Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
378 MANUEL DOS SANTOS ALVES<br />
Contudo, e dado que Eça de Queirós desconhecia a língua de<br />
Homero, no confronto a fazer, o texto mediador tem prioridade sobre<br />
o texto grego. E o texto mediador (mesotexto), como se poderá<br />
depreender sem grande esforço no decorrer deste trabalho, é precisamente<br />
a tradução da Ilíada por Leconte de Lisle (1818-1894), um dos<br />
grandes representantes da escola da arte pela arte e, num plano mais<br />
geral, da tendência artiste que caracterizou a literatura francesa da<br />
segunda metade do século xix 7 . A sua obra, bem conhecida de Eça<br />
de Queirós, funcionou para o escritor português como uma das principais<br />
janelas através da qual ele pôde contemplar e admirar a beleza<br />
clássica, que lhe impregnou o imaginário de motivos, temas e reminiscências<br />
de matriz greco-latina.<br />
Vamos, pois, proceder a uma análise intertextual, pondo em<br />
confronto o texto queirosiano e a tradução da Ilíada por Leconte de<br />
Lisle. Quanto ao primeiro, e por conveniências de método, vamos<br />
7 Com efeito, esse mestre do parnasianismo francês não foi apenas o ídolo<br />
do jovem Fradique, «artista nobremente e perpetuamente insatisfeito», «o cinzelador<br />
das Lapidarias» (1889:1, p. 273), notáveis por «uma forma soberba de plasticidade<br />
e de vida» (ibid., p. 263), compostas «na idade em que se imita sobre versos<br />
de Leconte de Lisle» (ibid., p. 278); nem a sua produção original se limitou a cerca<br />
de uma vintena de textos de doutrina estética, ou à forma impecável e marmórea<br />
dos Poèmes Antiques (1852), das Poésies Barbares (1862) — refundidas e aumentadas<br />
nove anos depois sob o título de Poèmes Barbares (1872) —, dos Poèmes Tragiques<br />
(1884), de belas composições «helénicas», como «Niobé», «Khiron», «Hélène»,<br />
«Hylas», «Thyoné», «Glaucé», «Klytie», «Kybèle», «Pan», «La Source», «Le Réveil<br />
d'Elios», «Hypatie», «La Robe du Centaure», «Chant Alterné», «Vénus de Milo»,<br />
«Les Éolides», Les Erinnys (1873), VApollonide (1888) — todo um acervo de realizações<br />
poéticas por detrás das quais se perfilam os grandes vultos da épica, da lírica<br />
e da tragédia gregas; nem foi somente o artista de «Études Latines» que nos pôs em<br />
contacto com Horácio, Propércio, Teócrito e Virgílio. Não. Para além desta<br />
obra original em prosa e em verso, que se pode 1er nas excelentes edições de E. Pich<br />
(1971, 1976, 1977, 1977a e 1978), também autor de uma valiosa dissertação sobre<br />
a sua criação poética (1975), há outra faceta em Leconte de Lisle, ainda mais marginalizada<br />
pelos estudiosos: referimo-nos à sua actividade de tradutor. E, neste,<br />
aspecto, constitui, porventura, caso único, tratando-se de autores greco-latinos.<br />
Traduziu para prover à sua subsistência, por encomenda do célebre editor Lemerre,<br />
os Idílios de Teócrito e as Odes Anacreônticas (1861), Hesíodo, Hinos Órficos, Bíon,<br />
Mosco, e Tirteu (1869), Esquilo (1872), Horácio (1873), Sófocles (1877) e Euripides<br />
(1885). O seu nome está ainda ligado às traduções de mais dois autores, que não<br />
chegou a realizar: Virgílio e Aristófanes. Mas, quando, em carta a Alberto de<br />
Oliveira (6/8/1894), Eça de Queirós se assume como «um fiel ledor de Homero»<br />
(1925: 253), é sem dúvida na tradução dos Poemas Homéricos por Leconte de Lisle<br />
que está a pensar: Ilíada (1867), Odisseia, Hinos, Epigramas e Batracomiomaquia<br />
(1868).