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HVMANITAS — Vol. XLVI (1994)<br />
MANUEL DOS SANTOS ALVES<br />
Universidade do Minho<br />
<strong>HOMERO</strong> <strong>NUM</strong> <strong>MANUSCRITO</strong> <strong>INÉDITO</strong> i<br />
— Tu leste a Ilíada?<br />
— Menino, sinceramente me gabo de nunca ter lido a Ilíada.<br />
Os olhos do meu príncipe fusilaram.<br />
— Tu sabes o que fez Alcibíades, uma tarde, no Pórtico, a um sofista,<br />
um desavergonhado dum sofista, que se gabava de não ter lido a Ilíada?<br />
— Não.<br />
— Ergueu a mâo e atirou-lhe uma bofetada tremenda.<br />
Eça de Queirós, A Cidade e as Serras<br />
Encontram-se na Biblioteca Nacional de Lisboa, no espólio<br />
literário de Eça de Queirós, sob a cota Esp. I/253-B, um manuscrito<br />
inédito, composto de 4 cartões de 11,5 X 15 cm. (segundo a ficha<br />
respectiva), todos escritos a lápis, apenas no anverso, excepto o terceiro,<br />
escrito também no verso. A numeração — apócrifa — é a<br />
seguinte: 21, 22, 23, 23v, 24 2.<br />
O primeiro, o n.° 21, não contém mais que um esboço de argumento<br />
de narração e não se reveste de qualquer interesse para os<br />
objectivos deste trabalho. Já o mesmo se não pode dizer do segundo,<br />
i Este texto é uma refundição do Cap. I da Segunda Parte da nossa dissertação<br />
de Doutoramento intitulada Eça de Queirós sob o Signo de Mnemósine: Intertexto,<br />
Interdiscwso, Dialogismo (de Tróia ao Lácio), vols. I-III, (policop.), Braga,<br />
Universidade do Minho, 1992, pp. 465-550). O itálico que se encontra no texto<br />
é, em geral, da nossa responsabilidade. Os casos em que o não é, são raros e de<br />
não difícil identificação.<br />
2 Este manuscrito, que, como se pressupõe, conhecemos de visu, não faz<br />
parte do corpus estudado por Carlos Reis e Maria do Rosário Milheiro (1989).<br />
Aliás, já nos tínhamos debruçado sobre ele, antes do aparecimento desse importante<br />
trabalho de investigação.
374 MANUEL DOS SANTOS ALVES<br />
que apresenta um nexo lógico com os três últimos, e estes referem-se<br />
aos três primeiros Cantos da Ilíada. Eis a transcrição:<br />
As lendas são, no espírito, o resíduo dos pensamentos exactos, das realidades<br />
intelectuais das gerações passadas. O que foi lei governando a alma,<br />
num século, torna-se, com o andar dos tempos, lenda, divertindo a imaginação.<br />
A imaginação é o depósito dos raciocínios escoados.<br />
Este pequeno texto, de natureza prefaciai, constitui um documento<br />
valioso quanto ao modo de recepção de Homero na obra de Eça de<br />
Queirós. O realce nele concedido ao papel da imaginação aparece<br />
na obra editada do escritor português, por exemplo, no prefácio de<br />
O Mandarim (1880) e no texto «Positivismo e Idealismo» (1893), onde,<br />
preconizando um são equilíbrio entre razão e imaginação, chega a<br />
comparar a segunda a «essa Circe adorável que transforma os seus<br />
amigos, não em porcos — mas em deuses» (1909: 265). Esta alusão<br />
à metamorfose operada por Circe no Canto X da Odisseia mostra<br />
bem que, do epos homérico, o que mais lhe seduzia a sensibilidade<br />
artística era a porção de sonho que nele encontrava, conforme também<br />
se pode ver em certos passos da sua Correspondência e de A Cidade<br />
e as Serras. Contista exímio e imaginativo, considerava Homero sobretudo<br />
como um efabulador de histórias para crianças. Em carta de<br />
8/2/1895 — bem dentro da «fase homérica» — chega mesmo a dizer<br />
(1925: 258-259): «Positivamente, contar histórias é uma das mais belas<br />
ocupações humanas: e a Grécia assim o entendeu, divinizando Homero<br />
que não era mais que um sublime contador de contos da carochina» 3 .<br />
Esta concepção lúdica do universo épico de Homero sobressai<br />
ainda mais do autógrafo que se segue imediatamente ao anterior e<br />
passamos a transcrever:<br />
* 23. Durante nove dias, de pé, sobre nuvens cor de ouro e bronze,<br />
com o arco de prata na sua armadura, Febus Apolo arremessava flechas sobre<br />
o vasto acampamento dos Acaios, defronte dos muros de Tróia — pesados e<br />
negros, no resplendor da lua, e coroados de escudos de bronze. O coração do<br />
Deus estava irritado-—porque o seu xacerdote Crises, o que no templo de<br />
Tenedos, entre os loureiros, lhe queimava em seu louvor as pernas gordas<br />
das cabras, fora ofendido por Agamémnon, rei dos Acaios, que lhe arreba- '<br />
tara a filha, Criseis, virgem forte de seio resplandecente. E o sacrificador,<br />
3 Taine já se tinha exprimido em termos muito semelhantes a propósito das<br />
fábulas de La Fontaine a quem ele chamava o Homero gaulês : «Ce sont de petits<br />
contes d'enfants, comme l'Iliade et 1' Odyssée, qui sont de grands contes de nourrice»<br />
(1860: 47).
1. EI/253-B, fól. [22]<br />
EI/253-B, fól.-[23]
Ëlllililfllspi<br />
3. EI/253-B, fól. [23v],<br />
4. EI/253-B, fol. [24].<br />
'•ki'0
<strong>HOMERO</strong> <strong>NUM</strong> <strong>MANUSCRITO</strong> <strong>INÉDITO</strong> 377<br />
erguendo-se (*23v) junto ao mar ressoante, chamara Apolo Vingador.<br />
E o Deus viera, dos cimos olímpicos, com a aljava cheia, que, sobre as espáduas<br />
do Deus, fazia a cada largo passo, sobre o anel, um ruído de pratas estropeadas.<br />
Primeiro ele ferira os cavalos, que, amarrados junto à tenda, comiam<br />
o lótus; depois ferira os molossos rápidos; por fim, trespassava os guerreiros,<br />
que tombavam, fazendo na areia um ruído de armas caídas. Sem cessar, as<br />
longas flechas silvavam através do acampamento: (* 24) agachados à sombra<br />
das naves, que se rachavam em seco nas abas da praia, os homens fortes,<br />
com os longos cabelos sob a face, e olhos no solo, sentiam o coração tremer;<br />
os carros de batalha jaziam acima, brilhando vagamente, com as rodas enterradas<br />
na areia; na sombra da tenda, luziam os escudos redondos, as espadas<br />
de pregos de prata; os chefes falavam em baixo, e sem cessar, entre os gritos<br />
de dor de mulheres esguedelhadas, e com a túnica aberta, as piras fumegavam,<br />
carregadas de cadáveres. Ao longe, o mar ressoava em cadência 4 .<br />
Para além da presença de Homero, o manuscrito constitui, pelas<br />
rasuras, emendas e entrelinhas que apresenta, um documento em<br />
nosso entender valiosíssimo quanto ao espaço percorrido pelo escritor<br />
entre o ante-texto e o texto, e também quanto à luta que teve de<br />
travar, ao ver-se apanhado nas malhas da intertextualidade 5 . É que<br />
não se trata apenas de uma obra-prima de compositio: sem prejuízo da<br />
originalidade, é também um produto acabado de imitatio intertextual 6 .<br />
4 Esta transcrição que, sem margem para graves erros, podemos considerar<br />
definitiva, é o resultado da leitura pouco fácil de um texto ainda menos legível em<br />
microfilme que no original ou em fotocópia. Procurámos torná-la tão fiel quanto<br />
possível ao texto original, incluindo a pontuação tão peculiar de Eça de Queirós<br />
em certos contextos, neste como noutros manuscritos do escritor. Mas só com<br />
esforços repetidos nos foi possível ir eliminando, uma a uma, as várias dúvidas suscitadas<br />
pela primeira leitura. A única lectio que durante mais tempo resistiu a uma<br />
conclusão definitiva, foi a forma «rachavam». Porém, depois de um reexame atento<br />
da letra de Eça de Queirós, e atendendo ao contexto verbal em que tal lexema se<br />
insere, não vemos qualquer outra alternativa plausível. O Leitor, porém, poderá<br />
fazer a sua verificação no texto que deixamos reproduzido em fac-simile, no final<br />
deste trabalho.<br />
5 Tal autógrafo terá feito parte de uma peça narrativa de mais longo fôlego.<br />
Tratar-se-ia, com toda a probabilidade, das «Viagens de Ulisses», que Eça de Queirós<br />
se havia encarregado de escrever para a projectada revista O Serão, nos números 2-6,<br />
conforme se pode 1er em outro manuscrito inédito, que faz parte do espólio de Eça<br />
de Queirós (Esp. 1/276). Esse abortado projecto não foi inútil : dele e do ciclo homérico<br />
a que pertence, viria a sair essa pequena jóia literária que é o conto «A Perfeição»,<br />
elaborado a partir principalmente do Canto V da Odisseia, mas também de outros<br />
Cantos dessa mesma epopeia e da Ilíada. Tal conto, já o escritor o havia designado<br />
sob o título significativo de Ulisses. Como estes textos, também o presente manuscrito<br />
é o fruto de uma leitura atentíssima dessas epopeias homéricas.<br />
6 O Leitor menos familiarizado com a teoria da intertextualidade, poderá<br />
1er com proveito o Cap. 3, «Tradition and Poetry» de W. F. Jackson Knight (1966:<br />
99-142).
378 MANUEL DOS SANTOS ALVES<br />
Contudo, e dado que Eça de Queirós desconhecia a língua de<br />
Homero, no confronto a fazer, o texto mediador tem prioridade sobre<br />
o texto grego. E o texto mediador (mesotexto), como se poderá<br />
depreender sem grande esforço no decorrer deste trabalho, é precisamente<br />
a tradução da Ilíada por Leconte de Lisle (1818-1894), um dos<br />
grandes representantes da escola da arte pela arte e, num plano mais<br />
geral, da tendência artiste que caracterizou a literatura francesa da<br />
segunda metade do século xix 7 . A sua obra, bem conhecida de Eça<br />
de Queirós, funcionou para o escritor português como uma das principais<br />
janelas através da qual ele pôde contemplar e admirar a beleza<br />
clássica, que lhe impregnou o imaginário de motivos, temas e reminiscências<br />
de matriz greco-latina.<br />
Vamos, pois, proceder a uma análise intertextual, pondo em<br />
confronto o texto queirosiano e a tradução da Ilíada por Leconte de<br />
Lisle. Quanto ao primeiro, e por conveniências de método, vamos<br />
7 Com efeito, esse mestre do parnasianismo francês não foi apenas o ídolo<br />
do jovem Fradique, «artista nobremente e perpetuamente insatisfeito», «o cinzelador<br />
das Lapidarias» (1889:1, p. 273), notáveis por «uma forma soberba de plasticidade<br />
e de vida» (ibid., p. 263), compostas «na idade em que se imita sobre versos<br />
de Leconte de Lisle» (ibid., p. 278); nem a sua produção original se limitou a cerca<br />
de uma vintena de textos de doutrina estética, ou à forma impecável e marmórea<br />
dos Poèmes Antiques (1852), das Poésies Barbares (1862) — refundidas e aumentadas<br />
nove anos depois sob o título de Poèmes Barbares (1872) —, dos Poèmes Tragiques<br />
(1884), de belas composições «helénicas», como «Niobé», «Khiron», «Hélène»,<br />
«Hylas», «Thyoné», «Glaucé», «Klytie», «Kybèle», «Pan», «La Source», «Le Réveil<br />
d'Elios», «Hypatie», «La Robe du Centaure», «Chant Alterné», «Vénus de Milo»,<br />
«Les Éolides», Les Erinnys (1873), VApollonide (1888) — todo um acervo de realizações<br />
poéticas por detrás das quais se perfilam os grandes vultos da épica, da lírica<br />
e da tragédia gregas; nem foi somente o artista de «Études Latines» que nos pôs em<br />
contacto com Horácio, Propércio, Teócrito e Virgílio. Não. Para além desta<br />
obra original em prosa e em verso, que se pode 1er nas excelentes edições de E. Pich<br />
(1971, 1976, 1977, 1977a e 1978), também autor de uma valiosa dissertação sobre<br />
a sua criação poética (1975), há outra faceta em Leconte de Lisle, ainda mais marginalizada<br />
pelos estudiosos: referimo-nos à sua actividade de tradutor. E, neste,<br />
aspecto, constitui, porventura, caso único, tratando-se de autores greco-latinos.<br />
Traduziu para prover à sua subsistência, por encomenda do célebre editor Lemerre,<br />
os Idílios de Teócrito e as Odes Anacreônticas (1861), Hesíodo, Hinos Órficos, Bíon,<br />
Mosco, e Tirteu (1869), Esquilo (1872), Horácio (1873), Sófocles (1877) e Euripides<br />
(1885). O seu nome está ainda ligado às traduções de mais dois autores, que não<br />
chegou a realizar: Virgílio e Aristófanes. Mas, quando, em carta a Alberto de<br />
Oliveira (6/8/1894), Eça de Queirós se assume como «um fiel ledor de Homero»<br />
(1925: 253), é sem dúvida na tradução dos Poemas Homéricos por Leconte de Lisle<br />
que está a pensar: Ilíada (1867), Odisseia, Hinos, Epigramas e Batracomiomaquia<br />
(1868).
<strong>HOMERO</strong> <strong>NUM</strong> <strong>MANUSCRITO</strong> <strong>INÉDITO</strong> 379<br />
dividi-lo nos seguintes cinco fragmentos, a que correspondem outros<br />
tantos motivos: as flechas de Apolo, a ofensa de Agamémnon, a súplica<br />
de Crises, o flagelo da peste e as vítimas do castigo.<br />
1. As Flechas de Apolo<br />
Durante nove dias, de pé, sobre nuvens cor de ouro e bronze, com o arco<br />
de prata na sua armadura, Febus Apolo arremessava flechas sobre o vasto acampamento<br />
dos Acaios, defronte dos muros de Tróia — pesados e negros, no resplendor<br />
da lua, e coroados de escudo de bronze.<br />
Os elementos sublinhados são a tradução literal dos seus correspondentes,<br />
feita a partir da tradução do Leconte de Lisle. Com<br />
efeito, o sintagma preposicional «durante nove dias» deriva do conjunto<br />
«depuis neuf jours»; a proposição «Febus Apolo arremessava<br />
flechas sobre o vasto acampamento dos Acaios» 8 resulta da associação<br />
de microstruturas, como «Phoebos Apollon» (p. 2), «lança... des<br />
flèches» (p. 3), «vers le vaste» (p. 15), «camp» (p. 175) e «des Akhaiens»<br />
(p. 15).<br />
Como estamos a ver, este primeiro período gramatical, centrado no<br />
motivo das flechas, constitui um mini-quadro descritivo, que nos repre-<br />
s Este lexema, «Acaios», constitui só por si uma espécie de bilhete de identidade<br />
ou deíctico da matriz intertextual de que derivou o texto de Eça de Queirós.<br />
Não se encontra em qualquer outro autor português, nem em qualquer léxico anterior<br />
ou contemporâneo de Eça de Queirós e, quanto aos posteriores, apenas o vimos<br />
dicionarizado pelo lexicógrafo José Pedro Machado (1948, 1967 e 1981). Quanto<br />
aos léxicos estrangeiros, também em nenhum deles se encontra lexema algum de<br />
que ele possa ter provindo. E, falando de escritores, apenas o empregou precisamente<br />
o referido Leconte de Lisle, que levou até às últimas consequências a remodelação<br />
ortográfica dos nomes próprios, imposta pelo aprofundamento dos conhecimentos<br />
mitológicos, religiosos e científicos da Antiguidade Greco-Latina. Assim,<br />
chegou mesmo ao ponto de transcrever o etnónimo helénico ''Ayaioi por «Akhaiens»,<br />
em detrimento da forma «Achéens», já inserida no sistema linguístico francês. Ousadias<br />
como esta concitaram contra ele, nos meios científicos e literários, acesas polémicas<br />
expressas em comentários para todos os gostos. Pois foi desse bizarro invento<br />
filológico, empregado ad nauseam por Leconte de Lisle nas suas traduções da Ilíada<br />
(609 ocorrências) e da Odisseia (126) que Eça de Queirós formou, com impecável<br />
rigor etimológico, o vocábulo «Acaios» (textualmente, no manuscrito: «Achaios»),<br />
cuja massa fónica o torna preferível a «Aqueus» e digno de figurar nos dicionários<br />
de português, até porque não se trata de um simples hápax legómenon inédito, pois<br />
já se encontra num outro texto de Eça de Queirós publicado em 1896, consagrado<br />
à memória de Antero de Quental, «Um Génio que Era um Santo» (1896: 497), redigido<br />
com toda a certeza pela mesma altura do presente manuscrito e derivado, sem<br />
dúvida, do mesmo hipotexto.
380 MANUEL DOS SANTOS ALVES<br />
senta uma situação bélica. Nele acumulou o escritor o maior número<br />
possível de pormenores que, tendo como único suporte verbal o iterativo<br />
«arremessava», aparecem expressos em estilo predominantemente<br />
nominal, mais apto para funções descritivas. E já por aqui se vê o<br />
espírito criativo de Eça de Queirós, que recusa hipotecar a textos alheios<br />
os seus próprios códigos técnico-literários. É que, na tradução de<br />
Leconte de Lisle, a descrição da guerra, ou seja, do flagelo da peste,<br />
encontra-se já bem no interior da «Rhapsodie I», a uma distância<br />
considerável do início do poema. Pois foi precisamente por aí que<br />
ele começou. Para isso, retirou desse contexto o sintagma «Depuis<br />
neuf jours» (p. 3) com que abria o parágrafo continuado em «...les<br />
flèches divines sifflaient à travers l'armée» — e deslocou-o, traduzido<br />
à letra {«Durante nove dias»), para o início de todo o seu texto, posição<br />
que lhe confere um realce ainda maior.<br />
Outra inovação reside na posição de combate tomada por Apolo.<br />
Enquanto na tradução de Leconte de Lisle ele aparece sentado — «assis<br />
à l'écart» (p. 3) —, no texto de Eça de Queirós, combate de pé, o que<br />
sugere a ideia de uma intervenção mais activa. Esta inovação é tanto<br />
mais significativa, quanto é certo que no manuscrito se pode 1er, sob<br />
rasura, o lexema «sentado», o que implica um atitude mais activa do<br />
escritor face ao hipotexto, feita de reflexão, de hesitações, de luta, de<br />
recusa e de fuga, numa palavra, o nítido propósito de inovar. O sintagma<br />
foi sem dúvida sobredeterminado pelo seu correspondente<br />
daquele passo da «Rhapsodie V» : aí, os Aqueus esperavam os Troianos<br />
«de pied ferme, semblables à ces nuées que le Khrônion arrête à la cime<br />
des montagnes, quand le Boréas et les autres vents violents se sont calmés,<br />
eux dont le souffle disperse les nuages épais et immobiles. Ainsi les<br />
Danaens attendaient les Troiens de pied ferme» (p. 90). Também nas<br />
artes plásticas o deus deifico é representado a combater de pé.<br />
Desse mesmo contexto, e como se pode ver pelo sublinhado,<br />
derivou também o sintagma preposicional «sobre nuvens», sem dúvida<br />
sobredeterminado pelo elemento «nuées», que aparece frequentemente na<br />
tradução francesa em alternância com «nuages». Como, porém, Apolo<br />
é um deus e não um guerreiro qualquer, à sua figura foram associados<br />
os metais preciosos, como emblemas nobilitantes do herói homérico.<br />
Ora eles pulalam em grande profusão ao longo de toda a Ilíada, cujo<br />
carácter bélico fazem sobressair, em numerosos sintagmas, como:<br />
«sceptre d'or» (pp. 2, 12, passim), «sceptre aux clous d'or» (p. 8), «throne<br />
d'or» (p. 19); «l'arc d'argent» (p. 3, 14, 41, passim), «épée aux clous<br />
d'argent» (p. 21), «pied d'argent» (p. 17); 26), «l'airain etincelant des<br />
hommes qui marchaient» (p. 33). Mas nem sempre os elementos apare-
<strong>HOMERO</strong> <strong>NUM</strong> <strong>MANUSCRITO</strong> <strong>INÉDITO</strong> 381<br />
cem separados: por vezes ocorrem em coordenações, como: «nef<br />
d'or et d'airain» (pp. 154 e 158), «j'y conduirai l'or et le rouge airain»<br />
(p. 160). «riche en or et en airain» (p. 180), «sceptre d'or et d'airain»<br />
p. 409). A partir deles, Eça de Queirós formou belas associações<br />
com base na tríade ouro/prata/bronze, tornada assim comum aos dois<br />
intertextos, como marca de intertextualidade. Tal a génese do conjunto<br />
seguinte: «sobre nuvens cor de ouro e bronze». Embora nele o referente<br />
do metal seja, como se vê, a cor e não a matéria dos objectos,<br />
nem por isso a segunda deixa de estar bem presente, porque intimamente<br />
associada à primeira. Trata-se, além disso, de descrever o<br />
espectáculo de uma cidade sitiada, defendida por um numeroso exército<br />
de guerreiros, como se pode ver pelo pormenor descritivo com que<br />
termina o parágrafo: «muros de Tróia ... coroados de escudos de<br />
bronze». Organizados em multidões compactas, de onde sobressaía<br />
o brilho metálico das múltiplas armas ofensivas e defensivas, os dois<br />
exércitos, pese embora o expressionismo da hipérbole, ofereciam aos<br />
olhos do espectador a imagem plástica de «nuvens cor de ouro e bronze».<br />
Sobre elas se levantava a figura protectora de Apolo, irritado contra<br />
os «Acaios». Outro conjunto digno de nota, é o sintagma «com o<br />
arco de prata na sua armadura». Interligado aos anteriores pela mesma<br />
isotopia do metal, aparece entre linhas no manuscrito e é, como se<br />
pode ver com clareza, uma tradução literal do conjunto correspondente<br />
«portant Vare d'argent»; este, na tradução francesa, aparece associado<br />
ao sintagma «sur ses épaules», que Eça de Queirós reservou para outro<br />
contexto e substituiu pela expressão «avec le plein carquois» (p. 3),<br />
em que decalcou o elemento «na sua armadura».<br />
Quanto ao mitónimo Febus Apolo (no manuscrito: Phebus Apollo),<br />
é uma evidente transliteração de «Phoibos Apollon» que se pode 1er no<br />
texto de Leconte de Lisle, mas não sem a interferência da forma latina<br />
Phoebus Apollo. Optando pela forma alatinada, que, aliás, figura<br />
também em alguns dicionários portugueses do seu tempo 9, Eça de<br />
Queirós pretendeu, sem dúvida, preservar o aspecto exótico, original<br />
do mitónimo, tal como se encontra no hipotexto, obedecendo, por<br />
outro lado, a uma predilecção bem sua por nomes próprios de forma<br />
latina: sendo menos usados, tornavam-se menos banais e funcionavam<br />
como reservas estilísticas a que a subtileza artística do escritor não<br />
era indiferente.<br />
9 Por exemplo, o Dicionário de Frei Domingos Vieira (1873), editado por<br />
Adolfo Coelho e Teófilo Braga, regista a forma «Phebus» ao lado de «Phebo».
382 MANUEL DOS SANTOS ALVES<br />
No que diz respeito ao lexema verbal («arremessava»), é digna de<br />
nota a manutenção do imperfeito que se lê no hipotexto francês e é mais<br />
apta para traduzir o carácter durativo de uma situação sem saída.<br />
Mas, em vez da forma «silvavam», correspondente literal de «sifflaient»<br />
reservada para outro contexto — «as longas flechas silvavam através do<br />
acampamento» —, Eça de Queirós optou, numa primeira fase, por um<br />
outro lexema verbal, «lançava», correspondente à proposição hipotextual<br />
«lança une flèche», de que está ausente o aspecto iterativo. Numa<br />
segunda fase, rasurou, no manuscrito, os elementos «lançava as suas»<br />
e escreveu a forma «arremessava» entre linhas, para, finalmente, nos<br />
deixar a redacção definitiva «arremessava flechas».<br />
«Sobre o vasto acampamento dos Acaios»: trata-se de uma tradução<br />
literal da.série sintagmática «vers le vaste armée des Akhaiens»<br />
(p. 15), de que existem numerosas ocorrências ao longo do hipotexto<br />
francês, mas cujo lexema «armée» foi preterido em benefício do monossílabo<br />
«camp» (pp. 159, 175, passim), que foi traduzido primeiro por<br />
«campo» (rasurado no manuscrito) e depois por «acampamento» (inserido<br />
entre linhas, tal como o epíteto «vasto», que o precede). Esta<br />
substituição do lexema esperado, «exército», por «acampamento», ou<br />
seja, de um elemento que releva do animado por outro que releva do<br />
inanimado —, não é um mero capricho : foi imposta pela própria estrutura<br />
do texto, que determinou a deslocação para a parte final, do motivo<br />
das vítimas humanas de Apolo : é aí que a gravidade da situação atinge<br />
o seu clímax. Esta importante modificação revela bem a presença<br />
de uma consciência estruturante, de uma personalidade literária forte,<br />
em luta permanente com textos alheios que quase sempre consegue subjugar.<br />
Esta concepção agónica, de que nem sempre é alheia a «anxiety<br />
of influency» (Bloom, 1973), constitui para nós um dos aspectos mais<br />
interessantes da fenomenologia da intertextualidade em Eça de Queirós,<br />
Também o elemento locativo do cenário — «defronte dos muros<br />
de Tróia» — se deve explicar em relação com o hipotexto francês,<br />
onde se podem 1er muitas ocorrências de sintagmas, como «devant<br />
Troiè» (p. 157), «devant la ville» (p. 397), bem como os repetidos lexemas<br />
«mur» (p. 131), «murs» (p. 397), e «murailles», elemento integrante<br />
de epítetos homéricos como «Troiè aux fortes murailles» (p. 5),<br />
«Uios aux fortes murailles» (p. 23) e outros estereótipos de estrutura<br />
similar, bem próprios do texto homérico.<br />
- A presença, nestes conjuntos, do lexema «fortes» sobredeterminou,<br />
sem dúvida, o emprego do adjectivo «pesados», que lhe é semântica-
<strong>HOMERO</strong> <strong>NUM</strong> <strong>MANUSCRITO</strong> <strong>INÉDITO</strong> 383<br />
mente próximo, mas mais adequado para qualificar referentes inanimados,<br />
como o do significante «muros». Por isso, optou pelo segundo,<br />
reservando o primeiro para referentes animados, como se pode 1er<br />
mais adiante nos conjuntos «virgem forte» e «homens fortes». Todavia,<br />
para esta preferência contribuiu também decisivamente a presença,<br />
na tradução francesa, do qualificativo «lourds» em sequências sintagmáticas<br />
como «lourds de cadavres» (p. 3), «lourdes Keres» (p. 4), «lourd<br />
fardeau» (p. 6), «main lourde» (p. 8), «bouclier vaste et lourd» (p. 55),<br />
«lance lourde, grande et solide» (p. 144), etc.. Note-se ainda, que<br />
esta opção não foi feita logo de início, mas após um período de reflexão,<br />
pois o epíteto aparece entre linhas, como alternativa a «altos», rasurado<br />
no manuscrito e influenciado pelas expressões «hautes citadelles» (p. 23),<br />
«hautes tours» (p. 56), «haute citadelle d'Ilios» (p. 126), «haute Ilios»<br />
(p. 169) e outras. Porém, aquele adjectivo («altos») não aparece<br />
sozinho, mas emparelhado com «negros» e como ele separado do<br />
substantivo a que se refere, por travessão, em posição de relevo — «altos<br />
e negros». Este último, numa primeira fase, precede, no manuscrito,<br />
o substantivo «muros»; depois, foi rasurado e puxado para a frente,<br />
para emparelhar com o primeiro («altos», depois rasurado, como<br />
dissemos, e substituído por «pesados»). Ele foi sobredeterminado<br />
por uma longa série de conjuntos que aparecem na tradução de Leconte<br />
de Lisle, como «noire colère» (p. 4), «nef noire», (pp. 11, 14, 16, passim),<br />
«noire mort» (pp. 43, 44, 147, etc.), «noire poussière» (p. 45), «noires<br />
phalanges» (p. 66), «sang noir» (p. 150) e muitas outros exemplos não<br />
menos pertinentes. Este duplo qualificativo — «pesados e negros» —<br />
é imadiatamente seguido do conjunto sintagmático «no resplendor<br />
da lua», numa oposição contrastiva — escuridão nocturna vs brilho<br />
lunar — que mais faz sobressair, aos olhos do leitor, a imponência<br />
homérica dos muros de Tróia. Tal oposição encontra-se largamente<br />
representada ao longo de toda a Ilíada. Particularmente elucidativo<br />
é o passo seguinte (p. 149):<br />
Et les Troiens, pleins d'espérance, passaient la nuit sur le sentier de la<br />
guerre, ayant allumé de grands feux. Comme lorsque les astres étincellent dans<br />
VOuranos autour de la claire Sélèné et que le vent ne trouble point l'air, on voit<br />
s'éclairer les cimes et les hauts promontoires et les vallées, et que l'Aithèr enfin<br />
s'ouvre au faîte de FOuranos, et que le berger joyeux voit luir tous les astres,<br />
de même, entre les nefs et l'eau courante du Xantos, les feux des Troiens brillaient<br />
devant Ilios. Mille feux brillaient ainsi dans la plaine; et près de chacun,<br />
étaient assis cinquante guerriers autour de la flamme ardente. Et les chevaux<br />
mangeaient l'orge et l'avoine, se tenaient auprès des chars, attendant Eôs au<br />
beau thrône.
384 MANUEL DOS SANTOS ALVES<br />
Como se vê, esta bela paisagem nocturna é suficientemente rica<br />
de elementos e motivos, para inspirar a Eça de Queirós a sequência<br />
«no resplendor da lua», cujo lexema «lua» aparece como alternativa<br />
de uso corrente para o rebuscado «Selene» (correspondente a «Sélèné»),<br />
vocábulo que, neste contexto, repugnaria, pelo seu sabor arcádico,<br />
ao bom gosto do escritor.<br />
Por outro lado, o referido conjunto sintagmático, «no resplendor<br />
da lua», ao situar os combates num contexto nocturno, introduz no<br />
hipertexto queirosiano uma nota de transgressão e ruptura, relativamente<br />
ao hipotexto homérico. Com efeito, na Ilíada, não se combate<br />
de noite: as noites são para comer, descansar, dormir e (eventualmente)<br />
vigiar e espiar o inimigo —, mas não para combater. Numerosos<br />
passos do poema, todos interligados pela isotopia da noite, podem<br />
documentar essa asserção. O Canto II, por exemplo, abre nestes<br />
termos: «Les Dieux et les cavaliers dormaient tous dans la nuit» (p. 21).<br />
«Todos», incluindo Agamemnon da parte dos homens, mas excluindo<br />
Zeus da parte dos Deuses, a fim de enviar ao Atrida «un Songe menteur»<br />
(ibid.), que o induziria a desencadear o ataque. No Canto VII, um<br />
dos arautos consegue interromper o duelo entre Ájax e Heitor, dizendo :<br />
«Ne combattez pas plus longtemps... voici la nuit, et il est bon d'obéir<br />
à la nuit». Heitor concorda e diz (p. 126):<br />
Cessons pour aujourd'hui la lutte et le combat. Nous combattrons de<br />
nouveau plus tard, jusqu'à ce qu'un Dieu en décide et donne à l'un de nous la<br />
victoire. Voici la nuit, et il est bon d'obéir à la nuit, afin que tu réjouisses,<br />
auprès des nefs Akhaiennes, tes concitoyens et tes compagnons, et que j'aille<br />
dans la grande ville du roi Priamos, réjouir les Troiens et les Troiennes ornées<br />
de longues robes, qui prieront pour moi dans les temples des divins.<br />
No Canto VIII, são os Aqueus que, prestes a ser derrotados,<br />
desejam ansiosamente a noite benfazeja, que venha interromper o<br />
combate (p. 147):<br />
Et la brillante lumière Hélienne tomba dans l'Okéanos, laissant la noire<br />
nuit sur la terre nourricière. La lumière disparut contre gré des Troiens, mais<br />
la noire nuit fut la bienvenue des Akhaiens qui la désiraient ardemment.<br />
Intervém então Heitor, para dizer aos Troianos (p. 147):<br />
J'espérais ne retourner dans Ilios battue des vents qu'après avoir détruit<br />
les nefs et tous les Akhaiens; mais les ténèbres sont venues qui ont sauvé les<br />
Argiens et les nefs sur le rivage de la mer. C'est pourquoi, obéissons à la nuit<br />
noire, et préparons le repas. Détalez les chevaux aux belles crinières et donnez<br />
leur la nourriture. Amenez promptement de la Ville des boeufs et de grasses
<strong>HOMERO</strong> <strong>NUM</strong> <strong>MANUSCRITO</strong> <strong>INÉDITO</strong> 385<br />
brebis, et apportez un doux vin de vos demeures, et amassez beaucoup de bois,<br />
afin que, toute la nuit, jusqu'au retour d'Eôs qui naît le matin nous alumions<br />
beaucoup de feux dont l'éclat s'élève dans l'Ouranos et afin que les Akhaiens<br />
chevelus ne profitent pas de la nuit pour fuir sur le vaste dos de la mer.<br />
Como se vê por estes exemplos, na Ilíada, durante a noite, os<br />
combates são interrompidos, enquanto, no hipertexto queirosiano,<br />
eles prosseguem. Nesta perspectiva, d pormenor descritivo «no resplendor<br />
da lua» não se encontra apenas em relação contrastiva com<br />
o par adjectival «pesados e negros» (que, já por s>, apontam para o<br />
topos da noite). Para além disso, afecta não só todo o parágrafo inicial,<br />
centrado, como vimos, na situação presente, mas também o longo<br />
parágrafo final em que, após o patêntese analéptico, essa mesma situação<br />
é retomada. E é precisamente neste último parágrafo, onde a<br />
expressão gerundiva «brilhando vagamente» confirma o contexto<br />
nocturno da situação bélica, que aparece o motivo da sepultura dos<br />
cadáveres. Ora o cumprimento deste piedoso dever é, no Canto VII,<br />
efectuado de noite, como se pode depreender do passo seguinte<br />
(p. 130):<br />
De leur côté, les Akhaiens aux belles knémides amassèrent les cadavres<br />
sur le bûcher, tristes dans leur coeur. Et, après les avoir brûlés, ils s'en retournèrent<br />
vers les nefs creuses. Eôs n'était point levée encore et déjà la nuit était<br />
douteuse quand un peuple des Akhaiens vint élever dans la plaine un seul<br />
tombeau sur l'unique bûcher.<br />
Assim, enquanto em Homero o motivo da sepultura aparece<br />
separado dos combates, em Eça de Queirós, os dois motivos surgem<br />
intimamente associados, do que resulta uma maior concentração do<br />
fragmento narrativo. Esta sobreposição só vem valorizar o hipertexto<br />
queirosiano, sem qualquer prejuízo da coerência narrativa ou<br />
da ilusão referencial. Com efeito, este princípio não é posto em causa<br />
com a circunstância introdutória, «Durante nove dias», que remete<br />
para a contagem corrente do tempo do calendário, sem implicar que<br />
o combate se realize apenas de dia para ser interrompido durante a<br />
noite, como na Ilíada. Trata-se, além disso, de um combate sui generis<br />
— uma espécie de monólogo sem réplica, desencadeado por um deus<br />
e não por homens. Deste modo, foi privilegiado o cenário nocturno,<br />
já largamente representado em Homero. Aos exemplos já apontados<br />
poderíamos acrescentar outros, como aquela grandiosa comparação<br />
muito admirada pelos homeristas, em que Apolo «allait, semblable à<br />
la nuit» (p. 3), inúmeros estereótipos, como este, «Quand Hélios<br />
tomba et que les ombres furent venues» (p. 15) ou estoutro, «quand Eôs,<br />
25
386 MANUEL DOS SANTOS ALVES<br />
aux doigts rosés née au matin, apparut» (ibid.), ou ainda aquela pergunta<br />
de belo efeito que, no Canto X, Nestor dirige a Agamemnon,<br />
vagueando pela noite, insone, preocupado com a sorte do seu povo:<br />
«Pourquoi errez-vous seuls auprès des nefs, à travers le camp, au milieu<br />
de la nuit divine?» (p. 175). Eça de Queirós era demasiado sensível<br />
aos belos efeitos destes e de outros passos da Ilíada, para não dar<br />
ao espectáculo bélico o realce que merecia. E o facto de, diferentemente<br />
do hipotexto homérico, o combate se travar de noite, «no resplendor<br />
da lua», «defronte dos muros de Tróia — «pesados e negros» —,<br />
confere à descrição uma força épica que, só por si, bastaria para atestar<br />
a originalidade do escritor português. E, ante a imagem homérica<br />
de uma cidade sitiada como Tróia, cujos muros estavam guardados<br />
por um exército fortemente armado, não quis terminar o seu belo<br />
parágrafo introdutório, sem este acrescento ornamental — e bem<br />
queirosiano—, que lhe prolonga o fôlego: «coroados de escudos de<br />
bronze». A proliferação, na tradução de Leconte de Lisle, de lexemas<br />
como «boucliers» e «airain», constitui, como é óbvio, uma explicação<br />
genética suficiente para este derradeiro pormenor descritivo.<br />
Achámos bem reservar para o fim desta primeira parte, uma das<br />
mais significativas modificações introduzidas no hipertexto queirosiano,<br />
face ao hipotexto homérico. E que neste há dois aspectos sobrepostos<br />
ou fundidos, que convém distinguir: a peste como motivo e o espectáculo<br />
da guerra como descrição alegórica da peste. Esta aparece<br />
designada, na tradução de Leconte de Lisle, como «mal mortel» (p. 1)<br />
e «contagion» (p. 3), o que lhe confere o estatuto de único e verdadeiro<br />
referente, embora quase oculto sob as aparências de uma configuração<br />
bélica. Com efeito, armado de flechas, o deus Apolo persegue o<br />
exército dos Aqueus, que tombam aos milhares no campo de batalha.<br />
E é mesmo por isso que, em etimologias fantasiosas, de tipo cratílico,<br />
essencialista e especulativo, registadas em dicionários de mitologia e<br />
de que a obra de Santo Isidoro de Sevilha está repleta, aparece o nome<br />
de Apolo ('Anólkov), ligado ao verbo ãnóXXvfM, «destruir». Apolo<br />
seria esse deus funesto (ovkioç), que, lançando ao longe os seus dardos<br />
(éxrjfióÃoçJ, com o seu arco de prata (âgyvQÓtoioç), espalha a morte<br />
e o terror. Assim, esse quadro alegórico, em que o motivo real se<br />
esconde sob o motivo aparente, muito contribui para o reforço da<br />
unidade temática da Ilíada como poema bélico. Para tomarmos consciência<br />
mais nítida desse efeito estético, bastaria referir dois lugares<br />
paralelos : um pertencente ao domínio do mito e também ligado ao<br />
deus Apolo — o Rei Édipo de Sófocles; o outro, pertencente ao domínio
<strong>HOMERO</strong> <strong>NUM</strong> <strong>MANUSCRITO</strong> <strong>INÉDITO</strong> 387<br />
da história — a peste de Atenas, tal como aparece descrita por Tucídides<br />
no Cap. II da História da Guerra do Peloponeso. Num e noutro,<br />
o flagelo da peste surge como único e verdadeiro motivo central, que,<br />
em Homero, embora presente, está oculto sob as aparências de uma<br />
configuração bélica. Ora Eça de Queirós, apercebendo-se desta dualidade,<br />
que seria prejudicial à unidade da narrativa, suprime pura e<br />
simplesmente o motivo da peste, já muito apagado no hipotexto homérico<br />
como descrição alegórica, e centra a narração no espectáculo bélico,<br />
que perde o seu valor de alegoria, para tornar-se único referente centralizador<br />
do discurso. Esta modificação aumentou a coesão unitária<br />
do hipertexto queirosiano. .''•'..<br />
Resumindo, salientemos as seguintes inovações: A) Quanto à<br />
forma do conteúdo: espectáculo nocturno e supressão do motivo da<br />
peste; B) Quanto à forma da expressão: derivação tautológica (tradução<br />
literal de sintagmas e de sequências sintagmáticas) ; estrutura<br />
frásica feita à base dos significantes mais expressivos e mais usados ao<br />
longo da tradução de Leconte de Lisle.<br />
2. A Ofensa de Agamémnon<br />
Após ter introduzido o leitor na situação presente, Eça de Queirós<br />
apresenta, em analepse, a etiologia dela, que passa pela ofensa de Agamémnon.<br />
Sem abdicar do estilo que tanto o caracteriza, nem por<br />
isso deixa de recorrer, quase integralmente, aos significantes concentrados<br />
na tradução de Leconte de Lisle. É o que se pode depreender,<br />
num primeiro relance global, do confronto dos dois intertextos seguintes:<br />
O coração do deus estava irritado —porque<br />
o seu sacerdote Crises, o que no<br />
templo de Tenedos, entre os loureiros, lhe<br />
queimava em seu louvor as pernas gordas<br />
das cabras, fora ofendido por Agamémnon,<br />
rei dos Acaios, que lhe arrebatara<br />
a filha, Criseis, virgem forte de seio resplandecente.<br />
A< B<br />
...irrité dans son coeur... du dieu<br />
(pp. 2-3); parce que l'Atréide avait<br />
couvert d'opprobre Khrysès le sacrificateur<br />
(p. 1); sur Ténédos... j'ai<br />
brûlé pour toi les cuisses grasses des<br />
taureaux et des chèvres (p. 2) ; Agamémnon<br />
roi des Akhaiens [...] avait enlevé<br />
[...] sa fille (p, 2), Khryséis aux belles<br />
joues (p. 10).<br />
Tal como se apresenta, e com o auxílio do nosso sublinhado,<br />
este segmento não oferece quaisquer dúvidas sobre o referente intertextual.<br />
É que, ao contrário dos segmentos textuais acima analisados,
388 MANUEL DOS SANTOS ALVES<br />
neste os elementos da intertextualidade não se encontram dispersos<br />
mas concentrados, pois pertencem ao mesmo contexto, tanto em Eça<br />
de Queirós, como na tradução de Leconte de Lisle —• Canto I («Rhapsodie<br />
I») ; //. w. 9-42). É o que se verifica com a expressão da cólera<br />
de Apolo — «O coração do Deus estava irritado» —, correspondente<br />
a proposição participial homérica, «irrité dans son coeur» (p. 1), que<br />
tem por sujeito «Phoibos Apollon». Para além da evidente tautologia,<br />
sobre ele operou Eça de Queirós uma modificação substancial.<br />
Com efeito, tanto no texto grego como na tradução de Leconte de<br />
Lisle, o sujeito de atribuição é, não a parte do todo, o órgão, a sede,<br />
mas o todo, o indivíduo, a pessoa, a hipóstase. A própria língua grega,<br />
inclusive o grego de Homero (cf. Chantraine, 1981: 46-49), confirma<br />
com clareza esta ideia, ao exprimir a parte do todo pelo chamado<br />
acusativo de relação, reservando para o todo a função de sujeito gramatical.<br />
Assim se compreende melhor porque é à filosofia grega que<br />
remonta o consabido princípio segundo o qual actiones sunt suppositorum.<br />
Desta maneira, aquilo que, segundo as gramáticas gregas, se<br />
costuma chamar «acusativo de relação», traduz-se normalmente por<br />
um complemento circunstancial, como se vê na tradução de Leconte<br />
de Lisle, «irrité dans son coeur». Eça de Queirós subverte o princípio,<br />
destinando a função de sujeito, não ao todo — como no original<br />
grego e sua tradução francesa —, mas à parte, ao órgão desse todo e<br />
sede do sentimento de cólera: «O coração do Deus estava irritado».<br />
Como se vê, o elemento «Phebus Apollo», que, em posição forte,<br />
já comandava todo o longo parágrafo anterior, é gramaticalmente<br />
relegado para plano secundário: não só deixa de ser sujeito, mas é<br />
substituído pelo substantivo comum, «Deus» (embora com maiúscula),<br />
para desempenhar a função de complemento determinativo.<br />
Com estas transformações de efeitos surpreendentes, conseguiu Eça<br />
de Queirós imprimir à frase um toque de originalidade que a situa a<br />
um nível muito superior ao da tradução francesa. Ao mesmo tempo,<br />
não tendo retomado o sujeito gramatical do primeiro parágrafo, evitou<br />
a desagradável monotonia que a repetição — explícita ou implícita —<br />
do mesmo sujeito viria, com toda a certeza, a provocar.<br />
Após esta proposição inicial sobre a irritação de Apolo, segue-se<br />
uma longa explicação etiológica, salientada pelo travessão e introduzida<br />
pela conjunção causal, tradução anódina da locução equivalente<br />
«parce que». Continuando a servir-se da tradução de Leconte de Lisle<br />
como matriz da sua criação artística, substituiu a forma activa da proposição<br />
francesa: «l'Atréide avait couvert d'opprobre Khrysès le sacri-
<strong>HOMERO</strong> <strong>NUM</strong> <strong>MANUSCRITO</strong> <strong>INÉDITO</strong> 389<br />
ficateur»; daqui derivou a proposição seguinte: «porque o seu sacerdote<br />
Crises ... fora ofendido por Agamémnon, rei dos Acaios». Como é<br />
óbvio, modificações como estas não são irrelevantes. A forma passiva<br />
faz subir o «sacerdote Crises» a uma posição de destaque, à cabeça<br />
da proposição, e aproxima-o de Apolo, do «Deus» que se encontra<br />
no princípio da frase e cujas relações de afecto e estima são sublinhadas<br />
pelo possessivo «seu», do sintagma «seu sacerdote». O segundo<br />
lexema surge aqui como alternativa a «sacrificador», correspondente a<br />
«sacrificateur», elemento que é reservado para outro contexto, mas<br />
que se encontra implícito na longa expansão que se segue e realça<br />
ainda mais a importância de Crises e a gravidade da ofensa: «... o que<br />
no templo de Tenedos, entre loureiros, lhe queimava em seu louvor as<br />
pernas gordas das cabras ...» (cf. 77. 1.41).<br />
É curioso notar como esta expansão narrativa é formada quase<br />
integralmente por elementos transpostos de um género de discurso<br />
totalmente diferente, que valerá a pena transcrever, para melhor apreender<br />
as modificações operadas (p. 2):<br />
— Entendez-moi, Porteur de l'arc d'argent, qui protèges Khrysè et Killa,<br />
et commandes fortement sur Ténédos, Smintheus! Si jamais j'ai orné ton<br />
beau temple, si jamais j'ai brûlé pour toi les cuisses grasses des taureaux et des<br />
chèvres, exauce non voeu: que les Danaens expient mes larmes sous tes flèches!<br />
Como se vê, trata-se de um género particular do discurso relatado<br />
— a súplica (cf. //. 1.37-42). Eça de Queirós eliminou-o, ou, se<br />
se preferir, transformou-o em discurso narrativizado (Genette, 1972:<br />
191 sqq.), aproveitando os elementos que sublinhámos no texto e<br />
rejeitando todos os outros. E já este contraste entre o que escolheu<br />
e o que rejeitou, nos dá uma ideia aproximada do seu fino tacto artístico.<br />
O estilo directo não poderia ter cabimento numa descrição compacta,<br />
em que a fuga à dispersão se revela como um dos maiores esforços do<br />
escritor. Daí a eliminação das marcas da linguagem apelativa, como<br />
os deícticos de segunda pessoa, as formas do imperativo e os vocativos;<br />
e igualmente as da linguagem emotiva: deícticos e formas verbais<br />
da primeira pessoa, as exclamações, as repetições anafóricas «si jamais ...<br />
si jamais», e, enfim, aquele acervo de elementos pertencentes à retórica<br />
do eu, em que se pode incluir, no presente contexto, a sobrecarga de<br />
lexemas maiusculados, como os toponímicos «Khrysè», «Killa» e o<br />
epíteto «Porteur de l'arc d'argent», que, imprimindo ao texto uma<br />
marca de erudição rebuscada e opaca, funcionariam como um ruído<br />
perturbador, impeditivo daquela transparência, leveza e comunicabilidade<br />
que fazem o encanto do estilo queirosiano.
390 MANUEL DOS SANTOS ALVES<br />
I>e todos esses processos retóricos de que o ancião se valeu para<br />
comover — «irritar» em seu favor — «o coração do Deus», Eça de<br />
Queirós apenas reteve o topónimo «Ténédos», que associou a um dos<br />
trunfos utilizados por Crises, a imolação das vítimas (mas apenas<br />
«chèvres», não «taureaux»!). De mais não precisava para acentuar a<br />
gravidade da ofensa, resultante dos laços íntimos que ligavam o sacerdote<br />
a Apolo. Em compensação, inseriu no seu texto o sintagma<br />
«entre os loureiros», acrescento feliz que não tem um único correspondente<br />
em toda a Ilíada, mas, como planta consagrada a Apolo,<br />
pertence ao domínio tradicional da interdiscursivídade mitológica.<br />
Por este complexo processo de elaboração, se adivinha o sério<br />
esforço que Eça de Queirós desenvolveu para se manter original e<br />
independente face ao modelo textual utilizado; Mas que o texto<br />
primeiro exercia sobre o texto segundo uma tutela avassaladora, de<br />
que o escritor só conseguia libertar-se após luta renhida, prova-o o<br />
predicado da primeira condicional «j'ai orné», por imposição do qual<br />
ele chegou a escrever «lhe adornava», para depois rasurar este conjunto,<br />
eliminando deste modo a primeira das duas actividades culturais mencionadas<br />
na tradução francesa, e escrevendo entre linhas os elementos<br />
«lhe» è «em seu louvor», correspondentes ao sintagma francês «pour toi».<br />
Digno de nota é também o mais-que-perfeito passivo «fora ofendido»,<br />
que constitui a alternativa preferida a «fora insultado» (rasurado<br />
no manuscrito), e corresponde à expressão hipotextual «avait couvert<br />
d'opprobre» (p. 1; cf. //. v. 11), que reaparece mais adiante, ligeiramente<br />
modificada, na mensagem do adivinho Calcas: «son sacrificateur<br />
qu'Agamemnon a couvert d'opprobre» (p. 4). A presença,<br />
neste contexto, do nome do Atrida bastaria para que o escritor o utilizasse<br />
como agente da passiva, cujo aposto, «rei dos Acaios», é um<br />
evidente decalque do sintagma «roi des hommes», que aparece logo no<br />
início do- poema. Apercebendo-se de que a tradução literal seria<br />
insuportável, Eça de Queirós substituiu o substantivo comum «homens»<br />
pelo etnónimo «Acaios», que repetiu, para manter bem viva no espírito<br />
do leitor a ideia de que são os Aqueus as verdadeiras vítimas de Apolo.<br />
Quanto à proposição relativa, «que lhe arrebatara a filha», trata-se<br />
de um fragmento do discurso narrativizado, em que, pondo de parte<br />
os elementos «lhe» e «filha», correspondentes exactamente a «sa<br />
fille» (p. 2), se destaca a forma verbal «arrebatara», sobredeterminada<br />
pela forma dp infinitivo francês «enlever», que ocorre com frequência<br />
naqueles contextos em que se encontram envolvidos os dois chefes<br />
rivais, Agamemnon e Aquiles, acompanhados do prudente Nestor:<br />
ameaças, interpelações e promessas. Na verdade, assim se, pode 1er
<strong>HOMERO</strong> <strong>NUM</strong> <strong>MANUSCRITO</strong> <strong>INÉDITO</strong> 391<br />
na tradução de Leconte de Lisle: «Celles que nous avons enlevées des<br />
villes saccagées» (p. 5); «tu me menaces de m'enlever la récompense»<br />
(p. 6); «Phoibos Apollon m'enlève Khrysèis (p. 7); «il est beaucoup<br />
plus aisé... d'enlever la parte de celui qui le contredit» (p. 8); «Il n'est<br />
pas permis à Agamemnon... d'enlever au Pèléide la vierge que lui ont<br />
donné les fils des Akhaiens» (p. 9); «Et je... lui donnerai... celle que<br />
je lui ai enlevée» (p. 154); «Et il te donnera ... celle qu'il t'a enlevée,<br />
la vierge Breisèis» (p. 158); «à moi seul il m'a enlevé ma récompense»<br />
(p. 159). Perante tão numerosas ocorrências, em que a iteratividade<br />
enfeixa na mesma isotopia do rapto um leque significativo de passos<br />
hipotextuais da tradução de Leconte de Lisle, mais facilmente se compreenderá<br />
a preferência dada por Eça de Queirós à forma «arrebatara».<br />
Na verdade, esta condensa um longo fragmento do texto homérico,<br />
em que é pormenorizadamente narrada a tentativa do resgate, o discurso<br />
proferido por Crises perante os Aqueus reunidos em assembleia,<br />
o bom acolhimento destes e a atitude agressiva do seu chefe. Todos<br />
estes pormenores, que prejudicariam sem dúvida a coesão unitária<br />
do hipertexto queirosiano, foram omitidos e de alguma maneira substituídos<br />
pela simples forma verbal, a cujo emprego também não é alheio<br />
o código romanesco de Eça de Queirós.<br />
«Criseis, virgem forte de seio resplendecente». O nome da filha<br />
de Crises é, ao lado do etnónimo «Acaios», já analisado, mais uma<br />
prova muito concreta da relação genética que liga os dois textos. Não<br />
passa, com efeito, de uma transliteração rigorosa da forma correspondente<br />
«Khrysèis», que se lê na tradução de Leconte de Lisle. Tratando-se<br />
de um patronímico, a forma correcta seria «Criseida», à<br />
semelhança de «Briseida», também transcrita noutro passo — mas<br />
este não inédito — por «Briseis» (1901: 138). Quanto ao conjunto<br />
«virgem forte», o lexema «virgem» aparece largamente representado<br />
na tradução de Leconte de Lisle: «la vierge Khrysèis» (p. 5); «En effet,<br />
je la préfère à Klytaimnestrà, que j'ai épousée vierge» (p. 13); «la vierge<br />
que lui ont donnée les fils des Akhaiens» (p. 9); «Les Akhaiens aux<br />
sourcils arqués ont conduit la jeune vierge à Khrysè» (p. 13); «irrité<br />
au souvenir de la vierge Breisèis» (p. 39); cf. etiam pp. 154 e 158. Mais<br />
curiosa ainda é a nota sensual conferida à aparência da donzela pelo<br />
sintagma «de seio resplandecente». De matriz nitidamente queirosiana,<br />
foi, no entanto, modelada em muitas outras expressões de estrutura<br />
similar com que Homero mimoseia, com manifesta prodigalidade, as<br />
suas figuras femininas, mortais e imortais: «Athènè aux yeux clairs<br />
(p. 7), «Breisèis aux belles joues» (pp. 7 e 11), «Thétis aux pieds d'argent»
392 MANUEL DOS SANTOS ALVES<br />
(p. 17), «Hère au thrône d'or» (p. 19), «Andromakhè aux bras blancs»<br />
(p. 113). Quanto a Criseida, ele é «la jeune fille aux sourcils arqués»<br />
(p. 4), «Khrysèis aux belles joues» (pp. 5 e 10) e «jeune femme à la<br />
belle ceinture» (p. 114). Estes epítetos homéricos passaram para a<br />
o interdiscurso literário e mesmo jornalístico. Deles se encontram<br />
frequentes decalques na imprensa francesa contemporânea de Eça<br />
de Queirós, que também os empregou, sobretudo naqueles textos literários<br />
que se seguiram à leitura de Homero. Mas aquele de que se<br />
trata agora é da sua exclusiva lavra, e convém aprofundar as razões<br />
que levaram o escritor a não aproveirar nenhuma das acima mencionadas.<br />
É certo que os elementos componentes do sintagma estão<br />
bem representados no hipotexto homérico. Assim, o adjectivo tem o<br />
seu equivalente no epíteto «resplendissant», que tanto aparece associado<br />
a objectos inanimados, como animados: «Hektôr ôta son casque et le<br />
déposa resplendissant sur la terre» (pp. 115 sqq.); «le vieux Priamos<br />
l'aperçut... resplendissant» (p. 400); aparece ainda apoiado por formas<br />
verbais da mesma família etimológica: «les armes brillantes resplendissaient»<br />
(p. 71); «Hélios resplendit» (p. 210). Também o lexema<br />
«seio» aparece largamente representado em sintagmas como «sein<br />
de la nourrice», que aparece na cena da despedida de Heitor e Andrómaca<br />
(p. 114). Mas trata-se de uma última opção, bem de acordo<br />
com o gosto artístico de Eça de Queirós. Com efeito, o lexema «seio»<br />
surge no manuscrito queirosiano apenas entre linhas, como alternativa<br />
(finalmente) preferida ao lexema «braços», rasurado no texto e, aliás,<br />
também escorado no seu correspondente francês que integra o sintagma<br />
«aux bras blancs» (pp. 3, 48 e 113). No pensamento de Eça de<br />
Queirós, nem as «belas faces», nem a «bela cintura», nem os «braços<br />
brancos» constituíam, afinal, atracção suficientemente motivadora para<br />
Agamémnon e a violência deste expressa pela forma verbal «raptara».<br />
Além de «virgem forte», Criseida, para merecer as «honras» do rapto,<br />
tinha de impressionar, como uma destas cortesãs de recorte greco-<br />
-latino que povoam o universo queirosiano e seus modelos franceses —,<br />
pelo seu visível «seio resplandecente»! Rasgo plástico e parnasiano<br />
dessa original organização «artiste» que era Eça de Queirós!<br />
Digamos por fim e em resumo, que o escritor português continua<br />
a utilizar de preferência aqueles significantes que se encontram mais<br />
largamente representados na tradução de Leconte de Lisle. A frequência<br />
com que eles aparecem no hipotexto assegura a coesão do discurso<br />
e realça, como um refrão ou leitmotiv, a atmosfera homérica<br />
que Eça de Queirós procura acima de tudo imitar. Por outro lado,<br />
e como dissemos acima, tais significantes encontram-se mais concen-
<strong>HOMERO</strong> <strong>NUM</strong> <strong>MANUSCRITO</strong> <strong>INÉDITO</strong> 393<br />
trados neste segmento do que nos anteriores, o que também favorece<br />
a utilização deles.<br />
3. A Súplica de Crises<br />
O fragmento relativo à súplica de Crises está intimamente ligado<br />
ao anterior através da função analéptica que ele continua, como se<br />
pode ver:<br />
E o sacrificador, erguendo-se junto ao mar ressoante, chamara Apolo Vingador.<br />
E o Deus viera, dos cimos olímpicos, com a aljava cheia, que sobre as<br />
espáduas do Deus, fazia a cada largo passo, sobre o anel, um ruído de pratas<br />
es tropeadas.<br />
Tal função é assegurada por um par de formas verbais do mais-<br />
-que-perfeito : chamara e viera. A primeira, que sobreviveu a uma<br />
outra, «implorara o», rasurada no manuscrito, não constitui apenas<br />
um eco do francês «.conjura», que funciona como elemento do discurso<br />
atributivo (cf. Gerald Prince, 1978: 305-313), na frase introdutória<br />
da súplica: «II conjura le roi Apollon que Lètô à la belle chevelure<br />
enfanta» (p. 2). Muito mais que isso, constitui uma palavra-chave,<br />
uma síntese, aquilo a que com Gérard Genette (1972: 191 sqq.), poderíamos<br />
chamar uma narrativização do discurso directo em que foi<br />
enunciada a súplica a Apolo. O escritor, na sua luta com o hipotexto<br />
homérico, acabou por sair vencedor, isto é, realizou um texto inteiramente<br />
seu: retirou do seu contexto os significantes que integram o<br />
enunciado da prece e integrou-os no seu texto, para com eles realçar<br />
a gravidade da ofensa de Agamémnon. Quer dizer: enquanto em<br />
Homero eles funcionam como meios de persuasão, em Eça de Queirós<br />
têm como objectivo agravar o delito e intensificar a cólera de Apolo,<br />
para mais facilmente o fazer passar à acção. Tudo, afinal, vem a dar<br />
no mesmo, mas por caminhos outros — bem queirosianos —, e isto<br />
é o que importa realçar.<br />
Quanto ao sintagma nominal «o sacrificador», é uma evidente<br />
tradução literal do seu correspondente francês «le sacrificateur». Porém,<br />
dada a posição estratégica em que se encontra no hipertexto queirosiano,<br />
à cabeça da frase, mantém o realce já dado à actividade cultural<br />
e ao carácter sagrado da figura de Crises, circunstância agravante do<br />
crime. A participial gerundiva «erguendo-se junto ao mar ressoante»<br />
substitui, por um lado, a sua homóloga do hipotexto francês «se voyant<br />
éloigné», pertencente ao mesmo contexto, e constitui, por outro, uma<br />
afternativa para o período homérico: «Et il allait, silencieux, le long
394 MANUEL DOS SANTOS ALVES<br />
du rivage de la mer aux bruit sans nombre» (p. 2). Mas a preterição<br />
do acto de caminhar em benefício do acto de se erguer, confere mais<br />
dramaticidade e realce à decisão e à iniciativa do sacerdote. No que<br />
diz respeito ao conjunto «mer aux bruit sans nombre», dele derivou<br />
sem dúvida o sintagma «mar ressoante», fortemente escorado em outras<br />
variantes de sentido equivalente, como «la mer sonnante» (p. 6).<br />
Mas um dos mais felizes achados de Eça de Queirós está na expressão<br />
«Apolo Vingador», cujo ponto de partida é sem dúvida a frase<br />
já citada, «Il conjura le roi Apollon que Lètô à la belle chevelure enfanta»<br />
(p. 2). Dela extraiu os elementos «conjura» e «Apollon», para traduzir,<br />
adaptando, «chamara Apolo». Que esta redacção definitiva foi precedida<br />
de um período de hesitação, prova-o a rasura que «inutiliza»<br />
os elementos «implorara o», a qual sugere a ideia de uma primitiva<br />
intenção de aproveitar também o sintagma «le roi», do que resultaria<br />
a frase «implorara o rei Apolo», que seria uma tradução literal do<br />
francês. Todavia, como prova do seu labor criativo, Eça de Queirós<br />
eliminou o substantivo comum e todo o resto da frase, para introduzir<br />
no seu texto um epíteto de primordial importância pela interligação<br />
que apresenta com a isotopia da vingança, a mola real da acção no<br />
poema. Trata-se do epíteto «Vingador», sobredeterminado pelo verbo<br />
«venger», de que há numerosas ocorrências disseminadas pelo hipotexto<br />
francês da tradução de Leconte de Lisle: «[Apollon] venge son sacrificateur»<br />
(p. 4), «pour venger Ménélaos» (p. 6), «venge-toi en paroles»<br />
(p. 7), «Et il espéra de se venger de celui qui l'avait outragé» (p. 46),<br />
«Je me vengerai de toi» (p. 400); finalmente, é o próprio Aquiles que<br />
surge diante de Heitor como «un vengeur» da morte de Pátroclo (p. 409).<br />
A presença da inicial maiúscula é uma boa indicação de que Eça de<br />
Queirós modelou o conjunto «Apolo Vingador» em estereótipos homéricos,<br />
como «1'Archer Apollon» (pp. 2, 4, 15, 52, passim), «Apollon<br />
l'Archer» (p. 3), cujo equivalente português, «Archeiro», aplicado a<br />
Apolo, soaria horrivelmente a falso. De resto, a expressão apresenta<br />
um parentesco muito próximo com outras já antes utilizadas pelo escritor<br />
como, por exemplo, «Deus Vingador» (1880: 375).<br />
«E o Deus viera»: tradução literal do francês «était venu», que<br />
aparece no início do poema como predicado de «Celui-ci», quer dizer,<br />
«Khrysès». Esta forma francesa do mais-que-perfeito, a única que<br />
aparece em todo o Canto I, é digna de nota, pois sem dúvida foi ela<br />
que sobredeterminou toda a série de mais-que-perfeitos analépticos<br />
do hipertexto queirosiano : fora ofendido, chamara, viera, ferira, ferira.<br />
Corresponde, além disso, ao predicado entendit, da frase: «II parla<br />
ainsi en priant et Phoibos Apollon l'entendit», (p. 2). Esta forma
<strong>HOMERO</strong> <strong>NUM</strong> <strong>MANUSCRITO</strong> <strong>INÉDITO</strong> 395<br />
verbal é, na tradução de Leconte de Lisle, correlata de «priant», de<br />
que exprime um efeito perlocutivo (cf. Silva, 1.991: 324), tal como,<br />
no hipertexto queirosiano, a forma «viera» relativamente a «chamara»<br />
(no sentido de chamar alguém para que venha em socorro: «E o Deus<br />
viera»). A. preferência por esta forma, aliás, imposta pelo contexto,<br />
explica a eliminação de outro verbo de movimento, «il se précipita»,<br />
cujo complemento de lugar donde, a sequência sintagmática «du sommet<br />
Olympien» foi traduzido à letra por «dos cimos olímpicos», sob a influência<br />
de variantes como «sur le plus haut faîte de VOlympos aux cimes<br />
nombreuses» (p. 16), «fe haiut Olympos» (p. 21), «elle se précipita des<br />
sommets de VOlympos» (p. 61) e outras. Ao complemento assim formado<br />
ligou a forma «viera», depois de a deslocar do início de um<br />
contexto diferente, e fazendo-a «sobrevoar» o longo texto relativo<br />
à iniciativa de Crises e à recusa de Agamémnon. Estas as operações<br />
intertextuais mais complexas. As outras movem-se num espaço<br />
dialógico mais restrito. Na verdade, o complemento «com a aljava<br />
cheia» é tradução literal de «avec le plein carquois», tal como a sequência<br />
sintagmática «sobre as espáduas do Deus» o é de «sur ses ápaules...<br />
du dieu». Já o predicado e seus complementos — «fazia a cada largo<br />
passo, sobre o anel, um ruído de pratas estropeadas» — representa uma<br />
variante originalíssima e estilisticamente muito rica do que a sua<br />
correspondente francesa: «les flèches sonnaient... à chacun de ses<br />
mouvements». O sintagma «a cada largo passo» é muito mais feliz que<br />
o seu homólogo «à chacun de ses mouvements». Para além da sua eficácia<br />
mimética, que o torna mais apto para sugerir o ritmo marcial do<br />
Deus irritados imprime ao texto aquela nota de clareza e de precisão, que<br />
o plural abstractizante do francês «mouvements» não pode assegurar.<br />
Quanto ao adjectivo «largo», particularmente adequado à expressão<br />
da marcha do deus, ele aparece no manuscrito entre linhas, como<br />
acrescento posterior, correspondente ao francês «large», que integra sintagmas<br />
como «larges rues» (pp. 20. 21, passim), «large manteau» (p. 21),<br />
plus largeáés épaules et dê la poitrine» (p. 51), enlarges murailles» (p. 60).<br />
Mais complexa é a génese da sequência «fazia... um ruído de<br />
pratas estropeadas». Que ela foi elaborada a partir do francês «les<br />
flèches sonnaient», pertencente ao mesmo contexto, não restam quaisquer<br />
dúvidas. Mas não é menos certo que, enquanto essa proposição,<br />
mesmo considerando o contexto em que se insere, pouco se eleva<br />
acima do grau zero da escrita—, a redacção portuguesa, representando<br />
um verdadeiro desvio, é-lhes estilisticamente muito superior.<br />
É a conclusão a que poderemos chegar, após.um confronto entre as
396 MANUEL DOS SANTOS ALVES<br />
duas. Antes de mais, o hipertexto queirosiano impõe-se ao hipotexto<br />
francês da tradução de Leconte de Lisle, pela sua clareza, pois atribui<br />
o ruído não ao conteúdo (as flechas), mas ao continente «a aljava cheia»<<br />
«le plein carquois»), o que é logicamente muito mais compreensível.<br />
Para clarificar melhor a ideia, o escritor introduziu um complemento<br />
em que o intertexto é omisso. Trata-se do sintagma «sobre o anel»,<br />
sem dúvida sobredeterminado por expressões como «les anneaux d'or<br />
du baudrier» (p. 62) e «pointe d'airain retenue par un anneau d'or»<br />
(p. 147). Interligado à isotopia do metal, constitui uma adequada<br />
explicação do choque e do consequente «ruído», cujo qualificativo,<br />
«de pratas estropeadas», forma uma imagem bem original e bem queirosiana,<br />
tal como o conjunto «fazia ... um ruído de armas caídas»,<br />
que analisaremos mais adiante. Com efeito, ela não foi concebida<br />
extrinsecamente, a partir de fora, mas intrinsecamente, a partir do<br />
conteúdo semântico desse mesmo contexto a que pertence, ou seja,<br />
do andamento marcial de Apolo, «com o arco de prata da sua armadura».<br />
Assim, o concentrado conjunto «de pratas estropeadas» é o efeito<br />
sinestésico de uma associação triádica — movimento/metal/som—•,<br />
dotado de grande eficácia mimética, que nos permite visualizar, na<br />
sua grandeza épica, a figura do divino herói no seu andamento marcial,<br />
pisando pesadamente — «estropeando» — um caminho coberto de<br />
objectos de prata. Ao mesmo tempo, se o plural denota, por um lado,<br />
os vários passos ("«mouvements») de Apolo, realça, por outro, a atmosfera<br />
homérica na qual, como vimos nos exemplos acima apontados,<br />
a prata superabunda, associada à grandiosidade dos heróis. Neste<br />
aspecto, ousaríamos mesmo afirmar que este pormenor querirosiano<br />
chega a ter o sabor de uma subtil alusão irónica ao universo tão plasticamente<br />
«prateado», como o da Ilíada.<br />
4. A Vingança de Apolo<br />
O fragmento do manuscrito em que são descritos os efeitos devastadores<br />
da vingança de Apolo, é, a nosso ver, um dos mais curiosos.<br />
Isto por várias razões. Uma delas — e não a menor — é que o respectivo<br />
hipotexto se impôs em bloco, e de tal maneira que o escritor<br />
se viu obrigado a consenti-lo no seu próprio hipertexto como um<br />
órgão, estranho sem dúvida, mas que se adapta perfeitamente ao<br />
novo organismo, de cuja vida passa a participar, sem encontrar qualquer<br />
rejeição. Nem podemos sequer dizer que estejamos perante um caso<br />
que em intertextologia se costuma designar por intertextualidade fraca<br />
(cf. L. Jenny, 1976: 262-263). Esta não existe na obra de uma per-
<strong>HOMERO</strong> <strong>NUM</strong> <strong>MANUSCRITO</strong> <strong>INÉDITO</strong> 397<br />
sonalidade literária forte como Eça de Queirós, nem mesmo quando<br />
ele pareça ceder na sua luta com o texto primeiro. É que ele sabe<br />
sempre imprimir aos significantes rebuscados em referentes textuais<br />
alheios um quid, uma marca de originalidade que faz com que o enxerto<br />
pegue mesmo, para passar a respirar uma vida nova, que não tinha no<br />
hipotexto. Todavia, mesmo no caso deste fragmento, Eça de Queirós,<br />
que nunca se limita a traduzir, ou seja, à pura tautologia, nem suporta,<br />
sem os adaptar ao seu génio artístico, blocos textuais pré-estruturados —,<br />
inseriu no conjunto transposto outros elementos, também homéricos,<br />
mas derivados de contextos diferentes. Importa, por isso, estabelecer<br />
uma distinção liminar entre estes e o bloco que constitui propriamente<br />
o núcleo hipotextual, centrado sobre a vingança de Apolo, ou, por<br />
outras palavras, sobre o flagelo da peste, alegoricamente descrito em<br />
termos bélicos, como dissemos. Um confronto intertextual não<br />
deixará quaisquer dúvidas quanto à identidade desse elemento paradigmático<br />
:<br />
A < B<br />
Primeiro, ele ferira os cavalos que, Il frappa d'abord les mulets et les<br />
amarrados junto à tenda, comiam o chiens rapides; mais, ensuite, ilperça les<br />
lótus; depois ferira os molossos rápi- hommes eux-mêmes du trait qui tue.<br />
dos; por fim, trespassava os guerreiros Et, sans cesse, les bûchers brûlaient,<br />
que tombavam, fazendo na areia um lourds de cadavres.<br />
ruído de armas caídas. Sem cessar, Depuis neuf jours, les flèches divines<br />
as longas flechas silvavam através do sifflaient à travers l'armée, (p. 3)<br />
acampamento :<br />
Como facilmente se poderá ver pelo nosso sublinhado, Eça de<br />
Queirós incorpora no seu hipertexto, um pouco mais longo, e traduzidos<br />
à letra, os elementos mais significativos do núcleo intertextual da<br />
tradução de Leconte de Lisle. Quanto aos outros, porém, não se<br />
pense que são postos de parte. Exceptuando o irrelevante inciso<br />
«... eux-mêmes du trait qui tue», que, a ser inserido no texto queirosiano,<br />
não passaria de um elemento parasita, todos são avaramente aproveitados,<br />
embora dispersos por outros contextos, segundo o plano pessoal do<br />
escritor, como, por exemplo, o já referido informante temporal «Depuis<br />
neuf jours». Tal como no seu modelo, também no texto queirosiano<br />
se nota uma espécie de escalada da guerra, pois nele as vítimas de Apolo<br />
encontram-se enumeradas por ordem:<br />
A — cavalos<br />
B — cães<br />
C — guerreiros
398 MANUEL DOS SANTOS ! ALVES<br />
Mas essa ordenação não ressalta com clareza no texto mediador<br />
(mesotexto) de Leconte de Lisle, devido à sua estrutura diádica, que<br />
concentra, numa primeira fase, associando-os pela coordenativa, os<br />
elementos relativos aos animais: «... les mulets... et lés chiens...».<br />
Numa segunda fase, bem destacada pela pontuação (;), pela àdversativa<br />
que se lhe segue, «mais» e pelo advérbio «ensuite» —, é que aparecem<br />
«les hommes eux-mêmes». Eça de Queirós, pelo contrário, reparando<br />
bem no informante temporal «d'abord», que, posposto a «mulets»,<br />
se refere apenas ao primeiro elemento — «les mulets d'abord» — notou<br />
que 0 segundo elemento — «les chiens rapides» —, precedido da copulativa<br />
«et», representava, afinal, uma segunda fase. Por isso, introduziu<br />
logicamente uma não irrelevante modificação, substituindo a<br />
estrutura diádica, pela estrutura triádica, aliás favorecida pela importância<br />
que tem o número três na estrutura antropológica do imaginário,<br />
pois trata-se de um número perfeito, mesmo estilisticamente<br />
falando. Assim, às fases A + B do hipotexto francês sucedem as<br />
fases A + B + C do hipertexto queirosiano, pelo desdobramento de A<br />
em A + B. E é curioso notar que, para A e B, o escritor usou, respetindo-o,<br />
o mesmo e único verbo — «ferira... ferira» .— que corresponde<br />
à forma francesa «frappa», construída com complemento<br />
directo duplo, «les mulets... et les chiens».<br />
Mas é óbvio que, respeitando a função analéptica do discurso,<br />
Eça de Queirós substituísse o «passé simple» («il frappa») pelo repetido<br />
mais-que-perfeito («ferira»). Já é mais significativo que outra forma<br />
do «passé simple» («perça») apareça representada no hipertexto queirosiano<br />
por uma forma do pretérito imperfeito («trespassava»), em<br />
nítido contraste com as formas verbais anteriores. É que estas, tendo,<br />
por um lado, uma função analéptica, mas denotando, por outro, acontecimentos<br />
sucessivos, escalonados no tempo, garantem a transição da<br />
história passada para a situação presente. Esta aparece adequadamente<br />
sublinhada pelos iterativos «trespassava» e «tombavam», tal<br />
como o é, na tradução de Leconte de Lisle, pelos imperfeitos «brûlaient»<br />
e «sifflaient». Quer dizer: a oposição perfeito vs imperfeito que aparece<br />
no texto francês, é, no hipertexto queirosiano, substituída pela oposição<br />
mais-que-perfeito vs imperfeito. Também não será irrelevante<br />
notar que ao lexema impreciso «hommes» o escritor tenha preferido<br />
o termo mais adequado «guerreiros», pelo mesmo motivo que já antes<br />
o tinha levado a optar pelo etnónimo «Acaios».<br />
Perante um hipotexto cuja estrutura lhe não impunha alterações<br />
substanciais, o escritor poucas emendas introduziu no seu manuscrito.<br />
Apenas distinguimos duas rasuras: uma sobre o advérbio «depois»,
<strong>HOMERO</strong> <strong>NUM</strong> <strong>MANUSCRITO</strong> <strong>INÉDITO</strong> 399<br />
que já tinha empregado antes, para o substituir agora pela locução<br />
«por fim», mais apta para introduzir o terceiro e último elemento da<br />
tríade, que representa também o clímax da escalada da guerra. Mas<br />
particularmente feliz foi a substituição do banalíssimo monossílabo<br />
«cães», que ele apresentou numa primeira redacção como correspondente<br />
(demasiado literal) do também banalíssimo francês «chiens» —,<br />
pelo menos vulgar e mais poético «molossos».<br />
Tais são as observações que nos pareceram mais pertinentes,<br />
quanto ao núcleo intertextual do fragmento. No que diz respeito à<br />
introdução de elementos novos, a primeira observação que se nos<br />
depara é que se trata de duas expansões, com estrutura de proposições<br />
relativas, uma espécie de recheio estilístico que facilita a transmigração<br />
dos significantes do texto primeiro para o texto segundo, pela<br />
sábia combinação ou entrelaçamento dos elementos de um e de<br />
outro.<br />
Com efeito, depois de traduzir a proposição «Il frappa les mulets<br />
d'abord» por «Primeiro ele ferira os cavalos», apercebeu-se de que<br />
um período assim tão curto, quebraria o ritmo geral que comanda o<br />
discurso. Por isso, procurou prolongar-lhe o fôlego e alimentar a<br />
cadência frásica com uma expansão. Para esse fim, convocou outro<br />
passo, onde também aparece o cavalo como referente, e é descrita a<br />
«greve» do amuado Aquiles e seus solidários guerreiros, que recusam<br />
combater ao lado dos Argivos contra os Troianos. E, enquanto ocupam<br />
os seus tempos livres, brincando à guerra na praia, «les chevaux auprès<br />
des chars, broyaient le lotos et le sélinos des marais; et les chars solides<br />
restaient sous les tentes des chefs» (p. 41). Como claramente se pode<br />
ver, da proposição hipotextual «les chevaux ... broyaient le lotos»,<br />
derivou, por tradução literal, o conjunto «os cavalos que comiam o<br />
lótus»; da mesma maneira, o informante locativo «auprès des chars...<br />
et les chars solides restaient sous les tentes des chefs» sobredeterminou,<br />
por adaptação interpretativa, o conjunto participial «amarrados<br />
junto à tenda». É significativo o desaproveitamento, neste contexto,<br />
do lexema «chars», que o escritor reserva para a parte final<br />
do texto.<br />
Quanto à segunda expansão — «...guerreiros que tombavam,<br />
fazendo na areia um ruído de armas caídas» —, ela representa uma<br />
elaboração mais original e também mais complexa. Foi modelada<br />
na mesma estrutura de profundidade que subtende o conjunto congénere,<br />
«fazia... um ruído de pratas estropeadas», já anteriormente
400 MANUEL DOS SANTOS ALVES<br />
analisado. Há, com efeito, na Ilíada, numerosos passos interligados<br />
pela mesma isotopia da morte dos guerreiros, o que, aliás, não causa<br />
surpresa, atendendo ao leitmotiv bélico do poema. Entre eles, destaca-se<br />
um amigo de Eneias que, atingido no ventre pela lança de Agamemnon,<br />
«.tomba avec buit et ses armes résonnèrent sur son corp»<br />
(p. 91). Além deste há muitos outros exemplos, como aquele em que,<br />
tendo os Gregos irrompido contra os Troianos, um destes, atingido<br />
pela lança de Tideu, «tomba du char, et ses armes retentirent» (p. 140).<br />
Confrontemos agora as duas frases:<br />
A —11 tomba avec bruit, et ses armes résonnèrent sur son corp.<br />
B — Le Troyen tomba du char, et ses armes retentirent.<br />
Não achamos necessário esclarecer o paralelismo estrutural destes<br />
enunciados paratácticos, tão evidente ele se apresenta. Mais relevante<br />
será sublinhar a identidade do mesmo paradigma semântico que<br />
os une. Com efeito, em ambos se encontra associado o ruído das<br />
armas ao acto da queda, embora neste aspecto a frase A, em que a<br />
ideia de ruído se encontra mais largamente representada, tenha servido<br />
melhor os desígnios estilísticos de Eça de Queirós. Desta associação<br />
derivou a participial gerundiva «fazendo na areia um ruído de armas<br />
caídas», da mesma maneira que já antes, da associação do ruído de<br />
prata com o acto de marchar («estropear») de Apolo, tinha derivado a<br />
proposição «fazia a cada largo passo, sobre o anel, um ruído de pratas<br />
estropeadas». Um mesmo hipotexto as une. Quanto ao sintagma<br />
preposicional «na areia», que corresponde estruturalmente ao anterior<br />
locativo «sobre o anel», não faltam exemplos na Ilíada a apoiá-lo:<br />
«[les Akhaiens] tirèrent la nef noire au plus haut des sables de la plage»<br />
(p. 16); atingido por Antíloco, um guerreiro troiano caiu morto, «la<br />
tête et les épaules enfoncées dans le sable».<br />
Também não podemos omitir um apontamento sobre a correcção<br />
introduzida por Eça de Queirós no seu manuscrito. Em vez de «tombavam»<br />
— forma demasiado decalcada no francês «tomba» —, tinha<br />
escrito primeiro «cahiam». Mas depois, já porque este vocábulo, precedido<br />
do relativo que, dava origem a um desagradável cacófato, já sobretudo<br />
porque formava repetição com o particípio «cahidas», em que termina<br />
a frase —, rasurou aquela forma verbal e substituiu-a por «tombavam»,<br />
escrita entre linhas. De qualquer forma, estamos perante uma<br />
espécie de figura etimológica, em que a imagem acústica «ruído de armas<br />
caídas» está já embrionariamente contida na forma verbal tombavam/
<strong>HOMERO</strong> <strong>NUM</strong> <strong>MANUSCRITO</strong> <strong>INÉDITO</strong> 401<br />
caíam, tal como a sua congénere «ruído de armas estropeadas» se<br />
adivinha no caminhar de Apolo, adequadamente expresso pelo sintagma<br />
«a cada largo passo».<br />
Quanto à frase final deste mesmo fragmento, «sem cessar as longas<br />
flechas silvavam através do acampamento», ela é, como se vê, uma<br />
tradução literal do francês «sans cesse... les flèches divines sifflaient<br />
à travers l'armée». Todavia, se o sintagma «sans cesse» se encontra<br />
repetido ad nauseam ao longo da tradução de Leconte de Lisle — «tu<br />
me soupçonnes sans cesse» (p. 18), «des essaims ... sortent ... sans cesse<br />
(p. 37), passim —, há transformações a ter em conta. Assim, para<br />
«flechas», o esperado qualificativo «divinas», que tem o seu equivalente<br />
no hipotexto, é preterido em favor do adjectivo «longas», mais apto<br />
a sublinhar a ideia de distância e o efeito de longo alcance também<br />
favorecido pelo sintagma «à l'écart», pertencente ao mesmo núcleo<br />
hipotextual e se encontra representado em expressões, como «longue<br />
pique» (p. 90). Também para o lexema «armée», ao correspondente<br />
literal «exército», preferiu o termo «acampamento», não só pela razão<br />
acima apontada, mas também porque, neste passo, aquele lexema não<br />
se harmonizaria bem com a locução preposicional «através de». Aliás,<br />
a opção está solidamente apoiada no hipotexto francês: «[les chefs]<br />
erraient à travers le camp (p. 41); « — Pourquoi errez-vous seuls...<br />
à travers le camp?» (p. 175).<br />
Como estamos a ver, a análise intertextual destes processos, o<br />
estudo contrastivo entre um antes e um depois, entre a redacção primitiva<br />
e a redacção (definitiva?) do manuscrito, com a tortura das emendas,<br />
das rasuras, das entrelinhas e das entrelinhas das entrelinhas — introduzem-nos<br />
no labirinto oficinal, na génese da escrita queirosiana.<br />
E esta aturada luta pela expressão artística não deixa, por outro lado,<br />
de pôr em evidência a forte sedução do escritor português pela épica<br />
homérica.<br />
5. As Vítimas do Castigo<br />
O último fragmento do manuscrito destaca-se dos anteriores por<br />
uma intervenção elaborativa mais intensa. A consciência estruturante<br />
de Eça de Queirós revela-se no contraste entre a solidez do seu tecido<br />
hipertextual e a dispersão dos significantes, que se encontram num<br />
espaço muito mais dilatado da tradução de Leconte de Lisle (pp. 2-411).<br />
Isso constitui um desafio para o analista, tanto mais estimulante quanto<br />
mais complexa se torna a análise.
402 MANUEL DOS SANTOS ALVES<br />
Depois de nos descrever as flechas de Apolo, a ofensa de Agamemnon,<br />
a cólera e a vingança do deus, Eça de Queirós pinta-nos o<br />
quadro cénico da situação presente:<br />
agachados à sombra das naves, que se rachavam em seco nas abas da praia,<br />
os homens fortes, com os longos cabelos sob a face, e os olhos no solo, sentiam<br />
o coração tremer; os carros de batalha jaziam acima, brilhando vagamente,<br />
com as rodas enterradas na areia; na sombra da tenda, luziam os escudos<br />
redondos, as espadas de pregos de prata; os chefes falavam em baixo, e sem<br />
cessar, entre os gritos de dor de mulheres esguedelhadas, e com a túnica<br />
aberta, as piras fumegavam, carregadas de cadáveres. Ao longe, o mar<br />
ressoava em cadência.<br />
Como vemos, a descrição aparece estruturada em formas verbais<br />
exclusivamente do imperfeito, de que se podem contar oito ocorrências,<br />
se incluirmos o gerúndio «brilhando», equivalente pelo seu valor durativo.<br />
Esta isotopia temporal é também um dos elos de ligação que<br />
prendem este fragmento ao anterior, em que já se destacavam as formas<br />
iterativas «trespassava», «tombavam» e «silvavam».<br />
A estrutura deste fragmento, cujo referente principal são as vítimas<br />
da guerra (e de Apolo), assenta na oposição classemática animado<br />
vs inanimado: «os homens fortes» a tremer, «os chefes» a falar<br />
e «as mulheres esguedelhadas» a gritar constituem o primeiro pólo da<br />
oposição, face aos instrumentos de guerra, que, sob as flechas de Apolo,<br />
deixam de ser operacionais e constituem o outro pólo oposto : «as naves<br />
que se rachavam em seco», «os carros de combate» que jaziam inúteis,<br />
como inúteis luziam, de um luzir trágico, escudos e espadas. Os guerreiros<br />
não oferecem a mínima resistência e, apesar de «homens fortes»<br />
portam-se como cobardes : não oferecem a mínima resistência — quem<br />
poderia resistir às flechas de «Apolo Vingador»? «—Ils ne combattaient<br />
pont», diz Homero, na tradução de Leconté de Lisle (p. 41).<br />
Embora partindo de Homero, Eça de Queirós efectuou aqui uma<br />
sobreposição ou contaminatio de dois planos, quer dizer: na Ilíada,<br />
os guerreiros recusam combater por solidariedade para com o seu<br />
ofendido chefe e aparecem associados ao motivo da vingança (de<br />
Aquiles), sobrevivem ao flagelo da peste ,e fazem exercícios militares:<br />
«sur le rivage de la mer lançaient pacifiquement le disque, la pique ou<br />
la flèche» (p. 41). Mas no hipertexto queirosiano, embora apareçam<br />
também abrangidos pelos projectos de vingança (mas de Apolo), contudo<br />
não combatem — não por solidariedade, mas por medo, pois as<br />
suas vidas correm perigo, o que contradiz a ideia contida no advérbio<br />
hipotextual «pacifiquement».
<strong>HOMERO</strong> <strong>NUM</strong> <strong>MANUSCRITO</strong> <strong>INÉDITO</strong> 403<br />
Todavia, apesar desta transformação substancial, foi nesse núcleo<br />
intertextual que o escritor se baseou, sem qualquer dúvida. Aliás,<br />
e como já referimos acima, foi a partir dele que Eça de Queirós formou<br />
a relativa expansional «... os cavalos que, amarrados junto à tenda,<br />
comiam o lótus»
404 MANUEL DOS SANTOS ALVES<br />
Zeus, procura incitar os Acaios ao combate, num discurso em que diz:<br />
«le bois de nos nefs se corrompt, et les cordages tombent en poussière»<br />
(p. 24). Ambos os textos se encontram interligados pela isotopia da<br />
destruição, mas o texto português é literariamente mais rico, devido à<br />
ambiguidade ou sobreposição de efeitos: as naus «rachavam-se»,<br />
porque se encontravam «em secco», sem dúvida; mas também devido<br />
às flexas de Apolo dirigidas contra «os homens fortes», «agachados à<br />
sombra das naves».<br />
Um terceiro núcleo se destaca no mesmo contexto, embora habilmente<br />
disfarçado por modificações substanciais: é o que se encontra<br />
representado na sequência sintagmática «entie os gritos de dor de<br />
mulheres esguedelhadas e com a túnica aberta». Trata-se, sem dúvida,<br />
daquele passo da «Rhapsodie XXII», centrado na morte de Heitor. Ao<br />
vê-lo maltratado, coberto de pó, depois de Aquiles, para cevar a sua<br />
vingança, o ter arrastado no seu carro de guerra a alta velocidade,<br />
«dans un tourbillon de poussière» —, a velha Hécuba, «arrachant ses<br />
cheveux et déchirant son beau voile, gémissait en voyant de loin son<br />
fils» (p. 411). Eça de Queirós, para não concretizar demasiado o<br />
texto e o manter a um nível de suficiente generalização — pois trata-se,<br />
não de uma personagem individual, mas colectiva, uma comunidade,<br />
«os Acaios», «os chefes» —, transferiu a situação particular de Hécuba<br />
para um plano geral, assegurado agora pelo plural «as mulheres».<br />
Aliás, esse elemento encontra-se também presente ao longo desse mesmo<br />
Canto XXII, pois a dor não é nele apenas individual, mas colectiva<br />
e participada. A mãe de Heitor surge «parmi les Troiennes» e, quanto<br />
à desolada Andrómaca, «les soeurs et les belles-soeurs d'Hektôr l'entouraient»;<br />
a viúva, depois de recuperar os sentidos, aparece «gémissant<br />
au milieu des Troiennes» (p. 413); enfim, o Canto termina desta maneira:<br />
«Elle parla ainsi en pleurant et toutes les femmes se lamentaient comme<br />
elle» (p. 414). Como se vê, a tradução de Leconte de Lisle e o hipertexto<br />
queirosiano aparecem centrados no mesmo motivo do luto,<br />
expresso no pranto e na desordem exterior — cabelo em desalinho<br />
e as vestes rasgadas. Assim, o imperfeito durativo «gémissait» aparece<br />
metamorfoseado no conjunto de sentido equivalente «entre os gritos<br />
de dor», pela interferência de outros elementos, muito abundantes e<br />
interligados pela mesma isotopia: «les douleurs et les gémissements»<br />
(p. 21), «les cris montaient dans VOuranos» (p. 24), «les Troiens poussaient<br />
des cris confus et tumultueux» (p. 71). As participiais paratácticas<br />
«arrachant ses cheveux et déchirant son beau voile» aparecem<br />
plasmadas nas sequências de belo efeito, também paratacticamente<br />
ligadas uma à outra: «mulheres esguedelhadas, e com a túnica aberta».
<strong>HOMERO</strong> <strong>NUM</strong> <strong>MANUSCRITO</strong> <strong>INÉDITO</strong> 405<br />
É curioso notar como Eça de Queirós, apercebendo-se do carácter<br />
primitivo, bárbaro e violento das duas expressões homéricas, tal como<br />
se encontram na tradução de Leconte de Lisle, apenas manteve a primeira,<br />
«mulheres esguedelhadas» (
406 MANUEL DOS SANTOS ALVES<br />
dans nos demeures» (p. 24). A mulher helénica estava «isenta» de<br />
«serviço militar» e ficava em casa, ou a cultivar a fidelidade conjugal,<br />
iludindo os pretendentes com teias tácticas, como Penélope, ou, como<br />
Clitemnestra, a atraiçoar a lealdade do marido ausente, envolvendo-se<br />
em aventuras extra-conjugais com Egistos oportunistas. Portanto, se,<br />
no texto queirosiano, as vítimas fossem os Troianos, haveria lugar para<br />
prantos de mulher, como acontece na «Rhapsodie XXII» da Ilíada.<br />
Mas não é isso o que se verifica: as vítimas são os «Acaios», e estes,<br />
para carpir-lhes as mortes em volta de piras fumegantes, «defronte<br />
dos muros de Tróia», não podiam contar com suas esposas, que estavam<br />
ausentes, nem com as Troianas, que não iriam com toda a certeza<br />
desempenhar o papel de carpideiras oficiais face aos cadáveres do inimigo<br />
agressor, que lhes matava maridos e filhos. Não há, pois, do<br />
ponto de vista da verosimilhança, lugar para femininos prantos, na<br />
«Pequena Ilíada» de Eça de Queirós.<br />
Feita esta observação, concluímos a análise dos três núcleos intertextuais<br />
que confluem, no hipertexto queirosiano, com significativa<br />
relevância: a «greve» de Aquiles, que constitui a matriz hipotextual<br />
de todo o fragmento, sendo este, no fundo, uma expansão da frase<br />
«ils ne combattaient point» ; o regresso dos embaixadores aqueus, que<br />
se haviam dispersado pelo meio das naus; e, enfim, a morte de Heitor,<br />
com que se prende o motivo das lamentações fúnebres.<br />
A estes, devemos juntar um quarto núcleo, também muito importante.<br />
Pertence à «Rhapsodie X» e apresenta-nos o retrato psicológico<br />
e quase anti-heróico do mais poderoso dos chefes — Agamémnon.<br />
Consumido pelos cuidados ante a evolução desfavorável dos acontecimentos,<br />
o Atrida não era capaz de adormecer: «le doux sommeil ne<br />
saisissait point 1' Atréide Agamemnon, prince des peuples, et il roulait<br />
beaucoup de pensées dans son esprit» (p. 171). A sua angústia é<br />
descrita com intenso dramatismo, pois ele «poussait de nombreux<br />
soupirs du fond de sa poitrine, et tout son coeur tremblait quand il<br />
contemplait le camp des Troiens et la multitude des flûtes et la rumeur<br />
des hommes. Et il regardait ensuite l'armée des Akhaiens, et il arrachait<br />
ses cheveux, et il gémissait dans son coeur magnanime» (p. 171). Tendo-se<br />
dirigido à presença do avisado Nestor, para o consultar, mostra-se<br />
totalmente inseguro : «Je suis troublé, et mon coeur n'est plus ferme,<br />
et il bondit hors de mon sein et mes membres frémissent» (p, 174).<br />
Estas apreensões eram partilhadas pelo seu irmão Menelau: «la même<br />
terreur envahissait Ménélaos... et il tremblait en songeant aux souffrances<br />
des Argives» (p. 174). Note-se ainda, que o mesmo motivo já
<strong>HOMERO</strong> <strong>NUM</strong> <strong>MANUSCRITO</strong> <strong>INÉDITO</strong> 407<br />
aparece no início da Ilíada, centrado na figura de Crises, após a recusa<br />
afrontosa de Agamemnon: «le vieillard trembla et obéit» (p. 2).<br />
Todos estes pormenores nos ajudam a compreender melhor a<br />
importância do motivo do medo ao texto homérico e, por essa via, a sua<br />
presença no hipertexto queirosiano : neste, em relação ao hipotexto, é<br />
efectuada a transferência do estado psicológico de um indivíduo particular<br />
— Agamémnon, Menelau, Crises —, para o plano geral de um<br />
povo, de uma colectividade — os «Acaios». Esse estado psicológico<br />
aparece expresso de forma ao mesmo tempo semelhante e diferente,<br />
inovadora. Com efeito, a semelhança e a diferença, o semelhante no<br />
diferente e o diferente no semelhante constituem, a nossa ver, as duas<br />
grandes coordenadas de qualquer reescrita intertextualizante. É o que<br />
se verifica nos processos operatórios pelos quais da proposição matricial<br />
«Tout son coeur tremblait» derivou, com transparente tautologia, a<br />
proposição hipertextual «sentiam o coração tremer». O que as torna<br />
semelhantes é o imperfeito durativo («tremblait» < «sentiam»), a mesma<br />
reacção provocada por idêntico estado psicológico («sentiam tremer» <<br />
«tremblait») e a mesma sede dessa reacção («coração» < «coeur»). Mas<br />
há diferenças. Em Eça de Queirós, a tónica é posta, não no órgão,<br />
mas in supposito attributionis, isto é, no todo de que o órgão faz parte,<br />
no sujeito da sensação: o realce não é conferido ao coração que tremia,<br />
mas aos «Acaios» que o sentiam tremer; o fenómeno psíquico passa<br />
a ser encarado enquanto sentido, como uma sensação subjectiva.<br />
Esta modificação mostra-se mais adequada ao próprio contexto e até<br />
imposta por ele. Com efeito, Eça de Queirós apresenta-nos, em belos<br />
pormenores de ilusão referencial, uma situação em que os «Acaios,<br />
agachados à sombra das naves», «com os longos cabelos sob a face e<br />
os olhos no solo», tentavam abrigar-se das flechas mortíferas de «Apolo<br />
Vingador». Ora, nesta posição tão crítica e desconfortável, hão era<br />
apenas o seu coração que tremia: eram sobretudo eles que o sentiam<br />
tremer. A focalização está centrada no sujeito.<br />
Esta situação psicológica — o sentimento de insegurança, de<br />
medo, de angústia — tão do agrado de um romancista como Eça de<br />
Queirós pelo seu elevado índice de vis dramática, é ainda realçado<br />
pelo contraste implícito no epíteto «fortes», que, lhe é antitético e tem<br />
valor (ironicamente) concessivo — apesar de «fortes». O adiectivo<br />
ajusta-se perfeitamente ao texto épico, quer a nível do significado<br />
— os sujeitos do medo são, de facto, fortes, como os chefes Agamémnon<br />
e Menelau—, quer a nível do significante, pois na tradução de<br />
Leconte de Lisle aparece, como vimos, o qualificativo «fortes», embora<br />
apenas aplicado a seres inanimados, como as muralhas de Tróia. Em
408 MANUEL DOS SANTOS ALVES<br />
relação aos heróis, há outros epítetos, como «braves», que é o mais<br />
frequente e surge, logo na «Rhapsodie I», no discurso em que o sensato<br />
Nestor tenta chamar à razão os dois chefes desavindos, Aquiles e Agamemnon:<br />
«J'ai vécu autrefois avec des hommes plus braves que vous»<br />
(p. 9) ; «ils étaient les plus braves des hommes nourris sur la terre et ils<br />
combattaient contre les plus braves (p. 9) ; «si tu es le plus brave» (p. 9).<br />
Enfim, este epíteto aparece atribuído, quer a um indivíduo, como «le<br />
brave Ménélaos» (p. 173), quer a um povo, como na expressão «les<br />
braves Troiens» (p. 127). Outras vezes é substituído por «puissant»,<br />
qualificativo aplicado a Agamémnon, «le plus puissant» (p. 9). Se atendermos<br />
ainda ao facto de que tal epíteto aparece, como vimos acima,<br />
associado ao substantivo comum «hommes» — «le plus brave des<br />
hommes», «hommes plus braves que vous» —, ficaremos a compreender<br />
melhor a génese do conjunto «homens fortes», em que Eça de Queirós<br />
optou claramente pelo substantivo comum, em detrimento do etnónimo<br />
«Acaios», que já ocorrera duas vezes no hipertexto queirosiano, e<br />
cuja repetição seria agora estilisticamente negativa.<br />
Tal é a génese que propomos para o sintagma nominal «homens<br />
fortes», relativo ao predicado «sentiam o coração tremer». Mas<br />
com ela não esgotámos ainda a riqueza hipotextual da «Rhapsodie X».<br />
Basta dizer que ela constitui o único espaço intertextual em que tudo se<br />
passa de noite. E, se tivermos em mente que o manuscrito de Eça de<br />
Queirós nos descreve uma cena nocturna —- a situação precária dos<br />
Aqueus flagelados pelas flechas de Apolo—, não nos custará compreender<br />
a força sobredeterminante do texto primeiro relativamente<br />
ao texto segundo. Ora, se o castigo é narrado logo no início da<br />
Ilíada, o contexto nocturno dele está ausente do texto homérico. Em<br />
parte alguma do poema se diz que o flagelo foi infligido de noite, e a<br />
grandiosa comparação homérica da marcha marcial de Apolo que<br />
«allait semblable à la nuit» (p. 3), não se nos afigura suficiente para<br />
explicar tão feliz inovação, que chega a insuflar no texto de Eça de<br />
Queirós um verdadeiro sopro épico. Além disso, se a «Rhapsodie X»<br />
aparece, como pensamos ter demonstrado, intertextualizada em outros<br />
pormenores, não nos parece descabido afirmar que, narrando acontecimentos<br />
inteiramente nocturnos, sobredeterminou o motivo da noite<br />
no texto queirosiano. E isso se vê logo pela comunidade de pormenores<br />
que se prendem com esse motivo comum. Entre eles, destaca-se<br />
a dicotomia trevas vs luz, tão do agrado de um artista plástico de matriz<br />
parnasiana, como Eça de Que rós, sempre fascinado pelas sensações<br />
visuais. Trevas implícitas na noite, como se pode ver nos exemplos<br />
seguintes: «nuit noire» (p. 173); «dès que la nuit eut répandu ses téne-
<strong>HOMERO</strong> <strong>NUM</strong> <strong>MANUSCRITO</strong> <strong>INÉDITO</strong> 409<br />
bres» (p. 177). Luz implícita no brilho metálico, que as trevas da noite<br />
realçam ainda mais, como no seguinte passo em que, depois de se<br />
separar de seu irmão Menelau, Agamémnoa se dirige para a tenda de<br />
Nestor (p. 173):<br />
Et il le touva sous sa tente, non loin de sa nef noire, couché sur un lit<br />
épais. Et autour de lui étaient répandues ses armes aux reflets variés, le<br />
bouclier, les deux lances, et le casque étincelant [...]. Et, s'étant soulevé, la tête<br />
appuyée sur le bras, il parla ainsi à l'Atréide:<br />
— Qui est-tu, qui viens seul vers les nefs, à travers le camp, au milieu de la<br />
nuit noire, quand tous les hommes mortels sont endormis?<br />
À luz deste excerto, de que sublinhámos os elementos mais significativos,<br />
melhor poderemos compreender o texto português. O sintagma<br />
«na sombra da tenda» é uma tradução literal do seu correspondente<br />
«sous la tente», e o predicado «luziam» retoma os referentes de<br />
luz e brilho, expressos na tradução de Leconte de Lisle por conjuntos<br />
como «armes aux reflets variés» e «casque étincelant», e outros que se<br />
encontram dispersos por toda a «Rhapsodie», como : «bouclier éclatant»<br />
(p. 176) e «l'airain brillait comme l'éclair de Zeus» (p. 175). Mas a<br />
luz das estrelas e o brilho metálico das armas são elementos componentes<br />
do mesmo cenário nocturno (p. 182): «Allons! la nuit passe;<br />
déjà Vaube est proche; les étoiles s'inclinent. Les deux premières parties<br />
de la nuit se sont écoulées, et la troisième seule nous reste».<br />
Esta dicotomia trevas vs luz aparece igualmente no texto de Eça<br />
de Queirós. Ao conjunto já citado, «defronte dos muros de Tróia<br />
— pesados e negros no resplendor da luz», junta-se o seguinte: «na<br />
sombra da tenda, luziam os escudos redondos, as espadas de pregos<br />
de prata». Mas, para a composição desta bela frase, foram convocados<br />
outros referentes intertextuais. Assim, o sintagma «escudos redondos»,<br />
para além de corresponder literalmente (excepto na substituição do singular<br />
pelo plural) a «bouclier bombé» (p. 402), apresenta um lexema,<br />
«escudos», larguissimamente representado na tradução de Leconte de<br />
Lisle (cf. pp. 9, 49, 55, 93,125 — quinquies! —173,175,190,402, passim),<br />
o que até se compreende, pois é de um poema bélico que se trata.<br />
Quanto à sequência «as espadas de pregos de prata», é uma tradução<br />
literal, embora pluralizante, como acontece sempre nesta compositio<br />
intertextual de Eça de Queirós —, do francês «Pépée aux clous d'argent»<br />
(p. 21).<br />
No que diz respeito à frase «Os chefes falavam em baixo», temos<br />
de regressar à já convocada «Rhapsodie X», a que se encontra geneticamente<br />
ligada. Com efeito, se é certo que o deíctico «em baixo» se
410 MANUEL DOS SANTOS ALVES<br />
pode explicar numa perspectiva sintagmática, por oposição a outros<br />
informantes espaciais («acima» e «ao longe») e, numa perspectiva<br />
paradigmática, em relação com a interdiscurso teatral e plástico—,<br />
já os outros elementos representam uma mtertextualização operada<br />
a partir daquele espaço dialógico. E que, embora não tenhamos encontrado<br />
nem nesse núcleo, nem em toda a Ilíada qualquer modelo para<br />
tal frase, a verdade é que o sintagma nominal «os chefes» aparece nesse<br />
mesmo núcleo com muita frequência, nada menos que em seis ocorrências:<br />
«nous appellerons les autres chefs» (p. 174): «il devrait lui-même<br />
exciter tous les chefs» (p. 174): «Et bientôt ils arrivèrent tous au milieu<br />
des gardes, dont les chefs ne dormaient point» (p. 176); «les chefs qui<br />
commandent sur nos nefs» (p. 177); «il avait convoqué les plus illustres<br />
des chefs» et des princes» (pp. 179-180); «O amis, princes et chefs des<br />
Argiens» (p. 186). Como se vê, Eça de Queirós, na sua actividade<br />
intertextual, usa de preferência aqueles significantes que estão mais<br />
largamente representados no hipotexto e, pela frequência das ocorrências,<br />
chegam quase a atingir os efeitos do refrão ou leitmotiv, traduzindo<br />
bem aquela atmosfera homérica que Eça de Queirós mais deseja captar.<br />
Neste aspecto e uma vez provado por meios mais concludentes o diálogo<br />
intertextual, não podemos excluir dele os próprios lexemas, o<br />
que até se compreende: se o escritor incorpora no seu texto unidades<br />
já antes estruturadas no texto alheio, é lógico que privilegie também<br />
o uso dos significantes que nele encontra, quando os considere eficazes<br />
para os objectivos em vista.<br />
O mesmo se diga da forma verbal «falavam», que, embora de uso<br />
corrente, não pode ser interpretada apenas como elemento da prática<br />
interdiscursiva, nem do léxico pessoal do escritor, mas como elemento<br />
sobredeterminado pelo diálogo intertextual. Na verdade, a tradução<br />
francesa encontra-se saturada de formas do verbo «parler», e o elevado<br />
número de ocorrências é imposto pela própria estrutura do diálogo<br />
nos Poemas Homéricos. Com efeito, no discurso directo, que Gérard<br />
Genette. num comentário à análise platónica do diálogo em Homero,<br />
designou por «discours reporté» (1972: 192-193), a fala de uma personagem<br />
aparece sempre demarcada da narração propriamente dita,<br />
isto é, do discurso na terceira pessoa, por duas formas verbais declarativas,<br />
pertencentes ao chamado discurso atributivo acima referido, como<br />
êeme, Tlooariiôa /AETrjvôa, etc., e colocadas, respectivamente, antes,<br />
como introdução, e depois, como recapitulação, e equivalendo aos<br />
actuais dois travessões (o anteposto e o posposto), ou ao abrir e fechar<br />
de aspas. Assim se compreende que, no longo percurso de toda o<br />
texto, apareçam, repetidas à saciedade, tantas formas daquele verbo.
<strong>HOMERO</strong> <strong>NUM</strong> <strong>MANUSCRITO</strong> <strong>INÉDITO</strong> 411<br />
Só na «Rhapsodie X», que continua a ser o nosso ponto de referência,<br />
aparecem nada menos que vinte e três occorrências : «Le brave Ménélaos<br />
parla ainsi» (p. 172); «Et le roi Agamémnon parla ainsi» (p. 172);<br />
«il parla ainsi» (pp. 173, 175, 177 etc.); «Ayant ainsi parlé» (pp. 173,<br />
175, 178, 181); «[Nestor] lui parla rudement» (p. 175); «Ils parlèrent<br />
ainsi» (p. 179); «Et le Troien parlait encore quand la tête tomba dans<br />
la poussière» (p. 184); «il avait à peine parlé» (p. 186).<br />
A persistência, neste núcleo intertextual, da isotopia da fala impôs-se<br />
ao escritor com demasiado peso, para que a não mantivesse no seu<br />
texto. Aliás, ela harmoniza-se perfeitamente com o sintagma «Os<br />
chefes», quer a nível de significante, como vimos, quer a nível de significado,<br />
pois os interlocutores do diálogo homérico ocupam, de facto,<br />
postos de chefia, como Agamémnon, Menelau, Nestor, Ulisses e<br />
outros.<br />
Não se pense, porém, que a esta atitude conformista se limita<br />
a operação intertextualizante de Eça de Queirós: o seu texto opõe-se<br />
ao texto homérico, através de transformações relevantes, ditadas pela<br />
estrutura do seu enunciado e pelo seu código tecnico-narrativo. Assim,<br />
a pluralidade homérica dos interlocutores individualizados com antropónimos,<br />
aparecem no hipertexto queirosiano absorvidos no plural<br />
sintético e abstactizante — «os chefes». E a pluralidade das vozes e<br />
das falas surge concisamente concentrada na forma verbal — «falavam».<br />
Desta maneira, todo um Canto de Homero cabe numa frase de Eça<br />
de Queirós, e a variedade dos seus discursos reduz-se a um só discurso,<br />
o discurso narrativizado, já referido — «os chefes falavam em baixo».<br />
Eis, pois, a interferência intertextual — mais relevante do que<br />
parecia à primeira vista — da «Rhapsodie X» no hipertexto queirosiano.<br />
Quanto ao segmento «com os longos cabelos sob a face e os olhos<br />
no solo», nele sobrevive, como vestígio palimpséstico, o epíteto homérico<br />
«les Akhaiens chevelus», cujo elevado número de ocorrências<br />
na tradução de Leconte de Lisle (cf. pp. 20, 21, 29, 32, 33, 131, 142,<br />
147, 151, etc.) faz dele um verdadeiro estereótipo, agora plasmado no<br />
texto português em «longos cabelos». Digno de nota é o cuidado com<br />
que Eça de Queirós evitou toda a aspereza do texto francês, eivado de<br />
arestas iónicas — bem sugestivas de «la poésie des vieux Rhpsôdes<br />
connus sous le nom d'Homère», que o tradutor francês procurou traduzir<br />
«dans son caractère héroïque et rude», como diz ele no polémico<br />
«Avertissement». No que diz respeito aos outros elementos do mesmo<br />
conjunto, temos de convocar um quinto núcleo intertextual, para tornar<br />
inteligível a sua génese. Referimo-nos àquele passo da «Rhapsodie V»,<br />
em que um guerreiro troiano, atingido pela espada de Antíloco, «tomba
412 MANUEL DOS SANTOS ALVES<br />
du beau char, la tête et les épaules enfoncées dans le sable qui était<br />
creusé dans cet endroit» (p. 92). Os lexemas relativos ao corpo do<br />
guerreiro — «la tête et les épaules» — aparecem substituídos, no hipertexto<br />
queirosiano, por elementos que lhes são semanticamente justapostos<br />
— «cabelos», «face» e «olhos» —, para exprimir uma posição<br />
similarmente incómoda. O sintagma «no solo», equivalente ao francês<br />
«en terre» — «enfoncées en terre» (p. 182), «s'enfonça en terre» (p. 182),<br />
«couchées en terre» (p. 185)—, foi sem dúvida sobredeterminado pelo<br />
sintagma «dans le sable», do conjunto «enfoncées dans le sable», que<br />
aparece literalmente traduzido por Eça de Queirós, para designar as<br />
rodas paralisadas dos carros de combate: «enterradas na areia».<br />
Menos complexa é a génese dos restantes elementos, «e sem<br />
cessar... as piras fumegavam, carregadas de cadáveres» é uma tradução<br />
quase literal da sua correspondente proposição francesa «Et sans cesse<br />
les bûchers brûlaient, lourds de cadavres» (p. 3). Assim, numa espécie<br />
de regresso da capo, o escritor retoma a «Rhapsodie I», que constitui<br />
o mais extenso e o mais rico núcleo intertextual, onde o escritor foi mais<br />
insistentemente «chercher son bien», como Molière e outros geniais<br />
«voleurs de mots» (M. Schneider, 1985) de todos os tempos. Se,<br />
porém, examinarmos bem os interstícios do texto queirosiano, neles<br />
poderemos surpreender marcas bem reveladoras do génio artístico de<br />
Eça de Queirós. Neste aspecto, é notável a finura que o levou a preferir<br />
a lexemas como «fogueiras» e «ardiam», correspondentes literais de<br />
«bûchers» e de «brûlaient» respectivamente, signos de conotação menos<br />
bárbara, como «piras» e «fumegavam», irradiando assim, do seu texto,<br />
aquela sugestão de violência que caracteriza e pour cause a tradução<br />
de Leconte de Lisle. Por outro lado, a expressão «sem cessar», surgindo<br />
como repetição anafórica, associa num conjunto binário os dois<br />
períodos por ela introduzidos, transformando o segundo num eco<br />
do primeiro — mas um eco ampliado por ressonância advindas da<br />
incorporação de novos elementos:<br />
A — Sem cessar, as longas flechas silvavam através do acampamento<br />
;<br />
B — e sem cessar, entre gritos de dor de mulheres esguedelhadas<br />
e com a túnica aberta, as piras fumegavam, carregadas de<br />
cadáveres.<br />
Como se pode ver, o elemento comum — «sem cessar» — conduzindo<br />
à associação das duas frases, semanticamente interligadas pela<br />
relação causa/efeito, e fazendo da segunda um prolongado eco da
<strong>HOMERO</strong> <strong>NUM</strong> <strong>MANUSCRITO</strong> <strong>INÉDITO</strong> 413<br />
primeira, reforça a coesão textual e sugere eficazmente o adensamento<br />
de uma atmosfera trágica, numa situação de impasse.<br />
«Ao longe, o mar ressoava em cadência». Considerado em si<br />
mesmo, este período é até bastante banal, modelado em estruturas<br />
que pertencem ao foro da prática interdiscursiva de um povo de marinheiros,<br />
como o nosso n . Por outro lado, constitui uma variante<br />
da sequência já analisada que se encontra no texto queirosiano — «o mar<br />
ressoante». Porém, quer isoladamente, quer no seu conjunto, nenhuma<br />
destas motivações nos autoriza a excluir essa frase do intertexto homérico,<br />
não só porque é parte integrante de um texto a ele umbilicalmente<br />
ligado, como temos visto, mas também pelos vestígios homéricos que<br />
nela sobrevivem. Os motivos do mar e do som obrigam-nos a encará-la<br />
como uma composição intertextual, realizada a partir de elementos<br />
homéricos, como «la mer aux bruits sans nombre» (p. 3) e «ses armes<br />
ressonnèrent sur son corp» (p. 91).<br />
Recapitulando, diremos, para terminar, que da leitura intertextual<br />
do manuscrito de Eça de Queirós em confronto com o seu<br />
modelo homérico, resultam as seguintes conclusões:<br />
1. Uma tão flagrante semelhança dos dois intertextos no plano<br />
da expressão que quase todos os elementos que se lêem no texto de Eça<br />
de Queirós se encontram no texto de Homero. Tal semelhança vai<br />
desde proposições inteiras até ao simples lexema — sobretudo o que no<br />
texto homérico ocorre com mais frequência —, passando pelos sintagmas<br />
e sequências sintagmáticas.<br />
2. Tal semelhança no plano da expressão só pode ser devidamente<br />
entendida em conexão dialéctica com a diferença, que se verifica<br />
também no plano do conteúdo, de acordo com a visão global de um<br />
macrotexto que nós não conhecemos, mas em que o fragmento narrativo<br />
em questão se deve inserir e a que já nos referimos na Nota 5 (p. 3).<br />
3. Essa diferença resulta de um complexo processo de derivação,<br />
de uma espécie de «gramática transformacional», coenvolvendo todo<br />
um jogo de supressões, substituições, adições, expansões e paráfrases,<br />
que confere ao intertexto queirosiano uma feição marcadamente agonística<br />
e é imposto pelo código técnico-narrativo de Eça de Queirós.<br />
11 Na célebre «Serenada» de Antero de Quental, de que existe partitura e<br />
ainda hoje é cantada, há mesmo um verso de estrutura afim: «Murmurava ao ionge<br />
o mar» (Martins, 1985: 294-295).
414 MANUEL DOS SANTOS ALVES<br />
Neste aspecto, é digna de nota a substituição do discurso directo pelo<br />
indirecto e indirecto livre; e da oposição temporal perfeito/imperfeito<br />
pela oposição imperfeito/mais-que-perfeito. Trata-se agora, não tanto<br />
de narrar factos sucessivos, mas sobretudo de descrever uma situação<br />
bélica de impasse, num cenário nocturno que não se encontra em<br />
Homero. O texto queirosiano, impõe-se ainda por uma íntima coesão<br />
dos elementos que o constituem e é conseguida em grande parte pela<br />
fusão num só, dos dois motivos que aparecem distintamente no texto<br />
de Homero — a peste e a guerra. Enfim, substituindo o concreto pelo<br />
abstracto e vice-versa, optando por significantes próprios de um registo<br />
nobre e culto da língua, como «molossos» em vez do esperado «cães»<br />
e «piras», em vez de «fogueiras», e ainda por uma inteligente selecção<br />
de nomes próprios de lugares e de personagens como «Tenedos»,<br />
«Febus Apolo», «Criseis», etc. — a dar ao texto uma tonalidade de<br />
cor local e de discreto exotismo —, Eça de Queirós deixou-nos no fragmento<br />
acabado de analisar um documento bem elucidativo, por um<br />
lado, da sua escrita oficinal e do seu estilo inconfundível e, por outro,<br />
da perenidade de Homero — uma das matrizes mais significativas em<br />
que foi moldada a cultura do Ocidente.<br />
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