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<strong>HOMERO</strong> <strong>NUM</strong> <strong>MANUSCRITO</strong> <strong>INÉDITO</strong> 377<br />
erguendo-se (*23v) junto ao mar ressoante, chamara Apolo Vingador.<br />
E o Deus viera, dos cimos olímpicos, com a aljava cheia, que, sobre as espáduas<br />
do Deus, fazia a cada largo passo, sobre o anel, um ruído de pratas estropeadas.<br />
Primeiro ele ferira os cavalos, que, amarrados junto à tenda, comiam<br />
o lótus; depois ferira os molossos rápidos; por fim, trespassava os guerreiros,<br />
que tombavam, fazendo na areia um ruído de armas caídas. Sem cessar, as<br />
longas flechas silvavam através do acampamento: (* 24) agachados à sombra<br />
das naves, que se rachavam em seco nas abas da praia, os homens fortes,<br />
com os longos cabelos sob a face, e olhos no solo, sentiam o coração tremer;<br />
os carros de batalha jaziam acima, brilhando vagamente, com as rodas enterradas<br />
na areia; na sombra da tenda, luziam os escudos redondos, as espadas<br />
de pregos de prata; os chefes falavam em baixo, e sem cessar, entre os gritos<br />
de dor de mulheres esguedelhadas, e com a túnica aberta, as piras fumegavam,<br />
carregadas de cadáveres. Ao longe, o mar ressoava em cadência 4 .<br />
Para além da presença de Homero, o manuscrito constitui, pelas<br />
rasuras, emendas e entrelinhas que apresenta, um documento em<br />
nosso entender valiosíssimo quanto ao espaço percorrido pelo escritor<br />
entre o ante-texto e o texto, e também quanto à luta que teve de<br />
travar, ao ver-se apanhado nas malhas da intertextualidade 5 . É que<br />
não se trata apenas de uma obra-prima de compositio: sem prejuízo da<br />
originalidade, é também um produto acabado de imitatio intertextual 6 .<br />
4 Esta transcrição que, sem margem para graves erros, podemos considerar<br />
definitiva, é o resultado da leitura pouco fácil de um texto ainda menos legível em<br />
microfilme que no original ou em fotocópia. Procurámos torná-la tão fiel quanto<br />
possível ao texto original, incluindo a pontuação tão peculiar de Eça de Queirós<br />
em certos contextos, neste como noutros manuscritos do escritor. Mas só com<br />
esforços repetidos nos foi possível ir eliminando, uma a uma, as várias dúvidas suscitadas<br />
pela primeira leitura. A única lectio que durante mais tempo resistiu a uma<br />
conclusão definitiva, foi a forma «rachavam». Porém, depois de um reexame atento<br />
da letra de Eça de Queirós, e atendendo ao contexto verbal em que tal lexema se<br />
insere, não vemos qualquer outra alternativa plausível. O Leitor, porém, poderá<br />
fazer a sua verificação no texto que deixamos reproduzido em fac-simile, no final<br />
deste trabalho.<br />
5 Tal autógrafo terá feito parte de uma peça narrativa de mais longo fôlego.<br />
Tratar-se-ia, com toda a probabilidade, das «Viagens de Ulisses», que Eça de Queirós<br />
se havia encarregado de escrever para a projectada revista O Serão, nos números 2-6,<br />
conforme se pode 1er em outro manuscrito inédito, que faz parte do espólio de Eça<br />
de Queirós (Esp. 1/276). Esse abortado projecto não foi inútil : dele e do ciclo homérico<br />
a que pertence, viria a sair essa pequena jóia literária que é o conto «A Perfeição»,<br />
elaborado a partir principalmente do Canto V da Odisseia, mas também de outros<br />
Cantos dessa mesma epopeia e da Ilíada. Tal conto, já o escritor o havia designado<br />
sob o título significativo de Ulisses. Como estes textos, também o presente manuscrito<br />
é o fruto de uma leitura atentíssima dessas epopeias homéricas.<br />
6 O Leitor menos familiarizado com a teoria da intertextualidade, poderá<br />
1er com proveito o Cap. 3, «Tradition and Poetry» de W. F. Jackson Knight (1966:<br />
99-142).