<br />

hasta enseñas de insurgencia catalana contra la <strong>do</strong>minación de una entidad estatal de<br />

agregación, sirve para tachar la originalidad histórica como el paradigma cultural local,<br />

fornecien<strong>do</strong> por lo tanto legitimidad a las pretensiones de una política de identidad así<br />

acertada. La imagen e la fantasía de una cultura sujetada, dispensada de los<br />

hibridismos y las transfiguraciones acogidas de lo exterior, son forjadas por la<br />

“figuración” histórica y por la creación de un espacio inconsciente, adecuadamente<br />

proyecta<strong>do</strong> en lo territorio como distribución concreta de la imaginación. Con esta<br />

inserción teórica lo conocimiento histórico es maneja<strong>do</strong> accesorio a una estructura de<br />

agregación, acusan<strong>do</strong> lo “esencial” del espíritu comunitario catalán. Hacia su puesto lo<br />

<strong>discurso</strong> teórico actúa como saber de validación, conducien<strong>do</strong> lo imaginario y lo<br />

fantasioso cercano un programa de homogenización de identidad. Así, miran<strong>do</strong><br />

conjugar sus estrategias y finalidades, lo presente estudio se dirige a comprender la<br />

conformación de una tradición intelectual hasta recientemente comprometida con la<br />

formación de un senti<strong>do</strong> identitario catalán.<br />

Palabras-clave: identidad territorial; imaginario; intelectualidad catalanista.<br />

1. Da invenção da comunidade à transcrição <strong>do</strong>s híbri<strong>do</strong>s.<br />

Logo à partida, há algumas precauções que me obrigo tomar. Seguramente, a<br />

primeira ressalva a ser feita é sobre a natureza disciplinar deste trabalho. Tento, na<br />

medida em que me parece possível, fazer valer o recurso à interdisciplinaridade <strong>do</strong>s<br />

processos analíticos então emprega<strong>do</strong>s. Para tanto, venho de aproveitar as<br />

ferramentas fornecidas por teóricos <strong>do</strong>s recentes estágios <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s culturais, como<br />

Stuart Hall e Homi K. Bhabha, que associam o processo de construção de identidades<br />

a seu <strong>discurso</strong> cultural nacional e para isso lembram a formulação notável de Benedict<br />

Anderson, com a qual este trabalho aponta desde o título uma dívida elementar. Por<br />

esta chave, contrarian<strong>do</strong> sugestões mais tradicionais 1<br />

, ele propõe uma apreensão<br />

1 Consultar, por exemplo, as explicações muito divulgadas por historia<strong>do</strong>res que, desde as preleções de<br />

Ernest Renan, remodelam um <strong>discurso</strong> essencialmente pauta<strong>do</strong> por ideologismos e programas políticos<br />

de nacionalização e formatação identitária.<br />

2


mais antropológica da formação das identidades e <strong>do</strong> próprio nacionalismo que uma<br />

leitura meramente ideológica de sua irradiação. E é com termos muito claros que ele<br />

entende a definição mesma de nação como “uma comunidade política imaginada – e<br />

imaginada como sen<strong>do</strong> intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana”<br />

(ANDERSON, 2008, p. 32).<br />

A comunidade, tal como a sugere, é criada não por relações diretas entre<br />

indivíduos, mas, sim, pela abstração de um elo invisível entre agentes que, mesmo<br />

desconheci<strong>do</strong>s uns <strong>do</strong>s outros, admitem haver a comunhão de um certo patrimônio<br />

simbólico que os aproxima e os equipara em suas categorias culturais compartilhadas.<br />

Igualmente imaginária é a natureza dessa aproximação, que de mo<strong>do</strong> algum pode ser<br />

subjugada por esquemas descritivos prévios e gerais, pois há algo nas maneiras de<br />

interação que Anderson denomina “estilo” de perfilamento identitário, e que aqui<br />

explica a impossibilidade da definição de critérios estritos para se qualificar uma<br />

comunidade em termos de autenticidade/falsidade; dessarte, tais qualificações só<br />

poderão ter corpo mediante a autopercepção de seus critérios identitários. Isso, por<br />

sua vez, sugere o afastamento de um esquema comparativo entre culturas identitárias<br />

diferentes visan<strong>do</strong> compreender qual delas possui maior “profundidade” ou<br />

“porosidade” em seus teci<strong>do</strong>s comunitários. A forma e a virtualidade de um complexo<br />

identitário só podem ser mensuradas no interior dele mesmo, qual seja, à medida que<br />

forcejarem suas estratégias e seus eventos simbólicos de fundação. Esta imaginação<br />

é por definição limitada a uma dimensão territorial sobre a qual estará projetada. Neste<br />

passo é que a delimitação de fronteiras firmemente estabelecidas é, antes de uma<br />

necessidade naturalmente moderna, também o marco defini<strong>do</strong>r <strong>do</strong> lastro espiritual da<br />

nação. A apropriação sobre o território é garantia de sua soberania inconteste e sua<br />

confirmação – sobremaneiramente à vista <strong>do</strong> outro – de existir como comunidade<br />

singularizada. Há, por isto, uma sobreposição inapelável entre narrativa e território.<br />

É pela recuperação da narrativa, da conexão simbólica com o passa<strong>do</strong>,<br />

rememoração constante <strong>do</strong>s acontecimentos e da emanação mítica <strong>do</strong>s gestos<br />

arcaicos, que a comunidade é imaginada sobre as ruínas e o pavilhão <strong>do</strong> passa<strong>do</strong><br />

inscritos no território. Por abrigar os vestígios da “nação”, o lugar onde ela frutificou e<br />

esboçou seu primeiro estro de grandeza, é que o território se torna privilegia<strong>do</strong> no ato<br />

de mediação simbólica. Assim, o longo trajeto feito pela montagem narrativa sobre o<br />

3


<strong>discurso</strong> polissêmico da nação, perde-se e recupera-se infinitas vezes, figuran<strong>do</strong><br />

apenas por ligações miméticas, somente seguras quan<strong>do</strong>, “tais como as narrativas,<br />

perdem suas origens nos mitos <strong>do</strong> tempo e efetivam plenamente seus horizontes<br />

apenas nos olhos da mente” (BHABHA, 1990, p. 1) 2<br />

. Para existir, portanto, a geografia<br />

<strong>do</strong> mito precisa de um lugar concreto e real, um lugar físico em nome <strong>do</strong> qual se possa<br />

celebrar a memória e a representação ideal da comunidade.<br />

Finalmente, acrescenta Anderson, a imagem na qual se reflete a comunidade é<br />

idealizada como fraternidade horizontal que, não obstante a exploração hierárquica e<br />

evidente desigualdade de seus membros, acaba por vocacionar o destino <strong>do</strong> ente<br />

coletivo à perseguição de vitórias e conquistas infinitas. Por mais óbvia que pareça a<br />

limitação dessas ficções, elas têm seu elemento na tradição concedida por algum<br />

episódio histórico glorioso, na qual arrojam-se coletividades inteiras à competição<br />

perante outras e ao auto-sacrifício abnega<strong>do</strong> que este esforço pode demandar.<br />

Fechan<strong>do</strong> um inventário de ponderações um tanto conhecidas <strong>do</strong>s estudiosos sobre o<br />

processo de constituição <strong>do</strong>s nacionalismos modernos, Benedict Anderson imprime<br />

com enorme originalidade um senti<strong>do</strong> à compreensão destes fenômenos ao<br />

demonstrar sua flexibilidade a temporalidades e contextos espaciais, e entenden<strong>do</strong><br />

que o lega<strong>do</strong> das identidades nacionais repousa na autêntica criação imaginária de<br />

sua comunidade. É certo que falar em identidade sempre demonstrou ser um exercício<br />

bastante penoso para o intérprete social, porque seu aparecimento, primeiramente<br />

terminológico, de contínuo esteve associa<strong>do</strong> à feição impositiva de particularismos<br />

culturais em franca disputa pela afirmação de espaços políticos. Em segun<strong>do</strong> lugar,<br />

porque a simples construção <strong>do</strong> que viria a ser a identidade de um corpo social implica<br />

uma série de purificações próprias a sistemas simbólicos inerentemente impuros.<br />

No que estas formulações possam atender com utilidade à decomposição<br />

analítica daquilo que chamo estratégias ideológicas de uma tradição acadêmica<br />

catalanista fica a notar a parcial contribuição desta tradição em especificar a trajetória<br />

histórica de seu povo e <strong>do</strong> assenhoramento da conjugação identidade/território,<br />

sacan<strong>do</strong> descrevê-los por sob um padrão de originalidade cultural que,<br />

2 No original: “Nantions, like narratives, lose their origins in the myths of time and only fully realize their<br />

horizonts in the mind’s eye. Such an image of the nation – or narration – might seem impossibly romantic<br />

and excessively metaphorical, but it is from those traditions of political thought and literary language that<br />

the nation emerges as a powerful historical idea in the west.(…)”.<br />

4


simultaneamente, indica o espaço de figuração simbólica purifica<strong>do</strong> e as bases<br />

legítimas de uma política identitária que deve se afirmar à concorrência com outras.<br />

Dessa forma, desde o engajamento das primeiras linhagens de catalanistas já na<br />

segunda metade <strong>do</strong> século XIX, fica clara a marca que lhes instiga a tarefa de instituir<br />

uma nação, afiançada pela convicção de que a buscavam por força de um emblema<br />

espiritual histórico a dignificar e a libertar seu povo, seus valores e suas instituições,<br />

de um jugo estrangeiro ilegítimo. Posteriormente, falan<strong>do</strong> das gerações mais recentes,<br />

os defensores da pátria catalã transpuseram seu <strong>discurso</strong> sobre o móbil das<br />

identidades nacionais, seguros naquilo que, assim define Stuar Hall, tornam as<br />

culturas locais aptas a gerar sistemas de representações identitários e assim propiciar<br />

o <strong>discurso</strong> invocatório, mobilizan<strong>do</strong> os pares da nação a purificar suas fileiras “para<br />

que expulsem os ‘outros’ que ameaçam sua identidade e para que se preparem para<br />

uma nova marcha para a frente” (HALL, 2006, p. 56). No entanto, a purificação, como<br />

é fácil antever, não passa de um agenciamento fantasioso sobre o pertencimento<br />

unívoco <strong>do</strong> estatuto cultural que se procura apresentar livre de fissuras em seu<br />

homogeneísmo. Desta maneira, apresentar o itinerário <strong>do</strong> imaginário comunitário não<br />

visa confirmar esses esquemas como váli<strong>do</strong>s para a composição identitária, ou mesmo<br />

supor que a “identidade” possa assumir com efeito algum valor conceitual de pureza<br />

coletiva. Antes, assinalar estas estratégias implica neste momento a relação binária<br />

de: (a) entender por qual instrumento a identidade é processada/imaginada como tal e<br />

(b) racionalizar sobre quais bases heterogêneas ela parte para formar estruturas<br />

discriminadamente puras.<br />

Assim, é preciso transcender esse primeiro aporte das comunidades<br />

imaginadas, acrescentan<strong>do</strong> a ele o adicional sobre os processos de hibridação para<br />

desmistificar o que resta da ilusão fornecida pela retórica cultural da identidade. É por<br />

este viés que o fará Homi Bhabha (1998, p. 63) ao sublinhar os termos da<br />

“diferenciação cultural” como medida de auto-identificação, explican<strong>do</strong>-se assim o<br />

endurecimento catalanista construí<strong>do</strong> mais por força de seu anticastelhanismo <strong>do</strong> que<br />

por uma consciência espontânea de sua “interioridade”. Doutro mo<strong>do</strong>, recepcionan<strong>do</strong><br />

outra perspectiva sobre sua forma de sedimentação, Stuart Hall (2003) lembra os<br />

resulta<strong>do</strong>s produzi<strong>do</strong>s pela diáspora de nacionais exila<strong>do</strong>s de sua comunidade, e<br />

como isso reforça estigmas de representação identitária pela imersão em outros<br />

5


egimes culturais – algo que se poderá ver bastante aplica<strong>do</strong> no perío<strong>do</strong> da repressão<br />

franquista, e na maneira como isso repercutiu entre os intelectuais catalães<br />

expatria<strong>do</strong>s que se viam por isso ainda mais comprometi<strong>do</strong>s com a causa que<br />

defendiam; este perío<strong>do</strong>, assinaladamente a primeira década <strong>do</strong> exílio (1939-1950), foi<br />

o momento mais intenso <strong>do</strong> catalanismo intelectual desde sua marcada existência no<br />

século XIX. Sob estas inserções e à vista da fratura epistemológica <strong>do</strong>s tradicionais<br />

estu<strong>do</strong>s culturais pela urdidura pós-moderna, é apropria<strong>do</strong> salientar, no<br />

acompanhamento <strong>do</strong> julgamento de García Canclini (2008, p. XXIII), que se faz<br />

necessário um deslocamento da identidade para a heterogeneidade e a hibridação<br />

interculturais como objeto de análise mais apropria<strong>do</strong> na contemporaneidade<br />

globalizante.<br />

Estas são, portanto, as questões de que parto para aproximar a descrição à<br />

análise de uma intelectualidade diretamente integrada aos pressupostos fundacionais<br />

<strong>do</strong> catalanisme polític, desde o século XIX até maior parte <strong>do</strong> XX, quan<strong>do</strong> a montagem<br />

de um <strong>discurso</strong> histórico, jurídico e linguístico anda aferrada à preocupação de se<br />

institucionalizar uma cultura identitária soberana.<br />

2. Mitos e emblemas culturais: o imaginário da intelectualidade catalanista<br />

Não é de se duvidar hoje que os intelectuais formaram um grupo privilegia<strong>do</strong><br />

nas sociedades ocidentais modernas, e que o lastro de suas intervenções sempre<br />

provou ter um alcance muito para além da inofensiva divagação teorética, ora<br />

provocan<strong>do</strong> ora fornecen<strong>do</strong> bases retóricas bastantes para programas reformistas<br />

cujos resulta<strong>do</strong>s são claramente avalia<strong>do</strong>s por qualquer crítica que se pretenda ser<br />

com isto cuida<strong>do</strong>sa. No caso de uma identificação tão complexa como a instaurada<br />

pelo catalanisme polític, esse papel merece ser avalia<strong>do</strong> com acuro, para que de<br />

alguma maneira se possa medir o ajuste entre motivações políticas e identitárias,<br />

manten<strong>do</strong> em vista que também esses intelectuais sofreram passivamente o processo<br />

de apreensão imaginária que traz à comunhão social seus agentes comunitários. Para<br />

isto, esta seção procura expor, com brevidade talvez imprópria, os marcos gerais<br />

desse universo particular.<br />

6


Dito isto, passo à seguinte análise.<br />

A mobilização <strong>do</strong>s setores intelectuais catalanistas, embora marcada pela<br />

polivalência de seus campos de atuação, concentrou-se em três frentes de<br />

problematização ideológica principais, quais seriam: a pesquisa linguística (como<br />

afirmação cultural mais concreta), a jurisprudencial (cuja prospecção <strong>do</strong>gmática era<br />

uma forte retaliação aos projetos de uniformização jurídica à castelhana) e a<br />

investigação histórica, que além de amarrar aquelas duas, fornecia o mote à<br />

territorialização <strong>do</strong> ideário catalanista e o numeroso cabedal de emblemas míticos que<br />

lhe guarneceu tão bem. Com um rápi<strong>do</strong> percurso, procuro explorá-las melhor.<br />

2.1. o idioma catalão<br />

No que concerne à língua nacional, depois de sofrer severa repressão no<br />

perío<strong>do</strong> franquista, a Catalunha recuperou a liberdade sobre a riqueza de seu<br />

patrimônio linguístico, e novamente veremos um trabalho de resgate, que já fora<br />

bastante opera<strong>do</strong> no século XIX (durante a literariamente prolífica Renaixença), ir se<br />

tornan<strong>do</strong> verdadeiro estandarte da causa identitária (SKERRET, 2007). Se por um la<strong>do</strong><br />

é a língua que concede a senha da identidade cultural, autêntica força constitutiva de<br />

seus símbolos comunitários, ela acaba por ser manuseada como critério modela<strong>do</strong>r de<br />

diferenças entre o eu e o outro.<br />

Em nome de sua demarcação, estu<strong>do</strong>s de ordem filológica instilaram reconstruir<br />

registros que indicassem a antiguidade <strong>do</strong> idioma e sua autonomia à vista da mera<br />

posição “dialetal” na hierarquia das línguas hispânicas modernas.<br />

Um nome certamente valioso a esse câmbio foi o de Pompeu Fabra (1868-<br />

1948), sistematiza<strong>do</strong>r de uma gramática catalã, cuja atuação política não foi pouco<br />

relevante para as fileiras <strong>do</strong> catalanismo, converten<strong>do</strong>-se em ator destaca<strong>do</strong> nos anos<br />

iniciais <strong>do</strong> exílio de intelectuais catalães que fugiram <strong>do</strong> franquismo recém-instala<strong>do</strong>.<br />

Desta forma, como membro <strong>do</strong> Consell Nacional cria<strong>do</strong> por Lluís Companys em 1940<br />

na França, Fabra pertenceu ao conselho editorial de <strong>do</strong>is periódicos, a Revista de<br />

Catalunya e El poble català, onde promoveu sua atividade de divulgação e suas<br />

pesquisas sobre a uniformidade <strong>do</strong> idioma (LLOMBART, 2008, p. 8). Para além de se<br />

conquistar a singularidade da língua, ele estava comprometi<strong>do</strong> com a montagem de<br />

uma tradição cultural de bases fortemente históricas.<br />

7


Para dar força a isso, a busca corrente de uma precedência baixo-medieval foi<br />

um escopo natural desses estudiosos. Apenas para nomear um <strong>do</strong>s principais, há o<br />

trabalho neste senti<strong>do</strong> de Joan Martí i Castell sobre os Usatges 3<br />

, um código jurídico<br />

compila<strong>do</strong> pelos condes de Barcelona nos séculos XII-XIII e considera<strong>do</strong> o maior<br />

lega<strong>do</strong> <strong>do</strong> direito local catalão ao longo <strong>do</strong> medievo ibérico. O levantamento de Martí i<br />

Castell procura exatamente assentar os fundamentos linguísticos <strong>do</strong> idioma, embora<br />

sem fazer disso um percurso ingênuo de purificação, reconhecen<strong>do</strong> os muitos débitos<br />

deste para com outras culturas próximas, bem como sua recorrente hibridação entre<br />

grupos linguísticos internos. Ainda hoje, a questão da formação da língua permanece<br />

prioritária sobre os demais vínculos da comunidade, e é em razão disso que seu<br />

<strong>discurso</strong> prossegue próclive, seja como forma a garantir a “solidez” identitária seja<br />

como barreira aos grupos estranhos que passem a ameaçá-la de dentro – eis a<br />

ameaça contaminatória <strong>do</strong> imigrante, espanhol ou não espanhol, sobre a pureza de<br />

um idioma recém encontra<strong>do</strong>, a ameaça antes de tu<strong>do</strong> pela hibridação.<br />

2.2. O <strong>discurso</strong> jurídico como fornece<strong>do</strong>r de identidade<br />

No tocante aos marcos jurídicos, há três episódios ao longo da moderna história<br />

<strong>do</strong> povo catalão que merecem atenção por sua condição especialmente traumática ao<br />

sentimento autonomista de seus naturais; estes seriam, nomeadamente, (1) o Decreto<br />

de Nova Planta, de 1714, que, num contexto de supressão com a instalação da<br />

dinastia bourbônica, fixou uma hierarquia normativa no Reino encabeçada pelas<br />

recolhas legislativas castelhanas de Felipe III, de 1599, deslocan<strong>do</strong> com isso o vasto<br />

corpo jurídico catalão a um plano de aplicabilidade subsidiária. O Decreto significou<br />

para os venci<strong>do</strong>s catalães um ato de frontal desrespeito às liberdades territoriais e aos<br />

seus direitos históricos invoca<strong>do</strong>s e manti<strong>do</strong>s desde que o Principa<strong>do</strong> da Catalunha<br />

passou para mãos de uma dinastia castelhana, cuja supremacia de suas constituições<br />

locais era reconhecida pelo Compromisso de Caspe, de 1412, tornan<strong>do</strong>-se agora<br />

limitadas pela centralização irracional da maquina burocrática e judiciária castelhana.<br />

Isto pode suscitar outras facetas da autonomia jurídica <strong>do</strong> Principa<strong>do</strong>, como a que lhe<br />

era conferida pelos canonistas eclesiásticos <strong>do</strong> século XVII, excluin<strong>do</strong> <strong>do</strong> conjunto<br />

3<br />

MARTÍN I CASTELL, Joan. Estudi linguistic dels “Usatges de Barcelona”. El codi al mitjan segle XII.<br />

Barcelona: Curial Ediciones Catalanes, 2002.<br />

8


global <strong>do</strong> Regnorum Hispaniae a parte <strong>do</strong> Principatus Cathaloniae (CLAVERO, 1989,<br />

pp.102-115), tornan<strong>do</strong>-o província eclesiástica além <strong>do</strong>s reinos <strong>do</strong> monarca espanhol,<br />

que receberia por isto discriminada da titulação de Rex Catholicus a de Princeps<br />

Cathaloniae et Comes Barchinonae. Esta condição anômala leva à pleito a própria<br />

significação jurídica de Hispaniae como integração paritária de ordens locais 4<br />

, vin<strong>do</strong> a<br />

semear um debate posterior sobre a legitimidade <strong>do</strong> mayorasgo de Castela e a<br />

supremacia de seus regimentos à totalidade da Coroa.<br />

Posteriormente, a ecoar a agressão de 1714, tramitar-se-ia o (2) Projeto de<br />

Código Civil espanhol de 1851. Segun<strong>do</strong> uma onda de codificações de direito priva<strong>do</strong><br />

que grassava por todas as unidades nacionais européias – cujas hastes vão <strong>do</strong> Código<br />

Napoleão de 1804 ao famoso rebento <strong>do</strong>s pandectistas germânicos de 1900, o BGB<br />

(Bürgerliches Gesetzbuch) –, também em Espanha o entusiasmo pela sistematização<br />

<strong>do</strong> direito civil produziu seus frutos. Mais uma vez, no entanto, a tendência à<br />

castelhanização <strong>do</strong> direito espanhol serviu de coman<strong>do</strong> para aquilo que se pretendia<br />

como harmonização <strong>do</strong>s conteú<strong>do</strong>s legalistas locais em nome da centralização de<br />

estatutos jurídicos de to<strong>do</strong> o Reino. Neste perío<strong>do</strong>, a reação de intelectuais,<br />

naturalmente compostos de juristas, foi pronta em rechaçar as violações aos direitos<br />

5<br />

territoriais catalães . O mais notório deles foi Estanislao Reynals i Rabassa, cuja<br />

produção <strong>do</strong>utrinária atacava os desatinos <strong>do</strong> Projeto, avalizan<strong>do</strong> “la noció de família i<br />

la de sistema successori catalans, fent especial referència a la llegítima, el seu<br />

fonament i els precedentes històrics a Catalunya” (ARNAU RAVENTÓS, 2004, p. 86).<br />

A crítica mais severa de Reynals i Rabassa deve-se às consequências imediatas que<br />

as alterações <strong>do</strong> novo código trariam, isto é, a transformação radical <strong>do</strong> sistema<br />

sucessorial catalão e com isso, a imposição de gravosas deturpações no equilíbrio<br />

4 Desta feita, recupera Bartolomé Clavero na citação de um teórico da época, Giambattista de Lucca,<br />

em seu trata<strong>do</strong> Teatro da verdade e da justiça: “por cuanto que sea <strong>do</strong>mínio uni<strong>do</strong> a la Corona de<br />

Aragón igualitariamente, de forma principal y no accesoria, y esté también unida su Corona a la outra de<br />

Castilla y León igualmente de forma paritaria y principal, por lo que en consecuencia Cataluña vive con<br />

sus leys, privilegios e instituciones independientemente de los otros reinos y principa<strong>do</strong>s de la misma<br />

Hispania” (CLAVERO, p. 109).<br />

5 Muito embora, neste caso, cumpre esclarecer a dimensão moderada <strong>do</strong> movimento produzi<strong>do</strong> contra a<br />

codificação, restringin<strong>do</strong> ao que nela havia de atentatória às liberdades locais pelo seu caráter<br />

uniformizante, impon<strong>do</strong> pela via de um “ordenamento único” a derrogação de particularismos jurídicos<br />

divergentes <strong>do</strong> corpo civilista castelhano, ainda que muitos desses particularismos fossem lega<strong>do</strong>s por<br />

regimes forais históricos e sua derrogação impusesse sérios prejuízos à ordem social catalã. Era em<br />

defesa dessa ordem, a qual juristas catalães queriam ver conservada, que se opunham suas críticas<br />

<strong>do</strong>gmáticas mais insistentes.<br />

9


econômico <strong>do</strong> Principa<strong>do</strong> 6<br />

, cuja manutenção dependia antes de mais da continuidade<br />

de seu regime original, sen<strong>do</strong> este, afinal de contas, o mais apropria<strong>do</strong> a reger a<br />

realidade social da região.<br />

Esta reação, ainda que marcadamente moderada, encarta uma ocasião<br />

decisiva na afirmação identitária, pois corresponde, a partir de metade <strong>do</strong> século XIX,<br />

ao auge <strong>do</strong> movimento então denomina<strong>do</strong> La Renaixença Català. Embora este seja<br />

mais popular por suas inovações em termos literários, também foi pródigo no âmbito<br />

das ciências jurídicas, produzin<strong>do</strong> relevante inspiração sobre a compreensão das<br />

fontes de direito autóctones, principalmente sobre o direito histórico, levan<strong>do</strong> um ramo<br />

dessa área de estu<strong>do</strong> – a chamada história das instituições, ainda sob claro monopólio<br />

de juristas em toda a Espanha<br />

7<br />

6 A afronta mais nítida ao direito autóctone vinha pela abolição <strong>do</strong> instituto jurídico da enfiteuse, então<br />

em voga nas relações pactuais catalãs, na substituição da llegítima curta pela llegítima llarga, cujas<br />

consequências seriam a fragmentação da tradicional propriedade da terra e a dissolução das bases<br />

agrícolas familiares consideradas vitais ao desenvolvimento econômico <strong>do</strong> território, e por fim, na<br />

abolição da rebassa morta, que alterava os termos de vigência e de duração de contratos no setor<br />

agrário. Cf. BARCELLS, Albert. La cuestión agrária em Catalunya de 1860 a 1936: el problema<br />

rabassaire. Barcelona: Universitat de Barcelona, 1967, pp.18-22.<br />

– a uma extraordinária expansão de seus objetos de<br />

análise. Foram assim nomes como os de Manuel Duran i Bas, um <strong>do</strong>s próceres da<br />

Escola Jurídica Catalana, Manuel Milà i Fontanals, filólogo e destaca<strong>do</strong> romanista, e<br />

Ramon Martí d’Eixalà e <strong>do</strong> próprio Reynals i Rabassa, que integraram os altos meios<br />

acadêmicos jurídicos da Universidade de Barcelona e que se empenharam<br />

afirmativamente na <strong>institucionalização</strong> de um patrimônio jurisprudencial autônomo.<br />

Este empenho terá por certo seus reflexos diretos no assentamento de um território<br />

assim construí<strong>do</strong>, tanto pela ficção legalista como pela projeção na tradição<br />

institucional fornecida pelo conhecimento <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> histórico. Portanto, o direito<br />

histórico catalão é, neste caso, um <strong>do</strong>s componentes de maior ressonância no espaço<br />

das agitações que deram forma à reivindicação de autonomia, ainda embrionária no<br />

século XIX, sen<strong>do</strong> dessa maneira também um objeto de contenda política para os<br />

foros da academia em seu ambiente específico.<br />

7 “Es posible que la hegemonía del historia<strong>do</strong>r del Derecho en el campo de las instituciones haya<br />

caduca<strong>do</strong>, y que retorne al historia<strong>do</strong>r general. Sin embargo, debe tenerse presente que buen número<br />

de instituciones son de carácter jurídico, y que, respecto a las demás, el Derecho proporciona un rigor<br />

útil al pensamiento, especialmente por su aspiracion al sistema.” LALINDE ABADÍA, Jesús. “Las<br />

instituciones catalanas en el siglo XIV (panorama historiográfico)” in: Anuario de Estudios Medievales,<br />

vol. 7, Madrid, 1970-71, pp. 623-32.<br />

10


Por fim, outro golpe traumático sobre as liberdades civis e o orgulho nacional<br />

catalão foi da<strong>do</strong>, como é fácil supor, durante a tomada <strong>do</strong> generalíssimo Franco.<br />

Dessarte, a (3) suspensão absoluta <strong>do</strong>s últimos e residuais privilégios locais, bem<br />

como <strong>do</strong> reconhecimento ao patrimônio linguístico catalão, produziu uma enérgica<br />

resposta anti-ditatorial, manejada contu<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong>s focos resistentes exila<strong>do</strong>s. Com<br />

a instauração unipartidarista de 1937, sob o Nuevo Esta<strong>do</strong> Español, até o fim <strong>do</strong><br />

regime, em 1975, a nação catalã se verá privada de voz legítima e de prerrogativas<br />

estatutárias próprias. A questão é de primeira ordem de importância, pois ainda hoje<br />

se faz ressoar entre os partidários de um catalanismo radical, que se apóia nas feridas<br />

recentes para manter viva a chama de suas reivindicações. Quero, entretanto, oferecer<br />

um detalhamento melhor sobre este episódio logo adiante, ao atulhar considerações<br />

no plano <strong>do</strong> <strong>discurso</strong> histórico.<br />

2.3. O território e a identidade pela forja de marcos históricos<br />

Quanto ao aspecto histórico, fazem-se necessárias observações mais<br />

meticulosas. Da<strong>do</strong> intrínseco ao processo construtor de identidades, a presença de<br />

mitos funda<strong>do</strong>res atua na condensação das formas simbólicas coletivas e no resgate<br />

das memórias históricas que colaboram na sua formação. Assim, a presença de<br />

emblemas nacionais é um instrumento já recorrente para a intelectualidade catalanista<br />

<strong>do</strong> século XIX, e vem perpassan<strong>do</strong>, por ocasiões e motivações variadas, a releitura<br />

desses postos míticos <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> como elemento aliena<strong>do</strong>r de um espaço simbólico<br />

nacional. Desses postos, vê-se o passa<strong>do</strong> medieval, cuja expansão territorial durante a<br />

Reconquista cristã (sobretu<strong>do</strong>, nos séculos XI-XII) definiria seus termos geográficos<br />

aproxima<strong>do</strong>s de seus limites atuais. Recorren<strong>do</strong> a um contexto primitivo de formação –<br />

quan<strong>do</strong> o território da Catalunha era integrante de uma monarquia “confederada”,<br />

governada pelo soberano da Coroa de Aragão – é que essa historiografia engajada<br />

desencavara o senti<strong>do</strong> originário das instituições e <strong>do</strong> padrão cultural catalão, fazen<strong>do</strong><br />

de sua história um conveniente suporte ideológico à causa autonomista<br />

incansavelmente discutida. A pertinência desse levantamento concernente à história<br />

das instituições é capciosa, pois tanto pode fornecer as bases de uma cultura<br />

gradualmente acumulada quanto o intransigente emblema da autonomia, ao<br />

demonstrar desde o passa<strong>do</strong> medieval as concorrências e receptividades de uma<br />

11


unidade política fragmentária, e que apenas se manteve unida ao organismo<br />

monárquico espanhol devi<strong>do</strong> a apoios e cessões estratégicos que estabilizavam sua<br />

dinâmica de relações constituintes.<br />

É de se notar que, no século XIX, foram aqueles agentes que relatam a<br />

sequência <strong>do</strong>s processos históricos de seus povos os mesmos indivíduos que<br />

pelejaram pela constituição de um pertencimento nacional. Na Catalunha oitocentista<br />

isto é geralmente váli<strong>do</strong>, pois, tal como anota Flocel Sabaté, “los mismos personajes<br />

que escriben sobre el passa<strong>do</strong> del país a menu<strong>do</strong> están comprometi<strong>do</strong>s con los retos<br />

del presente, y con facilidad mezclan las argumentaciones” (SABATÉ, 2007, p. 5). Há,<br />

pois, um esforço comanda<strong>do</strong> por aqueles em outorgar desde o medievo <strong>do</strong>s séculos IX<br />

e X um cabedal de instituições civis que condensariam a aparência de sua sociedade<br />

contemporânea. Com tanto, a criação de modelos que enlevariam o decréscimo das<br />

forças feudais baroniais em razão <strong>do</strong> progresso <strong>do</strong>s núcleos urbanos comanda<strong>do</strong>s por<br />

uma burguesia aliada <strong>do</strong> cetro real, conformam nisto a precocidade de um esta<strong>do</strong><br />

centraliza<strong>do</strong> com base nas “liberdades cristalizadas en específicas instituciones<br />

políticas y municipales y que, al conseguirlo, fundamentan y consolidan la identidad del<br />

país caracteriza<strong>do</strong>” (ibidem, p. 7).<br />

A saliência conferida ao seu corpus institucional marca, ainda, na preferência<br />

temática desses medievalistas <strong>do</strong> XIX, um afastamento <strong>do</strong> próprio feudalismo em<br />

câmbio de demonstrar o aglutinamento das instâncias coletivas libertas da “opressão<br />

tradicional” <strong>do</strong> senhor feudal:<br />

Sien<strong>do</strong> los señores feudales los responsables de la opresión de la alianza del conde<br />

con los estratos urbanos a la vez que se aprovecha la expansión fronteriza,<br />

prolongan<strong>do</strong> así la idealización de la burguesía en la interpretación de los destinos del<br />

país, participan<strong>do</strong> de las coetáneas visiones de las fronteras como tierras de libertad y<br />

contraponien<strong>do</strong> feudalismo con democracia […] (ibidem, p. 12).<br />

A tramitação anacrônica entre feudalismo (com to<strong>do</strong> o rol de franqueamentos<br />

institucionais advin<strong>do</strong> de sua experiência histórica) e o clamor de resgate cultural<br />

localista, devolven<strong>do</strong> à Catalunha a sua noção originária de païs, repercute nos<br />

autores <strong>do</strong> século XIX até boa parte <strong>do</strong> XX que vêem nisto uma razão para<br />

fundamentar a pujança da sociedade medieval graças ao protagonismo <strong>do</strong>s<br />

municípios, sob direção burguesa, em se sustentarem como os “únicos depositarios de<br />

la identidad nacional” (SABATÉ, 2000-2002, p. 12). Isto é facilmente en<strong>do</strong>ssa<strong>do</strong> por<br />

12


caracterizações amáveis ao espírito popular da época, da boa vontade reinante graças<br />

às liberdades citadinas germinadas ao largo das terras <strong>do</strong> Principa<strong>do</strong>. Há um registro<br />

dessa benevolência, por exemplo, em Ferran Valls i Taberner, nome bastante<br />

reconheci<strong>do</strong> entre os medievalistas catalães, que colore o século XIV como se tratasse<br />

de uma época harmoniosa: “En el segle XIV el poble català, en general, era lliure i<br />

constituïa una característica organització democràtica. Sobretot en les ciutats, on la<br />

llibertat municipal havia fet evolucionar més rapidament la societat, hi havia una<br />

relativa anivellació social” (VALLS-TABERNER, 1923, p. 139).<br />

Esta questão, entre outras, cujo detalhamento não pode ser arrola<strong>do</strong> agora,<br />

esclarece a dimensão projetada desde nomes respeitáveis da intelectualidade catalã<br />

(a qual não vingaríamos de to<strong>do</strong> sem mencionar os de Antoni de Bonfarull i Brocá,<br />

Valentí Almirall, Francesc Pi i Margall, Victor Balaguer, Josep Narcís Roca i Farreras<br />

entre demais representantes <strong>do</strong>s famosos “Jocs Florals” oitocentistas) que punham<br />

energias na ilustração de um projeto nacionalizante concreto. Entenden<strong>do</strong> neste<br />

“nacionalismo” algo diferente <strong>do</strong>s nacionalismos dissemina<strong>do</strong>s pelo continente<br />

europeu desde a Primeira Grande Guerra. O nacionalismo vindica<strong>do</strong> por estes<br />

intelectuais era muito mais um descolamento <strong>do</strong>s assédios imperialistas de Castela <strong>do</strong><br />

que uma ação endógena contra a adesão <strong>do</strong>s demais potenta<strong>do</strong>s que integralizavam a<br />

coroa ibérica.<br />

Com efeito, durante a crise da metade <strong>do</strong> XIX (1844-1868), os movimentos<br />

enseja<strong>do</strong>s por políticos catalães contra a rainha Isabel II, e depois, convenientemente<br />

interpreta<strong>do</strong>s como inaugura<strong>do</strong>res <strong>do</strong> espírito nacionalista catalão 8<br />

, foram, antes de<br />

mais, protestos de matiz anti-bourbônica de setores republicanos catalães, cuja filiação<br />

ideológica aproximava-os mais da francofilia libertária da Révolution, refletin<strong>do</strong> em<br />

paralelo a rejeição pela mesma dinastia (MARTÍNEZ FIOL, 1997, p. 344). Cerram-se<br />

fileiras de intelectuais, então com notória atuação política, a culpabilizar o despotismo<br />

de Castela por to<strong>do</strong>s os infortúnios que atingiram o Principa<strong>do</strong> desde que a dinastia<br />

autóctone <strong>do</strong> Reis-Condes de Barcelona (1137-1412) foi substituída por uma outra, a<br />

castelhana Trastâmara, sobre o trono aragonês. Recriava-se, pois, o antagonismo<br />

histórico entre os reinos de Castela e de Aragão, em que se louvava a primitiva<br />

8 Ao que se inclui uma série de recuperações históricas, como o pluralismo medieval e seu projeta<strong>do</strong><br />

“pactismo político” catalano-aragonês, a “Guerra dels Sega<strong>do</strong>rs”, a Guerra de Sucessão, o centralismo<br />

de Felipe V de Bourbon, e, em suma, o próprio 11 de setembro de 1714.<br />

13


condição de autogoverno, falan<strong>do</strong> em termos de “pactismo” político-jurídico, que<br />

permitia ao Principa<strong>do</strong> gozar livre ao longo de to<strong>do</strong> o passa<strong>do</strong> medieval.<br />

Desta feita, seguem-se vários capítulos de um relacionamento ambivalente com<br />

a crescente centralidade castelhana, na amálgama de nacionalidades que<br />

estabeleceria a Casa de Espanha como universalidade convergente. É notável, por<br />

isso, as episódicas guerras civis, como a que foi suprimida em 11 de setembro de<br />

1714 pelos primeiros Bourbons, em suas demonstrações de resistência ante as<br />

agressões <strong>do</strong> autoritarismo e das consequências <strong>do</strong> Decreto de Nova Planta. Neste<br />

momento, dá-se por certo o perío<strong>do</strong> mais dramático para a memória institucional<br />

catalã, pois sua carga de convergência é tal para a encenação <strong>do</strong> imaginário, que<br />

como o faz notar Maria Llombart, o “11 de septiembre era, y aún hoy sigue sién<strong>do</strong>lo,<br />

una de las conmemoraciones más destacadas en Cataluña, al contar además con la<br />

aprobación de las destituitas familias del catalanismo. Recordemos que actualmente<br />

es el Día Nacional de Cataluña” (LLOMBART, 2008, p. 2).<br />

Outro momento invocatório se dá pela derrota civil de 1939, aludida como<br />

continuação de 1714, cujo paralelo é construí<strong>do</strong> como a perfeita síntese da<br />

fragmentação política e <strong>do</strong> tenso mosaico cultural espanhol. Para os propagandistas<br />

catalães esta é a melhor “ocasión para proyectar al exterior la imagen de una<br />

personalidade propia y marcar las diferencias frente al modelo español-castellano, no<br />

siempre, - pero a vias si – oponién<strong>do</strong>se a la idea de España” (ibidem). Durante a<br />

ditadura franquista, a pressão aos meios acadêmicos obrigou muitos intelectuais<br />

catalães seguirem para o exílio. Para a maior parte deles a França foi o destino<br />

imediato, o que era em parte favoreci<strong>do</strong> pela aparente simpatia que a intelectualidade<br />

francesa sempre devotou aos particularismos nacionalistas espanhóis, mas também, e<br />

principalmente, pela solidariedade entre occitânicos e catalães por suas<br />

“proximidades” culturais e um passa<strong>do</strong> histórico convenientemente resgata<strong>do</strong> aos<br />

alvores <strong>do</strong> império carolíngio. Uma vez instala<strong>do</strong>s, esse intelectuais foram se<br />

organizan<strong>do</strong> em pequenos centros de resistência anti-franquista, produzin<strong>do</strong> num<br />

primeiro momento extenso material de divulgação, fundan<strong>do</strong>-se jornais e revistas em<br />

língua catalã, e até mesmo comitês destina<strong>do</strong>s a preparar eventos comemorativos <strong>do</strong>s<br />

símbolos e personalidades então nacionaliza<strong>do</strong>s. Nesta fase, a “atuação acadêmica”<br />

hospedada por universidades francesas, transfere seu vigor para um tipo mais urgente<br />

14


de divulgação panfletária. Desse perío<strong>do</strong>, marca-se sobremaneiramente as<br />

comemorações de 1945 para o centenário <strong>do</strong> nascimento <strong>do</strong> poeta Jacint Verdaguer,<br />

(outra referência importante para a Renaixença), pois a força simbólica exercida em<br />

torno de seu nome era perfeita para os objetivos <strong>do</strong>s exila<strong>do</strong>s naquele momento. Por<br />

último, ainda sob o exílio, novos mitos foram forja<strong>do</strong>s sob os termos daquilo que,<br />

sublinhou Llombart Huesca, viriam compor seus emblemas culturais-intelectuais. Eles<br />

foram representa<strong>do</strong>s em sua maior força pelas trajetórias individuais de Pau Casals e<br />

de Pompeu Fabra, que por suas qualidades artísticas e sua projeção internacional<br />

dada a condição de exila<strong>do</strong>s serviram de estandartes à “idea de la universalidad de la<br />

cultura catalana” (ibidem, p.7). A referencialidade da literatura, da música e,<br />

principalmente, das artes plásticas produzidas por artistas catalães elevou a causa que<br />

defendiam a um patamar de reconhecimento internacional, fazen<strong>do</strong> <strong>do</strong> movimento<br />

catalanista uma voz coincidente a de todas as outras minorias expatriadas e oprimidas<br />

pelos nacionalismos vence<strong>do</strong>res.<br />

Aos poucos, com a duração <strong>do</strong> exílio, o movimento arrefeceu-se, embora, sem<br />

jamais extinguir-se por completo. Era, afinal, penoso manter intactos um engajamento<br />

político forte e um governo destituí<strong>do</strong>, como acontecera com a Generalitat neste<br />

perío<strong>do</strong> à medida que o regime franquista também conseguia se estabilizar um pouco<br />

melhor diante <strong>do</strong>s obstáculos internos. Contu<strong>do</strong>, com a reativação democrática de<br />

1975, a viragem que permitiu um retorno ao Estatuto de Autonomia – agora<br />

consideravelmente amplia<strong>do</strong> desde sua versão de 1935 – abriu espaço tanto aos<br />

parti<strong>do</strong>s modera<strong>do</strong>s quanto aos esquerdistas radicais, além de, naturalmente, propiciar<br />

a expansão de novas instituições de caráter autonomista. Sobre o ambiente intelectual<br />

acadêmico, destaca-se a fundação da Universidade Autônoma de Barcelona, em<br />

1968, com uma razão política definidamente regionalista.<br />

Presentemente, portanto, averigua-se uma inversão abrupta <strong>do</strong>s pólos de<br />

contrição política, onde a causa identitária serve agora de mote para políticas locais<br />

intransigentes. Em contrapartida, ainda que permaneçam setores até mesmo<br />

institucionalmente fortes da intelectualidade catalanista, proliferaram também âmbitos<br />

de investigação científica frontalmente conscientes da herança contenciosa de pelo<br />

menos um século atrás. Este é um trabalho em pleno trânsito e que tem muito pela<br />

frente, principalmente no respeito de se recriar criticamente o manejo histórico de seus<br />

15


postos tradicionais de identificação, trazen<strong>do</strong> à lume uma relativização<br />

desmistifica<strong>do</strong>ra da extensão de personagens heróicos ou de processos<br />

historicamente opressivos e mesmo também das vantagens tantas vezes defendidas<br />

pelo refinamento de suas instituições culturais, esteios próprios à composição <strong>do</strong><br />

<strong>discurso</strong> identitário catalanista hoje em vias de atualização.<br />

3. Algumas conclusões e aplicações conceituais<br />

Os episódios que procurei elencar servem mais para a exemplificação que à<br />

descrição linear e completa da constituição <strong>do</strong> catalanismo político contemporâneo.<br />

Com isto, esperei colher elementos de montagem de uma perspectiva ideologicamente<br />

comprometida entre os intelectuais que atuaram na elaboração histórica, política e<br />

linguística de uma consciência identitária projetada. Se, de fato, a história <strong>do</strong> povo<br />

catalão é suficiente a explicar os contornos gerais de uma realidade cultural própria,<br />

ela não pode ser limitada à composição de um entorno cultural fecha<strong>do</strong> ou estável,<br />

que venha negar suas interposições “impuras” no estabelecimento de uma tradição<br />

fixa; e isto, simplesmente, porque não é possível a existência de nenhuma “cultura<br />

própria” nos termos assim invoca<strong>do</strong>s.<br />

Resta, portanto, um último limite a postular: diante deste processo de<br />

composições imaginadas, o intelectual se move com mais ou menos compressão<br />

diante <strong>do</strong>s fenômenos de purificação enseja<strong>do</strong>s pelo espaço imaginário?<br />

O primeiro desafio a esta questão é, decerto, a definição estrita, não <strong>do</strong>s efeitos<br />

ideológicos ou políticos da aptidão intelectual, mas, na verdade, da participação ativa<br />

<strong>do</strong> <strong>discurso</strong> maneja<strong>do</strong> pelo intérprete social no ato de formação criativa <strong>do</strong>s emblemas<br />

culturais. O que dito de outro mo<strong>do</strong>, significa medir a extensão concreta da ação<br />

intelectual na constituição <strong>do</strong> universo simbólico das identidades. Há uma crença neste<br />

contorno, de fato, mas eventualmente se negligencia o entendimento de que este<br />

alcance é oscilante, e não homogêneo, sobre os estágios de transformação cultural, e<br />

daí a natureza <strong>do</strong>s <strong>discurso</strong>s então envolvi<strong>do</strong>s serem mais ou menos comprometi<strong>do</strong>s<br />

com um senti<strong>do</strong> de purificação absoluta. É no ato de figuração que o<br />

intelectual/intérprete participa desse espaço inconsciente, absorvente de teorias e<br />

16


estratégias não meramente descritivas, mas fortemente vocacionadas a exibir sua<br />

interferência na integração <strong>do</strong> conjunto imaginário da comunidade.<br />

Assim, subjaz a pergunta tão antiga quanto pertinente: existe um <strong>discurso</strong><br />

científico isento <strong>do</strong> político (mas de um político medi<strong>do</strong> pelos níveis de interação com o<br />

<strong>discurso</strong> social comum)?<br />

Em um artigo publica<strong>do</strong> em 1985, o professor José Mattoso, catedrático de<br />

história medieval portuguesa da Universidade Nova de Lisboa, fez sua defesa daquilo<br />

que considera a “divergência entre o <strong>discurso</strong> científico e o <strong>discurso</strong> político” no<br />

tocante das esferas ideológicas das ciências sociais e <strong>do</strong>s valores patrióticos e<br />

nacionais (MATTOSO, 1997, p. 146). Ele acredita que, a despeito das apropriações da<br />

“história mítica” pela retórica oficial, o trabalho executa<strong>do</strong> pelos profissionais<br />

autoriza<strong>do</strong>s na emissão de uma história científica esteja, senão inteiramente a salvo,<br />

no mínimo guarda<strong>do</strong> pela isenção conceitual de seus termos meto<strong>do</strong>lógicos;<br />

assinalan<strong>do</strong> com isso o alheamento experimenta<strong>do</strong>, como conhece<strong>do</strong>r íntimo <strong>do</strong><br />

passa<strong>do</strong> longínquo sobre as circunstâncias ideológicas de seu tempo. Apesar da<br />

aparente ingenuidade desta posição, a diferenciação provocada pelo historia<strong>do</strong>r<br />

português está voltada à relação dicotômica <strong>do</strong>s <strong>discurso</strong>s acadêmico/jornalístico, e à<br />

frequente manipulação de uso político a que este último é acusa<strong>do</strong> de se submeter. No<br />

entanto, ela não deixa de passar livre de um conserva<strong>do</strong>rismo preocupante. Negar o<br />

poder <strong>do</strong> <strong>discurso</strong> e das conclusões fornecidas pelas ciências sociais é se esquecer<br />

<strong>do</strong>s graves perigos que ele enceta em sua produção. Tampouco, é de se acreditar na<br />

posição privilegiada <strong>do</strong> intelectual como participante de problemas e contingências<br />

históricas específicas. Contrariamente, contu<strong>do</strong>, discordarei daqueles que predicam a<br />

missão deliberada <strong>do</strong>s intelectuais como árbitros absolutos <strong>do</strong> manejo <strong>do</strong><br />

conhecimento histórico, cuja principal matriz denuncia<strong>do</strong>ra é aquela crítica marxista de<br />

filiação mais simplória, que reduz toda essa atividade à intenção de agentes sob<br />

serviço de uma elite econômica burguesa interessada na hegemonia de sua criação<br />

narrativa.<br />

Em outras palavras, o que é trazi<strong>do</strong> ao debate é justamente a participação de<br />

um grupo de indivíduos numa dinâmica basicamente global – a dinâmica das<br />

comunidades imaginadas. O itinerário <strong>do</strong>s grupos intelectuais, como o de qualquer<br />

outro, é preenchi<strong>do</strong> por relações de crenças e valores institucionais (como<br />

17


hierarquização, imaginário simbólico, centros de poder, etc.) perfeitamente cabíveis<br />

num tipo de formulação bourdieuniana. Por isso, menciono esse julgamento no que ele<br />

tem de exemplar sobre a constituição de uma tradição acadêmica, e argumento que a<br />

distinção rígida de uma dicotomia política/cultura não pode se sustentar<br />

extensivamente, vez que os da<strong>do</strong>s culturais da forma que se enunciam são incapazes<br />

de transcender uma forma política, imersa em corpo institucional. Por isso, também,<br />

abre-se espaço à leitura conceitual desde uma matriz de “diferenciação cultural” sobre<br />

os momentos de constituição dessa intelectualidade alia<strong>do</strong>s aos processos sociais que<br />

lhes inserem de mo<strong>do</strong>s particulares. Assim, pois, é que as instâncias de diferenciação<br />

serão as fiéis na balança da enunciação cultural.<br />

Por outro la<strong>do</strong>, então, o recurso aos processos de hibridação parece mais<br />

promissor a decifrar o complexo que encadeia ideologias identitárias/ciências sociais<br />

<strong>do</strong> que, por exemplo, a sociologia <strong>do</strong> conhecimento logrou explicar cada uma delas.<br />

Pois enquanto esta compartimenta o problema <strong>do</strong> contexto científico a um da<strong>do</strong><br />

entorno epistemológico, a descrição <strong>do</strong>s processos híbri<strong>do</strong>s faz melhor ao considerar a<br />

dupla hélice que se forma com a impureza atávica contida nas identidades e a auto-<br />

recriação das práticas imaginárias individuais e coletivas. E que, por sinal, permitem<br />

compreender a captação seletiva de gerações de intelectuais ao re<strong>do</strong>r de elementos<br />

culturais que são arranca<strong>do</strong>s de seus contextos essencialmente heterogêneos para<br />

servirem a um projeto de diferenciação homogênea, e que resulta nisto a que vim<br />

chaman<strong>do</strong> de práticas de purificação.<br />

O desafio imediato desse estágio <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s culturais é entender não mais a<br />

definitiva posição ou a crise <strong>do</strong>s postos identitários tradicionais, mas sim a sua<br />

mobilização permanente entre as “formas de situar-se em meio à heterogeneidade e<br />

entender como se produzem as hibridações” (GARCÍA, 2001, p. XXIV). É por isso útil<br />

considerar uma teoria da hibridação pontuada, prima facie, pelos “processos” que<br />

indiquem suas composições híbridas. Neste caso, tomar-se-á o itinerário não apenas<br />

<strong>do</strong> híbri<strong>do</strong>, mas sobretu<strong>do</strong> “<strong>do</strong> que não se deixa, ou não se quer ou não se pode ser<br />

hibrida<strong>do</strong>” (ibidem, p. XXVII), livran<strong>do</strong>-se o mais possível das perspectivas otimistas ou<br />

excessivamente favoráveis ao fator de fusão inscrito no dínamo da interculturalidade.<br />

São composições híbridas, portanto, os conjuntos intrinsecamente instáveis e móveis,<br />

cujo trânsito pode atuar, e geralmente atua, em um delica<strong>do</strong> nexo de ambiguidades.<br />

18


Daí que o questionamento elabora<strong>do</strong> por Bhabha sobre os conceitos de<br />

diversidade e diferenciação cultural apresenta uma oposição elementar na explicação<br />

fornecida sobre trânsitos identitários. Desta maneira ele aborda a diversidade cultural<br />

como a “representação de uma retórica radical da separação de culturas totalizadas<br />

que existem intocadas pela intertextualidade de seus locais históricos, protegidas da<br />

utopia de uma memória mítica de uma identidade coletiva única” (BHABHA, 2007, p.<br />

63). E na contraparte, o conceito de “diferença cultura” resulta, de ordinário, na<br />

percepção <strong>do</strong> elemento de duplicidade da autoridade cultural, em que<br />

a tentativa de <strong>do</strong>minar em nome de uma supremacia cultural que é ela mesma<br />

produzida apenas no momento da diferenciação. E é a própria autoridade da cultura<br />

como conhecimento da verdade referencial que está em questão no conceito e no<br />

momento da enunciação. O processo enunciativo introduz uma quebra no presente<br />

performativo da identificação cultural, uma quebra entre a exigência culturalista<br />

tradicional de um modelo, uma tradição, uma comunidade, um sistema estável de<br />

referência, e a negação necessária de certeza na articulação de novas exigências,<br />

significa<strong>do</strong>s e estratégias culturais no presente político como prática de <strong>do</strong>minação ou<br />

resistência. A luta se dá frequentemente entre o tempo e a narrativa historicistas,<br />

teleológicos ou míticos, <strong>do</strong> tradicionalismo [...] e o tempo deslizante, estrategicamente<br />

desloca<strong>do</strong>, da articulação de uma política histórica de negociação [...] (ibidem, p. 64,<br />

grifos <strong>do</strong> autor).<br />

O desmantelamento da crença nos sistemas sociais estáveis e unitários na<br />

composição da sua narrativa histórica inserta a questão da diferença como eixo<br />

depura<strong>do</strong>r de distorções. A identidade neste caso é delimitada tanto por dentro quanto<br />

por fora, mas percebida justamente nas instâncias fronteiriças em que uma e outra<br />

transitam. Ela se localiza nesta posição intermédia entre os núcleos de pureza então<br />

reivindica<strong>do</strong>s como signos irrevogáveis e legítimos.<br />

É essa relação de estranhamento, a brotar <strong>do</strong> entrincheiramento entre pólos<br />

institucionais diferentes, que produz o “momento da diferenciação” nas apreensões de<br />

sua extensão e de sua efetividade normativa. Ao recolher sua crítica, acompanho nele<br />

a averiguação de que “essa diferença no processo da linguagem é crucial para a<br />

produção <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> e que, ao mesmo tempo, assegura que o senti<strong>do</strong> nunca é<br />

simplesmente mimético e transparente” (ibidem, p. 65), mas sim reimagina<strong>do</strong> e<br />

parodia<strong>do</strong> a cada deslocamento de plano hermenêutico.<br />

A inserção disto ao caso da intelectualidade catalanista é apreendida pela<br />

representação <strong>do</strong>s emblemas projeta<strong>do</strong>s a confirmar uma unicidade e um<br />

19


pertencimento históricos sem par, depura<strong>do</strong>s, em seguida, pela averiguação de que<br />

parte deles são capazes de uma mediação com o exterior (como na aceitação de um<br />

projeto integraliza<strong>do</strong>r rumo à Hispaniae) e que parte deles, intransigentes a qualquer<br />

cessão de seus termos originais, continuarão a rechaçar tu<strong>do</strong> que tentar se intrometer<br />

em seu interior (como a integralização de uma comunidade ibérica toman<strong>do</strong> a<br />

castelhanização como centro e matriz cultural). Assim, por meio de uma escala de<br />

momentos <strong>do</strong> sentimento coletivo, revela-se a ordenação teleológica <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> como<br />

fundação histórica de um destino eminente e sem par no concerto <strong>do</strong>s povos<br />

europeus. Aqui, um excerto inflama<strong>do</strong> de um artigo de Pella i Forgas na revista La<br />

España Regional (1888, vol. 3, p. 665) que faz a perfeita síntese dessas emoções<br />

intelectuais já no século XIX:<br />

No en filosofías de la historia, aprendidas, como V. asegura en Francia, Inglaterra y<br />

Alemania, sino en nuestros propios sentimientos y en la conciencia de nuestra<br />

individualidad colectiva como catalanes […]. Unos, los más, acaso inadvertidamente<br />

[…] levantaron del olvi<strong>do</strong> los juegos florales, y otros enardeci<strong>do</strong>s por éstos, se metieron<br />

a revover archivos para reconstruir la historia catalana, la gloriosísima historia de la<br />

corona de Aragón. […] Así se expurgaba el idioma, se ordenaban las tradiciones,<br />

estudiábase las costumbres y se profundizaba nuestro derecho civil en que descansa<br />

toda la organización social del principa<strong>do</strong>. […] [El regionalismo no és] engendro del mal<br />

humor de las tierras de España, sino que se halla aclimata<strong>do</strong> como en otros pueblos,<br />

crece lozano en Cataluña, en su historia independiente y en su civilización<br />

característica. (Cita<strong>do</strong> por CREIXELL, 1991, p. 99)<br />

A tenacidade com que o <strong>discurso</strong> identitário-autonomista parece acumular suas<br />

conquistas leva à compartimentação de uma totalidade absurda de emblemas,<br />

convoca<strong>do</strong>s para guarnecer a herança monumental da nação e de seu destino<br />

histórico inconteste. Assim faz o Estatuto de Autonomia, de 1979, ao “recepcionar” 9<br />

nada menos que os Usatges de Barcelona <strong>do</strong> século XII, as Constitucions de<br />

Catalunya e os Costumes ou consuetudines locales, absorvi<strong>do</strong>s na história <strong>do</strong><br />

9 “Article 5. Els drets històrics. L'autogovern de Catalunya com a nació es fonamenta també en els<br />

drets històrics del poble català, en les seves institucions seculars i en la tradició jurídica catalana, que<br />

aquest Estatut incorpora i actualitza a l'empara de l'article 2, la disposició transitòria segona i altres<br />

disposicions de la Constitució, preceptes dels quals deriva el reconeixement d'una posició singular de la<br />

Generalitat amb relació al dret civil, la llengua, l'educació, la cultura i el sistema institucional en què<br />

s'organitza la Generalitat. Disposició addicional primera. Reconeixement i actualització dels drets<br />

històrics. L'acceptació del règim d'autonomia que s'estableix en aquest Estatut no implica la renúncia<br />

del poble català als drets que, com a tal, li corresponguin en virtut de la seva història, que poden ésser<br />

actualitzats d'acord amb el que estableix la disposició addicional primera de la Constitució.” Estatut<br />

d’Autonomia de Catalunya. O texto integral <strong>do</strong> Estatut d’Autonomia se encontra disponível em:<br />

http://www.parlament-cat.net/porteso/estatut/eac_ca_20061116.pdf<br />

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Principa<strong>do</strong> <strong>do</strong> século XIII até o XVIII (FONT I RIUS, 1985). Essa assimilação irrestrita<br />

por tu<strong>do</strong> aquilo que ratifica e expande o patrimônio simbólico da nação é a evidência<br />

natural de um <strong>discurso</strong> elabora<strong>do</strong> sobre preceitos vocaciona<strong>do</strong>s aos particularismos de<br />

um nacionalismo excêntrico, temeroso de que seus territórios recém readquiri<strong>do</strong>s<br />

tornem a se pulverizar, mas desta vez por outro elemento desagrega<strong>do</strong>r, mais<br />

ameaça<strong>do</strong>r que o hegemonismo de Castela: a inundação de seu próprio espaço por<br />

culturas multiétnicas e o desbotamento <strong>do</strong>s signos mais importantes na demarcação<br />

simbólica <strong>do</strong> lugar “purifica<strong>do</strong>”.<br />

Desta feita é que este trabalho encontra seu termo, ciente embora de seus<br />

defeitos, na tentativa de esclarecer os limites e as contribuições elusivas de várias<br />

gerações de interpretes e teóricos sociais catalães no processo de estabelecimento de<br />

uma tradição intelectual que chega a nossos dias sob a divisa de catalanisme politic.<br />

Cabe, pois, recobrar mais uma vez que a familiarização de coletividades – a propósito<br />

daquelas imaginárias – estão a fornecer a contínua reinscrição <strong>do</strong>s valores e <strong>do</strong>s<br />

méto<strong>do</strong>s de enunciação narrativa, e é pela instabilidade de códigos e deslocamentos<br />

dela, prenhes de impurezas, hibridações, que se fornece a substância <strong>do</strong> território e da<br />

identidade perante a sua própria comunidade.<br />

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